Uneb Os Discursos Sobre a Prisão No Estado Novo

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    UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA  –  UNEBPROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUAGENS - PPGEL

    MARCUS VINÍCIUS CONCEIÇÃO PEREIRA

    OS DISCURSOS SOBRE A PRISÃO NO ESTADO NOVO EM MEMÓRIAS DOCÁRCERE  DE GRACILIANO RAMOS

    Salvador2014

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    MARCUS VINÍCIUS CONCEIÇÃO PEREIRA

    OS DISCURSOS SOBRE A PRISÃO NO ESTADO NOVO EM MEMÓRIAS DOCÁRCERE  DE GRACILIANO RAMOS

    Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade doEstado da Bahia  –  UNEB, Programa de Pós-Graduação

    em Linguagens  –   PPGEL, como requisito final para aobtenção do título de Mestre em Linguagens, área:Análise do Discurso, e aprovada pela seguinte bancaexaminadora:

     _______________________________________________Prof. Dr. João Antônio de Santana NetoUniversidade do Estado da Bahia

     _______________________________________________Profª Drª rosa Helena Blanco MachadoUniversidade do Estado da Bahia

     _______________________________________________Prof. Dr. Igor Rossoni Universidade Federal da Bahia

    Salvador, ____ de _______________________ de 2014.

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    Às duas grandes mulheres da minha vida:Solange Auta Conceição e Sônia Maria Conceição Silveira.

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    AGRADECIMENTOS

    Agradeço ao meu orientador, o Professor Dr. João Antônio de Santana Neto, que

    me proporcionou novos aprendizados, dando-me auxílio, apoio e incentivo para trilhar

    caminhos desconhecidos, encorajando-me a enfrentar os grandes desafios de formular essa

    dissertação. A leitura crítica e debates contribuíram para que adquirisse um contorno

    definitivo. Minha dívida para com ele é eterna e incontestável.

    À Professora Drª Rosa Helena Blanco Machado e ao Professor Dr. Igor Rossoni,

     pelos comentários e sugestões no exame de qualificação.

    Aos meus amigos, os professores doutores em Linguística pela Universidade

    Federal da Bahia, docentes da Universidade do Estado da Bahia, André Gaspari Madureira eErivelton Nonato, pela amizade fiel, verdadeira e devotada com a qual se dedicaram a

    motivar-me ao retorno da vida acadêmica e ao desenvolvimento desta dissertação.

    À inestimável orientação pessoal e profissional do amigo e professor Pedro Barroso

    Sobrinho pela grande contribuição prestada à minha formação de vida e retorno à vida

    acadêmica.

    Aos amigos Reinaldo Miranda por seus elogios e correções e Patrícia Rodrigues

    Sampaio por sua preocupação, carinho e atenção acadêmica desde a minha aprovação nomestrado.

    A todos os professores e funcionários do PPGEL.

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     É bom quando nossa consciência sofre grandes ferimentos, pois isso a torna mais sensível a cada estímulo. Penso que devemos ler apenas livros que nos ferem, que nosafligem. Se o livro que estamos lendo não nos desperta como um soco no crânio, por que

     perder tempo lendo-o? Para que ele nos torne felizes, como você diz? Oh Deus, nós seríamos felizes do mesmo modo se esses livros não existissem. Livros que nos fazem felizes poderíamos escrever nós mesmos num piscar de olhos. Precisamos de livros que nos atinjamcomo a mais dolorosa desventura, que nos assolem profundamente  –  como a morte de alguémque amávamos mais do que a nós mesmos  –  , que nos façam sentir que fomos banidos para oermo, para longe de qualquer presença humana  –  como um suicídio. Um livro deve ser um

    machado para o mar congelado que há dentro de nós.

    Franz Kafka.

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    RESUMO

     Nessa dissertação, procurou-se fazer uma análise interpretativa sobre o discurso da prisão

    durante o período do Estado Novo inscrito no romance  Memórias do Cárcere de GracilianoRamos. Primeiro, buscou-se fazer a reconstituição das origens e filiações biográficas, pessoaise artísticas de Graciliano Ramos relacionando-as ao estudo do desenvolvimento histórico dascondições de produção e dos elementos formadores da memória discursiva presentes nalinguagem literária do romance e constituição histórica do Estado Novo. Entende-se que a

     prisão no Estado Novo exerceu o controle panóptico do corpo e do sujeito através de umavigilância hierárquica. A análise da prisão estadonovista, valeu-se, principalmente, dos

     postulados de Louis Althusser acerca da Teoria dos Aparelhos Ideológicos de Estado, além dateorização genealógica e arqueológica sobre o discurso e a prisão, de Michel Foucault,elemento teórico basilar para a compreensão das relações do poder opressor e dasmanifestações ideológicas do cárcere na Era Vargas. Por último, buscou-se entender o modo

    discursivo específico do trabalho de tradução autobiográfica presente no romance porintermédio dos estudos da Análise do Discurso. A prisão, portanto, discursivamente não podeser apenas vista como elemento material de clausura institucional. Destaca-se nesse estudo, aimportância simbólica estabelecida pela ditadura estadonovista ao escolher um dos maisdestacados intelectuais de seu tempo silenciando-o e vitimando-o à época. Desse modo,mostra-se que o discurso produzido pelo narrador em  Memórias do Cárcere, longe de serdespretensioso e neutro, contém um elemento denunciador ao público leitor das práticastorpes realizadas, a partir da década de 1930, durante o período da ditadura Vargas.

    Palavras chave: Discurso. Prisão. Estado Novo. Poder. Ideologia. Memória e vigilância.

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    ABSTRACT

    In this thesis, we tried to make an interpretative analysis of the discourse of prison during the

     Estado Novo enrolled in the novel Memórias do Cárcere by Graciliano Ramos. First, we triedto make the reconstruction of the biographical, personal and artistic origins and affiliations ofGraciliano Ramos, relating them to the study of the historical development of the productionconditions and the constitutive features of the discursive memory in the literary language ofthe novel and the historical constitution of the NewState. It is understood that during the

     NewState, the prison exercised panoptic control of the body and the subject, through ahierarchical supervision. The analysis of the prison during the New State, thanks, mainly, the

     postulates of Louis Althusser on the Theory of Ideological State Apparatus, besides MichelFoucault's archaeological and genealogical theorizing about the speech and the arrest,fundamental theoretical element for the understanding of the relations between the oppressive

     power and ideological manifestations of the imprisonment in Vargas Era. Finally, we sought

    to understand how specific discursive translation work in this autobiographical novel throughthe studies of discourse analysis. The arrest, therefore discursively just can not be seen as amaterial element of institutional confinement. Stands out in this study, the symbolicimportance established by the dictatorship in the Vargas Era when choosing one of theleading intellectuals of his time silencing him and victimizing him at the time. Thus, it isshown that the speech produced by the narrator in Memórias do Cárcere, far from beingneutral and unassuming, gives up to the readers a denunciatory element of the vile practicescarried out from the 1930s during the Vargas dictatorship.

    Keywords: Discourse. Prison. Estado Novo. Power. Ideology. Memory and vigilance.

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    SUMÁRIO

    1 INTRODUÇÃO 09 

    2 GRACILIANO RAMOS: MEMÓRIAS, CÁRCERE E ESTADO NOVO 14

    2.1 O ESTADO NOVO E O FACISMO TUPINAMBÁ 14

    2.2 GRACILIANO RAMOS E O PERCURSO A MEMÓRIAS DO CÁRCERE 26 2.3 ELEMENTOS PARA ANÁLISE 37

    3 BASES TEÓRICAS E ANALÍTICAS 46

    3.1 MEMÓRIA, DISCURSO E ARQUIVO 46

    3.2 CORPO, SUJEITO E VIGILÂNCIA 52

    3.3 OS APARELHOS IDEOLÓGICOS DO ESTADO GETULISTA 63

    3.3.1 A POLÍCIA DE GETÚLIO - O DESPS 65

    3.3.2 O PRESÍDIO GETULISTA –  O CCDR E ILHA GRANDE 67

    3.3.3 O TRIBUNAL DE SEGURANÇA NACIONAL –  TSN 70

    3.3.4 O DEPARTAMENTO DE IMPRENSA E PROPAGANDA –  DIP 72

    4 A ANÁLISE DO CORPUS : O CÁRCERE DE GRACILIANO 74

    4.1 ARQUIVO INSTITUCIONAL E POSICIONAMENTO DO SUJEITO 74

    4.2 A FUNÇÃO IDEOLÓGICA DA PRISÃO NO GETULISMO 81

    4.3 DISCURSIVIDADE E HISTÓRIA 89

    5 CONCLUSÃO 96

    REFERÊNCIAS 102 

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    1 INTRODUÇÃO

    O regime totalitário denominado Estado Novo, implantado no país a partir da década

    de 1930, instaurou um conjunto de práticas e procedimentos ditatoriais que delinearam

    diversas concepções ideológicas e literárias na sociedade brasileira nas décadas de 1930 a

    1950. O elemento opressor mais contundente desse sistema autoritário foi o da prática do

    encarceramento generalizado durante grande parte do período do governo de Getúlio Vargas.

    A prisão funcionou como mecanismo de perpetuação do controle ideológico estadonovista e

    fonte disseminadora da legitimação do modelo de poder abusivo e disciplinar do Estado

    getulista.

    A ancoragem nesse cenário possibilitou a escolha da trajetória narrativa do romance Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, por representar uma tradução discursiva mais

     próxima do testemunho histórico e da descrição pormenorizada das práticas torpes realizadas

    nos porões/prisões à época da ditadura getulista. O sujeito histórico apresentado na narrativa

    autobiográfica graciliana estabelece o encontro de diversas acepções literárias, político-

    ideológicas, memorialistas e históricas, as quais possibilitam perceber, de modo específico, a

     partir do aporte teórico da Análise do Discurso (AD), a confluência possível entre a história,

    as ciências humanas e a linguística sobre a memória discursiva e a função-sujeito presentes nodepoimento registro configurado a partir dos relatos do escritor Graciliano Ramos, no presídio

    de Ilha Grande, durante o período da ditadura varguista.

