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UAb - Antropologia Geral - Capitulo 2

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SUMARIO

2.1 Cinco campos de estudo

2.1.1 A Antropologia biológica (antiga antropologia física)

Ih:..-.._ 2.1.2 A antropologia histórica

2.1.3 A antropologia linguística

Sj!ú^2.IA A antropologia psicológica

9&&'2.1.5 A antropologia social e cultural

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Objectivos de Aprendizagem

Após a leitura do H Capítulo - A antropologia uma ciência integrante, oleitor deverá ser capaz de compreender:

• o projecto global daAntropologia

• o lugar da antropologia social e- cultural no projecto global daAntropologia.

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2.1 Cinco campos de estudo

Qual será a vantagem de evocar campos de estudo que não parecem dizerdirectamente respeito aos antropólogos sociais, fazendo correr o risco de tomarmais nebuloso o que já não é simples? A meu ver há todas as vantagens, namedida em que permite esclarecer o lugar da antropologia num conjuntocientífico mais vasto. O panorama científico da própria antropologia social e

-cultural poderia parecer de facto nebuloso se não fosse elucidado o lugar queocupano conjunto antropológico mais vasto. Sobretudo, quando a antropologia

.social e cultural se designa imperialmente pelo termo genérico de antropologia,"induzindo a ideia de que ocupa todo o espaço dos diferentes campos de estudoantropológico.

jS[a realidade, a ciência antropológica é uma ciência integrante a qual no seudesenvolvimento inicial não fazia a distinção entre os diferentes domínios deconhecimento, considerados na perspectiva de uma problemática teórica geral

_spbre_o_Hpmem. De facto, no passado, asua designação genérica antropologia(conceito de origem etimológica grega: antropos, homem; e logos, discurso,utilizado pela primeira vez em 1795 no sentido de «história natural do homem»)cobria grosso modo no mínimo — e continua a integrar mas de forma

"independente - cinco domínios de estudo fundamentais: 1) a antropologiabiológica (que substitui a antiga antropologia física), 2) a antropologia pré-histórica, 3) a antropologia psicológica, 4) a antropologia linguística, 5) efinalmente o que actualmente se designa de antropologia social e cultural.

•A ordem anunciada das diferentes disciplinas científicas não reflecte realmente- - uma qualquer hierarquia subordinati vá entre elas, mas tão somente uma forma"~(ãr6Ttranã) de apresentação cujo diagrama I reflecte melhor a sua paridade^genealógica.

ANTROPOLOGIA

Antropologia Antropologia Antropologia Antropologia AntropologiaBiológica Pré-histórica Psicológica Linguística Social e Cultural

Dias. l

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1 Pluridisciplinaridadc eintsrdiscipiinandadc nãosão, como facilmente se en-tende, conceitos equivalen-tes, embora o segundo pres-suponha a pluridiscípli-n aridade. De fado, apluridisciplinaridade dizrespeito à reunião de váriasdisciplinas justapostas semreal intercomunicação entreelas. Inversamente, a inter-disciplinaridade supõe aintegração s imul t ânea devários saberes devendo con-duzir à constituição de umcampo específico de conhe-cimento, conjugado a partirde cada um dos camposcientíficos constituintes.

O desenvolvimento desta ciência geral desde o século passado e a consequentecrescente acumulação de uma complexidade considerável de conhecimentossobre cada urn dos referidos domínios, fez com que seja hoje impossível, a umsimples investigador, abarcar todos eles e todas as suas múltiplas subdivisõesdisciplinares. Na realidade, tem-se caminhado necessariamente da generalidadepara a especialidade. As subdivisões disciplinares aumentaram eautonorniz aram-se, tornando-se ciências independentes. Contudo, no seio decada uma delas, raramente se reserva um tempo de paragem para reflectirsobre o que fazem as outras ciências e trocar conhecimentos entre si. Taispalavras não significam que alguns cientistas não tenham realizado trabalhospluridisciplinares ou, mais raramente, interdisciplinares1. É, no entanto, verdadeque a maioria deles de tão preocupados com a especialidade perdem facilmentede vista o objecto final da antropologia como ciência integrante: o Homemsocial e cultural na sua complexidade total. Mas também é verdade que noplano da necessária interdisciplinarídade entre especialidades, corrTpreocupações comuns em alguns aspectos - interdisciplinaridade que semconstituir um campo de conhecimento específico pretende por vezes erigir-seem domínio embora na maioria das vezes não se vislumbre o mínimo campoepistemológico, a não ser o das generalidades -, o fio condutor da especialidadefaz sempre iminentemente falta.

