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0 UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA WULDSON MARCELO LEITE SOUZA Uma Excursão Pelo Contemporâneo a Partir do Conceito de Modernidade Líquida de Zygmunt Bauman CUIABÁ-MT 2012

Uma excurs o pelo contempor neo a partir do conceito … · contemporaine comme Gilles Deleuze, Félix Guattari, Néstor García Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

    INSTITUTO DE LINGUAGENS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ESTUDOS DE CULTURA

    CONTEMPORNEA

    WULDSON MARCELO LEITE SOUZA

    Uma Excurso Pelo Contemporneo a Partir do Conceito de Modernidade Lquida de Zygmunt Bauman

    CUIAB-MT 2012

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    WULDSON MARCELO LEITE SOUZA

    Uma Excurso Pelo Contemporneo a Partir do Conceito de Modernidade Lquida de Zygmunt Bauman

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Estudos de Cultura Contempornea da Universidade Federal de Mato Grosso, como parte dos requisitos para a obteno do ttulo de Mestre. rea de concentrao: Epistemes Contemporneas

    Orientador: Prof Dr. Jos Carlos Leite

    CUIAB-MT 2012

  • FICHA CATALOGRFICA S729e Souza, Wuldson Marcelo Leite. Uma excurso pelo contemporneo a partir do conceito de modernidade

    lquida de Zygmunt Bauman / Wuldson Marcelo Leite Souza. 2012.

    112 f. Orientador: Prof. Dr. Jos Carlos Leite.

    Dissertao (mestrado) Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto de Linguagens, Ps-Graduao em Estudos de Cultura Contempornea, rea de Concentrao: Epistemes Contempornea, 2012. Bibliografia: p. 108-111. 1. Civilizao moderna. 2. Sociologia. 3. Ideologia. 4. Relaes humanas. 5. Bauman, Zygmunt, 1925-. I. Ttulo.

    CDU 316.75 Ficha elaborada por: Rosngela Aparecida Vicente Shn CRB-1/931

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    FOLHA DE APROVAO

    WULDSON MARCELO LEITE SOUZA

    Uma Excurso Pelo Contemporneo a Partir do Conceito de Modernidade Lquida de Zygmunt Bauman

    Dissertao defendida e aprovada em: 19 de maro de 2012.

    Banca examinadora:

    Orientador e Presidente da Banca

    Prof. Dr. Jos Carlos Leite UFMT

    Examinador Externo

    Prof. Dr. Antonio Vidal Nunes UFES

    Examinador Interno

    Prof. Dr. Yuji Gushiken UFMT

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    AGRADECIMENTOS

    Primeiramente agradeo minha famlia. Meus pais, Joarlete e Benedito, por terem

    feito da educao dos filhos um propsito de vida, e pelo apoio e compreenso no

    momento mais difcil de minha vida. Aos meus mais que irmos, Juliene e Wender, com

    quem compartilho angstias, afinidades e alegrias. Sem eles a jornada ficaria

    praticamente impossvel.

    Ao meu orientador, Dr. Jos Carlos Leite, pelo acompanhamento dedicado, por

    proporcionar-me a liberdade de pesquisar sem presses por demandas e por indicar

    autores que se tornaram fundamentais na dissertao.

    Ao Dr. Antnio Vidal Nunes por aceitar o convite para compor a banca e pela amizade.

    Ao Dr. Yugi Gushiken pela arguio interna da dissertao e por contribuir para o

    enriquecimento deste trabalho.

    minha grande amiga, Sara Juliana Pozzer da Silveira, que, como no tempo em que foi

    minha orientadora na graduao em Filosofia, ajudou-me imensamente com seus

    apontamentos sempre precisos. E por uma amizade que vai muito alm da afinidade

    intelectual. Dra. Denize DallBello, que colaborou com seus comentrios pertinentes

    e seu entusiasmo para que este texto fosse envolvido pela paixo necessria que um

    pesquisador deve ter por seu objeto de estudo.

    Ao Dr. Lus Alves Correa Filho com o qual nas conversas sobre Zygmunt Bauman

    nasceu o tema para esta dissertao.

    s minhas amigas nesta caminhada no ECCO, Alblia de Almeida, Cludia Wanessa

    Poletto Rocha e Karine Krewer (cuja trilha acadmica percorremos juntos h anos),

    pelas quais tenho grande estima. Ad infinitum.

    Aos funcionrios do ECCO, Diego e vila, por atenderem a todos com delicadeza e,

    muitas vezes, me informando das obrigaes que eu acabava esquecendo.

    Aos novos amigos Fabiana Martes, Jone Castilho, Cleber Rodrigues e, em especial,

    Ariadne Marinho Machado com os quais compartilhei grandes momentos nesses

    ltimos dois anos de livros a festas.

    Elite Borges Lopes por sua amizade e palavras sempre preciosas. Uma mulher

    maravilhosa de grande importncia em minha vida.

    E aos amigos, que mesmo distantes, esto sempre presentes em meu corao, Renata

    Braga, Milka Borges, Maureci Moreira de Almeida e Amanda Jacqueline do Amaral.

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    No meu entender, o otimista aquele que acredita que este o melhor dos mundos possveis. E o pessimista aquele que suspeita que o otimista tem razo... Nesse quadro, no me identifico nem com o otimista nem com o pessimista, pois acredito que o mundo possa ser melhorado e que essa mera crena instrumental em torn-lo melhor... Zygmunt Bauman fcil viver no mundo conforme a opinio das pessoas. fcil, na solido, viver do jeito que se quer. Mas o grande homem aquele que, no meio da multido, mantm com perfeita doura a independncia da solido. Ralph Waldo Emerson

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    RESUMO

    O presente trabalho tem como objetivo a anlise da contemporaneidade, segundo o

    conceito de modernidade lquida defendida pelo socilogo polons Zygmunt Bauman.

    Ao adotar essa designao, para os tempos atuais, procuramos entender o mundo fludo

    e instvel no qual ocorre uma constante imploso dos valores e padres, que em outrora

    (denominado por Bauman como fase slida da modernidade) percebamos como

    rgido e incontestvel e que era regido por uma racionalidade tcnica e fundamentado

    no fortalecimento do Estado e da cincia. O propsito verificar certas instncias

    modeladoras da vida humana, como as ideologias polticas, as demarcaes de

    fronteiras (sejam elas geogrficas, cientficas, etc.), as relaes pessoais e comunitrias,

    confrontando-as com o estado transitrio, transnacional, flexvel e mutante de um

    mundo globalizado, individualizado e consumista; um mundo que transmite uma

    sensao de abandono e insatisfao, marcado, como aponta Bauman, pela incerteza,

    insegurana e falta de garantias e proteo. As ideias do socilogo polons para o que

    constitui a modernidade lquida nos proporciona o suporte terico para uma

    investigao acerca dos assuntos relacionados e para um dilogo com autores que

    investigam (ou diagnosticaram) a vida contempornea, como Gilles Deleuze, Flix

    Guattari, Nestor Garca Canclini, Milton Santos, Arjun Appadurai, Anthony Giddens

    entre outros, intentando, desse modo, construir um texto interdisciplinar.

    Palavras-chave: modernidade lquida; globalizao; fronteira; ideologia; relaes

    humanas.

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    RESUM

    Le prsent travail vise lanalyse de la contemporanit, selon la thse de modernit

    liquide dtenue par le sociologue polonais Zygmunt Bauman. En adoptant la

    dsignation, modernit liquide, pour lpoque actuelle, nous cherchons comprendre le

    monde fluide et instable o il ny une rgulire crise de valeurs morales et les normes,

    quautrefois (Bauman appele de la phase solide de la modernit), nous avons compris

    comment dur e incontest et qui a t rgi par une rationalit technique et base sur le

    renforcement de lEtat et de la science. Lobjectif est de vrifier certains thmes

    centrauxs de la vie humaine, comme les idologies politiques, la dmarcation des

    frontires, les relations personnelles et communautaires, les confrontant avec ltat

    transitoire, transnational, flexible et mutant dun monde globalis, individualise e

    consumriste; un monde qui exprime un sentiment dabandon et de linsatisfaction

    marque, comme Bauman nous dit, par lincertitude, linscurite, le manque de

    garanties et de protection. Les ides du sociologue polonais par ce qui constitue la

    modernit liquide nous offre le soutien thorique une enqute sur les questions

    relatives et pour un dialogue avec les auteurs qui enqutent (ou diagnostique) la vie

    contemporaine comme Gilles Deleuze, Flix Guattari, Nstor Garca Canclini, Milton

    Santos, Arjun Appadurai, Anthony Giddens, entre autres, avec lintention donc

    construire un texte interdisciplinaire.

    Palavras-chave: modernit liquide; globalisation, frontire; idologie; relations

    humaines.

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    SUMRIO

    INTRODUO --------------------------------------------------------------------------------- 8

    CAPTULO I Modernidade lquida: o contemporneo a novidade que se

    modifica a cada passo ------------------------------------------------------------------------- 12

    1.1. Modernidade slida-modernidade lquida: passagem e no ruptura --------- 14

    1.2. Leveza: a insustentabilidade dos pontos de parada ------------------------------ 23

    1.3. A desforra dos nmades --------------------------------------------------------------- 32

    1.4. A novidade que se expira em alta velocidade ------------------------------------- 39

    CAPTULO II Globalizao: runas da ideologia e fronteiras friccionadas? --- 45

    2.1. A globalizao dos ricos versus a globalizao para todos ----------------------- 49

    2.2. Ideologia: quem cantar que precisa dela pra viver? ----------------------------- 61

    2.3. A porosidade e o acirramento das fronteiras: um jogo de contradio ------ 71

    CAPTULO III A fragilidade dos laos humanos: da aparente felicidade ao vazio

    contemporneo --------------------------------------------------------------------------------- 79

    3.1. Laos construdos, laos dissipados -------------------------------------------------- 83

    3.2. Vivendo no abandono: implicaes polticas --------------------------------------- 91

    3.3. Consumo e identidade ------------------------------------------------------------------- 94

    3.4. Fragmentos e episdios: a insustentvel leveza do ser --------------------------- 100

    CONSIDERAES FINAIS --------------------------------------------------------------- 104

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS --------------------------------------------------- 107

    FILMOGRAFIA ----------------------------------------------------------------------------- 111

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    INTRODUO

    A discusso acerca da modernidade se ela foi superada, se houve uma ruptura

    cuja ciso gerou a ps-modernidade (originando questionamentos sobre a validade dos

    constructos modernos) ou se ocorreu, realmente, a efetivao de todos os seus

    pressupostos, o que determinaria que o projeto moderno est inacabado causa

    calorosas, e muitas vezes contraditrias, asseveraes. Se a modernidade, como aponta

    Bauman, era um projeto de derretimentos de noes e fundamentos que sustentavam

    um mundo tido como obscuro, provinciano, hierrquico, sacro, a ps-modernidade um

    estgio tambm de desintegrao, na verdade, um momento de liquefao (assim como

    a modernidade) de certezas que creditavam a racionalidade cientfica a capacidade de

    prever todos os eventos naturais e atenuar seus efeitos e que os direitos sancionados por

    poderes mobilizados para serem fortes e proporcionar a todos condies de desenvolver

    sua individualidade seriam irrevogveis. O impulso moderno um passo calculado,

    criativo e destrutivo; as suas fundaes so frgeis, apesar da solidez transmitida. O

    Estado moderno exibe a bandeira do capitalismo, e para o capital voraz nem suas

    prprias criaes esto isentas de sua sede devastadora.