     Na presente dissertação, tem-se como objetivo principal trabalhar as condições

     produtoras do discurso ideológico estadonovista, analisando-se as estratégias disciplinares de

    controle e legitimação do poder a partir do aparelho ideológico da prisão presente no discurso

    da obra Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos.

    Outros aspectos que objetivaram a realização desta pesquisa concentram-se em:identificar os elementos constituintes de uma formação discursiva presente na linguagem

    literária graciliana, a reflexão sobre a função ideológica da prisão no contexto histórico-

     político; compreender as relações de opressão que se estabeleceram no Estado Novo, e

    analisar a posição sujeito dos sujeitos histórico-culturais na construção discursiva. As

    hipóteses pretendidas apresentam a noção de que, mediante a pesquisa, é possível identificar

    que o discurso literário conferido na narrativa da obra  Memórias do Cárcere funciona como

    uma espécie de autópsia de um dos mais complexos sistemas ditatoriais já implantados no

     país.

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    Por isso, elegeu-se como objeto de estudo os arquivos discursivos sobre a prisão no

    Estado Novo, em  Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, na tentativa de depreender e

    analisar, no depoimento-discursivo, as estratégias discursivas que manifestam as ideologias e

    as relações de poder a partir da década de 1930, no período da ditadura Vargas. Algumas

    motivações conduziram à escolha do tema, como, por exemplo, a suposição de que o romance

     Memórias do Cárcere  representa uma espécie de arquivo vivo de diversas representações,

    imaginários, panoramas e acervos das estratégias ditatoriais getulistas no período do Estado

     Novo.

    Dessa forma, foram suscitados os principais questionamentos, delineantes do percurso

    investigativo, a saber: a prisão em  Memórias do Cárcere  funciona como instrumento de

    opressão ideológica do Estado Novo, que pretende punir o sujeito enunciado (GracilianoRamos) por expor o depoimento discursivo. O sujeito enunciador (narrador-autor) denuncia as

    estratégias de manutenção do poder opressor por meio do acionamento da memória narrativo-

    discursiva. O presente estudo se justifica, portanto, pela necessidade de estabelecer discursos

    limite situados em divisa onde a obra literária se encontra demarcada: os anos de totalitarismo

     político do Estado Novo. Por sua vez, o depoimento narrativo-discursivo do autor serve como

    archeion  (arquivo registro) sócio-histórico-político de observação e reflexão sobre a

    utilização dos instrumentos dos aparelhos ideológicos do Estado e sobre a forma de perpetuação no poder.

    O corpus  da pesquisa se constitui do romance  Memórias do Cárcere,  escrito por

    Graciliano Ramos, extraídos dos dois exemplares publicados no ano de 1953, das referências

    da crítica especializada, além de consultas bibliográficas e entrevistas em periódicos da época.

    Assim, o trabalho foi idealizado tomando como parâmetro o discurso visto como fenômeno

    capaz de revelar ideologias materializadas por meio do conjunto de práticas estabelecidas por

    instituições repressivas a partir da força bruta, conformações de representações, relaçõesimaginárias dos indivíduos com respectivas condições reais de existência e os aparelhos

    ideológicos de Estado presentes no período getulista.

    Quanto à estruturação monográfica interna, busca-se atender às expectativas teórico-

    metodológicas pontuadas para os objetivos estabelecidos, bem como à linha de investigação

    científica adotada no momento da concepção temática do estudo. Em decorrência, a

    dissertação divide-se em três seções. A primeira, intitulada Graciliano Ramos: memórias,

    cárcere e Estado Novo, dedica-se às origens e filiações biográficas, pessoais e artísticas de

    Graciliano Ramos; ao estudo do desenvolvimento histórico das condições de produção e dos

    elementos formadores da memória discursiva presente na linguagem literária do romance e à

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    constituição histórica do Estado Novo repercutidas em  Memórias do Cárcere em relação ao

     período de encarceramento do escritor  , buscando-se evidenciar os aspectos mais relevantes da

    narrativa, com ênfase nos discursos, arquivos e linguagens envolvidos na construção do

    depoimento discursivo gracilianiano. De tal maneira, procura-se reunir elementos conceituais,

    formulações e dados históricos relativos à memória apresentada ao longo do romance,

    destacando-se, inclusive, o encontro de diversas acepções temáticas que conferem

    legitimidade à obra do sujeito enunciador (narrador autor), a formulação conceitual e

    ideológica do Estado Novo a partir das concepções fascistas adotadas no período.

     Na segunda seção, aborda-se as principais bases teóricas e analíticas do presente

    estudo dissertativo. Destacam-se a importância da análise do discurso memorial-documental e

    histórico autobiográfico, as interações entre memória, discurso e arquivo. Desse modo, aanálise do controle panóptico do corpo e do sujeito através de uma vigilância hierárquica

    apresenta-se com importante manancial, no qual estão reunidas informações sobre o poder

    ideológico da prisão, objetivando-se traçar um panorama histórico relativo aos conceitos e

    definições atribuídos ao referido aparelho ideológico do Estado e à utilização deste na

    ditadura varguista. Ademais, realiza-se estudo acerca da Teoria dos aparelhos ideológicos de

    Estado, desenvolvida por Louis Althusser, além de centrar-se nos estudos genealógicos sobre

    a prisão e arqueológicos sobre o discurso, de Michel Foucault, os quais serviram como base para a análise das relações do poder opressor e as manifestações ideológicas encontradas no

    material contido no corpus  da pesquisa. Procura-se reunir, ainda, conceitos e definições

    relativos à Análise do Discurso, por meio dos quais foi possível lançar um olhar mais

    cuidadoso ao material analisado, o que subsidiou cientificamente essa dissertação.

     Na terceira seção, o cárcere de Graciliano Ramos, analisa-se o corpus –  Memórias do

    Cárcere   –   sob perspectiva que compreende que um dado acontecimento discursivo  –  

    encarceramento de Graciliano Ramos  –  projeta uma fração da história invisível, intocada einaudita. Novamente, o estudo apurado da função ideológica da prisão no Estado Novo

    imprimiu materialidade às teorias abordadas, servindo como elemento confirmador das

    hipóteses levantadas e dos questionamentos lançados ao longo de todo o trabalho de

    investigação. Assim, estrutura-se esta parte da dissertação em três momentos: o primeiro

    demonstra os impactos do posicionamento do sujeito no discurso, reordenando e

    ressignificando o conteúdo iconográfico de um arquivo institucional. O segundo analisa a

    função ideológica da prisão no getulismo, buscando identificar os mecanismos discursivos de

    legitimação do poder opressor estadonovista nos sujeitos ideológicos presentes no romance; o

    terceiro investiga a estreita ligação entre a discursividade e a história, verificando, assim, o

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    lugar na história em que se apresentam as principais estratégias de exercício do poder

    opressor varguista no estabelecimento do silêncio discursivo-narrativo do autor.

    A dissertação configura-se, pois, como oportunidade para se perceber um modo

    específico de entender o trabalho de tradução autobiográfica, por intermédio dos estudos do

    discurso. Tal reflexão torna-se relevante em período no qual a ideia de sujeito é dimensionada

     por concepção que entende o sujeito como elemento afetado pela ideologia e subordinado à

    linguagem. Estudar a trajetória do narrador-autor Graciliano Ramos é uma possibilidade para

    se pensar como determinadas formações discursivas podem se adensar e constituir memórias

    discursivas, que revelam formas de comportamento e pensamento tidas como institucionais

    nas sociedades do pós-guerra.

    Por último, colocam-se na conclusão os posicionamentos sobre os resultados queforam constatados na investigação: o discurso sobre a prisão na época do Estado Novo.

    Procura-se mostrar, através dela, que as condições de produção em que se encontra a obra de

    Graciliano Ramos foram submetidas a uma forte interferência ideológica, difundidas pelas

    instituições que compõem os aparelhos ideológicos do Estado, em especial, a prisão no

    modelo estadonovista. A prisão, portanto, não pode ser apenas vista como elemento material

    de clausura institucional. Destaca-se, nesse estudo, a importância simbólica estabelecida pela

    ditadura estadonovista ao escolher um dos mais nobres intelectuais de seu tempo: silenciar evitimar a gerações de intelectuais da época. Assim, mostra-se que o discurso produzido pelo

    narrador em Memórias do Cárcere, longe de ser ingênuo e neutro, pode denunciar ao público

    leitor as práticas torpes realizadas a partir da década de 1930 durante o período da ditadura

    Vargas em conter o avanço de ideologias contrárias no país.

    A pretensão de realizar o trabalho é  –  para além de analisar o impacto sócio-histórico

    sobre a construção de discursos autoritários dirigidos às massas e às repercussões nas

    liberdades coletivas no Brasil do pós-guerra  –   sinalizar, também, como a trajetória de umintelectual pode orientar e denunciar todo o surgimento da banalização do mal no seio da elite

    dirigente do país. Em momentos particulares da história, para demonstrar força, poder e

    fascínio, o poder ditatorial escolhe seus melhores representantes literários: Franz Kafka,

    Garcia Lorca, Vladimir Maiakoviski. Na dissertação em questão, percorre-se um fio condutor

    de exploração investigativa e de denúncia que podem ser apreciadas no romance sobre a

    opressão humana e a capacidade de revelar a face obscura de um período ditatorial ainda não

    totalmente digerido pela sociedade brasileira.

    Desse modo, visa a despertar o olhar mais atento do leitor para o regime ditatorial de

    encarceramento generalizado realizado no período do Estado Novo, pois acredita-se que os

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    discursos presentes no romance  Memórias do Cárcere  têm o poder conscientizador na

    formação dos indivíduos, despertando-os para elementos pertinentes a determinadas

    formações discursivas e ideológicas antidemocráticas que afetam a sociedade brasileira na

    atualidade. 

