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Caminhadas de universitários de origem popular UFAL Universidade Federal de Alagoas UFAL

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Caminhadas de universitários de origem

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UFAL

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C183

Caminhadas de universitários de origem popular : UFAL / organizado por Ana Inês Souza,Jorge Luiz Barbosa, Jailson de Souza e Silva. — Rio de Janeiro : Universidade Federaldo Rio de Janeiro, Pró-Reitoria de Extensão, 2009.100 p. ; il. ; 24 cm. — (Coleção caminhadas de universitários de origem popular)

Ao alto do título: Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada,Alfabetização e Diversidade. Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade eas Comunidades Populares.

Parceria: Observatório de Favelas do Rio de Janeiro.ISBN: 978-85-89669-43-6

1. Estudantes universitários — Programas de desenvolvimento — Brasil. 2. Integraçãouniversitária — Brasil. 3. Extensão universitária. 4. Comunidade e universidade — Brasil. I.Souza, Ana Inês, org. II. Barbosa, Jorge Luiz, org. III. Silva, Jailson de Souza e, org. VI.Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade e as Comunidades Populares.V. Universidade Federal de Alagoas. VI. Universidade Federal do Rio de Janeiro. VII.Observatório de Favelas do Rio de Janeiro.

CDD: 378.81

Copyright © 2009 by Universidade Federal do Rio de Janeiro / Pró-Reitoria de Extensão.O conteúdo dos textos desta publicação é de inteira responsabilidade de seus autores.

Coordenação da Coleção: Jailson de Souza e SilvaJorge Luiz BarbosaAna Inês Sousa

Organização da Coleção: Monique Batista CarvalhoFrancisco Marcelo da SilvaDalcio Marinho GonçalvesAline Pacheco Santana

Programação Visual: Núcleo de Produção Editoria da Extensão – PR-5/UFRJ

Coordenação: Claudio BastosAnna Paula Felix IanniniThiago Maioli Azevedo

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Ministério da Educação

Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade

Programa Conexões de Saberes: diálogos entre a universidade e as comunidades populares

UFAL

Pró-Reitoria de Extensão - UFRJ

Rio de Janeiro - 2009

Organizadores

Jailson de Souza e Silva

Jorge Luiz Barbosa

Ana Inês Sousa

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Roberta Micheline Porfírio Alves da Costa

Jacqueline Kenny Vasconcelos de Magalhaes

José Edmilson Barbosa dos Santos

Marilúsia Sebastião dos Santos

Adalberon Júnior

Arínic Airam Silva Costa

Auricélia Alves de Araújo

Cláudio Emmanuel Pontes Guimarães

Ana Cristina Franscisco dos Santos

Francisco de Assis dos Santos Silva

Marcio Pereira Monteiro

Maria Rejane Silva Barros

Thiago José Andrade Nascimento

Vívia Dayana Gomes dos Santos

Claudineia França da Silva

Mário César de Albuquerque Pessoa

Leonardo Henrique Correia dos Santos

Valter dos Santos Ferreira

Emanuelly Batista da Silva

Rômel Duarte Vilela

Robélia Régia Alves Porfírio da Costa.

Luiz Carlos Santos de Oliveira

Simone Pereira dos Santos

Rodrigo César Carvalho Moraes

Rangel Florentino Bomfim

Coleção

AutoresPresidente da RepúblicaLuiz Inácio Lula da Silva

Ministério da EducaçãoFernando HaddadMinistro

Secretaria de Educação Continuada,Alfabetização e Diversidade – SECAD

André Luiz de Figueiredo LázaroSecretário

Armênio Bello SchmidtDiretoria de Educação para a Diversidade - DEDI

Leonor Franco de AraújoCoordenação Geral de Diversidade – CGD

Programa Conexões de Saberes:diálogos entre a universidade eas comunidades populares

Jorge Luiz BarbosaJailson de Souza e SilvaCoordenação Geral

Janda Maria Alves de AlencarCoordenação Geral do Programa Conexões de Saberes/UFAL

Maria Lucia Santos M. da SilvaJosé Nascimento de FrançaKleber Cavalcanti SerraCoordenação de Projeto

Universidade Federal de Alagoas

Ana Dayse Rezende DóriaReitora

Eurico de Barros Lobo FilhoVice-Reitor

José Roberto SantosPró-Reitor de Extensão

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Prefácio

A sociedade brasileira tem como seu maior desafio a construção de ações que permi-tam, sem abrir mão da democracia, o enfrentamento da secular desigualdade social e econô-mica que caracteriza o país. E, para isso, a educação é um elemento fundamental.

A possibilidade da educação contribuir de forma sistemática para esse processo impli-ca uma educação de qualidade para todos, portanto, uma educação que necessita ser efeti-vamente democratizada, em todos os níveis de ensino, e orientada, de forma continua, pelamelhoria de sua qualidade. No atual governo, o Ministério da Educação persegue de formaintensa e sistemática esses objetivos.

Conexões de Saberes é um dos programas do MEC que expressa de forma nítida a lutacontra a desigualdade, em particular no âmbito educacional. O Programa procura, por umlado, estreitar os vínculos entre as instituições acadêmicas e as comunidades populares e,por outro lado, melhorar as condições objetivas que contribuem para os estudantes univer-sitários de origem popular permanecerem e concluírem com êxito a graduação e pós-gradu-ação nas universidades públicas.

Criado pelo MEC em dezembro de 2004, o Programa é desenvolvido a partir daSecretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD-MEC) e repre-senta a evolução e expansão, para o cenário nacional, de uma iniciativa elaborada, nacidade do Rio de Janeiro no ano de 2002, pela Organização da Sociedade Civil de InteressePúblico Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. Na ocasião constitui-se uma Rede deUniversitários de Espaços Populares com núcleos de formação e produção de conhecimentoem várias comunidades populares da cidade. O Programa Conexões de Saberes criou,inicialmente, uma rede de estudantes de graduação em cinco universidades federais,distribuídas pelo país: UFF, UFMG, UFPA, UFPE e UFRJ. A partir de maio de 2005, ampliamoso Programa para mais nove universidades federais: UFAM, UFBA, UFC, UFES, UFMS,UFPB, UFPR, UFRGS e UnB. Em 2006, o Ministério da Educação assegurou, em todos osestados do país, 33 universidades federais integrantes do Programa, sendo incluídas: UFAC,UFAL, UFG, UFMA, UFMT, UFPI, UFRN, UFRR, UFRPE, UFRRJ, UFS, UFSC, UFSCar,UFT, UNIFAP, UNIR, UNIRIO, UNIVASF e UFRB.

Através do Programa Conexões de Saberes, essas universidades passam a ter, cada uma,ao menos 251 universitários que participam de um processo contínuo de qualificação comopesquisadores; construindo diagnósticos em suas instituições sobre as condições pedagógi-cas dos estudantes de origem popular e desenvolvendo diagnósticos e ações sociais emcomunidades populares. Dessa forma, busca-se a formulação de proposições e realização de

1 A partir da liberação dos recursos 2007/2008 cada universidade federal passou a ter, cada uma, aomenos 35 bolsistas.

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práticas voltadas para a melhoria das condições de permanência dos estudantes de origempopular na universidade pública e, também, aproximar os setores populares da instituição,ampliando as possibilidades de encontro dos saberes destas duas instâncias sociais.

Nesse sentido, o livro que tem nas mãos, caro(a) leitor(a), é um marco dos objetivos doPrograma: a coleção “Caminhadas” chega a 33 livros publicados, com o lançamento das 19publicações em 2009, reunindo as contribuições das universidades integrantes do Cone-xões de Saberes em 2006. Com essas publicações, busca-se conceder voz a esses estudantese ampliar sua visibilidade nas universidades públicas e em outros espaços sociais. Esseslivros trazem os relatos sobre as alegrias e lutas de centenas de jovens, rapazes e moças, quecontrariaram a forte estrutura desigual que ainda impede o pleno acesso dos estudantes dascamadas mais desfavorecidas às universidades de excelência do país ou só o permite para oscursos com menor prestígio social.

Que este livro contribua para sensibilizar, fazer pensar e estimular a luta pela constru-ção de uma universidade pública efetivamente democrática, um sociedade brasileira maisjusta e uma humanidade cada dia mais plena.

Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade

Ministério da Educação

Observatório de Favelas do Rio de Janeiro

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Sumário

Apresentação ........................................................................................................ 9

Introdução ........................................................................................................... 11

Uma nova percepção de mundoRoberta Micheline Porfírio Alves da Costa ...................................................... 13

Um destino a alcançarJacqueline Kenny Vasconcelos de Magalhães ................................................. 16

Inúmeras vezes deixei de fazer lanche, para tirar cópias dos livros que pudessem saciar a minha fome de aprender...

José Edmilson Barbosa dos Santos ................................................................... 26

“Tudo posso naquele que me fortalece”Marilúsia Sebastião dos Santos ........................................................................ 28

Uma trilhaAdalberon Júnior ................................................................................................ 32

Toda criança tem o direito de crescer num ambiente deamor e segurançaArínic Airam Silva Costa .................................................................................... 36

Com os pés no chão.Auricélia Alves de Araújo .................................................................................. 39

Monitor do universo...Cláudio Emmanuel Pontes Guimarães .............................................................. 42

Uma simples história de pequenas e significativas conquistas Ana Cristina Francisco dos Santos ................................................................ 44

Vida, educação e química. Uma longa caminhada!Francisco de Assis dos Santos Silva .................................................................. 47

AcreditarMarcio Pereira Monteiro .................................................................................... 50

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Nunca é tarde para recomeçarMaria Rejane Silva Barros ................................................................................. 54

O melhor está por virThiago José Andrade Nascimento ..................................................................... 57

Uma história cheia de caminhadasVívia Dayana Gomes dos Santos ....................................................................... 60

Uma caminhada, rumo ao trabalho comunitárioClaudineia França da Silva ............................................................................... 64

Computando minha vidaMário César de Albuquerque Pessoa ................................................................ 66

Prosseguir é necessário, pois temos uma história a construirLeonardo Henrique Correia dos Santos ........................................................... 69

“Lutar, sempre. Desistir, jamais”Valter dos Santos Ferreira ................................................................................. 73

Minha família, meu alicerce!Emanuelly Batista da Silva ................................................................................ 76

A inserção de estudantes de origem popular, que se identificamcom a sua história e com o seu povo.Rômel Duarte Vilela ............................................................................................ 80

Echa p’a lante y no mires p’a trás!¡Nunca es tarde para volver a empezar!Robélia Régia Alves Porfírio da Costa. ............................................................. 85

Força individual e estímulos advindos de pais e professoresLuiz Carlos Santos de Oliveira .......................................................................... 88

A vida teimava em dizer não, mas ousei dizer simSimone Pereira dos Santos ................................................................................. 91

De volta ao NordesteRodrigo César Carvalho Moraes ...................................................................... 94

O filho de Adézio e JaneteRangel Florentino Bomfim ................................................................................. 96

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Apresentação

Universidade Federal de Alagoas 9

O Programa Conexões de Saberes: diálogos entre a universidade e as comunidadespopulares, no âmbito da UFAL, desenvolve-se através de cinco projetos sociais, de naturezaextensionista, comportando 25 universitários, autores do presente livro. Passaram por umaseleção rigorosa, em conformidade com os critérios definidos em âmbito nacional, taiscomo: renda familiar não superior a seis salários-mínimos; morar ou ser oriundo de espaçospopulares; escolaridade dos pais ou responsáveis pela criação não superior ao ensinofundamental; e proveniência de escola pública.

Os projetos desenvolvidos pelos estudantes compõem um conjunto de ações queconcorrem sinergicamente para a democratização do acesso e da permanência de estudantesde origem popular na universidade e do fortalecimento dos vínculos entre a universidade eas comunidades populares. São esses os projetos que compõem o Programa: a) Pré-VestibularComunitário; b) Pré-Supletivo do Ensino Fundamental; c) Educação Complementar eCidadania; d) Fitoterapia Popular; e) Organização e Mobilização Comunitária. Os referidosprojetos interagem diretamente com mais 500 moradores de três bairros no entorno daUniversidade Federal de Alagoas.

Nesse contexto, o Programa cria condições que contribuem para que estudantesuniversitários, de origem popular, vivenciem uma permanência qualificada em seus cursosde graduação na UFAL, além da possibilidade de desenvolver a capacidade de produzirconhecimentos científicos e intervir em seus territórios de origem.

É oferecido aos bolsistas uma formação acadêmica ampla e plural nos campos dateoria e metodologia de extensão e pesquisa, do domínio de técnicas instrumentais ediscursivas e da estruturação e desenvolvimento de políticas públicas, de modo a ampliar efortalecer o protagonismo do estudante nas ações em comunidades populares. No Programa,salienta-se a importância da participação efetiva do estudante, de origem popular, na vidauniversitária, na produção de conhecimento sobre sua realidade de estudo e de moradia,além da criação de condições para a transformação institucional da universidade.

Assim concebido, o Programa, por um lado, se configura num dos instrumentosfundamentais para contribuir com a sociedade, no âmbito sócio-cultural. Além disso, oPrograma possibilita o monitoramento e avaliação, pelos próprios alunos, do impacto daspolíticas públicas desenvolvidas em espaços populares. Por outro, os mesmos encontram-se inseridos em atividades acadêmicas voltadas para elaboração de diagnóstico,proposição e avaliação de políticas de ações afirmativas de acesso e permanência nasuniversidades federais.

A reflexão necessária, por parte dos autores, para traduzir em palavras a suas trajetóriade vida, abre a possibilidade da construção de uma nova relação entre os estudantesuniversitários oriundos de espaços populares e a instituição. É necessário conhecer seus

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10 Caminhadas de universitários de origem popular

rostos, suas cores, seus vestígios, seus sonhos e suas vontades de vencer. Suas histórias delutas e dificuldades para chegar a Universidade Pública não são menos árduas que a deoutros jovens que gostariam de estar aqui. A compreensão desses mecanismos sociaisconfigurar-se-á como instrumento de políticas públicas, espaços de debate e qualificaçãodas práticas acadêmico-populares no futuro próximo.

Estamos vivendo a revolução da troca de saberes. Estamos aprendendo a transitarnuma estrada de mão dupla, onde o popular e o científico andam lado a lado. Ensinamos aotempo e aprendemos ao tempo em que ensinamos. Nem precisamos ensinar. O que precisamosé aprender um com o outro. Não trouxemos peixes nem vamos ensiná-lo a pescar. Pegue asua vara e vamos pescar juntos.

.

Boa leitura, ou melhor, boa pescaria.

Prof. Dr. José Roberto Santos

Pró-Reitor de Extensão

PROEX/UFAL

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Introdução

Universidade Federal de Alagoas 11

O Programa Conexões de Saberes: diálogos entre a universidade e as comunidadespopulares - expressa a luta conjunta por melhores condições de vida para todos, além deestreitar os vínculos entre esses âmbitos. Por um lado, o Programa oferece a possibilidade depermanência, na UFAL, para 25 universitários de origem popular e, por outro, constitui-seem mecanismo de enfrentamento às refrações da questão social.

A construção do saber representa, assim, o resultado de um processo em que as relaçõesentre universidade e sociedade são mediatizadas pelas políticas públicas, operadas pelosdiferentes atores que compõem este espaço democrático. Trata-se de enaltecer a relação doconhecimento e compreensão do trabalho, que permeia toda a proposta acadêmico-popular.

Vale considerar que os estudantes e autores desse livro, atentos às suas parcelas deresponsabilidade, que exigem a comunicação e diálogo com as populações, trazem à cena a suatrajetória de vida acadêmica e pessoal, para partilhar, conosco, desse momento, através do memorial.

O memorial, como o próprio nome comporta, referencia as passagens da vida acadêmica,demonstrando a sua trajetória pessoal e estudantil. Consta de análises e reflexões dasatividades desenvolvidas, ao mesmo tempo em que seus autores vislumbram registrar dadosarticulados do seu curriculum vitae, inferindo um aspecto qualitativo na sua trajetória.

Nesse sentido, os 25 autores, ao seguirem essa articulação, fazem uma retrospectiva desuas vidas, reportando-se ao momento em que definiram seu ingresso na universidade e, inclusive,en-passent pelo Programa em suas diferentes formas de congregar pessoas e expressar às relaçõessociais. Nessa via, encontramos um relato analítico e reflexivo sobre os aspectos que influenciaramas suas vidas, perpassam seus cotidianos e norteiam suas perspectivas de vida.

Há, no fundo, um resgate da história de cada um, isto é, a possibilidade mesma derecuperação (construção) da memória, com base num objetivo relacionado à academia eque requer um processo de reflexão. Nessa linha de raciocínio, ao concluírem, expressamsuas expectativas de vida pessoal e profissional, o que realça a cada momento de suahistória na construção do conhecimento.

Por fim, gostaria de agradecer a oportunidade de fazer parte desse processo, aos 25autores, seus professores e coordenadores dos respectivos projetos, bem como, ressaltar oimportante papel que desempenha a Coordenadora do Programa, Assistente Social JandaMaria Alves de Alencar e toda a equipe da PROEX.

Parabéns aos autores!!!!!!!!

Profª. Drª. Mara Rejane Ribeiro

Coordenadora de Extensão

PROEX/UFAL

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Universidade Federal de Alagoas 13

* Graduanda em Ciências Biológicas na UFAL.1 Seleta em prosa e verso, Rio de Janeiro, J. Olympio/MEC, 1971

Uma nova percepção de mundo

Roberta Micheline Porfírio Alves da Costa*

Eu amo as gentes e por amar o mundo é queluto para que a justiça social se implante.

Paulo Freire

Vou iniciar a minha história recitando um poema magnífico de Manuel Bandeiraque se chama:

O bichoVi ontem um bichoNa imundície do pátioCatando comida entre os detritos

Quando achava alguma coisa,Não examinava nem cheirava:Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,Não era um gato,Não era um rato,O bicho, meu Deus, era um homem. Manuel Bandeira1

Esse poema me faz lembrar de meu primeiro ano na universidade. Foi em uma palestraque tive a oportunidade de conhecer esse poema expressivo e magnífico. Sinto que essepoema é parte do meu ser, da mesma forma que o átomo está presente em uma molécula e hásimbiose entre a alga e o fungo.

Não foi apenas o simples fato de reconhecer neste poema às mazelas da vida, mas aíntima e profunda vontade de justiça social. É por sentir indignação e ser consciente, que vina arte a expressão da minha revolta.

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14 Caminhadas de universitários de origem popular

Caro colega. Acima, está uma apresentação sintética, porém profunda de quem sou.Foi a maneira que encontrei para descrever de forma sucinta e direta a essência queconstitui a minha personalidade. Foi por estar receptiva às discussões de toda natureza epor ter vivenciado de forma constante as injustiças, que despertar para lutar pelo queacredito foi possível.

Tudo isso surgiu, quando em uma manhã do dia 22 de outubro de 1981, na capitalMaceió-Alagoas, deixo o útero para estar em contato direto com a luz do sol no planetaterra. Cresci até os meus 12 anos em uma família composta de pai, mãe e irmã. Depois destaépoca, só minha mãe e irmã fizeram parte da minha vida. Quando criança, os momentosmais maravilhosos eram no quintal da casa da minha avó e na Escola Margarez Lacet,situada no bairro do Tabuleiro do Martins, onde moro.

O quintal era o lugar das mais diversas brincadeiras e peraltices. As brincadeirasocorriam em meio à participação dos amigos-vizinhos. Como era maravilhoso esseespaço. Era nesse ambiente que, a todo tempo, vivíamos a arte produzida através dasnossas imaginações fantásticas. As recordações desse tempo são felizes, mesmo emmeio às dificuldades.

A escola também era o lugar de produzir arte. Lembro com satisfação dasatividades artísticas: o folclore, o teatro, a música, os desfiles das escolas e das feirasde ciências. Fico, extremamente, feliz em recordar como eu me sentia entusiasmada epronta para tais atividades.

Dentre as atividades das quais participei, a feira de ciências foi a que mais marcou aminha vida intelectual e profissional, pois ela trouxe o despertar e o estímulo que medirecionou para as Ciências Biológicas. É através do amor pela Biologia, sentimento preciosopara mim, que tenho a certeza do quanto esses acontecimentos foram importantes. Sempreque recordo, sinto o quanto foi incrível o desenrolar dos fatos que ainda era um sentimentoembrionário, mas que se fez tão sólido e grandioso em minha vida.

Há pouco tempo, eu era uma criança, depois, uma adolescente que se encantava àmedida que conhecia as fantásticas propriedades da vida. Hoje, na posição de adulta, ainda,sinto deslumbramento pela natureza como, também, entusiasmo sempre que observo comoé encantador o comportamento de um pássaro ao construir seu ninho - o movimentoacrobático das asas de um beija-flor no momento que se aproxima da flor. São nessesmomentos que sinto o quanto a vida se faz fantástica.

As atividades artísticas marcaram minha vida. Mas o que me deixava triste era aimpossibilidade de participar das atividades, pois eram realizadas com os esforços dosprofessores e, muitas vezes, precisávamos contribuir com algum tipo de material. Essaépoca foi de oportunidades, pois, hoje, pouco se vê tanta iniciativa e empenho dos educadoresna realização das atividades. Estou convicta de que foram essas atividades que contribuírampara o que sou hoje.

Como toda história, essa, também, possui sua face triste. Falo das constantes grevesque nos deixavam sem aulas. Lembro que chorava querendo estudar e pedia à minha mãepara me matricular em uma outra escola, pois, só o que queria era estudar. Todas às vezes quelembro desse fato, o meu coração se enche de dor e os meus olhos de lágrimas. Nessa época,eu não sabia ao certo o que era indignação, mas perguntava sempre o porque daquilo estaracontecendo. O que me respondiam era que as escolas não funcionavam e não sabiamquando iam voltar.

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Universidade Federal de Alagoas 15

Até então, eu não sabia discutir, só perguntar. Ao cursar o 1º ano do segundo grau,comecei a enxergar como a disciplina era orientada pelos professores e o descompromissodos mesmos. Questionava o porquê de algumas disciplinas não funcionarem. Todo iníciode ano, tinha a expectativa de estudar todas as disciplinas até concluir o ano. Porém, nasprimeiras semanas de aula, nós, alunos, tínhamos um esboço de como seria aquele ano, poiso comportamento dos professores na sala de aula, a ausência de alguns, mostravam-seindicadores de deficiência no ensino público. A maioria dos professores faltava muito, nãoorientava os alunos em suas disciplinas, surgiam no final do ano. Isso era algo desanimadore frustrante. Não posso cometer a injustiça de esquecer de alguns professores que sepreocupavam com o nosso aprendizado e que transformavam a escola em um ambiente,verdadeiramente, multidisciplinar. Infelizmente, eram poucos.

O que me deixa muito indignada é o descompromisso com o que é nosso, ou seja, como que é público. Discuto a postura do professor que não se sente cidadão, como, também, aposição de oprimido assumida por nós. Quero expressar a vontade que tenho de expulsar dedentro de cada um aquele que nos oprime para lutar contra o opressor.

O ambiente acadêmico não se distancia da realidade. Não foi a estrutura física que mefez, em alguns momentos, entristecer, mas o distanciamento e a postura tradicional de professoresde algumas disciplinas do meu curso. O primeiro ano na universidade foi impactante, pois aadaptação às disciplinas foi difícil e, uma dessas razões, foi o comportamento frio e distantedos professores, que nem sempre respondiam às nossas expectativas. Esse fato marcouprofundamente a minha vida acadêmica.

Hoje, estou me formando e sinto que devo e posso contribuir para que as transformaçõesde caráter sociopolítico e ambiental aconteçam ao meu redor e, também, em mim mesma.

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16 Caminhadas de universitários de origem popular

* Graduanda em Administração de Empresas na UFAL.

Um destino a alcançar

Jacqueline Kenny Vasconcelos de Magalhães*

Essa história se inicia aquiEm meados dos anos 80Vem da capitá, de MaceióMar e Sol, terra das AlagoasFoi quando dois jovens se encontraramE, assim, se apaixonaram

Maria moça bonitaMal possuía estudoEsperta e corajosaPronta pra enfrentar todos e tudoCabelos cacheados, corpo de violãoMorena como a noite, era uma tentação

Conheceu Benedito, rapaz bonitoGalanteador, era professorTambém de origem pobreLutava tanto na vidaSó vendo Nosso SenhorFoi assim que em uma noiteO amor os abraçou

Maria já possui uma filhinhaChristina que esplendorMaria advinda do interiorCom muito sacrifícioConstruiu uma casinhaOnde encontrava paz e amor

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Universidade Federal de Alagoas 17

Depois de alguns mesesBenedito apareceuDe mala e cuia, foi assim que se sucedeuFoi morar com MariaA qual seu coração prometeuQuando viu Benedito seu corpo estremeceu

Benedito já tinha filhosQuatro filhos sim senhor, Lucifábio e LucianoRapazes do professor, Luciflavia e Márcia VâniaCharmosas como uma florAchando graça do destinoOxênte seu menino, fizeram mais um pedido

Foi aí que aconteceuNaquela noite tão esperadaMaria engravidaraO resultado aí se deuDeu a luz a uma meninaJacqueline floresceu

Pra completar depois de um anoFinalizando a parideiraResolveram fazer mais uma brincadeiraEnlaçado com a força do destinoForam abençoados com mais um meninoNascera Bruno, encaminhado pelo divino

Com o vem e vai da vidaBenedito cai na bebidaDestruindo sua vidaParte o coração de MariaQue por mais que insistiaSua vida destruía

Pensava Maria cheia de agoniaCansada da vida que levavaEm sua família que tanto sofriaAo ver a situação em que se encontravaResolvera deixar Benedito que a apaixonavaHoje seu coração despedaçava

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18 Caminhadas de universitários de origem popular

Não teve jeito nãoLogo veio a separaçãoE agora minha nossa SenhoraO que seria de MariaDesempregada e desiludidaSegue o rumo de sua vida

Valente e corajosaMulher de fibra, vitoriosaJamais vi tanta determinaçãoCom muito esforço e dedicaçãoArrumou um trabalhoE reconstruiu seu coração

E consigo trouxe seus filhosQue aos poucos via crescerPra escola pública logo iriamEra, assim, que tinha que serPois Maria ganhava poucoE só o estudo podia oferecer

Daí continua minha históriaHistória de JacquelineMenina alegre cheia de vidaBonita, como girassolCabelos cacheados,Amarelo que nem o Sol

Olhos verdes como marExpressivos só faltam falarDedicada no que fazSempre alegre, só vendo rapaz!Insistente quando querCom jeitinho consegue o que quer

Desde pequenaJá sabia o que fazerSabendo que tudo que tinha era o estudo procurava não esquecerSempre estudiosa, pensava.É daí que vou vencer

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Universidade Federal de Alagoas 19

Estudando tanto na vidaEm escola Pública se viu crescerDedicada ao que faziaProcurava merecerPois sabia que um diaO esforço iria valer

Os anos se passando, amigos cultivandoMuitas alegrias aconteciamE cada ano que passavaEra um salto que davaPois mais perto estavaDo futuro que queria

Concluí o primeiro grauUfa! que alegriaSó que agoraMais um obstáculo tinhaProcurar uma escolaQue o segundo grau continha

Foi aí que minha mãeMais uma vez me ofereciaPois uma vaga numa escola conseguiaMeu caminho seguiaEm direção estavaDaquilo que pretendia

Surgem oportunidadesQue antes não possuíaCursos me ofereciamE todos que podiaAproveitava e faziaJá pensando no futuro que me esperaria

Mais uma vez ali estavaSempre rodeada de amigosQue sempre iam comigoA qualquer lugar que me encontravaJunto do meu coraçãoPois nada nos separava

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20 Caminhadas de universitários de origem popular

Muitas coisas aconteceramE como não podia deixar de terAdivinha o quê?Um grande amor veio ocorrerO meu primeiro e único amorCarlos, com quem hoje estou a viver

Terminando o primeiro grauViemos a nos conhecerQuando não está na horaAlgo tem que acontecer, começamos a namorarPorém, logo viemos a terminarSem saber, um grande amor logo ia acontecer

Depois de algum tempoMe aparece Caca (Carlos)Não consigo explicarMeu coração acelera,Começa a saltitarEis que o amor começa a desabrochar

Fiquei sem reação, tomei um susto!Estava tão bonitãoNaquele dia tão claroPensei estar tendo uma visãoAo se aproximar de mimEstremeceu meu coração

Veio em minha direçãoMe tomou em seus braçosMe deu um beijo de coraçãoQuase desmaio, fiquei sem noção!Senti algo tão forteQue não tinha explicação

Começamos a namorarJá estava no segundo grauContinuava a caminharEle também, agora juntosCom nada a nos atrapalharEstava no caminho que começávamos a trilhar

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Em 2000, terminei o segundo grauE agora a enfrentarMais um obstáculo a me esperarO bicho papão de muitos alunosO vestibular a chegarVamos lá!