    A modernidade com o intuito de ser um modelo universal do uso da razo, de

    instituies atuantes (mas no tutoras) constituiu a ideia de saberes/disciplinas plenas,

    puras nas quais cada uma delas era responsvel por um ramo do conhecimento. Desse

    modo, a razo fora consagrada como a maneira mais segura e ntida de acessar a

    verdade. A sensibilidade e o instinto foram vistos como obstculos para efetivao de

    tal conhecimento baseado na racionalidade cientfica. Porm, a ps-modernidade (e

    conceitos como ps-colonialismo, hibridao, teses como modernidade-mundo, segunda

    modernidade, hipermodernidade, modernidade lquida) configurou-se como uma fase

    que retira da racionalidade tecnocientfica o cetro de soberana da verdade e restitui ao

    conhecimento intuitivo, ao senso comum, aos instintos, s sensaes pores

    considerveis de crdito no que tange ao nosso entendimento sobre o mundo.

    A epistemologia contempornea ps em andamento abordagens argutas e

    incisivas para analisar esse panorama de contestao e observao a respeito da escala

    moderna at os dias de hoje. A tese de Zygmunt Bauman de um mundo em processo de

    liquefao (poder-se-ia afirmar liquefeito) marcado por quebradios laos afetivos,

    pela incerteza, insegurana e falta de garantias expe com contundncia as fraturas da

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    modernidade. Para Bauman, a poca atual propcia para colocar a modernidade em

    avaliao. um tempo de reflexo na qual a credibilidade e a validade das conquistas e

    falhas modernas podem ser debatidas, descartadas, revalidadas. Mas a era atual se

    mostra fluda, leve; h pouco espao (ou mesmo inteno) para estabelecer rotinas; os

    poderes globais agem para desmantelar os laos afetivos/nacionais/sociais para

    proporcionar um aumento de fluxo de pessoas (porm nem todas tm passagem pelas

    fronteiras que separam a dura realidade do sonho de uma vida menos rdua) e capital

    em circulao.

    Contudo, a modernidade e a ps-modernidade terminam sendo descritas com

    caractersticas semelhantes por alguns autores, mesmo que o propsito seja gerar grades

    de diferenas que daria proeminncia a uma em relao outra. Para Marshall Berman

    (2007), a modernidade contraditria e paradoxal. H um conflito, uma tenso entre

    uma imposio burocrtica para gerenciar a vida dos cidados, da comunidade e uma

    luta contnua pela autoafirmao. Linda Hutcheon (1991) ao propor uma potica da ps-

    modernidade argumenta que tal perodo distingue-se pela contradio e paradoxo. um

    tempo que exibe tons de autorreflexividade, ironia e pardia que deixam em colapso o

    formalismo e a engessada histria moderna.

    Jrgen Habermas (1990) defende que o projeto moderno, na verdade, est

    inacabado. O filsofo alemo acusa os ps-modernos de serem autoindulgentes e de

    efetivarem uma transcendncia que era prpria da modernidade para autocompreenso,

    alm de alegar que os pensadores ps-modernos descuidaram da observao do curso da

    histria. O pensamento, desse modo, tornou a-histrico.

    Para Zygmunt Bauman, o ponto precpuo do debate se assenta na passagem da

    modernidade slida (de modelos hegemnicos de conduta, instituies fortes,

    individualizao, fronteiras, territorialidade, formatao dos Estados-nao) para a fase

    lquida da modernidade (de poderes fludos, Estados desregulamentados, individuao

    exacerbada, fronteiras dissipadas, desterritorializao, laos afetivos e nacionais

    frgeis). Deste modo, no h uma ruptura, mas um processo agudo de esgaramento dos

    constructos modernos, sem, no entanto, gerar sua superao ou abolio.

    A modernidade lquida tem latente uma indefinio sobre o futuro de homens e

    mulheres. A globalizao engendrou um mundo em descontrole no qual o capital leve

    e transita com assustadora facilidade. As pessoas assumem essas caractersticas, o que

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    faz com que a incerteza seja mais pungente na atualidade, tornando o aprofundamento

    nas relaes que se constri durante esses deslocamentos algo raro.

    O olhar lanado para analisar o mundo contemporneo deve ser interdisciplinar.

    No somente para pr em prtica uma tendncia, mas para compreender um cenrio

    hbrido, no qual disciplinas dialogam para forjar algum aspecto indito, inslito, mas

    sincero e condizente, que sofre os atritos e convergncias dos mais diversos agentes

    sociais. Para tanto, a sociologia, a antropologia, a filosofia, a literatura e o cinema foram

    cooptados como recursos discursivos para engendrar uma tentativa de compreenso do

    nosso momento histrico sob a luz da modernidade lquida. A escolha da tese de

    Bauman se deve no apenas afinidade com as ideias do autor, mas, tambm, pela

    maneira penetrante de enfrentar questes essenciais (com altas doses de temor e

    maravilhamento) para a contemporaneidade, a saber, a dissoluo das fronteiras, a

    globalizao, o fim das ideologias e a fragilidade dos laos humanos.

    No primeiro captulo, a passagem da modernidade slida para a modernidade

    lquida se coloca como um problema central para o entendimento das ocorrncias que

    proporcionaram o esfacelamento de construes que foram erguidas para ser perenes. A

    convico de que a cincia e a individuao, junto s noes de Estado, leis, famlia

    manter-se-iam firmes e inviolveis a qualquer ataque, ruiu com o sobejo de novas

    formas de compreender as mudanas (e a necessidade delas) que o mundo apresentava.

    A racionalidade tecnocientfica, cuja suposio do totalitarismo, mostrou-se insuficiente

    para abarcar e significar tais alteraes na estrutura moderna. E a velocidade do mundo

    atual e a exigncia de deslocamento por motivos diversos levaram

    desterritorializao e tambm extraterritorialidade de uma elite global coordenada pela

    fluidez e leveza de um capital que ignora fronteiras e cria novidades (temporrias) a

    todo instante.

    O segundo captulo trata de questes que se sintonizam de vrias maneiras: a

    globalizao, o fim das ideologias e o esvanecimento das fronteiras. As implicaes que

    relacionam esses assuntos esto enlaadas num mercado global de mercadorias que

    fomenta o livre trnsito de produtos e servios ao mesmo tempo em que, apesar da

    extraterritorialidade atual, impem barreiras para um fluxo sem constrangimentos s

    pessoas. As fronteiras ainda permanecem vigilantes aos que so considerados personas

    non gratas, queles de quem se suspeita no estarem aptos para o consumo. O fim das

    ideologias se vincula com a ideia de que a economia de mercado por defender o livre

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    comrcio impunha uma definitiva prova que os embates polticos eram desnecessrios

    para um tempo em que a competio dizia respeito a como ser efetivo na luta pelo

    mercado. No entanto, tal declarao de encerramento de debates ideolgicos configura a

    tomada do capitalismo e de uma competio injusta, desigual como base ideolgica para

    a movimentao desse mundo supostamente sem ideologia.

    Por fim, o terceiro captulo versa sobre a fragilidade dos laos humanos. No ter

    vnculo que nos prendam a algum lugar uma exigncia da modernidade lquida. O que

    ocasiona um complexo estado de insegurana que adiciona a incerteza atual um desejo

    de mobilidade assombrado por uma vontade de estreitar os laos tornando-os

    duradouros com aqueles que nos cercam. O consumismo, a identidade, a flexibilidade

    como caractersticas da modernidade fluda so questes que geram desconforto e

    aumentam a sensao de angstia que acompanha inmeros candidatos ao sucesso e

    felicidade na era lquida. Uma breve excurso pela vida episdica e fragmentria a partir

    da obra do escritor tcheco Milan Kundera conclui o captulo.

    A modernidade lquida um tempo de novidades e uniformizao, de contrastes

    e tentativas de consolidao de modos de vida. Por isso, a incerteza paira sobre ela

    como algo sempre presente, e por vezes, parecemos inermes ao seu efeito. Zygmunt

    Bauman nos auxilia na elucidao dos pontos obscuros e no entendimento dos

    mecanismos do funcionamento da globalizao e do por que do consumo ter tomado o

    primeiro plano na vida de homens e mulheres ao redor do planeta. Tais interrogaes

    nos proporcionam a adoo de uma perspectiva epistemolgica que abarca reas

    distintas do conhecimento para construir um painel interdisciplinar que contribui para a

    compreenso de um mundo em desintegrao que corresponda a superar a incerteza e se

    alimentar dela.

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    CAPTULO I

    Modernidade lquida: o contemporneo a novidade que se modifica a cada passo

    A frase do filsofo transcendentalista estadunidense do sculo XIX, Ralph

    Waldo Emerson1, Quando patinamos sobre gelo quebradio, nossa segurana depende

    de nossa velocidade, apresenta neste incipiente sculo XXI uma atualidade

    assombrosa. Essa mxima do (e no) sculo da industrializao oferece, alm de uma

    instrutiva ilustrao visual, um conselho para o agir: em situaes difceis, busque a

    resoluo rapidamente, para no ser atingido implacavelmente pelos problemas que ela

    vir a causar. Claro que as decises tomadas devem observar uma conduta condizente

    com a busca do eu interior e considerando o proceder moral augusto de um homem

    independente do pensar de terceiros, que seja superior e que leve em conta a bondade

    pela bondade, acima das expectativas de recompensas e retribuies. preciso, acima

    de tudo, como diz Emerson, ter confiana em si mesmo, esse o segredo do sucesso.

    Contudo, h no dito de Emerson, uma suspeita de perigo. Perigo, o qual o nosso ligeiro

    poder de deciso poder nos deixar a salvo da provvel hipotermia.

    No sculo XXI, o excelso dito de Ralph Waldo Emerson desloca-se do agir

    moral, ou pelo menos da preocupao com os seus desdobramentos, para um safar-se

    inclume da situao de escolha, de emergncia na qual nos encontramos e esse

    estado mostra-se contnuo, sem grandes intervalos entre eles, como se tudo que ocorre

    devesse ser considerado os decisivos da vida. Como o Chris Wilton, personagem de

    Match Point (2005) de Woody Allen, que diante lances capitais transita entre oposies,

    mas opta pelas ambies individuais, que incluem assassinatos e a subjugao da

    conscincia s escolhas irreversveis.

