117
5/27/2018 UmGnomoNaMinhaHorta-WilsonRocha.pdf-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/um-gnomo-na-minha-horta-wilson-rochapdf 1/117

Um Gnomo Na Minha Horta - Wilson Rocha.pdf

Embed Size (px)

Citation preview

  • Wilson Rocha

    UM GNOMO NA MINHA HORTA

    Srie Vaga-Lume

    TEXTO Editor:

    Fernando Paixo Assessora editorial:

    Carmen Lcia Campos Preparao dos originais:

    Ruth Kluska Rosa Reviso:

    Dirceu A. Scali Jnior Suplemento de trabalho: Antnio Carlos Olivieri

    ARTE Editor:

    Ary A. Normanha Capa e ilustraes:

    Lcia Brando Diagramao e arte-final:

    Fukuko Saito Antnio Ubirajara

    Paginao em vdeo: Neide Hiromi Toyota

    Composio: Maria Ins Rodrigues

    Editora tica, 1994

    E-BOOK: Digitalizao: SCS

  • UM ESCRITOR ENVOLVIDO COM A FANTASIA

    Wilson Rocha um carioca de mltiplas atividades: advogado, autor e diretor teatral, roteirista cinematogrfico e roteirista e diretor de televiso. Sua carreira comeou cedo, quando montava peas na escola e na universidade. Pouco depois foi descoberto e contratado pela TV Globo, na dcada de 60, quando a televiso se firmava no Brasil. Por isso, pode ser considerado um dos homens que criou e incentivou a linguagem televisiva no pas.

    "E estive quase sempre envolvido com todos os tipos de fantasia, escrevendo alm de livros infanto-juvenis episdios do Stio do pica-pau amarelo, especiais para a tev, jogos e brincadeiras para programas infantis", conta o escritor.

    Em 1987, publicou na Srie Vaga-Lume Os passageiros do futuro, livro que alcanou enorme sucesso em todo o Brasil. E agora ele vem com uma histria diferente, que tem muito de filme. Por que ele escolheu o tema dos gnomos, se diz que um homem avesso a misticismos? "No sei", responde com franqueza. "Talvez porque trabalho com o Mrio Meirelles, um dos grandes talentos da nova gerao da tev, que acredita em cristais, no destino, em gnomos. Ou ser que os prprios duendes me atraram para este divertido trabalho em sua homenagem?"

    Considerado especialista em comunicao infantil, Wilson Rocha desenvolveu tambm projetos para adultos, como as novelas Seu Quequ e Olhai os lrios do campo, alm de documentrios para vdeo, cinema e tev. Trabalhos esses "todos escritos com grande prazer", ele confessa e acrescenta: "o mesmo prazer que espero proporcionem ao leitor as incrveis aventuras do gnomo Casca de Btula".

    AO VERDADEIRO JOO FILIPE, QUE MEU MAIS NOVO CAMINHO

    PARA O FUTURO.

    VIVER MUITO COMPLICADO, E FELICIDADE

    NO PERCEBER ISSO. W. R.

  • I

    Um raio morno de luz entrava pela minha janelinha, quando acordei. Devo ter sido a primeira pessoa, a bordo, a perceber que o avio acabara de varar a noite, e alcanava as manhs do oeste.

    Nas outras poltronas do Boeing, os demais passageiros ainda dormiam, e ningum parecia notar que j amos comear a sobrevoar o territrio brasileiro, aps a travessia do Atlntico. Entre eles, o homem gordo, roncando a meu lado. Antes de adormecer, ele tinha sido muito simptico, e conversado comigo durante boa parte da viagem. A aeromoa chegou a pensar que ele era meu pai.

    Seu filho vai querer refrigerante? ela perguntara ao meu vizinho, na hora em que serviram o jantar.

    Ele achou muita graa.

    Eu podia mesmo ter um filho do seu tamanho. Quantos anos voc tem?

    Doze! respondi.

    Idade linda! Foi a melhor fase da minha vida!

    Da por diante, deu de contar uma poro de proezas do seu tempo de menino. S parou quando comearam a exibir o filme.

    Adoro filmes de ao, e voc?

    Eu disse que sim, pensando que ele ia continuar com a conversa, mas felizmente no foi assim. Na metade do filme, ele j estava com os olhos fechados, e, pouco depois, eu tambm no soube de mais nada.

    Agora que estvamos chegando, faltando pouco mais de uma hora, resolvi contar um pouco sobre mim. No que ele tivesse perguntado, mas que eu precisava, de algum jeito, disfarar minha aflio.

    E que aflio!

    Meu nome Joo Filipe (com i), e estudei um ano na Inglaterra, em casa de uma tia que est morando l com o marido. Meus pais so brasileiros, e nossa casa em Petrpolis. Antes era no Rio, mas eu soube por carta que eles precisaram mudar. Estou viajando sozinho, mas eles vo estar me esperando no Galeo.

  • Foi o melhor resumo que encontrei, para dar uma satisfao ao homem gordo, e ele tambm no perguntou mais nada. S comentou:

    Petrpolis um encanto de cidade. Eu tenho uma casa de campo l perto, em Araras, conhece? Adoro mato, floresta, vegetao.

    Eu tambm!

    Ah, se ele soubesse como! Mas evitei lhe contar as aventuras que vivi na Holanda, naquelas frias com tia Alzira. No poderia falar as coisas pela metade. Corria o risco de me distrair e revelar... aquilo!

    Quando pensei nisso, a aflio voltou!

    Pela milsima vez, ergui os olhos para o porta-bagagem l em cima. Como estariam as coisas ali? Bem, eu tinha feito o possvel para a comissria me deixar levar a mochila sobre os joelhos. Era s uma mochilazinha, no pesava nada. Mas ela insistiu em guardar no porta-bagagem, e se eu discutisse muito talvez ela me obrigasse a abrir a mochila, para revistar. E a?

    De novo a aflio! Quando iria acabar? Eu j achava que nunca!

    Eu tinha arranjado um problema para o resto da vida. A menos que eu voltasse Holanda, para lev-lo. E, mesmo assim, ser que ele concordaria em me abandonar?

    Por que eu fora atender a vontade dele?

    Bem, felizmente ele tinha ficado quieto durante a viagem. Quieto demais! Embora, num dado momento, eu tivesse ouvido algo como um canto de pssaro.

    Pssaros no avio? dissera meu vizinho.

    O homem gordo tambm ouvira aquilo! Mas s eu sabia o que era.

    Que bom se eu conseguisse deixar de me preocupar! Pelo menos at chegarmos em casa. Consolei-me com o fato de, pelo menos, ele ter se comportado bem durante o vo, alis como prometera.

    S quero ver como so as florestas do seu pas! ele dissera. E no tive outro jeito seno acreditar.

  • Agora, que estvamos quase aterrissando, minhas preocupaes voltavam: "Duvido muito que ele no v aprontar das suas!".

    No vou perder tempo, aqui, descrevendo a chegada, o pouso, o desembarque, o encontro com meus pais que esperavam l do outro lado das vidraas, enquanto liberavam minha bagagem.

    Foram abraos sem fim, cheios de saudade, e algumas lgrimas de alegria. O Brasil, afinal, e um dos seus principais produtos: a emoo familiar. Havia outras pessoas parentes e amigos contentes em me ver, dizendo que eu estava crescido. Ainda tive tempo de fugir deles, e ir me despedir do homem gordo. Estava tambm rodeado de gente, mas apertou minha mo, e me deu um carto de visitas.

    A tem meu endereo em Araras! disse. V at l, conhecer a casa!

    Do aeroporto, papai e mame me levaram direto para Petrpolis. Em todo o trajeto, eu no larguei minha mochila, nem por um segundo.

    Afinal, dentro dela, eu trazia um gnomo.

    II

    Bem, essa a situao. Deu pra entender? disse meu pai, ainda naquela tarde, sentado escrivaninha, em seu pequeno escritrio.

    Estava tendo comigo uma daquelas conversas de homem-pra-homem, a que meu pai j me habituara desde pequeno.

    S que, agora, no esperou que eu esquentasse lugar. O papo foi logo depois do almoo.

    Eu tinha adorado a casa nova, que mame foi logo mostrando, mal descemos do carro. Papai, enquanto isso, descarregava as minhas malas (menos a mochila, que essa eu no larguei). Achei meu quarto um barato. Ele ficava numa quina, de onde se viam o jardim e o quintal. Isso era uma novidade para mim, que sempre morara em apartamentos.

    O escritrio de papai era o maior charme. Ficava assim no alto, numa espcie de torre isolada no meio do telhado, que ele chamava de gua-furtada. Foi ali que ele se fechou comigo para a tal conversa, enquanto fazamos a digesto.

  • Primeiro, ele fez uma fita, perguntando sobre a Inglaterra, meus estudos e passeios por l. Mas eu vi que ele estava mesmo era a fim de abrir o jogo sobre outra coisa. Dei fora:

    Conta a, pai. O que est havendo?

    No precisou mais. Ele explicou o motivo por que tinham se mudado. A vida no Rio estava cara para eles. E piorou quando papai ficou sem contrato na televiso. J estava h quase quatro meses sem trabalho. Chegaram a pensar em vender o apartamento, mas resolveram que isso s em caso de desespero. Preferiram alugar, provisoriamente, e pagar um outro aluguel mais barato por aquela casinha meio modesta em Petrpolis, at as coisas melhorarem.

    Mas, papai, como foi isso? Voc escreve to bem!

    E eu no sei? disse ele, vaidoso. Mas a questo no essa. H sempre outros querendo fazer o mesmo que voc, disputando o seu lugar. Para entrar um novo escritor, outro espirra. Eu espirrei!

    Mas voc no tinha tantos amigos l?

    Antes de mais nada, h poucas emissoras de tev, voc sabe. Alm disso, televiso no clube, um negcio. E se voc tem amigos, os outros escritores tambm tm. Quem fica com o lugar aquele que tem amigos mais poderosos, e que acham que ele melhor para o negcio! Entendeu?

    Se voc est dizendo...

    Ele parou de falar, e ficou me olhando. Percebi que ele sofria. Papai tinha muito talento, e j havia escrito histrias timas, de muito sucesso. At um filme de cinema. E trs livros. Mame dizia que, se ele morasse nos Estados Unidos, estaria rico, com as novelas e minissries que criava. Eu no achava justo o que estava acontecendo com ele.

    E quando voc vai conseguir trabalhar de novo? Vai ficar sempre sem emprego? perguntei.

    Claro que no! Bem... acho que no! Estou com vrios projetos prontos, e outros comeados. Algumas histrias so geniais. Tenho um livro juvenil prontinho para sair, mas voc sabe que livros do pouco dinheiro disse ele, andando de um lado para outro.

    Aqui no Brasil, no ? No cinema, a gente v que os escritores americanos ficam ricos, e moram em casa com piscina.

    Papai sorriu, melanclico: a velha teoria de mame, que infelizmente no adiantava nada.

  • O fato que ns moramos aqui. neste pas que precisamos sobreviver, comer, vestir. Precisamos pagar a casa, o mdico. Precisamos pagar seus estudos. Um escritor, nos Estados Unidos, se inventar um E.T. torna-se milionrio da noite para o dia. Aqui, voc pode ter mil E.Ts., e no acontece nada.

    E se tiver um gnomo?

    S ento me lembrei que ainda no havia esvaziado a mochila, e ela estava ali a meu lado. Aberta. Casca de Btula tinha, provavelmente, ouvido toda a nossa conversa.

    Levei a mochila para meu quarto, tirei tudo de dentro dela, sacudi-a de boca para baixo, e nem sinal do gnomo. J deveria estar dando uma volta de reconhecimento, pelas redondezas.

    Entre as quinquilharias cadas, l estava, chamando ateno, o carto do meu vizinho de assento, no avio.

    Embaixo do nome, um ttulo: superintendente-geral. Geral de qu? Num canto, uma espcie de antena desenhada em relevo, e as letras T e V. Televiso! Fiquei de perguntar depois a meu pai se por acaso conhecia o cara, mas depois que guardei o carto esqueci o assunto. Que garoto dessa idade no esqueceria?