Tentei o primeiro ano, nada de passar!Recomeçamos a estudarAgora juntos em nosso caminhoObjetivo era alcançarA tão esperada universidadeTínhamos que chegar lá

Tentei mais uma vezNão consegui passarContinuei a tentarO meu objetivo tinha que alcançarPra minha felicidadeCaca passa no vestibular

Fiquei tão felizAo vê-lo com emoçãoPois o seu caminhoEnxergava com exatidãoAgora lá vou euContinuar em busca do meu

O tempo passa, a tristeza me bateu!Pois aquilo que tanto queriaCom tanto esforço que faziaNão conseguia, porém não desistia!Pois sabia que um diaAlcançaria tudo aquilo que queria

Decidi, mudar de cursoE fazer mais um vestibularCom o tempo a se passarResolvi que teria que prestarO curso de administraçãoEm faculdade particular

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22 Caminhadas de universitários de origem popular

Passei, mais não conseguia comemorarPois outro obstáculo teria que enfrentarA faculdade era pagaEu teria que agüentarPois o curso eu queria,Meti a cara a estudarCom o dinheiro que ganhavaMal dava pra pagarO curso era caroTrabalhava pra estudarGastava todo dinheiroPra meu sonho realizar

Conheci novos amigosNovos horizontes a enxergarAgradecia muito a DeusPela oportunidade a me darFazia muito esforçoPra conseguir a mensalidade pagar

Assim, passou-se um anoOs dias vivia a contarFoi aí que aconteceuPor um acaso ao olharUm edital de transferênciaQue UFAL acabara de lançar

Resolvi que ia tentarA transferência conquistarJuntei todos os documentosSem os olhos a pestanejarNaquela oportunidadeQue eu acabara de ganhar

Ao chegar na universidadeFiz minha inscriçãoForam abertas dez vagasMe deu uma desanimaçãoPois estava concorrendoCom gente de toda região

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Continuei estudandoPensando que não conseguiriaA vaga que tanto queriaO resultado logo sairiaNem coragem eu tinhaPra ver o resultado do edital que oferecia

Por ironia do destinoVocê logo adivinhaQuem diria, eu conseguiA vaga que tanto insistiaPulei de tanta alegriaPois mais um passo eu vencia

Na universidade hoje estouFazendo AdministraçãoUm curso que me abraçouConstruindo planos vouPensando em meu futuroAprendendo mais estou

Buscando realizaçãoSeguindo meu coraçãoInspirada em um sonhoCom muita dedicaçãoProcuro conhecimentoPesquisa e compreensão

Pra seguir meu caminharO trabalho precisei deixarA universidade era de diaO horário ia chocarDedicada ao que queriaResolvi pela universidade optar

Lá estava euAgora desempregadaAcreditando que algo melhorAgora me esperavaComecei a procurar

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24 Caminhadas de universitários de origem popular

Adivinha onde fui acharDentro da universidadePortas abertas estavam a me esperarFoi aí que eu acheiAlgo a me identificarJustamente na mesma épocaQue estava a procurar

Em 2006 um novo programa a lançarO Conexões de SaberesVinha a inaugurarFiz a minha inscriçãoLogo vieram a me chamarAproveitei a oportunidade fui logo trabalhar

Um projeto grandiosoAdoro participarConecta o saber científicoAo saber popularTrabalhamos em conjuntoPra objetivos alcançar

Troca de conhecimentosComunidade a ganharCursos profissionalizantesUnião compartilharCooperando uns aos outrosJuntos no caminhar

Pra completarResolvi me casarLigada aos laços do matrimônioLado à lado vou estarJunto do meu esposoAdivinha quem é - Caca

Agora vou confessarTodos devemos enfrentarUltrapassando obstáculosNunca desanimarPois, naquilo que acreditasPodes muito bem conquistar

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Basta acreditarTer força e garraÉ preciso dedicarPara venceres na vidaPor sacrifícios irás passarÉ preciso persistir e logo alcançarás

Continuo a buscarAgora pra uma família formarSempre, sempre estudandoTraçando o meu caminharSendo feliz na vidaNão esquecendo de estudar...

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26 Caminhadas de universitários de origem popular

* Graduando em Farmácia na UFAL.

Inúmeras vezes deixei de fazer lanche, para

tirar cópias dos livros que pudessem saciar a

minha fome de aprender...

José Edmilson Barbosa dos Santos*

Nasci em Penedo-AL no dia 11/11/1984, porém vivi, até os 18 anos, na cidade de SãoSebastião, interior de Alagoas.

Minha família é de origem pobre. Meus pais sempre viveram da agricultura, únicafonte de subsistência que tínhamos. Logo que cheguei à adolescência, fui ajudar meu paino trabalho de agricultura. Num horário, eu trabalhava e no outro, estudava. Desde o meuprimeiro ano na escola, sempre fui muito aplicado, dedicava-me ao máximo porque acreditavaque, através dos estudos, poderia ter um futuro melhor.

Desde pequeno, sonhava com uma vida diferente daquela que tinha. O trabalho nocampo é duro e não proporciona boas oportunidades de vida. Fazendo justiça a minhadedicação nos estudos, todos os anos eu tinha um ótimo rendimento escolar e nunca repetium ano na escola.

Sabia que se permanecesse estudando em São Sebastião, onde as condições de ensinosão precárias, não conseguiria ingressar na universidade, por isso, fui estudar em Arapiraca,cidade que me proporcionaria melhores condições.

Essa foi a primeira grande dificuldade que enfrentei até chegar à universidade federal,por causa da distância, do cansaço, da dependência de transporte da prefeitura. Mesmo comtodas essas dificuldades, não desisti. Pelo contrário, enxergava essas barreiras como umdesafio que ascendia dentro de mim uma força de vontade inexplicável que, somente, umser infinito em poder pode proporcionar ao ser humano.

Uma outra dificuldade que quase me impediu de continuar com meu sonho, foia deficiência financeira dos meus pais e de toda a minha família. Sem recursos, eu nãopodia ter bons livros, contentava-me com cópias de livros emprestados. Inúmerasvezes deixei de fazer lanche para tirar cópias dos livros que pudessem saciar a minhafome de aprender, pois, precisava economizar em tudo para suprir às minhasnecessidades na escola.

Quanto mais dificuldades eu enfrentava, melhor era o rendimento escolar. Quantomais se aproximava o vestibular, mais eu me esforçava para estudar, mais queriaaprender. Nunca concorri com os outros candidatos, concorria com as minhas própriasdificuldades e venci todas.

O ano letivo de 2002, quando cursava o 3º ano do Ensino Médio, foi muito marcantee emocionante para mim. Sem dinheiro, mas com muita força de vontade, decidi investir

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Universidade Federal de Alagoas 27

numa plantação de mandioca, acreditando que isso pudesse me dar algum retorno financeiropara utilizar no final do ano, quando eu fosse prestar o vestibular.

Durante todo o ano, trabalhava na plantação de mandioca e estudava. Foi tão difícilque achava que não iria conseguir. De manhã, estudava e, à tarde, trabalhava a duras penas,com o Sol castigando o meu rosto, a poeira da roça entupindo o meu nariz e todo o esforçofísico que maltratava o meu organismo.

No final de 2002, com o dinheiro do plantio da mandioca, paguei a inscrição novestibular, às passagens para Maceió e outras necessidades.

Na primeira tentativa, fui agraciado por Deus com a bênção da aprovação. A partirdesse momento, comecei uma grande batalha, marcada por perdas e muitas vitórias.

Fui morar na casa do meu tio em Maceió. Os primeiros meses foram muito difíceisdevido à minha dificuldade de adaptação ao novo lar. Na universidade, outra barreiraencontrada foi a mudança na didática de ensino. Cursei todo o ensino médio em escolapública e estava acostumado a uma metodologia de ensino bem diferente daquela queestava vivenciando naquele momento. Senti, fortemente, a mudança e, por isso, não conseguiame encontrar. Estava perdido dentro da sala de aula, não tinha ninguém para me dar umaorientação, longe dos amigos, da família, da antiga rotina, longe de mim mesmo. Semdúvida, foi uma experiência inesquecível que me ensinou belas lições de vida.

No último ano letivo do meu curso, tive a oportunidade de integrar, como bolsista, oPrograma Conexões de Saberes – Projeto Fitoterapia Popular. Este me fez reconhecer quãoexpressiva e importante é a necessidade de se pensar na universidade pública, como umavia de acesso para estudantes de todas as origens, além da elaboração de políticas públicasque garantam o acesso direto dos estudantes, de origem popular, à universidade.

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28 Caminhadas de universitários de origem popular

* Graduanda em Letras na UFAL.

“Tudo posso naquele que me fortalece”

Marilúsia Sebastião dos Santos*

Meu nome é Marilúsia e a perspectiva de relatar publicamente, a minha vida gerou emmim insegurança, pelo fato de expor determinados episódios que, até então, nunca haviadividido com ninguém. Na verdade, alguns deles, eu até tinha esquecido. Foi necessáriovoltar no tempo para que às lembranças viessem à tona. É como se, no fundo, quisesseguardar apenas as recordações dos momentos agradáveis e esquecer os ruins.

O nome Marilúsia, por exemplo, causou-me constrangimento por muito tempo, porqueos meninos do bairro riam de mim, mas com o passar dos tempos, acostumei-me a ele. Eunasci na Usina Ouricuri, município de Atalaia-Al, no ano de 1957. Meu pai (em memória)chamava-se José Pastora dos Santos e era pedreiro. Minha mãe, Cícera Maria Ferreira dosSantos, até a presente data, cuida apenas do lar.

Minha família é grande. Ao todo somos onze pessoas, meus pais e nove filhos, sendoque: dos nove, sete são homens e, apenas, duas mulheres - eu e minha irmã, Maria Aparecida.Como minha irmã tem alguns anos a mais do que eu, quando solteira, recebia maiorescuidados por parte da nossa mãe e, isso, deixava-me enciumada. Afinal, ela sempre ganhavaas melhores roupas e acessórios, pelo fato de já ser uma mocinha.

Essa preferência gerou uma apatia entre nós e, para piorar, eu usava as coisas dela, oque a deixava possessa. Dessa forma, não éramos amigas. Isso fez com que eu me aproximassemais dos meninos, (irmãos e coleguinhas). Eles me tratavam bem, brincavam comigo,cuidavam de mim. Aprendi a brincar como eles e a gostar de tudo o que eles gostavam. Umade nossas brincadeiras era subir em árvores: mangueiras, jaqueiras, goiabeiras, ingazeirasetc. Caí, certo dia, de uma delas e quase morri. Brincávamos, também, de artista, pega-pega,queimada e jogávamos futebol. Então, eu aprendi com eles a fazer embaixadinha, (quechamávamos de “pontinho”) e eu era a atração da turma. Fazia mais de 200 embaixadinhasde uma só vez. Hoje em dia, consigo fazer 10, no máximo.

Nessa época, eu tinha, aproximadamente, uns 10 anos e morávamos em uma casa comapenas quatro cômodos. Mas como meu pai era pedreiro (considerado um engenheiro naépoca) nossa casa apesar de pequena, sempre foi bem cuidada; era a mais bonita da rua e sedestacava das demais.

Como vivíamos no campo, desfrutei de tudo o que a natureza oferece. Colhifrutas no pomar, tomei banho de rio e vivi cercada por animais domésticos. Fui, muitasvezes, ao roçado e à mata com meus pais, familiares e vizinhos. Enfim, tive uma

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infância típica de criança do campo que, até hoje, lembro com carinho. Sem contarcom a liberdade que eu e meus irmãos tínhamos de brincar, livremente, pelos vastosterraços que cercavam a nossa casa.

Apesar de serem apenas alfabetizados, meus pais sempre fizeram questão de queestudássemos. Quando concluímos o “primário”, resolveram mudar da Usina para a Cidadede Atalaia. Para ser mais precisa, fomos morar no Povoado Jenipapeiro, periferia de Atalaia,porque oferecia melhores condições. Dessa forma, eu e meus irmãos chegamos a concluir o“ginásio”. Mas eu queria ir mais além, pois, não passava pela minha cabeça ter a mesmavidinha da minha mãe, viver apenas para cuidar da casa e criar filhos. Desejava viajar,conhecer o mundo, morar em grandes cidades e me formar. A minha mente voava empensamentos que, a meu ver, pareciam concretos.

Como no povoado não tinha água encanada, a lavagem de roupas, o banho e tudo oque se refere à higiene pessoal, era feita no rio Paraíba do Meio, onde aprendi a nadar. E paranão pecar por omissão, antes que eu esqueça, vale salientar que, depois que a minha irmãcasou, sentimos a falta uma da outra e nos tornamos grandes amigas.

A idade dos sonhos...

Desde pequena eu sonhava em melhorar de vida. Pensava em viajar para SãoPaulo ou Rio e fixar residência por lá, pois, o meu maior desejo era ser bailarinaclássica ou aeromoça. Sem apoio, tendo em vista que menina pobre não podia sonhar,não realizei nenhum dos dois sonhos, mas não me dei por vencida. Quando completei18 anos, mudei para a capital, Maceió. Na década de 80, consegui emprego, fixeiresidência e voltei a estudar, enfrentando às dificuldades de uma nova fase da vida,longe da família.

Entretanto, fiz novas amizades, aos poucos, fui me adaptando à vida na cidadegrande. Comecei a sair com amigos e, em uma viagem turística a Aracaju, conheci oEmyr, meu grande amor e hoje meu esposo. Como fruto desse amor tivemos três lindosfilhos: Esaú Clayton, Henry e Emyr Vinícius. Em seguida, converti-me a Jesus a quemsirvo, de fato e de verdade. No princípio, apenas, eu era evangélica, mas com o passardo tempo, a minha família foi se convertendo e, atualmente, todos somos evangélicos.Portanto, posso dizer: “eu e a minha casa servimos ao Senhor”.

Depois de casada, deixei-me levar pela simples condição de dona-de-casa e passeia viver, somente, para a família. Durante muito tempo, esqueci de mim mesma, pois,com três filhos pequenos para cuidar (mesmo com auxílio de alguém), sem quepercebesse, a vida foi passando por mim. Nesse momento, eu sentia muito a falta deminha família, principalmente, da minha mãe, que continuava morando em Atalaia,interior do Estado.

Depois que meus filhos cresceram, minha vida ficou mais tranqüila e resolvi voltar aestudar, pois, o meu objetivo era fazer um curso superior.

Meu marido me deu todo apoio necessário para continuar os estudos e,então, recomecei no 2º ano científico na Escola Estadual Afrânio Lages, no CEAGB-Maceió. No início, senti muita dificuldade em acompanhar a turma, tendo em vistaque o ensino havia mudado. Afinal, eu passara 17 anos longe da sala de aula. Aospoucos, fui me adaptando, assimilando mais os conteúdos e, no 3º ano, meu rendimentoescolar melhorou.

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30 Caminhadas de universitários de origem popular

Faltavam esclarecimentos...

Sem nenhuma orientação prévia, a respeito de profissões, já se aproximava o dia dasinscrições do vestibular e eu não sabia, ainda, em qual das áreas acadêmicas iria me inscrever.Meu sonho sempre fora fazer Biologia, mas tinha muito medo de bichos e asco deexcrementos e coisas danificadas. Logo, percebi que não era a escolha acertada. Além disso,sabia que as chances de passar eram mínimas, pois estava pouco preparada. Resolvi, então,fazer Letras, acreditando que as chances de passar eram maiores.

Já quase no final do ano letivo, entrei para a revisão final de um cursinho pré-vestibular. Foiótimo e, com muito interesse, absorvi cada informação que nos era passada. Entretanto, ocorreu umfato terrível na minha casa que me envolveu muito e me desestruturou: tratava-se de um problemafamiliar que me deixou muito abatida, de tal forma, que terminei por esquecer o vestibular.

Com o auxílio de uma prima muito querida que me estendeu a mão, naquele momentodifícil, e pela minha vizinha e amiga Emirce (duas pessoas maravilhosas por quem tenhoimenso carinho) consegui contornar o problema. Voltei às aulas e, aos poucos, retomei oprazer pelos estudos. Confusa com tantos acontecimentos, disse a mim mesma: vou fazervestibular seja para o que for e vou passar. Não é necessário dizer o quanto me empenheipara cumprir essa promessa.

Chegou o grande dia...

Enfim, chegou o dia da inscrição no vestibular e resolvi me inscrever no curso deLetras. No momento, não sabia se fizera a escolha certa. Hoje, sei que sim. Amo meu cursoe com ele me realizo profissionalmente, pois, gosto muito do que faço (lecionar).

Em meio à tamanha ansiedade, prestei vestibular e fui aprovada na 1ª e 2ª fases.Finalmente, consegui ingressar na Universidade e foi uma das maiores alegrias da minhavida. E a partir dali, minha vida mudou bastante. A chegada à Universidade foi fantástica,tudo era novidade e uma nova vida se iniciava, a partir de então. E como eu não trabalhava,a minha permanência na Universidade só foi possível, porque meu esposo me custeou enunca deixou faltar nada. Se não fosse por ele, não teria conseguido. No decorrer do curso,conheci muitos alunos que abriram mão de seus sonhos e trancaram a matrícula por nãopoderem se manter. Creio que isso acontece, com muita freqüência, em todos os cursos.

Mas apesar das limitações e das dificuldades, a Universidade promove melhorias navida das pessoas e comigo não foi diferente. Começaram a surgir propostas de empregostemporários, fui adquirindo experiência e, hoje, com muito orgulho, sou bolsista doPrograma Conexões de Saberes, que muito contribui para o meu crescimento pessoal,acadêmico e profissional.

O Programa Conexões é composto por vários projetos ligados a comunidades populares.Em 2006, eu fiz parte de três desses projetos: o Projeto Vizinhança, situado no conjuntoDênisson Menezes, com aulas preparatórias para o exame supletivo de 1º grau; o Pré-Vestibular, no conjunto Graciliano Ramos e o INPAV - Instituto Nazareno Pão da Vida, oqual funciona no Conjunto Habitacional Osman Loureiro, atendendo à crianças carentesdas comunidades circunvizinhas. Neste, ministro aulas de reforço na turma de 2ª série, nasdisciplinas de Língua Portuguesa e Matemática.

É gratificante fazer parte desse Programa, inclusive, porque oferece ferramentasadequadas para o desenvolvimento de trabalhos em áreas específicas, com pressupostosinerentes à educação comunitária, ao mesmo tempo em que nos possibilita ajudar na melhoria

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de vida das comunidades envolvidas. Para mim, está sendo uma experiência, altamente,relevante e lamento, profundamente, não poder desfrutar desse trabalho por mais tempo,pois estou cursando o último ano letivo na Universidade. No próximo, partirei para umanova realidade.

Contudo, espero que outras pessoas tenham a oportunidade de participar e contribuir,positivamente, para o crescimento de um Programa tão promissor como o Conexões de Saberes.

E, finalmente...

Ao concluir esse trabalho, percebo que a vida só tem razão de ser quando,verdadeiramente, conhecemos a Jesus. Digo isso, porque nunca acreditei, realmente, quechegaria a concluir um curso superior. Como citei, anteriormente, era apenas um sonho que,com a graça de Deus, chegou a se realizar.

Antes de mim, ninguém da minha família havia chegado à Universidade. Depois, meuirmão Nilson, o mais novo, prestou vestibular na Faculdade de Belo Jardim-PE e foi aprovadono curso de Letras à distância.

Dessa forma, minha mãe, uma simples dona-de-casa, que nunca saiu do interior paralugar nenhum, tem dois filhos professores, sendo que um destes sou eu, que já pensa emfazer uma especialização. É uma proeza que poucas mães interioranas conseguem. Por issosou grata a Deus por honrar o meu esforço e me conceder tamanhos benefícios.

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32 Caminhadas de universitários de origem popular

* Graduando em Ciências Sociais na UFAL.

Uma trilha

Adalberon Júnior*

Cada um de nós constrói a sua própriahistória e cada ser carrega em si o dom deser capaz, de ser feliz!

Almir Sater/ Renato Teixeira.

Aqui, analisando alguns fatos marcantes em minha trajetória de vida, pude perceber oquão a vida é efêmera, cômica e ao mesmo tempo criativa.

Nasci na cidadezinha de Palmeira dos Índios, no interior de Alagoas, a 140 quilômetrosda capital, Maceió. Uma cidade que, hoje, conta com menos de 70 mil habitantes. Sou frutode uma gravidez não planejada e que veio após três meses do nascimento de meu primeiroirmão, Alexandre. Contando com algumas complicações respiratórias e alérgicas, passeipor uma difícil infância. Sempre acompanhado de minha mãe, Cida, percorria os corredoresdos hospitais. Mas deixando de lado essa parte, posso assegurar que tive uma infânciarazoável ou até mesmo boa. Sempre tive com quem compartilhar minhas alegrias e tristezase o mais importante para qualquer criança: ter com quem brincar. Sou o segundo de trêsfilhos homens de minha família, que conta ainda com uma menina, Maria Aline. Adotada,mas que acolhemos com muito carinho, mesmo dentro de nossas limitações.

Como todo filho do meio, a sina de não ser o primeiro (mais sonhado) nem o último(caçula) filho da família, tive a oportunidade de conviver com um irmão quase da minha idadee, ainda, de acompanhar a gestação de meu irmão André, junto a minha mãe. Recordo deminha alegria quando o sentia mexer na barriga da “mainha”. Uma infância tranqüila, queculminou numa adolescência precoce, diante da “chuva” de novidades que estava por vir.

Durante essa infância, pude desfrutar de um período de sucesso profissional de meupai, que de ajudante ascendeu à lojista e conquistou seu próprio e estruturado negócio. Isto,garantiu-me uma escola privada e de qualidade, desde minha alfabetização até a quartasérie do ensino infantil.

Em seguida, por várias situações, dentre elas uma crise financeira familiar, comecei aestudar em escolas públicas, onde posso assegurar que aprendi grande parte daquilo quesou. Mas naquele momento, vivenciávamos uma crise de greves e paralisações, constantes,que ameaçavam e prejudicavam o andamento dos anos letivos naqueles estabelecimentos.

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Universidade Federal de Alagoas 33

Fugindo dessas greves e impossibilitado de estudar em escolas da rede privada de ensino,fui morar com minha avó Inácia em Minador do Negrão, sertão de Alagoas, aaproximadamente 35 quilômetros de Palmeira, onde estudei com bolsa integral numa escolacenecista, a Nossa Senhora das Graças. Ali, permaneci por um ano e, em seguida, voltei paraPalmeira dos Índios, onde estudei dois anos na Escola Estadual Estado de Nova Jersey. Lácursei a sexta e a sétima séries do ensino fundamental.

No ano 2000, aos 14 anos, fui matriculado no conhecido “Gigante do Asfalto”, omaior colégio da cidade: Colégio Estadual Humberto Mendes. Era tudo muito grande ediferente e me senti perdido diante de tamanha grandeza. O colégio tinha mais de dois milalunos e até hino, era coisa nova para mim.

Até então, tudo se configurava para que crescesse ali um jovem como tantos de minhageração: apáticos e despreocupados com as questões políticas, econômicas e sociais de seu mundo.Nesse mesmo tempo, surgia a oportunidade de encenar uma peça de teatro de rua, numa comunidadede meninos e meninas em situação de risco. Uma comunidade popular, onde minhas tias Claricee Cícera desempenhavam trabalhos de inserção social. Recebi um papel de destaque na peça: erao delegado. A partir daquela experiência de teatro nas ruas da cidade, cairia por terra toda inibiçãoe timidez de um menino, até então, despercebido. Aquela peça iria me render, mais tarde, participaçãopolítica ativa na cidade.

A diretora do gigante colégio onde estudava, em certa apresentação daquele espetáculoque acabara de assistir, procurou-me, depois, para me inserir numa nova proposta de gestãoescolar: democratizar às decisões das escolas. O menino tímido e sem expressão, agora, dálugar a um precoce líder estudantil, que defenderia a bandeira da democracia e da participaçãoda comunidade nas decisões do colégio. Abracei aquela causa e participei das eleições deconselheiros escolares e, para minha surpresa, seria o mais votado estudante eleito naquelee em qualquer outro colégio do Estado, chamando a atenção até mesmo dos altos postos daSecretaria de Educação Estadual e dos coordenadores dessa proposta de gestão.

Aquilo me lançou para o movimento estudantil da cidade e, em pouco tempo, járepresentava o colégio e a cidade em congressos e reuniões de líderes estudantis de todo oEstado – detalhe: com, apenas, 14 anos. Hoje, paro e penso como as pessoas davam atençãoao que eu falava com tanta convicção e, ao mesmo tempo, com tanta inocência.

Nesse curto espaço de tempo, já tinha fundado grêmios estudantis em minha escola eem outras da cidade e, até mesmo, colaborado na fundação de um órgão representativo dosestudantes de toda a cidade – a UESPIN (União dos Estudantes Secundaristas de Palmeirados Índios). Isso me aproximou, obviamente, das campanhas dos partidos de esquerda. Láestava eu, inserido nas reuniões de campanha do Partido dos Trabalhadores que, naqueleano, lançava como candidato a prefeito o médico Hélio Moraes, irmão da, então, combativae destemida senadora Heloisa Helena. Repito, é incrível como, também, ali, naquelas reuniõesde militantes de esquerda, professores, médicos e sindicalistas, conquistei espaço e eraouvido. Já naquele momento, ninguém acreditava quando eu revelava minha pouca idade.

Vários foram os aprendizados que essas experiências me proporcionaram, dentre elas,a aproximação com amigos de Igreja, de um movimento de características jovens, a renovaçãoCarismática Católica onde, em maio de 2002, vivenciei minha primeira experiência dapresença viva de Deus em mim. Dali por diante, minha liderança começava a aflorar, também,no serviço à Igreja e em especial a RCC. Liderança que garantiu que, em pouco tempocaminhado ali, assumisse grandes responsabilidades no movimento.

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34 Caminhadas de universitários de origem popular

Outro fruto de minha militância política foi a escolha de meu curso para o vestibular:Ciências Sociais, em especial no que tange a área de Ciências Políticas. Mesmo que nãovislumbrasse ser este um curso que sequer as pessoas conheciam e sempre chegavam aconfundir com Serviço Social, forçando-me sempre a explicar de que se tratava.

A opção por esse curso, não me fazia acreditar que chegaria à universidade numprimeiro vestibular. Isto por estar, durante meu ensino médio, tão engajado em tantosmovimentos políticos e religiosos, não dando a importância devida aos estudos. Queroressaltar, aqui, que mesmo diante desse descuido com os estudos, sempre fui um bomaluno, participativo e que captava com facilidade todas as temáticas e, em especial, asmatérias como História e Sociologia. Nunca fui reprovado e sempre obtive boas notas.Mas nada que fosse suficiente para uma aprovação num primeiro exame sem esforçosextras nesse sentido.

Para minha surpresa, meu nome apareceu entre os classificados na primeira fase dovestibular da Universidade Federal de Alagoas. Agora, precisava aproveitar essa oportunidadeque Deus me dava de ingressar na Federal. Foi o que fiz.

Nessa época, estagiava numa rádio da cidade, num programa jornalístico matinal e deoposição ao prefeito – que vencera as eleições de 2000, derrotando meu candidato petista.Conseqüentemente, meu adversário nessa e outras questões, as quais me colocaram em pólocontrário. Afastei-me da rádio e das minhas atividades político-estudantis e religiosas e fuipara Maceió estudar num cursinho preparatório, que consegui pagar com a ajuda de minhastias, meus pais e avós.

Sentia a necessidade de fazer um cursinho porque, além de não ter me dedicado muitoaos estudos nos últimos anos, a educação pública e, em especial, minha escola não vinhaaprovando muitos estudantes nos últimos vestibulares da UFAL.

Quase ninguém acreditava que eu fosse aprovado, inclusive eu mesmo, até que oresultado se mostrou diferente. Fui o décimo primeiro de quarenta aprovados. Umafelicidade sem tamanho, que superou as expectativas de muitos. Como todo líder,eu não tinha somente amigos, porque muitos - que não aprovavam minhaliderança - ansiavam por minha reprovação. A despeito deles, não somente fui aprovado,mas, também, fui o único de toda minha escola. Este não foi só um motivo de alegriamaior, pois foi, também, de tristeza. Lamento pela situação de um colégio tão grande,com mais de 400 alunos de terceiro ano, onde, apenas um, conseguiu ingressar nauniversidade federal.

No meu coração, a certeza de que Deus tinha novos e melhores planos para mim,porém longe de Palmeira. Agora uma nova vida era dada a mim, um novo tempo, uma novacidade, novas pessoas, novas necessidades e novas missões.

Chegando à universidade, em maio de 2004, a primeira barreira: onde morar? Semopções, fui morar com parentes de meus pais, com quem nunca tivera muito contato. Apóscinco meses surgiu a sensação e a certeza de estar incomodando e sendo incomodado.Ainda assim, sinto-me muito grato por terem me acolhido em sua casa e a seu modo.

Em outubro daquele ano, conseguia uma vaga na Residência Universitária Alagoana,espaço que antes não desejara, mas que, depois da convivência em casa de parentes, parecia-me a melhor opção. A Residência era, e ainda é, um ambiente de difícil convivência, mas aomesmo tempo, todos que lá estão têm a certeza de não incomodar a ninguém por estarem namesma situação: sem um lugar para morar e precisando estudar. A residência que, a cada dia

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Universidade Federal de Alagoas 35

que passa, torna-se, ainda, mais um depósito de miseráveis e um calabouço de estudantessem-teto, tem sido para mim um espaço de aprendizado, pelas dificuldades e provações.Costumo sempre dizer que, ali, tenho vivido a experiência que não vivi por ter sidodispensado do serviço militar.

