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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE LINGUAGENS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ESTUDOS DE CULTURA
CONTEMPORNEA
WULDSON MARCELO LEITE SOUZA
Uma Excurso Pelo Contemporneo a Partir do Conceito de Modernidade Lquida de Zygmunt Bauman
CUIAB-MT 2012
1
WULDSON MARCELO LEITE SOUZA
Uma Excurso Pelo Contemporneo a Partir do Conceito de Modernidade Lquida de Zygmunt Bauman
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Estudos de Cultura Contempornea da Universidade Federal de Mato Grosso, como parte dos requisitos para a obteno do ttulo de Mestre. rea de concentrao: Epistemes Contemporneas
Orientador: Prof Dr. Jos Carlos Leite
CUIAB-MT 2012
FICHA CATALOGRFICA S729e Souza, Wuldson Marcelo Leite. Uma excurso pelo contemporneo a partir do conceito de modernidade
lquida de Zygmunt Bauman / Wuldson Marcelo Leite Souza. 2012.
112 f. Orientador: Prof. Dr. Jos Carlos Leite.
Dissertao (mestrado) Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto de Linguagens, Ps-Graduao em Estudos de Cultura Contempornea, rea de Concentrao: Epistemes Contempornea, 2012. Bibliografia: p. 108-111. 1. Civilizao moderna. 2. Sociologia. 3. Ideologia. 4. Relaes humanas. 5. Bauman, Zygmunt, 1925-. I. Ttulo.
CDU 316.75 Ficha elaborada por: Rosngela Aparecida Vicente Shn CRB-1/931
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FOLHA DE APROVAO
WULDSON MARCELO LEITE SOUZA
Uma Excurso Pelo Contemporneo a Partir do Conceito de Modernidade Lquida de Zygmunt Bauman
Dissertao defendida e aprovada em: 19 de maro de 2012.
Banca examinadora:
Orientador e Presidente da Banca
Prof. Dr. Jos Carlos Leite UFMT
Examinador Externo
Prof. Dr. Antonio Vidal Nunes UFES
Examinador Interno
Prof. Dr. Yuji Gushiken UFMT
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AGRADECIMENTOS
Primeiramente agradeo minha famlia. Meus pais, Joarlete e Benedito, por terem
feito da educao dos filhos um propsito de vida, e pelo apoio e compreenso no
momento mais difcil de minha vida. Aos meus mais que irmos, Juliene e Wender, com
quem compartilho angstias, afinidades e alegrias. Sem eles a jornada ficaria
praticamente impossvel.
Ao meu orientador, Dr. Jos Carlos Leite, pelo acompanhamento dedicado, por
proporcionar-me a liberdade de pesquisar sem presses por demandas e por indicar
autores que se tornaram fundamentais na dissertao.
Ao Dr. Antnio Vidal Nunes por aceitar o convite para compor a banca e pela amizade.
Ao Dr. Yugi Gushiken pela arguio interna da dissertao e por contribuir para o
enriquecimento deste trabalho.
minha grande amiga, Sara Juliana Pozzer da Silveira, que, como no tempo em que foi
minha orientadora na graduao em Filosofia, ajudou-me imensamente com seus
apontamentos sempre precisos. E por uma amizade que vai muito alm da afinidade
intelectual. Dra. Denize DallBello, que colaborou com seus comentrios pertinentes
e seu entusiasmo para que este texto fosse envolvido pela paixo necessria que um
pesquisador deve ter por seu objeto de estudo.
Ao Dr. Lus Alves Correa Filho com o qual nas conversas sobre Zygmunt Bauman
nasceu o tema para esta dissertao.
s minhas amigas nesta caminhada no ECCO, Alblia de Almeida, Cludia Wanessa
Poletto Rocha e Karine Krewer (cuja trilha acadmica percorremos juntos h anos),
pelas quais tenho grande estima. Ad infinitum.
Aos funcionrios do ECCO, Diego e vila, por atenderem a todos com delicadeza e,
muitas vezes, me informando das obrigaes que eu acabava esquecendo.
Aos novos amigos Fabiana Martes, Jone Castilho, Cleber Rodrigues e, em especial,
Ariadne Marinho Machado com os quais compartilhei grandes momentos nesses
ltimos dois anos de livros a festas.
Elite Borges Lopes por sua amizade e palavras sempre preciosas. Uma mulher
maravilhosa de grande importncia em minha vida.
E aos amigos, que mesmo distantes, esto sempre presentes em meu corao, Renata
Braga, Milka Borges, Maureci Moreira de Almeida e Amanda Jacqueline do Amaral.
4
No meu entender, o otimista aquele que acredita que este o melhor dos mundos possveis. E o pessimista aquele que suspeita que o otimista tem razo... Nesse quadro, no me identifico nem com o otimista nem com o pessimista, pois acredito que o mundo possa ser melhorado e que essa mera crena instrumental em torn-lo melhor... Zygmunt Bauman fcil viver no mundo conforme a opinio das pessoas. fcil, na solido, viver do jeito que se quer. Mas o grande homem aquele que, no meio da multido, mantm com perfeita doura a independncia da solido. Ralph Waldo Emerson
5
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo a anlise da contemporaneidade, segundo o
conceito de modernidade lquida defendida pelo socilogo polons Zygmunt Bauman.
Ao adotar essa designao, para os tempos atuais, procuramos entender o mundo fludo
e instvel no qual ocorre uma constante imploso dos valores e padres, que em outrora
(denominado por Bauman como fase slida da modernidade) percebamos como
rgido e incontestvel e que era regido por uma racionalidade tcnica e fundamentado
no fortalecimento do Estado e da cincia. O propsito verificar certas instncias
modeladoras da vida humana, como as ideologias polticas, as demarcaes de
fronteiras (sejam elas geogrficas, cientficas, etc.), as relaes pessoais e comunitrias,
confrontando-as com o estado transitrio, transnacional, flexvel e mutante de um
mundo globalizado, individualizado e consumista; um mundo que transmite uma
sensao de abandono e insatisfao, marcado, como aponta Bauman, pela incerteza,
insegurana e falta de garantias e proteo. As ideias do socilogo polons para o que
constitui a modernidade lquida nos proporciona o suporte terico para uma
investigao acerca dos assuntos relacionados e para um dilogo com autores que
investigam (ou diagnosticaram) a vida contempornea, como Gilles Deleuze, Flix
Guattari, Nestor Garca Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony Giddens
entre outros, intentando, desse modo, construir um texto interdisciplinar.
Palavras-chave: modernidade lquida; globalizao; fronteira; ideologia; relaes
humanas.
6
RESUM
Le prsent travail vise lanalyse de la contemporanit, selon la thse de modernit
liquide dtenue par le sociologue polonais Zygmunt Bauman. En adoptant la
dsignation, modernit liquide, pour lpoque actuelle, nous cherchons comprendre le
monde fluide et instable o il ny une rgulire crise de valeurs morales et les normes,
quautrefois (Bauman appele de la phase solide de la modernit), nous avons compris
comment dur e incontest et qui a t rgi par une rationalit technique et base sur le
renforcement de lEtat et de la science. Lobjectif est de vrifier certains thmes
centrauxs de la vie humaine, comme les idologies politiques, la dmarcation des
frontires, les relations personnelles et communautaires, les confrontant avec ltat
transitoire, transnational, flexible et mutant dun monde globalis, individualise e
consumriste; un monde qui exprime un sentiment dabandon et de linsatisfaction
marque, comme Bauman nous dit, par lincertitude, linscurite, le manque de
garanties et de protection. Les ides du sociologue polonais par ce qui constitue la
modernit liquide nous offre le soutien thorique une enqute sur les questions
relatives et pour un dialogue avec les auteurs qui enqutent (ou diagnostique) la vie
contemporaine comme Gilles Deleuze, Flix Guattari, Nstor Garca Canclini, Milton
Santos, Arjun Appadurai, Anthony Giddens, entre autres, avec lintention donc
construire un texte interdisciplinaire.
Palavras-chave: modernit liquide; globalisation, frontire; idologie; relations
humaines.
7
SUMRIO
INTRODUO --------------------------------------------------------------------------------- 8
CAPTULO I Modernidade lquida: o contemporneo a novidade que se
modifica a cada passo ------------------------------------------------------------------------- 12
1.1. Modernidade slida-modernidade lquida: passagem e no ruptura --------- 14
1.2. Leveza: a insustentabilidade dos pontos de parada ------------------------------ 23
1.3. A desforra dos nmades --------------------------------------------------------------- 32
1.4. A novidade que se expira em alta velocidade ------------------------------------- 39
CAPTULO II Globalizao: runas da ideologia e fronteiras friccionadas? --- 45
2.1. A globalizao dos ricos versus a globalizao para todos ----------------------- 49
2.2. Ideologia: quem cantar que precisa dela pra viver? ----------------------------- 61
2.3. A porosidade e o acirramento das fronteiras: um jogo de contradio ------ 71
CAPTULO III A fragilidade dos laos humanos: da aparente felicidade ao vazio
contemporneo --------------------------------------------------------------------------------- 79
3.1. Laos construdos, laos dissipados -------------------------------------------------- 83
3.2. Vivendo no abandono: implicaes polticas --------------------------------------- 91
3.3. Consumo e identidade ------------------------------------------------------------------- 94
3.4. Fragmentos e episdios: a insustentvel leveza do ser --------------------------- 100
CONSIDERAES FINAIS --------------------------------------------------------------- 104
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS --------------------------------------------------- 107
FILMOGRAFIA ----------------------------------------------------------------------------- 111
8
INTRODUO
A discusso acerca da modernidade se ela foi superada, se houve uma ruptura
cuja ciso gerou a ps-modernidade (originando questionamentos sobre a validade dos
constructos modernos) ou se ocorreu, realmente, a efetivao de todos os seus
pressupostos, o que determinaria que o projeto moderno est inacabado causa
calorosas, e muitas vezes contraditrias, asseveraes. Se a modernidade, como aponta
Bauman, era um projeto de derretimentos de noes e fundamentos que sustentavam
um mundo tido como obscuro, provinciano, hierrquico, sacro, a ps-modernidade um
estgio tambm de desintegrao, na verdade, um momento de liquefao (assim como
a modernidade) de certezas que creditavam a racionalidade cientfica a capacidade de
prever todos os eventos naturais e atenuar seus efeitos e que os direitos sancionados por
poderes mobilizados para serem fortes e proporcionar a todos condies de desenvolver
sua individualidade seriam irrevogveis. O impulso moderno um passo calculado,
criativo e destrutivo; as suas fundaes so frgeis, apesar da solidez transmitida. O
Estado moderno exibe a bandeira do capitalismo, e para o capital voraz nem suas
prprias criaes esto isentas de sua sede devastadora.
