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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Enio Passiani Na trilha do Jeca: Monteiro Lobato e a formação do campo literário no Brasil Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Sociologia para a obtenção do título de mestre, sob a orientação da Profa. Dra. Maria Arminda do Nascimento Arruda.

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULOFaculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

Enio PassianiNa trilha do Jeca: Monteiro Lobato e a formação do campo literário no Brasil

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Sociologia para a obtenção do título de mestre, sob a orientação da Profa. Dra. Maria Arminda do Nascimento Arruda.

São Paulo2001

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Na trilha do Jeca: Monteiro Lobato e a formação do campo literário no Brasil

Sumário

Agradecimentos_________________________________________________________Resumo_________________________________________________________________Abstract________________________________________________________________Nota de advertência___________________________________________________Introdução_____________________________________________________________

I. Sociologia e literatura: os caminhos de uma difícil porém rica relação___________________________________________________________II. Por que estudar Lobato?_________________________________________ III.Atividade lúdica x atividade científica: o desafio da

escrita____________ 30

Capítulo 1.(As peças do quebra-cabeças)________________________________________

I. As aventuras de Monteiro Lobato contra os barões modernistas__________________________________________________________II. O episódio pré-modernista_______________________________________III. A “vítima”: quem era ela afinal de contas?____________________IV. Os duelistas______________________________________________________V. Crítica sociológica à crítica literária_____________________________

Capítulo 2.(Na trilha do Jeca)_____________________________________________________Capítulo 3.(O artista e seu projeto criador)______________________________________

I. Um solo fértil de idéias____________________________________________II. O projeto lobatiano: a pena e o escritor_________________________

2.1 Urupês__________________________________________________________2.2 Cidades mortas_________________________________________________2.3 Negrinha________________________________________________________

III. O projeto lobatiano: a revolução editorial______________________IV. Livros e leitores: esboço de uma sociologia da leitura________

Capítulo 4.(Crise à vista)__________________________________________________________Considerações finais.(A morte anunciada)__________________________________________________

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I. O último fio da trama_______________________________________________204II. Notas para uma sociologia da literatura_________________________

Bibliografia_____________________________________________________________

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Agradecimentos

Agradeço à Capes pela bolsa concedida por dois anos e meio e que foi primordial para os primeiros passos desta pesquisa.

Durante meu (longo) mestrado tive o prazer de conviver com dois diferentes coordenadores do Programa de Pós-graduação, o Prof. Dr. Reginaldo Prandi e o Prof. Dr. Brasílio Sallum Jr., ambos, cada um à sua maneira, incentivadores da vida acadêmica.

Devo muito às sugestões e críticas realizadas no exame de qualificação pelo Prof. Dr. Paulo Menezes e Prof. Dr. Leopoldo Waizbort, dois grandes interlocutores.

Ao Prof. Dr. Sedi Hirano sou bastante grato pelas freqüentes palavras de incentivo durante as conversas pelos corredores da faculdade ou em sua sala.

À minha orientadora, Profa. Dra. Maria Arminda do Nascimento Arruda, ofereço um duplo agradecimento: primeiro, à professora doutora, cuja orientação rigorosa, mas também generosa, foi indispensável para a concretização de um projeto que parecia interminável; segundo, à amiga Maria Arminda, que, pacientemente, me ouviu e aconselhou diversas vezes.

Os funcionários das secretarias da pós e da graduação “quebraram” inúmeros galhos e, apesar das dores de cabeça que lhes causava, sempre me receberam com imenso carinho. São eles: Isabel, Sônia, Celso, Samara, Marlene e Miriam.

Os amigos são muitos e sua participação se dá de maneira diferenciada: o estímulo, a gargalhada, a brincadeira, a troca de idéias, as sugestões, o debate, a espera, cada um deles me presenteou com um pouco de tudo isso: Tina, Ricardo, Edmar, Drics-Lopes, Drics-mãe, Jackie Blondie, Renato, Isabella, Flávio, Pedro Paulo e Tatiana (Tati). À Tati devo algumas palavras a mais: foi minha primeira interlocutora, alguém sempre disposta a discutir meu texto e minhas idéias - por mais

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absurdas que pudessem ser - e que ainda, no momento final, apenas alguns dias antes da entrega da minha dissertação, socorreu-me quando minha ignorância em informática criava alguns apuros.

Meus pais, apesar de uma origem humilde, desde muito cedo me ensinaram o valor e o prazer da leitura, seja nas páginas de um livro, seja nas páginas de um gibi.

Por fim, alguém muito especial: Miriam, mon amour - com quem aprendi a encarar as vicissitudes da vida sempre com um sorriso desenhado no rosto e a oferecer, mesmo em momentos difíceis, um pouco de generosidade àqueles que estão ao nosso redor.

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Resumo

Monteiro Lobato, no período compreendido entre a segunda metade da década de 10 e meados dos anos 20 do século passado, foi uma personalidade destacada no processo de formação do campo literário nacional. É possível perceber sua atuação a partir da análise de seu projeto literário, constituído por duas atividades distintas mas complementares: o ofício de escritor e o trabalho editorial.

As duas faces do projeto lobatiano visavam um único objetivo: ampliar o acesso do público leitor à literatura, seja por meio da renovação da escrita literária, seja por intermédio da transformação das bases de produção e distribuição do livro.

Inserido nas principais instâncias do campo literário brasileiro de sua época, Lobato se envolveu em várias disputas e conflitos, fez inimigos e aliados, conheceu a consagração e o naufrágio, e justamente porque era - e ainda é - uma referência obrigatória de nosso meio intelectual.

Palavras-chave: Monteiro Lobato - campo literário - projeto lobatiano - público leitor - livro.

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Abstract

Monteiro Lobato, between second half of 10’s and middle of 20’s from past century, was an important personality in the process of national literary field formation. It is possible to understand his performance analysing his literary project, made by two different but complementary activities: writer profession and editorial work.

Lobato’s double face literary project sought only one objective: to amplify reading public access to literature through renovation of literary writing and by means of change book basis production and distribution .

When he was inserted into brazilian main literary field instances of his age, Lobato took part in many disputes and conflicts, had enemies and allies, knew the consecration and the failure, because he was - and still is - an obligatory reference into our cultural enviroment.

Key-words: Monteiro Lobato - literary field - Lobato’s literary project - reading public - book.

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Ao meu pai, que em apenas doze anos de convivência ensinou-me lições para toda uma vida.E ao meu irmão, meu segundo pai, minha segunda perda.

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Nota de advertência

As citações feitas neste trabalho, tomando como base textos escritos antes da última Reforma Ortográfica oficial de nosso idioma, obedecem as normas-padrão atualmente vigentes na Língua Portuguesa. Destarte, algumas “correções” foram necessárias sem comprometer, obviamente, o sentido original conferido pelos autores mencionados.

Como não poderia deixar de ser, neologismos e regionalismos, mesmo quando não “dicionarizados”, foram preservados.

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Introdução

I. Sociologia e literatura: os caminhos de uma difícil porém rica relação.

O subtítulo para esta primeira parte da introdução bem que poderia ser: Por que estudar a literatura?, ou ainda: É possível uma leitura sociológica da literatura?; e ambos denotariam um só problema: a dificuldade em lidar, sociologicamente, com um objeto que parece tão fugaz, tão inalcançável e complexo (e isso não vale apenas para a literatura, mas para a arte em geral).

E, para tornar a situação mais desesperadora, essa dificuldade em lidar, em termos sociológicos, com a literatura, desdobra-se em um punhado de obstáculos.

O primeiro, e talvez o mais evidente, é o fato de a literatura não ocupar o coração da reflexão sociológica, i.e., não constituir um dos temas clássicos da sociologia 1, como a religião, o trabalho, os estudos de comunidade etc. Nesse sentido, vejamos a afirmação de Chamboredon: La sociologie de l’art et de la littérature occupe une place

particulière et une position fort peu cristelisée en sociologie. L’extrême marginalité de ses objets au regard d’une hiérachie des problèmes sociologiques (...) n’exclut pas les ambitions de totalisation de l’evolution sociale. (CHAMBOREDON, 1986: 505).

Ou, ainda, a de Pierre Francastel:1 A despeito de tal constatação, pensadores da envergadura de Goldmann, Lukács, Gramsci - estes dois não são propriamente sociólogos, mas suas teorizações acerca da literatura enriqueceram bastante as análises sociológicas sobre tal assunto - e Bourdieu, debruçaram-se sobre o tema e nos ofereceram análises importantes e primorosas acerca da literatura. Ver, por exemplo: LUKÁCS, Georg (1971). Teoria do romance. São Paulo: Duas Cidades/Ed. 34; GOLDMANN, Lucien (1976). A sociologia do romance. Rio de Janeiro: Paz e Terra; GRAMSCI, Antonio (1968). Literatura e vida nacional. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; BOURDIEU, Pierre (1996). As regras da arte. São Paulo: Cia. das Letras.

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“Parece que até agora tem sido dada à Arte uma importância insuficiente nas pesquisas e investigações da Sociologia. Culpa, aliás, tanto dos historiadores da Arte e dos estetas quanto dos sociólogos, pouco interessados igualmente em confrontar seus pontos de vista.” (FRANCASTEL, 1993: 21).

Tal posição “pouco cristalizada” que a literatura ocupa na hierarquia dos problemas sociológicos faz da sociologia da literatura, para usar uma expressão de Louis Pinto ao comentar a obra de Bourdieu, uma “atividade periférica” (PINTO, 2000: 65). Se a marginalidade da disciplina diante da consagração de alguns ramos da sociologia deixa dúvidas ao leitor ou a outros cientistas sociais a respeito da validade dos estudos sociológicos da arte e da literatura, imaginem a posição nada cômoda do próprio pesquisador !

Porém, os obstáculos não param por aí. As dúvidas acerca da validade dos estudos sociológicos sobre a literatura, afirmada logo acima, deitam raízes muito mais profundas: elas dizem respeito à epistemologia das ciências sociais. Uma vez que sociologia e literatura guardam algumas afinidades entre si, o estudo de uma (no caso, a literatura) leva ao questionamento da outra (as ciências sociais, e, mais especificamente, a sociologia, que é a que mais interessa neste trabalho). Estudar a literatura, portanto, implica repensar a própria sociologia, o que pode ameaçar alguns cânones sociológicos, como o seu estatuto de ciência e sua especificidade enquanto disciplina científica e, por conseguinte, sua autonomia (duramente conquistada) diante das manifestações artísticas 2.

As controvérsias em torno do par arte/ciência, segundo Octávio Ianni, já existem há algum tempo e são continuamente renovadas:

Alguns afirmam que ambas distinguem-se como duas linguagens, formas de pensamento e realizações

2 Para uma discussão mais aprofundada sobre as relações entre sociologia e literatura e o confronto entre esses dois ramos do conhecimento em busca de uma autonomização, ver LEPENIES, Wolf (1996). As três culturas. São Paulo: Edusp.

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radicalmente diversas. Outros alegam que há ressonâncias entre elas, quando se consideram determinadas obras. E há os que reconhecem que sempre existe algo de ‘artístico’ na ciência, assim como algo de ‘científico’ na arte. (IANNI, 1998: 9).

Sem dúvida, são duas formas de narrativa, trabalham essencialmente com a linguagem, baseiam-se no conhecimento e na imaginação e revelam algum compromisso com a “realidade”; ambas, tanto a literatura quanto a sociologia, lidam, muitas vezes, com temas comuns - podemos afirmar que há uma ressonância mútua entre sociologia e literatura, alimentada, certamente, por um dado contexto sócio-histórico, que está na base de um determinado tipo de literatura ou de uma forma de se fazer ciência. Tais “temas comuns” referem-se ao interesse que sociólogos e literatos nutrem pelo mundo social.

(...) no está de más hacer algunas reflexiones sobre las indudables afinidades que existen entre la literatura, y muy particularmente la novela, y la sociologia, las cuales pueden ser entendidas como ‘dos registros diferentes de análisis de la realidade social que pueden llegar a influirse mutuamente’(...). Incluso aunque no existiera una influencia directa, el literato - al menos el de orientación realista - y el sociólogo están unidos por intereses y propósitos coincidentes, por mucho que les separe la distinta naturaleza de sus respectivas tareas. En efecto, ambos comparten uma misma curiosidad por el mundo social que el primero recrea en sus obras y el segundo estudia en sus investigaciones, y también algunas preocupaciones comunes acerca de la realidad social que uno refleja en ficciones y el otro en sus trabajos científicos. (SAHUQUILLO, 1998: 224).Nesse sentido, sociólogo e criador literário atuam como

intérpretes da “realidade” social e dos acontecimentos históricos; e ao

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interpretar o mundo social traduzem-no de maneira que muitos outros - além deles próprios - passem a compreender tal mundo. Sociólogo e literato, por meios de narrativas diversas, lançam luz sobre o misterioso e o ininteligível; elucidam os enigmas que constituem o tecido social, aquilo que se apresenta, num primeiro momento, sem explicação, e, destarte, conferem sentido àquilo que parece não ter sentido ou, quando muito, aparece como naturalmente constituído.

Sociologia e literatura revelam-se, pois, formas de auto-consciência de uma sociedade cada vez mais complexa e, por que não, sedenta de idéias e conhecimento que permitam compreender-se a si mesma. Nesse sentido, o trabalho artístico não constitui simples reflexo da sociedade, tampouco se reduz à mera reprodução do social. A obra é capaz de introduzir uma nova realidade social no circuito do pensamento. E isso porque a obra de arte, segundo Jacques Leenhardt, é uma “ação metassocial” (LEENHARDT, 1998: 107): produto do social, a arte reflete (no sentido da indagação) e age sobre o próprio corpo social que a engendrou. Destarte, a obra de arte não é determinada in totum pelo social, mas exerce um importante papel na transformação desse social, pois o re-simboliza, confere-lhe novos sentidos. A arte, nos termos aqui propostos, é social porque é produto de condições sócio-históricas específicas; e metassocial porque permite à sociedade refletir sobre si própria, como uma espécie de consciência - a arte é a consciência da sociedade.

Porém, a importância e a dimensão conferidas à arte (e às suas manifestações específicas, como a literatura) não lhe concedem absoluta autonomia diante do social - se, por um lado, a arte não é redutível ao contexto social, por outro, ela não goza de plena independência em relação a tal contexto.

Bourdieu, ao analisar A educação sentimental, de Gustave Flaubert, assinala que ao mesmo tempo em que a obra literária desvela, oculta, pois se apresenta na sua forma específica, que é a do texto literário, e que, portanto, não é uma reprodução ou descrição fidedigna do real - ou sequer uma investigação aprofundada do mundo

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social -, mas produz um “efeito de crença”, “um efeito de real (BOURDIEU, 1996: 48). Cabe à análise sociológica, assinala Bourdieu, “quebrar o encanto” do texto literário e resgatar a realidade socialmente construída - as observações do sociólogo francês, certamente, não se limitam à análise da literatura, mas se estendem também a outras formas de manifestação artística, respeitando-se as peculiaridades de cada objeto. A pesquisa sociológica da literatura proposta por Pierre Bourdieu busca a compreensão do mundo social no qual tal literatura foi produzida: “(...) a análise científica das condições sociais da produção e da recepção da obra de arte, longe de a reduzir ou de a destruir, intensifica a experiência literária” (BOURDIEU, 1996: 14), pois a sociologia não leva à ruína as idéias de liberdade ou criatividade artísticas, nem solapa a especificidade da obra literária, mas, ao contrário, traz tais idéias para o mundo objetivo (o mundo social) e lhes confere um sentido e um conteúdo que isoladamente - tomando a obra de arte em si mesma a partir de supostas propriedades intrínsecas - não se realizaria, uma vez que, para usar a terminologia do próprio Bourdieu, o projeto criador do artista somente se objetiva a partir do reconhecimento e consagração que ocorrem no interior de todo um sistema de relações sociais constituído por críticos, público leitor, editores e outros artistas (BOURDIEU, 1968: 120)3. Objetivar a experiência artística significa, portanto, retirar seu caráter puramente abstrato, fruto da noção de transcendência da obra de arte, da filosofia (se é que podemos chamá-la assim) da “arte pela arte”.

O texto literário, pois, oferece ao cientista social certas vantagens e possibilidades, em termos analíticos, que a própria sociologia não possui; no entanto, os riscos e armadilhas que um objeto dessa natureza apresenta constituem, a um só tempo, um obstáculo perigoso e um desafio tentador. De acordo com Bourdieu, por meio do texto literário Flaubert torna visível todas as possibilidades de ocupação dos espaços sociais no interior do campo literário 4, os conflitos e relações 3 Nos próximos capítulos tais noções serão melhor elaboradas, já que Pierre Bourdieu, em termos teóricos e metodológicos, é a principal referência deste trabalho.4 Esse conceito será desenvolvido ao longo da escrita do próprio trabalho.

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que essas posições engendram; o que seria impossível objetivamente, i.e., no mundo social concreto não é possível observar todas as possibilidades, mas apenas o que já está socialmente dado. Concluímos que “olhar literário” sobre o mundo social leva inúmeras vantagens em relação ao “olhar sociológico”. Contudo, o “olhar literário” não fornece a análise sociológica, daí a importância de uma sociologia da literatura:

“A escrita abole as determinações, as sujeições e os limites que são constitutivos da existência social: existir socialmente é ocupar uma posição determinada na estrutura social e trazer-lhes as marcas, sob a forma, especialmente, de automatismos verbais ou de mecanismos mentais, é também depender, ter e ser tido, em suma, pertencer a grupos e estar encerrado em redes de relações que têm a objetividade, a opacidade e a permanência da coisa e que se lembram sob a forma de obrigações, de dívidas, de deveres, em suma, de controles e de sujeições.”(BOURDIEU, 1996: 42-43).

Ou, em outras palavras, A educação sentimental reconstitui, segundo Bourdieu, de maneira espantosamente precisa a estrutura do mundo social no qual foi produzida (inclusive as estruturas mentais modeladas pelas estruturas sociais) -, daí a literatura (e a arte de maneira geral) se apresentar como uma espécie de consciência da sociedade, no sentido de constituir uma chave de conhecimento do mundo social.

Mas, por outro lado, o conhecimento fornecido pela literatura ainda é parcial, pois, como já disse acima, a forma específica do texto literário, a um só tempo, revela e oculta: daí a necessidade de uma ciência da obra de arte, capaz de retirar o véu que a obra recoloca sobre o mundo social ao reconstituí-lo de uma maneira bastante peculiar, uma vez que esse mundo social está diluído pela forma artística. Por isso, a sociologia representa essa segunda consciência, esse segundo caminho em direção ao conhecimento.

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Sociologia e literatura representam, num certo sentido, manifestações de consciência social, embora se apresentem de maneira bastante diferenciada pois possuem características igualmente divergentes. Dentre tais características há uma que aproxima e afasta sociologia e literatura, e configura um tema bastante complexo e extremamente difícil de ser trabalhado: a narrativa (questão rapidamente citada no início desta introdução).

Gostaria de esclarecer que não é tema desta dissertação a discussão das possíveis afinidades e diferenças entre as narrativas sociológica e literária - questão esta que demandaria muito mais espaço e fôlego intelectual a fim de ser devidamente tratada -, contudo creio ser necessário e honesto pontuar alguns dos problemas que marcam a relação (conturbada e polêmica) entre ambas narrativas, já que meu próprio trabalho, ao longo de seu desenvolvimento, lida com tal interface.

No que diz respeito às distinções entre uma e outra narrativa, Ianni afirma que a literária compreende imagens e figuras de linguagem, ritmo e melodia, metonímias e metáforas, parábolas e alegorias, e predomina na narrativa literária a situação, o incidente, o particular, o prosaico; já a sociológica, a despeito da utilização freqüente de metáforas e outras figuras de linguagem, é marcada por descrições e interpretações que envolvem conceitos, categorias, leis e/ou outra noções “comprometidas com a fundamentação empírica e a consistência lógica” (IANNI, 1998: 10-11). Na narrativa sociológica, além disso, predominam os nexos causais que indicam tendências, não só o que é particular, mas também o que é geral, predominante. A despeito dessas possíveis diferenças, a narrativa sociológica e a narrativa literária são frutos da imaginação, da criatividade, que em cada um dos casos é orientada por diferentes diretrizes e protocolos, específicos de cada um dos terrenos de produção (o literário e o sociológico).

Aquilo que torna as narrativas sociológica e literária vizinhas ou distantes não elimina uma questão crucial: tanto os cientistas sociais

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(sejam antropólogos, sociólogos, historiadores etc, e, além dos cientistas sociais, os filósofos) quanto os literatos narram. Estamos, assim, enredados numa teia cujos fios são difíceis de desatar.

Sem dúvida, as narrativas aqui tratadas são distintas, mas tal distinção não reside simplesmente no uso (ou não) de determinados recursos estilísticos ou no tratamento formal dado ao texto. LaCapra, num artigo dedicado à discussão de como os historiadores lidam com a relação entre o uso da linguagem e a escrita da história, faz uma observação que, a meu ver, não se limita ao ofício do historiador mas se estende a todos os cientistas sociais, inclusive nós, sociólogos: o que valida a interpretação de um texto (literário ou não) são os critérios que sustentam tal interpretação (LaCAPRA, 1982: 59-60). No caso das ciências sociais, essa interpretação - que não é o mesmo que julgamento - está ancorada em critérios considerados científicos, como o rigor do método, a pertinência dos conceitos, a análise acurada do “fato social”, a discussão teoricamente embasada 5. Peço licença e paciência ao leitor para transcrever uma longa passagem do artigo de LaCapra, pois ele, muito melhor do que eu, esclarece a substância do debate no interior dos estudos históricos (volto a frisar, porém, que tais observações, a meu ver, podem ser estendidas para outros domínios das chamadas ciências humanas):

“Analytic distictions such as those drawn between history and literature, fact and fiction, concept and metaphor, the serious and the ironic, and so forth, do not define realms of discourse that unproblematically characterize or govern extended uses of language. Instead, what should be taken

5 Certos aspectos dessa discussão são tratados pelos chamados cientistas sociais pós-modernos, notadamente sociólogos e antropólogos. Quero sublinhar, e com muita ênfase, que este trabalho não compartilha das teses e abordagens pós-modernas - que, de maneira geral, relativizam ao extremo a posição do cientista, chegando até mesmo a afirmar o fracasso da razão ocidental, herdeira do iluminismo, como um meio legítimo para se analisar o mundo social -, acusando-a até mesmo de tirânica -, e, logicamente, não pode ser encarado sob tal perspectiva. Aliás, o uso de Pierre Bourdieu, um defensor incontestável da sociologia como ciência social legítima e crítico feroz da voga pós-moderna, como a principal referência teórica (mas não a única) já atesta o quanto me afasto do pós-modernismo no âmbito das ciências sociais.

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as a problem for inquiry is the nature of the relationships among various analytically defined distinctions in the actual functioning of language, including the use of language by theorists attempting to define and defend analytic distinctions or oppositions in their conceptual purity. To say this is neither to advocate the obliteration of all distinctions nor to offer a purely homogeneous understanding of a mysterious entity called the ‘text’. It is rather to direct attention to problems that are obscured when one relies uncritically on the concept of ‘realms of discourse’. For example, it is commom to distinguish history from literature on the grounds that history is concerned with the realm of fact while literature moves in the realm of fiction. It is true that the historian may not invent his facts or references while the ‘literary’ writer may, and in this respect the latter has a greater margin of freedom in exploring relationships. But, on the other levels, historians make use of heuristic fictions and models to orient their research into facts, and the question I have tried to raise is whether historians are restricted to the reporting and analysis of facts in their exchange with the past. Conversely, literature borrows from a factual repertoire in multiple ways, and the transplantation of the documentary has a carry-over effect that invalidates attempts to see literature in terms of a pure suspension of reference to ‘reality’ or transcendence of the empirical into the purely imaginary.” (LaCAPRA, 1982: 75).Curiosamente, os historiadores, bem mais que os sociólogos, se

mostram interessados e preocupados com a discussão acerca dos limites que separam a narrativa científica (no caso das ciências sociais) e a literária 6; por conseguinte, o número de autores envolvidos nesse 6 Para fortalecer o argumento posso citar como exemplo o último congresso internacional de sociologia, no qual encontramos apenas três trabalhos que se debruçam sobre a questão da narrativa sociológica São eles: MESNARD, Philippe. Les tendances narratives de la sociologie et de l’histoire en France aujourd’hui ; ROBIN-MARIE, Régine. La littérature comme object sociologique; e THIESSE, Anne-

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debate e o número de trabalhos publicados a respeito é mais extenso no campo da história do que no sociológico.

Hayden White, outro historiador, se debruça sobre as mesmas questões de seu colega, LaCapra, e afirma que um dos mais recentes e calorosos debates no campo da história diz respeito justamente ao esforço que muitos intelectuais vêm fazendo a fim de estabelecer a distinção entre “explicação” e “interpretação”- na verdade, o que está em jogo é a tentativa de marcar com nitidez quais as (supostas) características literárias e os aspectos científicos da narrativa, e inserir definitivamente o discurso histórico no campo da ciência e legitimar tal posição. Contudo, afirma Hayden White, essa discussão mostra-se infrutífera, uma vez que os aspectos explicativos e interpretativos do discurso tendem a caminhar juntos e até a se confundir, jogando por terra um dos “pressupostos” que definiriam a história enquanto disciplina científica. O ponto crucial enunciado por White, tal como LaCapra, é saber até que ponto as explicações e interpretações fornecidas pelos historiadores (bem como as de qualquer outro cientista social) podem ser qualificados de “relatos objetivos” e científicos acerca da realidade (WHITE, 1994: 66).

O que se percebe, é que os cientistas sociais se debatem com uma questão bastante espinhosa e de difícil solução: que existem diferenças entre as ciências humanas e a literatura, elas existem, no entanto, não é tão simples assim estabelecer com absoluta precisão quais são elas, qual o lugar exato que lhes cabe na construção do conhecimento. Pois, como foi apontado nas linhas anteriores, justamente aquilo que aproxima sociologia e literatura, ao mesmo tempo, também as afasta: ambas representam uma espécie de consciência da sociedade, mas, do ponto de vista sociológico, a

Marie. Écriture sociologique et littératrure. Já os trabalhos na área de história são bem mais numerosos. Posso citar alguns deles: WHITE, HAYDEN (1994). Trópicos do discurso. São paulo: EDUSP; WHITE, HAYDEN (1996). Meta-história. São Paulo: EDUSP; CERTEAU, Michel de (1982). A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense; BURKE, Peter (Org.) (1992) A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP; FURET, François (s.d.) A oficina da história. Lisboa: Gradiva; VEYNE, Paul (1971). Como se escreve a história. Lisboa: Edições 70; além do artigo de LaCapra citado no corpo do texto.

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literatura é uma consciência que desvela e oculta, ao contrário de uma “consciência sociológica”; tanto uma como a outra se apresentam como formas de discurso narrativo, embora os recursos narrativos empregados por sociologia e literatura não sejam exatamente os mesmos; sociologia e literatura guardam relação com o mundo social (que podemos chamar de “realidade”), ainda que essa relação se dê em graus diversos e seja qualitativamente diversa.

Neste ponto retomo as questões que abriram este tópico: o estudo sociológico da literatura não só é possível, como é desejável e necessário, principalmente nos termos propostos por Pierre Bourdieu. A literatura, para o sociólogo francês, se apresenta como um objeto privilegiado de estudo devido à barreira que impede seu conhecimento objetivo: a hipotética aura que cerca as obras de arte e as afasta do mundo social, evitando que este último “contamine” a pureza da arte, que é parte de sua própria essência. Nesse sentido, a arte deixa de ser produto do social, mas, de um ponto de vista heideggeriano, é a única possibilidade de se atingir a essência das coisas, inclusive o ser da sociedade 7. Opondo-se veementemente a tal chave de compreensão da arte , dado seu teor altamente metafísico, Bourdieu busca o conhecimento objetivo a partir da inserção da obra (literária, pictórica, fílmica, etc.) num campo de relações de força do qual fazem parte inúmeros agentes sociais além do próprio artista: marchands, agentes literários, editores, críticos especializados, academias de arte, entre outros. Todos esses agentes estão presentes na trajetória do artista, na sua carreira, o apoiam em determinadas contendas contra outros artistas ou disputam com ele os louros do reconhecimento e do prestígio. Logo, afirma Bourdieu, a concretização (ou a objetivação) do “projeto criador” do artista não depende tão somente do artista ou da obra em si mesma, de seu valor “intrinsicamente” literário - aliás, a obra em si mesma nem sequer existe, pois sua existência depende de seu reconhecimento social.7 Acerca da intrincada ontologia da obra de arte de Martin Heidegger, ver o pequenino mas excelente e denso livro de introdução ao assunto HAAR, Michel (2000). A obra de arte - Ensaio sobre a ontologia das obras. Rio de Janeiro: Difel.

