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ESBOÇO DE UMA ONTOLOGIA DA IMAGEM E DE UMA ESTÉTICA DAS ARTES CONTEMPORÂNEAS 1 ELIANE ESCOUBAS [Professora emérita da Universidade de Paris XII, Val de Marne]

Uma Ontologia da Imagem e de uma Estética das Artes Contemporâneas

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Eliane Escoubas

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  • ESBOO DE UMA ONTOLOGIA DA IMAGEM E DE UMA ESTTICA DAS ARTES CONTEMPORNEAS 1ELIANE ESCOUBAS[Professora emrita da Universidade de Paris XII, Val de Marne]

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    1. A conferncia ser composta por quatro momentos. Apresento aqui apenas os trs primei-ros (que tratam da ontologia da imagem). Durante a conferncia, esses trs momentos caro um pouco encurtados e sero seguidos por um quarto momento, focalizando a esttica das artes contemporneas, que far referncia a textos do lsofo Henri Maldiney, dentre outros.2. Martin Heidegger. Dichterisch wohnet der Mensch (1951). In: Vortrge und Aufstze. Pfullingen: Neske, 1954, p. 181 sq. Traduo portuguesa de Marcia S Cavalcante Schuback: ... Poeticamente o homem habita.... In: Ensaios e conferncias. Petrpolis: Vozes, 2001, p. 177.

    O nome que se costuma dar sionomia e ao aspecto de alguma

    coisa imagem. A essncia da imagem : deixar ver alguma

    coisa. Por outro lado, as reprodues e imitaes so deformaes

    da imagem propriamente dita que, enquanto sionomia, deixa ver

    o invisvel, dando-lhe assim uma imagem que o faz participar de

    algo estranho. (...) Assim e num sentido muito privilegiado, as ima-

    gens poticas so imaginaes. Imaginaes e no meras fantasias

    ou iluses. Imaginaes entendidas no apenas como incluses

    do estranho na sionomia do que familiar mas tambm como

    incluses passveis de serem visualizadas. Martin Heidegger2

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    3. M. Blanchot. Le regard dOrphe. In: Lespace littraire. Paris: Gallimard-Ides, 1951, p. 227-8. Traduo portuguesa de lvaro Cabral : O olhar de Orfeu. In: O espao literrio. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p. 171-2.

    Quando Orfeu desce em busca de Eurdice, a arte a potncia pela

    qual a noite se abre. A noite, pela fora da arte, acolhe-o. (...) Mas

    para Eurdice que Orfeu desce: Eurdice , para ele, o extremo

    que a arte possa atingir, ela , sob um nome que a dissimula e sob

    um vu que a cobre, o ponto profundamente obscuro para o qual

    parecem tender a arte, o desejo, a morte, a noite. (...) Esse ponto,

    a obra de Orfeu, no consiste, porm, em assegurar a aproxima-

    o, descendo para a profundidade. Sua obra consiste em traz-

    lo de volta para o dia e dar-lhe, no dia, forma, rosto e realidade.

    Orfeu pode tudo, exceto olhar esse ponto, salvo olhar o centro

    da noite na noite. (...) Mas Orfeu, no movimento da sua migrao,

    esquece a obra que deve cumprir. (...) Ao voltar-se para Eurdice,

    Orfeu arruna a obra, a obra desfaz-se imediatamente, e Eurdice

    retorna sombra. Assim traiu ele a obra, Eurdice e a noite.