    Zygmunt Bauman usa a frase de Emerson como epgrafe na introduo de seu

    livro Vida Lquida, publicado, em 2005, na Inglaterra. Vida lquida que o tipo de vida

    que se consolidou nas ltimas dcadas; a vida que se constitui em uma sociedade

    1 Filsofo estadunidense (1803-1882) criador da escola transcendentalista. Buscou de forma lrica e lgica a independncia espiritual do homem. Seu pensamento foi marcado por paradoxos brilhantes e por aforismos lacnicos e enrgicos. Fonte: LAROUSSE. Volume VII, 2 edio revista e atualizada da Enciclopdie Larousse Mthodique. Texto original Bernard Fay. Traduo Heitor Fres. Adaptao e atualizao Paulo Rnai. Rio de Janeiro: Delta, 1968.

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    moderna lquida. Segundo Bauman, Lquido-moderna uma sociedade em que as

    condies sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais curto do que

    aquele necessrio para a consolidao, em hbitos e rotinas, das formas de agir

    (BAUMAN, 2007b: 07). O que Bauman declara como modernidade lquida uma fase

    que se contrape modernidade slida, aquela poca que desenhou e consagrou-se com

    o Iluminismo, mas que tem em seu lastro o Positivismo, a Revoluo Industrial, o

    Fordismo e incontveis eventos e teorias que formularam um mundo

    (predominantemente o lado ocidental do planeta) governado por uma racionalidade que

    definiu um savoir-faire baseado na soberania da cincia, na lgica, no clculo, na

    eficcia do planejamento, na indstria, na constncia, na fidelidade aos compromissos.

    Enfim, caminhou em direo certeza e segurana. A modernidade lquida, ao

    contrrio, leve, fluda, inconstante, exibe mobilidade, carrega consigo a ideia de

    transitoriedade, ela mutante e impe a necessidade de movimento contnuo. Contudo

    traz em seu bojo a incerteza, o sentimento de insegurana, de falta de garantias e

    proteo e a exigncia de liberdade num processo de individualidade exacerbado.

    Voltemos observao de Emerson, quando caminhamos sobre gelo quebradio a nossa

    velocidade que nos mantm em segurana e que nos preserva no jogo da vida ensaiada

    na modernidade lquida repleta de possibilidades espera dos mais velozes. Ser frgil e

    percorrer esta trajetria em passos lentos e reflexivos pode significar falta de habilidade

    na disputa-mor: a da sobrevivncia.

    A velocidade, no entanto, no propcia ao pensamento, pelo menos ao pensamento de longo prazo. O pensamento demanda pausa e descanso, tomar seu tempo, recapitular os passos j dados, examinar de perto o ponto alcanado e a sabedoria (ou imprudncia, se for o caso) de o ter alcanado. Pensar tira nossa mente da tarefa em curso, que requer sempre a corrida e a manuteno da velocidade. E na falta do pensamento, o patinar sobre o gelo fino que uma fatalidade para todos os indivduos frgeis na realidade porosa pode ser equivocadamente tomado como seu destino (BAUMAN, 2001: 239).

    Invocando Max Scheler, Bauman aponta para a importncia em no se confundir

    fatalidade com destino. Fatalismo resultado de um erro de conjugao do juzo.

    Portanto, os seus passos so artificiais (fruto do raciocnio ou, muitas vezes de

    motivao emocional) e compreensveis. Significa que h maneiras de corrigi-los,

    convert-los, de encontrar sadas para os equvocos cometidos ou para as situaes que,

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    pelas mais diversas razes, nos envolvem. Destino a ampla capacidade de procurar

    sada para a fatalidade. A imagem de nosso destino adverte Max Scheler, s nos

    abandona quando lhe damos as costas (BAUMAN, 2001: 240). Ou seja, quando

    aceitamos que nada poderia ter sido diferente.

    Se afirmarmos categoricamente que um acontecimento irreversvel camos na

    armadilha do fatalismo, passando a acreditar que o destino que se consolida por sua

    prpria e irrecusvel trama. Desse modo, no h espao para perceber o que de fato

    ocorreu. Nesse caso, anula-se a reflexo. E o destino deve ser encarado como reflexo.

    Destino uma construo erigida pelo pensamento, portanto, exige autorreflexo e

    avaliao daquilo que nos circunda e das escolhas feitas. Dedicao que o mundo

    lquido no permite. Por isso elucubrar sobre o fatalismo parece sem sentido. Parar

    significa a instaurao da insegurana. E a fatalidade significa responsabilizar o

    indivduo e deix-lo abandonado prpria sorte, jogando-o, assim, direto para a crena

    de um destino a ser aceito. A falta de tempo corri a possibilidade de perceber o destino

    como construo cotidiana. Por isso, o gelo fino consagrou-se como o solo que desafia

    os aventureiros da vida na modernidade lquida.

    1.1. Modernidade slida - modernidade lquida: passagem, no ruptura

    Em entrevista revista Tempo Social, em 2004, Zygmunt Bauman aponta a

    diferena central entre a sociedade anterior, que ele chama de modernidade slida e a

    vida contempornea, na qual homens e mulheres esto enredados, a modernidade

    lquida.

    [...] a vida moderna foi desde o incio desenraizadora, derretia os slidos e profanava os sagrados, como os jovens Marx e Engels notaram. Mas enquanto no passado isso era feito para ser novamente reinraizado, agora todas as coisas empregos, relacionamentos, know-hows, etc. tendem a permanecer em fluxo, volteis, desreguladas, flexveis. A nossa uma era, portanto, que se caracteriza no tanto por quebrar as rotinas e subverter as tradies, mas por evitar que padres de conduta se congelem em rotinas e tradies (BAUMAN, 2004b).

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    O movimento contnuo: dinamismo e a falta de compromisso (que no pode ser

    confundido com o no comprometimento com aquilo que se faz, pois se trata da no

    criao de vnculos que nos prendam quilo que fazemos no momento) marcam

    indelevelmente esta poca de mobilidade e mutaes.

    O derretimento dos slidos foi a proposta de uma era que pretendia se livrar de

    todos os resqucios da Idade Mdia e da moral de uma velha ordem que atava as mos a

    valores que impediam o desenvolvimento de pressupostos de conduta que coadunassem

    com o uso irrestrito da razo. Deveres com a famlia, a Igreja, com os ideais locais

    passaram a ser entendidos como empecilhos. As supersties, a convico ilimitada na

    Providncia Divina para os negcios, as imposies comunitrias eram assaz defendidas

    pelos partidrios dos antigos estatutos que sustentavam a tradio e o poder feudais,

    clericais, monrquicos, tidos como pouco esclarecidos pelos proponentes de uma viso

    moderna do mundo. Apesar de a batalha prometer dificuldades, a hierarquia de outrora

    estava em runas. A tarefa de derreter os slidos se mostrava urgente.

    Se o esprito era moderno, ele o era na medida em que estava determinado que a realidade deveria ser emancipada da mo morta de sua prpria histria - e isso s poderia ser feito derretendo os slidos (isto , por definio, dissolvendo o que quer que persistisse no tempo e fosse infenso sua passagem ou imune a seu fluxo). Essa inteno clamava, por sua vez, pela profanao do sagrado: pelo repdio e destronamento do passado, e, antes e acima de tudo, da tradio isto , o sedimento do passado no presente; clamava pelo esmagamento da armadura protetora forjada de crenas e lealdades que permitiam que os slidos resistissem liquefao (BAUMAN, 2001: 09).

    Enfim, derreter os slidos para erigir outros mais rgidos e imunes s sedies do

    fanatismo, abandonar os vestgios de irracionalidade de uma tradio em que a

    autoridade estava alhures no Absoluto das crenas sagradas.

    Bauman postula que o projeto da modernidade possua como leitmotiv a

    emancipao da razo dos grilhes de um mundo que se afundava em sua ignorncia.

    Era preciso fundamentar novos horizontes que possibilitassem uma viso mais acurada

    de uma nascente vontade de independncia do pensamento. A escapatria das nebulosas

    configuraes de um mundo pr-moderno se assentava na racionalizao das relaes

    econmicas, polticas e sociais.

  • 16

    [...] Derreter os slidos significava, antes e acima de tudo, eliminar as obrigaes irrelevantes que impediam a via de clculo racional dos efeitos; [...] Por isso mesmo essa forma de derreter os slidos deixava toda a complexa rede de relaes sociais no ar nua, desprotegida, desarmada e exposta, impotente para resistir s regras de ao e aos critrios de racionalidade inspirados pelos negcios, quanto mais para competir efetivamente com eles (BAUMAN, 2001: 10).

    Tratava-se de destruir para criar, de substituir os deteriorados alicerces pr-

    modernos por blocos resistentes que se manteriam firmes em sua posio, pouco

    importando que tipo de exame ou desafio fosse-lhes impostos. A modernidade, para

    pensadores como Marx e Engels, desejava efetivar todo tipo de ultrapassagem em

    relao a um mundo tido como obscuro, provinciano, cativo de referenciais sacros.

    Segundo George Balandier (1997: 157), o pensamento moderno que opera rupturas,

    que afasta a tradio portadora de permanncia e apreende tudo sob o aspecto do

    movimento sendo deste, ao mesmo tempo, o instrumento e a expresso. Nesse cenrio,

    a razo instrumental se consolidou como a forma mais segura de garantir o projeto

    moderno. A razo instrumental e sua base cientfica livraria o ser humano do medo

    tornando a Natureza sem mistrios, os poderes seculares mais transparentes e

    concederia aos homens o privilgio de se declarar senhores do prprio entendimento.

    De Francis Bacon (mtodo indutivo) passando por Descartes (ceticismo metodolgico,

    geometria analtica), Galileu (heliocentrismo), Newton (lei da gravitao universal) at

    a etapa onde o apelo razo recrudesce, o Iluminismo.

    Em Dialtica do Esclarecimento, Max Horkheimer e Theodor W. Adorno

    discutem como a Ilustrao converteu-se no mito que pretendia combater. Quando a

    racionalidade se imiscui em todos os setores da vida relegou a sensibilidade, os

    sentimentos, as sensaes, a intuio, o senso comum, os saberes locais a extratos

    inferiores do processo de conhecer. Assim a razo sempre alerta produziu monstros que

    prometera eliminar com o soterramento do mito, das supersties, dos medos gerados

    pela incompreenso da natureza dos tempos pr-modernos.

    Do medo o homem presume estar livre quando no h nada mais de desconhecido. isso que determina o trajeto da desmitologizao e do

  • 17

    esclarecimento, que identifica o animado ao inanimado, assim o mito identifica o inanimado ao animado (ADORNO e HORKHEIMER, 1985: 29).