A modernidade com o intuito de ser um modelo universal do uso da razo, de
instituies atuantes (mas no tutoras) constituiu a ideia de saberes/disciplinas plenas,
puras nas quais cada uma delas era responsvel por um ramo do conhecimento. Desse
modo, a razo fora consagrada como a maneira mais segura e ntida de acessar a
verdade. A sensibilidade e o instinto foram vistos como obstculos para efetivao de
tal conhecimento baseado na racionalidade cientfica. Porm, a ps-modernidade (e
conceitos como ps-colonialismo, hibridao, teses como modernidade-mundo, segunda
modernidade, hipermodernidade, modernidade lquida) configurou-se como uma fase
que retira da racionalidade tecnocientfica o cetro de soberana da verdade e restitui ao
conhecimento intuitivo, ao senso comum, aos instintos, s sensaes pores
considerveis de crdito no que tange ao nosso entendimento sobre o mundo.
A epistemologia contempornea ps em andamento abordagens argutas e
incisivas para analisar esse panorama de contestao e observao a respeito da escala
moderna at os dias de hoje. A tese de Zygmunt Bauman de um mundo em processo de
liquefao (poder-se-ia afirmar liquefeito) marcado por quebradios laos afetivos,
pela incerteza, insegurana e falta de garantias expe com contundncia as fraturas da
9
modernidade. Para Bauman, a poca atual propcia para colocar a modernidade em
avaliao. um tempo de reflexo na qual a credibilidade e a validade das conquistas e
falhas modernas podem ser debatidas, descartadas, revalidadas. Mas a era atual se
mostra fluda, leve; h pouco espao (ou mesmo inteno) para estabelecer rotinas; os
poderes globais agem para desmantelar os laos afetivos/nacionais/sociais para
proporcionar um aumento de fluxo de pessoas (porm nem todas tm passagem pelas
fronteiras que separam a dura realidade do sonho de uma vida menos rdua) e capital
em circulao.
Contudo, a modernidade e a ps-modernidade terminam sendo descritas com
caractersticas semelhantes por alguns autores, mesmo que o propsito seja gerar grades
de diferenas que daria proeminncia a uma em relao outra. Para Marshall Berman
(2007), a modernidade contraditria e paradoxal. H um conflito, uma tenso entre
uma imposio burocrtica para gerenciar a vida dos cidados, da comunidade e uma
luta contnua pela autoafirmao. Linda Hutcheon (1991) ao propor uma potica da ps-
modernidade argumenta que tal perodo distingue-se pela contradio e paradoxo. um
tempo que exibe tons de autorreflexividade, ironia e pardia que deixam em colapso o
formalismo e a engessada histria moderna.
Jrgen Habermas (1990) defende que o projeto moderno, na verdade, est
inacabado. O filsofo alemo acusa os ps-modernos de serem autoindulgentes e de
efetivarem uma transcendncia que era prpria da modernidade para autocompreenso,
alm de alegar que os pensadores ps-modernos descuidaram da observao do curso da
histria. O pensamento, desse modo, tornou a-histrico.
Para Zygmunt Bauman, o ponto precpuo do debate se assenta na passagem da
modernidade slida (de modelos hegemnicos de conduta, instituies fortes,
individualizao, fronteiras, territorialidade, formatao dos Estados-nao) para a fase
lquida da modernidade (de poderes fludos, Estados desregulamentados, individuao
exacerbada, fronteiras dissipadas, desterritorializao, laos afetivos e nacionais
frgeis). Deste modo, no h uma ruptura, mas um processo agudo de esgaramento dos
constructos modernos, sem, no entanto, gerar sua superao ou abolio.
A modernidade lquida tem latente uma indefinio sobre o futuro de homens e
mulheres. A globalizao engendrou um mundo em descontrole no qual o capital leve
e transita com assustadora facilidade. As pessoas assumem essas caractersticas, o que
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faz com que a incerteza seja mais pungente na atualidade, tornando o aprofundamento
nas relaes que se constri durante esses deslocamentos algo raro.
O olhar lanado para analisar o mundo contemporneo deve ser interdisciplinar.
No somente para pr em prtica uma tendncia, mas para compreender um cenrio
hbrido, no qual disciplinas dialogam para forjar algum aspecto indito, inslito, mas
sincero e condizente, que sofre os atritos e convergncias dos mais diversos agentes
sociais. Para tanto, a sociologia, a antropologia, a filosofia, a literatura e o cinema foram
cooptados como recursos discursivos para engendrar uma tentativa de compreenso do
nosso momento histrico sob a luz da modernidade lquida. A escolha da tese de
Bauman se deve no apenas afinidade com as ideias do autor, mas, tambm, pela
maneira penetrante de enfrentar questes essenciais (com altas doses de temor e
maravilhamento) para a contemporaneidade, a saber, a dissoluo das fronteiras, a
globalizao, o fim das ideologias e a fragilidade dos laos humanos.
No primeiro captulo, a passagem da modernidade slida para a modernidade
lquida se coloca como um problema central para o entendimento das ocorrncias que
proporcionaram o esfacelamento de construes que foram erguidas para ser perenes. A
convico de que a cincia e a individuao, junto s noes de Estado, leis, famlia
manter-se-iam firmes e inviolveis a qualquer ataque, ruiu com o sobejo de novas
formas de compreender as mudanas (e a necessidade delas) que o mundo apresentava.
A racionalidade tecnocientfica, cuja suposio do totalitarismo, mostrou-se insuficiente
para abarcar e significar tais alteraes na estrutura moderna. E a velocidade do mundo
atual e a exigncia de deslocamento por motivos diversos levaram
desterritorializao e tambm extraterritorialidade de uma elite global coordenada pela
fluidez e leveza de um capital que ignora fronteiras e cria novidades (temporrias) a
todo instante.
O segundo captulo trata de questes que se sintonizam de vrias maneiras: a
globalizao, o fim das ideologias e o esvanecimento das fronteiras. As implicaes que
relacionam esses assuntos esto enlaadas num mercado global de mercadorias que
fomenta o livre trnsito de produtos e servios ao mesmo tempo em que, apesar da
extraterritorialidade atual, impem barreiras para um fluxo sem constrangimentos s
pessoas. As fronteiras ainda permanecem vigilantes aos que so considerados personas
non gratas, queles de quem se suspeita no estarem aptos para o consumo. O fim das
ideologias se vincula com a ideia de que a economia de mercado por defender o livre
11
comrcio impunha uma definitiva prova que os embates polticos eram desnecessrios
para um tempo em que a competio dizia respeito a como ser efetivo na luta pelo
mercado. No entanto, tal declarao de encerramento de debates ideolgicos configura a
tomada do capitalismo e de uma competio injusta, desigual como base ideolgica para
a movimentao desse mundo supostamente sem ideologia.
Por fim, o terceiro captulo versa sobre a fragilidade dos laos humanos. No ter
vnculo que nos prendam a algum lugar uma exigncia da modernidade lquida. O que
ocasiona um complexo estado de insegurana que adiciona a incerteza atual um desejo
de mobilidade assombrado por uma vontade de estreitar os laos tornando-os
duradouros com aqueles que nos cercam. O consumismo, a identidade, a flexibilidade
como caractersticas da modernidade fluda so questes que geram desconforto e
aumentam a sensao de angstia que acompanha inmeros candidatos ao sucesso e
felicidade na era lquida. Uma breve excurso pela vida episdica e fragmentria a partir
da obra do escritor tcheco Milan Kundera conclui o captulo.
A modernidade lquida um tempo de novidades e uniformizao, de contrastes
e tentativas de consolidao de modos de vida. Por isso, a incerteza paira sobre ela
como algo sempre presente, e por vezes, parecemos inermes ao seu efeito. Zygmunt
Bauman nos auxilia na elucidao dos pontos obscuros e no entendimento dos
mecanismos do funcionamento da globalizao e do por que do consumo ter tomado o
primeiro plano na vida de homens e mulheres ao redor do planeta. Tais interrogaes
nos proporcionam a adoo de uma perspectiva epistemolgica que abarca reas
distintas do conhecimento para construir um painel interdisciplinar que contribui para a
compreenso de um mundo em desintegrao que corresponda a superar a incerteza e se
alimentar dela.
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CAPTULO I
Modernidade lquida: o contemporneo a novidade que se modifica a cada passo
A frase do filsofo transcendentalista estadunidense do sculo XIX, Ralph
Waldo Emerson1, Quando patinamos sobre gelo quebradio, nossa segurana depende
de nossa velocidade, apresenta neste incipiente sculo XXI uma atualidade
assombrosa. Essa mxima do (e no) sculo da industrializao oferece, alm de uma
instrutiva ilustrao visual, um conselho para o agir: em situaes difceis, busque a
resoluo rapidamente, para no ser atingido implacavelmente pelos problemas que ela
vir a causar. Claro que as decises tomadas devem observar uma conduta condizente
com a busca do eu interior e considerando o proceder moral augusto de um homem
independente do pensar de terceiros, que seja superior e que leve em conta a bondade
pela bondade, acima das expectativas de recompensas e retribuies. preciso, acima
de tudo, como diz Emerson, ter confiana em si mesmo, esse o segredo do sucesso.
Contudo, h no dito de Emerson, uma suspeita de perigo. Perigo, o qual o nosso ligeiro
poder de deciso poder nos deixar a salvo da provvel hipotermia.
No sculo XXI, o excelso dito de Ralph Waldo Emerson desloca-se do agir
moral, ou pelo menos da preocupao com os seus desdobramentos, para um safar-se
inclume da situao de escolha, de emergncia na qual nos encontramos e esse
estado mostra-se contnuo, sem grandes intervalos entre eles, como se tudo que ocorre
devesse ser considerado os decisivos da vida. Como o Chris Wilton, personagem de
Match Point (2005) de Woody Allen, que diante lances capitais transita entre oposies,
mas opta pelas ambies individuais, que incluem assassinatos e a subjugao da
conscincia s escolhas irreversveis.
Zygmunt Bauman usa a frase de Emerson como epgrafe na introduo de seu
livro Vida Lquida, publicado, em 2005, na Inglaterra. Vida lquida que o tipo de vida
que se consolidou nas ltimas dcadas; a vida que se constitui em uma sociedade
1 Filsofo estadunidense (1803-1882) criador da escola transcendentalista. Buscou de forma lrica e lgica a independncia espiritual do homem. Seu pensamento foi marcado por paradoxos brilhantes e por aforismos lacnicos e enrgicos. Fonte: LAROUSSE. Volume VII, 2 edio revista e atualizada da Enciclopdie Larousse Mthodique. Texto original Bernard Fay. Traduo Heitor Fres. Adaptao e atualizao Paulo Rnai. Rio de Janeiro: Delta, 1968.