    Mas no se voltar para Eurdice no seria menor traio, inde-

    lidade fora sem medida e sem prudncia do seu movimento,

    que no quer Eurdice em sua verdade diurna e em seu acordo

    cotidiano, que a quer em sua obscuridade noturna, (...) que quer

    v-la, no quando ela est visvel, mas quando est invisvel, e no

    como a intimidade de uma vida familiar, mas como a estranheza

    do que exclui toda a intimidade, no para faz-la viver, mas ter viva

    nela a plenitude de sua morte. Maurice Blanchot 3

    1. A imagem-percepoUma imagem no nada, uma imagem algo, ela se apresenta, ela presena, ela dada por uma percepo. Mas ela no uma coisa como as outras. Ela coisa que apresenta ou representa outra

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    coisa: toda imagem imagem de algo, deixa ver algo como escreve Heidegger. Uma dualidade inscreve-se de imediato no ser da ima-gem. A dualidade ou a dialtica do mesmo e do outro , portanto, constitutiva do ser da imagem. No entanto, e esta minha primeira suposio, no poder uma imagem apresentar-se ou representar-se por si mesma? Como uma imagem de imagem ou uma imagem do ser-imagem da imagem. Sim, certamente, mas no indenidamente, no interminavelmente: preciso que, em determinado momento do processo de apresentao ou representao, se produza uma parada no desdobramento e essa parada que pe em cena ou em obra o outro da imagem. E se, e essa minha segunda suposio, o outro estivesse ele mesmo presente ao mesmo tempo que sua imagem? Isso tambm possvel, mas no interminavelmente: um mundo duplo, maneira de Narciso e de seu reexo, seria incon-sistente, e alis, como frisa Kant: um espelho, um reexo, inverte a direita e a esquerda. Esse desdobramento no seno um engodo, um desdobramento falho. Cabe armar, portanto, que a condio da imagem est na rasgadura entre uma presena e uma ausncia. Volto a citar M. Blanchot, em As duas verses do imaginrio (in: O espao literrio): Mas o que a imagem? Quando no existe nada, a imagem encontra a a sua condio, mas nela desaparece. A imagem pede a neutralidade e a supresso do mundo, quer que tudo caiba no fundo indiferente onde nada se arma, ela tende para a intimi-dade do que ainda subsiste no vazio: a est a sua verdade. Mas essa verdade a excede; o que a torna possvel o limite onde ela cessa. Ela arma as coisas em seu desaparecimento, desaparecimento ao qual ela prpria est nalmente submetida.

    Presena-ausncia ou percepo de uma no-percepo, as-sim a imagem. No intil lembrar que o eikn grego encontra seu porvir na memoria romana. E que a comemorao, derivao da anamnese grega, constitui provavelmente o comeo antropolgico da

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    imagem; que o tempo do foi, do no mais, o tempo primeiro da imagem. E, no entanto, essa percepo de uma no-percepo, essa presena-ausncia no simples. Essa ambigidade ou diculdade perfeitamente almejada por Kant, quando escreve na Antropologia de um ponto de vista pragmtico ( 28): A imaginao, como facul-dade das intuies fora da presena do objeto (ohne Gegenwart des Gegenstandes fora do presente do objeto), ou produtiva, isto , faculdade de produo originria do objeto (exhibitio originaria), que precede, por conseguinte, a experincia; ou reprodutiva, isto , facul-dade de apresentao derivada (exhibitio derivata), que traz de volta ao esprito uma intuio j experimentada. Da mesma forma, ele dis-tingue, no pargrafo 51 da Crtica da faculdade de julgar, o arqutipo (modelo originrio) e o ctipo (a cpia). fcil entender como uma faculdade das intuies fora do presente do objeto gera ctipos ou derivaes a partir de um objeto anterior que tem, para eles, o estatuto de modelo: a lembrana o modo fundamental de tal ima-gem. Mas o que uma exhibitio originaria, que precede a experin-cia quando sabemos que para Kant, todo conhecimento comea com a experincia... e nenhum conhecimento antecede em ns a experincia? Onde situar o original dessa exibio originria? A nica resposta coerente seria que essa exibio originria fosse aquela das condies a priori de possibilidade de toda experincia. Ora, essas condies no so para Kant, como bem sabemos, ob-jeto de experincia alguma. Estar ento Kant pensando resolver a questo, na Crtica da faculdade de julgar, ao colocar a enigmtica noo de idia esttica, que ele identica precisamente com a dita exibio originria? Esta revestiria ento a mesma denio dada por ele idia esttica, ou seja, aquilo que d mais a pensar do que um simples conceito. Teramos ganhado, dessa forma, uma origem? No, pois a idia esttica, por denio mesmo, sem determinao (seno ela se tornaria um conceito). A origem no