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Bourdieu, ao estudar a literatura, quer estabelecer os limites da ciência social, os limites do que é “sociologizável”. O esforço de Bourdieu se aproxima da proposição kantiana, pois Kant, ao delimitar a jurisdição da razão, define sobre o que é legítimo à razão legislar, do que está ao alcance do conhecimento racional; e Bourdieu pretende, talvez influenciado por Imannuel Kant, definir os limites da razão sociológica, isto é, definir até onde é possível “fazer” sociologia, e a literatura é meio escolhido por Bourdieu - em função da natureza dos obstáculos que a literatura erige em relação ao seu estudo racional-sociológico - para a realização de seu projeto. Projeto, aliás, que não retoma apenas a tradição kantiana como também é herdeiro direto da sociologia durkheimiana. A escolha de Bourdieu pela arte como desafio à sociologia se aproxima, e muito, da intenção de Durkheim ao optar pelo suicídio como tema de análise. À primeira vista, nada parece mais individualizado que o suicídio, mas Durkheim mostra a importância dos elementos sociais na motivação do ato derradeiro que, no fundo, toda sociedade impõe ao indivíduo - assim, um dos pais fundadores da sociologia também quer demonstrar o alcance e a força da análise sociológica justamente levando-a ao seu limite, que, neste caso, é o próprio corpo dos indivíduos.

O estudo da literatura para Bourdieu, assim como foi o estudo do suicídio para Durkheim, implica a investigação epistemológica da própria sociologia (de seus conceitos, teorias e métodos), na descoberta daquilo que a sociologia pode nos dizer acerca do mundo social dentro do qual vivemos. Louis Pinto, um comentador da obra de Pierre Bourdieu, afirma a respeito da obra deste:

“A sociologia da literatura, da arte e dos intelectuais tinha de certo modo uma importância estratégica, pois mostrava as possibilidades largamente inexploradas da disciplina sociológica e encerrava um programa de análise válido para todas as produções culturais.” (PINTO, 2000: 73).Até aqui discuti o porquê de minha escolha pela literatura como

tema de investigação sociológica - ou, pelo menos, apontei os motivos

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que me levaram a tal escolha. Resta discutir, brevemente, porque elegi Monteiro Lobato como tema de minha dissertação.

II. Por que estudar Lobato?

A comemoração dos 50 anos da morte de Monteiro Lobato que ocorreu no ano de 1998, talvez constitua, por si só, motivo suficiente para reavaliarmos a importância desse autor para a nossa cultura ; o que justificaria a produção acadêmica em torno de sua obra e de sua vida. Contudo, justificar a pesquisa nesses termos, a meu ver, desprezaria tudo aquilo que Lobato representa para a história da inteligência brasileira.

Os intelectuais brasileiros, no início do século, ansiavam por (re)descobrir o país: seus problemas, sua realidade e potencial. E um dos intelectuais que melhor refletiu o “espírito de sua época”, com todas as suas contradições, foi justamente Monteiro Lobato. Na opinião de Eliana Yunes, Lobato tem toda a sua vida - homem público, editor, jornalista e adido comercial nos EUA - e literatura voltadas para os problemas brasileiros (YUNES, 1983). Para Whitaker Penteado, Monteiro Lobato foi um “legítimo representante das forças conflitantes que marcaram a primeira metade do nosso século” (PENTEADO, 1997: 51). “O papel que Lobato exerceu na cultura nacional transcende de muito a sua inclusão entre os contistas regionalistas. Ele foi, acima de tudo, um intelectual participante que empunhou a bandeira do progresso social e mental de nossa gente” (BOSI, s.d.: 67). Ainda de acordo com Alfredo Bosi, depois de Euclides da Cunha e Lima Barreto, foi Monteiro Lobato quem melhor apontou as mazelas do Brasil oligárquico da I República.

Constata-se, pois, que a vida de Lobato, em todas as suas dimensões, esteve voltada para a vida cultural do país, seja refletindo ou atuando sobre ela. Urge, portanto, investigarmos a obra de Lobato , não apenas para melhor compreender o autor, mas, principalmente,

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para fornecer elementos que ajudem a entender uma parte da história cultural do Brasil.

Nesse sentido, a justificativa para a realização deste trabalho repousa no fato de que o exame da obra de Monteiro Lobato permite a interpretação de um período da história da sociedade brasileira e sublinhar a importância da atuação de Monteiro Lobato na constituição de um campo literário no Brasil; e, tomando como um dos focos de análise sobre Lobato, revelar as características sócio-históricas responsáveis pela configuração desse campo.

A intenção deste trabalho é tentar mostrar que a atuação de Monteiro Lobato foi imprescindível para a constituição de um campo e de um habitus literário no Brasil, porque a obra e a vida de Lobato refletiram, como ninguém, as contradições de seu tempo - Lobato foi, nas palavras de Wilson Martins, sem dúvida, um homem de ação e de letras, e é justamente isso que o torna peculiar e uma figura central na construção de um campo intelectual no país.

E compreender Lobato e sua obra (literária e editorial) exige, num primeiro momento, refletir sobre todo um período da história literária brasileira que se convencionou chamar (por força da influência de uma parcela da crítica literária nacional, principalmente aquela ligada ao grupo modernista) de pré-modernismo 8.

Por muito tempo Lobato esteve inserido nas letras brasileiras como um escritor regionalista, entre tantos outros do período habitualmente chamado de pré-modernismo. De acordo com Alaor Barbosa, Monteiro Lobato foi caracterizado como regionalista por algumas razões: primeiro, devido ao tipo literário - e uma de suas personagens mais conhecidas - por ele criado, o caboclo Jeca Tatu; em segundo lugar, boa parte das personagens e seus respectivos ambientes dizem respeito, direta ou indiretamente, ao Vale do Paraíba, região interiorana de São Paulo; e, por fim, sua própria forma de narrar e o tipo de linguagem empregados por Lobato, sempre muito próximos

8 No primeiro capítulo será discutida com mais vagar e detalhes a (conturbada) relação entre os escritores pré-modernistas e modernistas

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da oralidade e do linguajar do “povo”, sugerem a afinidade entre o escritor paulista e o movimento literário pré-modernista (BARBOSA, 1996). Para Lígia Militz da Costa, Monteiro Lobato também pode ser considerado um escritor regionalista “por registrar nas suas obras os problemas gerais do Brasil oligárquico e da I República” (COSTA, 1983).

Mas, o que significa dizer que Monteiro Lobato foi um escritor inserido no movimento literário conhecido como pré-modernismo ?

Historicamente, a República Velha possibilitou um regionalismo literário, i.e., uma aproximação dos escritores com uma realidade mais próxima em detrimento de uma suposta brasilidade de caráter universal. Segundo Alfredo Bosi, a corrente literária regionalista e seu interesse pela “vida brasileira” mais próxima, está associada a fatores políticos: a Abolição e a República, com a ampliação do processo representativo e a fragmentação federalista. Concorrem ainda outros fatores econômicos e sociais, como a imigração, a expansão do café, o nascimento do proletariado e do subproletariado etc. Todas essas transformações sócio-econômicas que abalam a sociedade brasileira - em alguns lugares mais do que em outros, como São Paulo e Rio de Janeiro - no início do século, somadas à relativa autonomia dos Estados em relação ao governo central, devido à força das oligarquias rurais, levam os escritores a se debruçarem sobre os problemas mais imediatos, aos fatos mais concretos e palpáveis (BOSI, 1985)9.

Em termos literários, o termo pré-modernismo, de acordo com Bosi, pode ser entendido sob dois pontos de vista: 1) conotação temporal de anterioridade; 2) precedência temática e formal em relação ao modernismo. (BOSI, s.d.)10. Em geral, a crítica e a história literárias empregam o segundo critério como eixo de análise das obras 9 Para uma discussão mais detalhada sobre a relação entre as transformações ocorridas nos fins do século XIX e início do século XX e a produção literária do período correspondente, ver SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura brasileira - seus fundamentos econômicos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995, especialmente o capítulo X.10 No entanto, tais critérios são insuficientes e vagos demais, uma vez que alguns autores seriam pré-modernistas de acordo com o primeiro critério e, ao mesmo tempo, antimodernistas se levarmos em conta o segundo critério.

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literárias dessa fase. Sylvia Helena T. de Almeida Leite assinala que, entre os críticos, predomina a opinião de que a literatura daquele período era pouco renovadora ou crítica, “(...) uma espécie de extensão dos preceitos estéticos vigentes entre 1880 e 1900”(LEITE, 1995, p.168). Tais estudiosos se detêm sobre o período a partir do que ele possui de mediador ou antecipador em relação à estética modernista dos anos 20 e 30. A segunda posição, assim como a primeira, limita as possibilidades de análise a partir do momento que toma tal movimento como simples anteparo do modernismo, ou seja, o período não é estudado em si mesmo, mas pelo que ele guarda de relação com o período posterior 11. Destarte, o pré-modernismo, genericamente, é considerado um período de poucas inovações literárias e quase nenhuma criatividade. Para alguns, se houve alguma novidade, foi apenas em relação ao conteúdo das obras, dos temas abordados; mas, ainda assim, escrevem esses críticos, tais temas foram abordados de forma superficial. Quanto ao estilo e à forma, o pré-modernismo não trouxe nenhum tipo de ganho, pois ou estava amarrado às concepções formais naturalistas-realistas da fase anterior, ou cometia excessos e deformações de linguagem na ânsia de captar o modo de falar cotidiano do interior do país.

Já para outros historiadores e críticos - entre eles, Alfredo Bosi e Nelson Werneck Sodré - , o pré-modernismo foi crivado de contradições e ambigüidades: num movimento dialético, é possível perceber, ao mesmo tempo, elementos conservadores e renovadores, avanços e recuos, tanto em relação ao conteúdo quanto à forma do texto literário. Na verdade, o movimento pré-modernista traz em si as contradições que marcaram o próprio momento histórico e social dentro do qual nasceu: de um lado, o poder das oligarquias, dos fazendeiros de café e as formas tradicionais de dominação; do outro, a urbanização, a industrialização e a formação de um mercado de trabalho livre. A

11 O próprio termo pré-modernista já denuncia uma visão, por parte dos críticos, progressista da história, “(...) que só atende o novo como fruto de uma lenta preparação, pressupondo sempre a precariedade nas obras anteriores, em relação à modernidade das posteriores.” (LEITE, 1995: 169).

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República Velha, pois, em seus primórdios, apresentava uma economia essencialmente agrária, uma mentalidade conservadora e o poder político concentrado nas mãos dos grandes proprietários rurais. Concomitantemente, já era possível sentir os primeiros sintomas da urbanização e da industrialização e novas idéias entrando no país. Esse contexto, nas palavras de Whitaker Penteado, era ideal para o debate acerca da nacionalidade e da realidade brasileiras (PENTEADO, 1997).

Para Nelson Werneck Sodré, o regionalismo pré-modernista se assentava na exploração do pitoresco, das características particulares de locais determinados, se aproximando bastante do ambiente que pretendia (re)tratar. O regionalismo literário se insere “(...) num quadro muito mais complexo em que procura traduzir a realidade através da valorização de alguns de seus elementos mais nítidos embora ainda não os fundamentais.” (SODRÉ, 1995: 405) - quadro no qual o regionalismo aparece como “processo de interpretação histórica e social da vida brasileira”. Infelizmente, escreve Sodré, o regionalismo pré-modernista não avançou mais em suas análises em razão de algumas limitações intrínsecas: a tendência a submergir o indivíduo no meio físico, na natureza, tende a apagá-lo; e acentuar demasiadamente um elemento exterior - o modo de falar das personagens - , provocando uma generalização perigosa e a acentuação do pitoresco, tratando o ambiente no que ele possuía de exótico. Por outro lado, o regionalismo valorizou o elemento popular e quando conseguiu fundir com felicidade a linguagem e tema, produziu efeitos fantásticos: “revelou o Brasil aos brasileiros”(SODRÉ, 1995).

Alfredo Bosi também assinala o caráter contraditório do pré-modernismo. Segundo ele, tal movimento literário apresenta em seu bojo tanto o elemento conservador - “(...) o prosseguimento e a estilização dos gêneros literários já cultivados pelos escritores realistas, naturalistas e parnasianos” (BOSI, s.d.: 12) - , como o elemento renovador, representado por autores como Euclides da Cunha, Graça Aranha e Monteiro Lobato, já que eles se debruçaram sobra a chamada “realidade brasileira”, sobre os problemas sociais e morais do país - ao

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contrário dos escritores da geração anterior, Machado de Assis, Raul Pompéia ou Aluísio Azevedo, que foram argutos observadores indiretos da sociedade burguesa do II Império, já que se dedicaram a tal observação de forma puramente literária. Começava a nascer uma “nova consciência” a respeito da sociedade brasileira, mais perspicaz e mais crítica em relação aos problemas do país.

A questão do pré-modernismo, afirma Sylvia Helena T. de Almeida Leite, ainda hoje é uma questão mal-resolvida, dada a complexidade e heterogeneidade da produção cultural desse período (LEITE, 1995). Para se tentar equacionar todos (ou, pelo menos, alguns) dos problemas que envolvem a análise do pré-modernismo, a autora aponta para a necessidade de se estudar detidamente as principais obras do período, “pelo que significam isoladamente e pelas relações que guardam entre si e com o tempo em que foram concebidas”(LEITE, 1995: 169).

Se a literatura regionalista pré-modernista foi marcada por excessos, deformações, pelo pitoresco, ao mesmo tempo, através de sua linguagem simples, próxima da oralidade, ela se aproximava do leitor comum e, talvez, pela primeira vez nas letras brasileiras, ela tornava o Brasil, com todas as suas contradições, inteligível ao grande público.

A reavaliação crítica do pré-modernismo foi capaz de mostrar o que o movimento oferecia de novidades, sua importância para a história literária brasileira e em que medida já prenunciava alguns elementos, estéticos e temáticos, mais tarde explorados pelo modernismo. Resta reavaliarmos também a posição de Monteiro Lobato, tanto no âmbito do pré-modernismo como sua atuação posterior.

E a reavaliação crítica não se limita a um novo exame formal das obra, mas reconstituir a posição desse movimento literário no bojo da história cultural do país a partir de uma avaliação sociológica. Sérgio Miceli, por exemplo, assinala que é justamente no período conhecido como pré-modernismo que se

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“(...) desenvolveram as condições favoráveis à profissionalização do trabalho intelectual, especialmente em sua forma literária, e à constituição de um campo intelectual relativamente autônomo, em conseqüência das exigências postas pela diferenciação e sofisticação do trabalho de dominação” (MICELI, 1977: 13 e 14). Segundo o autor, julgar os literatos dessa fase segundo critérios

elaborados em estágios ulteriores do campo e, conseqüentemente, tratar sua produção como subliteratura, significa perder de vista as condições histórico-sociais nas quais se engendrou o campo intelectual ainda vigente 12.

A perspectiva sociológica permite entender porque a crítica mais ortodoxa costumava qualificar Lobato de três maneiras: 1) um grande escritor infantil - efetivamente, foi ele o precursor do gênero no país; 2) um contista medíocre ou, na melhor das hipóteses, razoável; 3) um escritor regionalista dotado de certo talento, embora bem menos talentoso do que alguns de seus contemporâneos, como Valdomiro Silveira, João Simões Lopes Neto e Afonso Arinos.

Apenas recentemente a crítica e a história literárias trataram de reavaliar a obra de Monteiro Lobato. Alguns trabalhos da década de 80 - como De Jeca a Macunaíma, de Vasda Bonafini Landers; A república do picapau amarelo, de André Luiz Vieira de Campos; e Atualidade de Monteiro Lobato, sob organização de Regina Zilberman - e da década de 90 - alguns deles são Um Jeca nos vernissages, de Tadeu Chiarelli; Os filhos de Lobato, de J. Roberto Whitaker Penteado; e Monteiro Lobato: furacão na Botocúndia, de Carmen Lucia de Azevedo, Marcia Camargos e Vladimir Sacchetta 13 - trataram de retomar a obra 12 Miceli chama a atenção para o fato de que, em termos sociológicos, o termo pré-modernismo serviu como “recurso político” da geração posterior, os modernistas, para deslegitimar o movimento como momento de ruptura. Todavia, afirma Miceli, esse período imediatamente anterior ao modernismo não representou uma “fase de estagnação da atividade literária”.13 Vale lembrar que os dois últimos livros citados foram publicados no mesmo ano: 1997. Creio que esse fato, por si só, demonstra que o interesse pela reavaliação da obra de Lobato constitui um fenômeno muito recente.

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lobatiana e analisá-la de forma mais cuidadosa, mais acurada, a fim de evitar as conclusões tão precipitadas comuns em trabalhos anteriores. Após uma série de reconsiderações, Monteiro Lobato passou a ser encarado de maneira bastante diversa, não só na sua atividade literária mas também como crítico de arte e editor. Passou a se reconhecer a importância e a grandeza de Monteiro Lobato, como intelectual e homem de ação.

Para Alaor Barbosa, não é mais possível reduzirmos Lobato a mero escritor regionalista (BARBOSA, 1996). De acordo com Lígia Militz, Monteiro Lobato representou o ponto de encontro de duas épocas e duas mentalidades, um verdadeiro “símbolo de transição de nossa literatura”(COSTA, 1983). Na opinião de Eliana Yunes, o escritor do interior paulista foi um homen engajado e comprometido com seu tempo e história, disposto a eliminar o “atraso brasileiro” a partir de nossas potencialidades econômicas e culturais - principalmente por intermédio da literatura (YUNES, 1983).

Fica claro que, após o trabalho de revisão de sua obra empreendida por alguns pesquisadores, a atuação de Lobato não se restringe apenas à escrita literária - para a qual, efetivamente, contribuiu - , mas diz respeito à construção de um campo intelectual e literário, que, evidentemente, extrapola os limites do texto literário. A contribuição de Monteiro Lobato para a vida intelectual do país se manifestou, primeiro, na sua prática literária, que abarca não apenas os seus contos e sua obra infantil, mas também seus “escritos doutrinários” (cartas, entrevistas, artigos de jornal e reflexões políticas e econômicas); e, depois, na sua experiência editorial. Notamos o engajamento de Lobato e sua preocupação com os problemas do país enquanto escritor e como empresário.

Na sua atividade especificamente literária, sua contribuição foi valiosa na medida em que lançou mão de certos recursos estilísticos e temas que mais tarde os modernistas aprofundariam 14. Lobato 14 Para Vasda Bonafini Landers e Wilson Martins, Lobato foi o verdadeiro precursor dos modernistas com as obras publicadas antes de 1922: Urupês (1918), Cidades Mortas (1919) e Negrinha (1920).

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mostrava-se extremamente preocupado em relação à nossa língua, nossa “autenticidade nacional”. Segundo o próprio Lobato, havia uma dualidade entre a língua do povo e a língua escrita. Para ele, tal contraste era responsável, pelo menos em parte, pelo fato de os livros brasileiros não serem lidos. A partir dessa idéia Monteiro Lobato fundou uma concepção estética de nossa literatura: ela seria mais autêntica quanto mais fosse feita numa língua “brasileira”, rejeitando a norma “culta”. Lobato buscava uma adequação entre a língua literária e a língua do povo. Com o intuito de aproximar a literatura de um público cada vez mais amplo, Lobato ocupou-se da forma do texto, tornando sua narrativa cada vez mais íntima da oralidade, preocupou-se com a objetividade e a clareza da comunicação, e chegou até a criar inúmeros neologismos para facilitar o exercício da leitura e tornar a própria compreensão do texto mais acessível. E também em relação ao conteúdo observamos que Lobato abordava temas sempre muito próximos da vida das pessoas, tratava de problemas do cenário nacional em relação aos quais o público se identificava.

A busca por um público leitor mais abrangente exigiu dos literatos uma mudança na “concepção e na realização do fazer literário” (LEITE, 1995). E quem melhor captou tais necessidades e objetivamente se preocupou com um novo “fazer literário” foi Monteiro Lobato; lembrando que esse “fazer literário” envolvia novas formas de produção e disseminação das artes.

Havia uma desproporção entre o público virtual (58% dos paulistanos eram alfabetizados) e o consumo real da literatura em circulação na São Paulo do início do século: a tiragem média era de 1000 exemplares (LAJOLO, 1983). Quase não havia canais disponíveis entre escritores e leitores para concretizar a circulação do que se produzia:

“É nesse contexto e desta perspectiva que a figura de Monteiro Lobato torna-se fundamental, na medida em que sua prática literária foi, de certa forma, pioneira: ele inaugurou uma concepção de literatura que incluía a noção

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de livro como objeto sem aura, como linguagem, como texto, como mercadoria” (LAJOLO, 1983: 42).

Marisa Lajolo preconiza que o editor e o escritor Monteiro Lobato são um único agente social, que pôs em prática uma concepção moderna de escrever, “que incluía o leitor não só como virtualidade presente no texto, mas como território a ser conquistado, a partir da criação de mecanismos de circulação entre obra e público”(Idem, 1983: 43). Segundo Lajolo, foi Lobato quem viabilizou a circulação do texto literário no país por meio da inserção do livro em premissas capitalistas, o que, nos anos 20, no plano da indústria editorial, constituía um processo de modernização. Lajolo propõe que a crítica à obra lobatiana não deve tomar o literário como “texto em si”, mas levar em conta sua condições de produção, circulação e consumo.

A atuação de Lobato como escritor e como editor fez dele um agente social único, cujo papel na constituição de um campo literário no Brasil foi importantíssimo, senão crucial. E é somente através da análise sociológica de sua obra e da investigação do contexto sócio-histórico no qual essa obra foi engendrada que é possível demonstrar a relevância de Monteiro Lobato para a história cultural do país.

III. Atividade lúdica x atividade científica: o desafio da escrita.

Resta, para finalizar esta introdução, tecer alguns esclarecimentos sobre a maneira pela qual esta dissertação foi escrita - o que justifica, também, porque “gastei” um bom número de linhas para discutir as “relações perigosas” entre sociologia e literatura.

Há pouco tempo, deparei-me com dois artigos que exerceram grande impacto sobre mim, menos pela novidade que trazem (que a rigor é nenhuma) do que pelo momento no qual os li: durante a redação deste trabalho. Os artigos foram publicados na revista Tempo Social, volume 11, no 1, maio de 1999. São eles: “Ciência - aquele

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obscuro objeto de pensamento e uso”, de Michel Paty; e “Não há pior inimigo do conhecimento que a terra firme”, de Renato Janine Ribeiro.

O primeiro trata daquilo que o autor chama de “duplo aspecto da ciência”, qual seja, de um lado, o conhecimento e o pensamento; do outro, as aplicações e usos que se faz de tal conhecimento. Trata-se, portanto, dos limites éticos da ciência, que se apresenta menos imparcial do que ela própria pretende. Sua eticidade depende de seu uso social, ou seja, a partir de quais critérios socialmente construídos e compartilhados se determina a aplicação do conhecimento científico.

Definir “o que a ciência é?”, pois, não é apenas uma questão epistemológica, mas uma questão axiológica, pois se trata de saber quais os valores (éticos) - igualmente elaborados histórica e socialmente - que guiam a formação e a utilização da ciência.

A ciência e sua eticidade, nos termos propostos por Paty, se cumprem graças ao seu caráter criativo e imprevisível, ao questionamento contínuo sobre si mesma, numa busca desinteressada, livre - em relação a certas constrições sociais, como os critérios de eficiência e competição - e sem fim pelo conhecimento do mundo.

Já o ensaio de Renato Janine trata da falta de ousadia dos trabalhos acadêmicos, da timidez no modo como os pesquisadores, precipuamente os mais jovens, abordam seus temas. O autor chega a falar no “esvaziamento no desejo de pensar” (RIBEIRO, 1999: 190), fruto do temor em relação ao desejo de inovar, de experimentar. Os pesquisadores, então, optam por caminhar em chão mais seguro, recusando-se a romper com as autoridades intelectuais já estabelecidas, pois um confronto dessa ordem colocaria em risco a carreira e ascensão acadêmica dos novos pretendentes ao posto de autoridade. Para Janine: “Um pesquisador deve expor-se a seu objeto mais do que o faz.” (Idem: 191), e abrir mão do uso abusivo de conceitos já prontos, da importação de teorias feitas para analisar problemas que nem de perto dizem respeito a tais teorias e conceitos.

Do ponto de vista sociológico, as propostas de Michel Paty e Renato Janine Ribeiro são, no mínimo, ingênuas. Mas de modos

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diferentes. O primeiro se encontra preso numa camisa-de-força metafísica (mesmo sem o desejar) quando fala na importância no debate que a sociedade deve travar em torno da ciência, como se existisse a sociedade, essa entidade puramente abstrata, provida dos mais nobres interesses e que se sobrepõe sobre todos os homens (PATY, 1999: 69). Ademais, o autor se utiliza de expressões bastante discutíveis quanto à definição da ciência, como por exemplo “sua própria natureza” e seu “núcleo profundo” 15, como se houvesse um “ser” da ciência, uma essência livre da influência de certos condicionantes sociais que pudesse ser resgatada. Bourdieu demonstra o quanto a ciência não está submetida à sociedade de maneira geral, mas às regras elaboradas no interior de um campo social específico, o campo científico, ou seja, a ciência passa a ser organizada (inclusive sua própria definição) de acordo com as regras particulares do campo - o que não equivale dizer que não existam influências externas de outros campos, mas o que ocorre é a mediação de tais influências pelo conjunto de normas relativo ao campo científico (BOURDIEU, 1983).

Quanto ao ensaio de Renato Janine, seu equívoco está em não reconhecer que o que está em jogo no campo científico é a luta pelo monopólio da “autoridade científica” ou pelo monopólio da “competência científica”; e essa luta exerce enorme influência na escolha dos objetos de estudo e dos temas a serem pesquisados: apenas serei reconhecido e respeitado pelos outros membros da comunidade científica - e, assim, galgar novas posições no interior do campo até alcançar o reconhecimento - se meus estudos forem percebidos como importantes e interessantes pelos integrantes do campo. Segundo Bourdieu:

“Não há escolha científica - do campo da pesquisa, dos métodos empregados, do lugar da publicação; ou, ainda, escolha entre uma publicação imediata de resultados parcialmente verificados e uma publicação tardia de resultados plenamente controlados - que não seja uma

15 Ver as observações do autor às páginas 70 e 71 do referido artigo.

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estratégia política de investimento objetivamente orientada para a maximização do lucro propriamente científico, isto é, a obtenção do reconhecimento dos pares-concorrentes.” (BOURDIEU, 1983: 126-127).

Nesse sentido, romper a ordem social científica estabelecida requer do agente social um certo “capital científico” já acumulado, que só é possível se esse agente ocupar uma certa posição de destaque no interior do campo e possuir legitimidade perante os outros participantes da luta, que é algo que o novato não dispõe. Não dispor de tal capital e de tal reconhecimento limita as possibilidades de rompimento drástico das regras já constituídas, pois os aspirantes às posições de domínio dentro do campo dificilmente colocarão sua carreiras em risco para participar de uma luta da qual ou não têm chances de vencer ou as chances são extremamente reduzidas.

Apesar de as proposições de Paty e Ribeiro serem sociologicamente discutíveis, como tentei demonstrar, elas não deixam de ser instigantes, provocadoras e diria até sedutoras. Afinal, conduzir o trabalho científico de maneira ética constitui o dever do cientista; e o desejo de inovar e aventurar-se é o sonho do jovem pesquisador. Tentarei reunir, da melhor maneira possível, o dever e o desejo, embora saiba que minha atual posição no campo científico impõe certos limites. O compromisso ético se apresenta no desenvolvimento do trabalho científico: o rigor da análise, a utilização cuidadosa dos conceitos, o método pertinente, a pesquisa severa, e, como não poderia faltar a uma dissertação acadêmica, o uso, até abusivo, de citações e a notas de rodapé. Já a aventura está na batalha contra a sisudez que um empreendimento dessa natureza invariavelmente apresenta. Daí o título deste item: toda a redação do trabalho foi uma tentativa de encará-la também como uma atividade lúdica - que conferisse prazer ao autor e, espero, ao leitor.

Mas, cabe frisar, que o uso de alguns recursos estilísticos só foi possível porque o próprio objeto de meu estudo (a literatura, e

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especialmente a literatura lobatiana) permite tal tratamento. E lembro a frase já citada de Renato Janine Ribeiro: “Um pesquisador deve expor-se a seu objeto mais do que o faz”. Foi o que tentei fazer: me expor aos riscos e tentações que é esse obscuro objeto do desejo, a literatura.

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No bom livro de mistério, nada é desperdiçado, nenhuma frase, nenhuma palavra que não seja significativa. E ainda que não seja significativa, ela tem o potencial para isso - o que no fim dá no mesmo. O mundo do romance se torna vivo, ferve de possibilidades, com segredos e contradições. Uma vez que tudo o que é visto ou falado, mesmo a coisa mais ligeira e trivial, pode guardar alguma relação com o desfecho da história, nada deve ser negligenciado. Tudo se torna essência; o centro do livro se desloca a cada acontecimento que impele a história para a frente. O centro, portanto, está em toda parte e nenhuma circunferência pode ser traçada antes que o livro chegue ao fim.