13
moderna lquida. Segundo Bauman, Lquido-moderna uma sociedade em que as
condies sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais curto do que
aquele necessrio para a consolidao, em hbitos e rotinas, das formas de agir
(BAUMAN, 2007b: 07). O que Bauman declara como modernidade lquida uma fase
que se contrape modernidade slida, aquela poca que desenhou e consagrou-se com
o Iluminismo, mas que tem em seu lastro o Positivismo, a Revoluo Industrial, o
Fordismo e incontveis eventos e teorias que formularam um mundo
(predominantemente o lado ocidental do planeta) governado por uma racionalidade que
definiu um savoir-faire baseado na soberania da cincia, na lgica, no clculo, na
eficcia do planejamento, na indstria, na constncia, na fidelidade aos compromissos.
Enfim, caminhou em direo certeza e segurana. A modernidade lquida, ao
contrrio, leve, fluda, inconstante, exibe mobilidade, carrega consigo a ideia de
transitoriedade, ela mutante e impe a necessidade de movimento contnuo. Contudo
traz em seu bojo a incerteza, o sentimento de insegurana, de falta de garantias e
proteo e a exigncia de liberdade num processo de individualidade exacerbado.
Voltemos observao de Emerson, quando caminhamos sobre gelo quebradio a nossa
velocidade que nos mantm em segurana e que nos preserva no jogo da vida ensaiada
na modernidade lquida repleta de possibilidades espera dos mais velozes. Ser frgil e
percorrer esta trajetria em passos lentos e reflexivos pode significar falta de habilidade
na disputa-mor: a da sobrevivncia.
A velocidade, no entanto, no propcia ao pensamento, pelo menos ao pensamento de longo prazo. O pensamento demanda pausa e descanso, tomar seu tempo, recapitular os passos j dados, examinar de perto o ponto alcanado e a sabedoria (ou imprudncia, se for o caso) de o ter alcanado. Pensar tira nossa mente da tarefa em curso, que requer sempre a corrida e a manuteno da velocidade. E na falta do pensamento, o patinar sobre o gelo fino que uma fatalidade para todos os indivduos frgeis na realidade porosa pode ser equivocadamente tomado como seu destino (BAUMAN, 2001: 239).
Invocando Max Scheler, Bauman aponta para a importncia em no se confundir
fatalidade com destino. Fatalismo resultado de um erro de conjugao do juzo.
Portanto, os seus passos so artificiais (fruto do raciocnio ou, muitas vezes de
motivao emocional) e compreensveis. Significa que h maneiras de corrigi-los,
convert-los, de encontrar sadas para os equvocos cometidos ou para as situaes que,
14
pelas mais diversas razes, nos envolvem. Destino a ampla capacidade de procurar
sada para a fatalidade. A imagem de nosso destino adverte Max Scheler, s nos
abandona quando lhe damos as costas (BAUMAN, 2001: 240). Ou seja, quando
aceitamos que nada poderia ter sido diferente.
Se afirmarmos categoricamente que um acontecimento irreversvel camos na
armadilha do fatalismo, passando a acreditar que o destino que se consolida por sua
prpria e irrecusvel trama. Desse modo, no h espao para perceber o que de fato
ocorreu. Nesse caso, anula-se a reflexo. E o destino deve ser encarado como reflexo.
Destino uma construo erigida pelo pensamento, portanto, exige autorreflexo e
avaliao daquilo que nos circunda e das escolhas feitas. Dedicao que o mundo
lquido no permite. Por isso elucubrar sobre o fatalismo parece sem sentido. Parar
significa a instaurao da insegurana. E a fatalidade significa responsabilizar o
indivduo e deix-lo abandonado prpria sorte, jogando-o, assim, direto para a crena
de um destino a ser aceito. A falta de tempo corri a possibilidade de perceber o destino
como construo cotidiana. Por isso, o gelo fino consagrou-se como o solo que desafia
os aventureiros da vida na modernidade lquida.
1.1. Modernidade slida - modernidade lquida: passagem, no ruptura
Em entrevista revista Tempo Social, em 2004, Zygmunt Bauman aponta a
diferena central entre a sociedade anterior, que ele chama de modernidade slida e a
vida contempornea, na qual homens e mulheres esto enredados, a modernidade
lquida.
[...] a vida moderna foi desde o incio desenraizadora, derretia os slidos e profanava os sagrados, como os jovens Marx e Engels notaram. Mas enquanto no passado isso era feito para ser novamente reinraizado, agora todas as coisas empregos, relacionamentos, know-hows, etc. tendem a permanecer em fluxo, volteis, desreguladas, flexveis. A nossa uma era, portanto, que se caracteriza no tanto por quebrar as rotinas e subverter as tradies, mas por evitar que padres de conduta se congelem em rotinas e tradies (BAUMAN, 2004b).
15
O movimento contnuo: dinamismo e a falta de compromisso (que no pode ser
confundido com o no comprometimento com aquilo que se faz, pois se trata da no
criao de vnculos que nos prendam quilo que fazemos no momento) marcam
indelevelmente esta poca de mobilidade e mutaes.
O derretimento dos slidos foi a proposta de uma era que pretendia se livrar de
todos os resqucios da Idade Mdia e da moral de uma velha ordem que atava as mos a
valores que impediam o desenvolvimento de pressupostos de conduta que coadunassem
com o uso irrestrito da razo. Deveres com a famlia, a Igreja, com os ideais locais
passaram a ser entendidos como empecilhos. As supersties, a convico ilimitada na
Providncia Divina para os negcios, as imposies comunitrias eram assaz defendidas
pelos partidrios dos antigos estatutos que sustentavam a tradio e o poder feudais,
clericais, monrquicos, tidos como pouco esclarecidos pelos proponentes de uma viso
moderna do mundo. Apesar de a batalha prometer dificuldades, a hierarquia de outrora
estava em runas. A tarefa de derreter os slidos se mostrava urgente.
Se o esprito era moderno, ele o era na medida em que estava determinado que a realidade deveria ser emancipada da mo morta de sua prpria histria - e isso s poderia ser feito derretendo os slidos (isto , por definio, dissolvendo o que quer que persistisse no tempo e fosse infenso sua passagem ou imune a seu fluxo). Essa inteno clamava, por sua vez, pela profanao do sagrado: pelo repdio e destronamento do passado, e, antes e acima de tudo, da tradio isto , o sedimento do passado no presente; clamava pelo esmagamento da armadura protetora forjada de crenas e lealdades que permitiam que os slidos resistissem liquefao (BAUMAN, 2001: 09).
Enfim, derreter os slidos para erigir outros mais rgidos e imunes s sedies do
fanatismo, abandonar os vestgios de irracionalidade de uma tradio em que a
autoridade estava alhures no Absoluto das crenas sagradas.
Bauman postula que o projeto da modernidade possua como leitmotiv a
emancipao da razo dos grilhes de um mundo que se afundava em sua ignorncia.
Era preciso fundamentar novos horizontes que possibilitassem uma viso mais acurada
de uma nascente vontade de independncia do pensamento. A escapatria das nebulosas
configuraes de um mundo pr-moderno se assentava na racionalizao das relaes
econmicas, polticas e sociais.
16
[...] Derreter os slidos significava, antes e acima de tudo, eliminar as obrigaes irrelevantes que impediam a via de clculo racional dos efeitos; [...] Por isso mesmo essa forma de derreter os slidos deixava toda a complexa rede de relaes sociais no ar nua, desprotegida, desarmada e exposta, impotente para resistir s regras de ao e aos critrios de racionalidade inspirados pelos negcios, quanto mais para competir efetivamente com eles (BAUMAN, 2001: 10).
Tratava-se de destruir para criar, de substituir os deteriorados alicerces pr-
modernos por blocos resistentes que se manteriam firmes em sua posio, pouco
importando que tipo de exame ou desafio fosse-lhes impostos. A modernidade, para
pensadores como Marx e Engels, desejava efetivar todo tipo de ultrapassagem em
relao a um mundo tido como obscuro, provinciano, cativo de referenciais sacros.
Segundo George Balandier (1997: 157), o pensamento moderno que opera rupturas,
que afasta a tradio portadora de permanncia e apreende tudo sob o aspecto do
movimento sendo deste, ao mesmo tempo, o instrumento e a expresso. Nesse cenrio,
a razo instrumental se consolidou como a forma mais segura de garantir o projeto
moderno. A razo instrumental e sua base cientfica livraria o ser humano do medo
tornando a Natureza sem mistrios, os poderes seculares mais transparentes e
concederia aos homens o privilgio de se declarar senhores do prprio entendimento.
De Francis Bacon (mtodo indutivo) passando por Descartes (ceticismo metodolgico,
geometria analtica), Galileu (heliocentrismo), Newton (lei da gravitao universal) at
a etapa onde o apelo razo recrudesce, o Iluminismo.
Em Dialtica do Esclarecimento, Max Horkheimer e Theodor W. Adorno
discutem como a Ilustrao converteu-se no mito que pretendia combater. Quando a
racionalidade se imiscui em todos os setores da vida relegou a sensibilidade, os
sentimentos, as sensaes, a intuio, o senso comum, os saberes locais a extratos
inferiores do processo de conhecer. Assim a razo sempre alerta produziu monstros que
prometera eliminar com o soterramento do mito, das supersties, dos medos gerados
pela incompreenso da natureza dos tempos pr-modernos.
Do medo o homem presume estar livre quando no h nada mais de desconhecido. isso que determina o trajeto da desmitologizao e do
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esclarecimento, que identifica o animado ao inanimado, assim o mito identifica o inanimado ao animado (ADORNO e HORKHEIMER, 1985: 29).
Desvendar segredos, afastar o medo e dirimir os mistrios que envolviam a
natureza so propostas que se perpetuaram pelo trajeto da modernidade. De Francis
Bacon e sua mxima, no Novum Organum (1620), de que para entend-la (a Natureza)
era preciso obedec-la para domin-la explorao dos minrios e reservas naturais, a
tcnica foi o ponto crucial das conquistas e vicissitudes modernas. A ideia de progresso
sem o aprimoramento da tcnica no seria vivel. Tanto o progresso imaginado quanto a
tcnica consolidada so asseveraes de um mundo no qual a cincia a principal juza
sobre a verdade das coisas. Clculo, previso, verificao so termos que acompanham
os acontecimentos naturais e os eventos promovidos pelos homens. No h mais
iluses, ou essa era a obsesso a ser perseguida. A razo vigilante quer sondar os mais
desafiadores enigmas da natureza. Na verdade, enigmas para cincia so criptogramas
que no resistem a uma inteligncia curiosa e dotada de indefectveis tcnicas para
acess-las. A relao que se estabelece unilateral, fechada para o dilogo e inflexvel.