    Desvendar segredos, afastar o medo e dirimir os mistrios que envolviam a

    natureza so propostas que se perpetuaram pelo trajeto da modernidade. De Francis

    Bacon e sua mxima, no Novum Organum (1620), de que para entend-la (a Natureza)

    era preciso obedec-la para domin-la explorao dos minrios e reservas naturais, a

    tcnica foi o ponto crucial das conquistas e vicissitudes modernas. A ideia de progresso

    sem o aprimoramento da tcnica no seria vivel. Tanto o progresso imaginado quanto a

    tcnica consolidada so asseveraes de um mundo no qual a cincia a principal juza

    sobre a verdade das coisas. Clculo, previso, verificao so termos que acompanham

    os acontecimentos naturais e os eventos promovidos pelos homens. No h mais

    iluses, ou essa era a obsesso a ser perseguida. A razo vigilante quer sondar os mais

    desafiadores enigmas da natureza. Na verdade, enigmas para cincia so criptogramas

    que no resistem a uma inteligncia curiosa e dotada de indefectveis tcnicas para

    acess-las. A relao que se estabelece unilateral, fechada para o dilogo e inflexvel.

    O esclarecimento comporta-se com as coisas como o ditador se comporta com os

    homens. Este conhece-os na medida em que pode manipul-los. O homem da cincia

    conhece as coisas na medida em que pode faz-las (ADORNO e HORKHEIMER,

    1985: 24).

    A cincia deveria libertar os homens e as mulheres, essa era a expectativa que

    muitos visualizaram como alcanvel, faz-los senhores de sua autoafirmao. Libert-

    los para que produzissem tempo livre e conquistassem a emancipao intelectual e

    imunidade em relao s intempries da natureza. O ardil subjacente no penetrante

    discurso do conhecimento total era a dominao que ocultava. Dominar a natureza

    acarretou em dominar o ser humano. A promessa de felicidade malogrou-se em

    obstculos que tornaram a emancipao quimera. Os homens e mulheres modernos

    sentiram o bafejo de uma vida confortvel e de problemas externos relativamente

    reduzidos. Entretanto, a tcnica tornou-se uma exigente auxiliar dessa vida e depois

    scia majoritria para, em seguida, resplandecer como soberana. A dedicao total ao

    trabalho foi incorporada s diretrizes econmicas e sociais que apontavam para o

    progresso.

  • 18

    A modernidade foi construda para no ser reflexo de nenhuma outra poca da

    histria humana. Por isso, o derretimento dos slidos imperou diante qualquer

    inteno de restaurao. A liquidao dos antigos slidos pretendia engendrar

    slidos cuja fortaleza seria inabalvel.

    Bauman aponta que a sede moderna por autogerenciamento e autoafirmao

    emana dos indivduos uma autocrtica da realidade que est sempre se fazendo e nunca

    satisfeita por completo. Por mais que nos agrade um lugar e nos acomodamos a ele, a

    permanncia uma luta, pois aos homens e mulheres pertence a responsabilidade do

    sucesso ou fracasso dessa empreitada. A afinidade com o liberalismo faz da era dos

    slidos o perodo em que os indivduos dependiam de suas habilidades, capacidade de

    fidelidade e persistncia para triunfar. Como explica Norberto Bobbio (2006: 31),

    Como teoria do Estado, o liberalismo moderno (...). O indivduo moderno em seu

    estado singular dependia de sua autonomia recm-conquistada. Mas o terreno era

    acidentado. O liberalismo buscava efetivar a personalidade individual; mesmo que isso

    significasse a no igualdade entre todos os postulantes autodeterminao.

    Max Horkheimer defende que os traos positivos da modernidade ou pelo

    menos seu intuito de cunho racionalista (asseverado pela ideia de liberdade)

    acarretaram o advento daquilo que ousavam enfrentar: a contradio, o dogmatismo, a

    imprevisibilidade, as aes tuteladas, no autnomas.

    Neste processo da histria das ideias reflete-se o fato histrico de que todo o social de que faziam parte as tendncias liberais, democrticas e progressistas da forma cultural dominante, continha tambm desde o incio o seu contrrio servido, acaso, e mero domnio da natureza o qual, fora da prpria dinmica do sistema, ameaa no fim destruir com certeza os traos positivos (HORKHEIMER, 1990: 140).

    Para Isaiah Berlin, a liberdade proclamada (e em tese a ideia de que a autonomia

    conduziria a uma liberdade em que os obstculos eram dirimidos pela possibilidade

    crescente de autogerncia das escolhas) esbarrava nos limites impostos pelas opes de

    ao. As teorias liberais associavam-se com a racionalizao aguda do mundo. A

    liberdade era concedida para se fazer aquilo que professava uma lgica racionalista. As

    opes deveriam circular pela necessidade e pela contingncia, e a definio exata da

    conduta excelsa por esses termos era o acessado apenas pela razo crtica. Anulado o

  • 19

    impulso irracional e certificado a obedincia lei, a individualidade perfazia-se

    circunscrito ao racionalismo.

    Algumas portas conduzem a outras portas abertas; outras, a portas fechadas; h uma liberdade real e h uma liberdade potencial dependendo do grau de facilidade com que algumas portas fechadas podem ser abertas, dados os recursos existentes ou potenciais, fsicos e mentais. (...) Mesmo que no se possa apresentar uma lei inflexvel, ainda resta o fato de que a dimenso da liberdade de um homem ou de um grupo , em grande medida, determinadas pela srie de possibilidades que se acham disposio de sua escolha (BERLIN, 2002: 151).

    As regras do jogo, os procedimentos adequados para alcanar o cume das nossas

    pretenses eram impostos de fora. Aonde chegar e como chegar poderiam ser sonhos,

    mas para realiz-los os caminhos a se seguir j possuam placas de sinalizao, e as

    escolhas reduzidas no permitiam lacunas para que outsiders reconfigurassem as rgidas

    regras implantadas.

    Era uma poca que pretendia impor a razo realidade por decreto, remanejar as estruturas de modo a estimular o comportamento racional e a elevar os custos de todo comportamento contrrio razo to alto que os impedisse. Em razo do decreto, negligenciar os legisladores e as agncias coercitivas no era, obviamente, uma opo. A questo da relao com o Estado, fosse cooperativa ou contestadora, era seu dilema de formao; de fato, uma questo de vida e morte (BAUMAN, 2001: 58).

    A Teoria Crtica da Escola de Frankfurt deu dimenso necessidade de

    preservar o espao privado das interferncias da esfera pblica; aquilo que seria do

    domnio humano fora invadido por uma instrumentalizao da razo que elevou

    tcnica a estatura de um destino irrecusvel. Os seres humanos seriam manobrados

    como objetos impotentes diante das condies sociais propostas. Uma sociedade

    regulada surgiu no horizonte da modernidade trazendo tanto a semente da emancipao

    quanto da destruio.

    A teoria crtica acusava de duplicidade ou ineficincia aqueles que deveriam ter providenciado as condies adequadas para a autoafirmao: havia limitaes demais liberdade de escolha e havia tendncia totalitria

  • 20

    intrnseca ao modo como a sociedade fora estruturada e conduzida tendncia essa que ameaava abolir a liberdade de uma vez, substituindo a liberdade de escolha pela tediosa homogeneidade, imposta ou sub-repticiamente introduzida (BAUMAN, 2001: 60).

    O desenvolvimento tecnolgico formou um liame com a ideia de progresso;

    aliana que reforava a penetrao da razo instrumental nas decises humanas.

    Situao que obliterava o sonho de autoafirmao. A Teoria Crtica buscou, ento,

    produzir uma gama de defesa para impedir as provveis restries plena liberdade dos

    desiderativos humanos. O que precisava ser resguardado era o espao privado dos

    indcios de dominao pela esfera pblica, ou seja, dos arbtrios de uma classe

    dominante endossada pela fora do Estado de sua burocracia e de um sistema

    financeiro internacional avassalador na implantao de regras favorveis aos seus

    interesses. A autonomia intelectual, de manifestao de desejos e de possibilidade de

    gerao de idiossincrasias contra os abusos da vida regular estavam em risco. A Teoria

    Crtica fomentou o recurso de denncia da intromisso do esprito instrumental nos

    percursos de sobrevivncia de homens e mulheres: do enfrentamento de Ulisses ao

    canto das sereias aos variados e consolidados clichs fabricados pela indstria cultural,

    a ideologia do progresso vaticinava uma sociedade espelhada pela eficcia da tcnica.

    Ao buscar apartar-se das imposies/armadilhas da Natureza, o ser humano produziu

    uma emboscada para si mesmo: ao tentar fugir da necessidade gerou uma liberdade que

    o encurralou na figura de um sujeito que pela linguagem, manipulao de ferramentas e

    aplicao tecnolgica conhece, controla e modifica a Natureza. Tal ideologia acabou

    por anular os impulsos humanos e aprisionou o indivduo a um processo de reificao

    contnuo: produto e produtor, criador e criatura j de antemo esto afastados. A

    mercadoria a suprema criadora de si. O ser humano para vencer a Natureza reprimiu

    seus instintos, deformou sua sensibilidade e aceitou, mesmo que tacitamente, o

    tolhimento de sua criatividade. Para os pensadores frankfurtianos, a dominao da

    natureza o primeiro avano para o domnio do homem pelo prprio homem.

    A modernidade slida elegeu seus basties: a racionalidade (instrumental), o

    desenvolvimento tecnolgico, a decodificao do mundo pela linguagem, o princpio de

    identidade, a aposta no mercado mundial de comrcio. Panorama propcio para que tudo

    ocorresse segundo a lgica do poder econmico amparado por um Estado que se

    manifestava onipresente, impessoal e em conformidade com interesses de agentes

  • 21

    privados que gozavam de influncia na esfera pblica instituies bancrias, indstrias

    metalrgicas, de minrios, empresas de alimentos, comunicao entre outros. Era contra

    esse lado oculto da poltica que a voz dos defensores da autonomia crtica se levantou.

    Era algo que soava como uma emergncia que exigia uma soluo imediata favorvel

    ao partido da esfera privada.

    No mundo atual, na modernidade lquida, os papis foram trocados. O antigo

    invasor tornou-se candidato a promotor de uma sublevao. O espao pblico

    tomado pela esfera privada. Os problemas de carter poltico ou social recebem, ao

    invs de respostas concernentes ao auditrio da vida pblica, ou seja, prprias do

    mbito dos poderes constitudos e da ao comunitria, ajustes vindos de iniciativas

    individuais. Poder-se-ia conjecturar que tal condio a efetivao da matriz liberal da

    modernidade. O neoliberalismo econmico em defesa da economia de mercado de livre

    iniciativa contaminava a esfera pblica conduzindo a sua privatizao. Como postula

    Norberto Bobbio (2006: 89), Na formulao hoje mais corrente, o liberalismo a

    doutrina do Estado mnimo (o minimal state dos anglo-saxes). No fim, o amparo e o

    apelo s ferramentas institucionais acabavam reduzidos.