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    2 GRACILIANO RAMOS : MEMÓRIAS, CÁRCERE E ESTADO NOVO

    2.1 O ESTADO NOVO E O FASCISMO TUPINAMBÁ

    O século XX inaugurou o ciclo de profundas transformações econômicas, políticas e

    sociais no modelo e na estrutura da sociedade brasileira a partir das décadas de 1920. A

    sociedade escravista começava a ser substituída por uma relação econômica centrada no

     processo industrial e na mão de obra remunerada do operariado. As cidades brasileiras, que

    até então serviam exclusivamente de entrepostos comerciais desde a época da colônia,

    transformavam-se em centros de processamento de manufaturados pertencentes a produções

    em larga escala.A intensa urbanização e a modificação do eixo populacional predominantemente

    agrário (agroprodutor) para um eixo populacional notadamente urbano prenunciaram a

    derrocada do modelo latifundiário cafeicultor, estabelecendo uma crise sem precedentes no

    núcleo do poder político e ideológico da elite dirigente brasileira. Com a crise do modelo

     patriarcal agrário, o país é invadido por êxodo rural crescente; pelo fluxo de imigrantes com

    ideias anarquisras e pelo incremento de uma nova mentalidade de viver. Assim, comportar-se

    e agir em cidades recém-independentes, politicamente, após o período escravagista,intensificam a mudança da sociedade essencialmente ruralista urbana.

    A primeira grande crise do capitalismo ocidental (o crack   da bolsa de 1929)

     possibilitou uma série de transformações na hegemonia da denominada “República café com

    leite”1, favorecendo o esgotamento do poder oligárquico estabelecido durante décadas na

     política e na economia brasileira. O advento de duas grandes guerras mundiais propiciou o

    solapamento do conceito de formação e exercício de sociedades liberais em todo o mundo.

     Nascia, assim, o mito do Estado nação (Estado forte) e a concepção de que um líder predestinado com dons e personalidade singular deveria estabelecer uma espécie de “coesão

    social suprema” em prol da unidade e integridade nacionais. O embate mundial entre as

    1  A  política denominada de “café com leite” foi um arranjo político que vigorou no período da PrimeiraRepública. Constituída pelas oligarquias de São Paulo e Minas Gerais e o governo central no sentido decontrolar o processo sucessório, para que somente políticos desses dois estados fossem eleitos à presidência demodo alternado. O surgimento do nome "café com leite" batiza o acordo que seria uma das referências àeconomia de São Paulo e Minas, grandes produtores, respectivamente, de café e leite. Com a quebra da Bolsade Nova York, em 1929, o preço do café brasileiro caiu drasticamente, o que levou os cafeicultores paulistas a

    terem uma crise de superprodução. Esta fragilidade econômica de São Paulo foi decisiva para que MinasGerais se unisse ao Rio Grande do Sul e à Paraíba, formando a chamada Aliança Liberal, a qual resultou naeleição do gaúcho Getúlio Vargas à presidência encerrando o ciclo da política café com leite.

    http://www.infoescola.com/historia/politica-do-cafe-com-leite/http://www.infoescola.com/brasil/paraiba/http://www.infoescola.com/brasil/paraiba/http://www.infoescola.com/historia/politica-do-cafe-com-leite/

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    ideologias comunista e capitalista conformava o surgimento de personalidades doutrinadoras

    e líderes políticos ultrarradicais em todo o mundo.

    O entrechoque de forças ideológicas possibilitou o avanço do culto à personalidade,

    que se expressou de maneira multifacetada nos dirigentes políticos de esquerda e direita no

     período entre guerras. A tendência se apresentou como alternativa “legítima” de resolução de

    conflitos de classes sociais e econômicos gerados pelo sistema capitalista em disputa

    ideológica com o comunismo, durante todo o século XX.

    O ponto central da doutrina é determinar que o Estado não mais estivesse subjugado a

    qualquer ditame ou preceito do liberalismo econômico. O Estado nação deve ser forte o

    suficiente para contemplar, cultuar o nacionalismo exacerbado e, sobretudo, uma

    nacionalidade vigorosa e sem limites.

    Enquanto a consciência da nacionalidade é comparativamente recente, a estrutura doEstado é fruto da secular evolução da monarquia e do despotismo esclarecido. Fossesob forma de nova República ou de monarquia constitucional reformada, o Estadoherdou como função suprema a proteção de todos os habitantes do seu território,independente de nacionalidade, e devia agir como instituição legal suprema. Atragédia do Estado-nação surgiu quando a crescente consciência nacional do povointerferiu com essas funções. Em nome da vontade do povo, o Estado foi forçado areconhecer como cidadãos somente os “nacionais”, a conceder completos direitoscivis e políticos somente àqueles que pertenciam à comunidade nacional por direito

    de origem e fato de nascimento. Isso significa que o Estado foi parcialmentetransformado de instrumento da lei em instrumento da nação. (ARENDT, 2012, p.323).

    Dessa forma, o nacionalismo estabelece o controle supremo de todas as ações dos

    indivíduos na sociedade e é imbuído, assim, de um “espírito de nacionalidade” capaz de

    dirimir as mazelas da desigualdade social no século XX. As relações de poder entre Estado e

    nação, e governo e comunidade, são absorvidas por uma liderança insigne que entroniza em

    sua personalidade a figura do “dono de uma verdade”, de uma voz única que suplanta as

    diversas expressões existentes nos mais variados setores da sociedade.

    As concepções de Estado nação desenvolvidas na Europa favorecem a elaboração do

    regime ditatorial denominado de Estado Novo no Brasil. O Estado Novo apresenta ,em

    formação ideológica, o discurso do medo e do terror. A construção ideológica discursiva

    sobre a necessidade da existência de um Estado totalizador que defendesse de inimigos

    externos a nação revela-se como uma estratégia argumentativa recorrente em ditaduras

    totalitárias. A estratégia discursivo-ideológica de disseminar o medo está associada a práticas

    antissemitas e racistas que incorporam um clima ideológico de pavor e desconfiança nas

    massas, no intuito de angariar adesão da sociedade às práticas ditatoriais do regime opressor

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    em questão. O Plano Cohen –  estopim do golpe getulista de 1937  –  imprimiu essa estratégia

    no seio da sociedade brasileira, instaurando a ideia do anticomunismo (iminente ameaça

     judaico-comunista) e o ódio à linhagem judaica no país favorecendo as primeiras cogitações

    ideológicas estadonovistas.

    O Estado Novo estabeleceu maior racionalidade administrativa além de disseminar

    ideologia através de propaganda extensiva à sociedade brasileira. A centralização do poder

    administrativo e político, aliada à criação de cargos públicos em diversos níveis da

    administração, vincularam de forma subordinada os estados ao poder central do governo

    estadonovista. A matriz intervencionista do Estado Novo configura-se no grande aparato

    estatal de base tecnocrática, autônoma e não clientelista. No entanto, a estrutura moldada no

    getulismo atendeu em grande parte aos interesses e conveniências político-partidárias doEstado Novo. A propaganda e a censura no varguismo transformaram-se nas principais armas

    ideológicas de controle durante a ditadura estadonovista, o objetivo principal era o de

     persuadir e controlar um imenso contingente do proletariado; a propaganda e a censura

    estadonovista estabeleceram o procedimento focado em dois polos distintos: a educação

    massificada e o civismo dirigista.

    A educação proporcionada pelo governo estimulava principalmente o culto ao corpo

    em exibições oficiais em quadras de futebol. Nesse período, imenso contingente de escolas brasileiras sofreu intenso processo de nacionalização curricular, monitoração e intervenção

    cultural.

    O civismo promovia campanhas de cunho educativo com intuito de “erradicar”

    influências perniciosas advindas de terras estrangeiras. Nesse sentido, o propagandismo

    varguista criou uma série de campanhas em prol de causas defendidas pelo governo: Dia da

    raça, Dia da pátria, Dia da juventude, Semana da independência e Dia do trabalho. A máquina

    de propaganda do Estado Novo produziu uma extensa iconografia mítica e louvatória emtorno da imagem de Getúlio Vargas. A construção ideológica de uma iconografia de uma

    liderança marcada por uma monumentalidade associada à agenda oficial de inaugurações de

    Getúlio pretendia edificar um lugar na imagem pública do país de um presidente com valor

    histórico de paternalidade dos desfavorecidos, uma espécie de defensor dos humildes, que

    trazia uma preocupação subliminar: conter a acentuada insatisfação dos proletários,

    imigrantes e abastados numa sociedade capitalista tardia e industrial nascente. A construção

    da imagem de chefe de Estado, “ pai nacional” que protegia os humildes e que possuía o poder

    de transformar os anseios e desejos do povo em interesses da nação.

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    A propaganda de massa getulista desempenhou um papel basilar e precípuo na

    instauração do regime do Estado Novo. Em virtude da crescente adoção de práticas

    nazifascistas pelo poder central varguista, a arquitetura, a escultura e a pintura receberam

    influência de traços estéticos notadamente neoclássicos em diversas inaugurações de prédios

     públicos, favorecendo assim uma revigoração artística de cunho institucional e patrimonial.

    Conforme Berger e Luckmann (2008, p.79-80), o construto da institucionalização ocorre

    sempre quando há uma típica e recíproca ação habitual dimensionada por diversos atores ao

    longo de um processo histórico:

    As instituições têm sempre uma história, da qual são produtos. É impossívelcompreender adequadamente uma instituição sem entender o processo histórico em

    que foi produzida. As instituições, também, pelo simples fato de existirem,controlam a conduta humana estabelecendo padrões previamente definidos deconduta, que a canalizam ( sic) em uma direção por oposição às muitas outrasdireções que seriam teoricamente possíveis. É importante acentuar que este carátercontrolador é inerente à institucionalização enquanto tal, anterior a quaisquermecanismos de sanções especificamente estabelecidos para apoiar uma instituiçãoou independente desses mecanismos. Tais mecanismos (cuja soma constitui o quegeralmente se chama sistema de controle social) existem evidentemente em algumasinstituições e em todas as aglomerações de instituições que sociedades ( sic)(BERGER & LUCKMANN, 2008, p. 79-80).