Paul Auster

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Capítulo 1.

(As peças do quebra-cabeças)

I. As aventuras de Monteiro Lobato contra os barões modernistas

Em treze de maio de 1926, no jornal carioca A Manhã, escrevia Mário de Andrade:

“O telégrafo implacável nos traz a notícia do falecimento de Monteiro Lobato, o conhecido autor de Urupês. Uma das fatalidades de que sofre a literatura nacional é essa das Parcas impacientes abandonarem no começo o tecido de certas vidas brasileiras que se anunciavam belas e úteis. Muitos literatos têm dessa maneira partido pro esquecimento em plena juventude mal deram com a obra primeiro vislumbre gentil do seu talento e possibilidades futuras.(...)Como a morte nos afasta e diminui na distância! Como ela nos reduz a proporções verdadeiras nessa revelação exata das entidades que é o avanço da putrefação e dos vermes!(...) Nada se nos apresenta de mais carinhosamente pesaroso que estas considerações saudosas agora que temos o coração sangrado e os olhos mojados de lágrimas com o infausto passamento de Monteiro Lobato, o conhecido autor dos Urupês.16

O artigo de Mário de Andrade, mais do que simples necrológio, se configura como legítima confissão do assassinato (simbólico) de Monteiro Lobato. No texto escrito por uma das principais (senão a

16 Trecho do artigo intitulado “Post-Scriptum Pachola”, reproduzido pelo jornal Folha de S. Paulo, edição de quinze de novembro de 1997.

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principal) figuras de nosso modernismo saltam aos olhos os rastos deixados pelo autor do crime. Primeiro, a ironia - ou seria mais adequada a palavra “sarcasmo” ? - de Mário de Andrade ao declarar a impaciência das Parcas 17 que cortaram o fio da vida de Lobato “em plena juventude”, negando ao escritor valeparaíbano “a obra primeira o vislumbre gentil do seu talento e possibilidades futuras”. Ora, em 1926 Lobato não era nenhum estreante no mundo literário; ao contrário, já era escritor consagrado e reconhecido por um público abrangente 18, ainda que seu prestígio, talvez, não fosse o mesmo daquele que gozava no final dos anos 10 e início da década de 20.

E justamente neste ponto deparamo-nos com o segundo indício do assassinato simbólico de Lobato: as rusgas entre Monteiro Lobato e os modernistas não começaram em 1926, mas antes da Semana de Arte Moderna de 1922. Para ser mais exato, o estopim de tal conflito foi o artigo Paranóia ou mistificação?, publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 20 de dezembro de 1917, e no qual Lobato criticava não propriamente Anita Malfatti - em quem reconhecia uma artista com “talento vigoroso, fora do comum”, para usar a expressão do próprio Lobato -, mas a importação de modelos estéticos estrangeiros (no caso, o expressionismo) em detrimento de uma arte genuinamente nacional,

17 Menção às três deusas gregas que teciam e cortavam o fio da vida.18 Apenas para exemplificar a afirmação, cito os seguintes dados: Urupês - aliás, maliciosamente citado por Mário de Andrade, uma vez que não concede a esse livro a importância que teve, pelo menos em termos editoriais, cujo sucesso é inegável - fora publicado em 1918 e até 1923 já tinham sido feitas nove re-impressões, totalizando 30.000 exemplares vendidos; em 1919 Lobato publicara Idéias de Jeca tatu e Cidades mortas, cada um deles com tiragem de 4.000 exemplares, insuficientes para o ano seguinte, exigindo sua reedição em 1920 e também em 1921; sem contar com a estréia de Monteiro Lobato na literatura infantil, em 1921, com o livro Narizinho arrebitado, com uma tiragem inicial de 50.500 exemplares, devido à compra do livro pelo governador do estado de São Paulo na época, Washington Luiz, para a utilização nas escolas. Para maiores esclarecimentos acerca da tiragem e venda dos livros de Lobato, ver HALLEWELL, 1985, pp. 240 e ss. Além dos números impressionantes, podemos falar do impacto que alguns de seus livros tiveram no cenário cultural do país, principalmente Urupês, citado por Rui Barbosa num discurso durante sua campanha para a presidência da república, e que também gerou várias reações contrárias devido ao seu caráter supostamente anti-nacionalista, uma vez que, aos olhos dos críticos insatisfeitos (como Ildefonso Albano e Rocha Pombo, criadores de Mané Chique-Chique e Juca Leão, respectivamente, e que apareciam como uma resposta à afronta de Lobato), o Jeca tatu representava um acinte ao homem do sertão. Percebe-se, pois, que Lobato não era, sequer de longe, um calouro no mundo das letras.

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que incorporasse os elementos e temas da terra tupiniquim. Naquele momento, Lobato já era respeitadíssimo nos meios intelectuais paulistas, não só devido aos artigos “Urupês” e “Velha Praga”, ambos também publicados n’ O Estado de S. Paulo, em 1914, que denunciavam as condições de vida do homem sertanejo - caricaturado na figura do Jeca Tatu - e o responsabilizava pelos maus cuidados dispensados à terra, mas também por seus artigos voltados à crítica de arte, escritos para a imprensa e para a Revista do Brasil, periódico inicialmente ligado ao grupo Estado, e posteriormente adquirido por Monteiro Lobato - que foi o embrião de sua editora. Diante de tais fatos, fica a pergunta: por que o golpe fatal desferido por Mário de Andrade não ocorreu antes? Por que somente em 1926 Lobato é morto? A resposta, num certo sentido, já foi indicada acima. Entre 1917 - data que marca o início do embate entre Lobato e o grupo modernista - e 1925 - ano em que ocorre a falência de sua casa editora -, Monteiro Lobato ocupava posição hegemônica no interior do campo literário nacional (campo este, como veremos, que ele ajudou a constituir), logo, se apresentava como um adversário muito difícil de ser batido.

A terceira pista deixada por Mário de Andrade, e que praticamente o incrimina, é o artigo em si mesmo. Explico. O obituário escrito e publicado por Mário de Andrade decretou a morte simbólica de Lobato no campo literário, mas Lobato continuava concretamente vivo, o que gerava uma situação, no mínimo, desconfortável para o criador de Jeca Tatu, pois sua morte literária trazia sérias implicações. Como um morto voltaria ao mundo dos vivos para dar continuidade à sua obra? Como voltar novamente à cena literária? Como um escritor morto poderia usufruir de possíveis privilégios que o campo pudesse lhe oferecer? Um escritor morto é um escritor que mais facilmente pode perder seu reconhecimento, seu prestígio, sua consagração, enfim, pode ser mais facilmente esquecido. Matar Lobato, para os modernistas seu pior inimigo, significava matar uma época, uma geração de literatos que devia ser deixada para trás, uma vez que estavam ligados a antigos cânones que representavam estilos literários ultrapassados,

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que traduziam o academicismo no campo das letras, o conservadorismo intelectual, isto é, o linguajar excessivamente empolado, artificial, que não deixava ver, traduzir e compreender o (suposto) Brasil real. Os modernistas fizeram de Lobato o símbolo maior de um passado que devia ser enterrado; portanto, matá-lo (e junto com ele toda uma geração de escritores) significava declarar, finalmente, a vitória modernista. Se toda uma geração foi enterrada junto com Monteiro Lobato, então estamos diante da morte (simbólica) infligida não a um escritor, mas a muitos. E mais: ao falar em “vitória modernista” acrescento um elemento adicional na investigação deste assassinato simbólico, qual seja, Mário de Andrade não foi o autor solitário de tal ato, mas contou com a participação de vários outros cúmplices, alguns deles pertencentes ao grupo modernista e outros, embora não possam ser denominados como modernistas, intimamente ligados (intelectualmente, por laços de amizade ou pelos dois motivos) aos precursores da Semana.

O que estava em jogo nessa contenda não era a mera encenação de ciúmes de uma parte ou de outra, nem um cabo de guerra entre vaidades ofendidas. Era muito mais do que isso. O que estava em jogo era uma acirrada disputa, desde 1917, por bens simbólicos: o reconhecimento, o prestígio e a consagração definitiva. Tanto os modernistas quanto Monteiro Lobato pretendiam, ainda que inconscientemente, a hegemonia no campo literário. É essa luta, segundo Bourdieu, que faz a história do campo (BOURDIEU, 1996: 181). Podemos observar, a partir desse embate, um momento privilegiado na história da formação do campo literário brasileiro, uma vez que as disputas por bens cujo valor (simbólico) é determinado no interior do próprio campo, pelos agentes que fazem parte dele; e as regras - que os agentes internalizam sem ao menos perceber 19 - que organizam essas lutas também são fruto do processo de estruturação e autonomização do campo. 19 O conjunto de normas e regras , um determinado nomos, incorporado pelos indivíduos e que orienta a conduta dos agentes sociais independentemente dos poderes externos, sejam eles políticos ou econômicos, Bourdieu chama de habitus.

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“A oposição entre os paladinos e os pretendentes institui no interior mesmo do campo a tensão entre aqueles, como em uma corrida, esforçam-se por ultrapassar seus concorrentes e aqueles que querem evitar ser ultrapassados.” (BOURDIEU, 1996: pp. 147 e 148).

Os recém-chegados ao campo, no caso aqui tratado os modernistas, pretendem continuamente expulsar para o passado os produtores já consagrados, como Lobato e outros, contra os quais se medem e degladiam. Os autores já consagrados, por sua vez, querem se impor igualmente no mercado de bens simbólicos por meio, segundo Bourdieu, de uma banalização do produto que oferece, o texto literário. A banalização pode ser percebida tanto no estilo literário adotado quanto nos temas abordados e serve para garantir o consumo fácil e rápido do texto.

A estratégia adotada pelos integrantes do grupo modernista - Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Sérgio Milliet, entre outros - foi autoproclamar-se momento fundante na história da arte brasileira, uma espécie de divisor de águas a partir do qual seria possível reconhecer uma “verdadeira” arte nacional. Era preciso transformar o modernismo em história - e não numa história qualquer mas num momento particularmente importante de nossa história cultural, em que a Semana de Arte Moderna de 1922 representasse uma espécie de sete de setembro artístico e cultural - para lhe conferir a legitimidade necessária. Com sua incrível experimentação estética, a nova linguagem artística - poética, musical, pictórica - rompia com o tradicionalismo no campo das artes - principalmente o naturalismo-realismo - e incorporava a oralidade na literatura, o jeito de falar “típico” dos brasileiros, resgatava os elementos de nosso folclore, tudo isso para romper com o Brasil arcaico, colonizado política e culturalmente, e recuperar um Brasil genuíno, absolutamente original em suas manifestações artísticas. Esse foi o estupendo feito que os modernistas arrogaram para si mesmos. Entretanto, como já apontei

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acima, essa foi a estratégia delineada pelos barões modernistas para travar as mais duras batalhas no mercado de bens simbólicos a fim de garantir um lugar social privilegiado no campo literário. Empreitada que resultou, reconheçamos, em êxito.

Recuperar e investigar esse de período de lutas e mortes que marcam parte da história da formação do campo literário nacional implica, na verdade, em recuperar uma parcela da história cultural brasileira que parecia definitivamente escrita, pelos próprios modernistas, por historiadores da literatura e críticos literários sintonizados com a política modernista.

Já há algum tempo alguns intelectuais propõem uma revisão das idéias estabelecidas quanto ao modernismo 20. Nelson Werneck Sodré, por exemplo, escreve:

“A historiografia literária brasileira convencionou a realização das manifestações da Semana de Arte Moderna como início de uma noca etapa em nosso desenvolvimento literário, a do Movimento Modernista, ou Modernismo. A Semana tem sido superestimada, sem dúvida alguma, pois sua importância, meramente episódica, embora característica sob muitos aspectos do verdadeiro caráter do movimento, foi muito menos do que pretendem fazer crer alguns de seus participantes e alguns de seus cronistas.” (SODRÉ, 1995: 525).

20 Alguns desses autores e suas respectivas obras são: CHIARELLI, Tadeu (1995). Um jeca nos vernissages. São Paulo: EDUSP; MARTINS, Wilson (!978). História da inteligência brasileira - volume VI (1915-1933). São Paulo: Cultrix/EDUSP; SODRÉ, Nelson Werneck (1995). História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; NUNES, Cassiano (1998). Novos estudos sobre Monteiro Lobato. Brasília: Ed. da UNB; LANDERS, Vasda Bonafini (1988). De Jeca a Macunaíma: Monteiro Lobato e o modernismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; AZEVEDO, Carmen Lucia; CAMARGOS, Marcia & SACCHETTA, Vladimir (1997). Monteiro Lobato: furacão na Botocúndia. São Paulo: SENAC. Chamo atenção para o fato de que boa parte dos autores que indicam a necessidade de uma revisão do modernismo são justamente aqueles que se ocuparam do estudo da obra e vida de Monteiro Lobato, e não é à toa, pois, como já afirmei acima, Lobato se tornou o grande inimigo a ser combatido, não porque fosse o maior porta-voz da estética passadista, conservadora, como o pintaram os modernistas, mas porque era o literato que gozava de maior prestígio em nosso incipiente campo literário, e, aí sim, o maior adversário de Mário de Andrade e cúmplices.

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É claro que a importância da Semana, bem como de todo o movimento modernista - que não começa exatamente com a Semana de 1922 -, foi supervalorizada 21, uma vez que sua história foi escrita pelos punhos dos próprios protagonistas e reescrita, em grande medida, pelos simpatizantes do movimento. Cabe resgatar agora a voz dos vencidos, aquela história que ainda não foi escrita, ou, como afirmava Walter Benjamin, os “cacos da história”.

21 É preciso frisar que não se trata, aqui, de subestimar o movimento modernista, pois se trata, sem dúvida, de uma fase importante na constituição de um campo literário no Brasil. O que se quer é desvelar as estratégias - aliás, legítimas - utilizadas na disputa pelos bens simbólicos típicos do campo em questão, e, por conseguinte, pesquisar a formação de nosso campo literário.

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II. O episódio pré-modernista

Compreender a posição de Monteiro Lobato no seio do movimento literário conhecido como pré-modernismo requer, antes de mais nada, pontuar as principais características do movimento e investigar as conflituosas relações entre esse período e o posterior, o modernismo - a fim de tornar o mais claro possível o conflito entre essas gerações literárias e as razões que fizeram de Lobato o alvo maior dos modernistas.

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O final do século XIX e os primeiros anos do século XX - de 1890 até 1920 - correspondem a um período em que a literatura era (re)conhecida como “sorriso da sociedade” (expressão cunhada por Tristão de Ataíde), isto é, uma literatura marcada pelo estetismo, o evasionismo e a pureza verbal (BOSI, 1994: 197). É o que José Paulo Paes chamou de art nouveau na literatura brasileira, caracterizada pelo descomprometimento em relação aos problemas sociais, o afastamento dos “aspectos mais grosseiros e amiúde mais sombrios da vida cotidiana” (PAES, 1985: 67) - matéria-prima das escolas literárias anteriores, o realismo-naturalismo-, a exuberância ornamental da linguagem, que constituía o veículo apropriado para a “exaltação dionisíaca da vida” (Idem, ibidem); era a época da “atitude literária” - os salões, as poucas livrarias e festas reuniam intelectuais e os pretendentes a tal posto - e não da produção literária propriamente dita, a época dos dândis, como João do Rio. O contexto sócio-histórico era apropriado para a germinação desse tipo de literatura, principalmente em nosso maior centro urbano da época, cidade do Rio de Janeiro.

“O novo estilo de arte e de vida importado da Europa, aonde fôramos sempre buscar as nossas novidades, estava

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particularmente adequado ao momento histórico que então vivíamos. Pois, guardadas as proporções, passávamos aqui também por uma espécie de belle époque. Amainadas as agitações do período que se seguiu à Abolição e à queda da monarquia, inicia-se na antiga Capita Federal uma quadra de rápida modernização, em que o beco dos tempos coloniais e imperiais vai ceder o lugar à avenida dos tempos republicanos. É a época do Bota-Abaixo comandado pelo prefeito Pereira Passos, de ‘o Rio civiliza-se’ alardeado pelos cronistas sociais (...). Limitemo-nos a lembrar que a ‘febre de mundanismo’ então vivida pelo Rio e a cujo afrancesado luxo de imitação o art nouveau fornecia uma cenografia a caráter, destronou de vez a figura do poeta boêmio, pitoresco e marginal, em prol da figura do escritor mais ou menos aburguesado, quando não convertido em dândi. Na topografia social da nossa literatura, correspondentemente, o salão mundano, a casa de chá e a Academia substituem o café, o botequim e a confeitaria de outrora.” (PAES, 1985: 70).

A literatura como “sorriso da sociedade”, de acordo com Paes, não afetou apenas a ficção urbana mas atingiu em cheio também a produção literária regionalista, na qual predomina o verbalismo de efeito e o exagero no registro dialetal 22, acentuando o pitoresco em detrimento da matéria propriamente ficcional - para Alfredo Bosi e Nelson Werneck Sodré, esse era um recurso que ao tentar disfarçar a pobreza do texto acabava por acentuá-la 23.

E a partir daqui começam os problemas quanto à definição do que é pré-modernismo. Para Paes, como vimos, o período é fortemente

22 José Paulo Paes indica apenas uma exceção no rol dos escritores regionalistas, que se destacava por uma consubstancialidade que seus colegas não possuíam: o gaúcho João Simões Lopes Neto.23 Conforme BOSI, Alfredo (s.d.). O pré-modernismo. São Paulo: Cultrix; e SODRÉ, Nelson Werneck (1995). História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, especialmente o capítulo 10.

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influenciado por uma estética art-nouveau, que afeta tanto a ficção urbana quanto a regionalista.

Já Alfredo Bosi, mais cuidadoso, alerta para o fato de que o termo “pré-modernismo” é perigosamente ambivalente, porque o período envolve uma gama extremamente variada de escritores, estilos e temas. Se, por um lado, há a figura do dândi literário, descomprometido e verbalista, por outro, existem aqueles escritores que, segundo Bosi, rompem com o “clima” Belle Époque do Brasil do início do século: a cultura oficial, alienada e excessivamente ornamental e já abrem caminho para as sondagens sociais e as experimentações estéticas modernistas (BOSI, 1994: 197-207).

Ainda de acordo com Alfredo Bosi: “Se por modernismo entende-se exclusivamente uma ruptura com os códigos literários do primeiro vintênio, então não houve, a rigor, nenhum escritor pré-modernista.Se por Modernismo entende-se algo mais que um conjunto de experiências de linguagem; se a literatura que se escreveu sob o seu signo representou também uma crítica global às estruturas mentais das velhas gerações e um esforço de penetrar mais fundo na realidade brasileira, então houve, no primeiro vintênio, exemplos probantes de inconformismo cultural: os escritores pré-modernistas foram Euclides, João Ribeiro, Lima Barrteo e Graça Aranha (este, independentemente da sua participação na Semana). (Idem, 1994: 332, destaques meus).

Apesar dos alertas e cuidados de Bosi - a cautela na análise de Alfredo Bosi é, sem dúvida, muito maior do a apresentada por José Paulo Paes -, o sagaz crítico e professor não avança no sentido de reavaliar o modernismo, mas, ao contrário, recua e reafirma veementemente a existência de um período literário que apenas prepara o solo para a geração seguinte. Afirma o autor que, apesar de

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“certas ousadias impressionistas”, a prosa pré-modernista não rompe, de fato, com os modelos estéticos convencionais - é um movimento que oscila constantemente entre a renovação (mais temática do que formal) e o conservadorismo (estético) 24.

Para autores como Bosi, Antônio Cândido e Eduardo Jardim de Moraes, a radicalização da linguagem e a construção de um projeto substantivo de construção (e atualização) da cultura nacional somente acontece a partir dos modernistas. João Luiz Lafetá, tal como os autores acima citados, assinala que a experimentação estética do Modernismo é revolucionária uma vez que concede, pela primeira vez nas letras brasileiras, relativa autonomia diante das influências não literárias - sintoma do estágio de estruturação do campo literário nacional à época -, e, ao mesmo tempo, propõe uma nova maneira de olhar a cultura brasileira, incorporando os localismos a fim de atingir o universal. Segundo ele, o modernismo retoma e aprofunda uma tradição que vem de Euclides da Cunha, Lima Barreto, Graça Aranha e Monteiro Lobato, ou seja, retoma e aprofunda uma tradição pré-modernista, que é a denúncia do Brasil arcaico (do ponto de vista sócio-político e cultural) (LAFETÁ, 2000: 21 e 27). De acordo com Lafetá, o modernismo leva à cabo seu empreendimento ao longo de duas gerações: a primeira, que poderia ser compreendida entre 1917 e 1930, diz respeito ao “projeto estético”, voltada para a crítica da velha linguagem; a segunda, que vai de 1930 até 1945, refere-se ao “projeto ideológico”, cuja ênfase recai sobre aquilo que podemos chamar de problemas sociais (a consciência do país, os males sociais, a exploração sobre as classes menos favorecidas etc.) 25. A mudança de enfoque do movimento modernista, 24 Ver os dois livros de Alfredo Bosi já citados: História concisa da literatura brasileira e O pré-modernismo.25 É necessário esclarecer que, segundo Lafetá, as duas fases não podem ser pensadas separadamente uma vez que ambas sempre se encontram, no modernismo, entrelaçadas: “O ataque às maneiras de dizer se identifica ao ataque às maneiras de ver (ser, conhecer) de uma época; se é na (e pela) linguagem que os homens externam sua visão de mundo (justificando, explicitando, desvelando, simbolizando ou encobrindo suas relações reais com a natureza e a sociedade) investir contra o falar de um tempo será investir contra o ser desse tempo.” (LAFETÁ, João Luiz (2000) 1930 :A crítica e o modernismo. São Paulo: Livraria Duas Cidades/Editora 34). Ou, noutros termos, apenas uma nova linguagem seria capaz de abrir as portas para um real conhecimento da realidade nacional.

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nas palavras do próprio autor, se deve, muito provavelmente, à vitória estética, o que os desobrigou (os modernistas) de concentrarem todos os seus esforços na experiência formal e se voltarem para novas preocupações 26.

Apesar das observações assaz perspicazes e análises igualmente inspiradas (e inspiradoras), nenhum dos autores há pouco mencionados consegue ir adiante na avaliação (ou reavaliação) crítica do modernismo porque partem de uma história e de uma verdade construídas e estabelecidas pelos próprios modernistas (ou por aqueles intelectuais que possuíam afinidades com o grupo modernista).

Pode-se começar essa reavaliação a partir do termo pré-modernismo (e suas pequenas variações). Os problemas já começam ao designar o criador da expressão: segundo Bosi, tal denominação foi criada por Tristão de Ataíde para designar “o período cultural brasileiro que vai do princípio deste século à Semana de Arte Moderna” (BOSI, s.d.: 11); e de acordo com Sylvia Helena Telarolli de Almeida Leite: “O termo pré-modernismo foi criado por Alceu Amoroso Lima, na Contribuição à história do modernismo. O pré-modernismo (1939), para referir-se à produção literária, do primeiro vintênio do século XX.” (LEITE, 1995: 167). Independente do criador da expressão, ambas possuem o mesmo sentido: o período anterior ao modernismo, que o precede em termos temáticos e formais, ou seja, o período pré-modernista, de acordo com essa definição, se resume a mero anteparo do modernismo. Assim, o pré-modernismo carece de qualquer relevância quando tomado enquanto expressão literária legítima de um contexto sócio-econômico pois ele é pensado e encarado a partir do modernismo - e é justamente essa sua “importância” (entre aspas porque tal importância não existe do ponto de vista da geração modernista): ser o período anterior à geração de 22. Leite anota que a produção cultural do período, ao contrário do que se poderia julgar, é

26 A observação de Lafetá acerca da “vitória estética” dos modernistas é, a meu ver, absolutamente correta. O que tento mostrar é que tal vitória se deve menos à (suposta) qualidade superior da estética modernista do que à disputa em torno de bens simbólicos e critérios de verdade (estabelecidos, é claro, pelos vencedores).

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marcada por uma grande complexidade e heterogeneidade, pontuada por algumas renovações estilísticas e surtos de criatividade (LEITE: 1995, 168). Ao contrário do que a história escrita pela pena modernista mostra, o período anterior também constituiu um momento de ruptura com os moldes poéticos preconizados pela estética art nouveau e representou a primeira tentativa de se conhecer o país a fundo por meio de uma nova linguagem literária, i.e., a narrativa literária, pela primeira vez na história da literatura brasileira, se mostrou explicitamente como uma ferramenta para o conhecimento das condições “reais” do país 27.

Sérgio Miceli afirma que o termo pré-modernismo serviu como “recurso político” da geração posterior, os modernistas, para deslegitimar o movimento como um momento de ruptura.

“A história literária adotou tal expressão com vistas a englobar um conjunto de letrados que, segundo os princípios impostos pela ‘ruptura’ levada a cabo pelos modernistas, se colocariam fora da linhagem estética que a vitória política do Modernismo entronizou como dominante.” (MICELI, 1977: 12).

Esse período, escreve Miceli, não representou, portanto, uma “fase de estagnação da atividade literária (MICELI, 1977: 13). Como já disse, a produção literária do período era intensa e diversificada, mas o que é importante notar - e um pouco mais adiante veremos porque - é que já começava a se desenhar um projeto de autonomia intelectual e de (re)descoberta do país: o repúdio à importação de escolas literárias e artísticas européias, mormente francesa; a importância atribuída ao papel social do escritor, o surgimento de uma literatura militante - nos 27 Não quero afirmar que as reflexões sobre o Brasil empreendidas por literatos começou somente com os escritores pré-modernistas e modernistas. José de Alencar já nos oferece uma quadro da sociedade imperial no Rio de Janeiro; Machado de Assis, igualmente, oferece-nos análises refinadas da sociedade de corte carioca; assim como Manuel Antônio de Almeida mostra-nos o movimento pendular (entre a ordem e a desordem) da capital do país; bem como outros escritores. O que quero dizer é que em nenhum desses homens de letras o projeto estético foi tão explícito, tão presente quanto nos literatos das duas primeiras décadas do século XX.

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termos propostos por Nicolau Sevcenko, uma literatura engajada aos problemas políticos e sociais, que denunciasse os problemas do país e, quem sabe, propusesse também alternativas (SEVCENKO, 1995, especialmente o capítulo II) -; a elaboração de um saber próprio sobre o país, o resgate de nossa raízes; a construção de uma idéia de nação e de um identidade nacional; o rompimento com o idealismo romântico, que servia como um manto que não deixa entrever as reais condições de vida da população brasileira - daí a crítica ao sertanismo de José de Alencar, que construiu um sertanejo que não condizia com aquele homem que habitava os sítios mais recônditos do país.

Do ponto de vista estético-formal, outras tantas inovações também foram tomadas. O contexto sócio-histórico do início do século certamente contribuiu para a revolução estilística que começava a tomar corpo. A incipiente industrialização do país e o aburguesamento de uma parcela da sociedade afetou diretamente o ramo da produção cultural: os meios de comunicação - a imprensa escrita, a publicidade, a expansão do ramo editorial 28 e pouco mais tarde o cinema - ganham imenso fôlego e se desenvolvem de maneira inédita, a todo vapor. As novas instâncias de produção cultural recrutam facilmente os homens de letras, contribuindo enormemente para a profissionalização do escritor e concedendo-lhe uma autonomia até então desconhecida.

“O ingresso maciço dos literatos no jornalismo é por si só uma testemunha muito eloqüente da mudança da condição social do artista. Já iam longe e esquecidos os tempos em que sua sobrevivência era assegurada pela generosidade de uma aristocracia de gostos refinados ou de um sistema de oposição política tão contundente quanto socialmente bem consolidado, pela condescendência de pais de posição ou fartos ou generosos, ou ainda pela possibilidade de uma

28 Veremos, mais adiante, a notável contribuição de Monteiro Lobato para o desenvolvimento da indústria gráfica no país e, conseqüentemente, para a profissionalização do escritor. Além da importância da atuação de Lobato - no ramo editorial e na sua prática literária propriamente dita - para a formação de um habitus literário.

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existência segura com parcos recursos.” (SEVCENKO, 1995: 101).