    Zygmunt Bauman chama a ateno, utilizando frase de Ulrich Beck, para o fato

    de que vivemos consoantes ideia que o adequado parece ser buscar uma soluo

    biogrfica para as contradies sistmicas. A sociedade contempornea propalada,

    certa vez, como sociedade do espetculo2, em outra ocasio como sociedade do

    medo3, tambm a sociedade da culpa individual, da responsabilidade pessoal pelos

    erros, mesmos que eles sejam provenientes de falhas estruturais, de instituies

    contaminadas indevidamente pelos prstimos da burocracia, sejam de ordem exterior ao

    sujeito ou erros histricos.

    No entanto, a modernidade lquida, pela distncia que a separa do apogeu da

    modernidade slida, uma era na qual as ferramentas crticas proporcionam uma

    avaliao reflexiva dos constructos e feitos da antiga modernidade. Na modernidade 2 A influente obra A sociedade do espetculo de Guy Debord, publicada em 1967, denuncia a sociedade

    moderna capitalista como produtora de espetculos. Espetculos cotidianos gerados por imagens que despertam desejos, promovem tentativas de unidade social e acarretam na mercantilizao do todo social. 3 No somente uma sociedade do medo, mas uma cultura do medo. Sobre a insegurana do mundo

    atual, ver Zygmunt Bauman, Tempos lquidos. Traduo Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

  • 22

    lquida, como estamos cientes dos equvocos modernos, temos a chance de observar

    detidamente e colocar em prtica preceitos e objetivos que foram plantados no cerne das

    intenes modernas, mas que descarrilaram em dbios projetos de dominao de pases

    hegemnicos sobre populaes devastadas por profundos problemas de ordem

    sociopoltica e econmica. Democracia, justia social, liberdade so conceitos atuais

    que tiveram no Iluminismo seu nascimento, porm declinaram ao longo dos sculos e

    foram submetidas a pacotes de ajuda para pases em situao de risco como modo de

    impor regras na maneira de dirigir suas instituies, geralmente, em detrimento das

    expectativas do povo local, e, mais recentemente, como justificativa para intervenes

    blicas a outro territrio (a invaso da coalizo liderada pelos Estados Unidos ao Iraque,

    iniciada em 20 de maro de 2003, um exemplo capital de tal absurdo recurso).

    Bombardeia-se em nome da democracia e da liberdade: o supremo argumento falacioso.

    A modernidade lquida assiste ao fim dos sonhos modernos de um telos que se

    realizaria infalivelmente. A tica ps-moderna derrubou a ideia que o progresso anda

    consoante a uma perfeio a ser atingida amanh ou depois. H o aqui e agora. Alm de

    considerar que h uma pluralidade de contextos, optar por uma delas um exerccio que

    demanda tempo, e tempo algo que escasseia rapidamente na vida lquida. E com a

    desregulamentao e privatizao das tarefas modernas, a razo humana perdeu os

    espaos coletivos que favoreciam a integrao dos sujeitos atuantes e a percepo desse

    uso como propriedade coletiva fragmentou-se deixando esses sujeitos entregues aos

    seus prprios recursos individuais e as idiossincrasias que possam criar.

    Abandonados pelos blocos de amparo para o desenvolvimento da sua

    compleio individual (pelo menos a iluso desta), homens e mulheres da sociedade

    moderna lquida so brindados com exemplos igualmente individuais de vencedores que

    contrariam as expectativas de insucessos ligadas a uma condio de vida adversa.

    Polticas pblicas capazes de sanar tais deficincias permanecem no plano da retrica e

    das promessas que inundam as campanhas eleitorais.

    Fracassar no um tpico aceitvel na vida lquida. H todo um investimento no

    sucesso, objetivamente perseguido ou repentino, a ideia que os homens e mulheres

    devem se fazer por si mesmo predomina, e ainda mais quando as cobranas por

    oportunidades e gerao de empregos surgem esporadicamente em reivindicaes

    sindicais ou nos meios de comunicao. Em tese, espera-se que a sociedade (com o

    direito de administrao outorgada ao Estado) garanta com os meios possveis s

  • 23

    chances a que todos aspiram. Com o passar do tempo alm das escolhas que j

    estavam dispostas para ele o proponente a uma vida melhor ficou a cargo de uma

    dupla tarefa: a de saber lidar com as possibilidades existentes e de inventar recursos

    para gerar suas prprias possibilidades quando tudo parecer nebuloso; tais recursos, sua

    aplicabilidade, eficincia, desatinos e falhas, so de responsabilidade exclusiva do

    sujeito. H inmeras possibilidades de triunfo, de escolhas e permisso para no se

    apegar a nenhuma delas. O cenrio que se apresenta de incerteza, falta de segurana e

    de instabilidade endmica das opes dignas de seguir ou de exibir.

    O que separa a atual agonia da escolha dos desconfortos que sempre atormentaram o Homo eligens, o homem que escolhe, a descoberta ou suspeita de que no h regras preordenadas nem objetivos universalmente aprovados que se possam seguir inflexivelmente o que quer que acontea, desse modo aliviando os que escolhem da responsabilidade pelas consequncias adversas de suas opes. Ningum impede que esses pontos de referncia e essas pautas que hoje parecem fidedignas sejam amanh (e retrospectivamente!) desmascarados e condenados como enganosos ou corruptos (BAUMAN, 2007b: 155).

    Os slidos modernos que foram edificados para suplantar os deteriorados slidos

    pr-modernos soobraram diante do processo de liquefao contemporneo, um novo

    derretimento dos slidos que fez eclodir uma era moderna lquida.

    1.2. Leveza: a insustentabilidade dos pontos de parada

    Instabilidade, inconstncia, flexibilidade, vulnerabilidade e leveza so

    caractersticas preponderantes da sociedade moderna lquida. Entre elas, a leveza

    destaca-se por acoplar a sua definio o desapego fidelidade e s emoes que

    engendram vnculos que nos enrazam a algum lugar. Na verdade, o que se exige dos

    homens e mulheres contemporneos a disponibilidade para se deslocar sem entraves

    relacionados a compromissos de origem sentimental. A ideia de viver em trnsito, se

    locomovendo e ter pouca bagagem, viajar leve, parece atraente por eliminar

    consequncias que a permanncia nos lugares pode criar. A velocidade desse

    deslocamento pressupe a no continuidade dos laos. Isso significa que quanto mais

    leve estamos, mais rpido percorreremos e mais longe alcanaremos.

  • 24

    Como os compromissos de hoje so obstculos para as oportunidades de amanh, quanto mais leves e superficiais eles forem, menor o risco de prejuzo. Agora a palavra-chave da estratgia de vida, ao que quer que essa estratgia se aplique e independente do que mais possa sugerir. Num mundo inseguro e imprevisvel, o viajante esperto far o possvel para imitar os felizes herdeiros da elite global que viajam leves; e no derramaro muitas lgrimas ao se livrar de qualquer coisa que atrapalhe os movimentos (BAUMAN, 2001: 187).

    Planos em longo prazo so impedimentos quase que imperdoveis. A proposta j

    deve ser conhecida de antemo: viver leve para facilitar a flexibilidade, mesmo que isso

    acarrete em vulnerabilidade, pois a incerteza e a insegurana so desafios a serem

    vencidos, no motivos para recusar a instabilidade do mundo atual. Esse entrelaamento

    das caractersticas da modernidade lquida gera um sentimento de abandono com o qual

    preciso aprender a viver. A gerao dos nascidos no final da dcada de 70 e incio dos

    anos 80 do sculo XX, chamada pelos socilogos de Gerao Y, que foi incentivada a

    ambicionar em demasia e no se contentar com as conquistas e sair atrs de horizontes

    sempre mais promissores se equilibra na fina espessura da corda que sustenta as cadeias

    de comando e as diretrizes empresariais do mundo contemporneo.

    Ser leve condio sine qua non para atenuar as mudanas constantes. Mas elas

    ocorrem com velocidade tal que afastar a insegurana mostra-se tarefa desgastante. O

    tempo para mitigar esse conflito reduz-se assim que reconhecido. No entanto, o mal-

    estar permanece como uma sensao mal digerida.

    Impotncia, inadequao: esses so os nomes da doena da modernidade tardia, da ps-modernidade o mal estar da ps-modernidade. No o temor da no conformidade, mas a impossibilidade de se conformar. No o horror da transgresso, mas o terror do infinito. No demandas que transcendem nosso poder de atuar, mas atos espordicos numa busca v por um itinerrio estvel e contnuo (BAUMAN, 2008a: 60).

    A estabilidade ainda desejvel, j que est associada concepo de

    progresso na vida. Nutrimos a expectativa de um sucesso levar a outro e, assim,

    consolidar nossos sonhos de ascenso e conquistas. Entretanto, o atual estado de coisas

  • 25

    no o cenrio ideal para projetos alm do presente e comemoraes prolongadas. H

    escolhas a serem feitas; inmeras possibilidades de escolhas. A liberdade para

    experimentar as opes que se multiplicam a nossa frente no encontra as restries

    com a qual se deparava na modernidade slida. E elas no eram excessivas. Porm, em

    ambos os perodos, a escolha deveria/deve ser feita. Em outrora a escolha precisava

    conter a semente da continuidade. Trabalhar em uma fbrica de automveis poderia ser

    garantia de futuro: estabilidade, promoo, dedicao funo, aposentadoria. Na

    modernidade lquida cada escolha carrega consigo uma ambivalncia: livre e

    necessria. A amplido das escolhas no suscita segurana. Pode ser a aposta certa ou

    errada. um risco que devemos optar correr, a incerteza est destinada a ser para

    sempre a desagradvel mosca na sopa da livre escolha (BAUMAN, 2001: 103). E a

    cada dia a confirmao dessa escolha nos persegue. Provavelmente, chegar concluso

    de que tomamos o caminho mais inadequado naquele momento no significa estar fora

    do jogo. Mas teremos que lidar com a frustrao, aceitar que o erro nosso, e apenas a

    ns cabe criar sadas para a situao desventurosa. O preo cobrado pelas alternativas

    dispostas seleo da maioria arcar com os custos dos fracassos. Ser que a nossa

    escolha no passava de sombra? Prometia aquilo que no teria condies de efetivar?

    Bauman nos lembra de que no mundo lquido deve-se ter em mente no que tange s

    escolhas que nem todas so realistas; e a proporo de escolhas realistas no funo

    do nmero de itens disposio, mas do volume de recursos disposio de quem

    escolhe (Idem).

    Para serem bem sucedidos no trfego louco das escolhas, os que tm recursos

    financeiros e intelectuais esto em vantagem. Adquirem mobilidade e privilgios que

    garantem dianteira. O risco e a insegurana so adendos perspectivas de conquista, de

    saciar o desejo. Porm, o desejo em si no mais o objetivo. O que acaba por mover os

    aventureiros o desejar que no se satisfaa por ultrapassar a linha de chegada, mas em

    procurar encontrar uma nova corrida, mesmo que o percurso seja idntico.