Não significam tais palavras algum desinteresse pelo campo interdisciplinarintegrante. Bem pelo contrário. Ou não fosse a antropologia social e culturaluma especialidade que recorre constantemente à integração de diferentessaberes. O que se pretende dizer é que a interdisciplinaridade não deve seruma panaceia para a ausência de especialização (conducente à profundacompreensão dos fenómenos), a única que permite aceder, graças à minúcia eà concentração da atenção, à compreensão de fenómenos profundos.

Colocadas estas reservas, a interdisciplinaridade, mais ou menos abrangente,é metodologicamente desejável como passo de convergência científica e passopotencial de síntese dos diferentes saberes, sem o qual não existiria realgeneralização e possibilidade de universalização dos conhecimentos. Mas esteandamento deverá reflectir-se imediatamente num novo esforço deespecialização e assim de seguida. Naturalmente, o conhecimento não temlimites, aos quais não pretendem obviamente nem a especialização nem ainterdisciplinaridade. Fechando este parêntese, o que caba de ser dito pretendeunicamente chamar a atenção para as limitações actuais dainterdisciplinaridade, que de modo algum constitui, por enquanto, um campode conhecimento em si, assim como para o excesso de especialização queimpede uma visão alargada dos problemas.

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2.1.1 A antropologia biológica (antiga antropologia física)

No século XIX e nos princípios do século XX, a palavra antropologia eraempregue exclusivamente no sentido de antropologia física, ciência cujoobjecto se centrava em especial nos caracteres biológicos dos homens segundo

l a noção de raça, a hereditariedade, etc. A disciplina integrava igualmente a»^ L_§p-.atomia comparada (nos aspectos da anatomia das raças, que compreendia a:J osteologia, a osteometria, a craniologia, a somatologia), a fisiologia comparada,| a patologia comparada (imunidade racial, receptividade racial) o estudo médico

" " ™"~~~dãs mutilações, a teoria da evolução biológica, etc.

A. antropologia física designa-se hoje de antropologia biológica e não sepreocupa especialmente com as raças e a sua anatomia comparada (com asformas e mensurações dos crânios e esqueletos, da cor da pele, dos olhos e docabelo). A antropologia biológica, diz essencialmente respeito ao estudo dasvariações dos caracteres biológicos do homem no espaço e no tempo. Por"outras palavras, esta ciência debruça-se sobre o estudo das relações entre o

• ' ' património genético humano e o meio geográfico e social, relacionando asparticularidades morfológicas e fisiológicas com o contexto ambiental e com

~™"~'~á"evolução destas particularidades. Em consequência do meio físico, aantropologia biológica toma em consideração os factores culturais queinfluenciam o crescimento e o conjunto das transformações ou fases sucessivaspelas quais passam os indivíduos desde a sua concepção biológica até àmaturidade.

."_"!. ' O actual domínio da antropologia biológica, na sua contribuição mais directa——pàra-evidenciar a relação entre factores sócio-culturais e caracteres biológicos•=•—•—do" homem, debruça-se em particular sobre a genética das populações e

participa, cada vez mais - directa ou indirectamente -, no debate sobre o derivado• ; - ' • do; mato e o dependente do adquirido assim como sobre a sua contínua

• - interacção.

•:- - - Este campo interdisciplinar tem tido algum desenvolvimento significativo, desde.:._._ J?Auris trinta anos, no que respeita à relação entre as ciências da vida e as

' • ciências sociais. Porém, uma forte desconfiança destas últimas tem levado a'"•-' ''lyriitàr o seu desenvolvimento interdisciplinar. De facto, certos exageros e

aproveitamentos de alguma ingenuidade são regularmente cometidos por,--,- .̂ entidades, na maioria dos casos, exteriores à comunidade científica. Por.r • • • exemplo, afirmar a existência de um cromossoma específico na população."'!". Criminal ou que os laureados com o prémio Nobel deveriam constituir um^ Zj^co de espermatezoides a fim de reproduzir homens super-inteligentes. Como• • : • • • facilmente se pode adivinhar, por detrás destas ideias corre uma ideologia