O esclarecimento comporta-se com as coisas como o ditador se comporta com os
homens. Este conhece-os na medida em que pode manipul-los. O homem da cincia
conhece as coisas na medida em que pode faz-las (ADORNO e HORKHEIMER,
1985: 24).
A cincia deveria libertar os homens e as mulheres, essa era a expectativa que
muitos visualizaram como alcanvel, faz-los senhores de sua autoafirmao. Libert-
los para que produzissem tempo livre e conquistassem a emancipao intelectual e
imunidade em relao s intempries da natureza. O ardil subjacente no penetrante
discurso do conhecimento total era a dominao que ocultava. Dominar a natureza
acarretou em dominar o ser humano. A promessa de felicidade malogrou-se em
obstculos que tornaram a emancipao quimera. Os homens e mulheres modernos
sentiram o bafejo de uma vida confortvel e de problemas externos relativamente
reduzidos. Entretanto, a tcnica tornou-se uma exigente auxiliar dessa vida e depois
scia majoritria para, em seguida, resplandecer como soberana. A dedicao total ao
trabalho foi incorporada s diretrizes econmicas e sociais que apontavam para o
progresso.
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A modernidade foi construda para no ser reflexo de nenhuma outra poca da
histria humana. Por isso, o derretimento dos slidos imperou diante qualquer
inteno de restaurao. A liquidao dos antigos slidos pretendia engendrar
slidos cuja fortaleza seria inabalvel.
Bauman aponta que a sede moderna por autogerenciamento e autoafirmao
emana dos indivduos uma autocrtica da realidade que est sempre se fazendo e nunca
satisfeita por completo. Por mais que nos agrade um lugar e nos acomodamos a ele, a
permanncia uma luta, pois aos homens e mulheres pertence a responsabilidade do
sucesso ou fracasso dessa empreitada. A afinidade com o liberalismo faz da era dos
slidos o perodo em que os indivduos dependiam de suas habilidades, capacidade de
fidelidade e persistncia para triunfar. Como explica Norberto Bobbio (2006: 31),
Como teoria do Estado, o liberalismo moderno (...). O indivduo moderno em seu
estado singular dependia de sua autonomia recm-conquistada. Mas o terreno era
acidentado. O liberalismo buscava efetivar a personalidade individual; mesmo que isso
significasse a no igualdade entre todos os postulantes autodeterminao.
Max Horkheimer defende que os traos positivos da modernidade ou pelo
menos seu intuito de cunho racionalista (asseverado pela ideia de liberdade)
acarretaram o advento daquilo que ousavam enfrentar: a contradio, o dogmatismo, a
imprevisibilidade, as aes tuteladas, no autnomas.
Neste processo da histria das ideias reflete-se o fato histrico de que todo o social de que faziam parte as tendncias liberais, democrticas e progressistas da forma cultural dominante, continha tambm desde o incio o seu contrrio servido, acaso, e mero domnio da natureza o qual, fora da prpria dinmica do sistema, ameaa no fim destruir com certeza os traos positivos (HORKHEIMER, 1990: 140).
Para Isaiah Berlin, a liberdade proclamada (e em tese a ideia de que a autonomia
conduziria a uma liberdade em que os obstculos eram dirimidos pela possibilidade
crescente de autogerncia das escolhas) esbarrava nos limites impostos pelas opes de
ao. As teorias liberais associavam-se com a racionalizao aguda do mundo. A
liberdade era concedida para se fazer aquilo que professava uma lgica racionalista. As
opes deveriam circular pela necessidade e pela contingncia, e a definio exata da
conduta excelsa por esses termos era o acessado apenas pela razo crtica. Anulado o
19
impulso irracional e certificado a obedincia lei, a individualidade perfazia-se
circunscrito ao racionalismo.
Algumas portas conduzem a outras portas abertas; outras, a portas fechadas; h uma liberdade real e h uma liberdade potencial dependendo do grau de facilidade com que algumas portas fechadas podem ser abertas, dados os recursos existentes ou potenciais, fsicos e mentais. (...) Mesmo que no se possa apresentar uma lei inflexvel, ainda resta o fato de que a dimenso da liberdade de um homem ou de um grupo , em grande medida, determinadas pela srie de possibilidades que se acham disposio de sua escolha (BERLIN, 2002: 151).
As regras do jogo, os procedimentos adequados para alcanar o cume das nossas
pretenses eram impostos de fora. Aonde chegar e como chegar poderiam ser sonhos,
mas para realiz-los os caminhos a se seguir j possuam placas de sinalizao, e as
escolhas reduzidas no permitiam lacunas para que outsiders reconfigurassem as rgidas
regras implantadas.
Era uma poca que pretendia impor a razo realidade por decreto, remanejar as estruturas de modo a estimular o comportamento racional e a elevar os custos de todo comportamento contrrio razo to alto que os impedisse. Em razo do decreto, negligenciar os legisladores e as agncias coercitivas no era, obviamente, uma opo. A questo da relao com o Estado, fosse cooperativa ou contestadora, era seu dilema de formao; de fato, uma questo de vida e morte (BAUMAN, 2001: 58).
A Teoria Crtica da Escola de Frankfurt deu dimenso necessidade de
preservar o espao privado das interferncias da esfera pblica; aquilo que seria do
domnio humano fora invadido por uma instrumentalizao da razo que elevou
tcnica a estatura de um destino irrecusvel. Os seres humanos seriam manobrados
como objetos impotentes diante das condies sociais propostas. Uma sociedade
regulada surgiu no horizonte da modernidade trazendo tanto a semente da emancipao
quanto da destruio.
A teoria crtica acusava de duplicidade ou ineficincia aqueles que deveriam ter providenciado as condies adequadas para a autoafirmao: havia limitaes demais liberdade de escolha e havia tendncia totalitria
20
intrnseca ao modo como a sociedade fora estruturada e conduzida tendncia essa que ameaava abolir a liberdade de uma vez, substituindo a liberdade de escolha pela tediosa homogeneidade, imposta ou sub-repticiamente introduzida (BAUMAN, 2001: 60).
O desenvolvimento tecnolgico formou um liame com a ideia de progresso;
aliana que reforava a penetrao da razo instrumental nas decises humanas.
Situao que obliterava o sonho de autoafirmao. A Teoria Crtica buscou, ento,
produzir uma gama de defesa para impedir as provveis restries plena liberdade dos
desiderativos humanos. O que precisava ser resguardado era o espao privado dos
indcios de dominao pela esfera pblica, ou seja, dos arbtrios de uma classe
dominante endossada pela fora do Estado de sua burocracia e de um sistema
financeiro internacional avassalador na implantao de regras favorveis aos seus
interesses. A autonomia intelectual, de manifestao de desejos e de possibilidade de
gerao de idiossincrasias contra os abusos da vida regular estavam em risco. A Teoria
Crtica fomentou o recurso de denncia da intromisso do esprito instrumental nos
percursos de sobrevivncia de homens e mulheres: do enfrentamento de Ulisses ao
canto das sereias aos variados e consolidados clichs fabricados pela indstria cultural,
a ideologia do progresso vaticinava uma sociedade espelhada pela eficcia da tcnica.
Ao buscar apartar-se das imposies/armadilhas da Natureza, o ser humano produziu
uma emboscada para si mesmo: ao tentar fugir da necessidade gerou uma liberdade que
o encurralou na figura de um sujeito que pela linguagem, manipulao de ferramentas e
aplicao tecnolgica conhece, controla e modifica a Natureza. Tal ideologia acabou
por anular os impulsos humanos e aprisionou o indivduo a um processo de reificao
contnuo: produto e produtor, criador e criatura j de antemo esto afastados. A
mercadoria a suprema criadora de si. O ser humano para vencer a Natureza reprimiu
seus instintos, deformou sua sensibilidade e aceitou, mesmo que tacitamente, o
tolhimento de sua criatividade. Para os pensadores frankfurtianos, a dominao da
natureza o primeiro avano para o domnio do homem pelo prprio homem.
A modernidade slida elegeu seus basties: a racionalidade (instrumental), o
desenvolvimento tecnolgico, a decodificao do mundo pela linguagem, o princpio de
identidade, a aposta no mercado mundial de comrcio. Panorama propcio para que tudo
ocorresse segundo a lgica do poder econmico amparado por um Estado que se
manifestava onipresente, impessoal e em conformidade com interesses de agentes
21
privados que gozavam de influncia na esfera pblica instituies bancrias, indstrias
metalrgicas, de minrios, empresas de alimentos, comunicao entre outros. Era contra
esse lado oculto da poltica que a voz dos defensores da autonomia crtica se levantou.
Era algo que soava como uma emergncia que exigia uma soluo imediata favorvel
ao partido da esfera privada.
No mundo atual, na modernidade lquida, os papis foram trocados. O antigo
invasor tornou-se candidato a promotor de uma sublevao. O espao pblico
tomado pela esfera privada. Os problemas de carter poltico ou social recebem, ao
invs de respostas concernentes ao auditrio da vida pblica, ou seja, prprias do
mbito dos poderes constitudos e da ao comunitria, ajustes vindos de iniciativas
individuais. Poder-se-ia conjecturar que tal condio a efetivao da matriz liberal da
modernidade. O neoliberalismo econmico em defesa da economia de mercado de livre
iniciativa contaminava a esfera pblica conduzindo a sua privatizao. Como postula
Norberto Bobbio (2006: 89), Na formulao hoje mais corrente, o liberalismo a
doutrina do Estado mnimo (o minimal state dos anglo-saxes). No fim, o amparo e o
apelo s ferramentas institucionais acabavam reduzidos.
Zygmunt Bauman chama a ateno, utilizando frase de Ulrich Beck, para o fato
de que vivemos consoantes ideia que o adequado parece ser buscar uma soluo
biogrfica para as contradies sistmicas. A sociedade contempornea propalada,
certa vez, como sociedade do espetculo2, em outra ocasio como sociedade do
medo3, tambm a sociedade da culpa individual, da responsabilidade pessoal pelos
erros, mesmos que eles sejam provenientes de falhas estruturais, de instituies
contaminadas indevidamente pelos prstimos da burocracia, sejam de ordem exterior ao
sujeito ou erros histricos.