    Agora estava era preocupado com Casca de Btula.

    III

    Metade de minha alegria, que eu tinha trazido da Europa, esfriou depois daquele papo com papai.

    Nem tive jeito de contar tudo o que acontecera naquele ano em que estivera fora. Fui dizendo uma coisa ou outra aos pedaos, nos dias seguintes. Enquanto esperava a poca para mame me matricular numa escola, aproveitei para conhecer as redondezas. Antes de explorar o bairro, quis ver direitinho a casa.

    Lgico que nem me passara pela cabea falar a respeito de Casca de Btula. Os gnomos rolam de rir, quando algum faz isso depois de ver um deles, pois ningum acredita. Se na Europa eu nunca me atrevi a contar, o que diria aqui.

    Alm disso, Casca de Btula estava sumido. No estranhei, porque j estava habituado a essa mania de desaparecer. Coisa de gnomo. No mnimo, j estava fazendo das dele, investigando, descobrindo, conhecendo, querendo conversar e ajudar os bichos que devia haver por ali.

  • Claro que Petrpolis no era como a Holanda, nem feito a Inglaterra. Eu avisara, mas Casca de Btula, cheio de curiosidade, no perdeu a chance de entrar nessa aventura e vir descobrir o Brasil. Viajar dentro de uma mochila no era nenhum problema para um gnomo.

    Mas onde andaria agora?

    Eu no conseguia esquec-lo um s minuto. E algum poderia? Um gnominho maravilhoso daqueles...

    De repente, um dia, papai berrou no escritrio:

    Quem andou mexendo nos meus papis?

    Papai quase enlouquecia quando algum tocava na mesa dele. Jurei que no tinha sido eu, mas j desconfiando de quem poderia ser. Casca de Btula estava em ao outra vez!

    S no entendi a razo desse sbito interesse por leituras. Na Holanda e na Inglaterra, dentro de casa ele s mexia em coisas de cozinha, ou ferramentas. S tirava do lugar objetos de uso domstico ou pessoal como cachimbos, almofadas, relgios, caixas de fsforos, tesouras ou luvas. No campo, coisas ligadas ao trato da terra ou do gado. Nada, porm, to intelectual. Ento me lembrei que nem tia Alzira, nem o marido dela eram escritores. No havia, tambm, qualquer literato num raio de cem quilmetros.

    Mas agora ali estava meu pai, disposio. Com sua papelada, seus roteiros, suas novelas.

    Eu estava escrevendo um show! explicou nervoso, tentando pr a papelada em ordem. Um sujeito, meu conhecido, vai produzir um musical, e perguntou se eu poderia escrev-lo. Como estamos precisando de grana, topei na hora. Mas veja esta baguna! Nem sei mais o que fazer. Acho que vou desistir!

    Desistir? disse mame, entrando para ajudar. Um escritor de talento que nem voc?

    Mas no para shows! Voc sabe que nunca escrevi um, em toda a minha vida. Essa ia ser minha primeira experincia no gnero. E se no desse certo...

    Se no desse certo o qu? eu quis saber.

    A eu ia ter mesmo de vender queijo! completou papai, usando uma velha piada que costumava dizer nos bons tempos, mas que soava amarga, agora nos maus. Ou sua me ia pintar camisetas para vender!

  • No seria nada demais! H muita gente fazendo isso, para ajudar o marido disse mame, ajoelhada no cho, organizando os papis. Alm disso, j estou comeando a colher hortalias, l no quintal.

    Triste fim de um escritor. Vender alface! resmungou papai.

    No desonra nenhuma rebateu mame. Embora eu tenha a certeza de que este show vai dar certo.

    S por mgica ou milagre! disse papai.

    Logo que os papis foram recolhidos, ele se sentou escrivaninha para conferi-los. Eu e mame ficamos ali, em silncio, esperando o resultado.

    No entendemos por que, em vez de se acalmar, papai foi se desesperando enquanto lia. De repente, teve um acesso de fria:

    Que droga essa? Eu no escrevi essas coisas! Quanta bobagem! e comeou a rasgar tudo. Precisava ser um burro, para ter criado isso!

    E, no resto do dia, no falou mais nada com a gente. Ficou trancado no escritrio, talvez tentando reiniciar o trabalho, desde o comeo. Eu e minha me tivemos de almoar e jantar sozinhos. Ela no fazia a mnima idia do que realmente acontecera. Eu sim!

    Na hora de dormir, quando fui para o quarto, eu j sabia o que devia fazer, e adivinhava o que iria acontecer. Tinha sido assim tambm na Holanda, quando sumiram os culos de meu tio. Mal tranquei a porta, fui logo dizendo em alto e bom som:

    Casca, eu sei que voc est a! Aparea! Vamos ter uma conversinha!

    Nem terminei de falar, e l estava ele em cima da cama, sobre o lenol.

    IV

    Hum, como isso cheirozinho! disse ele, com aquela vozinha sempre cheia de musicalidade e simpatia.

    No quero saber do cheiro do lenol, Casca. Estou interessado no que voc fez com os papis de papai!

    Falei em portugus, porque os gnomos entendem todas as lnguas igualmente.

  • Ah... aquilo!

    Sim! Aquilo!

    Ele levantou o nariz rosado, olhando o teto.

    No podemos falar de outras coisas?

    Fui duro:

    Outras coisas no, Casca. Temos de resolver primeiro esse assunto! Por que voc bagunou os papis de papai?

    Isso era um prato para um gozador como Casca de Btula.

    Papis-de-papai, papai-de-papis, papiz-de-papuz, papipas-popis rimou ele, terminando com uma sonora gargalhada.

    No achei graa nenhuma!

    Ele me olhou com aqueles olhos azuis de anjo, cheio de pena.

    Por que voc est to zangado, Joo Filipe?

    Respirei fundo, para me controlar, antes de comear a falar. Isso necessrio, quando se deseja argumentar com um gnomo. Eles sempre j sabem o que se quer dizer, mas fingem que no, para que a gente se canse explicando, e mude de opinio. Eles so assim, o que se vai fazer?

    Casca, eu no sei por onde voc andou, desde que chegamos, mas tenho a certeza de que est muito bem informado dos problemas do meu pai. Sabe que ele perdeu o emprego de escritor naquela televiso, e ainda no arranjou nenhum outro. Sabe ou no sabe?

    Sei! disse ele, desinteressado, dando uma cambalhota no lenol, e depois outra e mais outra, at chegar ao travesseiro.

    E sabe que, por isso, estamos tendo dificuldades com dinheiro, e que papai est se esforando para vender o material. Sabe ou no sabe?

    Sei! respondeu, de ccoras sobre o travesseiro, tentando furar a fronha com o dedo. Viu minha cara feia, e desistiu.

    E sabe tambm que prometeu no aprontar das suas, quando chegasse ao Brasil. Prometeu ou no prometeu?

    Prometi! Prometi e cumpri! No aprontei nada quando cheguei ao Brasil. S no dia seguinte!

    Casca de Btula podia botar qualquer um maluco, se quisesse. Gritei:

  • Era pra no aprontar dia nenhum, Casca! E desa j da, e me oua!

    Pequenininho, ele escalara a cabeceira da cama, e agora andava se equilibrando l em cima. Tentei peg-lo, mas ningum bota a mo num gnomo quando ele no quer. Num salto fenomenal, mergulhou de volta ao travesseiro, onde se estatelou e ficou de barriga para baixo, fingindo-se de morto. Sabendo que o travesseiro era macio, no dei confiana (o nico jeito de os gnomos, que so muito prosas, perderem o rebolado). E continuei:

    Voc foi muito mau com meu pai, Casca. Aquele trabalho dele era muito importante. Levou semanas preparando, esforando-se para acertar. E voc foi l e bagunou tudo. Nunca pensei que voc fosse capaz de dar prejuzo a algum. Estou muito triste, Casca!

    Ele ento virou-se, e ficou de p.

    Eu tambm! disse, com as mozinhas rechonchudas na cintura, olhando-me de frente.

    Bem... Pelo menos voc se arrepende!

    No estou triste de aborrecimento, no. Estou magoado com seu pai. Nunca pensei que algum pudesse ser to mal-agradecido!

    Mal-agradecido?! Por que voc escreveu uma poro de bobagens no trabalho dele? Casca, voc estragou o que ele j havia feito!

    Voc quem diz que estraguei. Por mim, melhorei!

    Melhorou?!! eu j no entendia mais nada.

    Claro, e o incompetente ainda me chamou de burro! Aquilo me pisou nos calos.

    Meu pai no incompetente!

    Ele mesmo confessou que ! Disse que no sabia escrever um musical! E aquilo que andava fazendo era mesmo uma porcaria! Algum precisava mostrar a ele como se faz!

    Mas, em todas as outras coisas, papai timo: filme, livro, teatro, comerciais, novelas e seriados de televiso... um excelente roteirista! Ningum vai ensinar pra ele como ser escritor!

    A menos que seja um gnomo-contador-de-histrias!

    Durante minha estada na Europa, eu tivera um raro privilgio, raramente concedido a um simples mortal: conhecer os gnomos. E conhec-los, eu diria, profundamente! Talvez eu fosse um

  • predestinado, tivesse alguns predicados especiais, que justificassem que eles me dessem a honra de conhec-los de perto, e ficar muito amigo de um deles. Mesmo assim, em toda a minha convivncia com eles, eu jamais ouvira falar que existisse algo chamado... gnomo-contador-de-histrias.

    Por isso, perguntei:

    E o que um gnomo-contador-de-histrias?

    Fiquei esperando que ele me olhasse como se eu fosse um ignorante, e que fizesse um ar de comiserao ou impacincia. Mas os gnomos so sempre surpreendentes. Ele que pareceu encabulado por eu no saber.

    No diga! Eu nunca lhe expliquei? Que imperdovel distrao a minha. Eu devia ter dito a voc, desde o incio, que eu sou um gnomo-contador-de-histrias! a minha especialidade!

    E ficou ali, ruborizado, esperando que eu aplaudisse.

    V

    Eu havia me esquecido que alguns tipos de gnomos tm, de fato, uma especialidade. Mas j tinha visto Casca de Btula fazer tanta coisa, que nunca me preocupei em lhe perguntar se tinha alguma. J o acompanhara, na Holanda, no meio da neve, vendo-o livrar de armadilhas coelhos e outros animaizinhos. Vi-o curar vacas doentes, e at ajudar uma gua a dar luz. Muito gil, uma vez descera ao fundo de um poo, para pegar um balde cuja corda rebentara. Muito hbil carpinteiro, construra em dois dias, ajudado por outros gnomos, toda a moblia de uma pobre velhinha, que a perdera numa inundao.

    Tambm fizera para mim uma pequena flauta, que nunca aprendi a tocar. Mas ele o fazia maravilhosamente. Por isso, arrisquei:

    Pensei que sua especialidade fosse a msica!

    Msica? ele riu, com modstia. Nem chego aos ps do meu primo Semente de Bordo. Ele, sim, voc precisava ouvir: um autntico gnomo-criador-de-harmonias. Colaborou muito com o jovem sr. Wolfgang, no incio da carreira dele. Como voc sabe, depois o sr. Wolfgang continuou sozinho, tornando-se imortal compositor. O primo Plo de Gamo, por sua vez, era um magnfico gnomo-arrumador-de-notas-musicais, de quem o sr. Ludwig gostava

  • muito, pedindo-lhe muitos conselhos. Foi de grande ajuda no incio de sua carreira!

    Epa! disse eu, que estudara um pouco de teoria musical na Inglaterra. Voc no vai querer me dizer que esse Wolfgang e esse Ludwig eram...

    Ele pareceu no me ouvir. Seu olhar passava por cima do meu ombro, fixando-se em algum ponto por trs de mim. Eu ia perguntar o que havia, quando ele me interrompeu, levando o dedo indicador aos lbios:

    Psssh!