    O instrumento institucionalizado de grande ferocidade e controle ideológico no

     período estadonovista foi, sem dúvida, a censura. A censura da Era Vargas, representada pelas

    ações ideologicamente estratégicas do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP),

     pautava-se na reprodução da autocensura às atividades de produções artísticas, recreativas,

    esportivas, radiofônicas, literárias sociais, políticas e de imprensa. A principal intervenção da

    censura no campo literário ocorre na agregação de escritores que constituíram uma versão

    oficial da realidade estadonovista em contrapartida a uma política de favorecimento literário.

    O discurso literário de Graciliano Ramos, diante da política de compra de intelectuais a favor

    do regime, mantém-se num posicionamento de resistência prudente diante de verbas e

    favorecimentos ofertados pelo getulismo.

    Uma das estratégias do DIP na atração desses intelectuais notabilizou-se na elaboração

    da revista Cultura Política que buscava agregar intelectuais de campos liberais e da esquerda

     para alinhar-se ao projeto político estadonovista associando temas literários a remunerações

    expressivas patrocinadas pelo getulismo. Ao receber o convite por parte da revista, Graciliano

    Ramos estabelece, nos artigos colaborativos à revista, um discurso centrado numa postura de

    completo desconhecimento sobre o regime Varguista. Enquanto grande parte dos escritores

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    rendia homenagens ao regime nas colaborações à revista, Graciliano Ramos estabeleceu uma

    condução ética e isolada do discurso oficial produzido por grande parte dos colaboradores.

    A existência da censura Varguista constitui-se para o escritor como experiência

    decisiva para a instauração de um direcionamento autobiográfico pautado por um discurso de

    teor avaliativo sobre as relações e transformações do poder promovidas pelo Estado Novo.

    Desse modo, o sistema opressor da Era Vargas elaborou e instituiu o Departamento de

    Imprensa e Propaganda (DIP), órgão responsável por realizar a inspeção do conteúdo de todos

    os veículos da imprensa: jornais, revistas e radiofusão. Segundo Garcia Júnior (1982), a

    Agência Nacional exerceu o controle de quase 60% das produções dos noticiários, os censores

    limavam constantemente as matérias de grande parte dos jornalistas na imprensa escrita e

    falada e o governo estipulava dura e intensa política de concessões de rádio pelo país.Do ponto de vista do propagandismo getulista, a faceta marcadamente ideológica e,

     portanto, manipulatória encontra-se na elaboração de um discurso que visou legitimar e criar

    um ambiente de acentuado teor protetivo em relação às normas e regulamentações trabalhistas

     para a classe trabalhadora brasileira. O incremento pelo Estado de apelos patrióticos no

    sentindo de estabelecer um “espírito de conciliação” em torno das questões que envolvessem

    a dignidade dos trabalhadores levaram ao poder central varguista o aprimoramento de uma

     política intervencionista projetada na figura de Vargas como um negociador habilidoso querefreava todos os tipos de antagonismos de classe, revoltas sindicais e lutas do operariado.

    Dessa maneira, o Estado Novo elabora e cria a Justiça do Trabalho e a Consolidação

    das Leis Trabalhistas (CLT), que estipulam um nível de qualificação profissional e utilizam-se

    do discurso, nomenclatura e imagem do “trabalhador” como forma de estabelecer uma

     possível sensação ideológica de conforto e proximidade entre trabalhadores e patrões,

    associada à imagem iconográfica de “ pai protetor ” de Getúlio Vargas.

    O patrimonialismo exerceu forte presença no projeto audacioso da ditadura Vargas; àmercê da divulgação de inaugurações suntuosas de empresas e órgãos públicos, a população

    contemplava fascinada o dinâmico desempenho de seu líder e o esforço carismático em

    estabelecer a tão prometida igualdade e justiça social aos pobres: as inaugurações da

    Companhia Siderúrgica Nacional, Companhia Vale do Rio Doce, Estrada de Ferro Central

    do Brasil, Companhia Hidrelétrica Vale do Rio Doce, entre outras realizações patrimoniais

    concretizadas. A visão patrimonialista estadonovista não se restringiu apenas a edificações e

    criações de empresas estatais.

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    O estilo de governar de Getulio imprimia uma conduta que buscava não gerar nenhum

    desafeto político. Lira Neto, a propósito, descreve de forma habilidosa as salomônicas

    soluções administrativas getulistas:

    “O Sr. Paranhos deseja o lugar de inspetor-geral do ensino. É funcionário da saúde pública. O Moreirinha, jornalista aqui, também me veio pedir para telegrafar aVossa Excelência”, adiantou Getúlio, por carta, a Borges de Medeiros. “Se, porforças das circunstâncias, eu telegrafar solicitando a indicação de Paranhos ouMoreira, Vossa Excelência me responda dizendo que não pode atender nenhum dosdois, porque já tem compromissos”, combinou. “Como vê, este meu pedido é fácilde atender: pois exatamente eu não desejo ser atendido”, brincou. Boa parte doexpediente do ministério era tomada pela miuçalha de solicitações que lheaterrissavam na mesa de trabalho. Getúlio administrava tais pedidos e ia tocando a

     burocracia  –   pondo sua assinatura em portarias, requerimentos e autorizações dedespesas  –   ao passo que o próprio Washington Luís cuidava da política

    macroeconômica do governo. “Quem lhe fosse falar a propósito de assuntos de sua pasta ouviria uma palavra distraída e displicente, de que não guardaria rancor ouressentimento, pelo sorriso amável e o ar acolhedor daquele ministrodespreocupado”, escreveria o jornalista Barbosa Lima Sobrinho a respeito dodesempenho de Getúlio à frente da Fazenda (LIRA NETO, 2012, p.245).

     Nesse sentido, o Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP) era o

    responsável por promover todo conjunto de ações que visavam ao controle da efetivação de

     pesquisas pormenorizadas sobre as repartições governamentais, departamentos e empresas

     públicas para efetivar as modificações a serem realizadas em diversas áreas no governo:orçamento, remanejamento, processos trabalhistas, deficiências estruturais dos órgãos do

    governo. O Departamento Oficial de Propaganda (DOP) foi o responsável pela elaboração do

    despretensioso programa “A Hora do Brasil”, instrumento ideológico de propaganda

    institucionalizada que consistia no programa radiofônico oficial, transmitindo informações a

    todo território nacional. Além disso, o DOP, em meados de 1934, foi reestruturado, tornando-

    se o Departamento Nacional de Propaganda e Difusão Cultural (DNP), responsável por

    instituir políticas culturais para o cinema, radiotelegrafia, processos técnicos, filmes

    educativos e cultura física. Na mesma ordem institucional e ideológica, o Estado Novo cria o

    Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) com o objetivo de estabelecer melhor controle

    e eficácia das informações nos estados da Federação.

    O DIP centralizou esforços em áreas distintas: imprensa e turismo, cinema e teatro,

    divulgação e radiodifusão. O Serviço de Inquérito Político e Social (SIPS) produziu um dos

    maiores mananciais de arquivos institucionais do país na metade do século XX. O SIPS

    detinha um eficiente e organizado método de recortar jornais, revistas, relatórios e

    informações de colaboradores por todo o Brasil. Essa sistemática continha, no início da

    década de 1940, um catálogo de 44 fichas básicas sobre 1.574 municípios da Federação,

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    O clima era de orgia cívica, conforme definiria Chatô, nas páginas de o   Jornal . Entretanto, muitos devem ter ficado intrigados quando o sujeito baixinho, de cararaspada, aparência frágil e bochechas rosadas como as de um bebê se adiantou, comum calhamaço de páginas datilografadas na mão. Alguns talvez se perguntassem:então aquele era Getúlio Dornelles Vargas, o colosso dos Pampas, o grande líder que

     prometia redimir o país dos males do autoritarismo, da corrupção e da falcatrua política? Aquele, o mais mirradinho do palanque? Um homem, segundo a descriçãoda Folha da Manhã, “tão pequenino, tão  rechonchudo”? Pela primeira vez, muitos

     puderam constatar que Getúlio, apelidado de “Meia Garrafa” pela mordacidade doDeputado Azevedo Lima, não correspondia mesmo ao estereótipo do sujeito audaz,corpulento, de vasta bigodeira, montado na sela de um corcel empinado, o quedesmentia a figura típica eternizada em prosa e verso pela literatura regional do RioGrande do Sul. O gaúcho que puderam conhecer melhor naquele cinzento fim detarde carioca mais parecia um anãozinho de jardim, um homenzinho um tantoquanto barrigudo, sem maiores atrativos, fisicamente incapaz de fazer frente àaltanaria do emplumado Washington Luís e seu cavanhaque inglês (LIRA NETO,2012, p.393).

    Este cenário político ideológico revela o trabalho eficaz do sistema ditatorial

    estadonovista em construir a imagem institucional de Getúlio Vargas perante a grande “massa

    de desvalidos” como um líder “grandioso, forte, robusto e de uma capacidade de trabalho e

    superação descomunais”. A propaganda e as diversas comemorações cívicas em diversos

    estádios proliferavam e disseminavam uma espécie de doutrinação da personalidade e

    deificação do líder. Essa disposição produz uma série de panfletos, cartazes, livros, cartilhas e

     slogans  que buscavam fixar a personalidade “santificada” do “ pai supremo da nação”. O

    Getúlio de voz anasalada, monocórdica e antirretórica ficou escondido sob o poderio

    estratégico da ideológica, contumaz e persuasiva propaganda de Estado.