No entanto, a modernidade lquida, pela distncia que a separa do apogeu da
modernidade slida, uma era na qual as ferramentas crticas proporcionam uma
avaliao reflexiva dos constructos e feitos da antiga modernidade. Na modernidade 2 A influente obra A sociedade do espetculo de Guy Debord, publicada em 1967, denuncia a sociedade
moderna capitalista como produtora de espetculos. Espetculos cotidianos gerados por imagens que despertam desejos, promovem tentativas de unidade social e acarretam na mercantilizao do todo social. 3 No somente uma sociedade do medo, mas uma cultura do medo. Sobre a insegurana do mundo
atual, ver Zygmunt Bauman, Tempos lquidos. Traduo Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
22
lquida, como estamos cientes dos equvocos modernos, temos a chance de observar
detidamente e colocar em prtica preceitos e objetivos que foram plantados no cerne das
intenes modernas, mas que descarrilaram em dbios projetos de dominao de pases
hegemnicos sobre populaes devastadas por profundos problemas de ordem
sociopoltica e econmica. Democracia, justia social, liberdade so conceitos atuais
que tiveram no Iluminismo seu nascimento, porm declinaram ao longo dos sculos e
foram submetidas a pacotes de ajuda para pases em situao de risco como modo de
impor regras na maneira de dirigir suas instituies, geralmente, em detrimento das
expectativas do povo local, e, mais recentemente, como justificativa para intervenes
blicas a outro territrio (a invaso da coalizo liderada pelos Estados Unidos ao Iraque,
iniciada em 20 de maro de 2003, um exemplo capital de tal absurdo recurso).
Bombardeia-se em nome da democracia e da liberdade: o supremo argumento falacioso.
A modernidade lquida assiste ao fim dos sonhos modernos de um telos que se
realizaria infalivelmente. A tica ps-moderna derrubou a ideia que o progresso anda
consoante a uma perfeio a ser atingida amanh ou depois. H o aqui e agora. Alm de
considerar que h uma pluralidade de contextos, optar por uma delas um exerccio que
demanda tempo, e tempo algo que escasseia rapidamente na vida lquida. E com a
desregulamentao e privatizao das tarefas modernas, a razo humana perdeu os
espaos coletivos que favoreciam a integrao dos sujeitos atuantes e a percepo desse
uso como propriedade coletiva fragmentou-se deixando esses sujeitos entregues aos
seus prprios recursos individuais e as idiossincrasias que possam criar.
Abandonados pelos blocos de amparo para o desenvolvimento da sua
compleio individual (pelo menos a iluso desta), homens e mulheres da sociedade
moderna lquida so brindados com exemplos igualmente individuais de vencedores que
contrariam as expectativas de insucessos ligadas a uma condio de vida adversa.
Polticas pblicas capazes de sanar tais deficincias permanecem no plano da retrica e
das promessas que inundam as campanhas eleitorais.
Fracassar no um tpico aceitvel na vida lquida. H todo um investimento no
sucesso, objetivamente perseguido ou repentino, a ideia que os homens e mulheres
devem se fazer por si mesmo predomina, e ainda mais quando as cobranas por
oportunidades e gerao de empregos surgem esporadicamente em reivindicaes
sindicais ou nos meios de comunicao. Em tese, espera-se que a sociedade (com o
direito de administrao outorgada ao Estado) garanta com os meios possveis s
23
chances a que todos aspiram. Com o passar do tempo alm das escolhas que j
estavam dispostas para ele o proponente a uma vida melhor ficou a cargo de uma
dupla tarefa: a de saber lidar com as possibilidades existentes e de inventar recursos
para gerar suas prprias possibilidades quando tudo parecer nebuloso; tais recursos, sua
aplicabilidade, eficincia, desatinos e falhas, so de responsabilidade exclusiva do
sujeito. H inmeras possibilidades de triunfo, de escolhas e permisso para no se
apegar a nenhuma delas. O cenrio que se apresenta de incerteza, falta de segurana e
de instabilidade endmica das opes dignas de seguir ou de exibir.
O que separa a atual agonia da escolha dos desconfortos que sempre atormentaram o Homo eligens, o homem que escolhe, a descoberta ou suspeita de que no h regras preordenadas nem objetivos universalmente aprovados que se possam seguir inflexivelmente o que quer que acontea, desse modo aliviando os que escolhem da responsabilidade pelas consequncias adversas de suas opes. Ningum impede que esses pontos de referncia e essas pautas que hoje parecem fidedignas sejam amanh (e retrospectivamente!) desmascarados e condenados como enganosos ou corruptos (BAUMAN, 2007b: 155).
Os slidos modernos que foram edificados para suplantar os deteriorados slidos
pr-modernos soobraram diante do processo de liquefao contemporneo, um novo
derretimento dos slidos que fez eclodir uma era moderna lquida.
1.2. Leveza: a insustentabilidade dos pontos de parada
Instabilidade, inconstncia, flexibilidade, vulnerabilidade e leveza so
caractersticas preponderantes da sociedade moderna lquida. Entre elas, a leveza
destaca-se por acoplar a sua definio o desapego fidelidade e s emoes que
engendram vnculos que nos enrazam a algum lugar. Na verdade, o que se exige dos
homens e mulheres contemporneos a disponibilidade para se deslocar sem entraves
relacionados a compromissos de origem sentimental. A ideia de viver em trnsito, se
locomovendo e ter pouca bagagem, viajar leve, parece atraente por eliminar
consequncias que a permanncia nos lugares pode criar. A velocidade desse
deslocamento pressupe a no continuidade dos laos. Isso significa que quanto mais
leve estamos, mais rpido percorreremos e mais longe alcanaremos.
24
Como os compromissos de hoje so obstculos para as oportunidades de amanh, quanto mais leves e superficiais eles forem, menor o risco de prejuzo. Agora a palavra-chave da estratgia de vida, ao que quer que essa estratgia se aplique e independente do que mais possa sugerir. Num mundo inseguro e imprevisvel, o viajante esperto far o possvel para imitar os felizes herdeiros da elite global que viajam leves; e no derramaro muitas lgrimas ao se livrar de qualquer coisa que atrapalhe os movimentos (BAUMAN, 2001: 187).
Planos em longo prazo so impedimentos quase que imperdoveis. A proposta j
deve ser conhecida de antemo: viver leve para facilitar a flexibilidade, mesmo que isso
acarrete em vulnerabilidade, pois a incerteza e a insegurana so desafios a serem
vencidos, no motivos para recusar a instabilidade do mundo atual. Esse entrelaamento
das caractersticas da modernidade lquida gera um sentimento de abandono com o qual
preciso aprender a viver. A gerao dos nascidos no final da dcada de 70 e incio dos
anos 80 do sculo XX, chamada pelos socilogos de Gerao Y, que foi incentivada a
ambicionar em demasia e no se contentar com as conquistas e sair atrs de horizontes
sempre mais promissores se equilibra na fina espessura da corda que sustenta as cadeias
de comando e as diretrizes empresariais do mundo contemporneo.
Ser leve condio sine qua non para atenuar as mudanas constantes. Mas elas
ocorrem com velocidade tal que afastar a insegurana mostra-se tarefa desgastante. O
tempo para mitigar esse conflito reduz-se assim que reconhecido. No entanto, o mal-
estar permanece como uma sensao mal digerida.
Impotncia, inadequao: esses so os nomes da doena da modernidade tardia, da ps-modernidade o mal estar da ps-modernidade. No o temor da no conformidade, mas a impossibilidade de se conformar. No o horror da transgresso, mas o terror do infinito. No demandas que transcendem nosso poder de atuar, mas atos espordicos numa busca v por um itinerrio estvel e contnuo (BAUMAN, 2008a: 60).
A estabilidade ainda desejvel, j que est associada concepo de
progresso na vida. Nutrimos a expectativa de um sucesso levar a outro e, assim,
consolidar nossos sonhos de ascenso e conquistas. Entretanto, o atual estado de coisas
25
no o cenrio ideal para projetos alm do presente e comemoraes prolongadas. H
escolhas a serem feitas; inmeras possibilidades de escolhas. A liberdade para
experimentar as opes que se multiplicam a nossa frente no encontra as restries
com a qual se deparava na modernidade slida. E elas no eram excessivas. Porm, em
ambos os perodos, a escolha deveria/deve ser feita. Em outrora a escolha precisava
conter a semente da continuidade. Trabalhar em uma fbrica de automveis poderia ser
garantia de futuro: estabilidade, promoo, dedicao funo, aposentadoria. Na
modernidade lquida cada escolha carrega consigo uma ambivalncia: livre e
necessria. A amplido das escolhas no suscita segurana. Pode ser a aposta certa ou
errada. um risco que devemos optar correr, a incerteza est destinada a ser para
sempre a desagradvel mosca na sopa da livre escolha (BAUMAN, 2001: 103). E a
cada dia a confirmao dessa escolha nos persegue. Provavelmente, chegar concluso
de que tomamos o caminho mais inadequado naquele momento no significa estar fora
do jogo. Mas teremos que lidar com a frustrao, aceitar que o erro nosso, e apenas a
ns cabe criar sadas para a situao desventurosa. O preo cobrado pelas alternativas
dispostas seleo da maioria arcar com os custos dos fracassos. Ser que a nossa
escolha no passava de sombra? Prometia aquilo que no teria condies de efetivar?
Bauman nos lembra de que no mundo lquido deve-se ter em mente no que tange s
escolhas que nem todas so realistas; e a proporo de escolhas realistas no funo
do nmero de itens disposio, mas do volume de recursos disposio de quem
escolhe (Idem).
Para serem bem sucedidos no trfego louco das escolhas, os que tm recursos
financeiros e intelectuais esto em vantagem. Adquirem mobilidade e privilgios que
garantem dianteira. O risco e a insegurana so adendos perspectivas de conquista, de
saciar o desejo. Porm, o desejo em si no mais o objetivo. O que acaba por mover os
aventureiros o desejar que no se satisfaa por ultrapassar a linha de chegada, mas em
procurar encontrar uma nova corrida, mesmo que o percurso seja idntico.