    E desapareceu por baixo do travesseiro. No mesmo instante, senti um imperceptvel rangido, e voltei-me a tempo de ver a porta se abrir lentamente, e meu pai entrar.

    Joo Filipe, voc ainda est acordado?

    Meu pai trazia uma pasta de cartolina, embaixo do brao.

    Meu filho, eu queria lhe mostrar uma coisa, para saber o que voc acha! falou mansinho, e eu senti que sua alma estava em paz outra vez.

    Sentou-se na beira da cama, ao meu lado, e soltou o elstico da pasta. Dentro, folhas de papel, na maioria emendadas com fita durex.

    Tive o trabalho de juntar os pedaos, e colar novamente as pginas que rasguei disse. E resolvi ler tudo de novo. No sei por que fiz isso! Mas, afinal, passei a tarde lendo e relendo, entrei pela noite adentro, e cheguei a uma concluso: isto timo, filho!

    No pude conter um olhar na direo do travesseiro, embora no fundo soubesse que Casca de Btula no estava mais l. Meu pai continuou:

    Antes de vir aqui falar com voc, disse o mesmo sua me! E ela no entendeu bulufas! Alis, nem eu! Gostaria de saber como essa maravilha aconteceu! Eu tenho a certeza de que no escrevi, e no entanto sou o autor do melhor show que j vi!

    Fiquei olhando para a cara dele, para aquele sorriso meio bobo de quem viu disco voador, e no sabe se acredita ou no. Provoquei:

    No foi voc mesmo que escreveu?

    No! Isso , no sei! S pode ter sido eu, mas no me lembro. Acontece que, no meu estado normal, eu no teria coragem de escrever tanta tolice!

  • Se tolice, como est dizendo que bom?

    Meu pai segurou no meu ombro, e olhou para cima, como tentando encontrar a melhor maneira de me explicar.

    Porque uma tolice genial. Alguma energia estranha deve ter me inspirado. Ajudou-me a criar uma coisa nova, que eu nunca havia experimentado, diferente de tudo o que fiz at agora. Eu sempre fui muito intelectual, filho. E nisso aqui consegui ser... popular!

    Papai estava embriagado de vaidade.

    Eu vim aqui te pedir desculpas daquele escndalo, filho. E te dizer que agora estou muito feliz. Amanh bem cedo vou levar tudo isso ao Queiroz o meu amigo produtor , e tenho a certeza de que ele vai adorar. Obrigado, Filipo!

    Beijou-me e saiu, levando a pasta de volta. Acabou no me mostrando nada, e eu fiquei sem dizer o que achava. Casca de Btula enlouquecia qualquer um.

    J bastante preocupado com a sanidade mental de meu pai, resolvi deitar-me, sem chamar o gnomo novamente.

    Ele, no entanto, no poderia passar sem essa.

    Mal me estiquei, debaixo do cobertor, com a barriga para cima, ele surgiu l na cabeceira.

    Entendeu agora por que eu sou um gnomo-contador-de-histrias!?

    VI

    No dia seguinte, ao caf, mame comentou o caso:

    No sei por que seu pai precisou fazer toda aquela cena. A mim, poderia ter contado a verdade!

    Que verdade?

    Que foi ele, desde o incio, que escreveu o show daquele jeito! Fingir a raiva, rasgar os papis... Envergonhar-se de qu, afinal? De tentar facilitar as coisas, de pelo menos uma vez na vida escrever bobagens, mediocridades?

    Papai disse que tinha conseguido ser popular!

    No fundo, foi o que ele sempre quis. Mas voc sabe: tem mania de ser intelectual, de imitar aqueles que ele considera grandes

  • escritores, gente complicada que freqenta bares da moda, que sai em colunas de jornal... No mnimo, gostaria de pertencer Academia Brasileira de Letras.

    Eu acho que ele queria mesmo era ganhar bem, e nunca perder o emprego.

    J seria uma grande coisa. Mas a crise de seu pai j acabaria se ele fosse, de fato, famoso! Voc quer mais caf?

    Enquanto mame pegava minha xcara, para ench-la de novo, ele apareceu. Eu o vi montadinho no espaldar da cadeira vazia, minha frente o meu bom amigo Casca de Btula, que me pareceu muito interessado no que minha me estava dizendo. Imprevisvel como sempre, logo aboletou-se junto ao bule de leite, encostando-se junto ao calorzinho dele. Seu gorro pontudo, vermelho, combinava com o xadrez da toalha, e sua barba branca, com as demais brancuras da loua.

    Apesar de estar habituado com essas aparies, exclusivas para mim, eu no conseguia entender como minha me no o via. Ela continuou:

    Voc leu o show, ou ele leu pra voc?

    No!

    Pois eu li! Fiz questo de ler! E olhe: eu j tinha lido todos os outros trabalhos de seu pai, que achava timos, muito interessantes, enredos sensacionais que prendiam a gente do princpio ao fim, mas este... muito engraado! Para falar a verdade, nem parece coisa de seu pai!

    Por qu?

    Nesse ele se soltou! Revelou-se uma pessoa mais sensvel, mais alegre, mais bem-humorada e de paz com a vida. Capaz de entender seu semelhante. Capaz de distribuir amor. O autor daquele show s pode ser algum fascinante!

    No pude deixar de perceber o sorriso largo no rosto de Casca de Btula, o vaidoso.

    E eu, com isso, tive uma outra satisfao! concluiu minha me. O de rever, depois de muito tempo, o rapaz que eu namorei. Seu pai voltava a ser a pessoa que me dizia coisas bobas, e por isso mesmo maravilhosas. Lendo aquele musical, senti renascer minha paixo pelo autor!

    Mal ela disse isso, ouvi um pequeno estrondo. Casca de Btula tinha cado de cima da mesa.

  • Estou doida para que seu pai volte logo, e conte o que aconteceu disse ela, j tirando a mesa, e quase pisando no gnomo. Ele bem podia telefonar, para nos dizer. Ser que deu tudo certo, l com o produtor?

    Na verdade, ainda no tnhamos telefone naquela casa. As chamadas eram feitas para a casa da vizinha, que nos dava os recados. Ficamos, por algum tempo, de orelha em p espera, mas papai no ligava mesmo. Muito ansiosos, e para nos distrairmos um pouco, resolvemos mexer na horta.

    Que delcia! Mergulhamos a mo na terra como se fssemos lavradores profissionais, embora mame confessasse:

    Eu planto, planto, mas essa horta no rende como eu queria. No tenho sorte! Ser que a terra ruim, ou sou eu que no sei plantar?

    Nesse momento, o telefone tocou na casa ao lado, e ns ouvimos perfeitamente a vizinha atender. Era papai. Corremos os dois, para sabermos das novidades, e ele s disse isso:

    Deu tudo certo! Melhor do que eu esperava! Eu conto quando chegar.

    Felizes da vida, voltamos horta, onde uma desagradvel surpresa nos esperava: toda a terra estava revirada, e nosso trabalho, desfeito.

    Algum gato, ou gamb, passou por aqui! disse mame, desconsolada.

    Mas eu sabia que aquilo no era coisa nem de gato, nem de gamb. Era uma travessura de Casca de Btula, que outra vez me devia explicaes.

    VII

    Horta no interessa agora! disse papai alegrssimo, e mame resolveu nem falar mais naquilo. O Queiroz adorou!

    Ento, vai querer o show? Vai produzir?

    Ligou imediatamente para o patrocinador, que ficou doido pra ler e resolver!

    Ah, ainda falta uma opinio?

  • Uma s, no! Vrias. Faz parte do negcio! Mas, se o Queiroz gostou, por que os outros no vo gostar?

    Disseram quando vo te pagar? mame insistiu.

    Querida, isso no o mais importante agora!

    Claro que ! A gente no paga o supermercado com elogios ao que voc faz! Se ele te encomendou, e voc escreveu o show, no tem nada para discutir: tem de pagar! E quanto ?

    Nem perguntei!

    Mame quase teve um troo.

    Nem perguntou?!

    Claro, isso no foi o principal na conversa!

    E papai, antes que mame desse uma bronca, contou o que ele chamava de "o principal da conversa": um convite para escrever uma novela.

    Eu estava l, o Queiroz entusiasmadssimo pelo musical, j pensando nos comediantes e cantores que iria escalar para o espetculo, mandando chamar o melhor cengrafo, e at figurinista, quando telefonaram da televiso! O Ladislau sumiu!

    Que Ladislau?

    Que Ladislau voc conhece? disse papai, j irritado.

    No sei! S se for o Ladislau de...

    esse!

    Ladislau de Souza havia s um. Pelo menos, s um famoso. O mais conhecido autor de novelas do momento. Ladislau (aqui um nome suposto, usado por questes de segurana) costumava escrever uma histria atrs da outra, sendo bem pago por isso. Pelo fato de produzir tanto, Ladislau se tornava repetitivo, mas diziam que era isso que o pblico queria: estar sempre assistindo novelas parecidas. Quanto mais Ladislau enriquecia, mais a imaginao do povo se empobrecia.

    Esse problema, no entanto, no parecia preocupar ningum, e no havia autor que no sonhasse estar no lugar de Ladislau.

    Mas como foi que o Ladislau sumiu?

    Ningum sabe! Mas esto todos desesperados, l na televiso, porque ele j tinha comeado a nova novela, e agora ficaram sem nenhuma!

    E a novela que ele comeou?

  • Sumiu com o Ladislau!

    Estranho!

    Estranho nada! timo!

    Como timo? Uma pessoa some, e voc no tem pena?

    Pena por qu, se me encomendaram uma histria?

    Deviam estar desesperados mesmo, l na televiso. Depois de mandarem meu pai embora, de magoarem tanto o coitado, agora lhe encomendavam uma novela? No entendi logo, mas papai explicou: na pressa em que estavam, queriam receber propostas. Quem tivesse uma boa histria para substituir a do Ladislau, que mandasse.

    claro que eu vou mandar! disse papai, orgulhoso.

    Mas voc no tem nem uma histria nova! Todas que apresentou, eles j recusaram! Como tem tanta certeza de que agora vai ser aprovado? perguntou mame, com a mesma cara de desespero que fez quando encontrou a horta destruda.

    Esse o meu drama! respondeu papai, chateado.

    No ter certeza de ser aprovado?

    No ter uma histria nova!

    Mal papai disse isso, eu comecei a ouvir batidinhas de mquina de escrever, l em cima no escritrio. S eu percebi, e isso foi como um banho de alvio no meu corao. Meu pai iria ter sua novela!

    Mesmo assim, Casca de Btula no perderia por esperar. Continuava merecendo um bom pito por ter estragado a horta.

    VIII

    Mas quem disse que recebeu o pito? Na manh seguinte, de um dia que seria cheio de extraordinrias surpresas, mame teve a primeira delas. No quintal.

    Nem acredito! Milagre!

    Corri para l, e vi com os meus olhos: folhas verdes de todos os tipos, brotando na terra, prometendo verduras e legumes daqueles que mame tanto queria. Tinham crescido noite, regadas pela garoazinha fina que molha a serra.

    Mame ria sozinha, andando de l para c, examinando o carreiro de cada espcie, contabilizando e catalogando.

  • Tem de tudo! Devem ser aquelas sementes novas, de pacotinho! Bem que recomendaram, mas eu no acreditei!

    Pacotinho nada. Obra de Casca de Btula, que sempre fora mestre no assunto, usando magia e, talvez, as minhocas certas. Eu tinha visto ele fazer igual, l em Londres, nos canteirinhos de minha tia. Mas onde se espalhava mesmo era na Holanda, onde eu o conheci, saindo de sua casinha debaixo da rvore grande.

    Lembrei-me de Fibra de Linho, a encantadora companheirinha dele. Como estaria ela? Saudosa? E Casca de Btula, o grande malandro, teria se esquecido de sua mulher gnomo holandesa?