Como estudante universitário de um curso de humanas, sofri várias provações naminha fé, principalmente, por cursar um curso conhecido por formar ateus. Mas conheciuma expressão da Renovação Carismática que atua justo nas universidades: o ProjetoUniversidades Renovadas que através de GOU’s (Grupos de Oração Universitários) mantémviva a chama da Fé de muitos acadêmicos, que se iludem na ciência e passam a não crer naCruz. É aqui que tenho desempenhado minha liderança trazida de casa, sem o partidarismodos movimentos estudantis. Entretanto, ainda, continuo na luta por um mundo melhor,mais justo e igualitário, tanto por questões políticas, quanto religiosas. Por pedido de meuspais, em especial, de minha mãe, em me dedicar mais aos estudos, aceitei o desafio emparticipar, de forma menos intensa, junto aos movimentos sociais e estudantis, ou seja,ponderando minha militância e acompanhando as lutas, sem assumir a liderança.

Em meio a tantas oportunidades de aprendizado, consegui uma bolsa no ProgramaConexões de Saberes e começamos a desempenhar um trabalho com uma comunidadepopular, no entorno da universidade. Esse espaço, o complexo habitacional DenissonMenezes, envolve quatro conjuntos habitacionais. Neles, as pessoas vivem em condiçõessubumanas, retratando uma dura realidade que possibilita perceber que todas as dificuldadesvividas na minha infância e juventude são muito pequenas, frente a tantos problemasvivenciados pelas pessoas que ali vivem.

Crianças brincam ao lado do complexo prisional de Alagoas e têm ali sua referênciadiária, longe do acesso à escola de qualidade, atendimento médico ou políticas públicas deinserção. Pessoas amargam o desemprego e a realidade de, nem sempre, ter o que comer eque, muitas vezes, vêem na vizinha rica – a Universidade - as poucas oportunidades demudar, ainda que minimamente, as suas condições de (sub) vida.

Trabalhando com essa comunidade, tenho visto o quanto é grande a luta daqueles quetrabalham para, mesmo nessas condições adversas, educarem seus filhos, garantindo a elesum mínimo de felicidade. Observo o quanto foi duro para meu pai, homem sem estudo,castigado pelo sofrimento e pela vida. Nunca baixou a cabeça, sempre buscou novas idéiasde como levar o sustento a sua família e não lhe deixar passar fome, mesmo quando issoparecia tão provável, como ele sempre nos lembra.

O aprendizado com essas pessoas, sedentas por aquilo que nós lhes oferecemos, emtermos de novidades e possibilidades de melhorias, tem-me feito ver com outros olhos aminha própria comunidade de origem. Perceber, ainda, a importância dela naquilo que souhoje e naquilo que - graças a toda essa história de vida e de tantas coisas que, ainda, estãopor vir - um dia poderei ser. Em tudo isso, a certeza de que sou mais que um vencedor.

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36 Caminhadas de universitários de origem popular

* Granduando em Educação Física na UFAL.

Toda criança tem o direito de crescer num

ambiente de amor e segurança

Arínic Airam Silva Costa*

Minha história de vida se inicia na cidade de Palmeira dos Índios, onde nasci em1984. Minha mãe decidiu colocar meu nome “Arínic Airam”, como uma forma dehomenagem às minhas avós materna e paterna, Maria e Cinira, através de uma leitura deespelho, de trás para frente.

Fui morar em Maceió com um ano de idade, devido à profissão de meu pai, jogador defutebol, que tinha sido contratado por um time. Em seguida, fui morar em Garanhuns-PE e,depois, voltamos para Palmeira dos Índios-AL, quando minha irmã Bruna nasceu em 1988.

Assim que minha irmã nasceu, fomos morar em Recife-PE, cidade natal de meu pai.Moramos apenas oito meses, devido ao mau relacionamento de meus pais. Minha mãe tinhauma vida bastante sacrificada e sofria maus tratos. Por isso, resolveu abandonar o lar e voltarà Palmeira dos Índios, para a casa de meus avós que nos receberam de braços abertos eajudaram a minha mãe em tudo.

Meus pais se separaram cedo quando eu, ainda, estava com três anos. Vivi, desdeentão, toda a minha infância em Palmeira dos Índios na casa de meus avós maternos. Minhamãe batalhou muito para dar alimentação, roupas e educação, pois ela tinha que cuidar desuas duas filhas, sem ajuda e assistência nenhuma de meu pai. Graças aos meus avós e minhamãe conseguimos sobreviver. Nunca esqueço dos momentos no parque de diversão quemeu avô tinha, quando viajava com ele pelos interiores de Alagoas e andava em todos osbrinquedos, junto com meus primos, tios e amigos.

Mesmo com a ausência de meu pai, fui muito feliz. Com uma família maravilhosa,sempre presente em todos os momentos da minha vida, ajudando-me em tudo e que nuncadeixou faltar nada, que mais poderia querer? Sem dúvida, vivi em um ambiente de extremoamor e com certeza a presença do pai é muito importante em uma família, mas minha mãevenceu todos os obstáculos e conseguiu fazer com que fôssemos uma família muito feliz eunida, sempre juntas com a minha avó.

Minha mãe conseguiu para mim uma bolsa de estudo em um colégio particular defreiras, Centro Educacional Cristo Redentor, onde estudei desde o pré até o 1° ano doEnsino Médio. Meus avós ajudaram na compra da farda, lanche e calçados. Pegavamemprestados alguns livros com parentes, amigos e o que não conseguiam, minha mãedava um jeito.

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Universidade Federal de Alagoas 37

Até hoje, sinto saudades desse colégio, dos professores e amigos, principalmente, dasaulas de educação física, onde passava grande parte do dia no ginásio, junto com minhastrês amigas, jogando handebol, pulando e correndo. Participava, ainda, das feiras de ciências,dos jogos interclasses, danças e, sempre, dos eventos do colégio.

Tive uma educação de qualidade e minha mãe se esforçou, muito, para que issoacontecesse, pois sempre foi trabalhadora e forte, que nunca nos deixou faltar nada. Tentavaretribuir sempre, através dos estudos, tirando notas boas, sendo dedicada, obediente e percebiaque ela sempre ficava contente com isso.

Em 2001, fui convidada pelos meus tios para estudar em Maceió. Eles conseguiramuma vaga na Escola de Educação Básica e Profissional Fundação Bradesco que mepossibilitou ter um bom estudo, sem gasto nenhum e sabendo que ia terminar meus estudossem atrasos, como não acontece em muitas escolas públicas. Dessa vez, estudei no turno danoite e foi muito difícil me acostumar.

Infelizmente, a convivência de um ano não deu certo com minhas primas e tios. Assim,comecei a procurar um apartamento para morar, encontrando um no bairro da Serraria, noConjunto José Tenório, próximo à escola e para que não tivesse nenhum gasto com passagem.Dividi as despesas com minha tia e ficamos morando juntas. No início, não havia muitacoisa, mas aos poucos e com a ajuda da minha família, consegui o suficiente para viver.

Sentia muita falta do interior, da minha mãe, irmã e avó, Enfim, de todos os parentes eamigos, mas matava essa saudade retornando todo final de semana a Palmeira dos Índios,para revê-los, e sempre era uma festa. Reunia todos os meus tios(as), primos(as), enfim afamília completa para fazer um churrasco, e todos dançavam, bebiam aproveitavam cadaminuto que estávamos juntos.

Ainda, não tinha me acostumado com o novo colégio, pois, era muito diferente dooutro, desde os professores até os companheiros de classe. Sempre conversava com minhamãe pedindo para voltar, mas ela me dava força para que ficasse, pois, aqui, estava o meufuturo e, mais cedo ou mais tarde, teria que vir para prestar vestibular e tentar uma vaga naUniversidade Federal de Alagoas. Minha mãe queria muito ver as duas filhas com cursosuperior, algo que ela não teve condições e fazia de tudo para que conseguíssemos.

Foi no 2° ano científico, aos 17 anos, que decidi prestar vestibular para EducaçãoFísica. Sentia muita falta das aulas, da prática de esportes, da interação lúdica com oscolegas no colégio e, por isso, escolhi esse curso.

Terminei os estudos em 2002 e, no meu primeiro vestibular para Educação Física, nãoconsegui. Já sabia que não ia passar, tinha que estudar e me dedicar mais, se quisesse entrarem uma Universidade Pública.

No ano seguinte, estudei muito e, também, inseri-me em um cursinho, que estavade acordo com minhas condições financeiras, sendo que, sempre, tive minha mãe meapoiando, ajudando em todos os sentidos. Muitos diziam que eu devia escolher outrocurso, pois Educação Física não tinha muito futuro no Estado de Alagoas, mas mais umavez, decidi prestar vestibular para Educação Física. Em meu entendimento, ia me sairmuito bem como professora de Educação Física, pois não tinha a pretensão de ser rica,apenas o desejo de me formar em algo que me desse prazer e satisfação em trabalhar,bem como de suprir minhas necessidades básicas. Como não tinha condições de pagaruma faculdade particular, dediquei-me muito e estudei tanto, que até deixava as horasde lazer de lado.

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38 Caminhadas de universitários de origem popular

Então, em 2004, consegui passar no vestibular para Educação Física, no turno noturno,pois, durante o dia, tinha que trabalhar para ajudar em casa. Desse modo, trabalhar e estudarera minha intenção para amparar minha família, que ficou muito contente com a notícia esobre a qual liguei para todos de Palmeira dos Índios. Minha avó ficou muito feliz, e atéhoje, todos me apóiam a continuar estudando sempre.

Hoje, no 4° ano de Educação Física, ninguém critica a minha escolha. Ao contrário,ficam felizes por eu estar me identificando cada vez mais com o curso. Principalmenteminha avó, que sempre foi uma mulher ativa e que gostaria muito de ver sua neta dandoaulas na academia onde freqüentava no interior, mas infelizmente não foi possível. Fazapenas um mês que ela faleceu deixando muitas saudades e a lembrança de todos osmomentos felizes que passamos juntas.

Comecei a trabalhar no Departamento de Enfermagem, como bolsista, no 2° ano docurso e sempre ia à reitoria levar ofícios para os diversos setores. Um dia, entrei na PROEXpara pegar um certificado e vi o edital do Programa Conexões de Saberes. Observei quehavia duas vagas para educação física, e prontamente, fiz minha inscrição com grandeexpectativa em ser selecionada. Quando saiu o resultado, fiquei feliz em dobro, pois minhacolega de educação física, também, havia sido selecionada.

Quando soube que o programa proporcionava uma troca de saberes entre a comunidadepopular e a universidade, não via a hora de atuar para contribuir com o pouco conhecimentoque tenho, e assim, motivar a população a participar do projeto, possibilitando uma melhorana qualidade de vida. O Programa Conexões de Saberes veio para contribuir, ainda mais, naminha formação acadêmica, obtendo experiências e desenvolvendo a capacidade de produzirconhecimento científico, visando sempre à melhoria da qualidade de vida, em todos osaspectos, para a população de origem popular.

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Universidade Federal de Alagoas 39

* Graduanda em Educação Física na UFAL.

Com os pés no chão

Auricélia Alves de Araújo*

Discorrer sobre uma trajetória de vida não é tarefa fácil. Fazê-la de forma sucinta,crítica e agradável ao leitor exige, ainda mais, habilidade. No entanto, esforcei-me para,aqui, relatar minha caminhada.

Nasci em 1985, na cidade de Venturosa, sertão pernambucano. Cresci na zona ruraldesta cidade, com meus pais e meus seis irmãos. Sou filha de agricultores. Meu pai,Antônio, é analfabeto e minha mãe, Ana, possui pouca instrução. Tínhamos a seca comouma constante em nossas vidas, o que nos fez passar por diversas dificuldades, entre elas,a financeira. Essa condição fez com que meu pai deixasse sua família e fosse a São Pauloem busca de um emprego que pudesse nos sustentar. Apesar de toda a luta, sua remuneraçãonos proporcionava apenas o básico para a subsistência. Após certo período, ele retornouao sertão e permaneceu lidando com a agricultura e criação de animais, sempre com aajuda de toda a família.

Iniciei meus estudos em um grupo escolar, próximo a minha casa, que possuíaapenas uma sala multiseriada, ou seja, onde as professoras dividiam espaço com aulasde 1ª a 4ª série no mesmo horário. As aulas eram caóticas e tradicionais e não haviaespaço para leitura. Os poucos livros que existiam ficavam encaixotados. Utilizávamosapenas livros que continham os conteúdos das séries. Por isso não desenvolvi o hábitoda leitura, assim como a maioria dos estudantes daquela região. Vale destacar que osprofessores, na época, não possuíam o Ensino Fundamental completo, o que explica afalta de conhecimentos pedagógicos e de compromisso com a educação porparte do município.

Visando à continuação dos estudos, após concluir o primeiro segmento do ensinofundamental (1ª a 4ª série), tive que me deslocar, à noite, para a Escola Municipal ManoelAlves de Araújo, localizada numa vila próxima. A partir dessa etapa, a maior dificuldadeencontrada era o transporte escolar, ponto de extremo descaso político com a zona rural. Osestudantes eram transportados na carroceria de um caminhão (pau-de-arara) descoberto esem segurança. Desta forma, sofríamos com a poeira e as mudanças climáticas, e por váriasvezes, estudávamos com as roupas molhadas. As estradas de barro, mal conservadas, tornavam-se mais um empecilho para o acesso à escola que, por sua vez, não disponibilizava debiblioteca, quadra de esportes ou outros meios que acrescentassem às práticas coletivas,fundamentais para a formação sociocultural dos alunos.

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40 Caminhadas de universitários de origem popular

Essas e outras dificuldades tornavam o estudo cada vez mais desmotivante, levando-nos a nenhuma perspectiva de vida profissional, social ou econômica que estivesse ligadaà formação educacional. A carga de trabalho, no campo, impedia o bom desempenho demuitos estudantes e as aulas não se faziam compreender como um caminho para o futuro. Osconteúdos curriculares e as metodologias não eram apropriados às reais necessidades einteresses dos alunos da zona rural, como determina o Art. 28 da Lei de Diretrizes e Bases daEducação (LDB nº 9.394/96). Este preconiza que a oferta de educação básica para apopulação rural esteja adequada às peculiaridades de cada região.

Diante dessas dificuldades, notava-se a crescente evasão escolar, o que me faziatemer a falta de companhia para ir à escola, pois tinha que andar bastante até o local ondeesperava o transporte e a preocupação era ainda maior, pois estudava à noite.

Após concluir o ensino fundamental, em 1999, passei a estudar na Escola EstadualQuitéria Wanderlei Simões na cidade (Venturosa), pois na escola anterior não haviaensino médio. Diante da preocupação de enfrentar a distância e o ensino noturno, tivea felicidade de contar com quatro amigas, duas em especial, que sempre estiverampresentes em minha vida.

Cursando o ensino médio, logo percebi que problemas semelhantes aos encontradosnos anos anteriores seriam, também, repetidos tanto na estrutura educacional, quanto notransporte escolar.

O sentimento de revolta era comum entre nós. Reivindicamos à Secretaria Municipal deEducação por condições mais humanas de transporte, e no entanto, nada foi feito. A falta demelhorias contribuiu para uma tragédia. Em 2001, quando cursava o 2º ano do ensino médio,uma de minhas colegas foi atropelada ao descer do ônibus e faleceu no local do acidente.

No ano seguinte, fui estudar numa cidade mais próxima, Capoeiras-PE, na EscolaMunicipal José Soares de Almeida. A partir daquele momento, tive segurança e um ensinomais qualificado. Até então, não alimentara expectativas de prosseguir nos estudos, ingressarna universidade ou, sequer, imaginara o que poderia cursar.

Nesse período, cinco dos meus irmãos já haviam saído em busca de novos caminhos.Minha irmã Marciene veio a Maceió com o intuito de trabalhar e estudar. Passou por váriasdificuldades, persistiu, e com força de vontade, conseguiu ingressar na Universidade Federalde Alagoas, no curso de Letras. Ela, ao conquistar sua estabilidade, retornou a Venturosa eme convidou para morarmos juntas na capital alagoana para que eu continuasse os estudos.Sabendo que, dificilmente, teria outra oportunidade, como esta, de ingressar numauniversidade pública aceitei seu convite, e em março de 2003, vim a Maceió. Minha irmãcusteou minhas despesas com transporte urbano e aulas em um cursinho pré-vestibular.Contei, também, com o auxilio de seu esposo, Adeildo. Ambos foram fundamentais nasminhas conquistas.

Aqui em Maceió, passei por momentos difíceis em virtude do distanciamento sócio-familiar e da adaptação a um novo ambiente, porém, tinha que enfrentar as adversidadespara prosseguir com minha formação. Então, comecei a despertar para as possibilidades deatuar nas mais diversas áreas, sempre com o intuito de adquirir conhecimentos que pudessemcontribuir com a minha comunidade de origem.

Inicialmente, pensei em prestar vestibular para Agronomia, pois gostaria de oferecermelhorias ao sertão, no que concerne a terra e ao seu cultivo. Mais tarde, pensei em Biologia,História, Nutrição e Educação Física. Mas, através do pré-vestibular, percebi a

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responsabilidade da minha escolha, principalmente, tendo em vista o vasto conteúdo dadono cursinho, o qual não tive acesso quando estudava em escolas públicas. Isso me assustoue cheguei a pensar que não teria chances de passar nas provas.

Desse modo, dediquei todo o meu tempo aos estudos, e em um momento de reflexão,pude analisar alguns fatores determinantes para a escolha de um curso superior, entre eles:maior facilidade em algumas disciplinas; concorrência para os cursos no ano anterior; e o quemais me influenciou foi o fato de poder atuar numa profissão ampla que abrangesse saúde,educação, lazer e compromisso social. Dessa forma, optei pelo curso de Educação Física.

Para minha surpresa e alegria, em 2004, passei no primeiro vestibular que fiz e fuiaprovada na UFAL no curso de Educação Física. A partir daí, deparei-me com outro desafio:permanecer na universidade, quando me escrevi para a Residência Universitária, e após umano de espera, fui selecionada. Mas como poderia suprir minhas necessidades básicas semdispor de uma renda? Mais uma vez tive o auxilio da família, em especial da minha irmãMarciene, uma vez que foi através dela que consegui, em 2005, um estágio remunerado emuma escola pública no município de Maceió. Esse estágio, me trouxe uma valiosa experiênciaprofissional e social. Pude, também, constatar o abandono e a falta de compromisso públicocom a educação, visto que a escola não possuía espaço físico adequado para a realizaçãodas aulas, em especial de Educação Física, e nem recursos humanos suficientes para atenderà comunidade escolar.

Como estudante universitária, senti a necessidade de um auxílio e acompanhamentoda Universidade que me fizessem superar as deficiências do ensino básico e meproporcionassem o sucesso na vida acadêmica. Tive, então, a oportunidade de participar doPrograma Conexões de Saberes em 2006. Esta iniciativa foi fundamental para a minhapermanência na universidade, na medida em que financia minhas despesas básicas (moradia,transporte e alimentação), aprimora minha formação como pesquisadora, como profissionale, principalmente, como agente consciente e capaz de atuar na sociedade. Nesse programaaprendo, ainda, a valorizar e respeitar o conhecimento da comunidade onde estou envolvidae valorizar meus próprios conhecimentos, enquanto estudante de origem popular. Nessaperspectiva, pretendo contribuir, também, com minha comunidade de origem, a fim dereverter a situação de descaso sócio-educacional que perdura na região.

Diante das discussões abordadas, percebo que programas de ações afirmativas como oConexões de Saberes são indispensáveis à Universidade, pois são fortes instrumentos parareverter tendências da estrutura sócio-educacional.

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42 Caminhadas de universitários de origem popular

* Graduando em Química na UFAL.

Monitor do universo...

Cláudio Emmanuel Pontes Guimarães*

Somos todos micelas de um mesmo todo, pedaços de um universo tão vasto quesequer nos damos conta...

Sou apenas mais um desses personagens que passam nas ruas; cheio de conflitos ealegrias cotidianas... minha biografia, talvez, não seja tão diferente assim das demais, mas ésó minha... por isso, tão importante...

A primeira cena a qual protagonizei não foi incomum. Era noite, estava frio naquelecentro cirúrgico e logo desatei a chorar. Minha mãe me segurou nos braços e me entregou aoscuidados da enfermeira. Nasci de parto normal, sem intercorrências, às 22 horas e 30 minutosdo dia dezenove de julho de 1986 no Hospital Ortopédico de Maceió. Fui o bebê maisgordinho da família e o mais bonitinho, também. Adorava sorrir e ficar no braço de estranhos.Não dei muito trabalho a minha mãe, uma vez que só fazia comer e dormir. Conforme iacrescendo, perguntava-me por que meus irmãos saíam toda manhã e chorava para ir com eles!Sempre gostei de estar em meio às pessoas, e logo, chegou o meu momento de ir ao colégio.

Morávamos na casa de minha avó, quando comecei a estudar no Colégio SagradaFamília. Era considerado um dos melhores, em termos de ensino, da época e lá permaneci,mesmo quando precisamos nos mudar para uma casa que meu pai havia comprado no bairrodo Benedito Bentes, bem mais distante do colégio.

Mal sabia o que me esperava, mas logo percebi que a escola não era apenas para brincar,tinha regras e tarefas a cumprir. Não gostei muito, porém, aos poucos, fui me acostumando.

Minha mãe, sempre muito exigente, nunca deixou que eu me descuidasse dos estudos.Pelo contrário, sempre ao meu lado, tirava dúvidas e incentivava-me a crescer. Graças a todaessa dedicação, consegui me destacar com as melhores médias da minha série. Emconseqüência disso, recebia medalhas entrando, assim, na galeria dos “cobrinhas”, nomedado aos dez alunos que obtivessem as maiores notas por série.

A partir da quarta série, comecei a estudar no Colégio Cenecista Élio Lemos, pois ascondições financeiras estavam um pouco abaladas. Logo nos primeiros dias de aula, percebia diferença na qualidade de ensino, apesar de o colégio possuir um espaço físico maravilhoso.

No científico, meus pais sentiram a necessidade de me colocar em uma escola melhor.Sai do Colégio Cenecista Élio Lemos para o Colégio e Curso Planeta. A adaptação foi umpouco difícil, mas graças a muito esforço, dedicação e carisma consegui superar, e atémesmo, ganhar uma bolsa parcial, pagando quarenta por cento do valor da mensalidade.

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Sonhava em cursar a faculdade e ficava apreensivo, já que nenhum de meus irmãostinha sido aprovado no primeiro vestibular. A escolha do curso foi uma “novela”, pois tinhacerteza que não queria fazer medicina como minha irmã, que só fazia estudar e estudar.Interessei-me por química. Resolvi prestar vestibular no mesmo ano, e quem diria! Fuiaprovado! Todos ficaram felizes e orgulhosos.

A diferença entre o colégio e a faculdade se desenhou nos primeiros dias: todos têmmais liberdade, mas o conteúdo é imenso. Senti vontade de trabalhar e comecei a dar aulasparticulares, coisa que quase todo universitário faz para sobreviver. Gostei do ofício, e hoje,sou monitor no Colégio Estadual Mirian Marroquim. Pude vislumbrar, na prática, que oprofessor pode ser um agente de mudança na sociedade, apesar de possuir uma profissãomuito sofrida. Como participante de um projeto do Programa Conexões de Saberes, ministroaulas para a comunidade popular, alertando acerca de doenças como, hipertensão e diabetes.

Somos todos micelas de um mesmo todo e faço parte desta geração de jovens quepretende melhorar o mundo a sua volta, e isso me faz muito feliz!

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44 Caminhadas de universitários de origem popular

* Graduanda em Serviço Social na UFAL.

Uma simples história de pequenas e

significativas conquistas

Ana Cristina Francisco dos Santos*

Nasci em 28 de março de 1983. Meus pais, José Edson Francisco dos Santos e QuitériaJustino dos Santos, casaram-se muito jovens e não tiveram oportunidade, nem tão poucoincentivo de seus pais para estudar. Meu pai concluiu o ensino fundamental e minha mãeestudou apenas até a 4ª série primária. Quando casaram, Edson foi obrigado por seu pai alargar os estudos e trabalhar no corte da cana, condição para poder morar com Quitéria nacasa de seu pai. Algum tempo depois, pôde fazer um curso de mecânico no SENAI e exerceessa profissão, até hoje.

Moramos por nove anos na casa dos meus avós paternos. Lá nascemos, eu e meu irmãoAdriano. Foi um período de grandes dificuldades para os meus pais, porém, guardo comsaudades a lembrança desse tempo de infância feliz, vivida num ambiente de liberdade que,somente tem quem mora no interior, pode gozar.

Aos seis anos de idade, ingressei no ensino pré-escolar e me desenvolvi, rapidamente.Nesta época, já possuía maturidade suficiente para entender que meus pais dedicavammaior atenção ao meu irmão caçula, devido ao fato de que este apresentava um quadro desaúde muito frágil, e freqüente incidência em internações hospitalares. Por isso meesforçava para ser uma boa aluna na escola, com o intuito de ser uma preocupação amenos para meus pais.

O esforço surtiu efeito e concluí, com sucesso, às primeiras séries do ensino fundamental.Quando comecei a cursar o ginásio na Escola Cenecista de Utinga, já havíamos, eu e meuspais, mudado da casa de meus avós paternos. O estudo, que antes me parecia um esforço,agora era para mim um gosto, um prazer.

Participei, ativamente, da vida da escola, tornei-me monitora de Matemática. Fizparte de um projeto de preservação ambiental que objetivava conscientizar os alunos daescola e de outras unidades de ensino, principalmente, aquelas situadas em áreas quecontinham espaços de mata atlântica, da importância da preservação da mata e das espéciesde árvores e animais nativos destas regiões. Concluí, sem nenhum problema, o ginásio, eanos depois, retornei à escola como professora de Matemática.

Cursei o ensino médio na antiga Escola Técnica Federal de Alagoas - ETFAL, hoje,Centro Federal de Educação Tecnológica de Alagoas - CEFET, no ano de 1998. Após quatroanos de dedicação, habilitei-me como técnica em informática. Porém, nunca exerci aprofissão. Esse período foi de grande aprendizado, não apenas profissional, mas

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principalmente, pessoal - um tempo de redescoberta. Eu, até então, uma garota tímida, fuime descobrindo capaz de ser diferente. Fiz grandes amigos, e ainda hoje, os mantenho, osamo. Conquistei a monitoria do curso e alguns estágios que me possibilitaram contribuircom as despesas de casa, mesmo que minimamente.

Ao término do curso técnico de informática, não me realizei, não era o que queria paramim, profissionalmente. Então, pedi a minha mãe para fazer um pré-vestibular, porquesentia a necessidade de suprir a carência nas matérias que o ensino técnico no CEFETdeixou. Aí começava um novo problema. Quando terminei o curso de informática, perdi abolsa da monitoria e dos estágios. Não tinha, portanto, de onde tirar o dinheiro para pagaro cursinho pré-vestibular. Minha mãe, ao ver o meu interesse em avançar nos estudos,reuniu coragem e pediu o dinheiro da matrícula emprestado a uma senhora, famosa naregião por ajudar a quem precisava. Daí por diante, todos os meses era um sacrifício conseguiro dinheiro da mensalidade, mas ele nunca faltou.

Escolhi o curso de Serviço Social, o que não agradou a meus pais, pois eles achavamque eu deveria dar continuidade a meus estudos na área de informática. Mais tarde,conformaram-se com a minha escolha e passaram a me apoiar, porque era esse o curso queeu queria. Prestei vestibular e a grande alegria para mim, meus amigos e familiares foi aminha aprovação.

A euforia da conquista deu lugar à dura constatação da realidade: para as pessoas deorigem popular, o ingresso na universidade pública não significa o fim das dificuldades. Aocontrário, mesmo não pagando mensalidades, o estudante universitário tem que arcar comos custos para se manter e investir em sua formação. Faz-se importante que se diga, aqui, queo ensino superior público não oferece respaldo a esses estudantes para que permaneçam nauniversidade. As ações que objetivam lhes fornecer condições, mais adequadas, para as suaspermanências são pontuais, insuficientes e não raramente, favorecem àqueles que,efetivamente, não necessitam. Isto em detrimento daqueles cuja conclusão do curso oumesmo a sua continuidade estão, seriamente ameaçados, visto não possuírem condiçõesfinanceiras para se manterem.

Os critérios de seleção para se conseguir uma bolsa são vexatórios, e muitas vezes,irrelevantes, dado que a relação que se estabelece com quem seleciona é muito mais decisivaque a verdadeira situação do candidato à vaga. Um exemplo disto é que, somente, conseguiter acesso ao restaurante universitário no último ano de curso, em virtude do ingresso noPrograma Conexões de Saberes. Mesmo assim, porque o pró-reitor de extensão usou de suainfluência junto à Pró-Reitoria Estudantil, responsável pela seleção dos alunos a seremcontemplados com o benefício.