Na modernidade lquida trabalho e aquisio de bens materiais so vistos e
vividos da mesma forma. O modo de vida que se sobressai tem afinidade estrita com o
consumo. E no consumo o processo de individualizao da era da liquidez contribui
para que homens e mulheres se enredem mais na incerteza e insegurana. Por sua vez,
na modernidade slida, uma sociedade de produtores, a estabilidade, a durabilidade, a
pretenso de que algo se fixasse eram respostas s intempries da vida e s catstrofes
26
naturais. O indivduo (conceito moderno) concentrava-se na produo tendo a aquisio
e o acmulo como metas derivadas do labor. A ideia de indestrutibilidade daquilo que
se realizava era cara s intenes modernas. A aposta concentrava-se na prudncia e na
durabilidade. O indivduo moderno, com a realidade herdada j se desmoronando, ou
seja, em vias de derretimento, tinha que ter em mente que seria indispensvel ver-se
como cidado dali para frente; uno, mas pertencente a uma sociedade, com deveres com
as instituies que sustentavam o poder ao qual estava atrelado e no aprisionado: o
Estado. O importante era distinguir que a sociedade civil, formao de indivduos livres
e capazes, representava a preservao desse poder. As instituies davam crdito
esperana de manter a certeza e a confiana no centro da relao. Nos ltimos sculos,
as instituies que garantiam a eficincia dessas prescries sofreram desgastes que
abalaram sua credibilidade, quase como doenas crnicas que cedo ou tarde ho de
deixar a situao irreversvel.
A racionalidade caminhava sobre areia movedia. Guerras, a persistncia da
fome e da misria, regimes polticos totalitrios, uma cincia que fabricava a morte,
desemprego, infelicidade, enfim, a irracionalidade parecia estar mais presente que
anteriormente, ou se convertera, como na denncia da Escola de Frankfurt, em algo
centralizadora que subjugou todas as outras formas do conhecer humano, projetando
sombras em vez de luz. Porm, afirmar que a modernidade lquida uma reao
espontnea e necessria s falhas, s negligncias e bestialidades ocorridas em
decorrncia do uso incomensurvel da razo instrumental seria incorrer em equvoco e
em declarao forada. No entanto, as distores aproximam-se de uma interpretao de
promessas no realizadas, ou de vigilncia constante que resultaram em horrores
inimaginveis. Um mundo melhor, mais justo, mais seguro, mas transparente em
relao ao complexo jogo de poder no despontou no horizonte da idade
contempornea.
Vivemos atualmente num tonel de incertezas. Como preciso ser leve torna-se
impossvel saber se o que deixamos para trs realmente estava obsoleto. Apesar de tudo
j conter em sua fabricao a novidade e a obsolescncia, alguma coisa, talvez, tenha a
qualidade de render para alm do dia do seu abandono. A incerteza no nos permite
pagar para ver. Hoje no vislumbramos mais instncias coletivas que nos sirvam de
suporte para as nossas decises; no processo de individualizao da vida lquida
27
consumimos, acumulamos e descartamos sozinhos. Somos responsveis pelo luxo e
pelo lixo de nossa sobrevivncia.
Verdadeira novidade no a necessidade de agir em condies de incerteza parcial ou mesmo total, mas a presso contnua para desmantelar as defesas trabalhosamente construdas para abolir as instituies que visam limitar o grau de incerteza e a extenso dos danos que a incerteza desenfreada causou e para evitar ou sufocar esforos de construo de novas medidas coletivas destinadas a manter a incerteza dentro de limites (BAUMAN, 2000: 35).
A vida na sociedade lquida de consumidores apresenta-se repleta de armadilhas,
busca expert em adotar contradies e mant-las em um arriscado jogo de equilbrio e
desordem. Viver no limite de um paroxismo, entre a soluo e o erro, entre a sentena
de falncia e a possibilidade de recuperao. preciso entrar no jogo, comportar-se
como um jogador que intui (ou sabe) que o universo da ordem uma plida lembrana
da rigidez e dos clculos que vislumbravam a subida lenta, a longo prazo at a
realizao dos objetivos. Hoje abraar as contradies reflete a disposio de um
jogador que reconhece que todo o movimento deve levar em conta a rapidez nas
escolhas/aes, ou seja, a querer os resultados a curto-prazo. preciso aceitar as
inconvenincias da incerteza e desejar o que Sartre (2006) considerou o grande feito da
burguesia: o sonho da ascenso social. A ideologia de uma classe ascendente que
instaurou a ideia que vencer na vida era o princpio bsico da existncia. A felicidade
criou vnculos com um projeto de vida ostentada pelo desejo de acmulo de bens. E,
atualmente, substitudo, sem cerimnias, pelo capital leve e fludo.
O instantneo e o imediato so propriedades da leveza do ser. Homens e
mulheres em trnsito, deslocando-se, assim como o capital, para paragens mais
promissoras. A velocidade na tomada de decises, o no conformismo que cria a
impresso que se estabelecer em um lugar estagnar-se, a retirada voluntria e
incompreensvel da vida corrente dos proponentes ao sucesso. O cenrio descrito rido
para pensar sobre identidade. Se tudo muda to rpido nada se fixa. Ainda mais se
considerarmos a individualizao profunda com a qual lidamos na modernidade lquida.
A identidade o calcanhar de Aquiles de um mundo que fez da desterritorializao,
da disponibilidade e do deslocamento seus atributos fundamentais, fixar-se muito
fortemente, sobrecarregando os laos com compromissos mutuamente vinculantes, pode
ser positivamente prejudicial, dadas as novas oportunidades que surgem em outros
28
lugares (BAUMAN, 2001: 21). Contudo, o desejo de pertencimento a um solo ou a um
grupo permanece no espao das volies humanas, mesmo que seja no inconsciente de
homens e mulheres, tal desejo est em confronto com o corte incondicional de todos os
vnculos. a ambiguidade depositada no mago da contemporaneidade.
Num ambiente de vida lquido-moderna, as identidades talvez sejam as encarnaes mais comuns, mais aguadas, mais profundamente sentidas e perturbadas da ambivalncia. por isso, diria eu, que esto firmemente assentadas no cerne da ateno dos indivduos lquido-modernos e colocadas no topo de seus debates existenciais (BAUMAN, 2005a: 38).
Constituir uma identidade pode ser problemtico, mas tambm visto como
forma de resistncia, como no caso de nacionalismos que buscam enfrentar o poder
avassalador da globalizao ou a identidade de grupo, uma maneira de vencer a solido,
angstia ou mero tdio da rotina. Apesar que tais tentativas geraram o atual clima de
tenso assistidos na Europa e em outros lugares do mundo: um ambiente carregado de
revolta, xenofobia e fascismo. Uma tenso cravada no cerne da disputa entre a
territorialidade e o poder abstrato extraterritorial. A vida lquida incorpora essa
ambivalncia e administra a tenso dessa oposio sem, no entanto, extinguir a chama
do ardor pela padronizao. Mas a identidade (no considerando o propsito de
resistncia) pode ser um entrave para a compreenso de um mundo que se hibridiza,
entrecruza modos de viver, de criar, de habitar diversos; uma multiplicidade que emerge
na construo de mestiagens que se encontram e mobilizam novos conflitos e afetos.
Esse impulso identitrio pode apresentar-se como soluo para aplacar a insegurana
moderna lquida dos riscos ou ser o colapso de um mundo que comea a perceber a
mutao dos modos de vida como processo de convvio com as diferenas. Essa a
ambivalncia derradeira com a qual o mundo contemporneo ter de lidar. Por outro
lado, as diferenas so tratadas pelo capitalismo como mercadorias no jogo estratgico
do consumo ao ponto de atingir a indiferenciao dos seus locais de origem.
A hibridizao isola o hbrido de toda e qualquer linha de parentesco monozigtico. Nenhuma linhagem pode alegar direitos exclusivos de propriedade do produto, nenhum grupo de parentesco pode exercer um controle meticuloso e nocivo sobre a observncia de padres, e nenhum se
29
sente obrigado a jurar lealdade a sua doutrina hereditria (BAUMAN, 2007b: 42).
Bauman nos recorda que a hibridizao acaba por ser autnoma, consolidando
uma prtica que no a torna independente, mas um negcio associada a uma legitimao
da extraterritorialidade. uma nova luta e um antigo percalo que desafia a elite global
ao mesmo tempo em que serve a ela.
De qualquer modo, parece conveniente lembrar que, para o antroplogo indiano
Homi K. Bhabha, o hibridismo se assenta na chance de por em prtica uma traduo que
codifique os contatos culturais atrelados dinmica, apropriaes, conflitos que tais
encontros geram. H, na verdade, uma zona fronteiria pulsante na qual cultura
hegemnica e cultura subalterna, colonizador e colonizado se friccionam aguardando
uma traduo.
Se o hibridismo heresia, blasfemar e sonhar. Sonhar no com o passado ou o presente, e nem com o presente contnuo; no o sonho nostlgico da tradio nem o sonho utpico do progresso moderno; o sonho da traduo, como sur-vivre, como sobrevivncia, como Derrida traduz o tempo do conceito benjaminiano da sobrevida da traduo, o ato de viver nas fronteiras (BHABHA, 1998: 311).
O antroplogo Robert Young, concordando com Bhabha, defende que o
hibridismo se posta num setor intersticial, uma produo inquieta. Young ressalta que
o combate contra a hibridao o resultado de uma poltica implcita da
heterossexualidade, ou seja, uma batalha contra a heterogeneidade para manter uma
uniformizao (assim como o binarismo) das produes culturais/sociais/afetivas.
Tanta a hibridizao como a crioulizao envolvem fuso, a criao de uma forma nova, que possa ento ser colocada contra a forma antiga, da qual a nova fora parcialmente criada (...) uma heterogeneidade, uma descontinuidade radical, a revoluo permanente das formas (YOUNG, 2005: 30-31).
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Entretanto, Bauman detecta que a cultura hbrida global tem um escopo
extracultural. Assim carece de uma crtica das formas de apropriao e vivncia, que
significa que ela no se compromete e consome tudo o que lhe oferecem sem entender
os conflitos dos cruzamentos culturais. Permitam-me repetir: a imagem da cultura
hbrida um verniz ideolgico sobre extraterritorialidade alcanada ou programada
(BAUMAN, 2007: 46). A elite global se desloca com a leveza como insgnia sem na
realidade promover um intercmbio cultural.