     Necessário enfatizar, em termos políticos e ideológicos, que a publicidade

    desempenhou um papel decisivo na ampla difusão, orientação e legitimação do regime do

    Estado Novo e foi estabelecida por um conjunto de práticas que buscavam a elaboração de

    discursos condizentes às necessidades de caráter imediato e básico da massa proletária

     brasileira. A autoridade suprema atribuída a Gétulio Vargas se coadunava com a construção

    de uma personalidade carismática, engenhosa, dotada de atributos excepcionais e liderança

    onipresente. O simbolismo pujante de Vargas submeteu a população brasileira a intermitentes

    ciclos de autopromoção transformando-o em certos momentos em um líder que traduzia os

    anseios mais urgentes do povo.

    É importante salientar que os regimes totalitários buscavam disciplinar e controlar as

    massas. A organização política, o temor por ataques ou ameaças internas ou externas, as

    discordâncias ideológicas e a descrença no modelo democrático liberal hipnotizaram muitos

     países numa escalada nazifascista. O unipartidarismo solapou o pluralismo democrático,reduzindo o debate político sobre as questões sociais mais urgentes a uma escolha e tomada

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    de posição nacionalista; a fragilidade em deter as manifestações e reivindicações populares

    deu vazão ao uso da força bruta; os embates e escolhas ideológicas foram submetidos por um

    antagonismo de posicionamentos capitalistas ou socialistas. Os regimes totalitários instituíram

    uma ditadura do unipartidarismo e instauraram o Estado como propriedade privada a serviço

    do seu sistema ditatorial.

    Os sistemas totalitaristas impuseram uma lealdade quase individual a cada um dos

    seus membros, aos seus partidos, aos líderes e à nação. Nesse aspecto, o regime totalitário

     buscou imprimir um espectro da violência centrado num forte aparato coativo que não se

    contentou apenas em disciplinar as massas com o arcabouço jurídico estatal, mas, sim, incutir

    uma dimensão simbólica da violência baseada no limite do terror que cada ser humano

     poderia experimentar em uma sociedade banalizada pelo medo introduzido por uma atroz política de Estado. Hannah Arendt, enquanto filósofa e estudiosa das questões imperialistas e

    antissemitas, concebe o totalitarismo como uma máquina de violência que subtrai os desejos

    das massas:

    O totalitarismo jamais se contenta em governar por meios externos, ou seja, atravésdo Estado e de uma máquina de violência; graças à sua ideologia peculiar e ao papeldessa ideologia no aparelho de coação, o totalitarismo descobriu um meio desubjugar e aterrorizar os seres humanos internamente. Nesse sentido, elimina a

    distância entre os governantes e governados e estabelece uma situação na qual o poder e o desejo de poder, tal como entendemos, não representa papel algum ou, namelhor das hipóteses, têm um papel secundário. Essencialmente, o líder totalitário énada mais e nada menos que o funcionário das massas que dirige; não é umindividuo sedento de poder impondo aos seus governados uma vontade tirânicaarbitrária (ARENDT, 2012, p.323).

    O Estado Novo alicerçou-se, em grande parte, em teorizações e práticas político-

    ideológicas do regime fascista. O governo de Getúlio Vargas sempre exprimiu publicamente

    sua admiração e fascínio pelo sistema ditatorial fascista. Em 25 de julho de 1929, Getúlio,

    antes de assumir no Palácio do Catete2, dera a entender que sua forma de governar seria

    2 O Palácio do Catete foi construído pelo Barão de Nova Friburgo em 1860 e passou, já nos primeiros anos daRepública (1894), a abrigar a sede do poder executivo, tendo sido palco dos principais acontecimentos danossa história republicana até a transferência da capital federal para Brasília, em 1960, quando foitransformado em Museu da República. Além das características materiais que privilegiam o Palácio do Catetecomo um marco concreto da memória histórica do país, outros fatores contribuem para a sua constituição emum lugar de memória indissociavelmente ligado à imagem de Getulio Vargas. Em primeiro lugar, Vargas foi ogovernante que por maior período contínuo de tempo ocupou o Catete - de 1930 a 1945 - e o único que a eleretornou, como quem volta à própria casa, para aí permanecer pelo resto da vida, de 1951 a 1954. Em segundo

    lugar, Vargas não deixou o Palácio por término do mandato presidencial, mas morto, sob circunstânciasdramáticas, que produziram intensa comoção popular e marcaram o fim de uma fase extremamente conturbadada vida política nacional. Em terceiro lugar, longe de ensejar o término do mito de Vargas, cuidadosamenteconstruído durante o Estado Novo - período de 1937 a 1945, durante o qual o Congresso esteve fechado e

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    inspirada nos pressupostos do corporativismo italiano de Benito Mussolini. O líder Getúlio

    Vargas atribuía a força da doutrina fascista à “renovação criadora” que impulsionaria o

    modelo de institucionalização da tutela do Estado sobre as relações entre capital e trabalho,

    contrariando os adeptos liberais (Aliança Liberal) do recém-eleito “Mussolini dos pampas” e

    o seu triunfo político no Catete. Deste lugar, entende-se que o fascismo adotado por Getúlio

    no país adquiriu contornos muito específicos e diferenciados, mesmo seguindo ditames

    rigorosos e austeros do sistema fascista italiano. Ao conceber a adoção doutrinária pelo

    getulismo, faz-se necessário utilizar a expressão atribuída ao Estado Novo pelo reconhecido

     professor e historiador Nelson Werneck Sodré (1988) que denominou no prefácio do romance

     Memórias do Cárcere o fascismo do governo do Estado Novo como fascismo tupinambá.

    O modelo ditatorial brasileiro apresentaria nuances do sistema fascista italiano,identificando-se com as marcas inequívocas das contradições das oligarquias brasileiras e o

    regime de extrema direita implantado por Mussolini. O Movimento Integralista estabeleceu os

    laços permanentes com o fascismo europeu e suas teorias racistas, elitistas, antidemocráticas e

    economicamente reacionárias. De forma geral, o fascismo se constitui em uma estrutura

    quadripartida baseada em teorias sobre o mito da raça, o Estado de base totalitarista, o

    nacionalismo exacerbado e a concepção de elitismo cultivado pela figura de um líder nato.

    O fascismo tupinambá elaborado pelo sistema opressor do Estado Novo sob o domíniode Getúlio Vargas estruturou-se a partir do uso da força bruta, produzindo o poder

    hegemônico do super Estado capaz de submeter qualquer cidadão e esmagá-lo para glorificar

    o poder central que o criou. No campo ideológico, a função desse sistema não difere muito da

    do modelo praticado na Europa. Enquanto o fascismo europeu buscou esmagar as concepções

    do positivismo, o ideário socialista e as democracias liberais no final do século XIX, o

    fascismo tupinambá tratou de sufocar as ações anarquistas, as revoltas do operariado e os

    levantes sindicais.O sistema ditatorial fascista desenvolvido por Getúlio serviu a priori para enfraquecer

    a estrutura oligárquica de poder dos coronéis no Brasil. A Constituição de 1937, com

    inspiração polonesa, implantou o marco legal para projetar as bases jurídico-políticas do

    Estado Novo. A confluência de forças políticas, que viam o fascismo como alternativa de

    estabelecer e evitar o avanço do “ perigo vermelho”, ou seja, do comunismo no país,

    Getúlio exerceu ditatorialmente o governo do país -, o suicídio veio a revigorá-lo e conferir-lhe, pelas

    frequentes rememorações do episódio, um grau de permanência que o faz chegar até aos dias de hoje. SegundoLira Neto (2012) ao tomar posse no palácio do Catete Getúlio exprime seu desejo de conduzir o governo nos

     princípios e ditames da doutrina fascista de Benito Mussolini o que o apelidou de Mussolini dos Pampas.

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    dimensionou o sentimento de anticomunismo de Vargas. A política de imigração no Brasil

    escondia um traço característico do fascismo: a teoria da eugenia. O grande contingente de

    imigrantes europeus, em especial italianos, ampara o discurso fascista da homogeneidade

    racial e integração nacional.

    A imigração é concebida em consonância com teorias eugênicas europeias para alterar

    os traços fenotípicos brasileiros e diminuir a crescente escalada semita na República

    formadora de consciência nacionalista. O fim do Estado Novo atrelou-se diretamente a um

    desejo de renovação política e redemocratização dos setores estudantis e de uma parcela da

    elite econômica brasileira. Com o término da Segunda Guerra Mundial e dos seus efeitos, o

    varguismo tenta estabelecer uma flexibilização das suas posturas ideológicas, procurando a

    manutenção do seu poderio político-militar. A nova ordem política do Estado Novo produziuuma ampla reforma de partidos, a concessão de anistia aos condenados e exilados políticos e a

    eliminação da prática da censura no país.

    A burocracia do Estado Novo procurou firmar um pacto com setores viciados e

    retrógrados do governo para promover a manutenção do regime. O anseio por reformas e

    mudanças políticas era crescente no âmago das classes política e trabalhadora brasileiras. No

    entanto, surge um movimento que reivindicava a continuidade de Getúlio no poder

    denominado de “queremismo” ou simplesmente: “queremos Getúlio”. A habilidade política ea manipulação estatal de Vargas abriram espaço para uma inusitada tentativa da burocracia

    estadonovista em estabelecer um plano mais longo de permanência no poder. Todavia, a

    considerada ousada e abrupta decisão de Vargas de alterar o calendário eleitoral e nomear seu

    irmão Benjamin Vargas e seu amigo João Alberto desencadearam um intenso

    descontentamento entre setores da sociedade brasileira.

    Os militares produziram maior resistência e maior contundência à continuidade do

    regime político e ditatorial estadonovista. O general Góis Monteiro estabelece a liderança domovimento, determinando, no dia 29 de outubro de 1945, a retirada amena e pacífica de

    Getúlio Vargas do poder. A rendição do líder do Estado Novo é acatada sob a condição do

    governo central ser exercido pelo Judiciário até a divulgação de novos pleitos eleitorais. No

    dia 30 de outubro de 1945, o regime do Estado Novo é definitivamente sepultado. Esse fato,

    no entanto, não esgotou o carisma e a popularidade de Getúlio que retornaria ao poder no

    Palácio do Catete, aclamado popularmente em 1951, de onde só sairia morto.