A incorporação dos homens de letras pelos media da época, principalmente o jornalismo, afetou tanto a produção artística quanto as formas de recepção do texto literário. A escrita passou a incorporar elementos coloquiais da língua, tornando-se mais facilmente inteligível; o ritmo do texto literário tornou-se mais rápido, uma vez que se abandonou o excesso de erudição. Ao mesmo tempo, os textos literários tornaram-se mais curtos, às vezes quase telegráficos, com cadência cinematográfica. A crônica, por exemplo, expressão típica da linguagem jornalística, passa a ser utilizada como forma literária - e podemos citar Lima Barreto como um dos grandes expoentes dessa vertente. Tudo isso porque o próprio leitor se acostumara a tais formas, principalmente devido à leitura dos jornais. E se os literatos quisessem manter ou aumentar seu público leitor 29, teriam que acompanhar as mudanças técnicas incorporando-as em seus próprios textos. O leitor, pois, está virtualmente presente no texto literário; é com ele, diretamente, que boa parte dos escritores da época dialogam: a proximidade entre escritor e leitor é, a partir de então, bem maior 30. Algumas condições sócio-históricas do primeiro vintênio do século XX, sem sombra de dúvida, contribuíram largamente para a formação da figura do leitor: a expansão da imprensa, a ampliação do mercado do livro, a difusão do livro, o aumento da alfabetização (apesar do número tímido de pessoas alfabetizadas) - aliás, esses fatores influem também na própria produção literária. Como bem afirma Flora Süssekind: “É possível rastrear, portanto, via literatura, a tentativa de constituição de um horizonte técnico moderno no país desde fins do século XIX.” (SÜSSEKIND, 1987: 89).

29 Ainda que o número de leitores fosse reduzido dado o elevado índice de analfabetismo que vigorava no país.30 Nas palavras de Regina Zilberman: “No pano literário, a modernização se caracterizou pela tentativa de modificar as relações entre o escritor e o público.” (ZILBERMAN, 1988: 132).

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O léxico pré-modernista, como é possível perceber, é marcado por uma “rica diversidade” : regionalismos, estrangeirismos, gírias e expressões populares, eruditismos, neologismos, tudo isso convive na produção global pré-modernista (LYRA, COUTO & VALENÇA, 1988: 217). Portanto, inúmeros fatos lingüísticos atribuídos intencionalmente aos modernistas já estavam presentes nas duas primeiras décadas que precedem a Semana de Arte Moderna. Porém, afirma Regina Zilberman:

“Comprometida com a modernização, ela [a atividade literária pré-modernista] não pôde encampar a designação de moderna, porque os patrocinadores da Semana de Arta Moderna seqüestraram o rótulo. Tornaram-se [quase todos os escritores dessa geração] apátridas e vivem desde então uma espécie de diáspora histórico-literária (...)” (ZILBERMAN, 1988: 139).

A história e a crítica literárias escritas a partir dos cânones consagrados pelos próprios modernistas lançaram os literatos da geração anterior no limbo, fadados praticamente ao esquecimento, e trataram de instaurar uma nova legitimidade no campo literário: os modernistas arrogaram para si mesmos o título de marco zero de nossa história cultural; em outras palavras, toda a geração modernista, a partir da Semana de 22, proclamou um divisor de águas: antes da Semana, com algumas raríssimas exceções, não existia uma genuína arte brasileira, após a Semana passa haver uma arte “verdadeiramente” nacional a partir da qual será possível resgatar nossas raízes histórico-culturais e erigir uma identidade nacional.

É evidente que o movimento modernista quer negar sua herança, apagar o fato de que tal movimento é parte de um processo que estava em gestação desde, provavelmente, o romantismo. Abolir, portanto, qualquer tipo de ligação com seus antepassados literários, pois se fizesse isso, seria o mesmo que admitir que a originalidade modernista tinha limites e que não poderia ser supervalorizada (como de fato foi), já que era o resultado de um longo processo de maturação estética e

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literária e de formação de um campo específico de produção cultural - o campo literário. O que o modernismo negava é que o entendimento do próprio movimento não estava nele mesmo, mas dependia da busca de seus antecedentes31. Admitir isso é admitir que o modernismo já estava presente em algumas manifestações do início do século, o que, para a consagração da geração de 22 e a instituição de sua legitimidade cultural, era inadmissível 32. Percebe-se que o anti-modernismo era parte integrante e complementar do modernismo. Daí a necessidade de um “parricídio simbólico” (para usar a expressão de Vasda Bonafini Landers).

O modernismo procurou estabelecer uma verdade que se contrapunha, logicamente, a outras verdades, e nessa contenda saiu-se vencedor. O confronto de gerações de escritores faz parte da história da formação do campo literário e pode ser entendida por aquilo que Pierre Bourdieu chamou de “dialética da distinção”: instituições, escolas, obras e artistas que marcaram época são empurrados para o passado pelas novas gerações que procuram ocupar o lugar antes destinado aos artistas consagrados. Conquistar uma posição hegemônica no interior do campo permite escrever a versão oficial da história, impor seus critérios de classificação (e desclassificação) e os padrões de gosto, concede a autoridade necessária para dizer quem é ou não um escritor (ou quem é um “bom” ou “mal” escritor) e até o monopólio do poder de dizer quem está autorizado a dizer quem é escritor (isto é, quem forma a crítica literária digna de crédito) (BOURDIEU: 1996, capítulo 2).

31 Não defendo aqui uma noção de progresso na história, pois não afirmo que o modernismo representa uma evolução em relação ao pré-modernismo. Ao contrário, tento denunciar que a própria expressão pré-modernismo carrega dentro de si tal visão evolucionista da história, pois denota, bem ao gosto dos barões de 22, a precariedade das obras literárias desse período. O que utilizo é uma noção de história enquanto um processo de longa duração.32 Intelectuais como Euclides da Cunha, Graça Aranha, Lima Barreto João Simões Lopes Neto e Monteiro Lobato, antes da geração de 22, se debruçam sobre alguns dos problemas nacionais - a pobreza e dificuldades do homem do sertão, principalmente, mas também as mazelas do meio urbano, duramente tratadas por Lima Barreto - e alçam os primeiros vôos estílisticos, incorporando expressões regionais típicas, a oralidade, lançando mão de uma série de neologismos (destacadamente Monteiro Lobato).

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III. A “vítima”: quem era ela afinal de contas?

A linhagem pré-modernista como um todo tornou-se alvo dos ataques dos arautos da Semana de Arte Moderna. Mas não foi o bastante. Como vimos no início do capítulo, um dos componentes dessa linhagem foi eleito - e não por acaso - como o principal inimigo não só dos modernistas, mas do modernismo, entendido como um legítimo programa para a construção da cultura nacional - penetrando o mais fundo possível na realidade brasileira -, que possibilitaria a independência do país frente à dominação (principalmente cultural) estrangeira e a sua inserção no quadro mundial das nações apoiada noutros pressupostos, a saber, um país livre, independente, desenvolvido, moderno. O inimigo número um do modernismo era Monteiro Lobato, convertido no porta-voz de tudo aquilo que os modernistas mais abominavam, o arcaismo, o atraso, o apego a fórmulas estéticas e científicas ultrapassadas, a submissão cultural.

Mas, resta a pergunta: por que Monteiro Lobato? Por que ele e não outro literato da mesma escola batizada, talvez inapropriadamente, de pré- modernista?

O primeiro motivo parece o mais óbvio e, por isso mesmo, como o único para explicar a tensão criada entre Lobato e os modernistas: não podemos esquecer que foi Lobato quem escreveu e publicou o artigo, já mencionado, a respeito da exposição da musa dos modernistas, Anita Malfatti. E o artigo, ainda que não tenha sido o responsável pelo recuo de Malfatti em relação ao modernismo ou pela crise de criatividade que se abateu sobre a pintora como querem os modernistas, trazia uma dura crítica, não à artista, mas ao estilo por ela empregado:

“Entretanto, seduzida pelas teorias do que ela chama arte moderna, penetrou nos domínios dum impressionismo

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discutibilíssimo, e põe todo o seu talento a serviço duma nova espécie de caricatura.Sejamos sinceros: futurismo, cubismo, impressionismo e tutti quanti não passam de outros tantos ramos da arte caricatural. É a extensão da caricatura a regiões onde não havia até agora penetrado. Caricatura da cor, caricatura da forma - caricatura que não visa, como a primitiva, ressaltar uma idéia cômica, mas sim desnortear, aparvalhar o espectador.” (LOBATO, 1948: 61).

A crítica à exposição de Anita Malfatti, exaustivamente reproduzida e conhecidíssima, marca definitivamente o afastamento entre o escritor e crítico e o grupo modernista pelo fato de ter sido escrita e publicada e ter sido escrita e publicada por quem foi: Monteiro Lobato. Talvez, se essas linhas tivessem sido rabiscadas por qualquer outro autor o impacto teria sido muito menor e os modernistas nem sequer teriam prestado atenção em tal episódio. Contudo, o autor não era um qualquer. Era justamente Lobato, que segundo Cassiano Nunes:

“Talvez nenhum outro escritor patrício tenha conseguido popularidade tão grande como esse ilustre paulista, e esta repercussão foi obtida em uma época em que os meios de comunicação não estavam desenvolvidos. Foi principalmente através de jornais e livros que o nome de Monteiro Lobato se espalhou pelo Brasil inteiro e até, um pouco, pelo exterior.” (NUNES, 2000:5).

Lobato, à época da publicação do referido artigo, já era um escritor conhecido e com certo renome no meio literário principalmente em virtude de sua produção para o jornal O Estado de S. Paulo e a Revista do Brasil, publicação ligada ao mesmo jornal. Portanto, o impacto e os desdobramentos do que Lobato escrevia eram bem maiores do que se publicados por outros escritores. A polêmica criada por Monteiro Lobato foi tamanha que outro jovem escritor, Oswald de

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Andrade, um dos líderes do modernismo ao lado de Mário de Andrade, elogia o modernismo de Anita Malfatti noutro periódico, o Jornal do Comércio. A respeito do artigo de Lobato vale a pena tecer algumas considerações que serão retomadas adiante. A partir de sua crítica à Malfatti, Monteiro Lobato ficou estigmatizado como um “conservador”. No entanto, o conservadorismo lobatiano está associado à sua noção de arte: de um lado, Lobato está muito próximo da corrente naturalista no interior da pintura, que apregoa a fidelidade ao mundo que circunda o artista, que, por sua vez, deve ser capaz de ver “normalmente as coisas”; por outro lado, Monteiro Lobato resiste aos movimentos artísticos da vanguarda européia, pois teme sua simples cópia, sua mera transposição para um universo cultural bastante diverso. A atitude “conservadora” de Lobato, destarte, remete-nos para uma posição moderna (e modernista) acerca das artes, a saber, o respeito pelas “coisas da terra”, a busca de uma arte genuinamente nacional, que agregue elementos de nossa cultura, de nossa gente e de nossa natureza; a defesa da individualidade artística, que somente se manifestará se o artista reconhecer a individualidade étnica e cultural do país. Lobato não é apenas um conservador, mas um intelectual que está a meio caminho entre duas épocas, situado entre dois momentos artístico-culturais distintos.

Mas a fama de Monteiro Lobato começou a ser construída alguns anos antes, no final de 1914, quando o jovem fazendeiro enviou para a seção “Queixas e reclamações” d’ O Estado uma bombástica carta intitulada “Velha Praga”, na qual criticava o tradicional e péssimo hábito caipira de tocar fogo no mato, que devastava completamente o solo e o tornava improdutivo. Um mês depois, no mesmo jornal, Lobato envia outro impiedoso artigo, “Urupês”. Nele, o insatisfeito fazendeiro do Vale do Paraíba expõe aquele que se tornaria - ao lado da boneca Emília - uma de suas maiores criações: o Jeca tatu (cujos contornos já tinham sido tracejados no artigo anterior). Jeca Tatu, o anti-herói que desmonta a figura romântica idealizada pelo indianismo e pelo sertanismo de José de Alencar, o golpe firme contra o clima ufanista de

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nossa versão da Belle Époque, a denúncia da situação do interior do país e das condições de vida de sua população:

“O caboclo é soturno.Não canta senão rezas lúgubres.Não dança senão o cateretê aladainhado.Não esculpe o cabo da faca, como o cabila.Não compõe sua canção, como o felá do Egito.No meio da natureza brasílica, tão rica de formas e cores, onde os ipês floridos derramam feitiços no ambiente e a infolhescência dos cedros, às primeiras chuvas de setembro, abre a dança do tangarás; onde há abelhas de sol, esmeraldas vivas, cigarras, sabiás, luz, cor, perfume, vida dionisíaca em escachôo permanente, o caboclo é o sombrio urupê de pau podre a modorrar silencioso no recesso das grotas.Só ele não fala, não canta, não ri, não ama.Só ele, no meio de tanta vida, não vive...” (LOBATO, 1994: 176).

A partir dos artigos surgem inúmeros convites para colaborar em jornais e revistas, aumentando as possibilidades de trabalho na capital. Após a venda da fazenda Buquira e já instalado em São Paulo, Lobato continua publicando artigos em torno de problemas nacionais, estimulando calorosos debates sobre o país, e vê crescer sua preocupação em desvendar a realidade de um Brasil desconhecido para boa parte da própria população e que a intelectualidade, segundo Lobato, teimava em dar as costas (AZEVEDO, CAMARGOS & SACCHETTA, 1997: 63).

Boa parte dos artigos publicados por Lobato nesse período versavam sobre a arte, mormente a literatura e a pintura, posteriormente reunidos no livro Idéias de Jeca Tatu, cuja primeira edição é de 1919. Há um fio condutor que aproxima os quase vinte artigos sobre arte escritos por Lobato e presentes em Idéias: a defesa

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de um “estilo propriamente brasileiro” e sua aversão por “estrangeirismos” 33. Nos textos “A criação do estilo”, “A questão do estilo”e “Ainda o estilo”, fica patente a proposta artística de Lobato, que mais tarde o autor incorporaria nos seus contos e literatura infantil: ele defende a criação de um “estilo próprio no Brasil”, estilo este que remete às nossas origens, produto e produtora de nossa identidade. A busca de nossas raízes, em Lobato, está intimamente associada à observação e à influência do meio que nos rodeia. Abraçar o modernismo, para Monteiro Lobato, significa reconhecer e assumir nossa “mestiçagem”, o caráter híbrido de nossa cultura e rejeitar as influências estrangeiras, a simples cópia, o art nouveau com os seus excessos ornamentais:

“Estilo é a feição peculiar das coisas. Um modo de ser inconfundível. A fisionomia. A cara. (LOBATO, 1948: 24).“Nosso estilo deve ser decorrente natural do estilo com que os avós nos dotaram. Sempre vivo, sempre em função do meio, se quer fugir à pecha de rastacuerismo deve retomar a linha do passado e desenvolvê-la `a luz da estesia moderna.“O céu azul, esta nossa luz crua, o português, o negro, o índio, e o italiano, a mestiçagem,a voz dos quatro sangues, o modernismo das nossas idéias, a Light, o sorveteiro, o auto, a herma do João Mendes, o Congresso, o Gazeau, tudo - tudo berrará contra o anacronismo de pedra.”(Idem, 1948: 33 e 35).Em “Estética Oficial”, texto presente no mesmo livro, Lobato

discorre sobre a importância de uma estética nacional, baseada no “temperamento, cor e vida”, isto é, “o homem, o meio e o momento” (p. 45), ou seja, uma arte voltada para as coisas do Brasil, sua gente, sua flora e fauna, seus costumes e tradições. Segundo Lobato, “(...) o artista cresce à medida que se nacionaliza” (p. 45). O artista brasileiro, 33 Logo no prefácio do livro, incorporado desde a primeira edição, tais palavras de ordem (se é que posso usar essa expressão) evidenciam o objetivo do autor e denunciam qual o sentido que Lobato atribui à obra.

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escreve o autor, deve se voltar para o interior do país, para o nosso sertão, onde reside o “verdadeiro” Brasil, e se afastar do litoral, região influenciada pelos modismos europeus, porta de entrada dos “francesismos” que se alastram pelo país - daí o elogio à obra Os Sertões, de Euclides da Cunha (ao lado de Lima Barreto, dois dos autores mais admirados por Monteiro Lobato).

E no artigo “Arte brasileira”, Monteiro Lobato enumera algumas características essenciais para a construção de uma arte genuinamente brasileira:1) Retratar fielmente o mundo que nos circunda - nota-se aqui o viés

naturalista-realista de Lobato;2) desenvolver um estilo próprio e preocupado com nossas gentes e

coisas e resistir às influências européias, especialmente os francesismos - “O que nos mata é o francês.”;

3) num movimento de mão-dupla, a partir do momento em que o artista se preocupar com os temas nacionais, ele conquistará o público, que, por sua vez, o reconhecerá como artista - “Seu editor é o povo.”;

4) a coragem de o artista assumir a sua individualidade, que só pode se manifestar a partir do instante em que reconhecer sua nacionalidade: “Ai! Quando nos virá a esplêndida coragem de sermos nós mesmos, como o francês tem coragem de ser francês, e o inglês a de ser inglês, e o alemão a de ser alemão?”(Idem, 1948: 191-196).

Notamos, pois, em Lobato, uma antecipação de alguns motes modernistas e que o tornou, paradoxalmente, um dos adversários destes últimos. Se o modernismo se pretendia um divisor de águas na história cultural do país, não era possível reconhecer nos escritores da geração anterior as raízes da Semana de 1922.

Todos esses artigos fizeram de Lobato um autor e crítico conhecido e respeitado nos círculos intelectuais de São Paulo, o que

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fazia dele um adversário de certa envergadura para os modernistas. Chiarelli acena para a possibilidade de que se Lobato tivesse revisto seus posicionamentos para aderir ao grupo modernista 34, provavelmente o afastamento entre ambos não teria ocorrido. Mas como não foi possível arregimentar o criador de Jeca Tatu, a estratégia modernista foi a de desautorizá-lo como crítico de arte taxando-o de “pintor frustrado” e responsabilizá-lo pelo recuo de Anita Malfatti em relação ao modernismo e seu declínio artístico:

“Para os modernistas históricos, empenhados na transformação do ambiente artístico-cultural de São Paulo e do Brasil, não seria interessante reconhecer que aquela que era considerada a primeira artista moderna brasileira já se desviara desse caminho antes de protagonizar a mostra de 1917, optando por uma produção mais convencional. Reconhecer tal situação era evidenciar uma contradição interna no movimento, capaz de obstruir a construção de sua história ideal. Era demonstrar uma fragilidade passível de ser usada pelos opositores.” (CHIARELLI, 1995: 27).

Como Lobato não reviu seus posicionamentos, aponta Chiarelli, foi muito oportuna a possibilidade de atribuir-lhe a responsabilidade pelo recuo de Malfatti, pois, a um só tempo, era possível acentuar o anti-modernismo lobatiano e evitar que Anita Malfatti fosse vista como uma “artista moderna arrependida”, transformando-a na mártir do movimento.

A fama de “pintor frustrado” imputada a Monteiro Lobato pelos modernistas, como Menotti Del Picchia - que o acusou de “impiedoso, injusto, cruel, iconoclasta mau pintor” - e Mário de Andrade, foi incansavelmente reproduzida até se tornar um “fato”, um “dado”, e como tal, inquestionável. Sete anos após a publicação do artigo de

34 Adesão perfeitamente possível dada a proximidade temática e até formal (no que diz respeito à escrita literária, como veremos adiante) entre Lobato e os modernistas.

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Lobato sobre a exposição de Anita Malfatti, ainda escreve Mário de Andrade:

“[...] Dentre as críticas aparecidas uma ficou inesquecível pela influência que teve sobre o espírito da artista. Assinava a descompostura um nome feito: Monteiro Lobato. ‘Paranóia ou Mistificação’, chamava-se a tolice, depois eternizada pelo bilioso. E que dor me deu o artigo [...]” (ANDRADE, Mário de apud CHIARELLI, 1995: 26).

Os historiadores do modernismo 35, preocupados, em sua maioria, em construir aquela história ideal do modernismo a que me referi anteriormente, trataram de dar continuidade ao trabalho iniciado pelos modernistas e não pararam de alimentar a tese de “pintor frustrado” e, por conseguinte, crítico senão medíocre pelo menos suspeito que era Monteiro Lobato. Mário da Silva Brito, por exemplo, no livro História do modernismo Brasileiro, prossegue desautorizando Lobato como crítico, não só porque Lobato era um pintor sem êxito e por isso mesmo ressentido, mas também, segundo Brito, por pressão do próprio jornal no qual Lobato trabalhava.

Ao reavaliar parte da história do modernismo escrita pelos modernistas, Chiarelli observa que: primeiro, seria necessário discutir quais as razões apresentadas pela própria Malfatti para entender porque a artista recuara da modernidade; segundo, Lobato não era e em nenhum momento pretendeu ser um escritor profissional, portanto, era descabido apontá-lo como um “pintor frustrado”; e, por fim, Monteiro Lobato era o “mais capacitado e original” dos críticos de arte paulistanos da época (CHIARELLI, 1995: cap. 1).

Os apontamentos de Chiarelli merecem apenas uma consideração sociológica: independente de Lobato querer ser ou não um pintor profissional ou de ser ou não um crítico “indubitavelmente” capaz, o que importa perceber é que Lobato já ocupava um certa posição de

35 Uma sociologia da crítica literária igualmente responsável pela vitória avassaladora dos modernistas será proposta ainda neste capítulo.

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destaque no campo intelectual e possuía, portanto, uma dose de capital simbólico que poderia representar uma ameaça às pretensões modernistas. Além do que, vale lembrar, Lobato se avizinhava dos modernistas em várias questões estéticas, o que para os artistas da geração da Semana era inconcebível, uma vez que o escritor das famosas sobrancelhas taturânicas tinha, ao mesmo tempo, um pé fincado na geração anterior, marcada por um regionalismo de coloração naturalista que os modernistas repudiavam 36.

Motivado pelo sucesso de seus artigos publicados na imprensa e na Revista do Brasil - a despeito do alarde modernista - e preocupado com a valorização da cultura nacional, Lobato inicia uma empreitada que, ao final, vai consolidar sua posição hegemônica no campo literário brasileiro e acirrar ainda mais a disputa com os modernistas.

No dia 28 de janeiro de 1917, na edição vespertina de O Estado de S. Paulo (conhecida como Estadinho), Lobato comunica que se iniciaria, a partir daquela data, um inquérito sobre o Saci. Todos que quisessem participar deveriam enviar suas cartas para o jornal respondendo a três perguntas:“1. Sobre a sua concepção pessoal do Saci; como a recebeu na sua infância; de quem a recebeu; que papel representou tal crendice na sua vida, etc.;2. Qual a forma atual da crendice na zona em que reside;3. Que histórias e casos interessantes, ‘passados ou ouvidos’, sabe a

respeito do Saci.” (LOBATO apud AZEVEDO; CAMARGOS & SACCHETTA, 1997: 66).

A coleta de dados elaborada por Lobato, naquela época, já era algo inédito entre os estudiosos do folclore: o uso de questionários para investigar um fenômeno. O sucesso é inesperadamente estrondoso e ondas de cartas chegam de Minas Gerais, Rio de Janeiro e de várias

36 Vale a pena reproduzir uma passagem de Chiarelli a respeito do movimento modernista em São Paulo: “Pode-se inclusive pensar (...) que a causa do surgimento do Modernismo em São Paulo esteja justamente nessa tradição que o antecedeu. O Modernismo em São Paulo pode ser encarado como a ampliação de um debate artístico já instaurado na cidade nos anos que antecederam a semana.” (CHIARELLI, 1995: 64).

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regiões paulistas. Animado com a receptividade de sua enquete, Lobato organiza um concurso de pintura cujo tema, como não poderia deixar de ser, é o Saci. A repercussão é mais uma vez positiva. Lobato, então, decide publicar o resultado de sua pesquisa sob a forma de livro, no início de 1918, e do qual cuidou do “prefácio, prólogo, proêmio, dedicatória, notas, epílogo.” (CAVALHEIRO, 1962: 153). A estréia literária de Lobato se dá num livro não assinado, organizado, como o próprio Lobato se definiu na ocasião, por um “demonólogo amador”. E não poderia haver estréia melhor: a primeira edição foi de 5.300 exemplares e a segunda edição sai dois meses depois, denotando o sucesso de vendas do inquérito sobre o Saci.

O livro O Sacy Perêrê - resultado de um inquerito, ainda que um produto anônimo da lavra de Monteiro Lobato, é de suma importância para o direcionamento de sua carreira. E por dois motivos: já está presente nesse livro o “projeto criador” de Lobato, isto é, todas as diretrizes que orientarão seu projeto literário 37: a valorização de nossas tradições culturais (como o folclore, por exemplo), da cultura popular, da oralidade, o combate à imitação das modas culturais européias, a exaltação nacionalista (que não foi ufanista em nenhum momento da carreira de Lobato) 38, a relação estreita com o leitor. Poder-se-ia argumentar que todos esses elementos estavam presentes nos artigos que Lobato publicara em alguns periódicos de São Paulo. É verdade. Mas no inquérito sobre o Saci era a primeira vez que Lobato enfeixava todas suas idéias sobre arte e literatura num livro. Anônimo ou não, era o primeiro livro de Lobato, era o início de sua carreira literária e o primeiro passo de seu projeto literário. E o segundo motivo que torna tal livro tão importante na vida literária de Lobato é seu sucesso de

37 Veremos no capítulo três que o projeto literário de Lobato se desdobra em duas frentes de atuação, a escrita literária e a atividade editorial; e, por sinal, ambas já estão anunciadas pelos frutos que o livro sobre o Saci rendeu.38 “Significativamente, por meio de um molecote negro, de uma só perna, desprezado pelas elites e até então esquecido por estudiosos, Monteiro Lobato questiona o conceito de civilização a la francesa, que a burguesia brasileira insistia em copiar. ‘Por várias semanas alvorotaste meio mundo, oh infernal maroto, e desviaste a nossa atenção para quadro mais ameno que o trucidar dos povos. Bendito sejas!’” (AZEVEDO; CAMARGOS & SACCHETTA, 1997: 74).

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livraria, que o leva a considerar seriamente, segundo Edgar Cavalheiro (seu maior biógrafo), a possibilidade de se transformar em editor.

E a oportunidade não tarda a chegar. No mesmo ano do lançamento de seu primeiro livro, Lobato é convidado para dirigir a Revista do Brasil, contudo, em lugar da direção, propõe a compra da revista, concretizada em junho de 1918 39 . A Revista do Brasil 40 já gozava de prestígio antes de ser adquirida por Lobato, pois contava com vários intelectuais renomados dentre seus colaboradores; porém, era deficitária. Sob o controle de Lobato a revista não só vai manter tal prestígio e sua linha editorial (o nacionalismo), como vai sair do vermelho. As habilidosas estratégias de marketing elaboradas por Lobato aumentam consideravelmente o número de assinaturas da revista e salvam-na da falência:

“A Revista do Brasil vai bem. Quando me fiquei com ela, entravam em média 12 assinaturas por mês. Hoje entra isso por dia. Nesta primeira quinzena de agosto registrei 150 assinantes novos. Meu processo é obter em cada cidade o endereço das pessoas que lêem e enviar a cada uma o prospecto da revista, com uma carta direta e mais coisas - iscas. E atiço em cima o agente local. Estou a operar sistematicamente pelo país inteiro.” (LOBATO, 1955: 179-180).

Outro artifício usado por Monteiro Lobato é a inserção freqüente de pequenos anúncios sobre a Revista nas contracapas dos livros editados justamente sob a chancela da Revista do Brasil, além da propaganda feita nas páginas de O Estado de S.Paulo - que também fornecia o serviço gráfico para a edição da revista e dos livros.

39 Em carta endereçada ao seu epistolar amigo, Godofredo Rangel, em 4 de novembro de 1917, Lobato já aventava a hipótese de compra da revista: “Lá pela Revista do Brasil tramam coisas e esperam deliberação da assembléia dos acionistas. Querem que eu substitua o Plinio na direção; mas minha idéia é substituir-me à assembléia, comprando aquilo. Revista sem comando único não vai.” (LOBATO, 1955: 159).40 Vale lembrar que a estréia de Monteiro Lobato acontece no terceiro número da revista com o conto “A vingança da peroba” .

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Apesar da preocupação de Lobato com os aspectos financeiros de sua nova atividade, ele estabeleceu uma política editorial corajosa e inovadora para os moldes da época. Além das ousadas estratégias propagandísticas, Lobato fazia questão de frisar que só acolheria e editaria “os novos”, ou seja, jovens escritores desconhecidos mas talentosos - mas, efetivamente, Lobato não deixou de editar alguns literatos já consagrados, porém, a ênfase era realmente abrir espaço ao chamados “novos”-, que apresentem em suas obras a coragem de romper com os francesismos e inaugurar uma estética nacional, cujos livros tratassem do mergulho na cultura brasileira, pesquisando-a e questionado-a e descobrindo-a; os intelectuais reunidos em torno da Revista do Brasil, enfim, pretendiam construir a nacionalidade brasileira a partir da escrita e da palavra. Despertar a consciência nacional foi a tônica da revista desde seu lançamento, encampado por Júlio de Mesquita, no dia 25 de janeiro de 1916:

“(...) a Revista do Brasil pretendia ser o instrumento da difusão não só de valores culturais e morais, como também de um conjunto de atributos particulares e únicos que permitissem a todos os membros da nação brasileira se reconhecerem, construindo, assim, sua identidade política.“(...) Podemos concluir que a Revista do Brasil pretendia buscar - para se tornar o cerne da definição da nacionalidade - os atributos originais das classes populares, os quais, projetados como ontológicos, definiriam a unidade nacional.” (CAMPOS: 1986: 24-25).