    Tive minhas dvidas, quando o vi sentadinho embaixo de um cogumelo junto ao muro, deslumbrado com a alegria de mame. No rosto, alm do sorriso vaidoso pelo feito realizado, Casca de Btula trazia outra expresso: a da mais profunda admirao por ela.

    Estvamos comemorando, ainda, o "milagre", quando a segunda surpresa do dia aconteceu.

    Um barulho de pratos quebrados veio l de dentro, ferindo nossos ouvidos habituados ao silncio das manhs na serra. E no parou por a: objetos continuaram a desabar pela casa, em mistura a gargalhadas de papai.

    Que foi? Que foi? e mame correu desesperada at l, mas, antes que chegasse, meu pai j saa porta afora, descabelado e de pijama, com um p de chinelo e outro sem, a prpria figura da loucura furiosa. Nas mos, folhas de papel ofcio, amassadas, e totalmente em branco.

    Ningum teve coragem de chegar perto. Mame perguntou:

    Mas o que foi isso, querido?

    Quebrei a loua da vov! No agentei! e deu mais um risinho.

    Mas por qu, meu amor? insistiu mame, bem esposa de escritor temperamental.

    E quebrei outras coisas tambm! Mas de pouco valor!

    Ele tinha parado de rir. Como se estivesse muito cansado, sentou-se na beira do caramancho. Seu olhar perdeu-se na horta, e eu pensei que ele fosse ver Casca de Btula, que continuava junto ao cogumelo, olhando curioso.

    Estava tudo em branco! continuou, soltando um suspiro profundo.

  • O que estava em branco? a fui eu que perguntei.

    Os papis que eu deixei junto mquina de escrever, antes de adormecer! Quando acordei, continuavam todos l, no mesmo lugar, intactos.

    Eu e mame nos entreolhamos, sem entender absolutamente nada. Mas ele explicou:

    Lembram-se do que aconteceu com o show? Bem, o show eu tambm achei que no ia saber escrever, e depois encontrei tudo l, direitinho, uma beleza de show!

    Sei! aparteou mame, mas na verdade no sabia nada.

    Vocs no percebem? Eu escrevi o show sem perceber que estava escrevendo, talvez durante um sonho ou coisa parecida. Uma inspirao que me veio num momento especial, provavelmente no meio do sono.

    Voc sonmbulo, querido? Eu no tinha conhecimento disso!

    Olhei para Casca de Btula, pensando que ele estava morrendo de rir. E estava. Papai continuou:

    Sonmbulo ou no sonmbulo, eu no ia deixar de tentar que isso acontecesse outra vez. Estou precisando de uma boa histria, para oferecer na televiso. Por isso, resolvi deixar os papis junto mquina, e dormir ali ao lado. Quem sabe, de manh, a histria iria estar l, prontinha?

    E no estava?

    Sem responder, papai enterrou a cabea nos joelhos, e ergueu as folhas-ofcio, soltando-as por entre os dedos, at carem, uma a uma, no cho do quintal.

    Minha grande oportunidade de conseguir um contrato. Voltar televiso. E eu no tenho uma histria. Uma historinha boba, por mais tola que seja. O Ladislau faz aos montes. Por que eu no consigo?

    Mame sentou-se ao lado dele, carinhosa, afagando-lhe os cabelos. Uma atitude que a gente v muito no cinema, mas pouco nos casais de hoje.

    Voc est estressado, querido. Logo vai melhorar. No conseguiu hoje, mas amanh consegue... Eu no acreditava mais na minha horta, e olha s o que aconteceu. Venha ver! e levantou-se com ele, para mostrar.

  • Papai no tinha uma histria, hein? Pois isso no ia ficar assim. Por que eu tinha trazido da Europa um gnomo-contador-de-histrias?

    Mas onde se meteu esse Casca de Btula? Procurei, e ele j no estava mais junto ao cogumelo (alis, gnomo nenhum fica mais de dez minutos no mesmo lugar).

    Ia deixar meu pai e minha me se afastarem, para cham-lo, quando aconteceu a terceira surpresa do dia: Ouvi uma vozinha dizer, de cima do muro do vizinho:

    Garoto!

    No era Casca de Btula. Era uma menininha.

    IX

    E era uma menininha linda, da minha idade. Lembrava as mais bonitinhas que eu tinha conhecido na Europa, e ficado amigo delas.

    Aquela, nem esperou, e foi dizendo:

    Meu nome Patrcia! E o seu?

    Joo Filipe! Com i! Que foi que seu pai fez? Quebrou as coisas todas?

    Todas, no! Poucas! respondi, j achando aquela garota um pouco metida.

    Foi por causa do gnomo?

    Eu achei que no tinha ouvido aquilo. Por essa eu no esperava. Gnomo? Quando ela falou em gnomo, foi como se eu tivesse levado um choque, que me deixou paralisado.

    Se assustou? Por qu? Pensa que eu no sei? disse ela, com um ar de ironia e superioridade, sentada sobre o muro, e j com as pernas para o lado do nosso quintal. Ele j esteve aqui em casa!

    Quem esteve em sua casa? tentei disfarar.

    No se faa de inocente! O gnomo! Ele tratou da minha tartaruguinha, que andava meio doente, com dor de barriga!

    Uma tartaruguinha! Uma tartaruguinha e uma menininha! Duas coisas irresistveis para um gnomo dos Pases Baixos, onde eu o conheci, naquela tarde em que eu recolhi a lebre ferida no meio da neve. Agora, Casca de Btula prestara servios na casa vizinha.

  • Os gnomos no podem ver um animal sofrer! Eu j tinha lido isso num livro, e agora aconteceu aqui em casa!

    ! Eles tm pena, mesmo! So amigos de todos os animais! Esse a, ento, cansei de ver socorrendo renas, hamsters, pssaros, ratos do campo, at uma raposa. E isso s no ms em que eu conheci ele!

    Ele me contou! disse ela, orgulhosa. Sei de toda a histria de vocs dois: que voc estava na Inglaterra, foi de frias Holanda, e ele veio com voc, na mochila!

    Depois, gostou tanto de mim, que insistiu em vir conhecer o Brasil! conclu.

    Hum, prosa! debochou Patrcia. Ele pode at ter gostado de voc! Mas veio mais por curiosidade de ver terras diferentes. O que ele est gostando, mesmo, da sua me!

    Essa foi a quarta grande e chocante surpresa em pouco menos de duas horas, e quase no agentei. Em dois saltos, subi no depsito de lixo, segurei numa ripa que apoiava o varal de roupa, e me pendurei a uma prateleira de vasos que acompanhava parte do muro. Cheguei juntinho da menina, e falei quase grudado ao rosto dela:

    Como que ?!

    Isso mesmo que voc ouviu! Casca de Btula est apaixonado por sua me!

    T brincando!

    Estou no! O que voc acha dessa horta, que ele fez pra ela, durante a noite?

    Os gnomos gostam de ajudar!

    Pode ser! Mas Casca de Btula me confessou que acha sua me uma mulher maravilhosa! O que isso, seno paixo?

    Ora, voc anda vendo muita novela!

    Falar nisso, seu pai mesmo escritor de novela?

    No muda de assunto! exigi.

    O que voc quer que eu diga mais? Seu gnomo me contou o que eu j disse, e ponto final!

    Ele no pode estar falando srio. L na Holanda, ele tem uma companheira, do tamanho dele, esperando por ele, chamada Fibra de Linho! Os gnomos no enganam as mulheres deles!

  • E quem falou em enganar? Voc no entende nada de amor! Se Casca de Btula se apaixonou por sua me, apaixonou e pronto. No quer dizer que v passar disso. No ouviu falar em amor platnico?

    Ai, essas garotas espevitadas do meu tempo! Mame sempre contou que, no tempo dela, as meninas eram de um jeito muito diferente, mais calminhas e at bobas. Nem sabiam o que era namoro. Ser que era assim mesmo?

    T bom! No ouvi! O que ? disse eu, mas s para ver se ela sabia.

    gostar sem esperar que o outro goste tambm, porque sabe que no pode! Mas no proibido gostar, ?

    Isso coisa de sua cabea! No acredito em nada disso!

    Claro, meninas que so romnticas. Garotos s querem saber de vdeo-game! Seno, voc j teria percebido os olhares de Casca de Btula, quando sua me aparece. Tudo comeou quando ela elogiou no sei o qu, que ele escreveu!

    Protestei:

    Epa! Mas ela elogiou foi meu pai. No sabia que Casca de Btula que tinha escrito aquilo!

    E contei, em rpidas palavras, toda a aventura do gnomo-escritor-fantasma.

    Mas agora eu preciso dar uma dura nele, porque, j que ele comeou, tem de terminar. No pode deixar meu pai sem a histria de que ele precisa! terminei, no exato momento em que uma voz de mulher, l na casa de Patrcia, chamava por ela.

    Minha me! Depois a gente conversa! Tchau! disse Patrcia, descendo do muro, e desaparecendo por trs dele.

    Antes que eu pudesse chamar de novo por ela, senti que me puxavam pela bainha da cala jeans. Olhei, e vi Casca de Btula, mais vermelhinho que nunca, a meus ps.

    Voc no vai acreditar numa palavra do que ela disse, vai?

    X

    Casca de Btula tinha ficado encabuladssimo com aquilo tudo. Os gnomos so muito cerimoniosos, e, apesar de travessos, educados. Pilhado num segredo to ntimo e inconfessvel, no sabia

  • como se desculpar, especialmente perante a mim, o filho da pessoa que ele tanto admirava. Sem contar com o fato de eu ser um de seus maiores amigos. Diante daquilo, tive a certeza de que tudo o que Patrcia me contara era a pura verdade.

    No nego que acho a senhora sua me uma mulher admirvel, correta, cumpridora de seus deveres, e acima de tudo ... muito bonita! disse, todo enrolado, acrescentando: Alis, tem as mesmas qualidades da minha adorada Fibra de Linho, com quem sou casado h quase duzentos anos! Mas, voc sabe... bem... quero dizer... Sua me a primeira dona-de-casa brasileira que conheci, e... e...

    ... e te elogiou, no foi? completei.

    Dei, ento, pela coisa. Eu sempre ouvira dizer que os gnomos da Holanda so muito vaidosos, e no resistem a um elogio. Ficam escravos! Alis, eu me lembrei: eu sempre ficara muito empolgado com as habilidades de Casca de Btula, quando nos conhecemos, e no me cansava de aplaudi-lo, o que o deixava cheio de orgulho.

    Talvez fosse esse o principal motivo de ele no ter me largado mais, e ter feito questo de me acompanhar naquela viagem internacional, a um pas to estranho, e alm de tudo tropical. E eu era apenas um garoto, enquanto mame... Estava explicado! A graciosidade, as gentilezas e os encantos dela o haviam seduzido.

    Mas quais seriam as conseqncias?

    Casca de Btula, como de costume, pareceu adivinhar meus pensamentos:

    Nem precisa se preocupar. Os gnomos so muito respeitadores, e conhecem o seu lugar. Sou como um admirador de pintura, em visita ao Museu do Louvre, em Paris: os quadros vo continuar l.

    Procurei ir direto ao ponto, para peg-lo de surpresa:

    Muito bem! E a histria de papai?

    Peguei-o. Nessa, ele se distrara.

    Hein?

    Voc no vai deixar de escrever, vai? Bem sabe que ele est precisando. Por que no fez isso ontem noite, como ele esperava?

    Bem... no fiz ontem noite porque... porque...

    Porque estava ocupado, fazendo a horta de mame, no foi?

  • muito divertida a cara de um gnomo, quando ele no tem resposta. E, no tendo, teve de reconhecer:

    ! Mas pode deixar, que hoje noite eu escrevo! prometeu.

    No dei trguas:

    noite, no. J!

    Mas...

    Pra cuidar de tartarugas no vizinho, voc tem tempo, no tem?

    Em vez de me responder, Casca de Btula sumiu. Mesmo porque mame e papai tinham voltado da horta, ela consolando ele, dando esperanas de que, mais hoje, mais amanh, ele iria conseguir sua histria.