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    poderia, ento, ser nada alm da referncia a esse sujeito indeter-minvel, posto no centro do mundo pela revoluo copernicana, to inacessvel quanto Eurdice na sua noite profunda. Ou ento, o que d no mesmo, esse gnio indenvel do qual se deve postular a existncia para que a arte, mas tambm as imagens, se produzam.

    Resta apenas, portanto, a imagem reprodutora, submetida semelhana e repetio, a nica de que podemos falar, se que podemos. Pois falar de semelhana e repetio acenar para um modelo, para uma origem. Mas se a origem , como acabamos de ver, inacessvel, o modelo se perde nas trevas dos tempos. Semelhana e repetio so ento indemonstrveis, isto , no-mostrveis.

    2. A imagem-criseMais uma vez, Blanchot vai me permitir a transio. Em Le rire des dieux,4 um texto sobre Nietzsche, Blanchot escreve: Um universo onde a imagem cessa de ser segunda em relao ao modelo, onde a impostura pretende verdade, onde, nalmente, no h mais ori-ginal, e sim uma eterna cintilao onde se dispersa, no fulgor do desvio e do reenvio, a ausncia de origem.

    Colocarei, ento, o seguinte princpio: a imagem ignora a cronologia. De fato, qual o presente da imagem, daquela ima-gem que j ocorreu, como diz Kant, fora do presente do objeto? Nietzsche pode nos ajudar nesta anlise. No apenas ao opor a pri-mazia do esquecimento ao pretenso privilgio da memria, como tambm ao determinar, na Segunda considerao extempornea, trs modos de presentes, isto , trs tipos de relaes entre o presente e o passado. essa determinao nietzschiana dos trs modos de histria que vai me permitir aqui progredir na questo da imagem. , primeiro, a histria documentria que articula o presente com

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    4. M. Blanchot. Le rire des dieux. In: Nouvelle revue franaise, 1965.

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    um passado que no mais, um passado revoluto, um passado- fssil, resto ou vestgio, portanto uma histria do luto e da sepa-rao (Abschied). Mas tambm, segundo, a histria monumental, que articula o presente com um passado posto como testemunho para sempre, uma lio para o futuro, uma histria antecipatria, progressista. Desses dois modos de histria, Nietzsche distingue, em terceiro lugar, a histria crtica. O que a histria crtica? A histria do presente no presente. a histria da transformao da histria, da mutao e, portanto, da descontinuidade: nem luto, nem progresso, mas ruptura. Ruptura da cadeia do tempo, ruptura do encadeamento do tempo, tempo do contratempo, tempo da crise. O presente da histria crtica, portanto, no o atual, no aquilo que chega na hora certa, aquilo que vem a calhar; mas, sim, o contratempo, o inatual, a inatualidade do tempo.

    Digo que a imagem uma estrutura de experincia fun-damental: a da inatualidade do tempo. Nem comemorao, nem antecipao, tal ento a imagem. A imagem ignora a cronologia: presena inatual, sempre no presente, mas nunca atual: ela con-tempornea do contratempo. Ela nasce na crise, ela prpria crise. E o que, por vezes, chamamos de crise das imagens no acidental, pois a imagem, no seu ser-imagem, crise.

    Neste ponto da minha anlise, gostaria de fazer duas observaes.