A filosofia da revista foi completamente abraçada por Lobato e orientou a escolha dos artigos a serem publicados pela revista e dos escritores a serem editados. Aliás, a edição de livros, que começou como uma atividade subsidiária da Revista do Brasil, tornou-se a principal atividade de Lobato. E é como proprietário da Revista e editor de livros que Monteiro Lobato, motivado igualmente pelos sucessivos

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sucessos, lança, oficialmente 41, seu primeiro livro: Urupês (que deveria chamar-se, num primeiro momento, Doze histórias trágicas, mas que por sugestão de seu amigo Artur Neiva foi rebatizado).

O resultado é mais um estrondoso êxito na carreira literária de Lobato. A primeira edição de Urupês, de mil exemplares, esgota-se em um mês, bem como as três edições seguintes, com tiragens superiores, saídas no intervalo de quase um ano, entre meados de 1918 e 1919, totalizando a fantástica marca de 11.000 exemplares, um verdadeiro recorde para o mercado editorial brasileiro do primeiro vintênio do século XX 42. No comando da Revista do Brasil, Lobato lançou outros livros de sua autoria: Problema Vital (1918), Cidades mortas (1919), Idéias de Jeca Tatu (1919).

A Revista do Brasil tornou-se a base de uma casa editora. O volume e o sucesso dos negócios era tamanho que Lobato, em 1920, junto com um sócio, Octalles Marcondes Ferreira, funda a Monteiro Lobato & Cia, que, rapidamente, torna-se a principal editora do país:

“Em meados de 1921 a Monteiro Lobato & Cia. já conta com uma rede de mais de trezentos vendedores em expansão permanente, o que permite levar as obras aos pontos mais remotos do país, alavancando extraordinariamente sua saída. Como conseqüência, as tiragens aumentaram, alcançando níveis nunca antes atingidos. Outra novidade foi distribuir, a título de divulgação, exemplares para a pequena imprensa das cidades do interior onde dispunham de representantes. Com custo baixíssimo, esta medida trazia incremento considerável na vendagem de cada edição.” (AZEVEDO; CAMARGOS & SACCHETTA, 1997: 130).

41 Oficialmente porque agora, ao contrário do que acontecera com o inquérito sobre o Saci, seu nome aparece como o autor do livro.42 Esse números espantam até mesmo se considerarmos o mercado editorial nacional contemporâneo.

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Tanto a revista quanto a editora de Lobato tornaram-se o centro da atividade intelectual brasileira. Por lá passaram senão todos pelo menos a maioria dos grandes nomes da intelligentsia 43 brasileira, dos mais variados matizes. O mensário, por exemplo, reuniu personalidades da geração de 1870 (Rui Barbosa), escritores do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (como Taunay e Roquette Pinto), pensadores conservadores (cujo nome mais representativo é Oliveira Vianna), pensadores liberais (Mário Pinto Serva e Pedro Lessa), nomes pertencentes ao renascimento católico (Jackson de Figueiredo), os médicos envolvidos com os problemas sanitários do país (Belisário Penna, Arthur Neiva), defensores da eugenia (Renato Kehl), homens da Academia Brasileira de Letras (Oliveira Lima, Mário de Alencar) e os modernistas (Mário e Oswald de Andrade, Guilherme de Almeida, Sérgio Milliet) (LUCA, 1999: Unesp). E alguns dos nomes que constam no catálogo da editora são: Alphonsus de Guimarães, Vicente de Carvalho, Menotti Del Picchia, Francisca Júlia, Ribeiro Couto, Léo vaz, Valdomiro Silveira, Godofredo Rangel, Humberto de Campos, Oswald de Andrade, Lima Barreto, Afonso Schmidt, Júlio Ribeiro, Graça Aranha, entre outros (NUNES, 2000: 14) 44.

Sociologicamente, qual possível análise podemos fazer de todos esses fatores? Quais conseqüências podemos deduzir a partir desses acontecimentos na vida literária de Monteiro Lobato? Como sua posição no campo literário foi afetada?

43 Um instigante artigo acerca da formação de nossa intelligentsia é : MARTINS, Luciano. “A gênese de uma intelligentsia: os intelectuais e a política no Brasil - 1920 a 1940.” In Revista Brasileira de Ciências Sociais, no 4, vol 2, jun. 1987.44 Além do próprio Monteiro Lobato, que publicou: Negrinha (1920), A onda verde (1921), Mundo da lua (1923), O macaco que se fez homem (1923), Jeca Tatuzinho (1924) (LAJOLO, 1981: 11).

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IV. Os duelistas

A posição de destaque ocupada por Monteiro Lobato no período compreendido basicamente entre 1914 - (data da publicação do artigo “Velha Praga” n’O Estado de S. Paulo) e 1925 (ano em que ocorre a falência de sua editora) não poderia jamais ser conquistada sem tensões, rusgas e conflitos com outros agentes e instituições sociais igualmente empenhados em arrebatar a hegemonia de um campo literário em formação.

Ao lado do duelo travado com os modernistas Lobato se enreda noutro conflito, com a Academia Brasileira de Letras, que começa a se esboçar em 1919 e terá desdobramentos futuros, perceptíveis em duas outras contendas. Edgar Cavalheiro, seu maio biógrafo escreve:

“A primeira vez que lhe falam em tornar-se imortal, é em 1919, mas então responde que não tem tempo de pensar nisso, ‘apesar das sugestões havidas’. Concorda com a opinião de Vicente de Carvalho, de que não possui feitio acadêmico.” (CAVALHEIRO, 1962: 185).

É possível interpretar sociologicamente porque cogitam o nome de Lobato para a Academia e porque o mesmo afirma não possuir “feitio acadêmico”. A presença de Monteiro Lobato na Academia Brasileira de Letras seria uma conseqüência lógica para um escritor já tão prestigiado, em 1919, como ele era . Representaria a coroação final concedida por uma importante instituição do campo literário; aliás, a Academia era, por excelência, a instituição responsável pelo prestígio e pela consagração dos literatos: cabia a ela selecionar aqueles poucos escritores dignos, segundo os critérios - nem sempre estéticos - elaborados pela própria Academia, de ingressar no rol dos imortais, cabendo-lhe, portanto, a “tarefa de oficializar uma determinada história da literatura brasileira, e com ela uma tradução para as nossas letras”

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(EL FAR, 1997: 108). Lobato teria, definitivamente, seu nome inscrito na história literária do país como grande escritor 45, impossível de ser apagado já que imortal. A chancela da Academia Brasileira de Letras, sem sombra de dúvida, seria o ápice de uma carreira já reconhecida por parte considerável da intelectualidade da época e por um imenso público.

Mas, num primeiro momento, Lobato rejeita essa idéia ao afirmar que não possuía “feitio acadêmico”. Mas o que é esse “feitio acadêmico”? Para os críticos entusiastas de Lobato, o escritor vale-paraíbano era dotado de tal espírito de independência que nunca haveria de se dobrar às regras de qualquer agremiação. A respeito da recusa de Lobato em participar da Academia, escreve Landers enfatizando o gosto do escritor pela liberdade: “Para o seu espírito ‘libérrimo’ este tipo de compromisso representava as ‘coleiras’ de que tentou livrar-se por toda a vida.” (LANDERS, 1988: 27). Cassiano Nunes e Edgard Cavalheiro também sublinham o individualismo libertário de Monteiro Lobato, que, segundo palavras do próprio escritor, nasceu a partir da leitura das obras do filósofo alemão Nietzsche:

“Dum banho em Nietzsche saímos lavados de todas as cracas vindas do mundo exterior e que nos desnaturam a individualidade. Da obra de Spencer saímos spencerianos; da de Kant saímos kantistas; da de Comte saímos comtistas - da de Nietzsche saímos tremendamente nós mesmos. O meio de segui-lo é seguir-nos. ‘Queres seguir-me? Segue-te! Quem já disse coisa maior? Nietzsche é potassa cáustica. Tira todas as gafeiras.” (Carta de 24/08/1904 in LOBATO, 1951: 66, vol. I).

45 É claro que o simples fato de pertencer à Academia Brasileira de Letras não torna automaticamente um literato um grande escritor, seja para a crítica especializada ou para os editores, por exemplo, mas torna-o um grande escritor segundo os critérios de representação da própria Academia. O que está em jogo é como os acadêmicos vêem a si mesmos, e que denuncia como eles gostariam de ser vistos pelos não-acadêmicos.

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Do ponto de vista sociológico, essa interpretação oferecida pelos defensores de Lobato e por ele próprio, no fundo, mais esconde do que explica, e chega até mesmo parecer excessivamente ingênua. Para explicar a recusa de Monteiro Lobato em concorrer a uma cadeira na Academia, creio ser necessário, antes, dissertar sobre seu papel no campo literário nacional até aquele momento.

A Academia brasileira de Letras, inaugurada em 20 de julho de 1897, certamente contribuiu para a formação de nosso campo literário ao assegurar (ou pelo menos possibilitar) aos “artistas da palavra escrita” o reconhecimento público, maiores oportunidades de publicação, melhores remunerações e maior visibilidade social; condições estas que iniciariam o processo de profissionalização do escritor no Brasil. Mas, além do reconhecimento da profissão literária, a Academia reservava para si a tarefa de preservar a “pureza e o prestígio da língua portuguesa”(EL FAR, 1997: 31) e de formar o gosto literário a partir da fundação de certos cânones; além, é claro, do monopólio de classificação dos literatos 46. A missão que os acadêmicos arrogavam, aponta Alessandra El Far, era o de zelar pela língua e literatura brasileiras:

“Já que a literatura desempenhava uma função central neste amplo processo de formação da nacionalidade brasileira, o primeiro passo a ser dado era a instituição formal de uma unidade lingüística e literária, para que, por meio dela, fosse possível abordar a realidade deste país. Era preciso, então, regulamentar a ortografia brasileira e semear o desenvolvimento das letras no Brasil.” (EL FAR, 1998: 60).

Ao afirmar que não possuía “feitio acadêmico” Lobato, mais do que professar sua liberdade individual, negava os critérios de escolha e

46 Para uma análise mais minuciosa da Academia Brasileira de Letras, ver EL FAR, Alessandra. A encenação da imortalidade - uma análise da Academia Brasileira Letras nos primeiros anos da República (1897-1924). Dissertação de mestrado, Departamento de Antropologia Social, USP, São Paulo, 1997.

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classificação elaborados pela Academia, bem como os padrões estéticos por ela advogados. A Academia representava o passadismo literário, a erudição exacerbada e sem sentido que conduzia ao “excesso de literatura”(daí, segundo Lobato, a necessidade de “desliteralizar a literatura”), o apego às rígidas regras gramaticais que, de acordo com o escritor, eram um entrave para a composição literária (o que ele chamava de “gramatiquice”) pois não incorporava a fala cotidiana (que para Lobato representava a verdadeira língua nacional) na literatura. Muitos são os textos e os trechos em que Monteiro Lobato critica agudamente a sedução que a gramática exerce sobre literatos e intelectuais, por isso selecionei apenas dois excertos de cartas enviadas ao seu amigo literário Godofredo Rangel, que além de mostrar o distanciamento de Lobato em relação ao rigor gramatical também exibem toda a ironia que sua pena derramava: “Ficou-me da ‘bomba’47

que levei, e da papagueação, uma revolta surda contra gramática e gramáticos; e uma certeza: a gramática fará letrudos, não faz escritores.” ( Carta de 30/09/1915 in LOBATO, 1951: 49, vol II); e:

“Se por ‘saber português’ entendes conhecer por miúdo os bastidores da Gramática e a intrigalhada toda dos pronomes que vem antes ou depois, concordo com o que dizes na carta: um burro bem arreado de regras será eminente. Mas para mim ‘saber português’ é outra coisa: é ter aquele doigté do Camilo, ou a magnificente allure processional do Ramalho, ou a sublime gagueira do Machado de Assis. Aqui em S. Paulo o brontosauro da gramática chama-se Alvaro Guerra, um homem que anda pela rua derrubando regrinhas como os fumantes derrubam pontas de cigarro. As regras desse homem tremendo, quando vêm ao bico da pena dos escritores, matam, como unhas matam pulgas, tudo o que é beleza e novidade de expressão - tudo que é lindo mas a Gramática não quer.

47 A “bomba” a qual Lobato se refere diz respeito à sua reprovação no exame de português para a admissão na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em 1895.

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Outro gramaticão daqui escreveu um enorme tratado sobre a Crase; e consta que o Sílvio de Almeida tem 900 páginas inéditas sobre o Til. O livro vai chamar-se: ‘Do Til’... (Carta de 28/12/1917 In LOBATO, 1951: 168-169, vol.II).

A proposta estética de Lobato está intimamente associada ao seu projeto literário: para ele, a literatura (e a arte em geral) permitiria um mergulho na realidade nacional e tornaria possível criar uma verdadeira consciência sobre o país, com todas as suas mazelas e potencialidades. Portanto, incorporar a linguagem coloquial, os regionalismos, tornar nosso folclore um tema literário e artístico significava conhecer a fundo o Brasil. Essa proposta não era exclusiva de Lobato, mas de todo um círculo de intelectuais militantes denominados acertadamente de “mosqueteiros” por Nicolau Sevcenko, que lutavam arduamente para criar um saber próprio sobre o Brasil 48 O projeto literário lobatiano respondia em larga medida a uma demanda social e histórica que a Academia Brasileira de Letras (ABL) não era, naquele momento, capaz de responder. E não somente era incapaz de responder como representava, aos olhos dos escritores inconformados e reformistas, um grande obstáculo a ser superado, uma vez que a Academia e tudo o que ela preconizava era encarado como arcaico e irremediavelmente ligado ao passado 49. Defender uma certa pureza da língua portuguesa praticada no Brasil significava, naquele contexto sócio-histórico, negar a possibilidade de se conhecer o país a fundo e condená-lo à falta de identidade; um imenso território sem face, um país que não era nação 50.

48 Sobre o caráter militante e social da literatura no período ver : SEVCENKO, Nicolau (1995). Literatura como missão. Tensões sociais e criação cultural na primeira república. São Paulo: Brasiliense.49 A reforma ortográfica da língua portuguesa no Brasil, finalizada em 1907, empreendida pela Academia só denota o quanto ela pretendia ser a grande e legítima guardiã do idioma nacional.50 Ao se “demitir” da Academia em 1924, Graça Aranha declarava o equívoco que foi a criação da ABL, instituição que, segundo ele, estava voltada para a manutenção de uma tradição literária que jamais havia existido e que tomara a instituição francesa como modelo, evidenciando que a Academia não tinha qualquer raíz na cultura nacional. Em 1919, pode-se dizer que o sentimento em relação à ABL já era o mesmo.

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Não é despropositada a hipótese de que em tal contexto de revisão da primeira república e da cobrança das promessas enunciadas no seu florescer e não cumpridas a Academia não permanecesse incólume, dadas as estreitas ligações que a ABL mantinha com o Estado republicano, que atuava como uma espécie de mecenas e fornecia respaldo econômico para a Academia 51. O empenho de alguns governos republicanos a fim de garantir a sobrevivência da ABL era tão visível que é bem provável que a Academia fosse vista quase como um símbolo republicano, ou melhor, como um símbolo do fracasso da primeira república.

Todos esses elementos sócio-históricos foram retraduzidos de acordo com a dinâmica do campo literário nacional, que apesar de incipiente possuía suas próprias regras e critérios, o que acabava por criar um terreno propício para o embate que se deu entre a ABL e Monteiro Lobato em busca da hegemonia. E o reconhecimento obtido por Lobato era tanto que ele podia prescindir dos critérios de classificação adotados pela ABL para assegurar sua consagração. Não podemos esquecer que em 1919 Lobato era escritor aclamado e um editor igualmente renomado, que catalisava em torno de sua casa editora e da Revista do Brasil intelectuais altamente respeitados (alguns deles acadêmicos). A posição de editor concedia a Lobato o poder de utilizar aqueles princípios de julgamento e seleção que não eram os utilizados pela ABL, tornando-se uma fonte de autoridade que se contrapunha a uma fonte anterior: a Academia Brasileira de Letras. Como bem afirma Bourdieu, ainda que todas as partes do campo literário (ou, num sentido mais abrangente empregado pelo autor, campo intelectual) dependam umas das outras, estabelecendo aquilo que ele chama de “relação de interdependência funcional”, nem todas 51 A sustentação financeira que o Estado oferecia à ABL não deixa de constituir um forte indício de que a pretendida autonomia do campo literário - autonomia esta reivindicada pela própria Academia - estava longe de concretizar. Ademais, para conquistar um reconhecimento social mais abrangente, e não só restrito ao círculo de literatos, a ABL teceu toda uma rede de relações e favores que a ligava a certos setores da elite brasileira, permitindo a entrada de personalidades que embora célebres nada tinham a ver com literatura. Aliás, tal prática ainda é utilizada pela Academia nos dia de hoje.

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elas dependem no mesmo grau (BOURDIEU, 1968: 126). O grau de dependência de Lobato em relação à Academia naquela circunstância histórica era, certamente, bastante reduzida. Em carta enviada a Rangel, em 08/07/1918, Lobato demonstra saber a medida de seu prestígio na ocasião: “Sou hoje um dos que decidem do destino das coisas literárias do país. Curioso, hein?” (LOBATO, 1951: 174, vol. II).

Curioso, na verdade, é o fato de inscrever-se em 1921 para o preenchimento da vaga de Pedro Lessa na Academia. O retrocesso de Lobato poderia ser fruto do arrependimento ou, quem sabe, resultado da insistência de algum amigo (ou amigos). Em termos sociológicos, acredito que tais explicações não são suficientes.

O que ocorre é que, em 1921, apesar de Lobato ainda contar com um elevado grau de prestígio no campo literário brasileiro, sua hegemonia começa a ser ameaçada por um grupo de jovens e talentosos artistas: os barões do modernismo nacional. É certo que a disputa entre eles não é nova, já vem desde o episódio Anita Malfatti (como foi esclarecido acima). Os elementos inéditos são o prestígio e reconhecimento sociais que os modernistas haviam granjeado, indubitavelmente bem maiores do que à época da exposição de Anita. As disputas tendiam, portanto, tornarem-se mais acirradas dado o nivelamento do capital social acumulado pelos contendedores.

Entretanto, logo em seguida, mais precisamente em 1922, Lobato retira sua candidatura e justifica a Godofredo Rangel, em carta de 15/02/1922:

“A idéia da Academia falhou por birra minha. Não quis transigir com a praxe lá - a tal praxe de implorar votos, e eles são extremamente suscetíveis nesse ponto. Um acadêmico aqui de S.Paulo chegou a dizer: ‘Se o Lobato me pedisse o voto, claro que eu o daria; mas não pedindo, prefiro votar num pedaço de pau’. Ora, não há gosto em fazer parte dum grêmio de mentalidade assim e não pedi nada a ninguém; fiz mais: mandei outra carta desistindo da minha candidatura.” (LOBATO, 1951: 244, vol II).

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Não podemos nos esquecer que em 1921, apesar do acirramento

das disputas , Monteiro Lobato ainda gozava de uma posição privilegiada no seio do campo literário: lançara seu primeiro livro infantil - Narizinho arrebitado - com a espantosa tiragem de 50.500 exemplares; o inédito A onda verde; e reedição de Cidades mortas e Idéias de Jeca Tatu, cada um deles com a tiragem de 4.000 exemplares - vale lembrar que esses dois livros também foram relançados no ano anterior, 1920, com a mesma quantidade de exemplares -; seu Urupês havia sido traduzido para o espanhol e publicado na Argentina; e como editor, “Monteiro Lobato produzia no primeiro semestre de 1921 trinta títulos de livros” (KOSHIYAMA, 1982: 83) e de acordo com Laurence Hallewell, nesse mesmo ano a Monteiro Lobato & Cia. publicava uma nova edição a cada semana.

Soma-se à condição privilegiada de Lobato a posição ocupada pelos modernistas no campo, pois, apesar de contarem já com maior prestígio e endurecer a disputa pela hegemonia do mundo literário, ainda não dispõem de munição suficiente para desbancar por definitivo o adversário Lobato. Para constatar tal arranjo, basta também observarmos a produção modernista: se levarmos em conta apenas a literatura, percebemos que é a partir de 1922 que sua produtividade cresce, não somente em termos quantitativos mas também, segundo a crítica especializada, qualitativamente 52.

Retirar a candidatura às vésperas do pleito na ABL demonstra o quanto Lobato ainda é independente dessa instituição para adquirir e manter benefícios simbólicos (conhecimento, reconhecimento, prestígio) que ela por ventura pudesse conceder. Daí sua recusa pela “praxe de implorar votos”. De fato, parece não ter sentido, segundo à lógica de funcionamento do campo, pedir votos para escritores que ocupam posições subalternas em relação àquela que Monteiro Lobato ocupava.52 Para maiores informações sobra a produção literária dos modernistas, contando inclusive com um inventário das obras e o respectivo ano de lançamento, ver BOSI, Alfredo (1994). História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, cap. VII.

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Mas tal independência e hegemonia começam a ruir a partir de 1925. A carreira literária de Lobato começava a dar sinais de um possível desgaste, uma vez que não conseguira produzir nenhuma outra obra tão impactante quanto Urupês, Problema vital e Cidade mortas; há algum tempo não escrevia mais sua crítica de arte e literária - quase toda ela reunida no volume Idéias de Jeca Tatu, de 1919 -; e, para completar, sua editora falira em 1925. Se, como escritor, seus novos livros não eram tão bem recebidos quanto foram os primeiros, e, como editor, não possuía mais o importante atributo de classificação das obras e escritores, obviamente as fontes de onde extraía seus lucros simbólicos secaram e não dispunha mais de cacife suficiente para participar de um jogo disputadíssimo e cujas apostas exigiam muito 53. Ao contrário do que ocorrera em anos precedentes, os modernistas agora ditavam as regras do campo. Se a Semana de 1922 foi considerada como o marco divisor de águas da história artística-cultural do país, todos aqueles que foram vinculados à estética passadista e ultrapassada (o que já era um dos critérios de avaliação e classificação elaborados no campo e não de exclusividade modernista) - entre eles, como vimos, Monteiro Lobato - viviam a partir de então numa espécie de limbo, condenados ao esquecimento. O capital e a energia mobilizados pelos modernistas não encontravam páreo e a dominação simbólica por eles exercida era incontestável. Todos os critérios de classificação de artistas e obras eram monopolizados pela geração modernista e nada escapava ao seu crivo demolidor.

Por isso, em 1925, pela segunda vez Lobato se candidata a uma vaga na Academia Brasileira de Letras:

“Pois é. A vadiação forçada em que me encontro fez-me pensar no suícidio, não à moda do Ricardo, mas por meio da ‘imortalidade’acadêmica. Aquilo está se transformando em

53 Não entrarei em detalhes sobre a perda de espaço que Lobato sofre no campo literário devido à recepção pouco entusiasmada de sua obra considerada adulta por parte dos outros agentes do campo e à crise de sua casa editorial, pois tal assunto será tratado com mais cuidado - inclusive tentando demonstrar como a curva descendente vivida pelo autor se manifesta na própria fatura de sua obra - no capítulo 4 desta dissertação.

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matadouro. Nossos ‘imortais’ morrem como formigas. Há tantas vagas agora e tantas ‘quasi-vagas’, que num momento de desespero inscrevi-me. Visitas não faço, mas mandarei uma carta a cada um fazendo um gentil rapapezinho. Serão 37 cartas - e fazer mais que isso repugna-me.” (Carta de 26/01/1926 in LOBATO, 1951: 287, vol. II).

A posição acanhada que Lobato detinha, naquele momento, no espaço sócio-literário e a escassez de recursos que possuía para investir na recuperação dos bens simbólicos necessários para a manutenção de um lugar razoavelmente distinto no interior do campo, conduziu-o à disposição de participar das eleições da ABL, obedecendo até mesmo o protocolo criado pela instituição. Como se vê, a criação de uma academia que agrupasse os homens de letras não deixa de ser um passo importante para a constituição de um campo literário autônomo, onde uma instituição desse tipo se torna uma das principais instâncias de criação de regras específicas ao campo, de distribuição de recompensas materiais e simbólicas e de consagração artística. E com a Academia Brasileira de Letras não foi (e, apesar de um certo de descrédito que a instituição goza no momento, ainda hoje não é) diferente. Não restava para Lobato outra alternativa senão esta: a Academia poderia restaurar, pelo menos parcialmente, o prestígio do escritor.

Para reforçar a afirmação de que a Academia Brasileira era uma importante fonte de bens simbólicos, basta lembrar que inclusive alguns modernistas - severos críticos que foram da instituição, associando-a um arcaísmo que freava a independência e a modernização artística da nação -, como Cassiano Ricardo, Menotti del Picchia e Manuel Bandeira, tornaram-se imortais de fardão.

Entretanto, a empreitada de Lobato não logrou êxito: com 14 votos Monteiro Lobato foi derrotado no pleito e preterido como imortal. Certamente, o esnobismo de Lobato em 1921, quando retirou sua

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candidatura às vésperas da eleição por não precisar dos votos dos acadêmicos para manter seu prestígio em alta, foi lembrado quatro anos depois 54.

Derrotado e praticamente excluído do campo, Lobato adotou uma estratégia extremamente perspicaz para se recuperar. Ele praticamente inaugurou um novo campo de atuação literária e conquistou uma posição hegemônica inabalável, e até os dia de hoje ainda não se apresentou um rival à altura: a literatura infantil. Monteiro Lobato é considerado o inventor da literatura infantil brasileira, e na posição de criador dificilmente terá seu nome apagado na história desse gênero literário.

É importante esclarecer que quando afirmo que “Lobato adotou uma estratégia extremamente perspicaz para se recuperar”, não quero com isso dizer que a estratégia foi conscientemente arquitetada e implementada, pois isso requereria de Lobato uma tal visão do campo literário - com todos os agentes e instituições envolvidos, todos os caminhos já percorridos no interior do campo e igualmente todas as searas a serem exploradas - impossível de se possuir. Imbuído de um habitus literário (constituído no e pelo campo), Lobato era capaz de intuir quais espaços no mundo das letras não haviam sido ainda preenchidos, quais gêneros não tinham sido criados, os estilos que podiam ser desenvolvidos, mas jamais teria a mais absoluta certeza e convicção de onde todos esses caminhos desembocariam e nem saber se a recepção de sua nova obra (no caso a literatura infantil) seria um sucesso. E era esse mesmo habitus que permitia Lobato perceber seu próprio desgaste a partir de sinais exibidos no campo literário mesmo. 54 As tensas relações entre Monteiro Lobato e a Academia Brasileira de Letras não terminam em 1925, mas prosseguem em 1944, quando Cassiano Ricardo e Menotti del Picchia insistem na candidatura de Lobato e até se empenham na campanha de seu nome. Em nove de outubro de 1944, o presidente da Academia, Múcio Leão, envia a Lobato carta comunicando-lhe sua indicação para a cadeira que fora de Alcides Maia.. Em onze de outubro de mesmo ano, Lobato responde ao presidente agradecendo a indicação mas declinando-a - com muita diplomacia: “De forma nenhuma esta recusa significa desapreço à Academia, pequenino demais que sou para menosprezar tão alta instituição.” (“Monteiro Lobato e a Academia” In LOBATO, Monteiro (1994). Urupês. 37a edição. São Paulo: Brasiliense. O escopo deste trabalho se concentra primordialmente na atividade literária e editorial de Monteiro Lobato entre 1918 e 1926, por isso não me ocuparei detidamente sobre tal episódio.

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Não me aprofundarei no tema agora - nem nas possíveis objeções que podem ser feitas ao meu argumento, como o fato de Lobato ter escrito seu primeiro livro infantil em 1921 ou que entre 1921 e 1927 escrevera sete livros infantis -, pois esse tema, como já adiantei em nota de rodapé, será tratado no capítulo quatro.

É curioso notar que as críticas que Lobato endereçava à Academia e que acabaram por distanciá-lo permanentemente da instituição poderiam aproximá-lo dos modernistas tendo em vista as semelhanças das críticas, praticamente as mesmas, que ambos lançavam contra a ABL. E, segundo parte da crítica literária especializada 55, outros pontos de contato podem ser estabelecidos entre Lobato e os modernistas.

Ao meu ver, é justamente por possuírem semelhanças que se dá o atrito e não o estreitamento dos laços entre eles. Landers aponta tal similitude e, mais, chega a afirmar que a rejeição de Lobato pelos modernistas sacrificou “(...) o nome que poderia dar-lhes respeitabilidade social e incluí-los na tradição nacionalista que deveria ser e de fato foi a marca do movimento.” (LANDERS, 1988: 14). Sem dúvida, o prestígio de Lobato no final da década de 10 e início dos anos 20 era tamanha que ele perfeitamente poderia emprestar seu nome ao movimento e conferir-lhe a “respeitabilidade nacional”. Mas, aceitar Lobato como líder e/ou precursor do movimento obrigaria os modernistas a abrir mão da escolha de seus mentores entre seus pares, o que afetaria a identidade do grupo e fragilizaria o círculo dos intelectuais modernistas.