    XI

    E conseguiu. No que ele prprio, sentado mquina o dia inteirinho, gastando montes de papel, tivesse conseguido alguma coisa satisfatria. S parou para comer um mingau de chocolate, com torradas, no que s perdeu meia hora. Mas quando voltou ao escritrio, j encontrou uma pilhazinha arrumada de folhas datilografadas, e at numeradas, contendo o resumo da nova novela de que papai precisava.

    Na verdade, eu e mame s soubemos disso no dia seguinte.

    Ns dois fomos dormir, depois do ltimo filme na televiso, ela muito preocupada, e eu na expectativa. Casca de Btula iria me atender? Afinal, ele no tinha nenhuma obrigao de ajudar ningum. Os gnomos so muito independentes. Eu j me arrependia de ter sido to enrgico com ele, prevalecendo-me do fato de ele me dever a viagem ao Brasil. Ora, pensei, se Casca de Btula viera na minha mochila, bem poderia ter vindo na mochila de qualquer outro. Ele no me devia nada. Nossa amizade existia fora de quaisquer condies.

    Papai no apareceu mais, e eu dormira sonhando com gnomos. No sonho, revi cenas que eu tinha vivido, no meio da neve: o dia em que encontrei Casca de Btula pela primeira vez, a simpatia que logo nos uniu quando comeamos a ajudar animais em perigo, a aproximao dos outros pequenos seres mgicos seus companheiros, e at a grande festa que eles deram em minha homenagem, em plena

  • floresta, na vspera da minha volta Inglaterra. Foi nesse dia que Casca de Btula resolveu me acompanhar, e conhecer novos lugares.

    S o sonho dessa noite no foi o suficiente para lembrar de todos os momentos que passamos em Londres. J acordei ouvindo o chamado de mame, l embaixo. Nem era chamado: era um grito de felicidade.

    No possvel! No acredito! Gente, acorda! Venham ver!

    Estava entusiasmadssima, e tinha de estar mesmo. A horta estava agora o dobro do tamanho. O dobro, no. O triplo. Tinha at cara de floresta, uma selva de verduras e legumes, tomando todo o quintal. No ficava nem um carreiro, para as pessoas passarem. 0 gnomo tinha exagerado, tentando agradar mame. Mas, e papai?

    S ento nos lembramos dele, que at agora no aparecera. Corremos para o escritrio, e abrimos a porta devagarinho, j meio aflitos. Felizmente, estava s encostada.

    L dentro, no maior silncio, papai estava cado de frente, estirado sobre o tapete. sua volta, espalhadas, folhas e folhas de papel. Um assassinato? Parecia, mas papai era dramtico assim mesmo. Tudo aquilo era sua maneira de demonstrar cansao, ou perturbao com alguma coisa formidvel que lhe acontecera. Ou as duas coisas.

    Querido! mame chamou.

    Uma espcie de rugido, ou mugido, foi a resposta. Ele nem ao menos estava dormindo.

    Por que voc dormiu no cho, meu amor? ela perguntou. Ainda sem se levantar, ele apenas respondeu:

    Os gnios dormem em qualquer lugar. As camas so para os simples mortais!

    Pela resposta, j adivinhamos que o milagre tinha acontecido. Ele j tinha a sua histria.

    E tinha mesmo. Como eu contei h pouco, depois do mingau papai voltara ao escritrio, e encontrara a novela pronta. No a novela inteira, lgico, mas o enredo, com princpio, meio e fim.

    U, como eu deixei isso a?

    Muito intrigado com o que acreditava ser uma alucinao, pegou os papis e os leu, sem parar para descansar. Achou tudo timo, e pensou:

  • Coisa assim s pode ser minha, mesmo. Como foi que escrevi tudo isso, e no me lembro?

    Leu tudo de novo, com cuidado, analisando os personagens e as situaes, e concluiu:

    No tem erro! meu estilo, a minha cara! E perfeito!

    No viu a noite passar, e foi lendo e relendo o trabalho, tentando fazer alteraes aqui e ali, mas no conseguiu. A narrativa estava totalmente "amarrada", como dizem os autores. No foi necessrio mexer numa vrgula.

    Papai ento ajoelhou-se e rezou, agradecendo a Deus por lhe ter dado tanta inspirao.

    Depois, no ponto onde estava, tombou para a frente e ficou, at que ns o encontrssemos.

    Eu quero ler! Eu quero ler! disse mame, j orgulhosa.

    E eu tambm! fiz coro com ela, mas orgulhoso por outro motivo.

    Enquanto lamos, juntos, papai desceu correndo atrs de um telefone.

    Onde que eu acho um telefone? Preciso ligar pra eles!

    Na vizinha! mame gritou, sem levantar os olhos das pginas.

    E l foi ele, sem cerimnias, bater na casa da Patrcia, pedir licena e ligar para a televiso. O tempo que ele levou foi o mesmo que demoramos para ler a histria de um jato s.

    Quando ele voltou, tnhamos terminado, e estvamos sem fala.

    E ento? Gostaram? Mame tinha lgrimas nos olhos.

    Querido, linda!

    Sem dizer mais nada, ela levantou-se e foi abra-lo, pendurando-se no pescoo dele, de um jeito que s ela sabia fazer. Casca de Btula espiava por trs do relgio. No gostei daquele olhar. Seria aquilo cimes?

  • XII

    Cheia de intimidades, Patrcia veio atrs de meu pai, depois que ele voltou da casa dela, e foi entrando. Trazia um par de patins na mo.

    Quer ir patinar?

    Papai e mame estavam muito ocupados, no quarto, enquanto ele se arrumava para ir novamente ao Rio, mostrar a histria aos sujeitos l da televiso. Eu, a garota e os patins ficamos na varanda.

    Ouvi a conversa toda do seu pai, no telefone! disse Patrcia, j sentada, sem cerimnia, na rede do Piau. Foi ele mesmo que escreveu?

    Olhei espantado para Patrcia, sem responder. E ela falou por mim:

    Claro que no!

    A, me ofendi.

    Por que no? Ele um grande escritor!

    Uma coisa no tem nada a ver com a outra. Mas essa histria ele no fez. Foi o Casca de Btula!

    Quase morri de raiva, e achei Patrcia com cara de bruxa. Mas bruxa bonita, como a Fada Morgana. Apesar daquilo, eu sentia que nunca iria deixar de ser amigo dela. Por isso, no reagi, e concordei:

    Tambm acho!

    Vitoriosa, Patrcia ficou alguns segundos em silncio, e ento disse, levantando-se da rede:

    Agora que est tudo bem, vamos patinar?

    Irritei-me.

    Patinar? T maluca? Primeiro eu quero ver como tudo se resolve! Alm do mais, eu no tenho patins!

    Antes que Patrcia dissesse mais alguma coisa, papai e mame vieram saindo, apressados, ele ainda fechando a pasta, mame consertando a gola dele, enquanto corriam para a garagem.

    Pegou tudo? Est tudo a? No falta nada? Confere!

    J conferi!

    No entrega, sem antes tirar uma xerox!

    T bom! T bom!

  • Melhor seria registrar antes! Sabe como essa gente!

    No d tempo!

    Ento no deixa com eles!

    Se eu no deixar, no aceitam!

    Eu j ouvira esse papo uma centena de vezes, desde que eu era pequeno, antes de ir Europa. A conversa s terminou quando o carro arrancou, de r, e tomou posio na rua, entre adeuses dele, beijinhos dela, e aps mil votos de que iria dar tudo certo, se Deus quisesse.

    Mame voltou dando mil suspiros de esperana, e passou por ns sem nos ver, falando sozinha:

    Eles vo gostar! Tm que gostar! A histria tima! Cheia de "ganchos"! Uma beleza!

    Patrcia pareceu no dar importncia a nada daquilo, que para mim era o mximo. E insistiu:

    Eu ando com um p, voc com o outro!

    O qu?

    Os patins! Cada um usa um p! Vamos!

    Fomos, mas eu fui sem muita vontade de ir. Estava querendo falar umas coisas com Casca de Btula.

    Eram uns dois quilmetros at o rinque pblico de patinao, e o dia estava lindo. Se no fosse minha preocupao com papai, eu teria aproveitado mais a companhia de Patrcia, enquanto caminhvamos. Mas ela era uma garota to divertida, que quando comeamos a patinar eu me senti feliz de novo, e no pensei em outra coisa na vida.

    S na hora do sorvete, e foi ela quem lembrou:

    Como a histria?

    Hein?

    Se ela no tocasse no assunto, eu ia at me esquecer.

    No posso contar!

    Por qu? No confia em mim?

    Lgico que confiava. E contei.

    Gosto! disse ela, no fim. Nem parece histria de gnomo!

  • E voc acha que eles iam querer histria de gnomo na televiso? Como histria de gnomo?

    Bem, histria de gnomo tinha que ter tren, no tinha? Pelo menos um!

    No sei por qu! Eu estive na Holanda, conheci gnomos, e no vi nenhum tren!

    Ah, eu ia adorar uma novela cheia de trens! disse ela, dando o assunto por encerrado.

    Conversamos, ento, tantas outras coisas, que at esquecemos Casca de Btula e a novela do papai. Quando voltamos para casa, j estava bem tarde para o almoo, e eu vinha morrendo de fome. Despedimo-nos em frente ao porto dela.

    Tchau, Patrcia! No v contar pra ningum a histria do meu pai!

    T legal! E voc no se esquea que a histria do Casca de Btula!

    Como que eu iria esquecer uma coisa dessas? Tinha era de agradecer a ele.

    Entrei correndo, pelos fundos, e fui direto cozinha. Papai j teria dado notcias?

    Mas mame no estava na cozinha.

    Mame!

    Ela no respondeu, e eu fui procur-la na sala, seguindo um cheiro forte.

    L estava mame, sentada no sof, com cara de espanto. O cheiro forte era por causa das flores. No algumas, mas muitas. Deviam dar uns cinqenta buqus. Flores de todos os tipos e cores, amontoadas em cima de todos os mveis, exalando um aroma fortssimo.

    E minha me no parava de olhar para elas, sem entender nada.

    XIII

    Mame, de onde vieram todas essas flores?

    Perguntei s por perguntar, j quase tendo certeza da resposta.

  • o que eu queria muito saber! ela respondeu. Encontrei isso a, logo depois que todos vocs saram!

    Bem, isso exclua papai, que no teria tido tempo, nem motivos ainda para um gesto romntico desses. Ele teria, talvez, feito algo assim, caso conseguisse o contrato. Portanto, Casca de Btula era o principal suspeito.

    Mame, porm, no sabia disso.

    Quem teria mandado essas flores, quem? E sem carto. Foi algum muito audacioso, para ir invadindo a casa, sem ningum ver!

    No se assuste, no, mame! Pode ter sido engano!

    Engano?! Flores to bem arrumadinhas, em todos os mveis? E que brega, cruzes! Pensa que minha casa capela funerria? Aqui no morreu ningum!

    Foi ela dizer isso, e as vidraas da janela se abriram de repente, com violncia, deixando entrar uma forte lufada de ar, que derrubou bibels, e despetalou todas as flores, espalhando-as.

    Fecha isso a! Que vento maluco esse? gritou mame.

    S eu entendi: era um acesso de fria, em algum muito apaixonado, cuja declarao de amor desprezaram. Aprendi mais essa. De um gnomo enamorado, ningum faz pouco.

    Levei horas para faz-lo voltar s boas.

    Primeiro, foi um rolo para conseguir encontr-lo.

    No fosse Patrcia servir de intermediria, talvez eu nunca mais visse meu amigo gnomo. Foi ela quem me chamou, por cima do muro, para informar que Casca de Btula estava l no quintal, magoadssimo, ressentidssimo, sem querer contar por qu.

    Vai ver, voc nem agradeceu a novela!

    Que novela! protestei, e contei a verdade.

    Ai, coitado! Sua me foi muito grossa com ele! Essas mulheres!