    Primeira observao: Se a imagem crise, isso signica que no cerne da imagem h uma contradio. A contradio o cerne da imagem. A imagem , por denio, contradio. Con-tradio, como acabamos de ver, crise, contratempo, ruptura. E esse precisamente o estatuto do Bild heideggeriano; lembro a citao da epgrafe: o Bild deixa ver o invisvel, incluso visvel do estra-nho na aparncia do familiar. Uma contradio sem superao, sem Aufhebung ao modo hegeliano, uma contradio que continua

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    sendo contradio. Pelo contrrio, quando cessa a contradio, ento cessa a imagem, a imagem desaparece como imagem, ou d lugar s cpias ou iluses. A imagem s imagem como contra-dio do visvel e do invisvel, do estranho e do familiar, do dia e da noite mantidos juntos, inseparveis, bem como da vida e da morte, do nascimento e da morte. A imagem a contradio insuperada, insupervel: a est a condio do ser-imagem da imagem. Por isso, diria que a imagem sempre implica uma Stimmung historial, e lem-braria o duplo estatuto da Stimmung historial heideggeriana: o es-panto (Erstaunen) dos Gregos e o terror (Erschrecken) dos Modernos (in Grunfragen der Philosophie, tomo 45 da G.A). Espanto e terror geram nossas imagens.

    Assim, posso voltar um pouco para Nietzsche, dessa vez em O nascimento da tragdia: s duas pulses ou foras iniciais do apolneo e do dionisaco, ao seu encontro, que no o efeito de uma reconciliao, ao modo hegeliano (no Aufhebung, mas Paarung, conforme o termo de Nietzsche), mas sim de uma contradio sus-tentada e viva como beleza, gura e sonho de um lado e embria-guez, dana e msica, do outro. Ambos os lados so inseparveis na tragdia grega. E essa contradio viva o prprio conceito da tragdia grega de Esquilo e Sfocles segundo Nietzsche, o aves-so do drama euripidiano. (Este , para mim, uma pregurao do Trauerspiel moderno, jogo do luto do drama barroco, em que a contradio resolvida num alhures, nos fundos do mundo arrire-monde). Resumindo esta primeira observao, diria que o conceito nietzscheano do trgico (contradio do apoliniano e do dionisaco) idntico ao que eu chamo de imagem. A imagem trgica, a imagem o trgico.

    Segunda observao: Eu disse que o ser-imagem da imagem reside na sua inatualidade e, aqui, em torno do historiador de arte Aby Warburg, que desenvolverei a minha anlise. (Baseio-me

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    no esplndido trabalho de Georges Didi-Huberman, A imagem sobre-vivente Histria da arte e tempo dos fantasmas em Warburg5). pre-ciso saber que Warburg leu muito Nietzsche. A histria da arte que ele pe em obra , de sada, a-cronolgica, j que o seu projeto trazer tona nas imagens de uma poca o que ele chama de sobre-vivncias (Nachleben). Mas, preciso insistir, essas sobrevivncias no so resduos, restos, que possam ser inventariados tais quais e como tais no, elas devem ser lidas nas transformaes que as tornam ativas, isto , vivas. Nesse sentido, as imagens warburgianas ignoram a cronologia e se inscrevem em um presente inatual. As imagens, segundo Warburg, retornam, no para constituir uma semelhana imitativa, mas para constituir a contradio do que, em Warburg (como em Husserl), podemos chamar de pre-sente vivo. Em Warburg, o retornar das imagens um se tornar (le revenir des images est un devenir); h um retorno de ima-gem, que, da mesma forma que o eterno retorno nietzschiano, no um retorno do idntico; pois este retorno antes tem como fun-o colocar em xeque a tese do progresso histrico na histria da arte, tanto quanto na histria geral. A histria da arte e das imagens promovida por Warburg a histria do que ele chama de Pathos-Formeln, as frmulas pticas (ou patticas), que no so imitao de nada, mas a prpria prova6 da existncia corprea. Assim, o termo grego Mnemosine, que Warburg mandou gravar acima da porta do seu Instituto, no tem nada a ver com a memoria romana; no diz respeito comemorao, antes se refere a um imemorial, um tipo de inconsciente que no um intemporal. Dessa forma, essa super-vivncia se manifesta, diria eu, na supervenincia das imagens.