Não é demais lembrar que Lobato não pertencia à geração literária modernista, o que sem dúvida dificultava sua aceitação no grupo. O que não quer dizer que esta seja a razão primordial que levou à recusa do criador do Jeca, haja visto que Graça Aranha foi por muito tempo considerado pelos próprios modernistas o precursor do movimento com a obra Canaã, de 1902. O que nos leva a buscar outras

55 Ver a reavaliação da obra de Lobato empreendida por Vasda Bonafini Landers, Wilson Martins e Cassiano Nunes, cujos estudos estão todos indicados na bibliografia.

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explicações para o isolamento de Lobato promovido pelos artistas modernistas.

Tomemos como ponto de partida a revisão da obra lobatiana empreendida por alguns críticos e historiadores literários. A já citada Vasda Landers chega a afirmar que Urupês “é o primeiro documento da nossa modernidade literária.” (LANDERS, 1988: 26). E Landers não é a única a defender tal tese. Wilson Martins compartilha das mesmas idéias e afirma que o centro da primeira geração modernista é Monteiro Lobato: o Jeca Tatu, personagem que aparece em Urupês, segundo ele, corresponde ao “antimito nacionalista” e o livro se converte no primeiro manifesto da literatura desmistificante, um dos propósitos modernistas. Wilson Martins vai mais longe e afirma: “E aqui está, justamente, a linha de clivagem: Monteiro Lobato, em 1919, era mais espontaneamente nacionalista do que os modernistas jamais o seriam depois de 22.” (MARTINS, 1978: 169). E foi novamente Lobato que, segundo ele, escrevera também o segundo manifesto modernista: Idéias de Jeca Tatu, concedendo ao escritor a chance de ser o “chefe natural do movimento e da reforma estética” (Idem, ibidem). Cassiano Nunes, por sua vez, preconiza que: “Em literatura, pelo menos, Lobato foi modernista antes dos modernistas.” (NUNES, 1998: 107), e que antes dos modernistas Lobato “saudava a viveza antes dos modernistas” (Idem, ibidem).

Todos os autores acima citados são unânimes em afirmar a força revolucionária de Urupês, em virtude da utilização da oralidade, dos brasileirismos, coloquialismos e neologismos; a incorporação do leitor no processo de criação literária (o “leitor-participante”); e a transgressão da ordem literária estabelecida.

Se Lobato foi ou não precursor do modernismo, se ele efetivamente era ou não tão modernista quanto os próprios modernistas, é difícil afirmar com absoluta convicção se levarmos em conta tantas opiniões e análises extremamente divergentes. Mas é razoável supor que havia, no mínimo, uma plataforma literária comum

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entre Lobato e os modernistas, uma carta de intenções que poderia ter sido assinada pela mão de Lobato ou pela dos modernistas.

Além disso, na sua atividade editorial Lobato publicou vários modernistas, como Menotti, Oswald, Di Cavalcanti e Sérgio Milliet. O que leva Azevedo, Camargos e Sacchetta a escrever:

“Tais evidências colocam em xeque a tese do rompimento radical de Lobato com os modernistas, além de derrubar a hipótese de que não se interessava pela experimentação formal desenvolvida por eles nos campos das artes plásticas e da literatura. (AZEVEDO, CAMARGOS & SACCHETTA, 1997: 177).

As afinidades temáticas e formais que Lobato possuía com o grupo de Mário, Oswald e cia., somadas ao seu prestígio, fama, reconhecimento social e o fato de, como um importante editor do período, ter o poder de selecionar obras e escritores, tornava Lobato antes um inimigo do que um aliado, pois se o movimento modernista girasse em torno de sua figura havia a possibilidade de que o próprio modernismo fosse apagado em detrimento da luminosidade de Monteiro Lobato, evitando a partilha dos dividendos simbólicos que o modernismo pudesse gerar devido à monopolização que Lobato pudesse empreender; e o modernismo e modernistas não podiam correr um risco assim tão grande. Daí a escolha de Graça Aranha, que possuía a dose exata de prestígio que os modernistas necessitavam: não era tão pouco a ponto de reverter em coisa alguma para os modernistas (ou quem sabe até ridicularizá-los) e nem era tão grande a ponto de ameaçar o movimento.

Lobato não deixava de ser, como diz Chiarelli, um referencial de conduta para os modernistas. E é justamente referencial pela posição que dispunha no campo literário e pelo poder decisório que possuía, e que gerava, até certo ponto, uma dependência em relação a Lobato - principalmente no que diz respeito às publicações - e que, por conseguinte, tornava-o uma ameaça ainda maior.

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A correspondência entre Mário de Andrade (talvez a maior liderança do movimento modernista e certamente o maior adversário de Lobato) e Manuel Bandeira é reveladora da influência que Lobato exercia no campo literário brasileiro da época, bem como do ressentimento que tal posição ocupada por Lobato gerava. Em 31 de maio de 1923, escreve Manuel Bandeira a Mário de Andrade:

“Os meus poemas estão nas mãos do Lobato.(...) O Lobato fechou contrato comigo desde agosto do ano passado. Todavia até agora, nada. Ele diz que verso não é negócio, é negocinho. Que isso de versos é bucha, sejam péssimos ou excelentes.Se o Lobato desistir de editar-me, não aparecerei mais a público senão em revistas: não tenho dinheiro nem paciência nem gosto para me editar e mim próprio.” (MORAES, 2000: 94).

A carta de Bandeira dá uma idéia da força que Lobato ainda dispunha no campo, mesmo após a Semana. A oportunidade de publicação de A cinza das horas, e, portanto, do reconhecimento social que a obra poderia angariar depende da ação de Lobato. A desconfiança de Bandeira quanto a publicação se deve ao fato de o livro Paulicéia desvairada, de Mário de Andrade ter ficado a cargo de Lobato para a publicação, o que o editor-escritor não o fez. De acordo com Marcos Antonio de Moraes, a recusa pelo livro de poesia de Mário se deve ao temor de Lobato em perder a “clientela burguesa” em razão do caráter dos poemas. A hipótese de Moraes é plausível na medida em que, como editor, Lobato devia zelar por sua imagem e pela imagem de sua casa editora diante do público leitor, pois o prestígio depende da maneira pela qual o público, os críticos, outros escritores, percebem e representam, neste caso, Lobato e sua casa editora 56.

56 Apesar da recusa de Lobato em publicar o livro de Mário de Andrade, vale lembrar que vários de seus artigos “saíram” na Revista do Brasil quando Lobato ainda era seu proprietário e editor.

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Em 24 de setembro de 1923, Manuel Bandeira continua o relato sobre o episódio:

“O Lobato acaba de me roer a corda, comunicando-me que não editará mais os meus versos, para a publicação dos quais ele se comprometera formalmente há mais de um ano. Compromisso esse várias vezes renovado, sendo que o último não data ainda de um mês. É um canalha, cuja palavra não merece fé.” (MORAES, 2000: 103)Tal evento não contou apenas com a participação de Mário de

Andrade e Manuel Bandeira, mas também com a participação de Ribeiro Couto, que após tomar conhecimento do ocorrido rompe relações com Lobato definitivamente - apesar da tentativa de reaproximação deste último -, alargando ainda mais o círculo dos adversários modernistas de Lobato.

A vingança imaginada por Bandeira é perversamente arquitetada:“O Lobato é um homem desonesto. Devemos combatê-lo. Descompondo-o? Maldizendo? Não! Inteligentemente. Ele ri-se infamemente dos poetas sem compreender que os verdadeiros poetas, longe de ser os ingênuos que ele imagina, é que possuem (como disse o Cendrars) o senso das realidades. Inteligentemente. Há na empresa de Lobato capitais de Paulo Prado. Eles devem sair! Ou então o Paulo Prado saia do meio de nós! Ou então sairei eu do meio de vocês e volto ao meu perau de cururu.”(MORAES, 2000: 118).

Aqui, Bandeira faz referência à participação de Paulo Prado na Revista do Brasil, que, juntamente com Sérgio Milliet, tinham sido incumbidos por Lobato de gerenciar a revista. Bandeira pede uma ação inteligente contra Lobato: a saída dos capitais de Paulo Prado que auxiliavam a manutenção financeira do periódico. Caso contrário, que Paulo Prado abandonasse o círculo modernista, do qual era íntimo. A vendetta foi muito mais inteligente e bem planejada do que Bandeira

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poderia imaginar. A frase de Mário de Andrade: “Deixem ao menos o início do modernismo brasileiro pra nós” 57 foi seguida à risca, e Lobato, juntamente com outros tantos literatos, foram varridos, por um bom tempo, de nossa história literária. E os modernistas contaram com a importante colaboração de futuros críticos e historiadores literários que trataram de perpetuar os cânones do modernismo e acabaram por reproduzir o próprio movimento por algumas décadas.

V. Crítica sociológica à crítica literária

A perpetuação da história literária construída pelo modernismo - e, conseqüentemente, sua oficialização - deve muito à atuação de críticos literários e historiadores da literatura, contemporâneos ao movimento e posteriores a ele.

O primeiro grande aliado do grupo modernista talvez tenha sido Sérgio Buarque de Holanda, que bem antes de ingressar na carreira acadêmica e escrever um clássico de nossa historiografia, Raízes do Brasil, já destilava sua crítica literária em vários jornais e revistas da época. Em setenta e cinco artigos publicados entre 1920 e 1944 58, é possível observar sua aproximação ao modernismo e afastamento em relação a Lobato (e outros escritores apagados da história literária pela ação modernista): utilizando uma simples operação estatística percebemos que do total de artigos, vinte e três deles, ou 30,6%, são dedicados à análise e comentários da obra de Mário de Andrade; 19, 25,3%, dizem respeito à poesia de Manuel Bandeira; e apenas cinco, o que equivale a 6,6%, se ocupam de Monteiro Lobato. Ora, o silêncio em torno da obra de Lobato é revelador, pois é uma maneira de fazer desaparecer o autor, principalmente quando se trata de um crítico renomado, como Sérgio Buarque se tornou, ou seja, se um intelectual 57 “Carta aberta” enviada por Mário de Andrade a Alberto de Oliveira e posteriormente publicada na revista Estética. Ver carta de Bandeira endereçada a Mário, de 03/06/25 (In MORAES, 2000: 214-215)58 Todos enfeixados no livro O espírito e a letra - estudos de crítica literária (1920-1947). São Paulo: Cia. das Letras, organização, introdução e notas de Antonio Arnoni Prado.

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importante não citar um determinado autor, provavelmente este cairá no ostracismo, já que seu reconhecimento depende, antes de mais nada, de seu conhecimento.

Das cinco menções feitas a Lobato, três delas tratam da atuação editorial do escritor de Taubaté. No artigo Os novos de São Paulo 59, além de mencionar a participação de Lobato na área editorial, revista e editora, Sérgio Buarque faz leve insinuação sobre o “valor” de Urupês:

“Simultaneamente surgia o movimento sertanista com a Revista do Brasil, que embora partisse de um princípio estreito e errôneo, não deixou de produzir uma obra do valor do Urupês de Monteiro Lobato.(...) Os srs. Monteiro Lobato & Cia. apresentarão breve o primeiro dos três romances que constituem a Trilogia do Exílio, de Oswald de Andrade. (HOLANDA, 1996: 148-149, grifos meus).

A ênfase, podemos notar, está mais na atuação de Lobato à frente da Revista do Brasil e de sua editora do que na sua obra, principalmente Urupês, que apesar de seu “valor”, parte de um “princípio estreito e errôneo”, o que provavelmente explica por que Sérgio não dedicou uma linha sequer à análise detida do referido livro de Monteiro Lobato.

Num outro artigo, A nova geração santista - publicado na mesma revista e mesmo ano citados na nota 60 -, Sérgio refere-se a um tal Sr. Galeão Coutinho que, seguindo os passos do Lobato-editor, organizara um empresa editora na cidade de Santos.

No Diário de Notícias, já em 1940, Sérgio Buarque escreve no artigo Poesia e crítica:

“O fato de ter contribuído grandemente para que tal coisa se tornasse possível ou, ao menos, para que desaparecessem barreiras de gosto, de prevenção e de falsa tradição - tradição interrompida, aliás, durante algum

59 Publicado originalmente no periódico O mundo literário, em 1922.

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tempo pelo admirável movimento formado em torno de Monteiro Lobato e da primeira Revista do Brasil - é sem dúvida um dos bons resultados do chamado modernismo. (HOLANDA, 1996 : 274).

Todo o artigo tem como assunto a audácia modernista em romper com os “formalismos academizantes” tão afeitos ao soneto. O modernismo, ao abrir “perspectivas inesperadamente vastas no remanso de nossa literatura”, corajosamente instaurava um novo gosto literário, transformava as formas de recepção da poesia, num ato bastante auxiliado pela política editorial de Lobato na sua Revista do Brasil, que publicou vários poemas de autores modernistas, como Oswald de Andrade, Menotti del Picchia e Ronald de Carvalho. Mais uma vez vemos acentuada uma das faces de Lobato, a de editor, em detrimento de uma outra, a de escritor.

A última menção de Sérgio a Lobato trata-se, na verdade, de uma crítica a um livro de Pedro Dantas acerca da história de nosso romance e que, segundo Sérgio, tinha o equívoco de pouco ater-se à obra de Ribeiro Couto ao passo que se dedicava além da conta a escritores como Simões Lopes Neto e Monteiro Lobato, que não eram propriamente romancistas mas “aplicados ao conto e à novela curta.” (HOLANDA, 1996: 340). 60 A observação é correta, uma vez que a carreira propriamente literária de Lobato não é dedicada ao romance 61, assinalando acertadamente o equívoco de Pedro Dantas.

As referências ao modernismo e aos modernistas, em contrapartida, são sempre elogiosas, conferindo sempre mais força ao movimento; o que acabava por reproduzir sua história. Consoante com a pretensão modernista, Sérgio Buarque de Holanda publica em 1921 na revista Fon-Fon o artigo “O futurismo paulista”, do qual reproduzo o seguinte trecho:

60 Publicado originalmente no jornal Diário de Notícias, em 30 de março de 1941, com o título Contos.61 O único romance de Lobato é O presidente negro, de 1926.

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“Em todo caso [os modernistas] iniciaram um movimento de libertação dos velhos preconceitos e das convenções sem valor, movimento único, pode-se dizer, no Brasil e na América Latina. Depois de ter revelado um artista de primeira ordem que é Victor Brecheret, a velha terra dos bandeirantes vai colaborar para o progresso das artes com uma plêiade disposta a sacrifícios para atingir esse ideal.” (HOLANDA, 1996: 132-133).

Na continuação do artigo Sérgio vai apontando alguns dos componentes dessa plêiade: Mário e Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia, Gulherme de Almeida, Ribeiro Couto, entre outros, contribuindo enormemente para estabelecer tais nomes na história literária nacional, enquanto seu silêncio em torno de outros literatos contribui igualmente para a redação dessa história bem ao gosto do modernismo.

Ainda com a intenção de estabelecer o modernismo como uma espécie de marco inicial de nossa história cultural, o ponto zero da arte e cultura brasileiras, lemos estas linhas de Sérgio Buarque (trecho do artigo “Os ‘futuristas’ de São Paulo”, publicado pela primeira vez n’ O mundo literário, em 5 de janeiro de 1923):

“São Paulo ocupa neste momento uma posição de excepcional destaque no nosso mundo literário.Não se imagine que o atual movimento modernista que lá se dá é uma continuação ou o resultado de uma evolução dos movimentos anteriores.Isso é absolutamente falso.Nenhuma ligação existe entre os chamados ‘futuristas’ de São Paulo e os seus avós parnasianos e naturalistas.” (HOLANDA, 1996: 163).

Causa uma certa estranheza a noção de história empregada pelo futuro historiador: o passado literário nacional quase não existe, não

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age sobre a formação do presente e o movimento modernista não possui gênese alguma, pois sua origem está em si mesmo, independente de qualquer fato anterior. Curiosamente, tal noção do movimento histórico não é empregado (muito pelo contrário) por Sérgio Buarque no clássico Raízes do Brasil. Nota-se, portanto, que a escolha dos conceitos, termos e noções que embasam uma análise muitas vezes segue mais critérios políticos do que propriamente científicos ou pelo menos neutros.

Além de estabelecer um marco inicial dotado de impressionante eficácia simbólica, Sérgio Buarque de Holanda também auxilia os modernistas no estabelecimento e legitimação de um precursor, Graça Aranha, num artigo intitulado “Um homem essencial” (publicado na revista Estética, em 1924). O longo texto, cujo título é por si mesmo revelador, é todo ele dedicado à (suposta) importância de Graça para o modernismo, pois foi um dos que mais insistiu para a “afirmação de nossa individualidade nacional” (HOLANDA, 1996: 185). A postura de Sérgio e dos modernistas em geral eliminava a possibilidade de escolher Lobato como iniciador do movimento - como queriam (e talvez ainda queiram) os defensores deste último.

Seguindo a linha cronológica, após Sérgio Buarque foi, provavelmente, outro Sérgio, o Milliet, quem mais contribuiu para a renovação de uma tradição modernista. Com uma extensa crítica literária (ocupo-me com sua produção desde 1940 até 1956), Sérgio Milliet é uma figura interessante para ser analisada por alguns motivos: primeiro porque participou ativamente do movimento modernista, sendo um dos nomes importantes do movimento e conhecedor dos integrantes do grupo, com os quais estabeleceu uma rica rede de relações; segundo, sua fortuna crítica tecida no intervalo de tempo acima apontado permitiu a Sérgio um certo afastamento temporal para empreender suas análises, o que possibilitaria uma reavaliação, quem sabe, menos apaixonada e mais objetiva do período e de Monteiro Lobato (que é, não esqueçamos, o tema do trabalho); por fim, Sérgio Milliet é quase um crítico literário profissional, que se utilizava de

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outros métodos para enriquecer e sustentar suas análises, principalmente a sociologia (Sérgio Milliet havia estudado Ciências Sociais na França), buscando com isso, por meio do método científico, maior objetividade nos seus estudos - num certo sentido, Milliet antecipa toda uma geração de críticos especializados que dominariam posteriormente a cena cultural paulistana, reunidos no grupo Clima 62.

Num artigo de 3 de outubro de 1941, Milliet reúne Lobato, Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Antônio de Alcântara Machado no seleto grupo de escritores que rompem com os modelos estrangeiros e sua influência na busca de uma literatura tipicamente nacional. Contudo, isso não faz de um Lobato um aliado dos modernistas, muito menos um escritor modernista. Em 4 de julho de 1943, aponta o crítico:

“Respeitamos, em 1922, alguns adversários ferrenhos, como Amadeu Amaral e Monteiro Lobato, porque apesar da nossa raiva iconoclasta, justíssima aliás, eles se impunham pelo valor intrínseco, eram modernos sem se dar pela cousa, eram de todos os tempos.” (MILLIET, 1981: 110, vol.I, grifos meus) 63.

Apesar de uma relativa aproximação 64 que Sérgio Milliet faz de Lobato em relação aos modernistas, seu estatuto ainda é o mesmo: Lobato era uma adversário do modernismo, porque era um moderno anti-modernista, que não conseguiu se livrar de seus “preconceitos literários e artísticos”, que afetavam sua literatura e sua crítica:

“Nessa questão de arte moderna ninguém se revelou mais intransigente e menos penetrante: desde sua famosa crítica

62 A crítica literária produzida pelos intelectuais do Clima também será tratado neste tópico.63 Cabe aqui um esclarecimento bibliográfico: todos os artigos de Milliet foram reunidos em vários volumes numa co-edição Edusp/Livraria Martins Editora, em 1981, contudo, do ponto de vista do rigor científico, creio ser útil a informação da data original da publicação dos artigos. Infelizmente será impossível fornecer também qual o nome do periódico em que originalmente foram publicados uma vez que a co-edição acima referida não disponibiliza essa informação.64 Essa aproximação talvez seja fruto da própria relação entre Milliet e Lobato, sendo que este concedeu àquele e Paulo Prado, como já alertei, a direção da Revista do Brasil.

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ao Aleijadinho, a quem chamou ‘Santeiro vulgar’, até as sua reflexões públicas atuais.(...)Certa timidez o impediu de quebrar as peias tradicionais e enveredar francamente para a língua brasileira, para a língua falada no Brasil conviria talvez dizer. Ficou, desse modo, dentro de um português bastante convencional, chocante no assunto regionalista. Temos a impressão, após a série de romances e contos publicados, que Lobato alcançou a maturidade sem se realizar completamente.Seu estilo se ajustou aos cânones, e camilianos. Apenas lhes acrescentou o nosso autor algumas novidades vocabulares, tal qual fizeram Valdomiro Silveira e outros.” (MILLIET, 1981: 266 e 268, vol.II).

Apesar da generosidade que Milliet concede a Lobato 65, ainda assim este é vinculado a um certo conservadorismo literário do qual não consegue se libertar, i.e, a camisa de força camiliana é mais resistente do que a audácia lobatiana, que nem de longe se equipara, nas palavras do crítico, às ousadia estilísticas e lingüísticas de Mário de Andrade :

“Ora são os vocábulos que caracterizam a língua, mas a sintaxe, e esta, em Lobato, é voluntariamente portuguesa, intencionalmente obediente às injunções dos grandes autores lusitanos. Já assinalei, a propósito de outros livros regionais, o erro dessa cor local de cenário barato que é o emprego de palavras ou expressões regionais dentro de uma prosa em nada diferente da prosa habitual. Lobato não enriqueceu a nossa expressão; e ao lado da de um Mário de Andrade, essa contribuição trilha pela insignificância.” (MILLIET, 1981: 56, vol.III).

65 A generosidade é tanta que no mesmo artigo Milliet chega a dizer que Lobato “é uma figura definitiva em nossa literatura, mas, num tom profético, afirma que não passará incólume e sofrerá ao longo do tempo “revisões impiedosas” e “entusiasmos alucinados”.

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Igualmente na crítica de arte Lobato, assinala Milliet, não consegue se livrar do ranço passadista , posto que continuava amarrado a uma estética realista-naturalista, e que fazia dele um “péssimo crítico”, baseado sempre numa “concepção primária de uma pintura fotográfica” (Idem, ibidem: 54).

A despeito da “generosidade” de Milliet para com Lobato apontada acima, não resta dúvida que o crítico-modernista definia-o como um crítico e escritor amarrado ao convencionalismo e avesso a toda e qualquer forma de inovação, hostil a qualquer “manifestação artística original” - como era o caso do modernismo, segundo Milliet - e, portanto, Lobato não poderia ser menos do que um anti-modernista.

A editora Saraiva traz à lume em 1958 outro importante livro responsável pela consolidação da tradição modernista: História do modernismo brasileiro, de Mário da Silva Brito.

Nele, o autor continua reproduzindo as “verdades” modernistas ao afirmar que coube a esse grupo de artistas e intelectuais a atualização das letras nacionais e a libertação dos cânones acadêmicos; e do lado oposto se encontravam os literatos conservadores, bem representados por Monteiro Lobato. A estratégia de deslegitimação adotada por Mário da Silva Brito, na verdade, não era nova: o autor retoma o episódio Anita Malfatti e a partir dele repete a história literária já idealizada pelos modernistas, com direito a mártires, vilões e acontecimentos antológicos - não é demais lembrar que a escolha do ano para a realização da Semana de Arte Moderna em São Paulo, 1922, é bastante paradigmático e carrega uma carga simbólica altamente significativa: há exatamente cem anos o país conseguia sua independência política, e exatamente cem anos depois o país conheceria sua independência artística e cultural a partir da ação corajosa e inédita dos jovens e talentosos modernistas.

Segundo Brito, o artigo a respeito da exposição de Anita e que a traumatizou “para o resto da vida” - produzindo “resultados desastrosos e prejudiciais à artista atacada” (BRITO, 1997: 53) não

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teria sido sequer idéia de Lobato, mas sugestão de Nestor Pestana, membro da direção de O Estado de S.Paulo, que se encontrava profundamente desapontado com os rumos seguidos pela artista. De qualquer maneira, Lobato, continua Brito, era um crítico desqualificado, cujo conhecimento repousava “nas lições acadêmicas e tradicionalistas”, e ressentido, já que Lobato “queria ser pintor” e não alcançou êxito em virtude de suas limitações técnicas e artísticas - destarte, o ressentimento mais a incompetência enquanto crítico teriam movido Lobato, na interpretação de Brito, a escrever um artigo tão “ácido” contra Anita 66. Ambos elementos motivadores alegados pelo historiador são contestáveis, pois, como já mostrou Chiarelli 67, Monteiro Lobato era o crítico de arte mais preparado e gabaritado da cena cultural paulistana nos últimos anos da década de 10 e início dos anos 20 do século passado.

Entretanto, o artigo de Lobato, extremamente cruel com a “jovem e pioneira” artista, acabou provocando o efeito contrário:

“Lobato teve, sobretudo, o não pretendido nem almejado mérito de congregar, em torno da pintora escarnecida, o grupo dos modernos. Ao seu lado estão muitos dos jovens que organizariam e participariam, poucos anos depois, da Semana de Arte Moderna. Sua exposição é a primeira arrancada inovadora. Com ela, desde esse momento, ficam Oswald de Andrade, Di Cavalcanti, Mário de Andrade, Guilherme de Almeida, Agenor Barbosa, Ribeiro Couto, George Przyrembel, Cândido Mota Filho e João Fernando de Almeida Prado. Mais: à incompreeensão histórica de Monteiro Lobato, que antecedeu Hitler ao rotular de teratológica a arte moderna, se deve o despertar da consciência antiacadêmica, a arregimentação das forças novas o preparo do assalto que terminaria por determinar a

66 A acidez do artigo de Lobato a respeito da exposição de Anita é bem menor do faz supor a propaganda modernista67 Ver a respeito CHIARELLI, Tadeu (1995). Um Jeca nos vernissages. São Paulo: Edusp.

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derrocada dos bastiões tradicionalistas.” (BRITO, 1997: 54-55).O artigo de Lobato serviu de estopim para a reação modernista,

congregou em torno da heroína Malfatti, cuja exposição se tornou outro marco modernista 68, bravos batedores que se uniram para enfrentar os inimigos não só do modernismo mas de uma autêntica cultura e arte nacionais; e o maior dos adversários, está claro, era Monteiro Lobato 69, associado por Mário da Silva Brito a ninguém menos do que Hitler. A história do modernismo contada pelos próprios modernistas e aliados é toda ela enriquecida de contornos quase míticos na qual não faltam, como afirmei acima, heróis, heroínas, vilões e batalhas.

A única referência positiva feita a Lobato por Mário da Silva Brito - e que, aliás, é praticamente um consenso entre os críticos e historiadores literários, mesmo aqueles seguidores e “continuadores” do modernismo - diz respeito à sua atividade editorial, manifesta por meio de sua casa editora e da Revista do Brasil. Brito afirma que Lobato revolucionou o sistema de distribuição do livro, levando um produto assim tão estranho na época aos sítios mais recônditos do país. O movimento editorial iniciado em São Paulo por Monteiro Lobato chama a atenção não só pela quantidade da produção, mas também pela “qualidade material da mercadoria, por sua confecção gráfica.” (BRITO, 1997: 152).

Apesar da inovação no mercado editorial, fica registrada pela história literária propagada pela onda modernista a imagem de um Lobato que não compartilha dos mesmos princípios do grupo futurista, e o que é pior, hostil a tais princípios; Lobato estava “do outro lado”, aquele a ser combatido:

68 Mário de Andrade, em defesa da jovem pintora, escreve no jornal Folha da Manhã, de 24 de agosto de 1944, que Anita Malfatti foi a “legítima despertadora do movimento modernista”.69 A classificação de Lobato como um crítico desqualificado e acadêmico perde força se observarmos a avaliação que faz de Victor Brecheret, outro expoente modernista: as esculturas de Brecheret representavam “soberba manifestação de pura arte.” Diante de tal reação, Menotti Del Picchia sugere a Lobato que se penitenciasse de seu artigo sobre Anita, o que jamais fez. Ver o artigo “As quatro asneiras de Brecheret” In LOBATO, Monteiro (1948). Idéias de Jeca Tatu. São Paulo: Brasiliense.

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“Os campos estão claramente divididos, já em 1920: de um lado, as forças do futuro, a defesa dos anseios dos tempos novos, e, de outro, os conservadores, os saudosistas de uma época ultrapassada. Estão em conflito, enfim, o velho e o novo. À inércia opõe-se o dinamismo, ao passado o porvir, à tradição a renovação (ou talvez a revolução), ao ontem o hoje. É, numa palavra, a ruptura.” (BRITO, 1997: 132).