    Grossa, coisa nenhuma! Ela nem sabe que Casca de Btula existe! E essa histria de flores foi muito assanhamento dele, voc no acha?

    Patrcia no soube o que responder. Preferiu dizer:

    Se fosse comigo, eu ia adorar as flores. Mas como sua me uma senhora casada...

  • Resolvemos os dois ter uma conversa com Casca de Btula. Ele at entendia o resto, mas s no perdoava ela ter dito aquele negcio de capela funerria. Era fazer muito pouco da gentileza dele. Expliquei que, aqui no Brasil, algumas mulheres gostam dessas ironias, embora sejam tambm romnticas quando gostam do galanteador. Mas s quando gostam. No era o caso, era?

    Eu estava detestando aquele clima de consultrio sentimental, para o qual eu no levava o menor jeito. Mas tinha de me preocupar com os negcios de papai. E se fosse necessrio Casca de Btula continuar colaborando?

    Essa nossa conversa ainda continuava na casa de Patrcia, quando papai chegou.

    Mal o viu no porto, mame j foi gritando:

    Joo Filipe! Seu pai est aqui!

    Corri para ver, esquecendo Patrcia e o gnomo.

    Papai j vinha com cara de poucos amigos.

    Como foi?

    O Ladislau voltou!

    Foi gua fria na fervura. Pior do que se ele tivesse dito que l na televiso no gostaram da histria. Mas ele nem tinha tido essa chance. Ladislau de Souza estava de volta, para escrever a novela. Foi s. Chega. Fica para uma outra oportunidade.

    Nem leram?

    No!

    E voc no insistiu?

    Insistir pra qu? O Ladislau j tem um nome!

    E voc tem uma histria!

    O Ladislau tambm, esqueceu?

    Mas quem sabe a sua melhor?

    No querem nem saber! S querem jogar na certa!

    Achei papai mais velho uns cem anos, enquanto falava aquelas coisas, mecanicamente, repetindo argumentos que a gente j estava cansado de ouvir.

    Pelo menos eu vou cuidar do meu show. Se o Queiroz fechar o negcio, lgico! disse papai, lavando o rosto.

  • Se, se, se... sempre se! disse mame, botando a mesa. E o show uma bobagem, no como aquela histria linda, digna, criativa, original. Merece mesmo uma novela!

    Alm de pagar melhor! acrescentou papai. Pelo jeito, por enquanto, vamos viver mesmo da sua horta gigante!

    Jantamos em silncio. Cada um de ns, no entanto, estava remoendo o problema. Eu gostaria que Casca de Btula estivesse sabendo daquilo. Que "autor" era ele, que nem se preocupava com o destino de sua histria? A est no que d uma paixo pensei. Se o gnomo no se encantasse com mame, cuidaria melhor da novela de papai. Eu estava uma fera com aquele cabea de mula!

    XIV

    Papai, naquela noite, nem pensou em ir ao escritrio. Eu sim. No sei o que me deu na veneta, eu que nunca fazia isso, fui dar uma olhada por l. Foi bater e valer: encontrei Casca de Btula sentado no teclado da mquina de escrever, de costas para a porta, com a luz do abajur acesa.

    Achei estranho ele nem se mexer, quando eu entrei. Onde estava o seu sexto sentido?

    O que voc est fazendo a? perguntei. No sabe o que aconteceu?

    Casca de Btula nem me deu confiana. Apenas disse:

    Por que ela chamou meu show de bobagem? Antes, elogiou!

    Tive vontade de lhe dar um peteleco, juro. Mas resisti.

    Ah, ento voc estava l ouvindo, seu danado? Em vez de se preocupar com o que mame diz, por que no toma uma providncia? o seu talento que est em jogo!

    Achei bonito: o seu talento que est em jogo. Como reagiria o gnomo? Aquilo mexeria em seus brios, em sua vaidade?

    Casca de Btula bateu alguma coisa nas teclas, sapateando sobre elas, com a maior agilidade.

    Cheguei perto para ler, e estava escrito no papel: PRECISO VER ESSE LADISLAU.

    Ver o Ladislau? O mais famoso autor de novelas? Para qu?

  • Rapidamente, Casca de Btula descera da mquina para o cho.

    Ei! Volte aqui! O que voc quer dizer com isso?

    Deslizando de um canto para outro, o gnomo parecia exercitar-se para alguma coisa muito importante.

    No faa perguntas! Comece logo a agir! disse ele.

    Agir como?

    Seu pai precisa voltar quela televiso!

    Ah, sim! E voc acha fcil eu convenc-lo disso!

    O problema seu! O resto, deixe comigo!

    Que resto? O que voc pretende fazer?

    Quando eu chegar l, verei!

    O qu?! Voc vai com ele? gritei, espantado.

    Seu pai carrega sempre aquela pasta, no carrega?

    Voc vai dentro da...

    Casca de Btula j no estava mais vista. Desaparecera pela fresta de uma das tbuas corridas do assoalho. E agora?

    Sem saber ainda o que fazer, procurei papai e mame, mas os dois j estavam fechados no quarto deles. Encostando o ouvido na porta, percebi que ainda no estavam dormindo, porque conversavam em voz alta. O assunto no podia ser outro: a grande decepo do dia. Ela insistia para ele tornar a tentar. Ele dizia que no ia adiantar, que perdera aquela chance, que no gostava de bancar o chato, que ainda por cima era muito orgulhoso.

    E se eles te chamarem outra vez? ouvi mame falar.

    Duvido! ele respondeu. J tm o Ladislau! E voc sabe o que eu vou fazer?

    O qu?

    Rasgar a minha novela!

    No!

    Felizmente percebi a tempo, e afastei-me correndo. Papai saiu num rompante, com mame atrs dele, e foi ao escritrio.

    No sei se ele teria mesmo rasgado a novela, mas o fato que no a encontrou em lugar nenhum.

    Esperto, esse Casca de Btula!

  • Desistindo de procurar, e atendendo aos apelos de mame, papai afinal se acalmou, e sentou-se abatido, no sem antes soltar uma frase dramtica:

    Minha novela no serve nem para eu jogar fora! Quando a procuro, no a encontro!

    Mame teve uma suspeita.

    Voc no deixou l com eles, deixou?

    Como ele no respondesse, ela perguntou outra vez, j bastante preocupada:

    Amor, voc esqueceu a novela com eles?

    A essa altura, papai estava tambm um pouco assustado.

    Sabe que eu no sei?

    Ela teve uma esperana.

    E a cpia? E a xerox?

    Que xerox? Pensa que eu me lembrei?

    Desespero total. Por saberem que estavam lidando com pessoas nem sempre confiveis, papai e mame temiam agora coisa muito pior do que a novela ser recusada: ela ser plagiada!

    Assisti ao primeiro ato da tragdia, ali, bem de perto. Quando eles saram do escritrio, ca de quatro no cho, procura do gnomo. Eu precisava ter certeza.

    Foi voc, Casca de Btula? Voc que escondeu? Aparea, Casca!

    Mas o gnomo nem deu bola. Continuou sumido.

    XV

    A primeira coisa que fiz, no dia seguinte, foi correr ao muro de Patrcia, e chamar por ela. Contei tudo que acontecera, e terminei perguntando:

    Voc acha que foi ele que escondeu a novela?

    Patrcia era muito prtica.

    Pode ser! Seria uma boa maneira de obrigar seu pai a voltar televiso!

  • E ele vai voltar mesmo. J est l se arrumando! Est morrendo de medo do plgio!

    Que que plgio?

    pegarem a histria dele, usarem, e dizerem que de outro!

    Feito um roubo?

    Feito, no. um roubo! Tem pessoas que fazem isso com uma histria inteirinha, que no delas. Copiam toda! Outras, disfaram, pegam s um pedao. Ou a idia!

    Ah, sei. Como fazem tambm com msica?

    Isso! Papai vai voltar televiso, correndo, para ver se apanha a novela dele de volta, para no plagiarem!

    S que vai perder tempo, coitado. Foi Casca de Btula que escondeu!

    NO FUI EU NO! disse uma vozinha.

    Olhamos para ver quem tinha falado aquilo, e demos com o gnomo sentado num vaso de plantas, ali juntinho.

    Casca de Btula!

    No foi voc que escondeu a novela do pai dele?

    Ento...

    Ento aquele cabea de vento esqueceu mesmo a nossa histria em algum canto, l na televiso disse o gnomo.

    E acrescentou:

    Sua me bem merecia um marido mais responsvel!

    Irritei-me.

    Voc no tem o direito de falar assim, Casca de Btula!

    Tenho o direito de dizer o que penso! Mas me perdoe se isso o magoa!

    Est perdoado! Desde que continue ajudando meu pai!

    Tudo bem! Onde est a tal pasta dele?

    Em algum lugar, l dentro da casa! Quer que eu leve voc at l?

    No precisa! Eu encontro, e vou dentro dela!

    O que voc pretende fazer, Casca de Btula? perguntou Patrcia.

  • Talvez a mim ele no respondesse. Mas o gnomo tinha um fraco por meninas.

    Preciso muito ver de perto esse Ladislau!

    um autor famoso!

    Isso no quer dizer nada! J conheci outros! Fama e talento nem sempre andam juntos!

    Ele faz muito sucesso! eu disse.

    Sucesso tambm. Nem sempre a qualidade do que se faz que conduz at ele. O pai de Joo Filipe um exemplo disso. Trabalha muito, criativo, tem talento... mas no famoso, nem conseguiu sucesso.

    Comovi-me com essas palavras do meu pequeno amigo. Afinal, aquilo soava como uma grande homenagem, de um gnomo-contador-de-histrias, a um escritor cabea-de-vento. Sem fazer nenhum comentrio a isso, eu disse:

    Ento no preciso fazer mais nada pro papai ir televiso?

    Se precisasse, eu ia na Telefnica, ligava pra c, e fingia que era uma secretria l da televiso palpitou Patrcia. Dizia que estavam chamando de volta o pai do Joo Filipe!

    E sua voz?

    O que tem minha voz?

    Ia ter de disfarar bastante! voz de garota. No ia enganar ningum!

    Voc que pensa! Eu levo jeito de atriz!

    Enquanto eu e Patrcia discutamos, inutilmente, coisas j resolvidas, o gnomo desaparecia.

    Mame me chamou l da cozinha:

    Joo Filipe! Venha se vestir! Voc vai com seu pai ao Rio!

    Com essa, ningum contava.

    A idia era aproveitar a descida de Petrpolis, para eu ir visitar minha av. Papai me deixaria l, no caminho para a televiso, e me pegaria na volta.

    S que o tempo no deu. O trfego engarrafado na Avenida Brasil atrasou a viagem, e l fomos eu, papai e a pasta (com Casca de Btula dentro), direto para a emissora.

  • Aqueles caras vo pensar que eu quero apelar para o sentimento deles! comentou papai.

    XVI

    Papai sempre detestou meter a famlia em seu local de trabalho. Por isso, no gostaria que achassem que estava usando o filho, um garoto de doze anos, para atrair simpatias. Assim, ao chegar televiso, quis que eu ficasse esperando por ele no estacionamento, dentro do carro. Mas eu protestei:

    Essa no, pai! Quero ver como por dentro!

    Ele resmungou um pouco, mas acabou me levando com ele. Eu bem teria preferido fazer uma visitinha aos estdios, mas, da portaria, subimos ao andar onde funcionava o Departamento de Novelas.

    Na sala de espera do manda-chuva, papai foi falar com a secretria. Perguntou se tinham encontrado os originais da histria dele, e se poderiam devolver.

    Deixou aqui?

    Papai disse que achava que sim, que deviam estar com o diretor, e ela foi verificar.

    Enquanto isso, ficamos esperando, sentados naquelas poltronas confortveis. At que foi divertido, pois a toda hora passavam artistas conhecidos. Uns falavam com papai, outros no. Houve alguns, at, que se interessaram por mim.

    seu filho, o garoto? Por que no trabalha em novela?

    Achei graa, e me lembrei de Casca de Btula. Teria ouvido aquilo? Como estaria ele, dentro da pasta de papai?