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    5. Georges Didi-Huberman. Limage survivante Histoire de lart et temps des fantmes chez Warburg. Paris: Editions de Minuit, 2002.6. Nota do tradutor: do francs preuve exemplar de impresso, de gravura.

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    3. A imagem enquanto supervenincia: a imagem-phainomenon (a imagem enquanto aparecer)Vou retomar a minha citao de Heidegger a imagem enquanto incluses do estranho na sionomia do que familiar isto , o estatuto de contradio inerente imagem. Logo, a natureza da imagem enquanto coliso do esperado e do inesperado, da distncia e da no-distncia, do afastamento e da proximidade. Isso me remete ao termo de choque (Stoss) que Heidegger usa em Der Ursprung des Kunstwerkes (A origem da obra de arte). Dessa forma, eu poderia dizer que a origem choque, isto , perturbao do tempo e do espao, desorientao temporal. H origem quando o tempo est fora de si mesmo. Mas no est o tempo sempre fora de si mesmo? Fora de si mesmo no ca sempre inalcanvel? Ou seja, nunca podemos segur-lo nas mos. E no herda a imagem, no seu ser-imagem, dessa origem sempre ausente? Um modo de presente da ausn-cia. A ausncia ento o nosso presente vivo.

    Para avanar um pouco mais, voltarei para trs, para aqum de Heidegger e Blanchot, e focalizarei rapidamente minha investiga-o em A losoa da arte7 de Schelling Schelling que coloca no cen-tro de todas as potncias (Potenzen) a imaginao (Ein-bildunskraft = fora de uni-formao) inclusive na prpria natureza: a imagina-o est na natureza, uma potncia da natureza (j que a natureza cria, gnese e crescimento) e logo, no h dualismo originrio en-tre a natureza e o esprito. Quero me ater a um ponto especco em Schelling. No 39 de A losoa da arte, Schelling distingue trs formas de apresentao: a apresentao esquemtica, a apresenta-o alegrica e a apresentao simblica. A apresentao segundo a qual o universal signica o particular o esquematismo; a apresen-tao segundo a qual o particular signica o universal a alegoria; a

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    7. F.W.J. Schelling. Philosophie de lart. Grenoble: Jrme Millon, 1999, passim.

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    sntese de ambas, em que nem o universal signica o particular, nem o particular signica o universal, mas onde formam um abso-lutamente, o simblico. Vemos ento como Schelling desloca os conceitos kantianos e que, enquanto o esquemtico e o alegrico so da ordem de um signicado entre dois nveis (universal e particular), o simblico schellingiano no apresenta dois nveis, mas apenas um onde, diz Schelling, o ideal e o real formam um. a que Schelling coloca a potncia da arte: a potncia de criar o real. O smbolo schellingiano no tomado na tradicional ciso do sensvel e do sig-nicado; ele o prprio real, a prpria coisa, o phainomenon: o aparecer daquilo que aparece. Isso o que chamo de imagem. A imagem no signica, ela ou, antes, ela o que ela signica e ela signica o que ela . A ciso no se passa entre ela e alguma outra coisa ou algum signicado, ela se passa nela, na sua contradio viva. A imagem , corprea e, enquanto corpo, ela ata, juntas, indissociavelmente, a vida e a morte.