    Na modernidade lquida trabalho e aquisio de bens materiais so vistos e

    vividos da mesma forma. O modo de vida que se sobressai tem afinidade estrita com o

    consumo. E no consumo o processo de individualizao da era da liquidez contribui

    para que homens e mulheres se enredem mais na incerteza e insegurana. Por sua vez,

    na modernidade slida, uma sociedade de produtores, a estabilidade, a durabilidade, a

    pretenso de que algo se fixasse eram respostas s intempries da vida e s catstrofes

  • 26

    naturais. O indivduo (conceito moderno) concentrava-se na produo tendo a aquisio

    e o acmulo como metas derivadas do labor. A ideia de indestrutibilidade daquilo que

    se realizava era cara s intenes modernas. A aposta concentrava-se na prudncia e na

    durabilidade. O indivduo moderno, com a realidade herdada j se desmoronando, ou

    seja, em vias de derretimento, tinha que ter em mente que seria indispensvel ver-se

    como cidado dali para frente; uno, mas pertencente a uma sociedade, com deveres com

    as instituies que sustentavam o poder ao qual estava atrelado e no aprisionado: o

    Estado. O importante era distinguir que a sociedade civil, formao de indivduos livres

    e capazes, representava a preservao desse poder. As instituies davam crdito

    esperana de manter a certeza e a confiana no centro da relao. Nos ltimos sculos,

    as instituies que garantiam a eficincia dessas prescries sofreram desgastes que

    abalaram sua credibilidade, quase como doenas crnicas que cedo ou tarde ho de

    deixar a situao irreversvel.

    A racionalidade caminhava sobre areia movedia. Guerras, a persistncia da

    fome e da misria, regimes polticos totalitrios, uma cincia que fabricava a morte,

    desemprego, infelicidade, enfim, a irracionalidade parecia estar mais presente que

    anteriormente, ou se convertera, como na denncia da Escola de Frankfurt, em algo

    centralizadora que subjugou todas as outras formas do conhecer humano, projetando

    sombras em vez de luz. Porm, afirmar que a modernidade lquida uma reao

    espontnea e necessria s falhas, s negligncias e bestialidades ocorridas em

    decorrncia do uso incomensurvel da razo instrumental seria incorrer em equvoco e

    em declarao forada. No entanto, as distores aproximam-se de uma interpretao de

    promessas no realizadas, ou de vigilncia constante que resultaram em horrores

    inimaginveis. Um mundo melhor, mais justo, mais seguro, mas transparente em

    relao ao complexo jogo de poder no despontou no horizonte da idade

    contempornea.

    Vivemos atualmente num tonel de incertezas. Como preciso ser leve torna-se

    impossvel saber se o que deixamos para trs realmente estava obsoleto. Apesar de tudo

    j conter em sua fabricao a novidade e a obsolescncia, alguma coisa, talvez, tenha a

    qualidade de render para alm do dia do seu abandono. A incerteza no nos permite

    pagar para ver. Hoje no vislumbramos mais instncias coletivas que nos sirvam de

    suporte para as nossas decises; no processo de individualizao da vida lquida

  • 27

    consumimos, acumulamos e descartamos sozinhos. Somos responsveis pelo luxo e

    pelo lixo de nossa sobrevivncia.

    Verdadeira novidade no a necessidade de agir em condies de incerteza parcial ou mesmo total, mas a presso contnua para desmantelar as defesas trabalhosamente construdas para abolir as instituies que visam limitar o grau de incerteza e a extenso dos danos que a incerteza desenfreada causou e para evitar ou sufocar esforos de construo de novas medidas coletivas destinadas a manter a incerteza dentro de limites (BAUMAN, 2000: 35).

    A vida na sociedade lquida de consumidores apresenta-se repleta de armadilhas,

    busca expert em adotar contradies e mant-las em um arriscado jogo de equilbrio e

    desordem. Viver no limite de um paroxismo, entre a soluo e o erro, entre a sentena

    de falncia e a possibilidade de recuperao. preciso entrar no jogo, comportar-se

    como um jogador que intui (ou sabe) que o universo da ordem uma plida lembrana

    da rigidez e dos clculos que vislumbravam a subida lenta, a longo prazo at a

    realizao dos objetivos. Hoje abraar as contradies reflete a disposio de um

    jogador que reconhece que todo o movimento deve levar em conta a rapidez nas

    escolhas/aes, ou seja, a querer os resultados a curto-prazo. preciso aceitar as

    inconvenincias da incerteza e desejar o que Sartre (2006) considerou o grande feito da

    burguesia: o sonho da ascenso social. A ideologia de uma classe ascendente que

    instaurou a ideia que vencer na vida era o princpio bsico da existncia. A felicidade

    criou vnculos com um projeto de vida ostentada pelo desejo de acmulo de bens. E,

    atualmente, substitudo, sem cerimnias, pelo capital leve e fludo.

    O instantneo e o imediato so propriedades da leveza do ser. Homens e

    mulheres em trnsito, deslocando-se, assim como o capital, para paragens mais

    promissoras. A velocidade na tomada de decises, o no conformismo que cria a

    impresso que se estabelecer em um lugar estagnar-se, a retirada voluntria e

    incompreensvel da vida corrente dos proponentes ao sucesso. O cenrio descrito rido

    para pensar sobre identidade. Se tudo muda to rpido nada se fixa. Ainda mais se

    considerarmos a individualizao profunda com a qual lidamos na modernidade lquida.

    A identidade o calcanhar de Aquiles de um mundo que fez da desterritorializao,

    da disponibilidade e do deslocamento seus atributos fundamentais, fixar-se muito

    fortemente, sobrecarregando os laos com compromissos mutuamente vinculantes, pode

    ser positivamente prejudicial, dadas as novas oportunidades que surgem em outros

  • 28

    lugares (BAUMAN, 2001: 21). Contudo, o desejo de pertencimento a um solo ou a um

    grupo permanece no espao das volies humanas, mesmo que seja no inconsciente de

    homens e mulheres, tal desejo est em confronto com o corte incondicional de todos os

    vnculos. a ambiguidade depositada no mago da contemporaneidade.

    Num ambiente de vida lquido-moderna, as identidades talvez sejam as encarnaes mais comuns, mais aguadas, mais profundamente sentidas e perturbadas da ambivalncia. por isso, diria eu, que esto firmemente assentadas no cerne da ateno dos indivduos lquido-modernos e colocadas no topo de seus debates existenciais (BAUMAN, 2005a: 38).

    Constituir uma identidade pode ser problemtico, mas tambm visto como

    forma de resistncia, como no caso de nacionalismos que buscam enfrentar o poder

    avassalador da globalizao ou a identidade de grupo, uma maneira de vencer a solido,

    angstia ou mero tdio da rotina. Apesar que tais tentativas geraram o atual clima de

    tenso assistidos na Europa e em outros lugares do mundo: um ambiente carregado de

    revolta, xenofobia e fascismo. Uma tenso cravada no cerne da disputa entre a

    territorialidade e o poder abstrato extraterritorial. A vida lquida incorpora essa

    ambivalncia e administra a tenso dessa oposio sem, no entanto, extinguir a chama

    do ardor pela padronizao. Mas a identidade (no considerando o propsito de

    resistncia) pode ser um entrave para a compreenso de um mundo que se hibridiza,

    entrecruza modos de viver, de criar, de habitar diversos; uma multiplicidade que emerge

    na construo de mestiagens que se encontram e mobilizam novos conflitos e afetos.

    Esse impulso identitrio pode apresentar-se como soluo para aplacar a insegurana

    moderna lquida dos riscos ou ser o colapso de um mundo que comea a perceber a

    mutao dos modos de vida como processo de convvio com as diferenas. Essa a

    ambivalncia derradeira com a qual o mundo contemporneo ter de lidar. Por outro

    lado, as diferenas so tratadas pelo capitalismo como mercadorias no jogo estratgico

    do consumo ao ponto de atingir a indiferenciao dos seus locais de origem.

    A hibridizao isola o hbrido de toda e qualquer linha de parentesco monozigtico. Nenhuma linhagem pode alegar direitos exclusivos de propriedade do produto, nenhum grupo de parentesco pode exercer um controle meticuloso e nocivo sobre a observncia de padres, e nenhum se

  • 29

    sente obrigado a jurar lealdade a sua doutrina hereditria (BAUMAN, 2007b: 42).

    Bauman nos recorda que a hibridizao acaba por ser autnoma, consolidando

    uma prtica que no a torna independente, mas um negcio associada a uma legitimao

    da extraterritorialidade. uma nova luta e um antigo percalo que desafia a elite global

    ao mesmo tempo em que serve a ela.

    De qualquer modo, parece conveniente lembrar que, para o antroplogo indiano

    Homi K. Bhabha, o hibridismo se assenta na chance de por em prtica uma traduo que

    codifique os contatos culturais atrelados dinmica, apropriaes, conflitos que tais

    encontros geram. H, na verdade, uma zona fronteiria pulsante na qual cultura

    hegemnica e cultura subalterna, colonizador e colonizado se friccionam aguardando

    uma traduo.

    Se o hibridismo heresia, blasfemar e sonhar. Sonhar no com o passado ou o presente, e nem com o presente contnuo; no o sonho nostlgico da tradio nem o sonho utpico do progresso moderno; o sonho da traduo, como sur-vivre, como sobrevivncia, como Derrida traduz o tempo do conceito benjaminiano da sobrevida da traduo, o ato de viver nas fronteiras (BHABHA, 1998: 311).

    O antroplogo Robert Young, concordando com Bhabha, defende que o

    hibridismo se posta num setor intersticial, uma produo inquieta. Young ressalta que

    o combate contra a hibridao o resultado de uma poltica implcita da

    heterossexualidade, ou seja, uma batalha contra a heterogeneidade para manter uma

    uniformizao (assim como o binarismo) das produes culturais/sociais/afetivas.

    Tanta a hibridizao como a crioulizao envolvem fuso, a criao de uma forma nova, que possa ento ser colocada contra a forma antiga, da qual a nova fora parcialmente criada (...) uma heterogeneidade, uma descontinuidade radical, a revoluo permanente das formas (YOUNG, 2005: 30-31).

    .

  • 30

    Entretanto, Bauman detecta que a cultura hbrida global tem um escopo

    extracultural. Assim carece de uma crtica das formas de apropriao e vivncia, que

    significa que ela no se compromete e consome tudo o que lhe oferecem sem entender

    os conflitos dos cruzamentos culturais. Permitam-me repetir: a imagem da cultura

    hbrida um verniz ideolgico sobre extraterritorialidade alcanada ou programada

    (BAUMAN, 2007: 46). A elite global se desloca com a leveza como insgnia sem na

    realidade promover um intercmbio cultural.