Mas, em outro sentido, podemos considerar o deslocar-se, leve ou no, uma
aspirao a ser livre, um estmulo criatividade que remove barreiras do tipo que as
obrigaes com as razes culturais ou as regras de identidade impem. Mas apenas a
elite extraterritorial desfruta com tranquilidade (agora com a ameaa do terrorismo a
assombrar o seu fluxo) e prazer de tal deslocamento. Bauman percebe na literatura um
dos referenciais mais evidentes do esvaecimento das fronteiras. Ou da possibilidade de
uma abertura legtima para as diferenas existentes, por no se restringir a um nico
universo lingustico, por buscar em distintas disciplinas sociais base para o enredo, para
a investigao da condio humana, alm de lanar mo de recursos vistos com
desconfiana pelo meio acadmico, como a intuio, a imaginao, a especulao dos
efeitos de uma causa. O que gera no meio acadmico a padronizao de diretrizes que
visa mais a competio pelos recursos financeiros e uma vigilncia sobre a criatividade
que incentivos aos projetos que contestam e enfrentam esse estado de coisas.
Bauman v em escritores como Beckett, Derrida, Borges entre outros, posturas
que no se prendem a preconceitos e que articulam relaes que na vida corrente esto
interditas.
George Steiner, um crtico cultural contundente e altamente perspicaz, apontou Samuel Beckett, Jorge Luis Borges e Vladimir Nabokov como os mais importantes escritores contemporneos. O que unia, a seu ver esses autores em tudo mais distintos, colocando-os acima dos demais, era o fato de todos eles serem capazes de se movimentar com facilidade em vrios universos lingusticos diferentes. Essa contnua transgresso de fronteiras lhe permitia espiar a inventividade e a engenhosidade humanas por trs das slidas e solenes fachadas de credos aparentemente atemporais e instransponveis, dando-lhes assim a coragem necessria para se incorporar intencionalmente criao cultural, conscientes dos riscos e armadilhas que sabidamente cercam todas as expanses ilimitadas (BAUMAN, 2005a: 21).
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certo que a literatura tem um alcance modesto (ao menos a alta literatura ou
a literatura que no esteja voltada para o mercado editorial). Sua influncia ocorre
menos de elaborados planos de divulgao que de um encontro fortuito entre leitor e
texto. No entanto, ela aponta um caminho que evita precipitaes no que concerne a
valores morais, culturais e artsticos, como nos revela Bauman a respeito de suas
inspiraes sociolgicas suscitadas pela literatura.
Eu, por exemplo, me lembro de ganhar de Tolstoi, Balzac, Dickens, Dostoievski, Kafka ou Thomas More muitos mais insight sobre a substncia das experincias humanas do que de centenas de relatrios de pesquisa sociolgica. Acima de tudo, aprendi a no perguntar de onde determinada ideia vem, mas somente como ela ajuda a iluminar as respostas humanas sua condio assunto tanto da sociologia como das belles-lettres (BAUMAN, 2004b).
A identidade pode ser uma insdia se for vivida como uma couraa que
impossibilite experimentaes e o livre curso de permutas culturais. A reside o perigo
da defesa enftica da identidade. Assim como no observar a dilacerao dela neste
tempo lquido. Um movimento marcado pela contradio se estabelece: a identidade
garante a liberdade de definir quem ns somos ou por causa desta mesma definio
pode ser a catalisadora de conflitos que expugnem genunas possibilidades de conhecer
modos de vida distintos.
Ser leve uma qualidade primaz da atualidade. Na qual a identidade parece ser o
excesso de bagagem. Movimentar-se em acelerao mxima sendo que o destino
inventado para os homens e mulheres pe em xeque o propsito da autodefinio e a
associao a objetivos compartilhados, A fragilidade e a condio eternamente
provisria da identidade no podem mais ser ocultadas. O segredo foi revelado. Mas
esse um fato novo, muito recente (BAUMAN, 2004b). O que est se articulando com
a exigncia de leveza do nosso deslocamento e a porosidade das fronteiras um mundo
que vende a novidade como sua meta central, que se apresenta como mutante, no qual
antigas ferramentas que alimentavam o nosso processo cognitivo pouco contribuiro
para a sua compreenso.
1.3. A desforra dos nmades
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Fronteiras vigiadas, fortificadas, alfndegas reforadas para barrar o indesejvel.
A modernidade assistiu ao crescimento do controle pelos Estados-nao do seu
territrio constitudo. O medo do estranho, do forasteiro que acompanhou a Idade
Mdia, e um temor humano desde o princpio de sua trajetria, recebeu uma prtica de
policiamento consoante ascenso da tcnica. Linhas limtrofes imaginadas ganharam
pontos de vigilncia estratgicos, foram demarcadas para separar o solo ambicionado
como prprio dos Outros, os diferentes e possveis invasores, talvez, ainda inimigos no
declarados; somente aqueles com os quais temos identidade deveriam ter autorizao
para ultrapass-lo. Como o propsito da separao territorial a homogeneidade do
bairro, a etnicidade mais adequada que qualquer outra identidade imaginada
(BAUMAN, 2001: 124). A identidade e a etnicidade postulavam condies para criar
um "nicho seguro que deveria ser inviolvel para estranhos e protegidos contra
distrbios que colocassem em dvida a constituio do territrio.
A modernidade slida, poca da expanso na qual o tamanho, o volume, a
densidade eram atributos de qualidade (desde que, obviamente, tivessem sua eficcia
certificada), procurou conquistar o espao at ento fragmentado, distante, indomvel.
A questo do territrio no fugiu a essa obsesso. Inmeros pases que formam o mapa
mundi atual, h um sculo, viviam divididos em regies, principados, ilhas, mas o
impulso agregador de forjar uma identidade ou a justificativa para a dominao
poltica por um grupo buscou integrar locais mpares que sustentavam culturas, leis,
modos de vida distintos em um nico bloco que modificaria o quadro geopoltico.
Assim foi com a Itlia4, a Alemanha5, e, mais tarde, o caso emblemtico da Iugoslvia6.
Oposies marcadas pelas diferenas tnicas eram reprimidas em nome de uma unidade
nacional baseada na partilha do poder com maior ou menor grau de concentrao nas
mos de uma etnia do que de outra, o que ocasionou, j na ps-modernidade ou segunda
modernidade, ou na nomenclatura que se queira assumir, a ecloso dessas diferenas e
os intensos banhos de sangue vistos em Ruanda, Bsnia, Timor Leste, etc.
4 At o ano de 1860, a Itlia passou por vrios conflitos regionais e com pases europeus, como a Frana, na tentativa de constituir um territrio que integrasse todos os reinos, Lombardia, Piemonte, Siclia etc. Em 1861, o Parlamento proclamou formalmente o reino da Itlia. 5 A Alemanha, aps sculos de embate, perda e anexao de territrios, tem em janeiro de 1871, pelo Rei Guilherme I da Prssia, sua fundao, constitudo por 25 estados. 6 A Ex-Repblica Socialista Federativa da Iugoslvia dissolveu-se mergulhada numa guerra civil tnica a partir do ano de 1990. As vrias etnias que a compunha (croatas, srvios, bsnios, macednios, montenegrinos, eslovenos e albaneses) entraram em choque com a crise do socialismo e reviveram velhas feridas que eclodiram em cenas de brutalidade indescritveis.
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O territrio estava entre as mais agudas obsesses modernas e sua aquisio, entre suas urgncias mais prementes enquanto a manuteno das fronteiras se tornava um de seus vcios mais ubquos, resistentes e inexorveis. A modernidade pesada foi a era da conquista territorial. A riqueza e o poder estavam firmemente enraizadas ou depositadas dentro da terra. [...] Os imprios se espalhavam, preenchendo todas as fissuras do globo: apenas outros imprios de fora igual ou superior punham limite sua expanso. (BAUMAN, 2001: 132).
Para tornar a meta da conquista do espao algo plausvel fez-se necessrio tomar
posse, explorar, enfim, fixar-se, ocupar o territrio e assegurar o seu desenvolvimento,
segundo a vontade de seus desbravadores. Assentar-se no local era a estratgia para a
colonizao, corporificao, inveno de uma entidade nacional entre dominador e
dominado. Para concretizar tais propsitos extinguir o nomadismo como modus vivendi
era o passo seguinte e mais trabalhoso. O sedentarismo provocava uma ciso na ideia
nmade de movimento, descoberta e congregao, de algo novo a cada deslocamento.
Alquebrar o esprito nmade submetendo-o inclinao da modernidade: a
explorao de recursos (naturais, minerais, humanos), estabelecer instituies
arraigadas, postos de comando e vigilncia eram manobras postas em prtica com
relativo grau de sucesso. Os Estados-nao cumpriam essa funo de legitimar a
existncia de determinado espao com um oficial sentimento de engajamento nacional.
O nmade, que no possui o charme do aventureiro, do desbravador de novas terras, de
espaos vazios, se viu preso, desse modo, a uma ordenao que obstruiu seu livre
trnsito, pois tal atuao pertencia s misses especiais do Estado (se bem que a
literatura exaltava os homens que zingravam os mares em busca do extraordinrio, do
incomum). Sintoma de pr-modernidade, estigma de selvageria, de incivilidade, no
culto, o nmade fora relegado aos confins do imaginrio extico e do atraso cientfico.
A contestao a respeito dos valores da modernidade e da proposta de uso
irrestrito e imaculado de uma lgica racional e se eles haviam redundado num
fracasso cujos efeitos denunciavam seu carter autoritrio e de preocupao evidente
com a tcnica e no com o social coincidiram ou fomentaram o descalabro do
sedentarismo uma questo que precisa levar em considerao fatos que envolvem o
quanto os poderes atuais so realmente nmades e se o nomadismo passou a ser prtica
regular entre todas as populaes ou se apenas a representao econmica, seus lderes,
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planejadores e scios, enfim, uma elite global, aproveitam sem perturbaes as
possibilidades de deslocamentos.
A economia mundial explorava o potencial transnacional do sistema financeiro
dirigido pelo esprito liberal de pouca intromisso estatal e mercado livre de comrcio.
As multinacionais comearam a se expandir pelo globo terrestre reconfigurando
cenrios polticos, modificando as regras locais de gerir os negcios. As fronteiras
territoriais esvaram-se, assim que o capital, cujo poder abstrato, iniciou o circuito sem
deixar deter-se pelo brado das instituies sedentrias.
Neste cenrio, a recalcitrncia do nomadismo, que sempre esteve presente ao
longo da modernidade slida, tornou-se manifesta. A modernidade lquida compreende
uma verso do estilo de vida nmade, que passou a caracterizar, na verdade, a
extraterritorialidade de uma elite (que incorporou o no sedentarismo de tribos de
outrora. A elite global evita o assentamento, mas no se apropria culturalmente dos
locais por onde passa a ponto de mudar seu modus vivendi).