    Com relao a isso, parece-me que Konrad Fiedler, no seu livro ber den Ursprung der knstlerischen Ttigkeit (Sobre a origem da atividade artstica),8 publicado em 1887, traz excelentes anlises que, a meu ver, antecipam a fenomenologia da arte em Merleau-Ponty. Em se tratando da criao artstica, ele usa um termo interessante e que poderia gerar alguma confuso: o termo de ocina interna (atelier intrieur). O que ele chama de ocina interna? , diz ele, o conjunto dos processos siolgicos o que bastante consonante com as anlises de Nietzsche e cabe destacar que Fiedler escreve: a realidade no aparece mais como representao, mas como processo innitamente mltiplo e cambiante que ocorre em nosso organismo sensorial. No se trata, portanto, de uma interioridade (espiritual)

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    8. K. Fiedler. Sur lorigine de lactivit artistique. Paris: Editions lENS, 2003. (Coleo Aestheti-ca), traduo francesa pelo grupo de trabalho de Danielle Cohn.

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    que se oporia a uma exterioridade (material). No h qualquer dua-lismo em Fiedler (nem tampouco em Schelling), e a ocina inter-na uma ocina de produo, isto , esse processo innitamente mltiplo e cambiante. Fica ento bvio que, como ele escreve, uma atividade formadora que no pode acontecer fora do corpo , neces-sariamente, uma atividade formadora externa externa por pro-duzir corpos fora do corpo: a oposio tradicional entre o interno e o externo totalmente substituda pelo conceito de atividade forma-dora. E eu acrescentaria que esses corpos gerados fora do corpo so corpos-imagens.

    Tudo isso leva Fiedler anlise do que ele designa sob o termo de visibilidade. H, em Fiedler, uma primazia da visibi-lidade na atividade formadora. Tal primazia poderia parecer inde-vida. Porm, no to simples, pois a primazia do ver, em Fiedler, decorre, ao contrrio, do fato de que no basta abrir os olhos para ver. A caracterstica muito extraordinria do ver edleriano cabe numa frase: o ver alcana, por assim dizer, a si mesmo, quando desapareceu a relao ao objeto. Ver , ento, fundamentalmente, ver por ver e no ver o objeto; ao passo que, por exemplo, tocar tocar um objeto, tocar algo. Mas ento, o que se v quando se v por ver? Talvez as luzes e as cores que so a prpria matria do ver, matria quase imaterial, matria que no pode ser apreendida por qualquer outro sentido, a no ser a viso. Assim o ver por ver relega qualquer outro sentido para o segundo plano cito: No se pode separar do objeto a qualidade sensvel veiculada pelo toque. Ao passo que, pela viso, obtm-se um material de realidade do qual se pode fazer uma apresentao independente das demais quali-dades sensveis de um objeto. Equivale dizer, ento, que a viso um sentido abstrato: o sentido da forma. E a ocina interna, onde ocorre essa atividade formadora, no seno a ocina da visibilidade: aliviada do fardo do objeto, a visibilidade torna-se

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    congurao livre e autnoma; ver por ver , portanto, ver sem nada ver. Falando do acesso ao reino da visibilidade, escreve Fiedler: Somente nele penetra a atividade que d forma ao visvel, e no mais o olho.

    Concluso parcialEntendeu-se que esta atividade que d forma ao visvel coincide com o que chamo de imagem. A imagem seria, portanto, para mim, uma atividade que d forma ao visvel, medida que o ver ver por ver, aliviado do fardo do objeto. A imagem seria imagem no cerne dessa contradio insuperada e insupervel do aparecer e do desaparecer. Poderamos ento dizer que ela arqutipo, no sentido de uma origem sem origem; a prpria origem de objeto algum. Ela seria a prpria coisa ou o fenmeno, o processo de produo da visibilidade.

    A imagem no um objeto, mas sim uma estrutura fun-damental da experincia a prpria experincia da ausncia de origem.9

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    9. Cf. nota 1, segue um quarto momento: a esttica das artes visuais contemporneas. Esse momento, baseado, entre outros, nos textos do lsofo Henri Maldiney (em especial: Regard, parole, espace 1973, Lart, lclair de ltre 1993, Ouvrir le rien, lart nu 2000.) ser apresen-tado na palestra.