    A secretria voltou, e disse a papai que o diretor no sabia dos originais, mas que, se ele quisesse, podia entrar.

    Entrar?! Papai foi apanhado de surpresa. Nunca tinha tido uma sorte dessas, de ser recebido to facilmente. Eu sabia: s podia ser algo mgico, influncia de meu amigo Casca de Btula.

    A sorte foi ainda maior, l dentro. O gabinete do diretor tinha cara de festa, e papai foi acolhido com muitos abraos, sorrisos e apertos de mo. Os homens que estavam ali tinham todos cara de ricos e satisfeitos, alegres com a vida, dizendo piadas uns para os outros.

  • S papai continuou srio, talvez para no dar confiana.

    No quero atrapalhar a reunio de vocs! S vim buscar meus originais. Acho que esqueci aqui, ontem.

    Seus originais? Que originais? disse um rapaz, muito jovem, que estava de p num canto, abrindo e fechando caixas de fitas de vdeo.

    Da minha histria, lembram-se? A minha proposta para a novela!

    A j foi um sujeito mais velho, com uma enorme camisa branca, quem falou. Ele estava sentado por trs da mesa principal, bem no centro de tudo, e por isso eu vi logo que s podia ser o diretor.

    A histria dele, claro! Mandei pra voc, Ladislau! Todos olharam para onde o diretor olhara, e eu afinal fiquei conhecendo o famoso Ladislau.

    Sim, mandou!

    E a? Leu? perguntou o diretor, impaciente.

    Ladislau no respondeu logo. Passou a palma da mo aberta, do alto da testa at o queixo, fazendo suspense. Todos ficaram esperando o que ele iria dizer, principalmente papai, que at agora continuava de p, segurando a pasta.

    Voc tem razo! disse Ladislau ao diretor. A histria boa!

    Esto vendo? Eu no disse? falou o diretor, sorrindo, olhando os outros. Eu tambm gostei muito!

    S que falta alguma coisa! continuou Ladislau.

    O sorriso do diretor desapareceu. Papai tremeu nas bases, e eu achei que ele ia desmaiar.

    O diretor tambm pareceu desconfiar disso, porque mandou papai se sentar.

    E descanse essa pasta no cho. O que tem a dentro? Dlares? Relaxe, cara! O Ladislau vai agora explicar direitinho qual o problema da sua histria.

    Esse apoio inesperado pareceu dar novas foras a meu pai, que disse, com a voz emocionada:

    Vocs querem fazer o favor de me dizer o que est acontecendo? Ontem, minha histria foi recusada porque o Ladislau

  • estava de volta. Eu entendi muito bem, pois desde o comeo vocs iam gravar a novela dele. Por que essa, agora, de voltarem a se interessar pela minha histria?

    O diretor segurou o joelho de meu pai, com a maior cordialidade.

    Porque o nosso Ladislau perdeu a novela dele!

    Ladislau praticamente pulou da cadeira, perdendo a calma.

    Eu no perdi a novela!

    Perdeu, sim! Se no perdeu, onde esto os trinta captulos que j tinha escrito?

    At amanh eu prometo que vou encontr-los!

    E se no encontrar, Ladislau? No podemos mais esperar!

    Puxa, ser que eu no mereo essa considerao? disse Ladislau, fingindo-se magoado.

    Merecia at ontem. Mas voc anda muito estranho. Primeiro, desaparece. Depois volta, e no traz os captulos! No sei o que est acontecendo, mas temos de procurar outra histria.

    Voc est me demitindo? perguntou Ladislau, com a arrogncia de quem se acha bem protegido.

    Todos, quela altura, tinham parado de conversar, e observavam o drama. O diretor tentou apaziguar Ladislau. Abraando-o pelo ombro, falou:

    No se trata disso, meu querido. Voc ainda o grande autor desta emissora. Por isso, proponho que voc pegue essa histria a do nosso amigo, e a escreva voc mesmo!

    S ouvi o trambolho. Papai, com muita raiva, rodara a pasta (que no largara), batendo com ela, com toda fora, na barriga do diretor. O homem caiu para trs, na cadeira, com cara de espanto.

    E bateu uma segunda vez.

    Defendendo-se, o diretor segurou a pasta, arrancando-a de papai, a quem os outros j agarravam.

    Esbravejando, muito vermelho, papai gritava:

    Devolvam minha histria, patifes! Esto pensando que eu sou o qu, sem-vergonhas? Naquilo que eu fao, vagabundo nenhum bota a mo!

  • Corri para papai, misturando-me ao bolo de pessoas, e abracei as pernas dele. Se dependesse de mim, ningum botaria a mo em papai, tambm.

    Logo estvamos, os dois, fora da sala do diretor, cheios de decepo, ressentimento e escndalo.

    Mas a pasta de papai ficou l dentro.

    Com gnomo e tudo.

    XVII

    A senhora pode pegar minha pasta? pediu papai secretria.

    Ela agora j no estava to simptica:

    Sua pasta? Que pasta?

    Papai encheu-se de pacincia.

    A pasta que entrou comigo!

    Ah, a que o senhor usou como arma?

    Era inacreditvel!

    Arma, minha senhora?

    Secretrias como aquela detestam ser chamadas de senhora. Talvez por isso, ela ainda colocou maiores dificuldades.

    Agora vai ter que esperar o fim da reunio! No vou interromper o diretor, que ele no vai gostar!

    E eu vou ficar sem minha pasta?

    Deixe seu endereo, que ns depois mandamos lhe entregar. Se o diretor autorizar, naturalmente!

    E no autorizaria por qu?

    A discusso teria continuado, se pessoas amigas de meu pai no o viessem acalmar, garantindo que tudo iria se resolver da melhor maneira.

    Papai se sentiu, aos poucos, mais conformado, mas para mim o problema havia s comeado. O que aconteceria com Casca de Btula?

  • Beba um copo de gua! Quer um cafezinho? Leve o garoto ao bar!

    Antes que meu pai decidisse alguma coisa, a porta do diretor se abriu novamente, e surgiu Ladislau. Veio direto a papai.

    Voc, por favor, me desculpe! Eu no tive nada a ver com aquilo! Ele est maluco se pensa que eu iria usar o seu trabalho!

    Papai procurou ser gentil:

    Voc nem precisa disso!

    Claro! Apesar de que sua histria tima!

    Voc disse que faltava alguma coisa! atacou papai, implacvel (ele daqueles que nunca perdoam uma crtica).

    Ladislau tornou a passar a mo ao longo do rosto, pensando primeiro o que responder. Preferiu fazer um convite:

    Voc almoa comigo?

    Primeiro quero minha pasta!

    Pede daqui, interfona dali, entra secretria, sai secretria, e afinal a pasta chegou de volta s mos de papai. Fomos ento, os trs, para o restaurante. Os quatro, contando com Casca de Btula, dentro da pasta.

    Estaria mesmo l? pensei, olhando a pasta, com uma vontade doida de abri-la e dar uma espiada. Como o gnomo teria resistido quelas pancadas na barriga do diretor?

    Felizmente, os pequenos seres conseguiam sempre realizar prodgios, livrando-se de toda espcie de perigos. Eu mesmo sabia de mil peripcias de Casca de Btula, para escapar s perseguies de criaturas malvolas como trolls, fantasmas, goblins, e outros bruxos.

    Desses, os goblins eram os piores. Apesar de no to fortes como os trolls, eram mais inteligentes e astutos que aqueles monstrengos apavorantes, peritos em atrocidades.

    Distrado com essas lembranas, e com uma pilha de batatas fritas, cheguei a perder o comeo da conversa de papai com Ladislau.

    Enquanto eles falavam, eu comia e continuava recordando, com saudades, as farras na neve da Europa, as brincadeiras no velho moinho, as correrias atrs de marrecos e perdizes. De repente, me veio cabea o dia daquela inundao, quando subi ao telhado da casa com Casca de Btula, e ele me mostrou uma outra famlia de gnomos. A plancie, l embaixo, tinha se transformado num grande

  • lago, e os gnomos estavam assustados no com a gua que subia, mas com um goblin que andava pelas vizinhanas, aprontando das suas.

    Senti vontade de poder viver aventuras assim, tambm aqui no Brasil. Talvez nas matas de Petrpolis, bem longe da horta de mame.

    Voc no calcule o meu desespero! dizia Ladislau, nesse instante. Trinta captulos j escritos, prontinhos para gravar, e desapareceram todos!

    Tem idia de onde os perdeu? papai perguntou.

    No perdi, tenho a certeza!

    Ento roubaram!

    Quem iria roubar? E dentro do meu apartamento?

    Nesse caso, foi um fantasma quem tirou! brincou papai.

    Ladislau, porm, continuou srio, com a cabea baixa em cima do prato, levando horas para cortar o bife.

    E se fosse? perguntou.

    Hein? papai olhou Ladislau, com surpresa.

    E se fosse mesmo um fantasma? Ou algo parecido? Papai ia comear a rir, mas Ladislau segurou o brao dele, olhando para mim.

    Aqui no d para falar sobre isso. Talvez fosse melhor procurarmos outro lugar!

    Pode falar, que meu filho no se impressiona. Chegou a brincar com gnomos na Europa!

    Como meu pai soubera disso? Ah, sim! lembrei-me. Nos meus primeiros contatos misteriosos, quando eu ainda morria de medo, eu havia escrito uma carta a mame, falando de que suspeitava haver gnomos por perto. Mas nunca mais falara no caso, depois que fiz amizade com Casca de Btula e sua famlia.

    No se trata de gnomos, nem de Papai Noel disse Ladislau. Acho que coisa muito pior.

    Um demnio?

    Algo desse tipo. E to poderoso, que chegou a sumir comigo! Papai estava cada vez mais interessado. E eu dez vezes mais que ele.

  • Ladislau de Souza era mesmo um autor experimentado, pois sabia tirar suspense das coisas. Depois daquela abertura preparatria, soltou:

    Voc sabia que eu fui parar num sarcfago?

    XVIII

    Sarcfago, sarcfago... onde eu j tinha ouvido falar naquilo? Por isso passei a gostar de ler livros: a gente sempre aprende palavras novas, juntando-as como se junta um tesouro. Mas sarcfago eu j conhecia de outro lugar lembrei! , do dia em que fui ao museu.

    Sarcfagos so aqueles caixes de defunto, mas daqueles muito antigos, onde os egpcios guardavam as mmias dos faras. Vi alguns deles, no museu, para onde foram levados depois de retirados das pirmides.

    Havia sarcfagos tambm no Museu Nacional, no Rio de Janeiro. E Ladislau contou que, no sabe como, foi trancado num deles, que estava vazio.

    Voc acredita? perguntou ele a meu pai.

    Lgico que no!

    Pois fui! E vestido com o meu melhor terno! Ladislau contou que tudo comeou quando ele deu como prontos trinta captulos. Era a quantidade combinada, com a televiso, para que dessem incio produo e gravao da novela.

    Acabei de escrever o trigsimo captulo. Juntei-o aos outros, e guardei tudo numa sacola de supermercado, para quando viessem buscar.

    E onde deixou?

    No meu escritrio, junto escrivaninha. Feito isso, liguei para a emissora, avisando que tinha terminado, e que poderiam mandar pegar. Ficaram de vir no dia seguinte, pela manh!

    Por qu?

    Terminei de escrever noite, l pelas nove horas. Tive bastante tempo, ainda, de tomar um banho e me vestir para ir recepo!

    Que recepo?

  • Em casa do Berdorff!

    Berdorff! Uma espcie de campainha tocou dentro de mim. Onde eu j ouvira esse nome?

    Ladislau e meu pai falavam dele com o maior respeito, quase com medo. Senti que era algum muito importante em televiso. Talvez o mais importante. Era o homem forte, o todo-poderoso da maior rede de emissoras do pas. Tinha sido o responsvel por tantas inovaes, que chegavam a cham-lo de Mr. TV.