A nova estrutura de poder global operada pelas oposies entre mobilidade e sedentarismo, contingncia e rotina, rarefao e densidade de imposies. como se o longo trecho da histria que comeou com o triunfo dos sedentrios sobre os nmades estivesse chegando ao final. A globalizao pode ser definida de muitas formas, e essa da vingana dos nmades, to boa quanto as outras, se no melhor (BAUMAN. 2008a: 49).
O exerccio do poder na fase slida da modernidade exigia a presena constante
e macia em solo da representao desse poder com suas regras severas que
sustentassem seu direito de arbtrio sobre os comandados. Tal poder deveria ser
corporificado para atuar com mais preciso. Ocupar o espao e viver o confronto in loco
faziam parte do pacote da dominao. Ambos os lados estavam atrelados e imersos
nessa interdependncia. Na vida lquida da sociedade moderna lquida o poder viaja
leve, preza a mobilidade, no se prende a regulamentos normativos, se desloca,
investe em uma regio, depois a abandona por outra mais convidativa e menos
intransigente. O poder que se desloca to peremptoriamente neste tempo lquido,
dispensou as regras que visavam normatizar as relaes de mercado, polticas e
culturais, pois sendo o poder atual abstrato, a sua dependncia das representaes locais
passa por um processo de abolio (que para alguns j est efetivado).
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A nova hierarquia do poder est marcada, no topo, pela capacidade de se mover com rapidez e sem aviso, e na base, pela incapacidade de diminuir a velocidade desses movimentos, que dir par-los, associada sua prpria imobilidade. Fuga e evaso, leveza e volatilidade, estas caractersticas substituram a presena pesada e ameaadora como tcnica principal de dominao (BAUMAN, 2008a: 49).
A deteriorao dos slidos proporcionou a ascenso de uma nova elite que
rompe obstculos relacionados s fronteiras com a mesma facilidade que o capital
flexvel e mvel. Nesse ltimo caso, cortesia da tecnologia que possibilita com um
simples toque de tecla a transferncia de milhes de dlares, marcos alemes, libras
esterlinas, reais de um extremo do mundo a outro.
A elite extraterritorial tem a sua disposio a evaso, o deslocamento contnuo, a
acelerao, e assim, dita a velocidade das ocorrncias econmicas, culturais, polticas ao
redor do planeta. Os demais, que no desfrutam da liberdade consagrada elite, so
prisioneiros do espao ou vivem o sonho de uma existncia menos dura lanando-se no
fluxo migratrio. As fronteiras, para esses, permanecem como barreiras instransponveis
que se reforam cada vez mais e se empenham em conter o aumento do xodo ilegal e
da ameaa de profanao da identidade. Uma dupla ao de policiamento e promoo
de humilhaes.
Gilles Deleuze e Flix Guattari dedicarem-se a um amplo e original estudo sobre
a relao entre o sedentarismo e a vida nmade. Estes demarcaram a partir dessa relao
conflituosa pontos de oposio entre o institudo e o no reconhecido; o tradicional e o
marginal; a totalidade e o fragmento; o espao estriado e o espao liso. Esse jogo
complexo e tenso a disputa entre a cincia sedentria, representada pelo Estado, e a
cincia nmade, uma mquina de guerra, que se localiza no polo oposto do aparelho
estatal, [...] essa cincia nmade no para de ser barrada, inibida ou proibida pelas
exigncias e condies da cincia de Estado (DELEUZE e GUATTARI, 1997: 20).
Porm, essa ligao estabelece atritos que acarretam resistncia, perseguio,
incorporao, modificao e posterior reincio do ciclo. O nmade segue seu curso,
experimenta e como mquina de guerra prossegue forjando, trilhando caminhos que
revelem frmulas, que no consagrem paragens seguras. O nomadismo um estar-em-
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direo daquilo que no se conclui. um processo de descoberta enquanto no engessa
a descoberta em padres que o definam. uma fuga dos mtodos de reproduo do
sedentarismo.
Reproduzir implica a permanncia de um ponto de vista fixo, exterior ao reproduzido: ver fluir, estando na margem. Mas seguir coisa diferente do ideal de reproduo. No melhor, porm outra coisa. Somos de fato forados a seguir quando estamos procura das singularidades de uma matria ou, de preferncia, de um material, e no tentando descobrir uma forma; quando escapamos a fora gravitacional para entrar num campo de celeridade; quando paramos de contemplar o escoamento de um fluxo laminar com direo determinada, e somos arrastados por um fluxo turbilhonar; quando nos engajamos na variao contnua das variveis, em vez de extrair delas constantes, etc. E no em absoluto o mesmo sentido da Terra: segundo o modelo legal, no paramos de reterritorializar num ponto de vista, num domnio, segundo um conjunto de relaes constantes; mas, segundo o modelo ambulante, o processo de desterritorializao que constitui e estende o prprio territrio (DELEUEZE e GUATTARI, 1997: 33).
O deslocamento nmade perpetua o trao de composio do territrio. A evaso,
no sendo fuga, mas o avano constante, o estupor pelas variveis, desterritorializa
sucessivamente, cunhando um espao liso que a porosidade das fronteiras, seja o caso
das fronteiras geogrficas ou das fronteiras entre as cincias.
Para Deleuze e Guattari, a vida nmade um intermezzo. Um estar simultneo:
desterritorializado em vias de reterritorializar; num espao liso que acaba por encontrar
o estriado do aparelho estatal evadindo-se em paragens. Intervalos que, no entanto, no
o define. O nmade movimenta-se num espao aberto, ao contrrio do sedentrio, capaz
de atuar apenas num espao fechado obstruindo significantemente as passagens de um
lado para o outro. O espao sedentrio estriado, por muros, cercados e caminhos
entre os cercados, enquanto o espao nmade liso marcado apenas por traos que se
apagam e se deslocam contra o trajeto (Ibidem: 43).
O nmade assusta o sedentrio por ser sua anttese, seu reflexo distorcido no
espelho, enfim, seu pesadelo, apesar de ser seu complemento necessrio. Capaz de
perturbar a ordem, o nmade no um desordeiro, mas a escapatria de um mundo
petrificado em trmites burocrticos e legitimado por formulrios e hierarquias
monolticas.
O sedentrio constitudo pelas obsesses modernas refugiava-se no
assentamento de um espao fechado. O nmade de outrora, observado pelos filsofos
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franceses, se movimentava de modo intensivo. O nomadismo lquido moderno, prpria
de uma elite extraterritorial, como aponta Bauman, tem como atributo central a
velocidade e a velocidade extensiva. O nmade que transita no espao aberto adota a
pausa como processo. No mundo lquido pausas so proibidas, so erros crassos ou
manifestao da nossa fragilidade latente.
Na sociedade moderna lquida a desterritorializao vivenciada como aval para
romper fronteiras. Aval para revalidar a imagem de homens e mulheres sem
ancoradouros emocionais, sem problemas futuros para escapar as dissolues dos
empecilhos que podero impedir um deslocamento porvir; o nomadismo da sociedade
lquida se diferencia assim do nomadismo do espao liso porque, em verdade, no
planta a semente da transgresso em coisa alguma. A elite global viaja e no se enraza
por motivos que so mais econmicos que culturais ou identitrios. Como defende o
socilogo Renato Ortiz, no mundo contemporneo os ritos de deslocamentos so
invocados com frequncia, o que reatualiza os objetos e as imagens de um mundo
transnacional cujo vazio do tempo envolve seus viajantes.
A desterritorializao prolonga o presente nos espaos mundializados. Ao nos movimentarmos percebemos que nos encontramos no mesmo lugar. Neste sentido, a ideia de viagem/sada de um mundo determinado encontra-se comprometida. Desde que o viajante, nos seus deslocamentos, privilegie os espaos da modernidade-mundo, no exterior ele carrega consigo seu cotidiano. Ao se deparar com um universo conhecido, sua vida se repete, confirmando a ordem das coisas que o envolvem (ORTIZ, 1994: 133).
A elite global suplanta o nomadismo, pois para ela, por se definir como
extraterritorial, qualquer local pode ser um lar, pelo motivo de tudo descaracterizar e
dar-lhe face comum, que de seu agrado, lembrando a casa que deixou ou um lugar
admirvel pelo exotismo. Assim, negando ao nmade a desterritorializao descrita por
Gilles Deleuze e Flix Guattari.
Para o nmade, ao contrrio, a desterritorializao que constitui sua relao com a terra por isso ele se reterritorializa na prpria desterritorializao. a terra que se desterritorializa ela mesma, de modo que o nmade a encontra um territrio. [...] A terra no se desterritorializa em seu movimento global e
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relativo, mas em lugares precisos, ali mesmo onde a floresta recua, e onde a estepe e o deserto se propagam (DELEUZE e GUATTARI, 1997: 44).
O cinema do alemo de origem turca Fatih Akin7 emana atualmente esse
sentimento de desterritorializao com criatividade e densidade no que tange as relaes
socioculturais. Por mais que se fale, nesse caso, em migrao e no propriamente em
nomadismo. O importante aqui o deslocamento de um ponto para o outro. Um fluxo
que retorna ao mesmo no intuito de se encontrar, assim, engendrando o novo.
Especialmente em Contra a Parede (Gegen die Wend, 2004) e Do Outro Lado (Aud der
Anderen Seite, 2007). Em ambos os filmes, as personagens centrais so cidados turcos
ou de descendncia do antigo Imprio Otomano vivendo na Alemanha. Pensamos em
diferenas culturais, choque de civilizaes e relaes humanas. Porm, o que emerge
com mais densidade a sensao de zona intermediria que os protagonistas se
encontram. Nem turcos nem alemes. A identidade rarefeita, suspensa, impedida pela
aridez da convivncia entre a tradio e a permissividade que desejamos extrair do
novo. Desterritorializados na recalcitrncia que encontram a possibilidade de efetivar
o trnsito que proporcionaro a eles algo prximo a um lugar no mundo. Contra a
Parede nos fala do encontro que se d por meio de um acordo e que levar dois seres
desterritorializados a se reterritorializar para fugir da fria que est espreita. Do Outro
Lado trata de no encontros nos quais a desterritorializao est implicada fortemente
nas relaes que so traadas e no modus vivendi que aparece como um algoz
incontornvel.
So filmes que nos provocam instigando perguntas sobre a fluidez
contempornea, o exlio ntimo e a dissoluo das fronteiras que no apagam
necessariamente os conflitos entre as culturas mesmo que eles no sejam declarados.
O nomadismo a constncia do sentimento de desterritorializao que comporta
a pausa e o movimento, que cria para instituir o que no para de se constituir em um
espao aberto. A determinao primria do nmade, com efeito, que ele ocupa e
7 Crticas a respeito dos filmes de Fatih Akin podem ser lidas no site