    O regime do Estado Novo consagrou o mito da liderança tão difundido pela teoria

    fascista em voga no início do século XX. O Estado Novo não se perpetuaria por tanto tempo

    se não fosse pela força das ideologias totalitárias que este sistema ditatorial representou ao

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    longo da metade do século XX. Os campos de concentração na Alemanha e sua fábrica

     propagandista se tornaram oficinas de aprimoramento do horror e da barbárie. O legado

    implantado pela utilização da engenharia de controle fascistas na estrutura de poder varguista

    trouxe repercussões das mais variadas para o país no modelo de gestão pública adotado desde

    a modernização estatal administrativa, as medidas protetivas ao trabalhador brasileiro, os

     projetos expansionistas na indústria e uma acentuada vitalidade na economia brasileira.

    A herança mais atroz e devastadora do Estado Novo traduziu-se na ampla

    disseminação da violação dos direitos humanos. A tortura e os interrogatórios desenvolveram-

    se amplamente no período getulista, assumindo requintes de crueldade e sofisticação nos

    interrogatórios para o momento histórico em questão. A gestão autoritária estadonovista puniu

    duramente uma farta parcela de intelectuais, políticos, artistas e militantes opositores ou nãosimpatizantes do regime totalizador. A dura face do getulismo estabeleceu um

    intervencionismo militar que projetou no país um constante temor e instabilidade

    democrática. A estrutura intervencionista de Estado fez surgir uma tecnocracia extremamente

    descomprometida das causas sociais e do povo brasileiro.

    O Estado Novo e o seu fascismo tupinambá são produtos de um país que sofreu

     profundas transformações sociais, políticas e ideológicas durante o século XX. Os regimes

    ditatoriais, centralizadores e totalitários isolaram o homem das massas, oferecendo a este umafalsa segurança de cuidado e proteção. A legitimação desse comportamento ideológico se deu

    na intensa manipulação das massas direcionadas ao culto de líderes de caráter populista,

    autocentrados e de formação governamental paternalista. Os trabalhadores urbanos foram o

    alvo preferencial do sistema ditatorial de Vargas. O crescente aumento da urbanização revelou

    a impotência dos trabalhadores ante a estrutura nefasta do capital. Assim, os valores

    fundamentais dessa sociedade moderna passam a ser preconizados pela atividade do trabalho.

    O regime fascista almejou dilacerar completamente as necessidades e expressões políticas dasemergentes populações urbanas de todo o mundo.

    O fascismo e o Estado Novo são produtos ideológicos nascidos sob a égide da

    decomposição moral e ética do Estado liberal moderno. Nesta perspectiva, o término do

    regime estadonovista coincide com a maturação do processo industrial brasileiro,

     possibilitando o crescimento econômico do país. Em realidade, o sistema ditatorial do Estado

     Novo foi um conjunto de perspectivas que abrangeram os campos político, ideológico,

    estético, administrativo, ético e econômico. Trata-se, portanto, de uma concepção política

     baseada na estratificação do poder, no qual a formação totalitária é configurada pela

    concepção do “gênio” de seu líder.  Dessa forma, o Estado Novo e Getúlio Vargas estão

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    entrelaçados na estratégia discursivo-ideológica de instituir a forma pública e a gestão pessoal

    da memória nacional como uma técnica de controle corpo/nação. O valor iconográfico de

    Getúlio é atrelado ao valor da potencialidade de inclusão das massas no projeto de progresso

    econômico, social e político estadonovista.i

    2.2 GRACILIANO RAMOS E O PERCURSO TEMÁTICO A MEMÓRIAS DO CÁRCERE

    Graciliano Ramos de Oliveira, o mais destacado ficcionista da geração modernista da

    década de 1930, considerado por muitos críticos como um dos maiores romancistas

     brasileiros, nasce no dia 27 de outubro de 1892, em Quebrângulo no Estado de Alagoas. O

    ano de seu nascimento é marcado pela intensificação de disputas políticas e por grave criseeconômica. A República Brasileira nasceu (1889) por meio de um golpe militar que retirou do

    centro do poder a família imperial e estabeleceu um rigoroso controle da imprensa por meio

    da censura, conjuntamente à organização dos tribunais de exceção considerados como

     protetores da prestigiada segurança do Estado republicano.

    Em 1895, o pai, Sebastião Ramos, vende a loja em Quebrangulo, em Alagoas, e muda-

    se para Buíque, na vizinhança da fazenda Maniçoba em Pernambuco. Graciliano retorna a

    Alagoas em 1899, então residindo em Viçosa. Aos onze anos vai para o internato em Macéio para aprimorar os estudos e realizar os primeiros experimentos literários. No internato

    Alagoano, em 1904, Graciliano Ramos, motivado pelo literato e professor Mário Venâncio,

     publica o conto de estreia, intitulado “O pequeno pedinte”, no número 1 de O Dilúculo 

    (alvorada), periódico de publicação bimestral com a tiragem de duzentos exemplares,

    distribuídos de porta em porta e com quatro páginas impressas.

    De acordo com o biógrafo Moraes (2012), o ano de 1910 é marcado pela mudança do

    futuro escritor com a família para Palmeira dos Índios, onde o escritor passou a trabalhar nadireção da loja de tecidos do pai e a lecionar português no período noturno. O jovem

    Graciliano transfere-se, em 1914, para o Rio de Janeiro, trabalhando como revisor e escritor

    de contos e crônicas na imprensa local. Retorna em 1915 a Palmeira dos Índios para atuar no

    comércio, publicar em jornais e casar com Maria Augusta Barros que veio a falecer em 23 de

    novembro de 1920, vítima de complicações no parto, deixando Graciliano Ramos viúvo com

    quatro filhos.

    Segundo Guilhaumou e Maldidier (1986, p.45) o acontecimento discursivo realiza

    algumas das suas possibilidades temáticas quando torna possível a compreensão de feixes de

    sentidos através da existência de trajetos temáticos, ou seja, o conjunto de configurações

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    textuais que, de um acontecimento a outro, articulam os temas e operam o ciclo de uma nova

    repetição discursiva. Neste âmbito, entende-se que o itinerário biográfico e a produção

    literária discursivo-narrativa do autor aproxima-se a um trajeto temático que pode ser

    analisado ao longo de um eixo cronológico de produção de imagens textuais representativas

    sobre a metáfora do aprisionamento interior em suas obras, em especial, o acontecimento

    discursivo sobre o encarceramento do autor no período do Estado Novo. 

    Compreende-se assim, que este itinerário temático pode ser categorizado como uma

    espécie de arquivo por abrigar em si um contingente de horizontes temáticos que pode

    favorecer a inteligibilidade de um momento histórico. De início, constata-se nesse percurso

    temático o tema da descrição discursiva em forma de relatos articulados com viés

    ficcionalmente histórico parece apresentar-se em descrições configuracionais no interior dodiscurso da rede de enunciados da formação discursiva do autor. Além disso, considera-se que

    a tematização da prisão de maneira metaforizada percorre constantemente a elaboração

    simbólica narrativa do escritor.

    A produção de argumentos com traço discursivo de originalidade pode ser

    compreendido pela Análise do Discurso como um procedimento de historização do discurso

    de acordo com os trabalhos de trajetória temática de Wahnich (1997) que considera a

    materialidade sintática como uma tradução da materialidade discursiva. O modelo de produção textual do relatório apresenta-se como uma estratégia discursiva do autor que

     possibilita a visualização do seu trajeto temático como gestor público a frente da Prefeitura de

    Palmeira dos Índios, gestão, marcada por grande celeuma em alguns setores da sociedade. A

    figura discursiva deste ator social nos relatórios sobre a maneira de administrar a prefeitura é

    configurado por um administrador honesto, austero e culto. O prefeito-escritor determinou a

    limpeza de ruas e logradouros públicos, a retirada de animais sem rumo; estabeleceu medidas

    sanitárias duras, paralelamente à política de multas e impostos que desagradou uma parcelados poderosos da cidade.

     Nesse sentido, a modalidade de produção textual do relatório confere um modelo de

    leitura do arquivo revelador do espírito de intervenção de um ator social em uma época

    histórica particular. Esta disposição (espírito) é demarcada na linguagem em diversos

    momentos da sua produção literária e ao longo do corpus da obra  Memórias do Cárcere. Os

    relatórios tratam com minúcia sobre a lisura financeira das contas municipais e seu balanço

     patrimonial que eram acompanhados diária e pessoalmente por Graciliano Ramos. Os atos,

    eventos e a prestação de contas no Diário Oficial  do município da sua gestão eram transcritos

    em relatórios preciosos que se consagraram historicamente e despertaram a atenção do mundo

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    literário e político até hoje registrados nos principais jornais no país da época:  Jornal de

     Alagoas, O semeador, Correio da Pedra, Jornal do Brasil e A esquerda.