    Engraado! disse meu pai. Sempre achei que Berdorff detestava esse tipo de badalaes!

    E detesta! continuou Ladislau, falando em Berdorff, e cada vez que ele repetia esse nome, mais eu sentia a certeza de que o conhecia de algum lugar. Essa recepo foi uma reunio fechada, extremamente formal, com pouqussimos convidados, para comemorar sua volta do exterior, onde ele recebeu um prmio!

    Estranho! comentou papai. Eu no ouvi falar nesse prmio!

    Voc mesmo disse: Berdorff detesta badalaes. Foi l quietinho, abiscoitou o prmio, e, como do seu estilo, voltou ao pas no mais absoluto silncio. Mas um puxa-saco achou de convidar pessoas para homenage-lo.

    E voc entre elas!

    Claro! disse Ladislau, com indisfarvel vaidade.

    Mas o que tem a reunio do Berdorff com voc acabar trancado num sarcfago? insistiu papai, no conseguindo esconder uma ponta de inveja.

    Nada! Isto : no sei! O fato que foi depois que voltei de l que aquelas coisas estranhas comearam a acontecer.

    Que coisas estranhas?

    At aquele momento, eu confesso que no estivera ainda muito interessado na "aventura" de Ladislau. Queria s que ele chegasse ao ponto em que se viu, de repente, trancado num sarcfago de mmia. Mas agora ele comeava a contar fatos incrveis mas to incrveis! , que eu at percebi que a mala de papai tremeu, e quase caiu da cadeira.

    Casca de Btula, finalmente, dava sinal de vida.

  • XIX

    Ladislau tinha sido o ltimo convidado a sair da casa de Cludio Berdorff. Como todos os demais, ganhara tambm uma lembrancinha, gentilmente trazida pelo empresrio, de sua viagem. No caso de Ladislau, um lindo boneco quebra-nozes, belamente acondicionado numa caixa de papelo.

    Ladislau levou a caixa, sem abrir, para o seu apartamento, e deixou-a no escritrio, sobre a escrivaninha. Feito isso, preparou-se para dormir.

    De terno? quis saber papai.

    Por que pergunta isso?

    Puro palpite!

    Ladislau olhou meu pai com ar intrigado, e acabou respondendo:

    No sei como voc adivinhou, mas eu estava to cansado, que no consegui tirar a roupa. Bastou recostar-me por alguns segundos, e peguei no sono sem querer. E s acordei uma ou duas horas depois, com aqueles barulhos terrveis.

    Que barulhos?!

    Ladislau no sabia explicar direito. Disse que eram uma espcie de gritos, mais parecendo uivos. Ou, talvez, guinchos. Mas guinchos daqueles de ratos. Ratos descomunais. O que seria aquilo? Ladislau sentou-se na cama, primeiro pensando tratar-se de algum pesadelo, mas logo ouviu um estrondo, como se algo pesado houvesse cado no cho. Era no escritrio. Ladislau correu para l.

    Felizmente, tinha deixado o apartamento inteiro aceso, pois no escuro teria sido pior.

    Chegando ao escritrio, pensou que tinha havido algum assalto. Tudo estava revirado, de cabea para baixo. O computador, derrubado sobre o tapete, quebrado, soltando fagulhas. Os livros das estantes, tambm, jogados fora das prateleiras. Abajures quebrados. Cadeiras viradas. Sofs e poltronas com os forros rasgados.

    Mas o que isso, Meu Deus?

    Um pavor incrvel tomou conta dele, sentindo-se desprotegido e frgil. Sem arma alguma em casa, achou que havia ladres ali. Logo, porm, foi acometido por um pnico ainda maior. Demnios! Talvez fosse algum poltergeist, um fenmeno sobrenatural. E ele,

  • que nunca acreditara nesse tipo de coisas, nem ao menos seguira a moda dos tars, cristais, mapas astrais e livros esotrics, to comum nos meios artsticos.

    O pavor, porm, foi subitamente substitudo por outro tipo de sentimento: revolta! Seu trabalho de tantos dias a novela estava tambm espalhado por toda parte, talvez destrudo. Folhas e folhas de papel (ele datilografara cerca de mil) desordenadas, bagunadas, amassadas, e at rasgadas.

    Meus captulos!

    Alucinado pelo desespero, sem preocupar-se mais com o resto, ele comeou a tentar recolher o trabalho. Mas por mais que tentasse, uma espcie de p de vento voltava a espalhar as folhas, mudando-as continuamente de lugar. Ladislau correu para fechar a janela, e ela estava trancada. O que era aquilo?

    Ele teve a certeza de que algum ser fantasmagrico estava se divertindo com o seu sofrimento, quando ouviu uma risadinha.

    Quem est a?

    Nenhuma resposta. Ladislau ia voltar a recolher os captulos, quando um sbito redemoinho os juntou. Em menos de cinco segundos, a novela estava novamente reunida, numa pilha, sobre a escrivaninha. Todos os demais objetos retornaram, tambm, a seus lugares. A sala estava, num instante, totalmente arrumada.

    No acredito! disse papai, a essa altura da narrativa.

    Eu tambm no quis acreditar! disse Ladislau. No fundo, eu queria que tudo no passasse de uma alucinao ou pesadelo, mas os fatos estavam ali, minha frente. Algum, que eu no via, se distraa em me torturar, e eu precisava saber quem, ou o que era!

    Nesse ponto, eu senti uma espcie de admirao por Ladislau. Eu mesmo reagi assim, quando pela primeira vez, l na Holanda, senti que havia algum me espiando. Muitas pessoas, nessas horas, preferem fugir. Eu fiquei, e procurei. Se no fosse assim, nunca teria conhecido Casca de Btula.

    Ladislau tambm no fugiu. Comeou a remexer nos objetos do escritrio, olhando atrs deles, ou por baixo, abrindo gavetas, levantando at o tapete, at que de repente chegou caixa do quebra-nozes.

    Me larga!

    Han?!

  • Aterrorizado, Ladislau soltou a caixa no cho. Ela tinha... falado?

    Vencendo o pavor, tornou a avanar a mo em direo ao quebra-nozes.

    No se atreva! a voz voltou a ordenar.

    Num gesto brusco, e corajoso, ele segurou a caixa com toda a fora, disposto a abri-la, de qualquer jeito, para ver o que havia l dentro.

    Mal comeou a desembrulhar o presente de Cludio Berdorff, tudo ficou escuro.

    J estava, ento, dentro do sarcfago.

    XX

    Bati, bati... Gritei, gritei... uma noite inteira... morrendo de medo de morrer sufocado. At que veio algum, abriu a tampa, e tirou-me de l!

    Era o vigia da manh, do museu ("O que o senhor est fazendo a dentro? Como entrou?").

    E eu, com cara de bobo, no consegui explicar.

    E depois? pressionou meu pai.

    J estvamos na sobremesa, e ainda havia muita coisa a contar. Mas ele disse:

    Depois, nada! Depois, estamos ns aqui! Eu ainda no tive coragem de voltar ao apartamento! Continuo em casa de mame!

    Essa no! Por isso a novela tinha parado, o pessoal da televiso estava aflito, e papai quase tivera uma chance de ser o prximo autor.

    Ladislau contou que, depois que saiu do sarcfago, foi hospedar-se na casa da me dele, para pensar no que fazer.

    No contou a ningum o que aconteceu?

    Voc o primeiro! respondeu Ladislau, como se eu no existisse. Quando resolvi ir emissora, pensei que ia ser fcil contar tudo, explicar meu desaparecimento. Fui l uma, duas vezes, mas s de olhar para eles sentia que, se eu contasse, iriam achar que eu estava louco, e iriam me demitir. At que voc apareceu!

  • Por que voc disse que faltava alguma coisa na minha histria? papai tornou a perguntar.

    Porque falta!

    O que falta?

    Falta eu ler!

    Isso apanhou papai de surpresa.

    Voc no leu?!!

    Eles devem ter mandado entregar no meu edifcio. Talvez esteja, at agora, na portaria, com o resto da correspondncia. Mas no indo l, no peguei. Por isso, no li. mesmo uma boa histria?

    Cheguei a pensar que papai ia ter um troo. Outro daqueles acessos de raiva. Temperamental como ele era, nem sei por que ficou ali calado, olhando para a cara do outro.

    Como estava rodando sua pobre histria!

    Eu quero ela de volta! disse, afinal.

    T bom! Mas no pode esperar um pouquinho?

    Quero hoje!

    Hoje? Depois daquela briga, voc ainda acha que eles vo querer a sua histria?

    No interessa! Quero hoje! repetiu papai, j alterando a voz.

    Mas como eu posso voltar ao apartamento com aquele fantasma l?

    Papai levantou-se e pegou a pasta.

    Eu vou com voc!

    Boa! Era isso mesmo que eu estava querendo. Apesar de no ter sido convidado, levantei-me pronto para acompanh-los. Com ou sem fantasma, o mais importante era recuperar a novela. Mas se houvesse realmente um poltergeist, seria bem mais divertido. Afinal, meu supergnomo iria com a gente.

    Ladislau tentou, mas no conseguiu dizer no, pois meu pai praticamente o empurrava, enquanto ele pagava a conta. To tenso papai estava, que ia at esquecendo a pasta.

    Papai! O Casca! avisei.

    Ele voltou-se.

    O qu?!

  • Gaguejando, consertei:

    A pasta!

    Leva pra mim?

    Levei. E satisfeito da vida. Tinha o pressentimento de que agora, mais do que nunca, Casca de Btula iria ter uma participao decisiva em toda aquela confuso. Eu queria estar perto!

    No era muito longe o apartamento de Ladislau. Fomos em nosso carro, papai dirigindo, e Ladislau de carona ao lado dele. Eu fui no banco de trs, com a pasta.

    O dia estava lindo, e fomos pela praia. Os dois, na frente, iam conversando, e paquerando as boazudas. Aproveitei essa distrao para estabelecer contato com o gnomo.

    Dei uma abridela na pasta, e ia chamar por ele baixinho, mas nem foi preciso: ele j foi botando a cabecinha de fora.

    Nem deixou eu dizer nada. Colocou o dedo nos lbios, pedindo silncio, e j foi dizendo:

    Shhh! Nada de conversas agora!

    Mas...

    Me faa entrar, de qualquer maneira, naquele apartamento!

    Apar...

    No adiantava argumentar. O gnomo j desaparecera dentro da pasta, exatamente quando chegamos ao prdio de Ladislau, um edifcio maravilhoso, de alto luxo. Fomos direto portaria.

    Seu Fagundes, alguma coisa pra mim?

    Ih, doutor. Um monte! respondeu o porteiro, passando s mos de Ladislau vrios envelopes e revistas. Andou viajando?

    Um pouco! Algum me procurou? Tudo bem l em casa?

    Que eu saiba, tudo O.K.! Afora os homens que trouxeram essas coisas, o resto correu normal!

    Em meio papelada, estava a histria de meu pai. Sua bela e querida histria (escrita pelo gnomo, naturalmente)! Ali mesmo na portaria, ele conferiu para ver se estava tudo certo, e guardou na pasta.

    Bem, Ladislau. Ento s isso. At logo! disse, estendendo a mo.

    Ladislau levou um choque. No esperava por isso.

  • O qu?! J vai embora? No quer subir um pouco? Senti que ele implorava. O famoso autor at tremia, ligeiramente, como quem precisa muito de ajuda. E insistiu:

    Eu ainda queria dar uma lida na sua histria!

    Vendo que nem isso convencia papai, usei um ltimo recurso:

    E eu estou apertado pra fazer xixi!

    XXI

    Quando Ladislau, l no restaurante, tentara nos dar uma idia da baguna em seu apartamento, o que ele disse no nos impressionou. Impressionados ns estvamos agora. Mais do que isso: assombrados!

    Mal ns entramos, devagarinho, sem precisar acender a luz, porque ela j estava acesa, nos deparamos com o cenrio mais absurdo de nossas vidas.

    Oh, no! e essa frase no pode faltar, porque dita em