ue Permite evacuar os desajustes sociais e remetê-los para a exclusiva

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natureza de uma pseudo estratificação sócio-biológica dos indivíduos. Mais [recentemente, e aparentemente mais anódino e ingénuo, certos biologistaslevantaram a questão do fenómeno da "feromona", de modo simplista no quediz respeito aos seres humanos. A "feromona" é uma substância odorantesegregada por um animal que produz, nos indivíduos da mesma espécie, efeitoà distância, influenciando o seu comportamento, como por exemplo o estímulo lsexual. A análise deste fenómeno biológico extrapolado para os humanos,levou a retirar conclusões de carácter absoluto do ponto de vista biológico, r

sem tomar em consideração fenómenos sócio-culturais susceptíveis de *relativizar o pretenso efeito puramente biológico da "feromona". Com efeito, jnas conclusões algo redutoras de alguns biologistas, não são consideradas a tcomplexidade cultural da variabilidade e relatividade temporal e espacial do -odor, e rnenos ainda as diferenças cornportamentais próprias das várias classes •*sociais e da história particular dos indivíduos. Não é difícil entender que asimples tomada em consideração destas realidades sociais seria cientificamente ~importante para encarar o fenómeno biológico do odor, não só de forma menos ^exclusiva mas também, mais objectivamente, do ponto de vista biológico. £

íApesar destes exageros, não devemos, nem podemos, reduzir as relações, a 'ímeu ver, proveitosas, entre a biologia e a antropologia social (apesar de |actualmente não representarem um plano interdisciplinar real), a estes "f̂desmandos vindos, por vezes, de sectores estranhos ao mundo científico ou ;:de insuficiências de conhecimento derivadas da rígida cornpartimentação dos ;diferentes saberes. Na realidade, sempre que um face a face sério se produziu ''entre a ciência biológica e aciência antropológica, este conduziu a evidenciar -»as realidades sociais objectivadas desde há muito pelos antropólogos, como ltambém levou a fazer emergir novas e interessantes interrogações sobre anatureza de alguns comportamentos humanos. Nesta direcção, emergem de .;-maneira interessante as reflexões de António Damãsio [1998] sobre o cérebro

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humano. , . J41

Três exemplos ilustram perfeitamente um encontro entre as duas ciências e -todos eles evidenciam o desajuste entre parentesco biológico e parentesco ;social, sublinhado desde há muito pelos antropólogos sociais e reconfortado -agora pelos avanços da biologia.

Os dois primeiros exemplos, são relativos à inseminação artificial. O caso em -r

que uma mulher estéril desenvolve o seu ovulo fecundado pelo seu marido arecorrendo ao útero de outra; ou o caso em que se recorre a um banco de '£esperma (anónimo ou não, segundo os países) para, em substituição de um ilmarido estéril, criar in-viti-o um embrião, que será em seguida desenvolvido ;'no útero da esposa. Tanto numa situação como noutra, um dos cônjuges não {tem uma relação biológica com o futuro filho o que não o impedirá de ser \o como tal socialmente. O terceiro exemplo, mais discreto, diz

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respeito aos casamentos consanguíneos e ao facto das leis civis europeiasautorizarem casamentos entre primos direitos e proibi-los entre um meio-irmãoe urna meia-irmã - quando em ambas as situações o coeficiente deconsanguinidade é idêntico, no cálculo dos geneticistas. Esta distinçãointroduzida pelas sociedades, sublinha o carácter "artificial" da construçãosocial do parentesco. Os três exemplos demonstram que não é necessária aexistência de uma relação de consanguinidade real para que se constitua eafirme urna relação de parentesco. Os antropólogos sempre relevaram estefacto', apoiados em numerosos factos concretos, como havemos de ver,designadamente no nosso próprio sistema de parentesco, no capítulo"corresp on dente.

2.1.2 A antropologia histórica

-A antropologia histórica corresponde a um vasto programa de investigaçãosobre o passado das sociedades desaparecidas e das actuais. Á ela podeacrescentar-s e a antropologia pré-histórica e a etno-história.