    O pesquisador Dênis Moraes (2012) remete ainda, seguindo estudo de fontes

     biográficas, à pertinência e conduta ética evidenciada na escrita dos relatórios de Graciliano,

    conforme os fragmentos:

    Favoreci a agricultura livrando-a dos bichos criados à toa; ataquei as patifarias dos pequeninos senhores feudais, exploradores da canalha; suprimi, nas questões rurais,a presença de certos intermediários, que estragavam tudo; facilitei o transporte;estimulei as relações entre o produtor e o consumidor. Estabeleci feiras em cincoaldeias: 1:156$750 foram-se em reparos nas ruas de Palmeira de Fora. Canafístulaera um chiqueiro. Encontrei lá o ano passado mais de cem porcos misturados comgente. Nunca vi tanto porco. Desapareceram. E a povoação está quase limpa. Tem

    mercado semanal, estrada de rodagem e uma escola. (MORAES, 2012, p.70)

    E ainda:

    Projetos. Tenho vários, de execução duvidosa. Poderei concorrer para o aumento da produção e, consequentemente, da arrecadação. Mas umas semanas de chuva ou deestiagem arruínam as searas, desmantelam tudo  –  e os projetos morrem. Iniciarei, sehouver recursos, trabalhos urbanos. [...] Empedrarei, se puder, algumas ruas. Tenhotambém a ideia de iniciar a construção de açudes na zona sertaneja. Mas para quesemear promessas que não sei se darão frutos? Relatarei com pormenores os planosa que me referia quando eles estiverem executados, se isto acontecer. Ficareisatisfeito se levar ao fim as obras que encetei. É uma pretensão moderada,realizável. Se não realizar, o prejuízo não será grande. O município, que esperoudois anos, espera mais um. Mete na Prefeitura um sujeito hábil e vinga-se dizendode mim cobras e lagartos. (MORAES, 2012, p.71)

    Desse modo, o trajeto de historicidade temática pode ser materializado

    discursivamente pela formulação de estratégias discursivas pertencentes a um trajeto de

    sentido firmado pelo ator social. Nesse veio, o principal legado discursivo-administrativo do

    autor como Prefeito em Palmeira dos Índios foi o da formulação e aplicação do código de

     posturas: um relatório de procedimentos constituído por um calhamaço com 82 artigos

    redigidos que disciplinavam os costumes da cidade e estabeleciam multas altas para os

    infratores.

    Como prática de leitura situada, o autor rompe com o modelo autoritário da época de

     prestações de contas e, a partir da interpretação da situação de descontentamento político da

    cidade, apresenta uma tomada de decisão para a ação pautada no exercício da transparência

     pública, fato inovador para época. Edita assim, um relatório técnico-político comunicando a

    toda sociedade Palmeirense o não endividamento público, o que possibilitou a realização deobras na cidade, em especial: três escolas na Serra da Mandioca, Anum e Canafístula; um

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     posto de saúde; a inauguração do abatedouro municipal, que extinguiu a prática do abate do

    gado em praça pública e, por conseguinte , a sujeira gerada por tal costume, a reforma da

     prefeitura e a ampliação de 40 km de estrada de Palmeira de Fora.

    A dedicação intensa de Graciliano à prefeitura causou prejuízos significativos e

    irreparáveis à loja da família, Sincera. Paralelamente a isso, a crise de 1929 e a decadência do

    cultivo do café enfraqueciam a economia, diminuíam o poder aquisitivo e reduziam a oferta

    de produtos a ser comercializada A loja Sincera mergulhou em dívidas que obrigaram

    Graciliano a se desfazer do negócio herdado do pai.

    Em março de 1930, recebeu o convite oficial do Governador do Estado para ocupar o

    cargo de diretor da Imprensa Oficial do Estado, em Maceió. Renunciou, então, à prefeitura no

    dia 30 de abril de 1930, depois de dois anos e três meses de árduo trabalho, animosidades e perseguições à frente do Executivo, transferiu-se para Maceió para ser diretor da Imprensa

    Oficial de Alagoas, onde exerceu o cargo até 1931 quando pediu demissão.

    Os famosos e ilustres relatórios de Graciliano Ramos despertaram a curiosidade de um

    dos maiores editores da época: Augusto Frederico Schimitt. O editor tomou conhecimento

    sobre a existência de um manuscrito de um romance de Graciliano. A obra vinha sendo

    confeccionada durante cinco anos de ruminação, técnica e apuro literário do escritor alagoano.

    Os primeiros originais definitivos foram entregues a Augusto Frederico Schimitt em 1930,analisados de antemão pelos críticos literários Tristão de Athaíde e Agripino Grieco, que

    apreciaram a obra do escritor alagoano como um futuro sucesso editorial.

     Nesse entendimento, a existência do segundo eixo de descrição do percurso temático

    do autor insere-se na constatação da metáfora da prisão concretizada dentro da própria vida do

    escritor, na qual a experiência literária e a experiência humana se fundem na tradução

    simbólica para libertar o homem através do discurso das limalhas da opressão humana e da

    absurda ignorância da existência. Na perspectiva de Faye (1982) o trajeto temático origina-se da articulação de vários

    trajetos temáticos que possibilitam visualizar o percurso panorâmico do itinerário de um

    sujeito histórico diante de um desenvolvimento de um tema numa dada formação discursiva a

     partir da leitura de enunciados de um arquivo. A focalização na temática da prisão como

    metáfora dirigi-se ao movimento discursivo de uma estratégia simbólica que servirá como um

    dos principais referentes históricos do autor ao longo do discurso narrativo de  Memórias do

    Cárcere.

    A presença deste segundo eixo de percurso temático evidencia-se na construção de

    imagens do romance  Infância, publicado em 1945, que apresenta uma escrita memorialista

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    confessional que aborda o tema do aprisionamento da criança sertaneja a partir da dura

    aprendizagem da normatividade familiar e dos regramentos sociais do nordeste. O

     personagem menino-narrador e adulto-menino alimentam, ao longo da trama, reminiscências

    da infância e da pré-adolescência com a leitura e as relações paternas. O narrador preso às

    memórias de um rigor com a linguagem e pelos processos autopunição materna prenuncia em

    sua obra de estréia a força coativa e enclausuradora do seio familiar: “Eu vivia numa grande

    cadeia. Não, vivia numa cadeia pequena, como papagaio amarrado na gaiola”. 

    O romance São Bernardo, publicado em 1934, apresenta uma caracterização sólida e

    amplamente complexa sobre a tematização da metáfora da prisão. O processo de construção

    minucioso e o trabalho de apuro da linguagem literária de Graciliano Ramos se perpetuam na

    construção do personagem-tema: Paulo Honório. De cunho autobiográfico relativo à infânciado escritor, em Buíque, o personagem central do romance, Paulo Honório utiliza-se da força

     brutalidade patriarcal para realizar o desejo de acumular a posse de mais e mais latifúndios.

    Homem de poucos escrúpulos, mediocrizado e egoísta preserva seus interesses por meio da

    coação violenta, de virulência contudente e tamanha que precipita o suicídio da esposa

    Madalena.

    A temática da prisão processa-se na instalação do drama de consciência de Paulo

    Honorio refletido na narrativa a partir do recurso literário do discurso indireto livre, onde o personagem condena-se por assumir uma postura materialista diante da vida confrontando-se

    com o estilo de vida humanitário de Madalena. O desejo de punição e autoflagelação

    expressos pelo pernsonagem na narrativa revelam-se como estratégias discursivas do narrador

     para conduzir o leitor ao encarceramento psicológico da personagem:

    Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coraçãomiúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um

    nariz enorme, uma boca enorme, uma boca enorme, dedos enormes. Se Madalename via assim, com certeza me achava extraordinariamente feio. Fecho os olhos,agito a cabeça para repelir a visão que me exibe essas deformidades monstruosas.(RAMOS, 1970, p. 248)

    A publicação de  Angústia, em 1936, romance que apresenta como eixo central as

    reminiscências de infância do personagem Luís da Silva e o assassinato do rival Julião

    Tavares aborda mais uma vez de forma autobiográfica a rusticidade e a aspereza das relações

    familiares e a falta de afeto no seio familiar sertanejo. O personagem Luís da Silva pertence a

    uma família patriarcal e decadente economicamente; desintegrada pela crise econômica;desidentificada pela despersonalização da figura do patriarca, o velho Trajano, ex-senhor de

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    escravos e terras. O percurso temático da metáfora da prisão insurge-se no ambiente

    desgregador ocasionado pela condição de intelectual pequeno burguês do personagem que não

    consegue libertar-se dos padrões capitalistas impostos a sociedade urbana. A deformação e o

    sentimento de rejeição social traduzem o decisivo embate das forças ideológicas capitalistas

    na vida social e política do país.

    Em 1938, com a publicação de Vidas Secas, Graciliano Ramos alcança o apogeu

     público, intelectual e literário. A abordagem da migração e do latifúndio acrescentam uma

    carga de dramaticidade à trama sobre uma família que busca incessantemente fugir da fome,

    sede e desamparo. A temática do encarceramento interior é revivida na narrativa pelo traço

    neorrealista do autor que insere a obra numa dimensão zoomórfica que contempla as

    condições deterministas da terra a uma relação familiar instintiva com os meios sociais desubsistência e a uma dependência absoluta dos aparelhos de Estado.

    Segundo Miranda (2010), o romance Vidas Secas representa a etapa mais amadurecida

    de uma profunda leitura da realidade brasileira através da utilização da metáfora da prisão

    como instrumento revelador da linguagem em confronto com o poder cerceador da expressão

    e da extrema liberdade irônica da linguagem e dos respectivos recursos linguísticos, com o

    romance  Infância  e experimentados pelo autor a partir da produção dos seus romances.

    Assim, a concepção sobre “a metáfora da prisão” ganha corpo quando se compreende todo oesforço e engajamento político e partidário do escritor com o Partido Comunista, em 1945, e o

    ativismo e militância que se prolongaram até o falecimento em 20 de março de 1953.

    Para Miranda (2010), o romance Vidas Secas  é uma espécie de mediação ou

     passagem dos romances em primeira pessoa para os textos autobiográficos. A inusitada

    mudança de foco narrativo do autor revela a decisão de Graciliano Ramos de estabelecer uma

    maior densidade e coerência com a matéria narrada moldando dessa maneira o mundo interior

    e o mundo exterior das suas primorosas personagens. Este, por Rubem Braga (1978)apelidado “romance desmontável”, é produzido de maio a outubro de 1937, ao longo de dez

    meses e dez dias de pleno cárcere político.

    O ano de 1953 traria o falecimento de Graciliano Ramos e o encerramento abrupto da

    sua maior obra autobiográfica, memorialista e ficcional:  Memórias do Cárcere. O romance

    assume, então, como questão fundamental a ser observada, o dilema das relações do poder

    opressor político-ideológico do Estado Novo por meio da prisão em relação à sociedade

     brasileira e o referencial insigne de conduta ética e da liberdade de expressão de toda uma

    geração de intelectuais brasileiros sintetizados em seu melhor representante: o escritor

    Graciliano Ramos.