Os campos estão divididos desde antes, desde a exposição de Anita; e a divisão é tão clara do ponto de vista modernista, porque assim eles quiseram, denegando todo um processo de formação de nossa literatura, que não tem no modernismo seu ponto de partida.

Resta falar da influência na crítica literária paulista, e até nacional, do grupo Clima. Em termos cronológicos, a formação do grupo (início de 1939) antecede a publicação do livro de Mário da Silva Brito, mas preferi tratá-lo por último em razão da incrível força e atração que suas análises exercem até hoje, seja no ambiente universitário, seja na prática da crítica literária.

Começo a discussão do Clima a partir de uma longa citação do livro de Heloísa Pontes, Destinos mistos: os críticos do grupo Clima em São Paulo (1940-1968):

“Como produtos do novo sistema de produção intelectual implantado na faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, por intermédio dos professores estrangeiros (franceses em particular), Antônio Cândido e seus amigos mais próximos do Grupo Clima renovaram a tradição ensaística brasileira. Como críticos ‘puros’, romperam com a concepção de trabalho e com o padrão da geração anterior (que tinha um pé na literatura e outro na doutrina política). Como intelectuais, diferenciaram-se dos modernistas e dos cientistas sociais com os quais conviveram na Universidade de São Paulo.

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Situados entre os literatos, os modernistas, os jornalistas polígrafos e os cientistas sociais, construíram seu espaço de atuação por meio da crítica, exercida em moldes ensaísticos mas pautada por preocupações e critérios acadêmicos de avaliação. Como críticos, inseriram-se na grande imprensa, nos projetos editoriais, nos empreendimentos culturais mais amplos da cidade de São Paulo. Como intelectuais acadêmicos, profissionalizaram-se na Universidade de São Paulo e formularam um dos mais bem sucedidos projetos de análise da cultura brasileira.” (PONTES, 1998: 13-14).Logo na páginas de abertura do livro de Heloísa Pontes

encontramos importantes indícios do sucesso do grupo na divulgação de suas idéias: a inserção profissional na universidade confere às análises empreendidas por seus membros imensa legitimidade: a do discurso acadêmico, pautado na objetividade e no rigor da pesquisa, livre, portanto, de paixões e preferências pessoais; a imprensa e os projetos editoriais se oferecem como um extraordinário aparelho de divulgação; e a presença noutros “empreendimentos culturais” coroam a hegemonia do grupo no ambiente cultural da cidade (e, quiçá, do país). Com tal sustentação institucional (e até material), não é de se estranhar que as teses propaladas pelo grupo ganhassem terreno e fincassem raízes, principalmente no que diz respeito à atualização da tradição modernista.

Segundo Pontes, Lourival Gomes Machado foi o primeiro integrante do grupo a se aproximar da “tradição consagrada pelos modernistas” (Idem, 17), e um dos quatro críticos que assumem a lacuna deixada após a morte de Mário de Andrade, em fevereiro de 1945. Lourival se apresentava como um herdeiro das “preocupações e temáticas modernistas” 70 e ao mesmo tempo preocupava-se em exercer a crítica dentro de moldes mais acadêmicos, ou seja, amparada por um aparato conceitual e metodológico mais amplo e rigoroso, principalmente de uma perspectiva sociológica. A aproximação com a 70 Como de resto boa parte dos membros do grupo se apresentará.

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academia não faz com que Lourival Gomes Machado abandone “a tradição inventada pelos modernistas”. Ao contrário, no seu livro Retrato da arte moderna no Brasil, o autor afirma contundente que o modernismo rompe com o “papado artístico do ensino oficial” (MACHADO, 1947: 27) e promove a nossa “independência cultural” (Idem). Nas palavras de Pontes a respeito do livro acima citado: “Nessa empreitada totalizante, o autor não hesita em reconhecer a Semana de Arte Moderna como o marco inaugural por onde passa a ‘verdadeira’ história cultural brasileira.” (PONTES, 1998: 36).

E não foi somente Lourival Gomes Machado o porta-voz de todo um ideário modernista. O mesmo acontece com o mais promissor integrante do grupo Clima, Antônio Cândido. Por mais que o próprio Cândido quisesse estabelecer uma nítida distinção entre sua geração e a geração modernista anterior. Segundo ele, a geração de 20, com o exercício da crítica, abre caminho para a sua, e diminui a influência que os modernistas exerceram sobre eles:

“Encontrará, conforme o caso, muito amor pela obra deles: muito entusiasmo pela sua ação. E mais nada. A sua influência foi toda indireta e mínima. Somos seus continuadores por uma questão de inevitável continuidade histórica e cultural.” (CÂNDIDO apud PONTES, 1998: 59).

É compreensível o desejo de ruptura do grupo Clima, tendo Antônio Cândido como principal porta-voz, em virtude de um desejo ainda maior de sua geração de se impor como hegemônica e dominante no campo intelectual; e para isso era necessário romper, em algum grau, com o círculo de intelectuais dominante no período anterior - os modernistas - e reordenar o espaço social das posições ocupadas no interior do campo.

Mas, efetivamente, a geração do Clima se apresentava como herdeira legítima dos seus antepassados modernistas; herança esta visível a partir de alguns sinais. O primeiro deles é a publicação de um artigo de Mário de Andrade, o papa modernista, no primeiro número da

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revista Clima, editado em maio de 1941. Logo em seguida, é a vez de Sérgio Milliet dar o aval positivo para a revista, afirmando que a “novíssima geração” é dotada de “qualidades essenciais de primeiro plano que eu desejaria ver se desenvolverem aceleradamente.” (MILLIET apud PONTES, 1998: 71). Oswald de Andrade, talvez o mais reticente, estreita seus laços de amizade com os “chato-boys” (alcunha criada pelo próprio Oswald para se referir aos jovens do Clima).

E os sinais que evidenciam uma certa continuidade entre ambas as gerações também está presente em Antônio Cândido. Podemos começar pela entrevista que Cândido concedeu a Ulisses Guariba em 1976. Nela, afirma o renomado crítico e sociólogo que o “movimento modernista coletivo” foi um autêntico “divisor de águas” na literatura brasileira, reiterando, assim, uma imagem construída muito antes pelos barões do modernismo 71. Outra demonstração da filiação de Antônio Cândido ao modernismo é o prefácio que escreve para o livro de Sérgio Miceli, Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945) 72. No quinto parágrafo, Cândido escreve que o estudo de Miceli “se filia à arriscada tendência contemporânea para a desmistificação e as explicações por meio daquilo que está por baixo, escondido da consciência e da observação imediata”. (CÂNDIDO in MICELI, 1979: ix, grifo meu). “Arriscada”, segundo Cândido, porque tende ao reducionismo sociológico, isto é, reduz a obra aos condicionamentos sociais e históricos envolvidos na sua fatura, e porque tende a se tornar uma análise “ideológica” uma vez que mistura “a instância de verificação” com “a instância de avaliação”, no qual o julgamento é muito maior que o necessário (Idem, xi). A observação de Cândido é apenas parcialmente justa. Miceli

71 Trechos dessa entrevista de Antônio Cândido estão publicadas no livro Brigada ligeira e outros escritos. São Paulo: Unesp, 1992.72 Resumidamente, o livro do professor Miceli trata das relações entre os intelectuais e a classe dirigente no Brasil e das estratégias que intelectuais utilizaram para garantir suas posições no mercado de produção de bens simbólicos, e , de outro lado, quais as estratégias adotas pelo estado para cooptar tais intelectuais, demonstrando que o estado, no período compreendido no título do livro, foi o grande agente estimulador do campo intelectual. Ver MICELI, Sérgio (1979). Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945). São Paulo: Difel.

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realmente não analisa as obras mesmas dos escritores e, por isso, não demonstra como certos fatores externos ao campo literário (como a ação estatal) estão também presentes na fatura da obra 73. Portanto, o procedimento metodológico de Miceli enseja a denominação de “reducionista”. Contudo, sua postura o escuda da crítica de Antônio Cândido: ora, se o autor não se detém cuidadosamente sobre as obras literárias, como seria possível a Miceli avaliar ou julgar alguma coisa? Se a crítica de Cândido é deveras pertinente por um lado, por outro, ela não cabe ao trabalho de Miceli. Noutras palavras, se a própria pesquisa de Sérgio Miceli, da maneira como foi conduzida, permite, de acordo com o crítico, um determinado tipo de leitura e levanta a suspeita do reducionismo sociológico, ao mesmo tempo não é possível afirmar que o autor “julgue”demais, uma vez que sua intenção está muito distante de mergulhar nas obras literárias propriamente ditas. Ademais, o próprio Cândido reconhece que não tem o afastamento necessário dadas suas relações de proximidade com vários dos escritores presentes na análise do sociólogo. É claro o desconforto de Cândido diante do livro de Miceli, mais pela aproximação que o primeiro guarda com os escritores tratados pelo segundo, mais por ver ameaçada a tradição modernista - herdada em certa medida pelo círculo intelectual ao qual pertence - diante da abordagem desmistificadora de Sérgio Miceli do que por esta ou aquela metodologia aplicada.

O peso modernista também é percebido na obra de Cândido quando o assunto é Monteiro Lobato 74. Uma das poucas referências que Antônio Cândido faz de Lobato é a seguinte: “É preciso, portanto, 73 Creio que o próprio professor Sérgio Miceli reconhece a força explicativa que a investigação da obra pode oferecer num livro posterior - Imagens negociadas -, no qual o autor volta ao tema da constituição de um campo artístico no país, só que dessa vez por meio da análise acurada da obra retratística de Cândido Portinari, além da trajetória social do pintor e da teia de relações que tece no interior do campo.74 A referência positiva feita por Cândido a Lobato diz respeito à sua atuação editorial nos anos 20, que abriu caminho para o desenvolvimento do ramo na década seguinte: “Ainda aqui estamos ante um processo começado nos anos 20, quando Monteiro Lobato fundou e desenvolveu a sua editora, marcada por alguns traços inovadores: preferência quase exclusiva por autores brasileiros do presente; interesse pelos problemas da hora; busca de uma fisionomia material própria, diferente dos padrões franceses e portugueses; esforço para vender por preços acessíveis sem quebra da qualidade editorial.” (CÂNDIDO, Antônio. “A revolução de 1930 e a cultura.” In Novos Estudos Cebrap, São Paulo, v.2, 4, abril 84).

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acabar com a lenda de um Monteiro Lobato reformador da língua. A sua, por mais bela que pareça (o que se dá na maioria das vezes) nunca perdeu aquele ‘ranço camiliano’(...)” (CÂNDIDO apud LANDERS, 1988: 72) 75. O limite da prosa lobatiana apontada por Cândido reproduz exatamente a crítica que modernistas como Milliet e Mário de Andrade dirigiam a Lobato. Com isso, Antônio Cândido reafirmava os modernistas como legítimos reformadores da língua e da literatura brasileiras, tal como eles próprios se julgavam.

Outro termômetro que serve para medir a fria temperatura com que Antônio Cândido se refere a Lobato está no silêncio que o crítico dedica ao escritor - tal como Sérgio Buarque de Holanda. No livro Literatura e Sociedade, mais precisamente no capítulo VI , “Literatura e sociedade de 1900 a 1945” , temos exemplo do descaso e, em contrapartida, do entusiasmo nutrido pelo modernismo. Nesse capítulo não há qualquer referência direta a Lobato, mas tangencialmente o escritor é afetado pelas observações de Cândido. O autor aponta que no período que vai de 1900 a 1922, imediatamente anterior ao modernismo, a literatura aparece como “literatura de permanência”: “Conserva e elabora os traços desenvolvidos depois do Romantismo, sem dar origem a desenvolvimentos novos; e, o que é mais, parece acomodar-se com prazer nesta conservação” (CÂNDIDO, 1976: 135). O resultado, aponta Cândido, é o “romance ameno”, crônicas sociais feitas para distrair e embalar o leitor. Não há referência direta a Lobato, mas a toda geração que precedeu a modernista e da qual fazia parte Monteiro Lobato. Na sua crítica aguda ao regionalismo Lobato, é claro, também é atingido, uma vez que é um escritor que a história literária tratou de inserir nessa tendência literária. Para Antônio Cândido, o regionalismo encarava o homem rural de forma pitoresca, sentimental e jocosa, e criava um “Gênero artificial e pretensioso”, possuidor de um

75 O artigo de Cândido no qual se encontra o trecho citado foi publicado no jornal O Estado de S.Paulo, 1953 (não há indicação da data completa), com o título “Notas de crítica literária.”

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“sentimento subalterno e fácil de condescendência em relação ao próprio país (CÂNDIDO, 1976: 136).

Por outro lado, o modernismo segundo Antônio Cândido “(...) inaugura um novo momento na dialética do universal e do particular, inscrevendo-se neste com força e até arrogância, por meio de armas tomadas a princípio ao arsenal daquele” (CÂNDIDO, 1976: 142, grifo meu) - uma literatura interessada na pesquisa formal e preocupada em renovar o conteúdo, cujo olhar se volta, como nunca ocorrera antes, para o homem e a sociedade brasileiros. Para Cândido, o modernismo rompe de fato com o status quo espiritual da época 76.

No capítulo VII do mesmo livro, intitulado “A literatura na evolução de um comunidade”, Cândido volta à carga com novas afirmações peremptórias. Segundo ele, o grupo modernista se empenhou numa batalha contra “os que representavam o sistema oficial: jornais, salões, academias, correntes de opinião” (CÂNDIDO, 1976: 195-196) - foi uma concorrência entre os “defensores de uma literatura ajustada à ordem burguesa tradicional” (Idem) e os renovadores, que questionavam os “fundamentos da ordem vigente” (Idem). Antônio Cândido chega a dizer que se não tivesse havido naturalismo ou parnasianismo na história literária nacional, o país teria perdido um ou outro escritor, mas sem romantismo e o modernismo, a cultura brasileira teria sofrido um mutilação incurável. Não deixa de ser suspeita a atitude literária de Cândido, que cala justamente diante daqueles escritores que o modernismo tratou de apagar e retoma aqueles que o modernismo igualmente resgatou 77.76 O parentesco entre Antônio Cândido e os modernistas vai além da continuação e reprodução da tradição inaugurada pelo modernismo e se manifesta no tratamento formal que dedicam aos seus textos. Cândido assinala que o filão do modernismo que tendia para o “redescobrimento” do país, para uma pesquisa intensa de nossa cultura, não raro, manifestava seu apreço pelo ensaio - principalmente de cunho histórico e sociológico - para dar vazão às suas análises. O ensaio também é a forma preferida por Cândido para seus escritos, sejam os dedicados à análise literária, sejam os dedicados à sociologia.77 Aqui uso como exemplos da “atitude literária” um livro e um artigo de autoria de Antônio Cândido, o que pode parecer pouco. No entanto, a mesma atitude é encontrada noutros livros, artigos e ensaios, que não serão inventariados e analisados aqui, o que demandaria praticamente uma outra pesquisa e uma outra dissertação, fugindo aos objetivos deste trabalho. Mas resta fazer justiça: a hipótese segundo a qual Cândido, num certo grau, representa uma continuidade da geração

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Por mais que Antônio Cândido quisesse estabelecer seu distanciamento e a de seu grupo em relação ao modernismo, é mais do que evidente o rastro que liga uma geração à outra. O eminente crítico contribuiu para aquilo que Bourdieu chama de “imposição da taxionomia legítima”, ou seja, um sistema de classificação - no caso, de escritores, obras e movimentos literários - que pretende ser a “representação verdadeira da realidade” (BOURDIEU, 1994: 12-14). Representação que, aqui, está toda ela moldada pelo cânon modernista.

O grupo Clima 78, como bem acentua Heloísa Pontes, ofereceu importante contribuição para sustentar a tradição consagrada pelo modernismo e assegurar “a sua bem-sucedida posição no sistema no sistema intelectual, artístico e cultural do país.” (PONTES, 1998: 36). A inserção do grupo na imprensa (no jornal O Estado de S. Paulo), e por meio da revista por eles editada (a Clima), associada à sólida carreira acadêmica na Universidade de São Paulo, conferiu enorme visibilidade social aos seus integrantes, reconhecidos como críticos profissionais e “sérios”, pois suas análises não se reduziam a emissão de meras opiniões, mas eram apoiadas no rigor do método e da pesquisa - qualidades adquiridas no trabalho universitário -, o que contribuía para conceder às suas idéias uma legitimidade quase inquestionável. E essa legitimidade referendava e sedimentava a história literária desejada pelos modernistas.

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Tão extenso capítulo serve para discutir o mais detalhadamente possível aqueles indícios que compõem o que chamei de primeira pista: modernista, talvez não possa ser aplicada àquela que é, provavelmente, sua obra magna, A formação da literatura brasileira, que embora abarque um longo período da história literária brasileira não chega até o período tratado nesta pesquisa. Mas apenas “talvez”. Pois nada impede que o longo processo de formação da literatura brasileira tenha sido tratado por Antônio Cândido a partir de uma perspectiva marcada pelos cânones modernistas.78 A análise dedicada ao grupo Clima nesta dissertação se concentrou nas figuras de Lourival Gomes Machado e Antônio Cândido porque ambos se dedicaram às áreas que mais importam para esta pesquisa: a crítica de arte e literária.

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a conturbada relação estabelecida entre Monteiro Lobato de um lado e, de outro, a geração modernista e seus herdeiros. Não pretendo, com isso, diminuir a importância do movimento modernista para a história cultural do país, ou desmerecer a obra de modernistas e críticos e historiadores literários, nem supervalorizar a literatura lobatiana. A intenção é outra. Pretendo reavaliar, de um ponto de vista sociológico, a posição de Monteiro Lobato no interior do campo literário nacional brasileiro à época e, por conseguinte, a estruturação do próprio campo literário - o que leva inevitavelmente à discussão do movimento modernista. E a primeira pista apresentada - a execução simbólica de um escritor e de toda uma geração literária empreendida pelos chamados futuristas de São Paulo - já começa a insinuar que Lobato era uma personagem singular no cenário cultural paulista das primeiras décadas do século XX.

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Capítulo 2.

(Na trilha do Jeca)

O próximo passo é reconstituir a trajetória social de Monteiro Lobato, isto é, sua origem social, o capital social herdado, o ingresso na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, sua atividade como promotor no Vale do Paraíba, o início de sua carreira jornalística, sua inserção no campo literário, enfim, todo seu capital social e simbólico acumulados ao longo desse percurso para, assim, coligirmos mais informações que contribuam para depreendermos a posição que Lobato ocupou num determinado espaço social no interior do campo literário.

Recuperar a trajetória social de Lobato, no entanto, não nos dá todas as respostas que procuramos ou responde a todas questões sociologicamente relevantes, mas, desde que cotejada aos estados correspondentes da estrutura do campo que se determinam em cada momento histórico, oferece importantes elementos que permitem analisar as tomadas de posição e as disposições do agente social em razão da posição ocupada no campo, que, por sua vez, torna-se inteligível se vislumbrarmos a trajetória (social) percorrida pelo agente; trajetória e posição constituem uma relação dialética, na qual não é possível entender uma sem nos ocuparmos da outra. Noutros termos, se nos determos somente na biografia do ator social ou somente na posição por ele ocupada no campo, há o enorme risco de estabelecermos relações mecânicas e lineares, quando na verdade estamos tratando, de acordo com Pierre Bourdieu, do “espaço dos possíveis oferecidos” (BOURDIEU, 1996: 290), e não de certezas aprioristicamente dedutíveis 79.

* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 79 Afirma Bourdieu: “A origem social não é, como por vezes se crê, o princípio de uma série linear de determinações mecânicas, a profissão do pai a determinar a posição ocupada, que determinaria por sua vez as tomadas de posição (...)” (BOURDIEU, 1996: 290).

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Nascido a 18 de abril de 1882, em Taubaté, José Renato Monteiro Lobato (que depois substituiria o “Renato” por “Bento”) pertence a uma família que viveu na pele a derrocada do Vale do Paraíba em decorrência da crise da cultura do café na região. Cedo Monteiro Lobato torna-se órfão: seu pai, José Bento, morre em 1898, e Dona Olímpia, sua mãe, falece no ano seguinte, 1899. Sua guarda fica sob os cuidados de seu avô materno José Francisco Monteiro, de quem herda algum capital social e econômico, mas, principalmente, a tarefa de reconstruir todo esse capital na íntegra.

Como bem aponta Miceli, um dos principais caminhos escolhidos para a reconversão do “capital material dilapidado” daquelas famílias oligárquicas, durante a República Velha, cuja situação material estava em declínio (MICELI, 1977: 22) era o ofício das letras. A falência de tais famílias associada a um certo capital social acumulado de relações sociais se convertiam no handicap social que orientava a escolha em direção às carreiras intelectuais. É claro que o handicap por si só não basta, mas está ligado, como veremos adiante, com a expansão do mercado de bens simbólicos e o conseqüente aumento na oferta de postos disponíveis nesse mercado.

Assim, o cultivo intelectual, desde cedo, se fazia necessário. E isso não faltou na meninice e juventude de Lobato. A casa do avô, segundo os biógrafos de Lobato, dispunha de: “Estantes enormes, cheias de grossos tomos.” (CAVALHEIRO, 1962: 10, vol. I). E é na biblioteca que Lobato gasta longas horas de leitura e toma contato pela primeira vez com autores que exercerão forte influência em sua formação intelectual, como por exemplo Spencer.

Sua formação intelectual, contudo, não podia continuar na casa dos pais, do avô e nem mesmo no Vale do Paraíba. Por isso, em dezembro de 1895, vai para São Paulo para finalizar seus estudos. Contudo é reprovado no exame de Português, que o obriga a retornar à sua cidade para, no ano seguinte, seguir mais uma vez para a capital

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paulista. E desta vez Lobato obtém êxito e permanece na cidade grande.

Os primeiros anos de Lobato em São Paulo, desde às vésperas do segundo exame na capital paulista, foram marcados pela crise financeira - o que nos dá a idéia das condições materiais da família de Lobato à época:

“Ouve contar essas e outras loucuras dos milionários de São Paulo, e seus comentários à mãe, se não traduzem revolta, não ocultam o pasmo. Terá, com certeza, perguntado muitas vezes a si mesmo, o porquê de tanta diferença, quando ele anda sempre tão curto de dinheiro, tão curto que pede à mãe que não lhe mande mais frutas porque tem de pagar 2$000 a um carregador e ‘cada vez que despendo essa quantia é com muita dó de coração’. É neto e um Visconde, homem possuidor de muitas terras e propriedades, mas leva, na Paulicéia, vida de estudante pobre. Seus pais andam doentes, é com enormes sacrifícios que puderam mandá-lo para a Capital.” (CAVALHEIRO, 1962: 28, vol. I).

Ainda que fosse neto de visconde possuidor de muitas terras, efetivamente, em termos econômicos, isso pouco representava, levando em conta a pequeníssima produtividade do Vale do Paraíba, então devastado pela crise da cafeicultura, deixando atrás de si apenas cidades mortas, como Lobato mostrará, mais tarde, num de seus livros de contos.

A primeira estadia de Lobato na capital, no entanto, não é marcada apenas por vicissitudes. O cultivo literário iniciado na biblioteca do avô tem continuidade nos “jornaizinhos colegiais” e sociedades literárias que formaram no Instituto de Ciências e Letras, internato no qual Lobato leva adiante o estudo secundário - atividades, aliás, intimamente associadas: participa ativamente do Grêmio Literário Álvares de Azevedo e na publicação bimensal “O Patriota”. Nas

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palavras de Edgar Cavalheiro, maior biógrafo de Monteiro Lobato, “a vida literária era muito intensa no internato”.

Ao final dos estudos preparatórios cabe a Lobato escolher a carreira a ser seguida, e aqui se dá o primeiro choque entre o jovem e seu avô. Para o visconde não havia dúvidas: o neto seria bacharel. Contudo, o sonho de Lobato era ingressar na Escola de Belas Artes: “(...) naqueles tempos, para uma família tradicional, o caminho mais nobre, mais digno, mais de acordo com todas as aspirações, era o de bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais. E José Bento Monteiro Lobato não teve outro remédio senão capitular.” (CAVALHEIRO, 1962: 43). Há nessa escolha um interesse sociológico. A opção mais ou menos forçada pelo bacharelado não está tanto assim relacionada à nobreza e à dignidade, e sim à necessidade de recompor o capital econômico (e em parte também o social) já há algum tempo perdido; “todas as aspirações” a que Cavalheiro se refere diz respeito às aspirações familiares que Lobato deve realizar, devidamente orientado pelo Visconde de Tremembé, seu avô, porta-voz e símbolo não só das aspirações mas também das decepções de uma família oligárquica em crise. O que vale é menos o desejo individual de Lobato do que seu “destino” social - que apesar de seu grau de incerteza, é bem menos incerto do que se imagina 80. Ingressar na Faculdade de Direito do Largo São Francisco significava ampliar, e não garantir, as possibilidades de recuperação da posição social e econômica que a família de Lobato uma vez ocupara. Possibilidades estas que, provavelmente, seriam reduzidas caso ingressasse no curso de Belas Artes 81. Machado Neto aponta que a ascensão social foi até certo ponto

80 Norbert Elias, em seu ensaio sociológico sobre Mozart, afirma que o que o um indivíduo é capaz ou não de fazer sofre enorme influência do tipo de sociedade que rodeia tal indivíduo. (ELIAS, 1995: 19).81 De fato, os bacharéis em direito ocupavam fatia considerável dos postos oferecidos pelo mercado de produção cultural, inclusive o campo literário. Num levantamento feito por A. L. Machado Neto, o autor constata que dentre duzentos intelectuais, cento e cinco deles eram bacharéis em direito (MACHADO NETO, 1973: 101-102). Mais uma vez lembro que o fato de ter cursado as arcadas do Largo São Francisco não garantia, com a mais absoluta certeza, o ingresso na carreira intelectual, uma vez que as relações no interior do campo não são determinadas de modo tão mecânico, mas aumentava as chances e o poder de barganha dos postulantes a tais cargos.

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facilitada aos “profissionais da inteligência” (ver nota 82), que cada vez mais passaram a necessitar de uma comprovação de seu potencial e habilidades intelectuais, referendada pelo título de bacharel. Diante das pressões sociais, Lobato inicia o curso de direito em 1900.

Freqüentar a faculdade de direito permitiu a Lobato alcançar mais do que o diploma de advogado: possibilitou complementar sua formação literária, isto é, muniu Lobato de um capital intelectual e simbólico importantíssimos para sua entrada, posteriormente, no campo literário. Segundo Antônio Cândido, as arcadas se transformaram num “ambiente, um meio plasmador da mentalidade das nossas elites do século passado”. O espírito desse grupo (ou melhor dizendo, grupos estudantis) acabou gerando ecos literários: “a convivência acadêmica propiciou em São Paulo a formação de agrupamentos, caracterizados por idéias estéticas, manifestações literárias e atitudes, dando lugar a expressões originais.” (CÂNDIDO, 1976: 178). Tal sociabilidade acadêmica, portanto, não se restringia aos muros da faculdade, mas também se manifestava nas “estudantadas”, na vida boêmia, nas repúblicas, agremiações literárias, jornais e revistas:

“Estruturadas pelo princípio da origem comum (taubateanos, mineiros, fluminenses) ou do interesse comum (troça, literatura, estudo), elas eram a unidade básica da vida estudantil. Unidades não apenas de pouso, mas de recreio e atividade intelectual. Nelas se originaram muitos escritos, muitos projetos literários.” (Idem, 183).

Esse meio era estimulante para a produção literária, pois integrava os estudantes num sistema de relações no qual predominava a “atitude literária”, ou seja, a leitura, o intercâmbio literário, a produção, os recitais, discursos e a crítica. E, ainda, as repúblicas estudantis formavam também o público ledor, cuja opinião poderia colocar obras literárias em evidência . Lobato fazia parte de um desses grupos, chamado Cenáculo, que se reunia com assiduidade primeiro no

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Café Guarani e depois na república de alguns dos participantes (e na qual também morava Lobato), o Minarete: “A vida ali decorria entre piadas e risos, e altos sonhos de glórias literárias. Liam muito. Discutiam tudo.” (CAVALHEIRO, 1962: 60, vol. I) - Daudet, Zola, Flaubert, Victor Hugo, dentre outros; além daquelas leituras provavelmente influenciadas, num primeiro momento, pelo ambiente universitário: Comte, Herbert Spencer, Le Bon etc.

Descortina-se, pois, no início do século XX, um momento importante na estruturação do campo literário nacional: a presença cada vez mais marcante da universidade na vida intelectual, mormente a Faculdade de Direito do Largo São Francisco, na capital paulistana, responsável por gerar todo um ambiente e uma atmosfera literárias que extrapolavam os bancos das salas de aula e biblioteca e ganhavam vigor nas repúblicas estudantis, encontros, cafés, festas, enfim, naquela parte da vida que não estava diretamente associada ao meio acadêmico. Era uma outra etapa 82 do processo de estruturação de um campo com regras e lógica próprias, assimiladas pelos agentes por intermédio da incorporação de um habitus literário. Todo aquele meio social literariamente estimulante, inflamado pela presença das repúblicas e grêmios estudantis, até facilita a constituição de tal habitus porque além de formar um público leitor - restrito ainda - anima também a produção literária, a busca de um número mais amplo de leitores, a crítica da literatura, a incorporação e a continuação de uma tradição literária que vem se formando há algum tempo.