A antropologia pré-histórica estuda a existência do homem num passadomuito remoto, relativamente ao qual não existem documentos escritos. Poresta razão, a investigação faz-se recorrendo à busca de vestígios materiaisdeixados por sociedades muito antigas e conservados no solo. Encontrarossadas humanas em determinados lugares, resulta era provas da existênciado homem nesses locais, mas também objectos de todo o género podem indiciar

JLsuajictividade passada. Pelo que acaba de ser dito se pode compreender que^antropologia pré-histórica tem por finalidade areconstituição das sociedadesdesaparecidas nos seus diferentes aspectos. Procedendo do encontro entre aantropologia e a arqueologia, a antropologia pré-histórica interessa-se pelas

Jécnicas, produções culturais e artísticas, organizações sociais. Como é fácil.de perceber, este último aspecto é certamente o mais problemático e representa

""um objectivo espinhoso, na medida em que os vestígios sociais têm um graude materialidade difícil de reconstituir na sua forma complexa antiga. Apesardê tal, eles não deixam no entanto de representar uma meta científica desejável

-•de atineir.

-Tanto o projecto da antropologia pré-histórica como a da etno-históriaresultam do confronto com a antropologia social. Porém se ambas se têm

\debnicado sobre o passado das sociedades exteriores ao tempo histórico das;-SP,?i.ed.ades ocidentais, a diferença entre a etno-história e a antropologia".•pre-histórica reside no facto de o etno-historiador trabalhar directamente com.'o tempo da oralidade local e o antropólogo pré-historiador recolher o seu-material de investigação em" escavações "feitas no solo. Em relação a este

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- Arqueólogo da pré-hístó-ria e elnÓlogo francês nas-cido cm 1911. Actualizou oestudo tia tecnologia no querefere os processos técnicose as condições de existênciade uma mesma técnica emáreas geográficas distantes,pondo fim à questão alter-'nativa entre empréstimo einvenção.

aspecto, o local de trabalho do pré-historiador e do etno-historiador tem pontoscomuns com o do antropólogo, os quais, tal como ele, trabalham no terreno,onde este último recolhe factos relacionados com a contemporaneidades ó cio-cultural num contexto de oralidade. Porém, como o tempo presente nãodiz directamente respeito à história e muito menos à pré-história, tanto naantropologiapré-históricacomo na etno-história a antropologia está subjacente,na medida em que conjuga o tempo da oralidade com o tempo do historiadorou do pré-historiador. Deste confronto resultam assim dois ramos daantropologia: a antropologia pré-histórica e a etno-história ou antropologiahistórica conforme as épocas e os autores.

A palavra etno-história foi criada pelos etnólogos americanos para referir osseus trabalhos relativos às tentativas de reconstitui ç ao da história dos índios, apartir das tradições e factos recolhidos. Por esta altura, era corrente dizer-seque onde não havia documentos escritos não havia história. Obviamente, a"falta de documentos não evidencia a falta de história, mas tão somente a falta.É assim que, durante algum tempo, os historiadores deixaram a cargo dosantropólogos os povos sem arquivos históricos escritos e as culturas camponesaseuropeias aos folcloristas. Porém, informação de um outro tipo foi encontradapelos etnógrafos (na forma de récitas, sagas, mitos, objectos) mas nãocorrespondiam ao que os historiadores mais conservadores consideravamhabitualmente como documentos históricos, donde a emergência de um campode estudo conjugando a etnologia e a história. Assim, na origem, a etno-históriacorrespondia ao estudo das sociedades sem escrita, dependentes da memóriaoral, e ditas sern história. Ora não existem sociedades sem história e a escritanão constitui um dado informativo evidente quanto à revelação do passado.

Para Leroi-Gouhran [1911-1986]2, a etno-história é história com os seusmétodos aplicáveis a qualquer terreno de tradição escrita, transpostos para umfundo de tradições orais. Por outro lado, para o autor, a própria etnologia seriaportadora de vocação histórica, na medida em que qualquer facto actual estariainduzido pelo seu passado. Assim, o método etno-histórico corresponderia àaplicação das regras da crítica histórica aos elementos ainda vivos na memóriados indivíduos. Por outras palavras, a etno-história apresentar-se-ia emcontinuidade com os métodos dahistória escrita, podendo assimilar qualquer'tipo de documentos escritos que iriam inserir-se num quadro oral de idênticaorigem sociológica [A. Leroi-Gourhan, 1975.].

Nesta mesma ordem de ideias, seria possível fazer intervir a arqueologia namedida em que os vestígios e as ruínas encontradas no subsolo são um contributoque, em certos casos, se podem combinar com a história escrita e as tradições,orais. Tal, acontece com certas entidades étnicas de África, América etc. Noentanto, segundo A. Leroi-Gourhan, a arqueologia só poderá figurar no seioda etnohistórianos casos em que as conexões com as tradições escritas permitemfixar um nome étnico às fontes (identificação do povo em causa) [ibid.].