Ter conseguido uma bolsa no Programa Conexões de Saberes foi o que me manteve naUniversidade. Sem essa bolsa, provavelmente, eu seria obrigada a abandonar o sonho deconcluir o ensino superior. Não por falta de vontade ou porque não fosse capaz de fazê-lo,pois meus resultados provavam que um estudante de origem popular pode, e via de regra,tem um desempenho igual, e por vezes, melhor do que aqueles que não compartilham dasmesmas condições financeiras, desde que lhes assegurem meios para a sua permanência naUniversidade Pública.

É neste espaço que preciso dizer: a única regalia de que nós - estudantes oriundos dasclasses populares - precisamos para sermos profissionais competentes e termos a oportunidadede mudarmos nossas vidas, de nossas famílias e comunidades é a de termos políticas públicas

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de acesso e permanência nas instituições de ensino superior. Estas devem nos proporcionarcondições adequadas para concluirmos nossos cursos. Isso, com o compromisso social denão nos esquecermos de onde viemos e do que podemos contribuir e representar nasnossas comunidades.

Antes do término de meu curso, consegui ser aprovada num concurso público.Devidamente graduada e habilitada, exerço minha profissão e não parei por aí. Comecei, hápouco, um curso de especialização com o objetivo de capacitar-me e desenvolver umaprática profissional conseqüente e competente.

Essa é a minha história, simples como a de tantos outros estudantes de origem popular,e também, como a deles, repleta de pequenas e significativas conquistas, dia-a-dia.

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* Graduando em Química na UFAL.

Vida, educação e química. Uma longa caminhada!

Francisco de Assis dos Santos Silva*

Nasci em 05 de dezembro de 1985, numa pequena cidade do interior de Pernambuco,chamada Canhotinho. Sou filho de Josefa Domingos dos Santos Silva e Geraldo Lima daSilva. Eles moravam no sítio da família da minha mãe, localizado na zona rural deCanhotinho, distante cerca de 20 km do centro da cidade. Um lugar esquecido por todose só tinha “carro” aos sábados, para levar as pessoas do sítio à feira na cidade. Um caminhãopau-de-arara, sendo que, no inverno, nem isso tinha, pois o caminhão não conseguiapassar nas estradas.

Morei lá até os cinco anos de idade e não lembro de muita coisa, mas foi lá que tivemeu primeiro contato com a escola. Minha mãe trabalhava como merendeira no GrupoEscolar da prefeitura que ficava a poucos metros do sítio. O Grupo Escolar atendia ascrianças dos sítios próximos e funcionava com as séries de 1ª a 4ª do Ensino Fundamental.Possuía apenas uma sala de aula e uma professora que percorria quilômetros a cavalo parachegar à escola, e durante o inverno, a dificuldade de acesso era ainda maior. Eu sempre iacom a minha mãe para o Grupo Escolar e a professora Zuleide me dava umas folhas para queeu cobrisse as letras. Meus irmãos diziam que eu jogava o papel no lixo e ficava chorandoquando a professora pedia para ver o que eu havia feito.

Como minha mãe, somente, sabe escrever seu próprio nome e meu pai estudouapenas até a 4ª série do Ensino Fundamental, eles queriam que os filhos estudassem parater mais oportunidades que eles. Perceberam que se continuássemos morando no sítioisso não seria possível. Como meu irmão mais velho, Cícero, já havia concluído a 4ª sériee não tinha como ir todo dia à cidade estudar, meus pais decidiram vir morar em Maceió.Já tínhamos uma tia que morava aqui, e desta forma, ficamos morando com ela atécomprarmos uma casa no conjunto Benedito Bentes I, área periférica de Maceió. Nessaépoca tinha cinco anos.

No ano seguinte, fui matriculado na Escola Pastor José Tavares de Souza, queficava a alguns minutos da minha casa. Nessa escola, vivenciei momentos importantesda minha vida, amizades e frustrações. Na 1ª série, minha professora foi Helena, umaótima professora, que até hoje leciona lá. Foi na primeira 1ª série que a professorapercebeu que eu sempre sentava na frente, e mesmo assim, sentia muita dificuldade paracopiar do quadro. Então, minha mãe me levou ao oftalmologista e descobri que tinhaum alto grau de miopia.

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Quando passei para a 2ª série, as escolas estaduais iniciaram uma greve e minha mãeme colocou numa escola particular para não perder o ano. Assim que a greve acabou,retornei para a escola estadual e continuei lá até a 7ª série. Sempre gostei muito de Ciênciase da professora dessa disciplina, Romélia.

Quando concluí a 7ª série, a Secretaria de Educação do Estado fez algumasmodificações na organização das escolas. A que eu estudava passou a atender apenas de 1ªa 4ª série do Ensino Fundamental e todos os alunos de 5ª a 8ª série foram transferidos paraa Escola Dom Otávio Aguiar.

Não gostei nada da nova escola. Então, consegui uma vaga numa escola mais próxima,Escola Drª. Eunice de Lemos Campos. Era considerada a melhor escola pública das cincoque havia no bairro, pois tinha sido reformada e estava sendo equipada com laboratório deinformática. Eu comecei a cursar a 8ª série. Foi um ótimo ano, continuei estudando comalguns amigos da escola anterior e fiz novos amigos.

Nesse ano, fiz meu primeiro curso básico de informática. Na verdade, apesar de nuncater usado um computador, já sabia muitas coisas, pois meu irmão tinha feito um curso e euestudava em casa pelas apostilas dele.

Quando passei para o 1º ano do Ensino Médio, precisei mudar para o turno noturno,pois só havia Ensino Médio à noite, porém todos os meus amigos me acompanharam.Iniciei uma participação mais ativa na escola em um projeto, no qual foi ofertado um cursotécnico de informática, através de uma parceria do Governo do Estado de Alagoas e daUniversidade Federal de Goiás. Após o curso fiquei trabalhando como monitor no laboratóriode informática da escola. A partir daí, tive um maior engajamento na escola e maiorcomunicação com as diretoras e coordenadoras, obtendo uma melhor formação e uma visãomais crítica da educação pública em meu Estado. Participei da elaboração do projetopedagógico, do regimento e de vários projetos da escola.

Sempre fui um aluno dedicado aos estudos e sempre busquei obter boas notas. Dentrevários professores que tive no ensino médio, alguns se destacaram, tal como: o professor deQuímica, Manoel que pagou para mim um curso técnico de Montagem e Manutenção deComputadores no CEFET – Centro Federal de Educação Tecnológica de Alagoas.

Quando concluí o 1º ano do Ensino Médio, comecei a fazer o PSS (Processo SeletivoSeriado) da UFAL (Universidade Federal de Alagoas). No 3º ano, chegou a hora de decidirqual curso fazer. Como todos os jovens, eu, também, estava cheio de dúvidas, não sabendoqual curso escolher, pois eram tantos e tão concorridos. Tive, então, a idéia de realizaruma Feira de Profissões na escola em que estudava, para me ajudar a decidir e aos demaisalunos que estavam em dúvida. Conversei com a Diretora da escola e com alguns professorese todos concordaram. Com a ajuda da direção, de alguns professores e da minha irmãElisabeth que, também, estudava na escola, foi elaborado o Projeto Profissões, com umasérie de atividades e cuja culminância seria uma feira de profissões. Consegui, com adireção, apoio financeiro utilizando recursos do Projeto Alvorada do Governo Federal erealizamos um linda feira de profissões, com a participação de cerca de 1500 alunos doensino médio da escola.

Ainda, muito indeciso entre alguns cursos, fiz uma lista dos quais poderia fazer, baseadono critério de minha pontuação. Como o curso de Química era o menos concorrido daminha lista, o escolhi. Confesso que não sabia bem como seria fazer um curso de Química,pois a realidade nem sempre é do jeito que imaginamos. Apesar de nunca ter ficado sem

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professores nessa disciplina, confesso que a qualidade do ensino não é muito boa, pois nãohá professores concursados suficientes no Estado, não só em Química como, também, emtodas as disciplinas da área de exatas. Grande parte dos professores são monitores e alunosda universidade de diversos cursos.

Meu irmão Cícero, também, fez vestibular para Química no mesmo ano e minha irmã,Elisabeth, para letras. Somente eu passei na primeira fase. Foi uma grande felicidade, masera apenas a metade do caminho percorrido. Entrei num cursinho para fazer a 2ª fase, apesarde saber que a concorrência do curso é baixa comparada com os demais, porém existe alinha de corte e eu precisava acertar pelo menos 20% das provas da 2ª fase. Como estudei,praticamente toda minha vida em escola pública, nem preciso comentar a qualidade doensino público, principalmente, no Nordeste. Acertar 20% das provas de Matemática, Físicae Redação não é algo tão fácil. Estudei durante um mês, pela manhã e à tarde, no cursinho,e à noite e fins de semana, em casa.

Após o sufoco das provas, veio o pior: aguardar o resultado, pois, por serem asprovas formadas de questões discursivas, a correção demora cerca de um mês. Um tempointerminável - achei um dos meses mais longos da minha vida - e estava muito ansioso,pois havia prometido somente cortar o cabelo após o resultado. Tendo sido aprovado,fiquei careca e foi uma emoção única!

Nunca tinha ido ao campus da universidade e quando cheguei lá quase caí dosusto que levei, pois a escola em que estudava, apesar de ser estadual, era nova, recém-reformada e com uma boa estrutura. Já na universidade, todos os prédios estavam empéssimo estado de conservação, cadeiras velhas nas salas de aula, instalação elétricaexposta, banheiros quebrados, entre outras coisas. Felizmente, algumas dessas coisasestão melhorando aos poucos.

Quando concluí o primeiro ano, comecei a trabalhar como professor bolsista daSecretaria de Educação do Estado, justamente na escola em que estudei. Ensinava Químicae Matemática e foi ótimo, pois, passei a trabalhar com os meus antigos professores.

No segundo ano, fui bolsista da Fundepes (Fundação da UFAL) e do CNPQ, trabalhandocomo monitor do Show de Química. Um lindo trabalho realizado na Usina Ciência – UFAL,que tem como objetivo trabalhar a experimentação no ensino de química. Realizo os Showsde Química, até hoje, e adoro ver os alunos entusiasmados com os experimentos querealizamos. Apesar de ter escolhido o curso de Química, apenas pela facilidade de ingressarna universidade, identifiquei-me muito com ele e me tornei um apaixonado pelo curso.

Já fui monitor de duas disciplinas: Química Geral e Experimental e Química Orgânica.No terceiro ano, fiz a seleção e estou participando do Programa Conexões de Saberes. Atuono Pré-Vestibular Comunitário, lecionando Química, sempre mostrando que a Química estáno nosso dia-a-dia, na vida de cada um.

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* Graduando em Música na UFAL.

Acreditar

Marcio Pereira Monteiro*

Essa é a palavra que por si só descreve aminha vida...

Infância

Nasci em Ipioca, litoral norte da capital alagoana, bairro histórico conhecido por ser olugar onde nasceu o segundo presidente do Brasil, Marechal Floriano Peixoto - lugar pacato depessoas simples e trabalhadoras. Desde criança, fui informado de que tinha “duas mães”, o quepara mim não ficou claro (...). Como posso ter duas mães? Dizia eu. Mas logo entendi que apessoa que me criava e que eu conhecia como mãe, era a minha avó e que a minha mãe biológicanão morava comigo. Quanto ao pai, eu não tive dois, apenas um que valia por dois ou mais, meuavô João Paulo. A ele devo tudo que sou e sei, pois foi ele quem sempre supriu, não apenas asnecessidades materiais, mas deixou um legado de moral e honestidade. Sendo ele pescador etrabalhador rural e minha avó dona-de-casa, procuravam dar o melhor para mim (e deram). Nãoo mais valioso, mas o possível e necessário, pois, para eles, a maior herança que poderiam medeixar era o estudo e eu contemplava, nos esforços que faziam, meu acesso à escola.

Iniciei meus estudos com aulas de alfabetização numa escolinha do bairro com a professoraAlice. Aula particular que minha família, com muitos esforços conseguiu pagar. Depois foipreciso conseguir uma vaga na primeira série, do então primeiro grau, em uma escola pública,para estudar no próprio bairro, pois os outros ficavam distantes e o transporte dificultava e nãotínhamos como pagar passagem. Vivenciava, então, o primeiro desafio: conseguir uma vaga. Porser criança, acreditava que tudo transcorria muito bem, mas hoje, converso com minha avó e seidas dificuldades que passaram para que eu tivesse acesso ao estudo.

Das poucas lembranças que tenho da infância, lembro que a nossa residência eramuito simples, e por não ser de alvenaria, estava vulnerável à chuva. Não era preciso umtemporal para que tudo dentro da casa ficasse sob as águas. Essa situação, embora triste,fazia-me acreditar em uma vida melhor e digna para a minha família.

Pré-adolescência

Mesmo com o atraso de um ano, por causa das greves nas escolas públicas, conseguiconcluir a quarta série. Contudo não imaginava que a vida estava apenas começando.Precisei, então, sair da escola em que estudava, pois não era oferecido o ensino fundamental

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e fui estudar em outro bairro. Enfrentei, porém, o problema do transporte para me deslocarpara outro bairro, porque necessitava do passe estudantil, que mesmo com desconto decinqüenta por cento na tarifa, ainda, ficava caro para a minha família. Minha mãe (biológica)ajudava muito com o seu trabalho, entretanto, não era o suficiente.

Houve uma situação que jamais esquecerei. Pelas boas notas obtidas nas disciplinas,fui contemplado com um curso de informática, Imaginando ser uma bolsa completa, procureia escola para fazer a matrícula e descobri, juntamente com minha mãe, que o curso não eragratuito como imaginávamos, e sim, uma bolsa parcial. Fiquei muito triste por saber queminha mãe não poderia pagar. Ela vendo minha tristeza e decepção, resolveu fazer a minhamatrícula, mesmo sem saber como faria para pagar as mensalidades durante onze meses.Resolvi, então, fazer o que fosse preciso para concluir o curso. Foram incontáveis às vezesque precisei ficar o dia inteiro apenas com a merenda cedida na escola. Foi preciso, ainda,fazer vários cortes no orçamento familiar, renunciando até de meu lanche diário, poisfreqüentava o curso pela manhã e tinha aulas regulares à tarde. Foram dias difíceis, masapesar de tudo, concluí o curso, feliz pela recompensa de tanto esforço.

Paralelo a minha vida de estudante, dedicava-me à igreja, lugar onde desde criançaaprendi o sentido da minha existência e descobri o talento para a arte musical. Sempre sentio desejo de estudar numa escola de música, mas por motivo financeiro, não era possível. Noentanto, resolvi enfrentar o desafio de estudar sozinho e comecei estudando com um tecladoemprestado de um amigo, muito generoso em emprestar seu instrumento. Quando nãoconseguia usava a criatividade, desenhava várias teclas numa cartolina e estudavaimaginando os sons. Após alguns meses de estudo, já me destacava entre os músicos daigreja, a ponto de ministrar aulas a outros jovens, surgindo, assim, uma possibilidade deganhar dinheiro com aulas particulares.

A paixão pela música foi aumentando a cada dia e o desejo de me aprofundar nosestudos era grande. Embora ganhasse algum dinheiro com as aulas particulares, ainda, nãopossuía condições financeiras favoráveis para pagar as mensalidades de uma escola demúsica, nem tão pouco um professor particular.

Juventude

No período de transição da adolescência para a juventude, vivenciava problemas paraconcluir o ensino fundamental: as dificuldades nos conteúdos, bem como a falta de professorese tudo isso era camuflado pelo desejo de avançar em mais uma fase na vida de estudante.

Ingressei no ensino médio, imaginando que seria um preparativo para o ensinosuperior. Não me dava conta da guerra que logo enfrentaria, numa concorrência injusta noProcesso Seletivo Seriado (PSS). O conteúdo estudado era o mesmo que seria cobrado noPSS e isso me entristecia, principalmente, quando os professores exigiam conhecimentosque deveriam ter sido adquiridos no ensino fundamental, fazendo-os, assim, reduzirem onível de cobrança nas matérias.

FRUSTRAÇÃO! Essa palavra descreve o momento em que vi minha pontuação, noPSS 1. A partir daquele momento, senti que o desafio era maior do que eu imaginava. Senti-me despreparado e sem condições de concorrer a uma vaga no ensino superior. Felizmente,ainda, tive tempo, pois a partir daquele momento, não medi esforços para recuperar o tempoperdido, e tendo estudado muito em casa, consegui uma melhor pontuação no PPS 2. Cheguei,então, à etapa final, o PSS 3. Momento decisivo na minha vida, pois precisava escolher um

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curso e este foi um dos momentos mais difíceis - qual o curso escolher? Apesar de gostarmuito de música, não tive apoio para escolher esta profissão, pois sempre fui aconselhado,pelos colegas, a escolher um curso onde houvesse grande procura no mercado e deixasse amúsica como um lazer semanal. No entanto, não conseguiram me convencer, meu desejo deestudar música foi maior e fiz a inscrição para licenciatura em música.

MAIS UM DETALHE: para que efetuasse a inscrição era exigido um conhecimentoespecífico em música, avaliado em um teste de aptidão. Apesar de ter conhecimentos musicais,não obtive êxito no teste, restando, assim, a segunda opção de curso, na qual escolhiadministração de empresas. Mesmo desanimado, fiz a prova para o vestibular, e para sersincero, não tinha a mínima vontade de ser aprovado, pois não seria feliz fazendo o que nãogostava. Aconteceu: não fui aprovado.

E agora? Concluído o ensino médio e não conseguindo uma vaga no ensino superior,o que fazer? Trabalhar? Em quê? Retomar os estudos? Como? Pensei, em vários momentos,desistir dos estudos, pois não tinha como me sustentar e precisava ajudar a minha família.Trabalhar seria a melhor solução.

ALGO DE ESPECIAL ACONTECEU! Fui convidado a trabalhar como tecladista naIgreja Batista da Pajuçara. Dentre algumas recomendações para consolidar minha contratação,estava uma que me deixou feliz: a de me aprofundar nos conhecimentos musicais. Era oincentivo de que eu precisava: trabalhar e estudar. Estudei com muita dedicação, até quechegou o dia da inscrição para o vestibular. Desta vez e preparado, fui aprovado no examede aptidão e me inscrevi para o tão sonhado curso. Restavam, então, apenas as fases do PSS.Fiquei preocupado, pois por me dedicar, exclusivamente, para o exame específico, senti-meobrigado a dedicar horas de estudos diários. Tentei fazer um cursinho pré-vestibular comum preço bem popular, porém, este faliu dois meses depois de inaugurado. A soluçãoencontrada foi estudar em casa. Consegui a aprovação na primeira fase e uma bolsa parcialem um outro cursinho. Assim fui aprovado na UFAL.

Emoção e lágrimas por ingressar no ensino superior, iniciando mais uma etapa davida, porém, outros desafios estavam por vir. Tudo estava bem até o primeiro dia de aula:livros, fotocópias, transporte, cursos extras, UFA! Estudar e trabalhar para manter os estudos.Na verdade, essa tem sido a minha vida ao longo desses quatro anos. Continuo trabalhandona igreja, e desta vez, como ministro de música e responsável pelo coro misto. Na carreiraacadêmica, estou desenvolvendo meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), além decontinuar no Programa Conexões de Saberes da Pró-Reitoria de Extensão, nesta universidade.

Iniciei, nesse programa, na metade do terceiro ano (2006). Uma atividade que temcontribuído com a minha prática em sala de aula, bem como o prazer de contribuir junto àcomunidade, com ações que vão ao encontro das camadas mais necessitadas, pois tenhovivido experiências que ajudarão na minha formação. Dentre as atividades das quaisparticipei, gostaria de destacar a participação no II Seminário Nacional do ProgramaConexões de Saberes, realizado no Rio de Janeiro. Foi uma oportunidade de encontro comestudantes de outras universidades, como também, uma grande satisfação de estarcontribuindo com o desenvolvimento do ensino superior no país.

Essa minha trajetória de vida, faz-me refletir acerca do problema da educação do país.Dentre todos os problemas que enfrentei, gostaria de destacar a precariedade no ensino debase, pois muitos dos problemas para o ingresso na universidade poderiam ter sidominimizados, se houvessem políticas de incentivos aos estudantes na educação básica.

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Como por exemplo: melhorias na formação dos professores, melhores salários para estimulá-los no exercício da profissão e políticas públicas para que os estudantes possam desenvolveratividades escolares em horário integral.

Gostaria de registrar, também, minhas críticas às universidades, que por vaidade deseus membros e pelo desejo de status junto à comunidade científica, não desenvolvempolíticas com ações afirmativas que visem o acesso e à permanência dos estudantes,oriundos das camadas populares, no curso superior. A falta de tais políticas acabafavorecendo, assim, a desigualdade social, fato que vai de encontro à inclusão social, tãopropagada pela universidade.

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* Graduanda em Biblioteconomia na UFAL.

Nunca é tarde para recomeçar

Maria Rejane Silva Barros*

Tudo teve início, em 1958, quando minha mãe Enedina Maria, natural de Atalaia, mudou-se para o Sítio Mão Direita em União dos Palmares-Alagoas, onde o meu pai José Emidioresidia, com apenas nove anos de idade. Eles se conheceram e meu pai conta que, quando aviu, disse para alguns amigos que iria se casar com aquela morena. Em 14 de fevereiro de1971, casaram-se, ambos com vinte e um anos. No ano seguinte, nasceu a primeira filhaEliane, e três anos depois, nasci em 05 de agosto de 1975, na madrugada de uma terça-feira.Sou a segunda filha de um total de seis, sendo quatro mulheres e dois homens.

A vida no campo foi muito difícil. Trabalhei na roça e me orgulho muito disso, poistrabalho desde os oito anos e sempre soube dar valor ao trabalho. Não só o meu como,também, o dos meus pais, que não mediram esforços para dar a mim e aos meus irmãos umavida melhor do que a que eles tiveram. Mesmo assim, nunca desisti, e sempre, tive esperançade que um dia minha vida iria melhorar.

Quando criança, gostava muito de brincar, como jogar bolinha de gude, futebol eboneca. Só aprendi a andar de bicicleta depois dos 16 anos. Sei que tinha, ainda, muitascoisas boas para aproveitar, mas não tinha condições financeiras, nem tempo, pois quandonão estava trabalhando na roça e estudando, estava em casa ajudando minha mãe nas tarefasdomésticas. Orgulho-me, porém, de tudo o que aprendi quando criança, visto que contribuiubastante para minha formação, não só pessoal, como também, acadêmica.

Só em 1985, aos dez anos de idade, comecei a estudar. Como no interior não tinhaescola de alfabetização, já comecei na 1ª série. Iniciei cobrindo letras, e no final do ano,passei para a 2ª série, pois sempre tive muita vontade de aprender, mesmo com todas asdificuldades que existiam e do fato de meus pais não terem boa formação escolar. O meu paisabia ler e escrever, mas a minha mãe não. Mesmo assim, sempre incentivaram os filhos,pelo menos a aprender a ler e a escrever, pois achavam que era o suficiente.

Em outubro de 1986, fiquei sem estudar, porque a professora foi embora da cidade,não tinha outra para substituí-la e acabei perdendo o ano letivo. Só em 1988, apareceu umaprofessora, o que possibilitou a conclusão da 2ª série. Mais uma vez, tive que parar os meusestudos por um ano, juntamente com a minha irmã mais nova, devido a motivo de doençada minha avó materna, e também, porque meus dois irmãos mais novos Jeane e Mário jáestavam na idade de estudar. Tive que parar e deixar a vaga para eles, pois já sabia ler eescrever e eles não.

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Em 1994, nasceu o meu irmão caçula Márcio. Foi um momento difícil, pois minha mãeestava com 44 anos e sabíamos que era uma gravidez de risco, mas não perdemos a esperança ecom sete meses de gestação, ele nasceu. Como era prematuro, passou onze dias na incubadora damaternidade em que nasceu, e em 26 de fevereiro, chegou em casa para alegria de toda família.

Somente voltei a estudar em 1997, nove anos depois de ter parado. Estava com 22anos e não tinha a vontade de estudar que eu tinha antes. Tudo isso dificultou a minhaaprendizagem ao longo do tempo. Mesmo assim, fui passando de ano, e em 1999, comeceia estudar a 5ª série em uma escola estadual da minha cidade, mas passava cerca de 50minutos em uma camionete para ir do sítio até a cidade.

Em janeiro de 2000, passei por uma seleção e comecei a lecionar jovens e adultos,através do Programa Alfabetização Solidária. Foi uma experiência muito importante, poisfoi, assim, que consegui alfabetizar a minha mãe, Enedina, fato que me emociona muito.

Participei de uma capacitação na Universidade Federal de Alagoas, e nessa época,cheguei a comentar com alguns colegas: “Será que um dia eu estudarei aqui?” Eles falaramque só dependia de mim. Esse ano foi bastante difícil e cansativo, pois sempre estudei ànoite e precisei estudar à tarde. Para isso, caminhava cerca de uma hora até o ponto do carrodos estudantes e mais uma hora para voltar.

No final de 2000, conheci o meu esposo, mas só começamos a namorar em abril de2001, um ano bem difícil, porque minha família não aceitava o nosso namoro. Alegavamdiversos motivos, e entre eles, o fato de ele ter 25 anos a mais que eu. Isso nunca meincomodou, e em agosto do mesmo ano, noivamos.

No início de dezembro, terminei a 7ª série e no dia 13 me casei e fui morar na capital,Maceió, onde ele morava.

Senti dificuldade em me adaptar num lugar estranho, ficando um pouco perdida.Contei, porém, com a ajuda de meu esposo que, revelando-se um verdadeiro amigo, tratoulogo de procurar uma boa escola para que eu continuasse a estudar. No conjunto habitacionalem que morávamos, não havia escola pública com 8ª série. Fiquei triste, mas ele não deixouque desanimasse, procurou uma escola particular e me matriculou. Fiquei apreensiva, poissempre estudei em escola pública e sabia que, no início, sentiria muitas dificuldades. Nocomeço, não foi fácil. Algumas vezes tentei desistir, mas meu esposo dizia “não senhora,nem pense nisso, pois não deixarei você desistir. Tenho certeza de que você é capaz, vaipassar de ano sim e tenha fé em Deus que tudo vai dar certo”. Confesso que, muitas vezes,não acreditava no que ele me falava, devido às nossas dificuldades financeiras. Mas eleestava certo, mesmo tendo muitas dificuldades, com fé em Deus, o apoio dele, a minha forçade vontade e o incentivo dos professores, consegui passar para o 1º ano do Ensino Médio.

Em 2003, voltei para a escola pública, onde cursei os três anos do Ensino Médio, osquais, também, foram muito difíceis. Comecei o ano letivo no final de maio desse ano, passeialguns meses com falta de professores em algumas disciplinas importantes, e em dezembro,iria participar da 1ª prova do Processo Seletivo Seriado (PSS 1). O pré-vestibular é compostopor três etapas, até chegar a final quando é disputada a vaga para entrar na universidadepública, muito concorrida, não só por estudantes locais, mas também, de outros estados.

No PSS 1, pontuei em todas as disciplinas, com exceção de Língua Portuguesa. Comonão pode “zerar” a mesma disciplina nos três anos consecutivos, em 2004 - 2º ano e segundoPSS - preocupei-me mais com Língua Portuguesa, e graças a Deus, pontuei nela. Nas outrasnão, e mesmo assim, fiquei tranqüila.

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56 Caminhadas de universitários de origem popular

O último ano era decisivo para o meu futuro, pois dele dependeria minha vida acadêmicae profissional. Pesquisei algumas profissões e me interessei por Biblioteconomia por diversosfatores, entre eles: o campo de trabalho que estava em expansão e pela baixa concorrência.

Em dezembro de 2005, prestei o último ano de vestibular, ou seja, o PSS 3. Não estavamuito confiante, mas o meu esposo, como sempre, dizia que eu iria passar. Devido à falta dealguns professores, de greves e por não ter feito nenhum cursinho preparatório para ovestibular, apenas participei de um aulão comunitário, aqui mesmo no conjunto ondemoro. Nesse dia, ganhei um convite para participar de uma revisão de véspera. Com isso,consegui passar na 1ª fase. Com muito esforço, resolvi fazer uma semana de revisão. Muitasvezes, em algumas aulas, os professores falavam dos prováveis assuntos que iriam cair naprova do vestibular e eu ficava pensando: o que é que o professor estava falando, já que nãotinha terminado o 3º ano, ainda, não havia estudado alguns daqueles assuntos, mas com asdicas dos professores e o que estudava em casa, consegui passar.

Em 10 de fevereiro de 2006, à noite, por volta das 18 horas e 40 minutos saiu oresultado: passei no vestibular para o Curso de Biblioteconomia! E qual foi a minha surpresa,em quarto lugar. Foi muita alegria, não só para mim, mas também, para toda a minha família,e em especial, o meu esposo José Barros, quem sempre me incentivou e acreditou no meupotencial, até mesmo mais do que eu.