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    A continuidade da metáfora de encarceramento de Graciliano Ramos desloca-se para a

    narrativa de Memórias do Cárcere rumo ao um horizonte ideológico conturbado, agressivo e

    com elementos ideologicamente marcados pelos mecanismos de estratégia de vitimização da

    elite intelectual brasileira, apresentando-se como um recado ofensivo aos opositores do

    regime ditatorial Getulista.

    O historiador e crítico Nelson Werneck Sodré (1998) remonta o evento de forma

     precisa e testemunhal:

    Graciliano Ramos, secretário da Educação em Alagoas, já conhecido comoromancista, fora arrancado às funções, preso, metido em porão de navio, recolhido à

     penitenciária, em promiscuidade com criminosos comuns da pior espécie, com acabeça raspada e vestindo o uniforme dos presidiários: jamais foi ouvido, jamais

     processado, jamais condenado e, apesar de tudo, penou longos meses, de cárcere emcárcere, de presídio em presídio. A injustiça não tinha importância, o erro não tinhaimportância, o arbítrio não tinha importância; a vítima era um comunista... A torturacampeava infrene, levando às pessoas à loucura, matando, marcando, mutilando,mas não tinha importância: as vítimas eram comunistas... E a estes se acusava decruéis, desumanos, violentos e criminosos. Foram os homens de letras queorganizaram o esforço para conseguir a liberdade de Graciliano Ramos; libertado,abria-se para ele o problema do trabalho. Enfraquecido pelos meses de sofrimento ede má alimentação, com mulher e filhos para sustentar, desempregado, o romancistafoi morar numa pensão no Catete: tinha que recomeçar a vida. Os amigosconseguiram, depois, sua nomeação para fiscal de ensino; a mais alta função queocupou, em toda a sua existência, o maior romancista brasileiro depois de Machadode Assis. (SODRÉ, 1998, p.108-9)

    O romance  Memórias do Cárcere foi publicado em 1957, após 20 anos da libertação

    de Graciliano Ramos, em 13 de janeiro de 1937. Surpreendentemente, pela primeira vez, a

     personalidade mais consagrada do período de repressão varguista alcança o topo das tiragens

    com mais de dez mil exemplares vendidos, em cerca de um mês e meio. A crítica da época

    recebe o livro de forma unânime. A quantidade de artigos e críticas por parte de inúmeros

    intelectuais famosos credenciaram a obra como o relato político-literário mais importante do

     país no século XX. A experiência da prisão iniciada em Macéio, no dia 03 de março de 1936,

    com o embarque dentro do porão do navio Manaus, e logo depois, à Casa de Detenção e ao

    Complexo Penitenciário de Ilha Grande transformam o romance em depoimento narrativo que

    denuncia as práticas opressoras vigentes no Estado Novo a partir de um testemunho vivencial

    articulado entre o ficcionalismo histórico e a narrativa autobiográfica.

    A composição e publicação das  Memórias do Cárcere de Graciliano origina-se

    efetivamente a partir de janeiro de 1946, todavia, o autor realiza a primeira tentativa de

    redação do livro em setembro de 1937, quando seleciona 190 nomes para a composição dos personagens da narrativa (ao concluir o romance são 237 personagens distribuídos em 681

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     páginas) e estabelece os principais locais de encarceramento dos presos na trama: Rio Grande

    do Norte, Alagoas, Colônia Correcional, Pavilhão dos Primários e Sala da Capela.

    Finalmente, em julho de 1947, o editor José Olympio estabelece o pagamento adiantado de

    mil cruzeiros mensais, em julho do mesmo ano, e pelo prazo de três anos consecutivos, na

    expectativa da entrega de três capítulos por mês confeccionados por Graciliano Ramos.

     Memórias do Cárcere  consome seis anos árduos de intenso trabalho por parte do nobre

    escritor. O rol de personagens e as duras lembranças na prisão transformam o trabalho de

    composição do autor em uma penosa labuta de rememoração das passagens marcantes do

    encarceramento político.

    Segundo Moraes (2012), o romance seguiu o cronograma definido e foi dividido em

    quatro volumes: o primeiro iniciado em 25 de janeiro de 1946 e finalizado em 28 de maio de1947; o segundo volume inicia-se em 29 de maio de 1947, findando a 12 de setembro de

    1948; o terceiro volume é composto entre 15 de setembro de 1948 e 6 de abril de 1950; e o

    quarto e último volume da obra é iniciado em 6 de abril de 1950 e paralisado definitivamente

    em 1º de setembro de 1951 sem a conclusão definitiva.

    O biógrafo Ricardo Ramos (2011) ilustra com precisa propriedade a recepção do livro

    no meio intelectual e o contexto sociopolítico presente no momento da publicação da obra:

    Um livro relativamente caro, pois lançado em quatro volumes, Memórias do Cárceredesde logo virou Best-seller. Igualmente repercutiu na crítica avassaladora  –   eramartigos e artigos sucessivos, assinados por nomes de peso, enaltecedores ao ponto daconsagração. Só que os jornais comunistas se calavam, ignorando-o, enquanto osdemais os ecoavam. Entre estes, a Tribuna da Imprensa, onde Carlos Lacerdainsistente pontificava, escrevendo páginas inteiras de elogios, entusiasta no seuapreço: assombroso documento de uma época, depoimento estarrecedor sobre asmisérias da ditadura de Getúlio. [...] A leitura continuada de Memórias do Cárcerenos revela, nitidamente, a extensão de sua crítica. Ao militarismo que imperava no

     partido, herança do tenentismo, dominando altos escalões e, sem excluir ninguém,desde o seu principal dirigente, afastava qualquer possibilidade de democracia ou

    simples discussão interna. [...] Entre as positivas está claro que as de comunistas.Mas também as de liberais e trotskistas. Uns aceitos como auxiliares (na época,inocentes úteis); outros, afastados como pragas (a canalha de então, a escumalha).Imperdoável que Graciliano houvesse encontrado trotskistas honestos e inteligentes.E que a sua linguagem, peculiar, desalinhada, iconoclasta, falasse de temas

     proibidos. No caso, a forma era o conteúdo. Em conversas que se cosiam, fui puxando os fios da malha, vestindo o livro. Memórias do Cárcere, para quem ocompreendesse, tinha o sabor das ilusões perdidas. Como estranhar a posição do

     partido, assim desmitificado? Nós, do alto de nossa juvenil desesperança,contemplávamos aquele tabuleiro de xadrez. (RAMOS, 2011, p.212-214)

    Em Memórias do Cárcere a ficção histórica e a autobiografia narrativa se reúnem para

    confirmar o testemunho inequívoco de um intelectual memorialista submetido à forte

    opressão vivida na barbárie da prisão. A ficção histórica presente no romance é configurada

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     por um extenso diário íntimo construído a partir da experiência do cárcere romanceada pelo

    autor. A ficção histórica desempenha uma função de médium entre o ato de interpretação de si

    diante do acontecimento histórico  –   o regime ditatorial do Estado Novo e sua própria

    identidade face ao drama pessoal experienciado: o encarceramento político no Presídio da Ilha

    Grande. A ficcionalidade histórica efetiva-se na operação transgressora de transformar o

    evento da prisão política do escritor em um episódio literário com atores sociais do momento

    histórico getulista presentes neste acontecimento histórico transformados em personagens da

    narrativa do romance. Entretanto, a noção de narrativa histórica abrange um discurso que

     penetra profundamente no âmago do fenômeno da consciência-experiência, horizonte este que

    é delimitado por um sujeito marcado pela verossimilhança e dependente do discurso histórico.

    A ficção histórico-narrativa de  Memórias do Cárcere  propicia o entendimento sobrearticulação entre as narrativas históricas do período getulista e da produção ficcional deste

     período, ou seja, a forma de lidar com os processos de ficcionalização da história e da

    historização da ficção.

    A concepção de ficção histórica compreende conceitos que interligam diversos

    campos de aplicação sobre as formas autobiográficas de escrita como os registros ficcionais e

    a narrativa de cunho histórico. Os horizontes da história e ficção estabelecem uma simbiose

    entre as narrativas e a experiência pessoal do sujeito. Hayden White (2001), ao estudar asnarrativas históricas como artefatos da construção literária, diz:

    A narrativa, ou a dispersão sintagmática dos acontecimentos através de uma sérietemporal apresentada como um discurso em prosa, de modo a mostrar sua

     progressiva elaboração como uma forma compreensível, representaria a “reviravoltainterior” que o discurso realiza quando tenta mostrar ao leitor a verdadeira forma dascoisas que subjazem a uma informidade meramente aparente. O estilo narrativo, nahistória como no romance, seria, pois construído como a modalidade do movimentoque parte da representação de algum estado de coisas original para chegar a algumestado subsequente. O sentido básico de uma narrativa consistiria, então, na

    desestruturação de um conjunto de eventos (reais ou imaginários) originalmentecodificados num modo tropológico, e na reestruturação progressiva do conjunto numoutro modo tropológico. Vista dessa maneira, a narrativa seria um processo dedecodificação e recodificação em que uma percepção original é esclarecida porachar-se vazada num modo figurativo diverso daquele em que veio a ser codificada

     por convenção, autoridade ou costume. E a força explicativa da narração dependeria,então, do contraste entre a codificação original e posterior. (WHITE, 2001, p. 113)

    A narrativa autobiográfica de  Memórias do Cárcere  representa, então, a

    desconfiguração discursiva da imagem paternalista atribuída ao Estado Novo  na sociedade

     brasileira que vivia sob a égide de um regime militar e opressor das massas do século XIX. Olugar ideológico destinado ao intelectual Graciliano Ramos invade os limites do cárcere

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    ideológico estadonovista para se constituir em um símbolo insigne de toda uma geração de

    intelectuais brasileiros vitimados pelo poder ditatorial do regime getulista. O cenário de

    complexidade ideológico-existencial e sociocultural determina a formação da autobiografia

    narrativa substanciada em Memórias do Cárcere no seu relato íntimo.

    É