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Resumindo, na origem, a etno-história dizia respeito ao estudo das sociedadesque não integram a história das sociedades ocidentais. Porém, a perspectivaetno-histórica acrescentou novas dimensões ao seu domínio. Na própriasociedade ocidental existem entidades sociais parciais que relevam igualmentedo estudo etno-histórico, como as comunidades camponesas, ou grupos maisrestritos como a família, etc. Por outras palavras, entidades cuja história dependeessencialmente da memória oral.

Nesta nova perspectiva, a etno-história vai ao encontro da antropologia históricapara, no caso das sociedades ocidentais, terem tendência a fundirem-se. Aantropologia histórica começou por interessar sobretudo o campo da históriapelos benefícios retirados do conhecimento antropológico, designadamenteuma conceptualização mais rigorosa do seu objecto. Por sua vez, os própriosantropólogos acabaram por perceber a influência das continuidades históricassobre as sociedades que estudam. Admitir influências do passado não significaadmitir continuidade histórica linear em todas as suas dimensões. Como jáindiquei no início do livro,-a continuidade histórica não se faz semprenecessariamente sem rupturas. O tempo processa-se em séries contínuas edescontínuas, dando lugar a um tempo sincrónico complexo onde se misturama longa duração, mais ou menos profunda, mas também rupturas, anomias3 einovações sem relação corn o passado. Estas realidades, impõem umaabordagem adaptada ao momento sincrónico, em particular nas sociedadessem memória profunda arquivada. Mas neste capítulo também os historiadoresaprenderam o valor da sincronia, a importância das estruturas. No entanto, ametodologia etnológica (modernamente praticada como uma etapa daantropologia, como veremos mais à frente) não pode perder de vista que otempo sincrónico nos escapa mais ou menos velozmente. Desta conjunção,resulta igualmente o facto desta etnologia não hesitar em recorrer ao passadopara reconstituir séries cujo estabelecimento se impõe para a compreensão defactos contemporâneos. Por exemplo, quando se tenta perceber em quecircunstâncias as alianças matrimoniais actuais, numa dada comunidade,poderão estar ou não relacionadas com anteriores. No presente exemplo, oinvestigador não pode deixar de remontar no tempo, o estritamente necessário,até encontrar o reencadeamento que lhe permite perceber que um determinadocasamento é fruto, ou não, de situações anteriores de mesma ordem. Esteexemplo, implica claramente a aplicação de uma metodologia própria daantropologia histórica ou etno-histórica a qual se poderia designar, de certamaneira, em "forma de arco", ao percorrer um determinado tempo histórico.Ou seja, implica partir do presente para regressar ao presente, passando pelopassado.

Este tipo de abordagem não deixa de apresentar alguma semelhança com ométodo histórico regressivo (método que vai das consequências aos princípios)defendido por Maré Bloch4 e posto em prática no seu estudo do parcelário

1 O termo de unomia foi in-t roduzido em sociologiapor Emile Durkhc im parareferir uma situação de "pa-tologia social" resultante dadesintegração ou dcslrulu-ração de uma sociedade tra-dic ional , ou de uma crisesocial passageira. A anomiatraduz-se pela rup tura desolidariedade entre indiví-duos e conduz à ausênciade laços in te r - indiv iduais ,por falta de regras de com-portamento social reco-nhecíveis e aceites por to-dos. A este termo o antro-pólogo britânico R;\(!cíÍff-Brown preferiu o termodisnomia, con tudo poucoutilizado.

4 Historiador francês da es-cota dos Annales, fuziladopelos alemães durante a se-gunda guerra mundial pelasua dupla pertença: à reli-gião juda ica c ao par t idocomunista francês.

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agrário da França [1976]: o método da história "aos recuos". Nos Annalesd"histoire économique etsociale, o autor explica o método: «...quando se tratade elucidar as "origens" de um facto social há sempre um grande perigo emabordar o estudo pelo seu período de génese. A embriologia é uma ciênciaadmirável mas só faz sentido uma vez conhecido em primeiro lugar, mesmosumariamente, o ser adulto. Uma instituição como a servidão, é, sobretudo,no momento do seu pleno desenvolvimento que convém abordá-la; casocontrário fica-se sujeito a investigar as premissas de coisas que nunca existiram»[1935:214].