Em março de 2006, comecei a cursar o 1º ano de Biblioteconomia na Universidade Federalde Alagoas, onde enfrentei diversas dificuldades. Tudo era novo para mim, porém, dessa vez, jáestava mais confiante. Todavia, os desafios não terminaram. Eu queria, muito, trabalhar e isso sóaconteceu no dia 29 de agosto desse ano, quando entrei para o Programa Conexões de Saberesno Projeto Educação Complementar e Cidadania. Fui indicada por um colega de classe, porqueuma colega de meu curso havia desistido, por ter passado em um concurso.

Posso dizer que o trabalho de organização da biblioteca e incentivo à leitura quevenho desenvolvendo, ao longo desses meses, tem contribuído muito para minhaaprendizagem e vem ampliando os meus conhecimentos, tanto pessoais como intelectuais.

Em novembro desse ano, junto com os demais colegas do Programa Conexões deSaberes, participei do encontro nacional do programa no Rio de Janeiro, onde conhecioutras pessoas e diversas culturas. Pude perceber que existe um mundo o qual não conhecia,o qual me despertou interesse especial. Sei que tenho muito a ensinar, e principalmente, aaprender. Esse programa do qual faço parte tem um papel de grande importância, não só deaprendizagem, mas também, social, pois mostra para as crianças e adolescentes que eles têmpotencial e que depende apenas deles terem um futuro melhor.

A universidade tem me dado uma visão crítica da realidade, que antes não possuía. Estou nosegundo ano, e apesar de todas as dificuldades porque passei para chegar até aqui, tenho certeza deque venci, apenas, alguns dos muitos obstáculos que ainda irei encontrar ao longo da minha vidaacadêmica. Aprendi, porém: que nunca devemos desistir, que temos sempre que persistir, que onosso sucesso depende da fé que temos em um ser supremo que é Deus e em nós mesmos.

Quando terminar a graduação, pretendo fazer uma especialização. Não sei,especificamente, em que área, mas já tenho este projeto para o futuro. Pretendo, também,continuar fazendo um trabalho voltado para o bem-estar, não só de crianças e adolescentes,mas daqueles que, como eu, nunca tiveram a oportunidade de estudar.

Essa é a minha história de vida. Espero que, em um futuro próximo, esteja contando maisuma vitória conquistada, pois ter origem humilde e vencer na vida é uma verdadeira vitória.

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Universidade Federal de Alagoas 57

* Graduando em História na UFAL.

O melhor está por vir

Thiago José Andrade Nascimento*

Os jovens se cansarão e se fatigarão, e osmancebos cairão, mas os que esperam noSenhor renovarão as suas forças; subirãocom asas como águias, correrão e não secansarão, caminharão e não se fatigarão.

Isaías 40: 30-31

Minha caminhada começou no dia 30 de abril de 1986. Nasci no antigo Hospital SãoSebastião, em Maceió-AL, às 14 horas. Sou filho de Ana Luzia Andrade Nascimento eGilson Ferreira Nascimento. A história de minha vida é realmente, uma história cheia decaminhadas, de forma que o título desta coletânea vem bem a calhar.

Meu pai era funcionário da CASAL, a Companhia de Abastecimento de Água deAlagoas (hoje, ele está aposentado) e minha mãe, dona-de-casa. Em nossa casa, semprefomos quatro pessoas: meus pais, meu irmão e eu. Quando eu nasci, morávamos na Pajuçara,perto da praia, de onde vem minha paixão pelo mar. Desde criança, ir à praia é uma dascoisas que mais me dão prazer. Não a praia em si - cheia de gente, e nos dias de feriado, dealgazarra e barulheira - mas do mar. Ele me dá uma grande sensação de paz e me faz lembrarcomo Deus nos amou.

Em 1990, mudamos para o bairro do Tabuleiro dos Martins, na parte alta da cidade.Minha infância foi tranqüila. Nunca fui uma criança muito levada. Eu não saía de casasozinho e meus amigos eram os colegas de escola, pois quando eu não estava na escola,estava em casa. Naquela época, eu não tinha grandes preocupações e nem sabia o que sepassava à minha volta. Não tinha consciência das dificuldades e das lutas, pois, para mim,a vida era simples e divertida. Não tinha luxo, nem gozava de grandes regalias, comobrinquedos sofisticados e TV a cabo, mas conseguia achar na simplicidade o divertimentoe a alegria. Costumava ser um bom aluno e tirava boas notas. Não era muito de estudar,porém era organizado. A educação oferecida por meus pais e os valores que me forampassados, contribuíram para que eu tivesse uma vida escolar tranqüila. Meus pais sempre sepreocuparam em me dar uma educação de qualidade, devido à consciência que tinham deque meu futuro dependeria disso.

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58 Caminhadas de universitários de origem popular

Eu tinha muitos sonhos, assim como toda criança. Quis ser desde jogador de futebol eaté piloto de caça. Quis ter muito dinheiro, para dar uma vida de conforto para a minha família.Só não queria ser professor. É engraçado porque, hoje, não me vejo fazendo outra coisa.

No ano de 2000, eu estava cursando a oitava série do ensino fundamental, surgiu aoportunidade de fazer o exame de seleção para o Centro Federal de Educação Tecnológicade Alagoas (CEFET) e fui aprovado. Desse modo, cursei o ensino médio em uma instituiçãopública e de qualidade. Esse acontecimento, o ingresso no CEFET, foi um divisor de águasem minha vida.

Ingressei no CEFET aos 15 anos. Era um garoto, extremamente, tímido que não andavade ônibus sozinho, não costumava se relacionar com pessoas muito diferentes, vindas dosmais variados lugares e com diferentes hábitos e visões de mundo. Lá, aprendi muita coisa,e bem mais do que os conteúdos das disciplinas. Aprendizados úteis para a vida. Foi lá queconheci o evangelho. Um indivíduo de aparência não muito convencional, jovem e cheiode ousadia, me fez uma exposição da Bíblia e do evangelho do reino de Deus. Como eu eracheio de preconceitos, minha primeira atitude com relação à sua pregação, foi de recusa.Achava-me muito inteligente para “virar crente”. Afinal, todo crente era trouxa e fanático eera o que eu pensava naquela época. Também, achava que a Bíblia era um livro de lendas,sem nenhuma credibilidade. No entanto, um dia, as barreiras caíram e eu aceitei Jesus comomeu Senhor e Salvador. Essa decisão mudou a minha vida, radicalmente.

Ainda no ensino médio, percebi que tinha um grande interesse por História, pois eu liamuitos livros e gostava de ler sobre guerras. Fiz o vestibular em 2003, e sem fazer cursinhoou qualquer preparação especial, consegui ser aprovado. Posso dizer que tive muita sortepor ter estudado em uma instituição de referência em meu Estado, ainda que pública. Nomesmo ano fui aprovado no exame de seleção para o curso técnico de eletrônica no CEFET,mas acabei cursando só um semestre. A eletrônica não me empolgou muito.

É preciso que eu diga que essas vitórias (embora esteja apenas começando) são frutosdo trabalho e da dedicação dos meus pais. Meu pai sempre foi um exemplo de honestidadee trabalho em minha vida, pois sempre se esforçou para que seus filhos tivessem uma boaeducação. Nunca deixou que nada nos faltasse e estou ciente de que, sem o seu esforço, nósnão teríamos chegado à universidade. Minha mãe, também, foi muito importante, pois sesacrificou muito pelos filhos. Por isso, não posso deixar de fazer essa citação, embora elesmereçam muito mais.

No entanto, é impossível falar em vestibular e não falar dos problemas que existem naeducação do Brasil. Problemas esses que ficam mais visíveis em momentos como o dovestibular. Vejo muitos amigos de infância que não conseguiram ingressar na universidade,porque não tiveram oportunidade. O Estado não tem proporcionado às mesmas oportunidadespara todos, de forma que, na periferia de Maceió, temos: muitos jovens ociosos, sem trabalho,sem estudo, sem condições de prestar um vestibular ou de ter um futuro promissor.

Percebemos a elitização de certos cursos e a hegemonia daqueles cursinhos caros, quepreparam aqueles que podem pagar para ocupar às vagas nos cursos mais concorridos dauniversidade. Dessa forma, na sociedade maceioense, os postos de comando são ocupadospelas mesmas famílias. As escolas públicas não têm oferecido para seus alunos a mesmabagagem e preparação que as escolas particulares. Essa é uma das razões da existência dopré-vestibular comunitário Conexões de Saberes, que atende a alunos procedentes da redepública de ensino, visando minimizar esse problema e preparar esses alunos para o vestibular.

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Universidade Federal de Alagoas 59

Na universidade, encontrei uma situação que já esperava. Problemas estruturais, algunsprofessores despreparados, carências na área de pesquisa e alunos descomprometidos. Pensoque nós devemos superar essas dificuldades. Encará-las como desafios, como obstáculos esuperá-los. Isso torna a caminhada mais prazerosa e as vitórias mais apreciáveis. Também,há pontos positivos: os serviços que a universidade oferece, a ampliação de horizontes,professores com grande conhecimento, além do diploma.

Em 2005, tornei-me membro ativo da Comunidade Evangélica - Sara Nossa Terra.Meu ingresso tardio na igreja se deu por vários motivos, uma vez que minha conversãoaconteceu em 2001. Mas o fato é que, por meio de uma célula eu pude me integrar nacomunidade. Uma célula é uma reunião semanal que acontece fora da igreja. Estou colocandoessas informações aqui, porque são determinantes em minha história. De outra forma, minhavida teria tomado outro rumo e eu não estaria escrevendo este memorial.

Em maio de 2006, tomei conhecimento do Programa Conexões de Saberes, participei doprocesso de seleção e fui aprovado. Recebi a informação que no programa haveria um projeto depré-vestibular comunitário e fiquei interessado em fazer parte. Eu já tinha o desejo de estar emalgum projeto que facilitasse o ingresso de estudantes de origem popular na universidade.

Quando o pré-vestibular do Conexões surgiu, eu sabia que estaria nele, uma vez quea Bíblia fala que Deus realiza os desejos do coração dos que se agradam dele. O ingresso noprograma foi muito importante para mim (e continua sendo), uma vez que ele amplia oshorizontes dos participantes, dá experiência, conhecimento, bolsa, além de cumprir suafunção social, já que o trabalho com as comunidades é o ponto alto do programa.

A troca de saberes, a aproximação das comunidades populares e a universidade émuito importante, fazendo do Conexões de Saberes um programa de extrema importânciana área da extensão universitária.

Em 2007, espero concluir a minha graduação, desempenhando com excelência meupapel no Programa Conexões de Saberes, no pré-vestibular e no programa de maneira geral.

Tenho um projeto para o futuro e sei onde quero estar daqui a 3, 5, 10 e 20 anos. Paraalcançar minhas metas vou continuar cumprindo princípios, estudando e trabalhandobastante. Espero prosseguir na carreira acadêmica, fazer pós-graduação e assumir o ministériopara o qual o Senhor me chamou. Quando você conhece Deus e tem um relacionamentopessoal com Ele, tem segurança e confiança, sente que tudo que for pedido lhe será dado,desde que você não saia do propósito.

Busquei, durante muito tempo, trilhar um caminho para mim e fazer os meus planos,porém, descobri que só há um caminho e que tudo começa com Deus. Ele tem propósitos esua vontade é boa, perfeita e agradável. Sei que a graduação em História e a participação noConexões de Saberes estão dentro do propósito. Meu maior desejo é cumprir esse propósitoplenamente, como dizia Paulo, “terminar a carreira, combater o bom combate, guardar a fé”.

Sei que aquele que iniciou a boa obra na minha vida é fiel para terminar. Com essaesperança vivo a cada dia, sabendo que o melhor ainda está por vir.

E se o meu povo, que se chama pelo meu nome, se humilhar eorar, e buscar a minha face e se desviar de seus maus caminhos,então eu o ouvirei do céu, perdoarei os seus pecados e sarareia sua terra.

II Crônicas 7:14

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60 Caminhadas de universitários de origem popular

* Graduanda em Matemática na UFAL.

Uma história cheia de caminhadas

Vívia Dayana Gomes dos Santos*

Nasci em 14 de maio de 1985 na capital de Alagoas, Maceió. Era uma época muitodifícil para meus pais, pois, até então, meu pai, Amaro Antonio, estava desempregado emorando com minha mãe, Quitéria Gomes, na casa de sua irmã, na favela do Ouro Preto.

Até o nascimento de meu irmão, três anos depois, a nossa vida foi se estabilizando.Meu pai, trabalhou em várias empresas de ônibus como mecânico, e assim, fomos melhorandode vida. Foi nessa circunstância, que tive meu primeiro contato com a escola. Passei afreqüentar uma escolinha de jardins I, II e pré-escolar.

Visto que minha mãe cuidava de meu irmão pequeno, Vinicius Dyêgo, não tinha muitapaciência de me ajudar nas “tarefinhas” de casa. Lembro-me que se eu fizesse alguma coisaerrada em meu caderno de respostas, levava logo um monte de beliscões. Mas foi, assim,que aprendi a ler antes da alfabetização.

Devido à falta de emprego, em 1990, meu pai vendeu todos os nossos móveis eeletrodomésticos, e fomos para Recife-PE. O bairro em que morávamos era cheio de altos ecórregos e eu morava em um desses córregos chamado de Córrego do Caruá. Quando chovia,ficávamos em estado de alerta, pois, a qualquer momento, uma barreira poderia deslizarderrubando várias casas e tirando a vida de muitas pessoas.

Assim que chegamos a Recife, passei a freqüentar uma escola do município que ficavaa uns 20 minutos de caminhada de minha casa. Quando estava cursando a 1ª série, minhamãe percebeu que o que as professoras estavam me ensinando era o que eu já sabia. Por isso,exigiu que a diretora da escola me colocasse logo na 2ª série. Resumindo, acabei fazendo a2ª série duas vezes por causa da idade.

Quando passei para a 3ª série, minha mãe me matriculou em outra escola do municípioque ficava mais perto de casa, uns 5 minutos. Como toda criança tímida, eu ficava nocantinho da parede e só falava com quem vinha falar comigo. Mas como sempre, continuavaestudiosa, obtendo boas notas e quase nunca dava trabalho às professoras e à minha mãe.

Na 4ª série, eu já estava mais à vontade com a escola e com as pessoas. Já havia feitoamizade com quase todos os funcionários, e até mesmo, pessoas que estudavam em outrosturnos já me conheciam.

Quando passei para a 5ª série, senti-me um pouco insegura e com medo, pois, agora,teria um professor para cada disciplina e alguma, ainda não conhecia. Mas quando ingressei,vi que não era tão ruim assim, era só estudar um pouquinho mais.

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Universidade Federal de Alagoas 61

Ao terminar o primeiro semestre, no ano de 1996, minha casa foi assaltada e devido aosusto e medo de continuar lá, meus pais decidiram mudar naquela mesma semana. Foi tudomuito rápido. Nem tive tempo de me despedir de minhas amizades da escola e acho quemuitos, até hoje, não sabem o que aconteceu comigo!

Enquanto meus pais decidiam o que fazer e onde iríamos morar, ficamos por três mesesna casa de minha tia na cidade de Camaragibe, ainda em Pernambuco. Nesse período, fuiestudar em uma Escola Estadual, que ficava no centro daquela cidade.

A escola era grande e tinha uma boa estrutura, mas não gostei muito de estudar lá.Não me lembro muito bem dos professores. Na turma em que fiquei, a maioria das pessoaseram mais velhas do que eu. Ninguém se aproximava de mim e nem eu ia até eles, devidoà timidez. Durante o tempo em que fiquei nessa escola, só fiz uma amizade, e também,nem tive tempo de fazer alguma avaliação para nota, o que me fez ficar sem notas nosegundo semestre.

Durante as festas juninas, voltamos para Maceió. Eu estava ansiosa por estar de voltaà minha cidade de origem, porém, um pouco triste por ter deixado minha pequena casaconfortável e meus amigos da vizinhança e da escola.

Chegando a Maceió, meus pais tiveram duas preocupações: emprego para meu pai eescola para meu irmão e para mim. Nessa época, todas as escolas do estado estavam emgreve e visto que já estávamos no meio do ano, seria complicado conseguir vaga em algumaescola. Estávamos correndo o risco de perder o ano.

Não demorou muito, a greve acabou. Meu irmão foi matriculado em uma escola domunicípio perto de casa e eu numa escola do estado - Escola Estadual Maria MargarezLacet. Era uma escola conceituada e de ótima estrutura. Foi lá que fiquei até terminar oensino médio. Devido à greve, ela atrasou bastante o ano letivo, o que foi bom para mim,pois não havia mais o risco de perder o ano.

A escola ficava muito distante de minha casa e como a situação não era muito boa,todos os dias eu tinha de caminhar 30 minutos sob o Sol escaldante do meio-dia. Quandochovia, a situação era pior ainda, pois todas as ruas que davam acesso à escola ficavamalagadas. Se fosse o caso de não poder faltar à aula devido a alguma avaliação, teria queir de ônibus.

Demorou um tempo para me adaptar com o pessoal e com a escola, mas em poucotempo fiz muitas amizades, algumas das quais vejo até hoje, e outras, muito poucas, encontrona universidade.

Quando eu ainda estava na 5ª série, desenvolvi uma paixão pela profissão de dentista, aoler meu livro de ciências. Era isto que eu queria ser quando crescer: uma dentista bem-sucedida.Então, como fui parar no curso de matemática?

Geralmente, começamos a pensar sério em fazer ou não um curso superior quandoingressamos no ensino médio, principalmente no último ano. Pelo menos comigo foi assim.

Aqui em Maceió, para ingressarmos na UFAL (Universidade Federal de Alagoas) nãofazemos o vestibular, mas o PSS (Processo Seletivo Seriado). No final de cada série doensino médio, é feita uma prova e, no último ano, faz-se uma média geral. Dependendo dapontuação obtida, a pessoa opta pelo curso desejado.

Enquanto cursava o 2º ano do ensino médio, comecei a refletir no que, realmente,queria para o meu futuro e percebi que, no meu caso, a melhor opção seria entrarna faculdade.

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62 Caminhadas de universitários de origem popular

Visto que sempre estudei em escolas públicas, concorrer para o curso de odontologiaseria muito complicado, pois devido aos problemas comuns da educação pública (greve,reformas e falta de professores), eu não estava preparada. Com isso, fiquei pensando queseria mais viável optar por um curso não muito concorrido, que não demorasse muito paraser concluído, e que me proporcionasse emprego garantido.

Ao analisar vários cursos disponibilizados pela UFAL, observei os que mais seenquadravam na minha procura. Eram os cursos de licenciatura, pois apesar de não receber oque, realmente, merece por seu indispensável trabalho, um professor nunca fica desempregado.

Então, optei pelo curso de Matemática, pois das disciplinas que estudara na escola,Matemática era a que mais se identificava comigo. Além do mais, sabia que, ao me formar,não ficaria desempregada devido à grande carência de professores na área de exatas.

Ao terminar o terceiro ano do ensino médio, fiz o PSS3, fui aprovada para segundafase e faria as provas de redação e matérias específicas, que no meu caso seriam Matemáticae Física. Não estava muito confiante de que iria passar devido ao meu conhecimento limitadonessas disciplinas, e de fato, não passei. Naquele momento, fiquei muito triste, mas depoispercebi que foi melhor assim, porque não conseguiria acompanhar um curso universitáriocom tão pouca base.

Durante o ano de 2003, comecei a trabalhar em uma escolinha particular, dando aulaspara alunos de 3ª e 4ª séries do ensino fundamental, ganhando muito pouco para pagar umcursinho pré-vestibular, pois ainda tinha esperança de entrar no curso de Matemática daUFAL. Com isso, paguei um curso de matérias isoladas, Matemática e Física, e no final doano, fiz um outro cursinho de um mês para revisar todas as matérias.

Todo esse esforço valeu a pena, pois em 2004, fui aprovada em 13° lugar no curso dematemática diurno. Devido a muitos esforços e dedicação exclusiva ao curso, nunca fuireprovada em nenhuma disciplina, e hoje - 2007, estou no último ano da graduação comexpectativa de ingressar no mestrado, coisa que quero muito e vou lutar para isso.

Nos meus dois primeiros anos de UFAL, minha preocupação era, somente, com osestudos. Mas em 2005, no início do 3° ano, percebi que a situação financeira da minhafamília estava cada vez mais difícil, e assim, teria que procurar algo para mudar essa situação.Foi quando resolvi ir à Secretaria da Educação do Estado e lá consegui uma bolsa deR$ 350,00 para lecionar em uma escola do Estado perto de minha casa. Período de 20 horassemanais que me tiravam todas as energias para qualquer outra atividade, até mesmo estudar.

Alguns meses depois, tive que abandonar a bolsa do Estado por falta de pagamento, etambém, pelo estresse que eu estava passando. Foi quando fiquei sabendo das inscriçõespara algumas bolsas oferecidas pela universidade. Eu não sabia do que se tratava, masmesmo assim me inscrevi. Quando fui selecionada tive o conhecimento de que se tratava deum novo programa que tinha por objetivo expandir a universidade para as comunidadespopulares, o Conexões de Saberes.

Dentre os cinco projetos existentes nesse programa, faço parte do “Curso Pré-VestibularComunitário”, onde preparamos as pessoas de comunidades populares para o PSS. E eu,como conectada do curso de Matemática, sou a professora de Matemática desse curso.

Percebo a importância desse projeto não só para a universidade como, também, para ascomunidades que estão envolvidas. Muitas pessoas agora, através do Conexões, têm tido aoportunidade de aprender uma profissão, desenvolver habilidades mentais e físicas, entrarna universidade e concluir o ensino médio e fundamental.

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Universidade Federal de Alagoas 63

Para mim, tem sido uma experiência sem igual. Nunca havia ensinado conteúdos doensino médio e esse programa tem me dado a oportunidade de desenvolver esta e outrashabilidades. Para me sair bem como professora, tenho levado em consideração a dificuldadeque muitos têm por virem de escolas públicas, e também, tenho me inspirado nos bonsprofessores que tive durante minha formação, evitando cometer os mesmo erros de algunsque eu abominava.

Mesmo fazendo parte de uma área que se distancia um pouco das relações humanas,passei a enxergar a realidade com outros olhos, a perceber que, realmente, pode haver umamudança e que isso só depende de cada um de nós.

Este é o meu segundo ano no projeto e tenho muitas expectativas quanto a ele. Sei quecom o empenho dos coordenadores, e principalmente, dos bolsistas, esse programa temtudo para ir à frente. Será levado um pouco da universidade para aqueles que, antes, pensavamque apenas os que têm um poder aquisitivo maior poderiam freqüentá-la.

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64 Caminhadas de universitários de origem popular

Uma caminhada, rumo ao trabalho comunitário

* Graduanda em Pedagogia na UFAL.

Claudineia França da Silva*

Nasci na cidade de Maceió, capital do estado de Alagoas. Moro no bairro do Tabuleiro,considerado um dos maiores bairros de Maceió.

Sou filha de Maria José de França e Manoel José da Silva, naturais de Alagoas. Elestiveram 2 casais, sendo que um dos meninos morreu em um trágico acidente de moto. Meuspais estudaram até a 4ª série, moravam na cidade de Flexeiras em Alagoas e vieram paraMaceió muito jovens.

Minha mãe deixou de estudar para trabalhar. Trabalhou por muitos anos, comocomerciante, mas como ficou doente, deixou de exercer sua profissão.

Meu pai é pedreiro, mas, atualmente, não está exercendo seu ganha-pão por motivosde saúde. Tenho uma grande admiração por meus pais, pela coragem, força de vontade, pelaousadia e integridade com que eles sempre lutaram por uma vida melhor.

Iniciei a vida escolar com seis anos de idade, quando minha mãe fez minha matrículaem uma escola pública municipal, próxima de casa. Nessa escola, só eram permitidosalunos com sete anos de idade, mas com uma boa conversa, minha mãe conseguiuconvencer o diretor.

Lembro-me com muita alegria, daquele dia inesquecível: o meu primeiro dia deaula! Estava realizando o desejo de estudar. Como sonhava em aprender coisas diferentes,participava das aulas com entusiasmo e acreditando que, um dia, ia realizar todos osmeus sonhos.

Na 3ª série do ensino fundamental, certo dia na escola, e depois do intervalo, peço àprofessora para ir ao banheiro. Irritada a professora, diz que só é permitido ir ao banheiro nahora do recreio. Desconfiada, volto ao meu lugar. Passando alguns minutos, volto à professorae insisto dizendo que não estou agüentando, mas a professora continua com sua posturaautoritária. Antes do toque da saída, não consigo segurar o xixi, o faço na sala de aula, eacanhada, corro para casa, não percebendo se meus colegas tinham visto. Eles falam para aprofessora, e mesmo já estando longe, ouço a professora gritando meu nome para todosouvirem. Os alunos de toda a escola se aproximam para ouvir. Volto chorando, com muitavergonha e a professora me faz limpar o xixi. Enquanto isso, meus colegas estão rindo e mecolocam o apelido de “Maria Mijona”. Só queria dormir, para não acordar nunca mais.Como aquilo tinha mexido comigo, nem estudava com medo da professora. Termineirepetindo a 3ª série.

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Universidade Federal de Alagoas 65

Hoje, entendo que o comportamento autoritário e arrogante da professora, não sabendolidar com a situação, interrompeu o desenvolvimento normal do aluno e a boa relaçãoprofessor/aluno.

Nessa mesma escola, perco mais um ano. Dessa vez, a escola entra em greve por faltade professores. Como meus pais não tinham condições de pagar uma escola particular,minha única alternativa era esperar que voltasse à normalidade.

Em meu 2º ano do 2º grau, ganhei uma bolsa de 50% de desconto para estudar em umadas melhores escolas particulares do bairro, a qual consegui através do esporte, jogandovôlei. Fui selecionada para representar a escola. Passei apenas um mês nessa instituição,pois meu pai era o único que trabalhava e só pagou a primeira mensalidade, com muitadificuldade. Como vinha de escola pública, onde a educação não era de qualidade, sentiadificuldades para acompanhar a turma que já estava avançada nos assuntos e resolvi voltarpara escola pública estadual.

No ano de 2000, quando terminei meu 3º ano do 2º grau, fiz vestibular para o cursode jornalismo, sendo influenciada pelos amigos para a escolha do curso, mas não atenteipara o que, realmente, eu queria fazer. Desisti de fazer as provas, sendo,conseqüentemente, reprovada.

No ano seguinte, participei de uma entrevista em um Movimento de Crianças eAdolescentes. O país Luxemburgo estava selecionando adolescentes e jovens para investirna continuação dos estudos. Em permuta, esses alunos, ao entrarem na faculdade e seformarem, trabalhariam no próprio Movimento. Felizmente, fui selecionada e comecei aganhar uma bolsa, com um valor satisfatório para pagar um cursinho preparatório para ovestibular. Com essa quantia, não só apenas pagava a mensalidade do cursinho, mas também,ajudava nas compras de casa, na passagem de ônibus e em cursos profissionalizantes.

No terceiro ano de vestibular, escolhi o curso de Pedagogia. Para minha felicidade,fui aprovada. Por outro lado, após quatro anos recebendo a bolsa de Luxemburgo, abdicoda minha bolsa para outro jovem. Com isso, volto à estaca zero e me perguntava o que iriafazer se não tinha condições, nem de pagar a passagem para chegar à Universidade.

Surgiu, então, a oportunidade de participar do Programa Conexões de Saberes, em umde seus projetos: Educação Complementar e Cidadania, garantindo a minha permanênciana universidade. Vejo que o meu ingresso na universidade me possibilitou um crescimentopessoal, intelectual e econômico. Nessa relação, direta com o projeto, percebo a necessidadede ações e atividades que devem ser praticadas na minha comunidade, com possibilidadesde desenvolver atividades que proporcionem troca de saberes e experiências. Uma vivênciano processo ensino aprendizagem, além dos limites da sala de aula tradicional.

Ressalto, aqui, a importância de fazer parte do Programa e o meu desejo de contribuirpara amenizar os graves problemas sociais, priorizando ações que visem à superação dasatuais condições de desigualdade e exclusão existentes no Brasil.

Portanto, pretendo terminar meu curso de Pedagogia e fazer mestrado e doutorado,tendo consciência do meu papel na sociedade, em um diálogo aberto com sujeitos interessadosno processo participativo.

Agradeço a todos aqueles que contribuíram na minha caminhada como estudante. E,primeiramente, a Deus - o autor da minha vida, o meu refúgio e fortaleza.

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66 Caminhadas de universitários de origem popular

Computando minha vida

* Graduando em Ciência da Computação na UFAL.

Mário César de Albuquerque Pessoa*

Minha caminhada começa mesmo sem saber caminhar, em Arapiraca, conhecida comoa capital do fumo, cidade do interior, localizada no agreste das Alagoas, local de povotrabalhador e hospitaleiro.

A família do meu pai é de Rainha Izabel em Pernambuco. Meu avô paterno, hojefalecido, era um aventureiro, conheceu minha avó, e noivos, foram para São Paulo tentarmelhorar de vida. Lá, quase morre de malária, e com ajuda de um amigo, conseguiu se tratar,apesar de muito trabalho na lavoura, não conseguiu grandes êxitos.