    Mas, em outro sentido, podemos considerar o deslocar-se, leve ou no, uma

    aspirao a ser livre, um estmulo criatividade que remove barreiras do tipo que as

    obrigaes com as razes culturais ou as regras de identidade impem. Mas apenas a

    elite extraterritorial desfruta com tranquilidade (agora com a ameaa do terrorismo a

    assombrar o seu fluxo) e prazer de tal deslocamento. Bauman percebe na literatura um

    dos referenciais mais evidentes do esvaecimento das fronteiras. Ou da possibilidade de

    uma abertura legtima para as diferenas existentes, por no se restringir a um nico

    universo lingustico, por buscar em distintas disciplinas sociais base para o enredo, para

    a investigao da condio humana, alm de lanar mo de recursos vistos com

    desconfiana pelo meio acadmico, como a intuio, a imaginao, a especulao dos

    efeitos de uma causa. O que gera no meio acadmico a padronizao de diretrizes que

    visa mais a competio pelos recursos financeiros e uma vigilncia sobre a criatividade

    que incentivos aos projetos que contestam e enfrentam esse estado de coisas.

    Bauman v em escritores como Beckett, Derrida, Borges entre outros, posturas

    que no se prendem a preconceitos e que articulam relaes que na vida corrente esto

    interditas.

    George Steiner, um crtico cultural contundente e altamente perspicaz, apontou Samuel Beckett, Jorge Luis Borges e Vladimir Nabokov como os mais importantes escritores contemporneos. O que unia, a seu ver esses autores em tudo mais distintos, colocando-os acima dos demais, era o fato de todos eles serem capazes de se movimentar com facilidade em vrios universos lingusticos diferentes. Essa contnua transgresso de fronteiras lhe permitia espiar a inventividade e a engenhosidade humanas por trs das slidas e solenes fachadas de credos aparentemente atemporais e instransponveis, dando-lhes assim a coragem necessria para se incorporar intencionalmente criao cultural, conscientes dos riscos e armadilhas que sabidamente cercam todas as expanses ilimitadas (BAUMAN, 2005a: 21).

  • 31

    certo que a literatura tem um alcance modesto (ao menos a alta literatura ou

    a literatura que no esteja voltada para o mercado editorial). Sua influncia ocorre

    menos de elaborados planos de divulgao que de um encontro fortuito entre leitor e

    texto. No entanto, ela aponta um caminho que evita precipitaes no que concerne a

    valores morais, culturais e artsticos, como nos revela Bauman a respeito de suas

    inspiraes sociolgicas suscitadas pela literatura.

    Eu, por exemplo, me lembro de ganhar de Tolstoi, Balzac, Dickens, Dostoievski, Kafka ou Thomas More muitos mais insight sobre a substncia das experincias humanas do que de centenas de relatrios de pesquisa sociolgica. Acima de tudo, aprendi a no perguntar de onde determinada ideia vem, mas somente como ela ajuda a iluminar as respostas humanas sua condio assunto tanto da sociologia como das belles-lettres (BAUMAN, 2004b).

    A identidade pode ser uma insdia se for vivida como uma couraa que

    impossibilite experimentaes e o livre curso de permutas culturais. A reside o perigo

    da defesa enftica da identidade. Assim como no observar a dilacerao dela neste

    tempo lquido. Um movimento marcado pela contradio se estabelece: a identidade

    garante a liberdade de definir quem ns somos ou por causa desta mesma definio

    pode ser a catalisadora de conflitos que expugnem genunas possibilidades de conhecer

    modos de vida distintos.

    Ser leve uma qualidade primaz da atualidade. Na qual a identidade parece ser o

    excesso de bagagem. Movimentar-se em acelerao mxima sendo que o destino

    inventado para os homens e mulheres pe em xeque o propsito da autodefinio e a

    associao a objetivos compartilhados, A fragilidade e a condio eternamente

    provisria da identidade no podem mais ser ocultadas. O segredo foi revelado. Mas

    esse um fato novo, muito recente (BAUMAN, 2004b). O que est se articulando com

    a exigncia de leveza do nosso deslocamento e a porosidade das fronteiras um mundo

    que vende a novidade como sua meta central, que se apresenta como mutante, no qual

    antigas ferramentas que alimentavam o nosso processo cognitivo pouco contribuiro

    para a sua compreenso.

    1.3. A desforra dos nmades

  • 32

    Fronteiras vigiadas, fortificadas, alfndegas reforadas para barrar o indesejvel.

    A modernidade assistiu ao crescimento do controle pelos Estados-nao do seu

    territrio constitudo. O medo do estranho, do forasteiro que acompanhou a Idade

    Mdia, e um temor humano desde o princpio de sua trajetria, recebeu uma prtica de

    policiamento consoante ascenso da tcnica. Linhas limtrofes imaginadas ganharam

    pontos de vigilncia estratgicos, foram demarcadas para separar o solo ambicionado

    como prprio dos Outros, os diferentes e possveis invasores, talvez, ainda inimigos no

    declarados; somente aqueles com os quais temos identidade deveriam ter autorizao

    para ultrapass-lo. Como o propsito da separao territorial a homogeneidade do

    bairro, a etnicidade mais adequada que qualquer outra identidade imaginada

    (BAUMAN, 2001: 124). A identidade e a etnicidade postulavam condies para criar

    um "nicho seguro que deveria ser inviolvel para estranhos e protegidos contra

    distrbios que colocassem em dvida a constituio do territrio.

    A modernidade slida, poca da expanso na qual o tamanho, o volume, a

    densidade eram atributos de qualidade (desde que, obviamente, tivessem sua eficcia

    certificada), procurou conquistar o espao at ento fragmentado, distante, indomvel.

    A questo do territrio no fugiu a essa obsesso. Inmeros pases que formam o mapa

    mundi atual, h um sculo, viviam divididos em regies, principados, ilhas, mas o

    impulso agregador de forjar uma identidade ou a justificativa para a dominao

    poltica por um grupo buscou integrar locais mpares que sustentavam culturas, leis,

    modos de vida distintos em um nico bloco que modificaria o quadro geopoltico.

    Assim foi com a Itlia4, a Alemanha5, e, mais tarde, o caso emblemtico da Iugoslvia6.

    Oposies marcadas pelas diferenas tnicas eram reprimidas em nome de uma unidade

    nacional baseada na partilha do poder com maior ou menor grau de concentrao nas

    mos de uma etnia do que de outra, o que ocasionou, j na ps-modernidade ou segunda

    modernidade, ou na nomenclatura que se queira assumir, a ecloso dessas diferenas e

    os intensos banhos de sangue vistos em Ruanda, Bsnia, Timor Leste, etc.

    4 At o ano de 1860, a Itlia passou por vrios conflitos regionais e com pases europeus, como a Frana, na tentativa de constituir um territrio que integrasse todos os reinos, Lombardia, Piemonte, Siclia etc. Em 1861, o Parlamento proclamou formalmente o reino da Itlia. 5 A Alemanha, aps sculos de embate, perda e anexao de territrios, tem em janeiro de 1871, pelo Rei Guilherme I da Prssia, sua fundao, constitudo por 25 estados. 6 A Ex-Repblica Socialista Federativa da Iugoslvia dissolveu-se mergulhada numa guerra civil tnica a partir do ano de 1990. As vrias etnias que a compunha (croatas, srvios, bsnios, macednios, montenegrinos, eslovenos e albaneses) entraram em choque com a crise do socialismo e reviveram velhas feridas que eclodiram em cenas de brutalidade indescritveis.

  • 33

    O territrio estava entre as mais agudas obsesses modernas e sua aquisio, entre suas urgncias mais prementes enquanto a manuteno das fronteiras se tornava um de seus vcios mais ubquos, resistentes e inexorveis. A modernidade pesada foi a era da conquista territorial. A riqueza e o poder estavam firmemente enraizadas ou depositadas dentro da terra. [...] Os imprios se espalhavam, preenchendo todas as fissuras do globo: apenas outros imprios de fora igual ou superior punham limite sua expanso. (BAUMAN, 2001: 132).

    Para tornar a meta da conquista do espao algo plausvel fez-se necessrio tomar

    posse, explorar, enfim, fixar-se, ocupar o territrio e assegurar o seu desenvolvimento,

    segundo a vontade de seus desbravadores. Assentar-se no local era a estratgia para a

    colonizao, corporificao, inveno de uma entidade nacional entre dominador e

    dominado. Para concretizar tais propsitos extinguir o nomadismo como modus vivendi

    era o passo seguinte e mais trabalhoso. O sedentarismo provocava uma ciso na ideia

    nmade de movimento, descoberta e congregao, de algo novo a cada deslocamento.

    Alquebrar o esprito nmade submetendo-o inclinao da modernidade: a

    explorao de recursos (naturais, minerais, humanos), estabelecer instituies

    arraigadas, postos de comando e vigilncia eram manobras postas em prtica com

    relativo grau de sucesso. Os Estados-nao cumpriam essa funo de legitimar a

    existncia de determinado espao com um oficial sentimento de engajamento nacional.

    O nmade, que no possui o charme do aventureiro, do desbravador de novas terras, de

    espaos vazios, se viu preso, desse modo, a uma ordenao que obstruiu seu livre

    trnsito, pois tal atuao pertencia s misses especiais do Estado (se bem que a

    literatura exaltava os homens que zingravam os mares em busca do extraordinrio, do

    incomum). Sintoma de pr-modernidade, estigma de selvageria, de incivilidade, no

    culto, o nmade fora relegado aos confins do imaginrio extico e do atraso cientfico.

    A contestao a respeito dos valores da modernidade e da proposta de uso

    irrestrito e imaculado de uma lgica racional e se eles haviam redundado num

    fracasso cujos efeitos denunciavam seu carter autoritrio e de preocupao evidente

    com a tcnica e no com o social coincidiram ou fomentaram o descalabro do

    sedentarismo uma questo que precisa levar em considerao fatos que envolvem o

    quanto os poderes atuais so realmente nmades e se o nomadismo passou a ser prtica

    regular entre todas as populaes ou se apenas a representao econmica, seus lderes,

  • 34

    planejadores e scios, enfim, uma elite global, aproveitam sem perturbaes as

    possibilidades de deslocamentos.

    A economia mundial explorava o potencial transnacional do sistema financeiro

    dirigido pelo esprito liberal de pouca intromisso estatal e mercado livre de comrcio.

    As multinacionais comearam a se expandir pelo globo terrestre reconfigurando

    cenrios polticos, modificando as regras locais de gerir os negcios. As fronteiras

    territoriais esvaram-se, assim que o capital, cujo poder abstrato, iniciou o circuito sem

    deixar deter-se pelo brado das instituies sedentrias.

    Neste cenrio, a recalcitrncia do nomadismo, que sempre esteve presente ao

    longo da modernidade slida, tornou-se manifesta. A modernidade lquida compreende

    uma verso do estilo de vida nmade, que passou a caracterizar, na verdade, a

    extraterritorialidade de uma elite (que incorporou o no sedentarismo de tribos de

    outrora. A elite global evita o assentamento, mas no se apropria culturalmente dos

    locais por onde passa a ponto de mudar seu modus vivendi).