Para concluir, nas sociedades em que determinados estudos o justificam, aantropologia histórica, ou a etnohistória, conjuga o tempo antropológico e otempo histórico naquilo que é estritamente necessário para a compreensão dopresente, como finalidade antropológica e não histórica.

5 A linguística é a ciência queestuda a estrutura, as fun-ções e valor significativo dalinguagem.

2.1.3 A antropologia linguística

Este domínio corresponde ao confronto entre a antropologia e a linguística5

enquanto ciência que estuda a linguagem como parte integrante do patrimóniocultural de uma sociedade. Com efeito, a linguagem corresponde a umarealidade social fundamental através da qual os membros de uma sociedadecomunicam e exprimem as suas ideias, os seus valores, as suas preocupações,etc. Pela sua amplitude, a linguagem constitui um domínio cuj a problemáticapressupõe uma abordagem necessariamente interdisciplinar. Sem o estudo dalíngua não seria possível compreender como os indivíduos pensam o que viveme sentem, ou seja não poderíamos compreender as suas categorias afectivas ecognitivas, as quais constituem precisamente o campo de estudo daetno-linguística.

Segundo Claude Lévi-Strauss [1958], a linguagem pode ser encarada, nassuas relações com a cultura, segundo três aspectos. Todos eles sãofundamentados na observação e levantam problemas particulares, para alémde constituírem o ponto de partida de concepções explicativas sobre as relaçõesentre a linguagem e a cultura: 1) a linguagem corresponde a um dos aspectosda cultura. É o plano mais empírico da questão e pela mesma razão as suasimplicações metodológicas são as mais importantes; 2) a linguagem éigualmente um&produçao cultural, na medida em que reflecte, pela natureza eprojecção dos seus sistemas simbólicos, certas características de uma cultura;3) finalmente, a linguagem corresponde a uma condição da cultura. É umfacto observado que a linguagem assume, totalmente ou eni parte, apermanência de certos aspectos da cultura. Num plano teórico, ela própria é

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uma cultura se a considerarmos um sistema de comunicação privilegiado quefornece a chave de acesso aos sistemas particulares de comunicação como aosdiversos aspectos da cultura.

A antropologia e a linguística são disciplinas autónomas, facto que explicaque a atracção de uma pela outra não tenha sido recíproca e que os benefíciosretirados da relação entre ambas não sejam equivalentes, mas a favor daantropologia. Contudo esta relação desigual, mas fascinante, entre as duasdisciplinas, ainda não foi realmente capaz de abordar e, desde logo,compreender a naRireza dos interfaces entre a linguagem e a cultura.

Na medida em que os antropólogos têm por vocação trabalhar em contextossócio-culturais orais, estes devem, enquanto técnica de análise, aprender epraticar a língua indígena do contexto local de que se ocupam, a fim de

-- compreender o sistema de comunicação subjacente. De facto, apesar de seconsiderar a oralidade como apenas a ausência de escrita, ela é ao mesmotítulo que a escrita uma técnica de comunicação. A oralidade, sob a forma de

„,—.expressão damemóriacolectiva, revela uma forma de comunicação cuja funçãoé idêntica à da escrita. Neste aspecto, a oralidade preenche o mesmo papelque os escribas do antigo tempo ao consignarem os acontecimentos sociais.Para o investigador, a única diferença entre a oralidade e a escrita reside nofacto da primeira pressupor o contacto pessoal entre indivíduos enquanto quea escrita se interpõe entre eles mediatizando os acontecimentos.

Através do estudo da língua é possível esperar compreender, por exemplo, ascategorias mentais do parentesco, cristalizadas nas nomenclaturas dos termosde parentesco e reconstituir as sagas genealógicas que permitem retraçar as

'" " histórias familiares e identificar as categorias parentais operatórias.

- - O estudo da língua na forma oral (transcrita foneticamente, designadamenteem locais onde esta não tem uma correspondência escrita), é o único meio

. obrigatório que o investigador tem para aceder à sociedade e à cultura em- observação.

---Diga-se incidentemente que alguns dos quadros linguísticos referidos,exclusivamente orais, se alteraram entretanto; quando os antropólogos iniciaramo estudo destas sociedades e obrigatoriamente as suas línguas, começando a

i! • --.-transcrevê-las foneticamente e em seguida a fixar a sintaxe.