Voltando a Pernambuco, começa a trabalhar como açougueiro e, logo depois,comprando e vendendo o gado inteiro para outros comerciantes, consegue juntar algumdinheiro e casa-se com minha avó. Depois que o negócio com gado começou a declinar,decidiu ir morar, com sua esposa e filhos, em Lagoa do Rancho, e depois, em Arapiraca.Foi nessa ocasião que meu pai conheceu minha mãe, filha de agricultor e neta de umfazendeiro da região.

Meus pais começaram a namorar, o que, naquela época, era algo muito sério eenvolvia toda a família. Decidiram se casar e nasci como primogênito, seguido demais três irmãos, sendo um irmão e duas irmãs. Tive uma infância difícil, seguida demuitas doenças que me enfraqueceram, para o sofrimento de minha mãe que passavamaiores dificuldades.

Meu primeiro contato com a educação foi através de uma senhora do bairro que faziade sua casa uma espécie de colégio, onde outras crianças e eu estudávamos e brincávamos,mesmo sem saber a importância daquilo tudo. Fui seguindo e aceitando o que era ofertado,embora tenha tido muitas dificuldades em acompanhar o ensino. Tudo melhorou quandopassei a estudar em uma escolinha “de verdade”, chamada Instituto Menino Jesus. Comeceifazendo a alfabetização, mesmo estando atrasado para minha idade.

Algum tempo depois, já havia feito muitos amigos no bairro e gostávamos de sair decasa, numa espécie de aventura, desbravando a cidade. Achávamos aquele bairro muitopequeno e queríamos conhecer outros locais. Então, achei minha primeira diversão: explorara cidade onde morava e aos poucos, meus amigos e eu, íamos conhecendo bairro a bairro.Gostávamos muito de ir caminhando ao centro da cidade, pois era muito prazeroso e ônibusera algo que, praticamente, não existia. Assim, íamos seguindo nossas jornadas, sempre commuita diversão e só voltávamos para casa no final do dia.

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Universidade Federal de Alagoas 67

Apesar de morar numa cidade, tradicionalmente voltada para a agricultura, meu avôpaterno, aos poucos, foi deixando a vida de cuidar da terra. Meus tios e meu pai não queriamlevar à frente o negócio de agricultura e apostaram no comércio. A essa altura, todos casados,e para manterem a família, iniciaram-se no ramo de venda de alimentos e conveniência.

Meu pai tinha uma pequena mercearia. Nesse tempo, não existiam essas grandes redesde supermercado e todos faziam compras em pequenos pontos comerciais de esquina, tudosem muita sofisticação, contando apenas com um balcão e algumas prateleiras. Apesar deser um pequeno negócio, tinha a vantagem de ser próprio, sem a existência de um patrãodando ordens.

Morava próximo de meus avós paternos, enquanto meus avós maternos moravamdistantes em um sítio chamado Massaranduba, onde gostava de ir para passear.

O negócio melhorou um pouco e meu pai decidiu montar outro ponto em outrobairro, dessa vez com um porte maior. Com o tempo, ele verificou que ficou complicado degerenciar, pois ficava distante do primeiro, onde minha mãe trabalhava. Então, optamos pormanter só um e tivemos que nos mudar para outra casa, que ficava ao lado do comércio. Foiuma mudança difícil, pois, afinal, tive que deixar a escola e os amigos.

Contudo, aos poucos, fui fazendo novas amizades e passei a estudar em uma Escolaque recebia o nome do “descobridor” da cidade, Manoel André, localizada no novo bairropara o qual havia me mudado - Jardim Esperança. Estudei lá, da 2ª até a 6ª série, era conhecidocomo um ótimo aluno e passava de ano com muita facilidade, porém, era muito prejudicadopelas greves que aconteciam todos os anos. A de maior duração foi quando estava cursandoa 7ª série, que não cheguei a concluir.

Pela demora no retorno das aulas, meus pais decidiram mudar meu colégio e passei aestudar em uma instituição Cenecista, que ficava localizada no centro da cidade - ColégioBom Conselho. Gostei muito, pois não existia greve e o ensino tinha uma qualidade melhor.Passei, novamente, pela mesma situação de não conhecer ninguém e tive que fazer novasamizades. Por sorte, estudavam lá três primos, o que ajudou a me integrar à turma, e empouco tempo, já me sentia à vontade.

Tive que reiniciar a série que perdi por conta da greve e fiz boas amizades lá, sendoque algumas mantenho até hoje. Gostava muito de participar das feiras de ciência e decultura, onde trabalhávamos duro para erguer as estruturas do evento.

No 2º grau, hoje conhecido por Ensino Médio, não era muito de estudar, mas o poucoque estudava, era suficiente para passar nas provas, pois tinha facilidade para compreenderos assuntos. Era daqueles alunos que só estudavam em véspera de prova, mas por incrívelque pareça, obtinha ótimas notas, algo que, às vezes, não entendia.

Não se falava em vestibular como hoje, talvez devido ao pequeno número de faculdadesnaquela época. Na cidade de Arapiraca, para falar a verdade, só existia uma que era destinadaà formação de professores. Foi uma pena o assunto vestibular não ser tão discutido, pois, seassim fosse, teria me preparado melhor.

Quando estava cursando o segundo ano do ensino médio, meu pai decidiu ir morar emMaceió, motivado por vários assaltos seguidos, que estavam acontecendo noestabelecimento dele. Tivemos que vender nossa casa e o negócio, para ir morar na capital.Antes da mudança, moramos, temporariamente, em outro bairro em Arapiraca, até que fosseencontrado um local para instalar um estabelecimento em Maceió. Enquanto isso, tivetempo para terminar aquele que seria meu último ano no Colégio Bom Conselho.

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68 Caminhadas de universitários de origem popular

Passando a morar na capital, tínhamos que procurar outro colégio, para mim e meusirmãos. Notamos que os valores das mensalidades eram bem mais altos que nos colégios deArapiraca, optamos por um colégio cenecista, pois a mensalidade era mais acessível.

Quando terminei o ensino médio, não achei que estava preparado o suficiente para ovestibular. Não tentei e comecei a me preparar em casa, pois percebi que muitos dos assuntosdo programa do vestibular não eram passados no colégio, o que me fez procurar um cursinhopré-vestibular que ficava no bairro onde moro. Apesar de não ter uma estrutura adequada,era melhor do que me preparar sozinho.

Tentei três vezes passar no vestibular. Na primeira tentativa, optei pelo curso de medicinae não consegui êxito. Na segunda tentativa, novamente optando por Medicina, conseguipassar apenas na primeira fase. Mudei na terceira vez, optando pelo curso de Ciência daComputação, e finalmente, consegui passar, o que foi uma das maiores felicidades da minhavida. Finalmente, estava na Universidade!

Iniciando meus estudos em computação, percebi que a universidade era muito diferentedo colégio. Vi, ainda, que para conseguir atingir as minhas metas, precisava estudar muitomais. Tive muita dificuldade no início, quando me deparei com cálculo I, disciplina queexigia muita dedicação. Mesmo estudando muito, não consegui passar e tive que repetir amatéria. No segundo ano, infelizmente, não consegui passar, novamente, no tal cálculo I,obtendo êxito apenas na terceira tentativa, quando surgiu a possibilidade de cursar essadisciplina no bloco de meteorologia, onde as avaliações não massacravam o aluno.

Tive outras dificuldades durante o decorrer do curso, como, por exemplo, anecessidade de livros que não podia comprar. Sempre tinha que conseguir com colegas paratirar cópias e foi a única alternativa para adquirir o material para estudar. Atualmente, estoucom dívida, somente em relação ao meu trabalho final.

Em 2006, como tinha o hábito de verificar oportunidades de estágios no mural domeu curso, vi um cartaz que falava do Programa de Extensão, Conexões de Saberes e noteique existiam duas vagas para meu curso. Rapidamente, fiz minha inscrição.

Já selecionado no programa, não tinha muito conhecimento sobre extensão universitária,mas aos poucos, fui me integrando ao grupo dos demais bolsistas selecionados. Adorei aoportunidade, pois, com a bolsa oferecida, poderia custear meus gastos universitários, e também,ter a oportunidade de experimentar algo novo.

Entendi que agora tinha uma missão: minimizar as dificuldades que outrosuniversitários de origem popular chegariam a enfrentar. Senti-me muito feliz quando osprimeiros frutos do nosso trabalho surgiram. Espero fazer, ainda muito mais no programa.

Ainda tenho muito que lutar, aprender e conquistar, mas com perseverança, podereiatingir meus objetivos. Estou incerto quanto fazer uma pós-graduação ou disputar umavaga no mercado de trabalho, porém, qualquer que seja a minha escolha, sei que vouencontrar muitos obstáculos a enfrentar.

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Universidade Federal de Alagoas 69

* Graduando em Serviço Social na UFAL.

Prosseguir é necessário, pois temos uma

história a construir

Leonardo Henrique Correia dos Santos*

Depois de escalar um grande morro,descobrimos apenas que há muitos outrosmorros a escalar.

Nelson Mandela

O início

No dia 14 de janeiro de 1985, nascia Leonardo, segundo e derradeiro filho do casalRosiane e Jerônimo. O caçula e sua família são provenientes do interior do estado deAlagoas, mais precisamente, do município de São Miguel dos Campos, que fica a 65 km dacapital, Maceió.

Desde criança, Léo, como é chamado pelas pessoas mais próximas, sempre teveincentivo ao aprendizado, principalmente, da parte de sua mãe, que antes mesmo de Léo irà escola o ensinou a ler e escrever. Inolvidáveis são os momentos em que Léo, ainda noensino primário, resolvia problemas de matemática, sob os olhares de sua atenta e exigentemãe que não admitia erros. Postura firme, que contribuiu, grandiosamente, para o acúmulode conhecimentos do então menino.

A vida escolar de Leonardo foi permeada por várias dificuldades, a começar pelafinanceira. Do chamado jardim da infância até a oitava série do ensino fundamental, Léoestudou em escola particular, através do esforço incondicional de sua inestimável mãe, queeconomizava o necessário, para poder manter o filho nesse estabelecimento educacional.

Durante esses anos em que estudou em escola particular, Léo vivia uma realidade quenão era bem a sua. Filho de funcionária pública e de escriturário que perdera seu emprego enunca mais se consolidara no mercado de trabalho, Léo convivia com colegas, que em suaenorme maioria, pertenciam a famílias com rendimentos econômicos muito superiores aoganho mensal de seus pais. Sua família passava por graves problemas financeiros,principalmente, nos períodos de início de ano quando se fazia necessário comprar o materialescolar e livros didáticos, que estavam longe de serem baratos.

Esta época de ensino fundamental, ensinou ao Léo, garoto tímido, mas de sorriso fácil,como conviver com as diferenças, sejam elas sociais, econômicas ou de idéias. Enfim, umafase com dificuldades que foram superadas, e principalmente, de uma riquíssima aprendizagem.

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70 Caminhadas de universitários de origem popular

O passo definitivo rumo à universidade

Aos 15 anos de idade, Léo se transfere para uma escola da comunidade, para cursar oensino médio. Desde o primeiro ano, ele pensava constantemente, em seu futuro, após otérmino dessa fase educacional. Sabia que era necessário um algo a mais em sua vida, algoque lhe proporcionasse uma perspectiva profissional a ser seguida.

Com isso, teve conhecimento do Processo Seletivo Seriado (PSS), que tinha porfinalidade selecionar os candidatos aos cursos de graduação da Universidade Federal deAlagoas (UFAL). Em função das noções adquiridas pelo estudo, experiências e habilidadesque demonstrasse nas áreas do conhecimento que constituem a base comum nacional doscurrículos do ensino médio, o candidato é inscrito para a avaliação correspondente à sériedo ensino médio que estiver cursando.

Decidido a seguir os seus estudos, após formar-se no ensino médio, Léo faz sua inscriçãono PSS para a prova referente ao primeiro ano, mesmo sem saber, ainda, por qual curso optar,já que essa escolha seria realizada no ato da inscrição para a prova do terceiro ano.

Durante três anos, Léo pensou, cautelosamente, sobre qual curso prestar vestibular.Realizou teste vocacional, através do qual pôde concluir que a área de humanas era a ideal,aquela com a qual mais se identificava. Assim, ao se inscrever para a prova relativa aoterceiro ano, ele tomou uma decisão que marcou, definitivamente, sua vida: Serviço Socialera a faculdade, a profissão escolhida para tornar o menino em um homem.

Aí veio a primeira consagração. Após o resultado da soma dos pontos obtidos nastrês provas equivalentes à primeira fase do vestibular, consegue a média necessária parao curso de Serviço Social e passa para a segunda fase, rumo à concretização de suaaspiração. As provas da segunda fase realizaram-se em três dias, seguidos em Maceió.Como não tinha recursos para se deslocar, por três dias, entre sua cidade e a capitalalagoana, Léo e sua inseparável mãe ficaram na casa de amigos da família, durante osrespectivos dias do vestibular.

Léo relembra com felicidade a companhia de sua genitora durante os dias de prova, apessoa que o acompanhava até o local da avaliação e o esperava sair, ansiosa para sabercomo seu filho se saiu no teste.

Por volta de um mês, após a realização da segunda fase do PSS / UFAL, é divulgado oresultado do vestibular. Era uma tarde ensolarada. Léo encontrava-se em sua casa, maisprecisamente em seu quarto ao lado do simples, mas útil rádio. O tão aguardado momentose aproximava e Léo, tomado pela ansiedade, permanecia inerte e com os ouvidos aguçados.

A segunda consagração está por vir. Por ordem alfabética, a lista dos aprovados nocurso de Serviço Social começa a ser divulgada, letra por letra, uma espera angustiante atéa letra “L”, de Leonardo Henrique Correia dos Santos, aprovado! A tensão dá lugar à alegria,ao sentimento de dever cumprido. O garoto que estudou em casa por conta própria, queacreditou e acredita, até hoje, em seu potencial, e principalmente, na ação do poder divinoconsegue ingressar na universidade. Tem-se início mais um capítulo da vida de Leonardo.

Universidade: uma realidade vivida

A universidade agora é uma realidade na vida de Léo que, de segunda a sexta-feira,desloca-se de sua residência até a UFAL, através de transporte escolar concedido pela prefeiturade sua cidade. Dessa forma, a distância entre sua casa e a universidade, deixava de ser umempecilho, apesar de ter que acordar, por cinco dias, às quatro e quarenta horas da manhã.

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Universidade Federal de Alagoas 71

O primeiro ano de universidade representou para Léo um período de adaptação aosnovos hábitos e à forma educacional, diferenciada, do ensino superior. O aspecto financeirocontinuava a ser um entrave que se mostrava bem claro, quando Léo tinha necessidade decomprar as apostilas das disciplinas.

Quanto ao seu comportamento em sala de aula, permanecia o mesmo desde quandoiniciou os estudos. Quieto, calado, porém atento e observador. Quando se trata de estudarpara as avaliações é o rotineiro. Léo o faz, apenas, no dia anterior a prova, apesar de saberque este costume não é um dos melhores. A vivência acadêmica propiciou ao rapaz umamaior e melhor desenvoltura no relacionamento com as demais pessoas.

No segundo ano, já acostumado ao ritmo universitário, e em particular, ao de suafaculdade, tudo transcorre normalmente. Contudo o terceiro ano traria alguns desafios aojovem Leonardo, que se inscrevera para o programa de monitoria, com bolsa referente àdisciplina Ética em Serviço Social, ministrada pela professora Margarida. Apenas uma vagaofertada e Léo ficou em segundo lugar, ao término do processo de seleção. Mas isso não erao fim. Já conhecedora do desempenho de Léo, em sala de aula, a professora da referidadisciplina - que já o tinha ensinado por duas ocasiões - convida-o para ser monitor sembolsa, o que Léo aceita sem pestanejar, tornando-se esta uma experiência válida e construtiva,o que contribuiu muito com seus estudos.

Além da monitoria, durante o terceiro ano de universidade, Léo realizou estágiocurricular na área do Serviço Social. Um primeiro contato com a profissão em sua prática,Léo pôde observar o cotidiano e a dinâmica profissional inserida no contexto daprevidência social.

O curso de Serviço Social teve importância significativa, na vida de Léo que, aoingressar nessa faculdade, passou a ter uma outra visão de mundo, crítica e desveladora darealidade social. Este olhar diferenciado sobre as diversas dimensões da sociedade humanaé proporcionado pela formação generalizada do curso, que possui uma grade curricular queinclui, além das disciplinas referentes ao Serviço Social, Filosofia, Sociologia, Psicologia eEconomia Política, entre outras.

O quarto ano reservava para Léo algo especial em sua vida acadêmica e pessoal: oPrograma Conexões de Saberes.

Motivado pela necessidade de ter uma renda a mais para colaborar nas despesas de suacasa, Léo se inscreve no processo seletivo para o referido programa, almejando uma dasvagas ofertadas ao Serviço Social. E não é que ele consegue êxito!

Ao participar das primeiras reuniões, com os alunos bolsistas e coordenadores, é queLéo percebe a grande dimensão do Conexões de Saberes. Um programa de extensão a nívelnacional de cunho social, voltado ao atendimento das demandas dos estudantes de origemhumilde, ao acesso e permanência destes na universidade, bem como, direciona suasatividades ao enfrentamento das necessidades das comunidades que ficam nas proximidadesdo campus universitário.

No Conexões de Saberes, Léo realiza atividades sócio-educativas numa comunidadepopular, próxima à universidade. Através dessa experiência, ele pôde se engrandecer,humana e profissionalmente.

Nesses quatro anos de universidade, Léo contou com a amizade de duas pessoasespeciais, Ana Cristina e Ana Luíza, com as quais compartilhou diversos momentosde alegria.

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72 Caminhadas de universitários de origem popular

Hoje, prestes a ser bacharel em Serviço Social, Léo agradece, imensamente, a todosque o ajudaram em sua jornada rumo à universidade e dentro dela, principalmente, a Deuse a sua mãe, que se dedica, exclusivamente, à promoção do bem-estar de seus filhos.

É imprescindível saber que a caminhada não termina aqui. Prosseguir é necessário,pois temos uma história a construir.

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Universidade Federal de Alagoas 73

* Graduando em Jornalismo na UFAL.

“Lutar, sempre. Desistir, jamais”

Valter dos Santos Ferreira*

Sou natural da cidade de Maceió, capital de Alagoas. Nascido em 18 de outubro de1981, passei por vários momentos difíceis até conseguir ingressar na Universidade. Ireicomeçar a contar a minha história, a partir de meus sete anos de idade.

Meus pais, Antônio Berto Ferreira e Josefa dos Santos Ferreira, duas pessoas oriundasdo interior do Estado, que vieram à cidade grande em busca de melhores condições devida. Eles sabiam que não seria fácil vencer na vida, sem ter uma boa escolaridade.Meu pai, trabalhava na construção civil, enquanto minha mãe, cuidava de mim e demeu irmão.

Com muitas dificuldades, comecei a estudar. Como já tinha sete anos de idade, ingresseina primeira série. Minha mãe me ajudava com os deveres da escola, revezando-se entrecuidar de mim, de meu irmão e cuidar da casa.

Sempre moramos em casas que pertenciam aos donos das empresas, nas quais, meu paitrabalhava. Por isso, sempre que o patrão dele resolvia mudar o local de uma obra, tínhamosque nos mudar, também. Com todas essas mudanças, era difícil manter a mesma escola pormuito tempo, atrasando, ainda mais, meus estudos.

Nesse nomadismo no qual vivíamos, conseguimos nos fixar no bairro do ClimaBom, periferia de Maceió. Esse bairro era conhecido, na época, por possuir um altoíndice de criminalidade. Mas foi onde conseguimos comprar uma casa, através dodinheiro que meus pais conseguiram guardar, por muitos anos. Depois de muito tempotrabalhando na construção civil, meu pai conseguiu emprego de caseiro em uma casaque pertencia a seu antigo patrão. Junto com ele, minha mãe, também, começou atrabalhar como doméstica.

Após muitas mudanças de moradia e de escola, aos doze anos de idade, conseguimatrícula em uma escola Estadual. Fugindo de greves, passei por vários colégios, atéchegar naquele que seria minha última parada, onde concluí o Ensino Médio.

No ano de 2000, consegui terminar o ensino médio, porém, o que deveria ser motivode alegria se transformou em frustração, por vários aspectos. Nesse ano, eu já possuía 19anos, portanto, em idade de prestar o serviço militar: meu grande sonho. Perdi minha grandeoportunidade, por fazer parte do excesso de contingente. Para piorar a situação, meu paiestava desempregado, ficando para a minha mãe a responsabilidade de sustentar toda afamília. Aquela situação me levou a procurar, desesperadamente, por emprego. Então, em

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74 Caminhadas de universitários de origem popular

2002, consegui trabalho numa pequena marcenaria que pertencia ao cunhado de meu primo.O trabalho era duro, pois chegava às 7 horas da manhã e largava às 18 horas e 30 minutos.Todos os dias e durante o expediente, pensava em conseguir algo melhor para mim e minhafamília, quem sabe até cursar uma universidade.

Chegou o momento em que resolvi jogar aquele emprego para o alto (após ter passadoum ano naquele local) e pedi à minha mãe que pagasse um curso pré-vestibular. Ela, mesmocom todas as dificuldades, não hesitou em me ajudar. Mesmo não podendo pagar um cursode reconhecida qualidade, minha mãe pagou um popular. Dessa forma, no ano de 2003,comecei a me preparar para o vestibular da UFAL.

Faltando, apenas, dois meses para o Processo Seletivo Seriado (PSS/UFAL),aconteceram dois problemas que me impossibilitaram de fazer o vestibular. O primeiro foiem relação à burocracia, por parte da escola na qual tinha terminado o Ensino Médio - ademora na expedição dos documentos tornou impossível minha inscrição para o PSS. Asegunda foi em relação ao curso pré-vestibular que abriu falência, deixando muitos alunosapreensivos. Com esses problemas, perdi um ano de minha vida.

Em 2004, meu pai já havia arranjado um emprego de vigilante, e eu, um emprego decaseiro na casa onde minha mãe trabalhava. Assim, fiz minha matrícula em outro curso pré-vestibular popular, que ficava a 25 minutos de caminhada até minha casa. Minha rotinadiária funcionava desta forma: trabalhava das 6 às 10 horas da manhã, almoçava, estudavadas 13 às 17 horas, jantava, ia ao curso às 18 horas e 20 minutos e retornava para casa às 22horas e 20 minutos, todos os dias. Aos sábados, trabalhava até às 10 horas, estudava nocursinho das 14 às 17 horas. Aos domingos, estudava em casa.

Eis que chega o dia das inscrições. Agora o problema é escolher o curso, e também,saber se me inscreveria pelo “sistema de cotas” ou não. Porém, a dúvida em relação a esseassunto era geral. Quando perguntado sobre esse sistema diferenciado, o recepcionista docurso me fez o seguinte questionamento: “você não é afrodescendente?” Quando respondi,positivamente, ele me disse o seguinte: “então se inscreva no sistema de cotas...”. Nãohesitei e me inscrevi.

Chega o dia das provas da primeira fase. Bastante tranqüilo, consegui passar para asegunda fase do vestibular da UFAL. A alegria foi geral. Mãe, irmão e vizinhos. Todosvieram a meu encontro para me dar os parabéns. Na segunda fase, fiquei nervoso na prova deredação. Foi necessário que uma fiscal de sala, antes do início da prova, dissesse algumaspalavras para que eu me acalmasse. Nas demais provas, tudo tranqüilo.

Nessa época, fui morar na casa que meu pai acabara de trocar. Essa nova residênciafica em outro bairro da periferia de Maceió. Como meus pais e meu irmão, ainda, continuavammorando na casa onde minha mãe trabalhava, fui morar com meu primo, pois havia tido umdesentendimento com minha antiga patroa e não podia mais permanecer em seus domínios.Na casa, apenas uma cama, um aparelho de som, um fogão e uma geladeira. E lá estava eu,em frente ao rádio, quando ouvi meu nome na lista. A alegria foi total, mas não havianinguém que pudesse compartilhar da alegria que estava sentindo. Fui encontrar com minhafamília e meus amigos, em meu antigo bairro.

Quando entrei, pela primeira vez, na universidade, quase não consegui me conter detanta emoção. Decerto a universidade é pública, porém, não gratuita. Precisava de algo quepossibilitasse a minha permanência no espaço acadêmico. Com o passar do tempo, descobrique havia um projeto denominado Afroatitude. Esse projeto disponibilizava 50 bolsas para

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Universidade Federal de Alagoas 75

alunos que ingressaram pelo sistema de cotas. Inscrevi-me e consegui uma das bolsas. Umnovo mundo se abriu. Através desse projeto, consegui, além de continuar estudando, aprenderum pouco mais sobre minhas raízes, e também, sobre outros assuntos relacionados à saúdeda população negra.

Após um ano nesse projeto, fui incorporado ao Programa Conexões de Saberes daUFAL. Nele, um horizonte mais próspero e promissor está se formando, pois é através dessePrograma, que estou conseguindo dar continuidade aos meus estudos. Com o Programa,pude conhecer a minha própria comunidade e estudá-la. A oportunidade de estar passando,e também, recebendo informações da comunidade é muito importante para o crescimentointelectual individual e social. A universidade, infelizmente ainda, forma para a elite, mascabe aos alunos oriundos da camada popular, mudar esse quadro de desigualdade.

Quero reservar estas últimas linhas para agradecer a todas aquelas pessoas que fizerame fazem parte da minha “CAMINHADA”. Agradeço primeiro a Deus e à minha família, porterem acreditado sempre em meu potencial, não permitindo que eu desistisse de quereralcançar um objetivo; à Janda, coordenadora do Programa Conexões de Saberes/UFAL,juntamente, com seu ilustre bolsista Luiz Carlos Ferreira dos Santos, que intermediaramminha entrada no Programa; ao Pró-Reitor de Extensão José Roberto Santos; ao JoabsonSantos, que sempre esteve a meu lado, e a meus companheiros de aventura, quer dizer, detrabalho: Toda “galera” do Conexões de Saberes/UFAL. Todas essas pessoas são muitoimportantes em minha vida.

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76 Caminhadas de universitários de origem popular

Minha família, meu alicerce!

* Graduanda em Relações Públicas na UFAL.

Emanuelly Batista da Silva*

CAJARANA (Fruta do mato, ácida e que lembra um maxixe, com espinhos no caroço,a polpa inicia azeda e dentro, entre os espinhos, é doce), era isso que eu era para meus avós:uma Cajarana.

Minha mãe, Joseilda Batista da Silva, sentiu um mal-estar aos dezessete anos e paratranqüilizá-los, ela falou que tinha ingerido essa fruta, mas o mal-estar não era por causa da fruta,mas um enjôo de gravidez. Ela engravidou muito jovem e estava apenas namorando o meu pai,Edílson Santos da Silva. Eles se casaram e estão juntos há exatos 21 anos, minha idade.

Nasci em 23 de março de 1986 e tive uma saúde frágil, até os meus dez anos. Fui umacriança muito sapeca e não dava descanso aos meus pais e professores, pois aprontavamuito na escola e era conhecida como “a pimentinha”. Não fui uma aluna nota dez, mastambém, não era a pior, porque sempre fui muito ativa e participava de todas as atividadesque a escola oferecia.

Meus pais sempre trabalharam muito para proporcionar boas condições de vida, egraças a Deus, nunca me faltou nada. Meu pai, para complementar a renda familiar, além detrabalhar na Companhia Alagoana de Refrigerantes (Coca-Cola), ia vender ovos na feira doTabuleiro, nos fins de semana, o que faz há mais de 20 anos. Minha mãe, também, trabalhounas vendas por um período curto.

Lembro, com muito carinho, daquele tempo em que saía junto com meus pais às cincohoras da manhã para ir à feira, pois era muito criança e achava tudo uma diversão. Meus paisiam trabalhar na feira e eu ficava na casa de meus amados avós maternos, Manuel e MariaDalva, que moravam numa vila, por trás da feirinha. Adorava ir para lá, pois eu tinha meusprimos e amigos da vila para brincar, entre as bancas dos feirantes.

Lá, também, moravam meus bisavós, Sebastião e Tetulina, que, infelizmente, nãoestão mais entre nós. Minha bisavó Teta, como era conhecida, era uma pessoa maravilhosa,de bom coração, e minha infância, também, foi passada em sua casa. Meus avós e bisavóssempre foram muito importantes na minha formação, pois participaram, ativamente, deminha educação.

Fui filha única até os meus dez anos e sempre pedia, à minha mãe, um irmãozinho. Atéque um dia veio o Elivelton, que nasceu no ano de 1995 e, com certeza, foi muito bem-vindo. Como eu já estava saindo de minha infância, ajudei em sua criação. Hoje, tenho nãoapenas um sentimento de irmã, mas também, de mãe por ele.

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Universidade Federal de Alagoas 77

Na adolescência, não dei muito trabalho aos meus pais, pois não era de sairmuito e passava meus finais de semana ensaiando no coral da igreja católica do meubairro. Lá, conheci o Altanys, meu noivo. No início de nosso namoro, meu pai nãoaceitou, porque era muito ciumento e achava que estava muito cedo para namorar,pois tinha somente 15 anos. Para ele, isso poderia me prejudicar nos estudos. Mesmocom todos os argumentos de meu pai, continuávamos namorando e ele, finalmente,aceitou nosso namoro.