    A nova estrutura de poder global operada pelas oposies entre mobilidade e sedentarismo, contingncia e rotina, rarefao e densidade de imposies. como se o longo trecho da histria que comeou com o triunfo dos sedentrios sobre os nmades estivesse chegando ao final. A globalizao pode ser definida de muitas formas, e essa da vingana dos nmades, to boa quanto as outras, se no melhor (BAUMAN. 2008a: 49).

    O exerccio do poder na fase slida da modernidade exigia a presena constante

    e macia em solo da representao desse poder com suas regras severas que

    sustentassem seu direito de arbtrio sobre os comandados. Tal poder deveria ser

    corporificado para atuar com mais preciso. Ocupar o espao e viver o confronto in loco

    faziam parte do pacote da dominao. Ambos os lados estavam atrelados e imersos

    nessa interdependncia. Na vida lquida da sociedade moderna lquida o poder viaja

    leve, preza a mobilidade, no se prende a regulamentos normativos, se desloca,

    investe em uma regio, depois a abandona por outra mais convidativa e menos

    intransigente. O poder que se desloca to peremptoriamente neste tempo lquido,

    dispensou as regras que visavam normatizar as relaes de mercado, polticas e

    culturais, pois sendo o poder atual abstrato, a sua dependncia das representaes locais

    passa por um processo de abolio (que para alguns j est efetivado).

  • 35

    A nova hierarquia do poder est marcada, no topo, pela capacidade de se mover com rapidez e sem aviso, e na base, pela incapacidade de diminuir a velocidade desses movimentos, que dir par-los, associada sua prpria imobilidade. Fuga e evaso, leveza e volatilidade, estas caractersticas substituram a presena pesada e ameaadora como tcnica principal de dominao (BAUMAN, 2008a: 49).

    A deteriorao dos slidos proporcionou a ascenso de uma nova elite que

    rompe obstculos relacionados s fronteiras com a mesma facilidade que o capital

    flexvel e mvel. Nesse ltimo caso, cortesia da tecnologia que possibilita com um

    simples toque de tecla a transferncia de milhes de dlares, marcos alemes, libras

    esterlinas, reais de um extremo do mundo a outro.

    A elite extraterritorial tem a sua disposio a evaso, o deslocamento contnuo, a

    acelerao, e assim, dita a velocidade das ocorrncias econmicas, culturais, polticas ao

    redor do planeta. Os demais, que no desfrutam da liberdade consagrada elite, so

    prisioneiros do espao ou vivem o sonho de uma existncia menos dura lanando-se no

    fluxo migratrio. As fronteiras, para esses, permanecem como barreiras instransponveis

    que se reforam cada vez mais e se empenham em conter o aumento do xodo ilegal e

    da ameaa de profanao da identidade. Uma dupla ao de policiamento e promoo

    de humilhaes.

    Gilles Deleuze e Flix Guattari dedicarem-se a um amplo e original estudo sobre

    a relao entre o sedentarismo e a vida nmade. Estes demarcaram a partir dessa relao

    conflituosa pontos de oposio entre o institudo e o no reconhecido; o tradicional e o

    marginal; a totalidade e o fragmento; o espao estriado e o espao liso. Esse jogo

    complexo e tenso a disputa entre a cincia sedentria, representada pelo Estado, e a

    cincia nmade, uma mquina de guerra, que se localiza no polo oposto do aparelho

    estatal, [...] essa cincia nmade no para de ser barrada, inibida ou proibida pelas

    exigncias e condies da cincia de Estado (DELEUZE e GUATTARI, 1997: 20).

    Porm, essa ligao estabelece atritos que acarretam resistncia, perseguio,

    incorporao, modificao e posterior reincio do ciclo. O nmade segue seu curso,

    experimenta e como mquina de guerra prossegue forjando, trilhando caminhos que

    revelem frmulas, que no consagrem paragens seguras. O nomadismo um estar-em-

  • 36

    direo daquilo que no se conclui. um processo de descoberta enquanto no engessa

    a descoberta em padres que o definam. uma fuga dos mtodos de reproduo do

    sedentarismo.

    Reproduzir implica a permanncia de um ponto de vista fixo, exterior ao reproduzido: ver fluir, estando na margem. Mas seguir coisa diferente do ideal de reproduo. No melhor, porm outra coisa. Somos de fato forados a seguir quando estamos procura das singularidades de uma matria ou, de preferncia, de um material, e no tentando descobrir uma forma; quando escapamos a fora gravitacional para entrar num campo de celeridade; quando paramos de contemplar o escoamento de um fluxo laminar com direo determinada, e somos arrastados por um fluxo turbilhonar; quando nos engajamos na variao contnua das variveis, em vez de extrair delas constantes, etc. E no em absoluto o mesmo sentido da Terra: segundo o modelo legal, no paramos de reterritorializar num ponto de vista, num domnio, segundo um conjunto de relaes constantes; mas, segundo o modelo ambulante, o processo de desterritorializao que constitui e estende o prprio territrio (DELEUEZE e GUATTARI, 1997: 33).

    O deslocamento nmade perpetua o trao de composio do territrio. A evaso,

    no sendo fuga, mas o avano constante, o estupor pelas variveis, desterritorializa

    sucessivamente, cunhando um espao liso que a porosidade das fronteiras, seja o caso

    das fronteiras geogrficas ou das fronteiras entre as cincias.

    Para Deleuze e Guattari, a vida nmade um intermezzo. Um estar simultneo:

    desterritorializado em vias de reterritorializar; num espao liso que acaba por encontrar

    o estriado do aparelho estatal evadindo-se em paragens. Intervalos que, no entanto, no

    o define. O nmade movimenta-se num espao aberto, ao contrrio do sedentrio, capaz

    de atuar apenas num espao fechado obstruindo significantemente as passagens de um

    lado para o outro. O espao sedentrio estriado, por muros, cercados e caminhos

    entre os cercados, enquanto o espao nmade liso marcado apenas por traos que se

    apagam e se deslocam contra o trajeto (Ibidem: 43).

    O nmade assusta o sedentrio por ser sua anttese, seu reflexo distorcido no

    espelho, enfim, seu pesadelo, apesar de ser seu complemento necessrio. Capaz de

    perturbar a ordem, o nmade no um desordeiro, mas a escapatria de um mundo

    petrificado em trmites burocrticos e legitimado por formulrios e hierarquias

    monolticas.

    O sedentrio constitudo pelas obsesses modernas refugiava-se no

    assentamento de um espao fechado. O nmade de outrora, observado pelos filsofos

  • 37

    franceses, se movimentava de modo intensivo. O nomadismo lquido moderno, prpria

    de uma elite extraterritorial, como aponta Bauman, tem como atributo central a

    velocidade e a velocidade extensiva. O nmade que transita no espao aberto adota a

    pausa como processo. No mundo lquido pausas so proibidas, so erros crassos ou

    manifestao da nossa fragilidade latente.

    Na sociedade moderna lquida a desterritorializao vivenciada como aval para

    romper fronteiras. Aval para revalidar a imagem de homens e mulheres sem

    ancoradouros emocionais, sem problemas futuros para escapar as dissolues dos

    empecilhos que podero impedir um deslocamento porvir; o nomadismo da sociedade

    lquida se diferencia assim do nomadismo do espao liso porque, em verdade, no

    planta a semente da transgresso em coisa alguma. A elite global viaja e no se enraza

    por motivos que so mais econmicos que culturais ou identitrios. Como defende o

    socilogo Renato Ortiz, no mundo contemporneo os ritos de deslocamentos so

    invocados com frequncia, o que reatualiza os objetos e as imagens de um mundo

    transnacional cujo vazio do tempo envolve seus viajantes.

    A desterritorializao prolonga o presente nos espaos mundializados. Ao nos movimentarmos percebemos que nos encontramos no mesmo lugar. Neste sentido, a ideia de viagem/sada de um mundo determinado encontra-se comprometida. Desde que o viajante, nos seus deslocamentos, privilegie os espaos da modernidade-mundo, no exterior ele carrega consigo seu cotidiano. Ao se deparar com um universo conhecido, sua vida se repete, confirmando a ordem das coisas que o envolvem (ORTIZ, 1994: 133).

    A elite global suplanta o nomadismo, pois para ela, por se definir como

    extraterritorial, qualquer local pode ser um lar, pelo motivo de tudo descaracterizar e

    dar-lhe face comum, que de seu agrado, lembrando a casa que deixou ou um lugar

    admirvel pelo exotismo. Assim, negando ao nmade a desterritorializao descrita por

    Gilles Deleuze e Flix Guattari.

    Para o nmade, ao contrrio, a desterritorializao que constitui sua relao com a terra por isso ele se reterritorializa na prpria desterritorializao. a terra que se desterritorializa ela mesma, de modo que o nmade a encontra um territrio. [...] A terra no se desterritorializa em seu movimento global e

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    relativo, mas em lugares precisos, ali mesmo onde a floresta recua, e onde a estepe e o deserto se propagam (DELEUZE e GUATTARI, 1997: 44).

    O cinema do alemo de origem turca Fatih Akin7 emana atualmente esse

    sentimento de desterritorializao com criatividade e densidade no que tange as relaes

    socioculturais. Por mais que se fale, nesse caso, em migrao e no propriamente em

    nomadismo. O importante aqui o deslocamento de um ponto para o outro. Um fluxo

    que retorna ao mesmo no intuito de se encontrar, assim, engendrando o novo.

    Especialmente em Contra a Parede (Gegen die Wend, 2004) e Do Outro Lado (Aud der

    Anderen Seite, 2007). Em ambos os filmes, as personagens centrais so cidados turcos

    ou de descendncia do antigo Imprio Otomano vivendo na Alemanha. Pensamos em

    diferenas culturais, choque de civilizaes e relaes humanas. Porm, o que emerge

    com mais densidade a sensao de zona intermediria que os protagonistas se

    encontram. Nem turcos nem alemes. A identidade rarefeita, suspensa, impedida pela

    aridez da convivncia entre a tradio e a permissividade que desejamos extrair do

    novo. Desterritorializados na recalcitrncia que encontram a possibilidade de efetivar

    o trnsito que proporcionaro a eles algo prximo a um lugar no mundo. Contra a

    Parede nos fala do encontro que se d por meio de um acordo e que levar dois seres

    desterritorializados a se reterritorializar para fugir da fria que est espreita. Do Outro

    Lado trata de no encontros nos quais a desterritorializao est implicada fortemente

    nas relaes que so traadas e no modus vivendi que aparece como um algoz

    incontornvel.

    So filmes que nos provocam instigando perguntas sobre a fluidez

    contempornea, o exlio ntimo e a dissoluo das fronteiras que no apagam

    necessariamente os conflitos entre as culturas mesmo que eles no sejam declarados.

    O nomadismo a constncia do sentimento de desterritorializao que comporta

    a pausa e o movimento, que cria para instituir o que no para de se constituir em um

    espao aberto. A determinao primria do nmade, com efeito, que ele ocupa e

    7 Crticas a respeito dos filmes de Fatih Akin podem ser lidas no site