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2.1.4 A antropologia psicológica

Aos três primeiros eixos de investigação que acabei de invocar, habitualmenteconsiderados como sendo os principais eixos constitutivos (com a antropologiasocial e cultural, o domínio que nos diz principalmente respeito e que é oobjecto deste livro) do campo global da antropologia, não se pode deixar deacrescentar b domínio da antropologia psicológica. Domínio que se definecomo o do estudo dos mecanismos do psiquismo humano, na sua interacçãocom a permanência social.

O presente domínio não tempor objecto o indivíduo, enquanto actor particular,o qual pertence ao domínio da psicologia, mas define o encontro entre a.antropologia e a psicologia no que corresponde à necessidade de compreensãoda subjectividade que preside à acção dos indivíduos em sociedade. Ou sejacorresponde à necessidade de passar do objectivismo ao subjectivismo. Neste"campo, entronca o fenómeno de representação sobre a realidade social e aacção derivada da percepção desta mesma realidade pelos diferentes actoressociais. O eventual hiato entre o real e a representação do real medeia a distânciateórica que pressupõe a rigidez do determinismo dos quadros sociais,condicionando toda liberdade de acção, e a, igualmente hipotética, totalliberdade de acção de que, na realidade, não dispõem os actores sociais .

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2.1.5 A antropologia social e cultural

Chegamos finalmente ao domínio que nos diz especialmente respeito. É sobreele que vamos reflectir ao longo do livro. Começo por dizer que por razões deeconomia de linguagem, a tendência é utilizar apenas o termo genérico deantropologia para mencionar os campos da antropologia social e cultural(ou etnologia, segundo as diferentes opções nacionais). Assim, a partir destemomento, sempre que falar de antropologia sabemos que subentende aantropologia social e cultural e não um sentido mais lato. Aliás, é nestes termosque deve ser tomado o título do livro; ou seja, no sentido Geral da antropologiasocial e cultural. De igual modo, quando falar de antropólogos é a especialistasdo domínio social e cultural que me refiro. Porventura, tal como os antropólogossociais, as outras especialidades terão certamente tendência para proceder domesmo rnodo em relação à designação genérica da sua especialidade.

Apesar desta designação genérica, não devemos tomar a parte pelo todoesquecendo que a antropologia social e cultural é um ramo da Antropologiano seu todo. Contudo, como tivemos a ocasião de explicar no início do livro,a antropologia social e'cultural é um ramo vastíssimo e complexo. E nessa

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medida, ele próprio se subdivide necessariamente em especialidades, vistoenglobar o estudo dos múltiplos aspectos fundamentais que se articulam econstituem uma sociedade: o sistema de parentesco, os modos de produçãoeconómica, o sistema jurídico, as técnicas, a transmissão dos saberes, as crenças,as artes, o simbólico, etc. •

Porém, estes aspectos, enquanto meras categorias cujo conteúdo resulta daactividade social dos indivíduos., tal como a definimos na introdução, não"podem ser considerados como elementos independentes uns dos outros. Aocontrário, deverão ser entendidos nas suas relações, a fim de compreender o

-sentido de-cada uma dessas categorias e finalmente a sociedade na suaalobalidade lógica (não se tratando aqui de coerência nem coesão dos sistemassociais à priori, mas fundamentalmente de relações de dependência einterdependência ou de ruptura).

A globalidade, ou totalidade (no sentido que lhe dá Mareei Mauss, comoveremos) que a antropologia procura perceber assim como o meio empregue

-para-atingir esta finalidade, torna a sua abordagem um métodofundamentalmente diferente das abordagens segmentares dos sociólogos, doseconomistas, dos juristas.

"Realizamos lima breve revista dos principais domínios da ciência antropológica,no seu sentido mais geral, para situar com uma maior precisão o lugar daantropologia social e cultural no conjunto do projecto integrante daAntropologia e constatar que nenhum dos domínios anunciados é inteiramenteexclusivo. As fronteiras dos seus respectivos campos não são estanques e emmuitos casos transvazam para fora dos seus limites, como sempre acontece

'com todas'as ciências e muito especialmente nas ciências sociais.

Para saber mais:

EVANS-PRITCHARD, Edward Evan,

--.--•-•1999 • Antropologia Social. Lisboa: Edições 70.

LÊ ROI-GOURHAN, André.

-•• - 1975 "Ethnologie évolutive ou ethno-histoire?", Ethnologie et* . . . ffistoire-ForcesProductives e Problèmes de Transition, Paris: ES.

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