O Altanys chegou num momento turbulento de minha vida que faço questão de nãolembrar; mas ele se doou a mim para que eu tivesse condições emocionais de entender o queestava se passando ao meu redor. Todo este tempo em que estamos juntos, é suficiente parasaber que a grandiosidade de nosso amor não mudou, apenas se fortaleceu. Não é um amorque sufoca, mas um amor de respeito mútuo. Pretendemos nos casar, futuramente. Nomomento, priorizamos a vida acadêmica.

Sou de classe popular, sempre estudei em escolas públicas e isso nunca foi uma barreiraque me impedisse de sonhar em querer um futuro estável para mim e minha família.

Concluí o ensino médio na Escola Maria Margarez Santos Lacet que, na época, era amelhor escola pública do bairro, por não haver greves. Nessa escola, comecei a pensar emrealizar o almejado sonho de ingressar na universidade e sempre falava para meus pais queum dia seria uma Jornalista.

Tive um grande incentivo de meu noivo Altanys. Sem que ele percebesse, que minhavontade de ingressar na universidade vinha, também, de sua vitória, pois quando eu estavacursando o 1° ano do ensino médio, ele tinha acabado de ingressar na Universidade Federalde Alagoas, no curso de Agronomia. Igualmente a mim, ele sempre estudou em escolaspúblicas, e nunca duvidou do meu potencial. Aliás, sempre foi um dos meus maioresincentivadores, depois de meus pais.

Nos últimos anos do ensino médio, empenhei-me, ao máximo, para obter boas notasna escola e no PSS/UFAL (Processo Seletivo Seriado da UFAL). Como todo bomvestibulando, tinha dúvidas sobre qual carreira queria seguir; assim, conheci a profissão deRelações Públicas e acabei optando em me inscrever para concorrer a esse curso. Então,surgiu outro problema, quer dizer, achei que era um problema. Inscrevi-me pelo sistema deCOTAS, eu e metade da escola. Não sabíamos o que era o Sistema e fomos, quase, queempurrados a nos inscrever, pelo fato de sermos de escola pública.

Fiz a inscrição, sem saber o que o futuro me aguardava. Depois de alguns dias, chegounosso cartão de inscrição, e junto dele, o manual do candidato, que mostrava a quantidadede vagas e a concorrência de cada curso. Pelo Sistema de Cotas, a concorrência estava bemmaior, as vagas eram poucas, e ainda, dividia-se entre os sexos. Por um momento, pensei quemeu sonho tinha “ido por água abaixo”. Fiquei muito triste, mas não podia deixar que issome desanimasse e fui me preparando, da melhor forma que pude.

Consegui ser aprovada na primeira fase do PSS/UFAL, a minha caminhada estavaapenas começando e, ainda, tinha a segunda fase. Tinha só uma semana para mepreparar, não podia ficar de braços cruzados, e decidi fazer um cursinho em apenasuma semana. No momento mais especial da minha vida, minha amiga Patrícia - queconsidero uma irmã - se propôs a cuidar da minha casa e do meu irmão paraque eu pudesse estudar para as provas. A ela sou muito grata, por essa demonstraçãode carinho.

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78 Caminhadas de universitários de origem popular

Fiz o cursinho das 8 às 20 horas, era muito cansativo e acabou me deixando, ainda,mais insegura, porque a maioria dos pré-vestibulandos estavam bem mais adiantados,pois já faziam o curso desde o início. No final da semana, fiz as provas. Restava-me,agora, esperar o resultado e o único consolo que tinha é que meus pais pareciam estar maisnervosos do que eu.

Enfim, chegou o tão esperado dia: fui aprovada no curso de Relações Públicas! Nãosabia se chorava ou ficava triste. Dali por diante, teria que enfrentar a minha escolha peloSistema de Cotas e, com isso, surgiam as dúvidas. Como eu seria recebida na universidade?Pensava, a todo o momento, que seria discriminada.

Quando começaram as aulas, temia que os colegas de classe descobrissem que eutinha passado pelas Cotas e, como não saberia responder às suas indagações, preferi esconderpor muito tempo esse fato. Senti um pouco de diferença em meu desempenho nas aulas, emrelação aos demais colegas. Não por ter ingressado pelas Cotas, mas por ter pertencido àrede pública de ensino.

Três meses depois do início das aulas na faculdade, o Projeto Afro-Atitude ofereceucinqüenta bolsas acadêmicas para alunos cotistas. Meu noivo me falou dessa chance deconseguir uma bolsa de estudo logo no primeiro ano do curso e fui me inscrever, apreensiva,porque saberia que, a partir daquele momento, se fosse selecionada, meus amigos de classeficariam sabendo que era aluna cotista. Mas fiz mesmo assim, pois era a minha chance demostrar que, também, tinha capacidade de produzir conhecimento. Fui selecionada e esteprojeto me deu a oportunidade de me aceitar e compreender o Sistema de Cotas,oportunizando, assim, a minha permanência na universidade.

A partir desse momento, assumi minha condição de aluna cotista para meus amigos eenfrentei o preconceito de alguns - não um preconceito aparente, mas escondido, o que emminha opinião era o pior deles.

Trabalhei, durante um ano, com o extinto projeto Comunicaids, hoje, conhecidocomo Inforaids, que pertence ao Afro-Atitude. Foi uma linda experiência. Faziam partedesse projeto cinco bolsistas, a nossa temática era DST/AIDS e realizávamos oficinas empovoados, presídios e escolas da região, sobre este tema. Esse projeto abriu portas paranovas experiências e, hoje, participo do Programa Conexões de Saberes/UFAL, no qual souresponsável pela área de comunicação.

O programa não apenas trouxe benefícios materiais, mas, também, aumentou a minhaauto-estima, pois, todos os dias, deparo-me com os desafios propostos no Conexões e observoque sou capaz de produzir conhecimento, contribuindo, assim, para a melhoria de vida dascomunidades populares circunvizinhas à UFAL.

Foi através desse programa que me apaixonei pelo curso de Relações Públicas, pois jáexecuto atividades relacionadas à comunicação, produzindo boletins informativos, matériasrelacionadas ao programa e aos cinco projetos inseridos. Tive, ainda, a oportunidade de sermestra de cerimônia na aula inaugural do Pré-Vestibular Comunitário, entre outros.

Futuramente, pretendo exercer a minha profissão voltada para o bem social, pelo fatode pertencer à classe popular é meu dever contribuir para as melhorias de minha classe.Quero igualdade social e um futuro digno, não apenas para meus conhecidos, mas também,para as pessoas ociosas que vejo todos os dias no ônibus em que vou à faculdade - pessoassem expectativas de vida e de olhares vazios.

Sei que minha Caminhada está apenas começando.

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Universidade Federal de Alagoas 79

Agradeço: a Deus; aos meus amados pais, que sempre me deram muito amor e aoportunidade de realizar os meus desejos, na medida do possível; ao meu adorável irmão;ao meu amor Altanys; aos meus familiares e amigos, que sempre me apoiaram e torcem pormim em cada passo de meu caminho. Agradeço também, ao Joabson Santos que acreditouem meu potencial, no período em que fui sua bolsista no Projeto Comunicaids, sempreestimulando meu desenvolvimento intelectual e minha criatividade.

Sei, também, que tudo que consegui até o presente momento, vem desse fortealicerce - o amor de todos que me rodeiam.

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80 Caminhadas de universitários de origem popular

* Graduando em Agronomia na UFAL.

A inserção de estudantes de origem popular, que

se identificam com a sua história e com o seu povo

Rômel Duarte Vilela*

Caminhante, não há caminho; faz-secaminho ao andar.

Antonio Machado

Minha trajetória de vida, até a universidade pública, permite-me, hoje, analisar, deforma crítica, a diferença entre a escola privada e a escola pública, pois minha história,passa pelos dois extremos.

Nasci em Maceió, capital de Alagoas, no dia 06 de agosto de 1983. Filho de RonaldoVilela e Tereza Cristina Duarte, fui o último de três filhos. Irmão gêmeo de Rômulo, porém,cinco minutos mais novo que ele, e quatro anos mais novo que Rildo, o mais velho. Minhafamília sempre foi muito unida, e desde criança, meus pais sempre se preocuparam em medar uma boa educação.

Recordo que a primeira escola em que estudei foi o colégio Imaculada Conceição,mas minha mãe, dona Tereza Cristina me fala que antes de ir ao colégio, passei por umaoutra escola chamada Santa Rosa. Na época, com três ou quatro anos, não me lembravamuito bem das coisas, mas não esqueci que o Colégio Imaculada era uma escola de freiras,onde a educação era católica. Estudei lá pouco tempo. Em seguida, voltei à escola SantaRosa, juntamente, com meu irmão gêmeo Rômulo. Nós estudávamos sempre na mesmaclasse até o dia em que nos separaram de sala, já em outro colégio. Estudei na escola SantaRosa até a 1ª série do primário em 1991, depois fui estudar em um colégio chamadoAnchieta. Todas essas escolas eram particulares, e depois de seis anos no colégio Anchieta,voltei para o Santa Rosa em 1997, onde pude reencontrar vários amigos da época dojardim que, ainda, estavam lá.

Nessa época, meus pais já estavam com muitas dificuldades de nos manter numaescola particular. Afinal, eram três filhos, e nessas escolas, quanto mais aumentam a série,maior é a mensalidade. Este foi o motivo pelo qual saí do Anchieta: às mensalidades. A essaaltura, meus pais já estavam devendo o ano todo de mensalidades, por mim, pelo meu irmãoRômulo e pelo meu outro irmão mais velho, Rildo, que já havia saído, bem antes, paraestudar numa escola de ensino médio-técnico.

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Universidade Federal de Alagoas 81

Em 1997, de volta ao colégio Santa Rosa na 7ª série recordo que meus pais pagavam,ainda, de forma inadimplente e com muita dificuldade a escola. No decorrer do ano, quandoeu já estava no 3º bimestre, fui conversar com minha mãe sobre minha situação na escola,que não estava muito boa e disse a ela que eu poderia perder o ano.

Nessa época, em Alagoas, acontecia uma das maiores crises da história do Estado.Na gestão do governador Divaldo Suruagy aconteceu uma crise geral, em que todos ossetores e repartições públicas, declararam greve por sete meses de atraso na folha salarial.Inclusive, este, também, foi o principal motivo pelo qual minha mãe não pôde ajudarmeu pai com às mensalidades. Ainda hoje, minha mãe é funcionária pública de nívelmédio do Estado.

No final do ano de 1997, mais precisamente no mês de setembro, os professores darede pública, resolvem voltar ao trabalho e iniciarem o 3º bimestre, enquanto, no colégioSanta Rosa, eu já estava estudando o 4º bimestre e prestes a perder o ano. Foi daí que surgiua idéia de transferir-me para uma escola pública. No final de setembro, fui concluir a 7ª sériena escola pública de ensino fundamental, Professor Eduardo da Mota Trigueiros.

Mudar de uma escola privada para uma escola pública, em minha percepção enaquele momento, não era problema e nem teria diferença nenhuma. Muito pelo contrário,a escola era bem próxima de casa e eu podia acordar mais tarde, além de que as provaseram mais fáceis do que nas outras escolas onde havia estudado. Na época em que metransferi, vários colegas do colégio Santa Rosa que estavam em situação semelhante aminha, tanto financeiramente, quanto de notas nas provas, vieram depois. E isto, dealguma forma, ajudou muito em minha adaptação à nova escola. Infelizmente, naquelemomento, eu não percebia o quanto isso iria me prejudicar no futuro, principalmente,quando fosse prestar um vestibular.

Quando terminei a 7ª série, minha mãe disse a mim e a meu irmão gêmeo que iria nosmatricular, novamente, no Colégio Santa Rosa. Nós sabíamos das condições em casa e quese ela fizesse aquilo, continuaríamos com os problemas financeiros. Contudo, era fácilperceber a tristeza dos meus pais, principalmente do meu pai, por, naquele momento, não termais condições de nos manter numa escola privada. Assim, eu e meu irmão Rômulo, claroque contrariamente a nossa real opinião, dissemos que “a escola era boa, que estávamosgostando muito e que não queríamos voltar a estudar na escola privada”. A verdade é quefaltavam livros, professores que mudavam a todo o tempo e com eles a metodologia detrabalho, entre outras coisas. A estrutura física das escolas públicas, que são péssimas, erabem pior naquele tempo. Isto, sem falar de outro aspecto importantíssimo - o qual na época,eu não tinha a capacidade de perceber - que é a forma de como a escola reproduzia e passavapara os estudantes o modo de vida burguês. Modo de vida não condizente com a nossarealidade e não importava se éramos da cidade ou da zona rural, se éramos pobres ou ricos.A escola apenas nos educava para que fôssemos úteis à sociedade, sem considerar a etnia, acultura, valores e a aplicação era a mesma, para todos.

Atualmente, entendo porque colegas de infância - que brincavam comigo de jogarfutebol, bola de gude, de soltar pipa, pião e às demais brincadeiras da minha infância -desistiram da escola. Eles se sentiam excluídos dentro da escola, que reproduzia umarealidade que não era a deles, e hoje, alguns estão ou foram presos, morreram com acriminalidade e outros vivem nas drogas. A escola pública, e também, a escola privada,não passavam de um espaço de alienação.

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82 Caminhadas de universitários de origem popular

No Colégio Mota Trigueiros estudei, também, a 8ª série, e excepcionalmente, láconheci pessoas maravilhosas, como é o caso da professora de Português Fátima Mendonça,que se comportava de uma forma um tanto ditatorial, mas que se preocupava em passar umaboa educação. Também, do professor de Matemática Francisco, que era pastor e me deu umlivrinho do novo testamento, o qual guardo, até hoje. Exceções que se dedicavam, de formadiferenciada, dos demais professores.

A seguir, fui estudar o ensino médio num colégio público - extensão do MotaTrigueiros - chamado Theo Brandão. A situação lá piorou muito. Os professores,principalmente, de Matemática e Física, chegavam, geralmente, a partir do 2º semestre.Dessa forma, passaram-se os três anos do ensino médio. Recordo-me de pessoas queencontrei no Colégio Theo Brandão que, realmente, preocupavam-se em passar umamensagem de estímulo aos estudantes, como era o caso do professor de MatemáticaAntonio. No geral, poucos se importavam de verdade. Lembro que muito dos monitoreseram universitários, os quais, ainda hoje, encontro cursando a mesma faculdade na UFAL.Para muitos daqueles monitores, a escola era vista apenas como uma oportunidade deganhar dinheiro e não, como um instrumento de transformação social, onde o professordeveria desenvolver o pensamento crítico dos estudantes, mostrando o papel social decada indivíduo, enquanto cidadão.

Nessa mesma época, com quinze anos de idade, consegui o meu primeiro emprego efui trabalhar, de office boy, na Secretaria Estadual de Saúde. Uma experiência que me fezcrescer e amadurecer muito, como pessoa, e ter responsabilidades mais cedo.

Depois de três anos estudando no colégio Theo Brandão, concluí o ensino médio em2001 e posso dizer que não trago lembranças boas de lá. Mesmo com toda aquela deficiênciapara concorrer com outros milhares de estudantes de escolas privadas, prestei meu primeirovestibular para Zootecnia em 2002.

O vestibular da Universidade Federal de Alagoas é dividido em duas fases, e, nesse, eunão passei nem na primeira. Ao mesmo tempo, também, prestei uma prova para estudar naEscola Agrotécnica Federal de Satuba - EAFS para técnico em zootecnia e a prova era denível fundamental. Não consegui passar, também.

Depois de duas derrotas, fiquei um bom tempo em casa desestimulado e sem fazernada. Ficar em casa naquela época não era fácil. Eram vários problemas, pois eu moravae moro, ainda hoje, num apartamento muito pequeno. Juntamente comigo, moravammeus dois irmãos, minha tia Elma que é deficiente mental, minha mãe e meu pai. Naquelemomento, meu pai passava por diversos problemas de saúde, pois ele era dependentequímico do álcool. Precisando sair daquele ambiente, ocupar-me, e também, preparar-mepara o vestibular, conversei com meus pais e pedi para estudar num curso pré-vestibular.Matriculei-me no cursinho, e a partir de agosto de 2002, comecei a estudar para o vestibularda UFAL, novamente.

Acreditava que o cursinho ia retirar todo o atraso da escola pública, porém, sentimuita dificuldade pela rapidez com que os conteúdos eram repassados. Simultaneamente,vivia todo aquele problema em casa com meu pai, que ora se internava no hospital ounuma clínica psiquiátrica, ora ia para a UTI (por tantas vezes, que perdi a conta) equando saía, tornava logo a beber. Acho que não só eu, mas todos em casa adoecemosjuntos naquele momento. Depois de tanto sofrimento, meu pai faleceu no dia 02 dedezembro de 2002.

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Universidade Federal de Alagoas 83

Por tudo que havia acontecido e pelo grande amor que sinto pelo meu pai, aquilo tudome causou uma grande desestrutura psicológica. Pouco tempo antes de meu pai falecer, euhavia feito minha inscrição novamente para prestar a prova na escola agrícola. Novamente,inscrevi-me para fazer o curso técnico em Zootecnia. Uma semana depois do enterro do meupai, fui fazer a prova da Escola Agrotécnica e fui aprovado. Infelizmente ou felizmente, essafoi uma alegria a qual não pude compartilhar com ele.

Depois do resultado da aprovação na Escola Agrotécnica, em janeiro de 2003, fui,mais uma vez, prestar outra prova para o vestibular da UFAL, concorrendo para o curso deGeografia, bacharelado. Escolhi esse curso porque, no ano anterior, havia sido o menosconcorrido e, na verdade, eu queria “entrar” na universidade, independentemente da área.Fiz a prova e passei para a segunda fase do vestibular.

Foram três dias de provas na segunda fase, que é um processo desgastante e antiquado.Passada a segunda fase, tinha sido aprovado, porém, por critérios de desempate, eu nãofui classificado. Dessa vez, não havia problema, eu tinha passado na EAFS e não iaficar desocupado.

Ter estudado na escola agrícola, foi uma experiência decisiva para o meu futuro. Lá,tudo era maravilhoso, o contato com a natureza e com os animais. Era como voltar às origensde meus pais, o sítio de meu avô Lisanel. Mas nem tudo era fácil. Como diz a música de ZéRamalho “eram quatro condução, duas pra ir e duas pra voltar”. Ônibus e trem na ida e navolta. Viajar de trem, apesar de cansativo, até que tinha lá suas vantagens, pois era possívelapreciar o belo pôr do Sol na lagoa Mundaú, de volta para a casa.

No decorrer de 2003, mesmo estudando na EAFS, em julho, matriculei-me, novamente,no cursinho. Ia prestar vestibular para Agronomia. Com isso, minha rotina diária ficou maisdifícil, ainda. Eu estudava pela manhã, e à tarde na escola agrícola, e à noite, ia para ocursinho. Saía de casa 5 horas e 30 minutos da manhã e só retornava às 23 horas. Quandochegava em casa, ia estudar um pouco. Eu mal dormia naquela época.

Passa o ano e me inscrevo, também, para o vestibular da Universidade Federal Ruraldo Rio de Janeiro - UFRRJ para o curso de Agronomia. A experiência da escola agrotécnicafoi fundamental na minha tomada de decisão para Agronomia.

Em janeiro, juntamente com um grupo de estudantes, vou ao Crato no Ceará, prestar aprova para a Rural do Rio. Tínhamos que ir e voltar correndo, pois a prova da UFAL era namesma semana. Nesse ano, foram nove dias de provas no vestibular. Eu estava tentandotudo e acho que pela última vez. Não sei se agüentaria mais um outro vestibular. Fizemos asprovas no Crato e voltamos. Chegamos na sexta, descansamos no sábado e, no domingo, jáestávamos lá sentados na cadeira de novo, fazendo prova. O resultado do vestibular naUFRRJ é que mais uma vez não passei. Aqui na UFAL, passei para a segunda fase. Dessa vez,havia me esforçado um pouco mais nos estudos e, também, já estava há dois anos estudandoem cursinho. Fiz as provas da segunda fase e a expectativa, já de muito desânimo, era amesma: não ser classificado.

No dia do resultado, nem me lembro exatamente a data, mas uma sexta que choveubastante e, talvez, até tenha chovido porque passei, pois é como se diz, quando algo raroacontece, dizem que vai chover. Também, era o dia da abertura do carnaval de Maceió,fevereiro de 2004. E eu estava em casa com aquela ansiedade, aquele frio na barriga, quandomeu irmão Rômulo chegou e disse que eu havia passado no vestibular e ele não. Ele tinhavisto na Internet, mas não acreditei porque havia posto na cabeça que não ia passar. Mesmo

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84 Caminhadas de universitários de origem popular

assim, eu estava ouvindo o resultado no rádio. Foi quando saiu meu nome como classificadoem Agronomia. Nem sei que tipo de sentimento me tomou naquele momento. Algo que nãose compara a nada, já vivido antes. Enfim, entrei na universidade pública, depois de trêsfrustradas tentativas.

Interessante é que, no dia em que passei no vestibular, choveu muito e, no dia damatricula, choveu tanto, tanto que não dava nem para ver a estrada no caminho. Realmente,algo de muito difícil aconteceu. Um estudante de escola pública “entrou” na universidade.

A universidade foi para mim, desde o primeiro ano, tudo aquilo que a escolas de ensinofundamental e médio não conseguiram ser em toda a minha vida. Atribuo essa afirmação nãosomente à universidade, mas, principalmente, a todos os companheiros e companheiras quefiz na UFAL, especialmente, aos do Grupo Agroecológico Craibeiras, os quais me fizeramenxergar - de forma crítica - tudo aquilo que estava a minha volta. Perceber, ainda, o compromissoque devo ter com a sociedade, exercendo meu papel social dentro dela.

Assim que cheguei à universidade, percebi que ela é um espaço onde, também, existemlutas de classe, diversidade de pensamentos, ideologias, etnias e multidisciplinaridade, quegeram preconceitos, discriminação e exclusão de muitos, mesmo num lugar tão universo ediverso. Esse não é um problema que existe, somente, pelas diferenças que há dentro dela,mas por uma construção histórica que a universidade, ainda, não conseguiu reparar.

Diante de tanta ineficiência da universidade, nesse e em tantos outros aspectos, é quereconhecemos a importância de um projeto como o Programa Conexões de Saberes.

Ter visto todos aqueles estudantes reunidos no Rio de janeiro - no Encontro Nacional2006 - discutindo a entrada e a permanência de estudantes de origem popular na universidade,sua relação com o seu povo, sua cultura, sua própria identidade, levou-me a crer no que disseo caríssimo amigo e professor Nascimento: “Nós estamos começando a vivenciar uma revoluçãopacífica no Brasil. Uma revolução que não vem das armas, mas do povo, da força da educaçãodo povo”. Mesmo que não atinja, efetivamente, seu objetivo, sem dúvida estará desenvolvendouma preocupação e uma responsabilidade maior com os menos favorecidos, contribuindopara que a universidade cumpra seu papel social, através da inserção de estudantes de origempopular, que se identificam com a sua história e com o seu povo.

Ou os estudantes se identificam com o destino de seu povo, comele sofrendo a mesma luta, ou se dissociam do seu povo, e nessecaso serão aliados daqueles que exploram o povo.

Florestan Fernandes

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Universidade Federal de Alagoas 85

* Graduanda em Letras na UFAL.1 Siga adiante não olhes para trás! Nunca é tarde para recomeçar!Escolhi essa chamada, porque entendo que ela traduz o grito preso na garganta de todos nós Latino-Americanos.

Echa p’a lante y no mires p’a trás!

¡ Nunca es tarde para volver a empezar!1

Robélia Régia Alves Porfírio da Costa*

Decidi começar a contar os acontecimentos da minha vida pelo meio, isto é, contareio que me acontece, hoje. Tomei essa decisão por sentir que esta etapa é fundamental para ofirmamento e a escolha dos possíveis e muitos caminhos a trilhar.

Penso que cada pessoa tem muito mais além de objetivos e sonhos, pois existe algobem maior que nos impulsiona a chegar a um determinado lugar. Esse “algo” nos empurra enos faz descobrir, pouco a pouco, assim como na montagem de um quebra cabeças - umpedacinho a cada vez - a identidade mais íntima do nosso ser. No meu caso, refiro-me a algoque já não posso separar da minha existência: “El amor que siento por mi Latinoamérica”.Amor por suas gentes, suas línguas, pela batida do seu grande coração, que se escuta e ecoaatravés de suas manifestações culturais, de sua mescla rica de cores e raças herdadas dosnossos antepassados indígenas e africanos.

As pessoas me perguntam como surgiu o interesse pela língua e cultura dos países delíngua espanhola. Na verdade, esse interesse se desencadeou, assim, como começa um novoamor: de maneira arrebatadora, mesmo sem saber bem o momento correto. Esse fato foi detotal importância na escolha da minha carreira universitária.

Em 2000, quando cursava o 1º ano do Ensino Médio, decidi estudar Espanhol, por contaprópria, através do material que conseguia com as amigas que já haviam estudado esse idioma.Porém, chegou um momento em que senti a necessidade de ir mais além, compartilhar o queestava aprendendo com quem também estudava e começava a ter o contato extra gramatical,contato com o “input”, isto é, com os fatos lingüísticos da língua espanhola (contato real).

Por esse motivo, decidi solicitar uma bolsa de estudos em um instituto de idiomas,que me proporcionaria contato mais direto com a língua falada e a prática em conversação.Porém, a tentativa foi frustrante, pois a instituição alegou que não havia possibilidades deoferecer bolsas de estudo. Fiquei bastante decepcionada, pois, com minha ingenuidade,pensava que por já haver estudado a parte gramatical e até um pouco de pronúncia, além depossuir interesse e estímulos suficientes para a aquisição da língua espanhola, seria bemaceita nessa instituição educativa. Esse acontecimento, me fez mais forte e, a partir dessemomento, os estímulos e a vontade de estudar esse idioma aumentaram, ainda mais.

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86 Caminhadas de universitários de origem popular

O tempo foi passando e cheguei ao 3º ano do Ensino Médio. Nesse período,trabalhava como vendedora em uma loja de confecções com a carga horária de 9 horasdiárias. Quando saía do trabalho, ia à escola. Essa rotina me fez enxergar o ciclo viciosono qual estava entrando e a minha condição de proletariado. A partir disso, comecei asentir que não era isso que queria: terminar o ensino médio para continuar trabalhando,somente, para me manter naquele posto. Eu queria mais, sentia que se continuassenaquele caminho não iria sair daquele lugar: o de alguém que ignora o rumo dos própriosacontecimentos de alguém anestesiado pela dura realidade. Eu precisava de muito mais,de despertar.

Não demorou muito tempo, conheci uma pessoa que marcou esse momento: o professorde Geografia. Essa pessoa é, para mim, o bom exemplo de profissional, pois quandochegávamos à aula, cansados dos respectivos trabalhos, tínhamos uma injeção de ânimo donosso professor. Ele, igualmente cansado de um dia cheio de trabalho, chegava de muitobom humor na sala de aula e com toda garra de nos provocar a enxergar por outro viés, quenão fosse o de conformismo e apatia a qual já estávamos acostumados. Nessas aulas dasquartas-feiras, comecei a me dar conta da tremenda situação de injustiça com a qualconvivíamos, sem sequer sermos capazes de expressar indignação, diante da situação impostapela ditadura dos que possuem o poder. O nosso, professor conseguia nos atingir de maneirarealista, ou seja, ele era como um mosquito que nos picava, despertava-nos e nos mantinhaem “alerta”. Costumava pensar muito na realidade do povo brasileiro que se refletia naminha própria. O “quebra cabeças” começava a se formar quando, de repente, em um dessesestalos, decidi deixar o emprego e investir mais nos estudos.

Nessa época, morava com minha mãe, minha irmã e minha avó. As condições não eramas melhores, porém, optei por sacrificar o emprego para realizar meu objetivo: ingressar naUniversidade Federal de Alagoas e cursar Letras, com habilitação em língua espanhola.

Estudei bastante nos últimos três meses que antecediam o vestibular e, com muitoesforço, paguei dois meses de um cursinho pré-vestibular. O resultado vocês já sabem,passei na primeira e segunda fase do vestibular e consegui entrar na Universidade Federalde Alagoas. A felicidade foi indescritível. Enfim, iria estudar em um curso pelo qual estavaentusiasmada e um dia poderia ensinar língua espanhola. A realidade foi bem dura noprimeiro ano de curso, pois já entrei sem emprego.

Neste mesmo ano de 2003, minha irmã, também, passou no vestibular para o curso deCiências Biológicas. Nós estávamos na mesma situação e o que nos restava era conseguir,rapidamente, um meio de nos manter na universidade, algo que não conseguimos deimediato. As oportunidades eram escassas e, mesmo assim, eram destinadas a partir do 2ºano. Minha irmã consegue, a partir do segundo ano, uma bolsa de estudo para fazer umapesquisa e a situação melhora um pouco, porque ela começa a me ajudar com as despesas dauniversidade. Por minha vez, eu lutava para conseguir uma bolsa na universidade e a idéiade ter que trabalhar, novamente, nove horas por dia, não se adequava à minha vida acadêmica.Então, no 2° ano, consegui ingressar no Programa Institucional de Bolsas de IniciaçãoCientífica - PIBIC- CNPq, porém, ainda como colaboradora, isto é, sem direito à bolsa.Juntamente comigo, havia mais duas estudantes, das quais apenas uma delas recebia bolsa.Essa pesquisa, me amadureceu bastante no tocante à vida de pesquisadora e de participanteativa na construção do conhecimento. No segundo ano da pesquisa, finalmente, consegui abolsa que me manteve até o terceiro ano.

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Universidade Federal de Alagoas 87

No quarto ano, entrei no Programa Conexões de Saberes, que tão bem se ajustou àminha necessidade de poder contribuir com a comunidade, com os conhecimentos adquiridosno âmbito acadêmico e, também, aprender com o conhecimento popular, do qual não possome separar.

O Programa Conexões de Saberes está sendo muito proveitoso na minha vida social,pois estou podendo contribuir com a comunidade no sentido educacional. Não me sintouma mera reprodutora de pressupostos teóricos, porém, alguém capaz de provocar a sedepelo saber e, em contrapartida, recebo das pessoas o contato com o conhecimento de mundoadvindo de suas “leituras mundo”, proporcionando, desse modo, a união dos vários matizesdo conhecimento.

Hoje, tenho 23 anos e, além de participar do Programa Conexões de Saberes, faço umtrabalho, à parte, de difusão da cultura latino americana, através da instrução de aulas dedanças (salsa, merengue, cumbia etc...) e cultura dos países de língua espanhola.

Até agora, falei um pouco da minha trajetória e creio que os leitores, a essa altura, jásabem porque comecei pelo meio, isto é, meus sentimentos atuais têm relação direta com osrumos que minha vida tomou no passado. Se não fosse pelos fatos narrados acima, talvez,estivesse submersa em minha própria ignorância e apatia, quiçá estivesse, ainda, dormindoe me submetendo a um suposto “destino inevitável”. Entretanto, sem hesitar, digo-lhes que,hoje, sinto estar no caminho propício à descoberta gradativa do meu papel ante a sociedadee a mim mesma. Com muito orgulho, hoje, sou professora e falante de Língua Espanhola,cada dia com mais sede de conhecer cada cantinho da América Latina e suas gentes,totalmente, aberta para a eterna aprendizagem.

Gostaria de terminar essa parte da trajetória com uma citação de alguém que inspira econtagia, com seu ideal de unidade latino americana, a caminhada de Robélia Régia AlvesPorfírio da Costa.

El personaje que escribió esas notas morió al pisar de nuevo entierra Argentina […] Yo no soy yo, por lo menos no soy el mismoyo interior, ese vagar sin rumbo por nuestra “ MayúsculaAmérica” me ha cambiado más de lo que creí.

Che, in Notas de Viaje, em sua primeira viagem com AlbertoGranado pela América do sul.

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88 Caminhadas de universitários de origem popular

* Graduando em Filosofia na UFAL.

Força individual e estímulos advindos de pais

e professores

Luiz Carlos Santos de Oliveira*

Nasci na cidade de Maceió, Capital do Estado de Alagoas, no dia 24 de junho de 1983.Sou o quarto e último filho de Luiz Mariano de Oliveira, carregador, com Maria de FátimaSantos de Oliveira, costureira.

Estimulado por minha mãe, iniciei meus estudos aos dois anos de idade, em umaescola comunitária na Sede dos Caçadores, localizada no bairro da Chã da Jaqueira (bairroda periferia da cidade onde morei até ingressar na Universidade). Com muita insistênciae dificuldade, minha mãe consegue me matricular, aos quatro anos de idade, na EscolaEstadual João Paulo II, no mesmo bairro em que morava e de onde saí ao terminar a 2ªsérie do ensino fundamental.

Vendo a necessidade de encontrar uma escola com melhor organização, minha mãefaz minha matrícula, para cursar a 3ª série, na Escola Estadual Fernandes Lima, localizadano Centro da Cidade. Essa escola, na visão de minha mãe, poderia me proporcionar umamelhor aprendizagem (coisa difícil em uma instituição pública de ensino sem boas estruturas,mesmo sem negar o interesse de muitos professores, que se empenham em proporcionar umensino de qualidade, apesar da dificuldade com o baixo salário).

Porém, no mesmo ano (1991) em que comecei a estudar, dá-se início uma greve estaduale, após a greve, a escola inicia uma reforma sem previsão de retorno, causando a perda de umano letivo. Então, para não perder mais um ano letivo, minha mãe consegue me matricularna Escola Estadual José da Silva Titara (Instituto de Educação), pertencente ao ComplexoEducacional Antônio Gomes de Barros – CEAGB.

Na Escola Estadual José da Silva Titara foi despertado, em mim, o interesse pelas artese pelo esporte, pois a escola estimulava a prática do esporte e o estudo das artes. Estudeiapenas um ano nessa escola, pois terminada a reforma da Escola Fernandes Lima, retorneipara lá, a fim de concluir o ensino fundamental.

Na Escola Fernandes Lima, encontrei os professores que me ajudaram a ter umavisão ampla de conhecimento, além de me proporcionarem grandes oportunidades.Cabe salientar que, mesmo após a reforma, a escola não ofereceu uma boa estruturae, como na maioria das escolas públicas, não se tinha acesso a livros, pois a escolanão disponibilizava de biblioteca. Para ter um conhecimento, além dos livrosdistribuídos pelo MEC, muitos professores se empenhavam em fornecer livros eoutros materiais didáticos (apostilas, xerox etc.) para ampliar o conhecimento de

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Universidade Federal de Alagoas 89

seus alunos. Nessa escola, passei a ser representante de turma durante dois anos e aorganizar, com outros amigos, um grupo de teatro para concorrer, durante a semanado Meio Ambiente, em uma amostra teatral. Participei de forma efetiva dos jogosinternos da Escola e dos Campeonatos de Escolas Públicas, promovido pelaSecretaria Executiva de Educação.

No ano de 1993, minha mãe passa por uma cirurgia que a impossibilita de trabalhar,mas mesmo assim, ela utiliza suas economias para me ajudar a pagar as passagens. Assim,vi-me na obrigação de trabalhar, para ajudar minha mãe e continuar a estudar.

A partir daquele momento, passei a freqüentar um curso de serigrafia. Mas foi no anode 1996, que me inscrevi em um curso que transformou a minha vida. Apesar da poucaidade, fui aceito por um professor do Complexo Educacional Humberto Mendes, no cursode eletricidade e, nesse mesmo ano, passei a realizar alguns trabalhos, tanto no Complexo,quanto fora dele. Sempre recebendo o apoio e o incentivo do professor, que me dizia paranão abandonar os estudos em prol do trabalho.

Através desses trabalhos, no ano de 1999, inscrevi-me em um Projeto da Secretaria deAssistência Social e fui selecionado para trabalhar como office-boy na Secretaria Executivade Saúde. A partir daí, consegui ajudar minha mãe, apesar de receber pouco menos dametade de um salário-mínimo.

Como muitos jovens de origem popular eu, também, tinha minhas dificuldades, mascom persistência, nunca deixei de ir à escola. E foi assim, que no ano de 1998, aos 15 anosde idade, concluí, com estímulos por parte de professores, pais e amigos, o ensinofundamental. Nesse mesmo ano, concorri a uma vaga no Centro Federal de EnsinoTecnológico de Alagoas – CEFET/AL e, todavia, não fui aprovado.

A escola em que concluí o ensino fundamental, não tinha o ensino médio, então, fuiprocurar outra. Dessa forma, em 1999, prestes a completar 16 anos de idade e por minha mãeestar doente, comecei a procurar uma escola para me matricular. Negociei, então, com adireção da Escola Estadual Teotônio Vilela, localizada no Complexo Educacional AntônioGomes de Barros – CEAGB, minha matrícula na 1ª série do ensino médio e, como estavatrabalhando, passei a estudar à noite.

E é nesse meio de um grupo de alunos com idade superior, já fazendo parte de ummovimento social chamado Pastoral da Juventude do Meio Popular – PJMP e trabalhandoem um órgão público, que aumenta o meu interesse por discussões sobre política,acessibilidade ao ensino, direitos públicos etc.

No início do ano de 2000, a Escola deixa de oferecer o ensino médio e distribuios alunos pelas escolas do Complexo Educacional. Naquela ocasião, fui cursar a 2ªsérie do ensino médio na Escola Estadual Professora Laura Dantas, onde fiquei até ofinal da 3ª série.

Na Escola Laura Dantas, recebi um convite para participar do Conselho Escolar. Porfalta de tempo, não aceitei, mas participei e auxiliei nas discussões das reuniões doConselho, pois percebi a dificuldade dos alunos do turno noturno em adquiriremconhecimento, já que havia a carência de professores e aqueles que lá estavam nãodemonstravam empolgação na profissão que haviam escolhido. Muitas das discussõeseram a respeito de como melhorar a qualidade do ensino noturno, já que era sempre o maisprejudicado ao nível de conhecimento ofertado, pois, tanto alunos, quanto professores,estavam esgotados do trabalho durante o dia.

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90 Caminhadas de universitários de origem popular

No ano de 2001, cursando a 3ª série do ensino médio, pouco antes de completar 18 anos,passei a procurar um emprego, pois o projeto da Secretaria de Assistência Social dava direitode participação somente até os 18 anos. Mesmo sendo office-boy, adquiri conhecimentotécnico em algumas áreas públicas e isso me proporcionou, ao completar 18 anos de idade, acontratação pelo Colegiado dos Secretários Municipais de Saúde de Alagoas – COSEMS/AL.

Nesse mesmo ano, prestei o vestibular para a Universidade Federal de Alagoas – UFAL,concorrendo a uma vaga para o curso de Filosofia, em que fui aprovado.

De uma família de quatro irmãos, em que todos receberam incentivos e oportunidades,passo a ser o único que concluiu o ensino médio e que teve acesso a um curso superior. Apartir daí, começou uma nova fase em minha vida.

Ao entrar na Universidade, deparei-me com o abismo burocrático que é uma instituiçãopública. Mesmo assim, empolguei-me com o curso e passei a ter professores com visõespragmáticas, bem como, professores com visões expansivas. Percebi a precariedade dosserviços de transporte coletivo da cidade, pois o ônibus que pegava - para chegar àuniversidade e voltar para casa - passava, no mínimo, de hora em hora. Por isso, eu e outrosamigos acabávamos voltando para casa “a pé”. Presenciei muitas coisas como: greve, mausprofessores, bons professores, amigos etc. Mas nada deixou de me estimular.

Dentro da universidade não tive muitas oportunidades, pois tinha de trabalhar paragarantir minha permanência, presenciei vários projetos de ações afirmativas, mas aqueleque atraiu minha atenção e me inspirou foi o Programa Conexões de Saberes: diálogos entrea universidade as comunidades populares do qual faço parte. Ele se configura num programaque oportuniza aos alunos de origem popular, desenvolverem pela primeira vez na história,discussões e trabalhos sobre acesso e permanência na universidade. Desse modo, permite aeles a chance de serem transformadores não só de sua realidade, mas também, de outra.

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Universidade Federal de Alagoas 91

* Graduanda em Geografia na UFAL.

A vida teimava em dizer não, mas ousei dizer sim

Simone Pereira dos Santos*

Nasci há vinte e quatro anos, na pequena cidade do interior de Pernambuco, chamadaGaranhuns, no dia 07 de agosto de 1982. A quinta dos seis filhos do pedreiro Paulo Pereirados Santos e da dona-de-casa Ivanilda Ferreira dos Santos.

Meu pai, homem simples e humilde, não teve oportunidade de estudar quando jovem,pois precisou trabalhar muito cedo devido às necessidades de sua família. Quando casoucom minha mãe, a única coisa que possuía era uma casinha no sítio, dada pelos meus avós,tendo que buscar o sustento de sua nova família no trabalho da lavoura. Restavam-lhepoucas alternativas para o estudo, já que morava num sítio longe da cidade,conseqüentemente, longe de qualquer escola. Tudo o que ele sabe, hoje, e com muitadificuldade é assinar o nome, graças ao seu próprio empenho.

Minha mãe, mulher, também, muito simples que morava em um sítio chamado lagoaseca, freqüentou a escola o suficiente, apenas para aprender a ler e a escrever. Não continuoua estudar, porque, em sua época, era normal uma menina abandonar os estudos para trabalharna roça. Ao se casar com meu pai, morou muito tempo no sítio e tiveram três filhos, com umintervalo de um ano de diferença de um para o outro. Délio foi o primogênito, logo depoisvieram Célia e Dirceu. Depois de 10 anos de casados, a situação no sítio não era das melhorese não dava mais para sustentar as três crianças, somente com a venda de verduras na feira.Eles resolveram, então, ir morar na cidade.

Meu pai aprendeu a trabalhar como pedreiro e minha mãe continuou vendendo verdurasna feira. Mesmo com todas as dificuldades, conseguiram manter o sustento da família.Morando na cidade, tiveram mais três filhos: Selma, eu e a caçula Paula Renata.

Em 1988, aos seis anos de idade, iniciei a minha vida escolar na Escola MunicipalAldebar Jurema. Minhas maiores lembranças, dessa fase pré-escolar, é que eu sempre estavaarrumando confusão com meus coleguinhas, para que todos voltassem à atenção para mimsuprindo, assim, o que me faltava em casa, pois, em meio a tantos filhos, não tinha umaatenção especial.

O ano de 1989 foi muito marcante em minha vida. Nessa época, eu fazia a 1ª série naEscola São José. Era um ano eleitoral. Partidos da esquerda e direita, tentavam chegar àPresidência da República. Meu pai, era fanático pelo partido da direita e minha irmã Célia,uma jovem petista revolucionária. Ambos viviam na maior rivalidade dentro de casa, masessa rivalidade culminou numa tragédia: minha irmã foi espancada na rua, sob os olhares de

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92 Caminhadas de universitários de origem popular

todos que por ali passavam e acabou saindo de casa. A pressão e os falatórios foram muitograndes e, logo em seguida, resolvemos mudar para o Estado de Alagoas, tanto pelas pressões,como pelas dificuldades financeiras que enfrentávamos, já que a cidade por ser pequena,não dispunha de trabalho para meu pai.

Em 1991, minha irmã resolveu aparecer de surpresa em nossa casa e a família voltou aser o que era antes, sendo as mágoas esquecidas. Esse ano foi muito bom.

Já em Maceió, eu e minhas irmãs estudávamos na Escola Pompeu Sarmento, situadano bairro Barro Duro. Nessa escola, cursei a primeira e a segunda série e, por motivosfinanceiros, tivemos que sair do Barro Duro para o bairro Santa Lúcia, onde fomos estudarna escola Donizette Calheiros, que se situava a dois quilômetros da minha casa.

Devido à distância e já cursando a quinta série, conseguimos a transferência para aescola Irene Garrido. Lá, despertei o interesse por lecionar, tendo como exemplo os meusprofessores, mas devido as minhas condições financeiras, essa realidade estava muitodistante, pois cursar uma faculdade, parecia impossível, naquele momento.

Quando terminei o primeiro grau, não tive alternativa para continuar meus estudos, anão ser ter que estudar em uma escola longe do meu bairro, já que neste não existiam escolasde segundo grau.

Sem dinheiro para pagar a passagem, comecei a trabalhar ajudando amigos em afazeresdomésticos. Dessa forma, consegui estudar no Colégio Liceu Alagoano. Lá, conhecendo ahistória da escola e da sua importância na formação de muitos cidadãos alagoanos, comeceia pensar, junto com meus amigos, sobre a possibilidade de ingressar na universidade.

Era um sonho que me parecia inalcançável, devido à falta de preparo das escolaspúblicas, incapazes de oferecer um estudo de qualidade suficiente que desse condições, aoaluno da rede pública, de ingressar na universidade. Mesmo a escola sendo gratuita e tendosua inscrição aberta a todos da rede, está permeada de uma má qualidade de ensino, sejapelas greves, seja pelas condições sociais ou mesmo pelo despreparo dos professores,impossibilitando o acesso desses alunos à universidade.

Nos anos de 2002 e 2003, fiz um cursinho pré-vestibular para preencher as lacunasdeixadas pela escola. No primeiro ano, percebi que pouco sabia e que teria muito a aprender.Sempre chegava ao cursinho muito cansada devido ao trabalho e, muitas vezes, com fome,pois não tinha dinheiro para fazer um lanche à noite. Não raramente, eu e meus colegas decursinho repartíamos o lanche e, apesar das dificuldades, tudo era motivo de festa.

No final desse primeiro ano não passei. Foi decepcionante, mas tinha que continuar.Dessa vez, com mais dedicação e com mais base. No segundo ano de cursinho, estávamostodos lá - o mesmo grupo, novamente, tentando na mesma realidade do anterior - ajudando-nos,mutuamente. Mesmo com pouco dinheiro ou quase nada, resolvi pagar matérias isoladas naárea de exatas. Com muito esforço, fomos bem sucedidos, eu e à maioria do nosso grupo.

A minha escolha pelo curso de Geografia se deu pela possibilidade de trabalhar oespaço como meio de interação, as responsabilidades sociais e ecológicas, entre outros.

Ao ingressar na universidade, tive a certeza de que, realmente, era o que eu buscava,ou seja, uma realização minha e a da minha família, pois fui a primeira, de toda a família, aentrar na universidade.

Ainda me faltava algo: o desejo de lecionar, ainda, não havia sido alcançado.Quando soube do Programa Conexões de Saberes, vislumbrei nele a possibilidade

de realizar esse desejo, há tanto esperado. Pensei o quanto poderia contribuir com o

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social, oferecendo aos alunos, que sonham com a possibilidade de ingressar nauniversidade, uma oportunidade.

Sei da dificuldade, que um aluno de escola pública e de baixa condição financeira,enfrenta para realizar este sonho. Hoje, vejo no Programa Conexões de Saberes aconcretização dos meus e dos sonhos daqueles que, como eu, muitas vezes, a vida disse não,mas que ousaram dizer sim.

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94 Caminhadas de universitários de origem popular

De volta ao Nordeste

* Graduando em Medicina na UFAL.

Rodrigo César Carvalho Moraes*

Nasci em Orós, cidade do interior do Ceará. Quando eu tinha dois anos de idade,minha mãe, minha irmã e eu nos mudamos para São Paulo. Passamos a residir com meu tio(José) e alternamos alguns momentos em que moramos sozinhos.

Sempre estudei em escolas públicas e, durante o primeiro ano do ensino médio,passei a estudar no período noturno, para poder trabalhar. No início, comecei apenas com“bicos”, como o de vendedor de saco de lixo.

Em 1999, comecei a trabalhar como Office-boy. Foi uma época muito boa, conhecivários lugares do Estado de São Paulo.

Na escola, não posso dizer que adquiri um conhecimento completo, pois, ao menosno turno da noite, os professores sempre nos avaliavam com trabalhos. Lembro bem denunca ter estudado sobre nenhum fato histórico e nunca tivemos aula de Inglês (pelomenos nunca avançamos o verbo “to be”), mas não culpo, somente, aos professores e aescola, pois os alunos, também, não colaboravam. Pensávamos que quanto menor acobrança, melhor para nós, porque poderíamos terminar o ensino médio mais fácil, mesmosem aprender quase nada.

Conheci o Ceará sempre de férias e, por gostar tanto, decidi ir morar em Fortaleza.Pensei que, com o dinheiro do meu seguro desemprego, poderia me dar ao luxo de mededicar, somente, aos estudos, sem precisar trabalhar.

Assim, foram os meus primeiros anos no Nordeste. Havia planejado um prazo de cincoanos para passar no vestibular de Medicina. Caso não conseguisse, tentaria outro curso ou,então, voltaria a trabalhar, contanto que não saísse do Nordeste.

Nem tudo saiu como planejei: o dinheiro não durou tanto e as dificuldades foramsurgindo. No entanto, minha família foi participando da minha história, cada vez mais.

Comecei, em março de 2000, estudando em casa com umas apostilas que ganhei deum primo. No final do mês de maio, consegui uma vaga em um cursinho pré-vestibular naUniversidade Federal do Ceará (UFC), só para alunos que terminaram o ensino médio emescolas públicas. O único problema é que, nessa época, eu morava no município de Aquirás,com outro tio (Francisco), a esposa (Josefa) e os filhos deles. O que iria gastar para chegar, dosítio onde morava ao campus da UFC, perfazia, mais ou menos, R$ 12,00 por dia. Este fato,praticamente, impossibilitava a minha ida até a UFC, mesmo recebendo o seguro desemprego(desse jeito eu iria à falência).

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Universidade Federal de Alagoas 95

Então, tive uma brilhante idéia: minha tia (Arimar) permitia que eu dormisse na casadela em Messejana (a uns 11 quilômetros do sítio) e, de lá, eu gastaria no máximo R$ 4,00, pordia, para chegar ao campus da UFC. Comprei, então, uma bicicleta e passei a pedalar 22 kmpor dia - 11 km, à tarde, quando saía para Messejana e de lá para a UFC e 11 km, pela manhã,para voltar ao sítio.

Quando eu já estava me empolgando no ciclismo, meu primo Nilo me chamou paramorar com ele e a família, uma vez que eles residiam próximo ao campus (só precisaria deum ônibus). Não pensei muito e aceitei a proposta. Não passei muito tempo no pré-vestibularda UFC, pois, comecei um cursinho, desde seu início, no centro de Fortaleza.

Perdi meu primeiro vestibular, mas não me abati, pois era o primeiro ano e eu, ainda,tinha quatro anos, segundo minha meta.

Nilo mudou-se para Juazeiro do Norte e me chamou para continuar morando com ele.Aceitei e comecei mais um ano de preparação. Fiz um horário e tentei segui-lo, com o maiorrigor possível. Avancei muito em meus conhecimentos, mas perdi, novamente.

No meu terceiro ano de preparação, mudei para outro Estado e fui para Maceió-AL,morar com outro primo Eduardo (Duda). Morávamos, Duda, sua esposa e eu. Estava animado,achava-me preparado para passar, mas infelizmente, não consegui chegar ao ensinosuperior naquele ano. Não foi por falta de tentativa, pois prestara o vestibular em seteinstituições diferentes.

Continuei em Maceió e, no quarto ano de preparação, já estava um pouco desanimado.Mesmo assim, preparei-me mais ainda, estudando em um cursinho, desde o início do ano, econsegui minha aprovação na Universidade Federal de Alagoas (UFAL).

Essas foram algumas das dificuldades que enfrentei para chegar ao ensino superior,principalmente, porque não tive um ensino básico de qualidade. Acho que, enquanto nãofor resolvida essa situação da má qualidade do ensino público, não solucionaremos osproblemas da educação no Brasil.

Consegui alcançar meus objetivos graças a minha família, a qual sempre me ajudou,seja financeiramente (já que meu seguro desemprego durou apenas quatro meses), seja meapoiando e dando forças para seguir em frente, a cada reprovação no vestibular.

Agradeço a minha Tia Socorro Martins, aos meus primos e suas esposas: Nilo, Eduardo,Junior, Cláudia; aos meus tios e tias: Francisco e Josefa, Arimar, Aureni, José e agradeço,especialmente, à minha irmã e minha mãe.

Graças a todas essas pessoas, citadas acima, e, outras que não citei, consegui minhaaprovação e estou me mantendo na Universidade.

Hoje, faço parte do Programa Conexões de Saberes, que me proporcionou uma grandeajuda para permanecer na Universidade, pois, com ele, obtive uma vaga no restauranteuniversitário (diminuindo às despesas com alimentação), além da ajuda financeira.

Participo do projeto Fitoterapia Popular, onde tentamos manter uma ligação entre acomunidade e a universidade. O Programa Conexões de Saberes não somente, nos ajuda apermanecer no ensino superior, mas também, nos proporciona aquisição de conhecimentoscom as capacitações e com os objetivos de cada projeto. Dá-nos, ainda, a chance de fazermosalgo pelas pessoas que passam por dificuldades, ainda maiores que as nossas, para alcançaro ensino superior com o pré-vestibular e o pré-supletivo. Por isso, deixo meu agradecimentoao Conexões e ao grupo que participou e participa desse Programa.

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96 Caminhadas de universitários de origem popular

* Graduando em Física na UFAL.

O filho de Adézio e Janete

Rangel Florentino Bomfim*

Nasci em Arapiraca, no dia primeiro de junho de 1984. Tenho dois irmãos: um maisvelho, Rafael e um mais novo, Raniel. Meu pai é José Adézio e minha mãe, Maria Janete.Meu pai é de Arapiraca e minha mãe de Viçosa, mas na época em que eles se conheceram,minha mãe estava morando em Arapiraca com a minha bisavó e eles se casaram lá mesmo.Um ano depois do meu nascimento, fomos morar em Viçosa no sítio Boa Vista. Minha mãecomeçou a trabalhar, como professora, e meu pai, na roça, onde continuou negociando nasfeiras com frutas, batata, inhame e macaxeira.

Tive meus primeiros contatos com o estudo, por volta dos meus quatro anos, na escolaem que minha mãe ensinava. Quando tinha cinco anos, fomos morar na cidade, numa casado mutirão. Um ano depois, eu e meu irmão mais novo, fomos matriculados no pré-escolardo Grupo Escolar 13 de Outubro, um pouco longe da casa em que nós morávamos. No anoseguinte, quando eu estava na primeira série, houve uma greve nas escolas estaduais, quenão chegou a comprometer o ano, porém, a greve do ano seguinte, me fez perder um ano etive que repetir a segunda série. Na terceira série, fui reprovado e transferido para a EscolaMunicipal Cônego Severiano Jatobá. Isso fez com que eu ficasse mais interessado epreocupado com os estudos. Quando terminei a quarta série, fui para o Colégio NormalJoaquim Diegues e, como é um colégio estadual, todo mundo tinha receio de estudar porcausa das greves. No meu primeiro dia no Colégio Normal, senti a diferença, pois era tudonovo, inclusive um professor para cada matéria, situação a qual não estava acostumado.Diante de tantas novidades, a minha primeira nota em matemática foi 2,0 (dois), mas tivecalma, estudei, me recuperei e não tive mais notas baixas, a não ser em Português, disciplinada qual nunca gostei.

Eu não tive uma criação muito agitada. Estudava, ajudava meu pai nas feiras, jogavafutebol, porém, aconteceram algumas coisas comigo, no mínimo engraçadas: quando tinhaoito anos, a professora levou feijões para fazer uma dinâmica e eu coloquei um caroço noouvido e não disse nada a ninguém. Às vezes incomodava, mas só vim tirá-lo onze anosdepois, quando meu ouvido passou a doer com mais freqüência. Outra vez, quando jogavabola, em frente a minha casa, com o meu irmão, a bola caiu em cima da casa, subi no telhadopara pegá-la de volta e, então o telhado desabou e desabei junto com ele. Felizmente, nãoaconteceu nada de grave comigo, a não ser alguns arranhões pelo corpo. Outro dia, estavanum sítio de um amigo, subi na mangueira para pegar algumas mangas e fui até o topo da

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Universidade Federal de Alagoas 97

árvore. Meus amigos viram umas mangas na ponta dos galhos e disseram “balança, balança”.Comecei a balançar até que avistei uma casa de abelha e elas começaram a me picar por todoo corpo. Desci, rápida e desesperadamente, enquanto meus amigos riam de mim.

Continuando a minha história acadêmica, cursei o ensino fundamental e, no final daoitava série, eu prestei o exame de seleção para estudar no CEFET-AL, onde fui reprovado!Fiquei muito triste. Comecei o ensino médio e, no final do primeiro ano, prestei, novamente,o exame de seleção para o CEFET-AL, sendo reprovado! Fiz também o PSS 1 (ProcessoSeletivo Seriado), primeira fase do vestibular da UFAL e tirei a maior nota do colégio. Nosegundo ano, comecei a dar aulas de reforço para meus colegas, porém, não pensava em serprofessor. No ano seguinte no PSS 2, tirei a maior nota da cidade. Chegando ao terceiro ano,estava em dúvida sobre para qual curso prestar o vestibular Sabia, somente, que seria umcurso na área de exatas e, com o incentivo de um amigo e de alguns professores, optei emfazer Física. Passei na primeira, na segunda fase e, na sexta-feira de carnaval, o resultadofinal saiu. Fui aprovado!

Como meu curso é diurno, fui morar em Satuba-AL. Ficava indo e vindo todos os diase, então, escrevi-me para morar na Residência Universitária Alagoana. Fui selecionado e,hoje, moro lá. Morando na residência, almoçando no Restaurante Universitário e com abolsa do Programa Conexões de Saberes, diria que a universidade está me oferecendo todasas condições para que eu conclua meu curso.

Sei que, ainda, existe um longo caminho a percorrer, mas se cheguei até aqui, devoagradecer aos meus pais que sempre se preocuparam com a minha educação, e aos meusamigos, que sempre me incentivaram.

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