No caso de Monteiro Lobato, mas não exclusivamente, é nos tempos do Largo São Francisco e do Minarete que começa a se desenhar com maior nitidez os contornos de seu ofício de escritor. Publica em jornais estudantis e em periódicos menos conhecidos, como no jornal O Minarete 83, O Combatente, O Povo, de Caçapava, no qual publica a quase-novela “Os Lambe-Feras”. O trabalho de crítico 82 No capítulo primeiro foi abordado, ainda que rapidamente, um momento importante na formação de nosso campo literário: a fundação da Academia Brasileira de Letras.83 O periódico, de Pindamonhangaba, pertencia a um amigo de Lobato e fora batizado de acordo com a sugestão do futuro escritor, que homenageava a república estudantil na qual vivia.

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também se desenvolve nesse período, já que os membros do Minarete lêem os textos uns dos outros, opinando, analisando e avaliando de acordo com padrões e critérios puramente literários, obedecendo às regras típicas de um campo em formação, o que contribuía para o estabelecimento de uma tradição literária - mesmo que fosse uma tradição relativamente recente, fundada, segundo Antônio Cândido, apenas no século XVIII. A publicação nos periódicos contribuía, é certo que timidamente, para o alargamento do público leitor e por conseguinte o maior reconhecimento do autor. Todavia, o reconhecimento ainda não era suficiente para lançar o escritor rumo a uma posição de destaque no campo intelectual, e basicamente por dois motivos: à época Lobato usava e abusava dos pseudônimos, o que mantinha seu nome no anonimato; e, segundo, os periódicos nos quais contribuía não eram capazes de fornecer a dose adequada de capital simbólico para permitir sua entrada e ascensão no campo literário, dada a pouca visibilidade de tais publicações. De qualquer maneira, Lobato iniciava um treinamento literário que ia, aos poucos, familiarizando-o com a regras e estruturas sociais - até o ponto de internalizá-las - do campo intelectual que se formava.

A convivência com os colegas, na faculdade e na república, se não formava propriamente uma intelligentsia 84, isto é, um grupo de intelectuais reunidos em torno de projetos e afinidades comuns que se torna, acima de tudo, um sujeito político de força mais do que razoável, compunha um grupo social dotado de um ethos, de um corpo de práticas e uma “estrutura de sentimentos” comuns, suficientemente homogêneos para garantir sua coesão 85. E são essas características que movem seus membros a elaborarem projetos e planos literários e, mais importante, investir elevadas porções de energia para sua

84 Para uma discussão, breve mas densa, do conceito de intelligentsia, ver MARTINS, Luciano. “A gênese de uma intelligentsia - os intelectuais e a política no Brasil: 1920-1940.” In Revista Brasileira de Ciências Sociais, no 4, vol. 2, jun. 1987. Além da discussão conceitual, o autor analisa também a formação desse “stratum social” (para usar a expressão do próprio autor) no Brasil.85 Ver WILLIAMS, Raymond. “A fração Bloomsbury.” In Plural, Sociologia, USP, S. Paulo, 6: 139-168, 1o sem. 1999.

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concretização, que, por sua vez, acabam por colaborar para a estruturação do campo 86.

Em 1904 Monteiro Lobato termina o curso de direito e regressa a Taubaté, deixando para trás todo um ambiente e uma vida que marcaram decisivamente sua formação literária de Lobato. Mas era chegada a hora de Lobato retribuir o investimento que sua família, principalmente seu avô, fizera e concretizar seu “destino” social, cumprir a tarefa para a qual fora moldado: recuperar a posição sócio-econômica de sua linhagem familiar, de seus antepassados e de seus herdeiros.

Graças à intervenção de seu avô, Lobato é nomeado para o cargo de promotor público da Comarca, na pequena cidade de Areias, em 1905:

“Sou o DD. Promotor Público de Areias, cidade que positivamente há de existir. Cento e tantos candidatos para esse ossinho - informou-me o próprio secretário Washington Luis (com ‘s’- ele faz questão). Foi trunfo decisivo de uma carta de meu avô ao general Glicério. De lá - de Areias - passarei para uma comarca da Terra Roxa, a terra abençoada onde se ganha dinheiro ... E então casa-se.” (LOBATO, 1951: 158-159, vol. I).

Segundo Lobato, em carta endereçada a Rangel, a cidade forneceria “um livro à Euclides”, pois se tratava de uma “ex-cidade, de majestade decaída” (CAVALHEIRO, 1962: 104, vol. I), lugar onde se conjugava só “um tempo de verbo, o pretérito” (Idem, 105). Lá, Monteiro Lobato começa a recolher matéria sociológica que alimentará boa parte de seus contos, contribuindo, inclusive, para a criação de

86 Estamos diante do que Bourdieu chama de illusio: a crença e a adesão a um tipo de jogo que, para seus participantes, vale a pena ser jogado, com apostas e investimentos às vezes bastante altos. A illusio, tão importante para a sobrevivência de qualquer campo, começa a ser incutida nos agentes sociais, no caso aqui tratado, no que chamei acima de “treinamento literário”, que nada mais é do que um tipo de socialização típico de um campo específico.

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duas cidades imaginárias que permeiam sua obra literária, Itaoca e Oblivion.

Além da observação do ambiente e da gente locais - que não é pouco, se consideramos, como foi dito acima, que parcela considerável de tais observações serão transformadas em material literário - não resta muito o que fazer, e a vida em Areias é marcada, de acordo com o próprio Lobato, pelo tédio; rompido quando, em 1908, encontra uma pequena fonte de renda : assinara o Weekly Times, e quando se deparava com algum artigo que considerava interessante, traduzia-o e o enviava para O Estado de S. Paulo, iniciando, assim, sua atividade literária profissionalmente, que se desdobrará noutras frentes jornalísticas, como a contribuição assídua no jornal A Tribuna, de Santos ou a Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro 87 :

“Tenho mandado uns artigos para a Tribuna de Santos e publicado n’O Estado de S. Paulo umas traduções do Weekly Times - esse meio de neutralizar Areias (...). Quando encontro coisas muito interessantes, traduzo-as para o Estado e eles me pagam 10$000. Acho estranho isto de ganhar um dinheiro qualquer com o que nos sai da cabeça. Vender pensamentos próprios ou alheios...” (LOBATO, 1951: 250, vol. I).

Lobato começa sua atividade literária e ensaia os primeiros passos rumo ao campo intelectual (mais especificamente, o literário) por intermédio da atividade jornalística, o que se transformou quase numa regra no processo de formação de nosso campo: o jornal possibilitou a profissionalização do escritor e permitiu seu conhecimento e reconhecimento, arrancando os literatos do anonimato. Ao contrário do que ocorrera nos tempos de faculdade, desta vez os periódicos nos quais colaborava - dentre eles, não podemos esquecer, O Estado de S. Paulo - forneciam maior visibilidade social e eram

87 Sem contar a publicação de desenhos e caricaturas na revista Fon-Fon, do Rio de Janeiro.

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capazes de conceder algum reconhecimento. Destarte, começava a aumentar o patrimônio simbólico de Lobato. A participação de Lobato na imprensa, além do mais, vai influir na sua produção literária propriamente dita, na sua escrita, na forma de seus textos 88 - o que não é, claro, uma peculiaridade de Lobato, mas de boa parte dos literatos da época.

O trabalho na imprensa anima Lobato e ele planeja viajar para São Paulo e, quem sabe, ganhar o “comando literário” dum jornal de São Paulo 89. Porém, em 1911, os planos de Lobato sofrem um revés devido à morte do Visconde de Tremembé. Lobato herda, juntamente com outras duas irmãs, terras, casas e fazendas, e decide deixar a literatura para depois - mas o período que permanece na Fazenda Buquira traz repercussões literárias mais ou menos inesperadas.

Lobato decide levar adiante, e seriamente, a atividade de fazendeiro e imagina um sem números de métodos e novas atividades para ampliar a produtividade da fazenda. Pouco tempo depois começa a se deparar com obstáculos que julgara inesperados - pelo menos do seu ponto de vista. “A terra e o homem que a cultivava não correspondiam às suas ambições.” (CAVALHEIRO, 1962: 136, vol. I). A terra, naturalmente de difícil trato, era constantemente castigada pelas mãos do habitantes locais, que tinham o hábito de atear fogo para “limpar” os terrenos. As queimadas fragilizavam a terra, tornando-a cada vez mais improdutiva.

O meio que o circunda vai se tornando sua fonte de inspiração literária. Começa a refletir nas condições do Vale do Paraíba, naquelas “cidades mortas” cuja própria história acabou condenando-as, e, principalmente, passou a observar o caboclo local. Escreve a Rangel:

“Já te expus a minha teoria do caboclo, como o piolho da terra, o Porrigo decalvans das terras virgens? Ando a pensar em coisas com base nessa teoria, um livro profundamente nacional, sem laivos nem sequer remotos de qualquer

88 A análise do texto lobatiano será empreendida no próximo capítulo.89 Lobato comunica a possibilidade para seu amigo Godofredo Rangel em carta de 02/09/1909, mas não esclarece qual jornal seria esse.

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influência européia. Muito possível que te vendo impresso n’O Paiz, a Inveja, essa fecunda espora, me force a escrevê-lo. Se não sair, será mais um casulo que seca sem dar borboleta.” (LOBATO, 1951: 326-327, vol. I).

A indisposição contra o caboclo se converte na primeira viagem, levada mais a sério, de Lobato em direção aos problemas nacionais, especificamente os do meio rural. Pretende conhecer a fundo tais questões e chegar mais perto da “realidade” nacional; para isso planeja “um livro profundamente nacional”, despido de qualquer influência européia, seja em relação à temática desenvolvida, seja em relação à linguagem utilizada. Ademais, outras duas coisas ficam claras: a arma empunhada por Lobato para desbravar as paragens até então desconhecidas do país é a literatura - o que não é uma marca particular de Lobato, mas se insere naquela missão que alguns intelectuais incumbiram a si mesmos, qual seja, a militância política efetiva por meio da literatura 90 -; e a importância que Lobato confere ao meio que o circunda, transformando-o em parte integrante do conteúdo e da forma de seu texto literário.

As primeiras linhas de seu projeto literário começam a ser rabiscadas, incorporando elementos que ainda não podemos denominar de puramente lobatianos, mas que fazem parte do que Hegel chamava de “espírito da época”, que apesar de ser vaga e abrangente demais, pelo menos no que diz respeito ao tratamento sociológico, oferece uma imagem bastante aproximada do que se está querendo dizer. O desejo de conhecer a “realidade” brasileira faz Lobato atacar frontalmente o romantismo: aqueles caboclos heróicos e fortes, decantados por alguns românticos, não correspondem aos de carne e osso que Lobato conhecera; o romantismo, segundo ele, tratou falsear a realidade ao idealizar uma figura quase mítica, sem nenhum apego ao mundo concreto, atrapalhando, com isso, o acesso aos 90 A respeito da literatura militante e missionária de uma parcela dos intelectuais do período, ver: SEVCENKO, Nicolau (1995). Literatura como missão. Tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense.

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“verdadeiros” problemas nacionais. O caboclo, ao contrário do que o sertanismo e indianismo românticos preconizavam, era, de acordo com Lobato, fraco, indolente, mal-cheiroso, supersticioso e feio 91. A revolta lobatiana em relação aos problemas que assolam a zona rural e contra o “balsâmico indianismo” de José de Alencar - que atribuía inúmeras virtudes ao homem dos sertão e ao índio -, um enorme empecilho para se descobrir um Brasil autêntico, resulta nos dois artigos já mencionados no capítulo anterior: “Velha Praga” e “Urupês”, que, dentre outras coisas, denunciava a deformação romântica do homem do campo. A respeito de uma das maiores criações literárias de Lobato, o Jeca Tatu, afirma Edgar Cavalheiro:

“Ele nos apresenta o Jeca de corpo inteiro. É possível que o criador não tenha chegado a sentir a tragédia da criatura. Mas é preciso considerar que o Jeca nasce como reação: a princípio, do escritor contra a deformação do homem rural pelos literatos da cidade; depois, do fazendeiro contra aquilo que julga a causa principal de todos os seus males econômicos. É, portanto, mais do que mera página literária, um protesto, um libelo.” (CAVALHEIRO, 1962: 143, vol I).

Os artigos de Lobato, como vimos, fazem eco e causam diferentes reações: muitos elogiam Lobato por seu olhar arguto e coragem de denunciar as condições de vida do meio rural, que atingem fazendeiros e trabalhadores; alguns acusam-no de anti-nacionalista por não valorizar as gentes do Brasil. O que é certo, é que seu artigo não passa incólume. De todo modo, apesar de algumas críticas daqueles que sentiram seu “brio patriótico” aviltado, o sucesso bate à porta de Monteiro Lobato (AZEVEDO, CAMARGOS & SACCHETTA, 1997: 61).

Como escrevi algumas linhas acima, a vida como fazendeiro acabou por trazer uma ressonância literária mais ou menos inesperada. 91 A despeito da avaliação equivocada de Monteiro Lobato, mais tarde reconhecida pelo autor por meio de um mea culpa dirigida ao próprio personagem, Lobato teve o mérito de chamar a atenção à miséria que assolava não só o interior de São Paulo, mas de boa parte do sertão brasileiro. No capítulo seguinte farei uma análise mais detida de sua criação literária.

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Mais ou menos porque a reação de Lobato, travestida sob a forma do Jeca Tatu, não representava apenas a reação individual dele, Lobato, mas de todo um setor consideravelmente importante da sociedade paulista, uma oligarquia rural em crise. O fato de agir, despropositadamente, como porta-voz de parcela da aristocracia rural de São Paulo é também um fator a ser levado em conta no sucesso da recepção dos dois artigos já referidos. É por ser representante de todo um conjunto social específico que Lobato foi tão bem aceito nas páginas d’O Estado, e não devido apenas ao seu “talento” literário. Como bem aponta Sérgio Miceli, a expansão das organizações políticas e das instâncias de produção cultural e ideológica, e a relação entre ambas, está ligada à “história das transformações políticas e à história das transformações das relações de força no interior do circuito oligárquico.” (MICELI, 1979: 1-2). Setores da oligarquia que não possuíam a representação política desejada passaram a atuar como opositores do quadro institucional vigente à época e participaram diretamente na fundação do Partido Democrático (PD) (CAMPOS,1986: 75). O PD representava uma dissidência oligárquica que fora marginalizada institucionalmente e passava a representar o grande adversário político do Partido Republicano Paulista (PRP), único partido oligárquico existente até então. As ligações entre o PD e a família Mesquita, detentora do controle acionário d’O Estado desde 1897, eram mais do “perigosas”:

“O êxito comercial desse órgão está na raiz da diversificação das atividades do grupo Mesquita que, tendo-se praticamente convertido numa facção partidária, pôde assumir a liderança das sucessivas frentes de oposição ao comando perrepista. A posição de força relativa de que o chamado ‘grupo do Estado’ dispunha enquanto baluarte do ‘liberalismo’ oligárquico é, portanto, indissociável de sua condição de empresários culturais.”(MICELI, 1979: 1-2).

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Embora Lobato não tivesse participado da fundação do Partido Democrático - o que de fato sé ocorreu em 1926 - e nem tenha participado das fileiras do partido, desde o final da década de 10 do século XX suas propostas e projetos estavam ideologicamente mais próximas daquele grupo social que mais tarde contribuiria para a formação do PD (CAMPOS, 1986: 74) e que desde essa época tinha relações estreitas com o grupo do jornal O Estado de S. Paulo. Se a formação do Partido Democrático ocorre só na segunda metade dos anos 20, as reivindicações de certos setores insatisfeitos da oligarquia rural paulista - e que o jornal mencionado apoiava - eram um pouco mais velhas. A fundação do partido correspondia a uma parte de um processo histórico que se desenrolava já há algum tempo e que culminou na revolução de 30. Os últimos vinte anos do Império correspondem ao início da crise em todo o Vale do Paraíba e o impressionante avanço da cafeicultura no Oeste Paulista; da empresa cafeeira concentrada nessa região nasceria “uma nova classe assentada em relações capitalistas de produção, com consciência de seus interesses e um projeto de estruturação política do país.” (FAUSTO, 1989: 199). A nova “burguesia paulista do café” contava inclusive com uma sólida base de apoio no próprio aparelho do Estado, o que ajudava, e muito, a realização de sua política hegemônica. A consolidação econômica e política desse novo ator social - que tinha até o controle da máquina estatal da província de São Paulo - excluía completamente os antigos barões do café do Vale do Paraíba 92.

Dentro desse processo “das transformações das relações de força no interior do circuito oligárquico”, cabia ao grupo Estado, em certo grau, traçar estratégias para arregimentar aliados para atuar ao seu lado nos novos embates que se insinuavam no campo político. E ao

92 A propósito da questão da economia cafeeira e a crise política e econômica dos anos vinte, ver dois artigos esclarecedores de Boris Fausto: “Expansão do café e política cafeeira.” In FAUSTO, Boris (Org.) (1989). História Geral da Civilização Brasileira. O Brasil republicano - estrutura de poder e economia (1889-1930). Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil; e “A crise dos anos vinte e a revolução de 1930.” In FAUSTO, Boris (Org.) (1989). História Geral da Civilização Brasileira. O Brasil republicano - sociedade e instituições. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil.

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atrair intelectuais para seu lado, o jornal também abria espaço para a atuação de literatos e incrementava o ambiente literário e cultural da época, contribuindo não só para a profissionalização dos escritores bem como para a estruturação de um campo literário.

Foi dentro desse panorama - de ampliação das possibilidades do trabalho intelectual, bastante influenciado pelo reordenamento das forças políticas do Estado, e cuja participação de O Estado de S. Paulo foi muito importante, somada ao impacto causado pelos artigos “Velha praga” e “Urupês” 93 - que Lobato passa a receber mais e mais convites para colaborar em jornais e revistas - inclusive do próprio Estado. O nome de Monteiro Lobato começava então a ganhar nova densidade social, o reconhecimento se tornava mais palpável, indicando o aumento de seu capital simbólico e, conseqüentemente, a conquista de uma nova posição no campo, que não era ainda destacada mas deixava de ser apenas um ponto imperceptível no mapa literário. Ao mesmo tempo, Lobato andava já bastante farto da roça e aborrecido com as várias tentativas frustradas de recuperar economicamente a fazenda Buquira. Opta por vendê-la, mas não surgem compradores de imediato, o que vai acontecer em 1917.

No mesmo ano muda-se para a capital, onde é muito bem recebido pelos meios intelectuais da Paulicéia, pois já não é um nome desconhecido. Há mais de um ano Lobato vinha colaborando assiduamente n’O Estado de S. Paulo e na Revista do Brasil, periódico fundado em 1916 com Júlio de Mesquita, Luís Pereira Barreto e Alfredo Pujol à frente. O programa editorial da revista se ajustava perfeitamente às diretrizes básica do projeto literário lobatiano, que ia assumindo uma feição mais bem definida. Uma dessas diretrizes - quiçá a principal delas - era a formação de uma “consciência nacionalista” (termo usado pelos fundadores e participantes da revista). Por consciência nacionalista entenda-se o combate aos modismos culturais,

93 Cabe ressaltar que esses dois fatos, a maior oferta do trabalho intelectual e a repercussão dos artigos de Monteiro Lobato, estão dialeticamente associados, ou seja, não é possível considerar e analisar um isoladamente do outro sob o risco de subjugar a força expressiva do autor ou desmerecer a influência dos eventos sociais.

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artísticos e literários importados da Europa (mormente a França), o estudo detido da realidade nacional, a valorização da língua da terra (com a incorporação dos regionalismos e do falar coloquial), o resgate de nossas raízes mais profundas (que se manifesta, por exemplo, na atenção dedicada ao folclore nacional), enfim, tudo aquilo que poderia ser reunido sob a rubrica de “brasilidade” (por mais falso e simplificador que o termo possa ser, sua utilização avulta no período aqui estudado).

A comunhão entre as idéias de Lobato e a linha editorial da revista tornam o primeiro um escritor bastante presente nas páginas do periódico 94, amplificando seu reconhecimento social e encorajando-o a tentar vôos mais audaciosos.

O primeiro deles foi o inquérito sobre o Saci. “O momento era de exaltado nacionalismo; as cosas da terra vinham à tona, e ninguém mais indicado do que ele [Lobato] para vesti-las adequadamente.” (CAVALHEIRO, 1962: 152, vol. I). O primeiro livro de Monteiro Lobato, apesar de seu nome não aparecer, causa um impacto positivo - foi considerado uma importante contribuição para o estudo de nosso folclore -, e dois meses depois vem à lume a segunda edição 95. Para se ter uma idéia do impacto do livro, após o lançamento uma verdadeira enxurrada de cartas de Minas gerais, Rio de Janeiro e, principalmente de diversa regiões paulistas, inundam a redação do jornal. Embora publicado sob a chancela do Estadinho, publicação vespertina de O Estado, o autor praticamente banca sozinho a edição do livro. Essa experiência leva-o a considerar a possibilidade de se tornar editor.

E a oportunidade não tarda a aparecer. Lobato é convidado a dirigir a Revista do Brasil, mas , em lugar de dirigi-la, propõe aos 94 Tanto as idéias de Lobato quanto a linha editorial da Revista do Brasil respondem a uma “demanda” do próprio tempo histórico: pensar o próprio país e oferecer alternativas para sua emancipação econômica e cultural, uma vez que a política já havia sido conquistada. Muitos outros escritores do mesmo momento histórico também, de alguma maneira, tentavam dar conta dessa “necessidade” histórica-social, como Euclides da Cunha, Graça Aranha, Lima Barreto e os modernistas.95 A primeira edição de O Sacy-Perêrê. Resultado de um inquérito contou com a cifra de 5.300 exemplares, marca espantosa até para os dias de hoje se levarmos em consideração que os livros acadêmicos, por exemplo, são lançados, no Brasil, com um tiragem inicial de 1.000 exemplares em média.

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proprietários a compra da revista. “O negócio é definitivamente resolvido em maio de 1918; por dez contos uma Assembléia Extraordinária da sociedade anônima transfere a propriedade do mensário para Monteiro Lobato.” (Idem, p.155). Estava lançado o gérmen da futura editora de Monteiro Lobato. Seria ingênuo pensar que tal oportunidade tenha sido mero golpe do destino, ou que ela tenha sido o fruto mais maduro que o relativo sucesso do inquérito foi capaz de gerar - o que não quer dizer que o livro não tenha trazido bons frutos para a carreira de Lobato ou que não corresponda à “pulsão expressiva” de um escritor peculiar. É Lobato mesmo quem oferece um caminho alternativo para entendermos de maneira mais abrangente aquilo que às vezes parece obra do acaso ou do gênio individual:

Tens lido os meus artigos? Produziram efeito interessante: um despertar de consciência adormecida. E por causa deles relacionei-me com uma porção de artistas daqui, escultores e pintores. Entusiasmaram-se todos com a idéia da arte regional. O saci, sobretudo, impressionou-os muito, e eles (quase todos italianos ou de outras terras) vêm consultar-me sobre o saci, como se eu tivesse alguma criação de sacis na fazenda.” (carta de 10/01/1917 In LOBATO, 1951: 128, Vol. II, ).

A chance que se apresenta a Lobato em adquirir a Revista do Brasil remete a outros fatores além do vigor de sua expressão literária. Aliás, resumir seu projeto criador a tal vigor seria uma ingenuidade. Como procurei argumentar, o capital social herdado por Monteiro Lobato, num certo sentido, dispõe atalhos rumo à carreira literária, pois sua origem social ligada a certos setores descontentes da oligarquia cafeeira paulista o aproxima do grupo Estado, que possuía laços estreitos com tais setores - mesmo inconscientemente Lobato se converte numa espécie de porta-voz desses agentes sociais. A partir do momento que Lobato ganha mais espaço para publicar seus artigos, crônicas e contos - no jornal e na revista -, aumenta sua visibilidade

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social, o reconhecimento e o prestígio, alargando igualmente sua rede de relações sociais - como percebemos no trecho transcrito logo acima -, o que resultou em lucros simbólicos (e materiais) cada vez mais crescentes. Portanto, ao capital social herdado (que, de fato, era pouco) Monteiro Lobato vai agregando doses crescentes de um novo capital social adquirido; e aumenta seu poder de negociação - bem como seu poder de fogo na hora das contendas literárias - dentre os integrantes do campo literário. O capital social herdado, o capital social adquirido, o capital social convertido em capital financeiro, o capital intelectual erigido, a força da escrita literária, a configuração do campo literário daquele momento e as transformações das correlações de forças no campo político, todos esses fatores juntos, em uníssono, em certa medida concorreram para que certos caminhos, e não outros, se apresentassem para Lobato.

É certo que os lucros simbólicos, sociais e materiais auferidos por Lobato não só ampliaram seu poder de barganha como também possibilitaram novos investimentos no campo, que, por sua vez, redundaram em novos lucros.

A nova investida de Lobato, em julho de 1918, foi o lançamento de Urupês, oficialmente seu primeiro livro, uma vez que o inquérito sobre o saci não trazia o nome de Monteiro Lobato. No livro o autor reúne, além dos bombásticos artigos “Urupês” e “Velha Praga”, contos que em sua maior parte já havia publicado na Revista do Brasil. A estratégia de Lobato em relação ao seu primeiro livro revela a sagacidade do escritor. Primeiro, na escolha do título. Inicialmente havia pensado em batizar a obra de “Dez mortes trágicas”, mas, segundo seu biógrafo Edgar Cavalheiro, Artur Neiva, chefe do Serviço Sanitário do Estado, sugere a mudança para “Urupês”, título do artigo no qual traçara o retrato do Jeca. Lobato aceita imediatamente o conselho. E por razões óbvias: em termos literários, foi justamente esse artigo que abriu as portas do campo para Monteiro Lobato e tornou-o mais conhecido no ambiente intelectual da Paulicéia, portanto, o título do livro não deixava de ser um chamariz interessante para os possíveis

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leitores. Segundo, a inclusão dos artigos anteriormente publicados n’O Estado: ora, se os prováveis leitores não conheciam o Lobato-contista, já conheciam (ou pelos menos já haviam ouvido falar) o Lobato-articulista, polêmico e contundente nas suas opiniões, o que não deixava de funcionar também como um atrativo para o livro. Por fim, Lobato tratou de incluir um bom número de contos senão conhecidos por um público mais amplo ao menos pelos círculos intelectuais da capital, porque já tinham sido veiculados em números anteriores da Revista.

Urupês, até certo ponto inesperadamente - apesar das estratégias delineadas para seu lançamento -, sacode o mercado editorial da época. Provavelmente devido aos temas abordados nos contos e à sua linguagem , até certo ponto transgressora naquele momento, o livro de estréia de Lobato alcançou enorme êxito. Em carta enviada a Godofredo Rangel, em 30/09/1918, Lobato comunica a seu amigo que encomendara a quarta edição do livro, com uma tiragem de quatro mil exemplares. E seu lançamento ocorrera praticamente cinco meses antes! Em três edições já haviam sido vendidos três mil exemplares. Além disso, Lobato conta com uma notável contribuição que irá impulsionar ainda mais as vendas de seu livro: o discurso proferido no Teatro Lírico, em março de 1919, no qual Rui Barbosa, eminente tribuno, político respeitável e candidato à presidência (em 1919), cita positivamente Urupês - particularmente a aguda perspicácia de Lobato ao observar a condição de vida do homem do campo, sintetizada na figura do Jeca Tatu:

“Senhores:Conheceis, porventura, o Jeca Tatu, dos Urupês, de Monteiro Lobato, o admirável escritor paulista? Tivestes algum dia, ocasião de ver surgir, debaixo desse pincel de uma arte rara, na sua rudeza, aquele tipo de uma raça, que, ‘entre as formadoras da nossa nacionalidade’, se perpetua, ‘a vegetar, de cócoras, incapaz de evolução e impenetrável ao

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progresso’? (BARBOSA, Rui. “A questão social e política no Brasil” In Ciência e Trópico, vol. 9, no 2, jul/dez 1981: 171).

Se o livro de Lobato e o nome do autor gozavam de prestígio em São Paulo, a partir do discurso de Rui Barbosa o nome de Lobato é difundido nacionalmente e torna-se conhecido e reconhecido até nas paragens mais distantes do território nacional. E tal contribuição não pode ser menosprezada, mesmo sendo verdadeira a afirmação de que mesmo antes da propaganda não intencional de Rui Barbosa o livro já era um sucesso retumbante 96. Porque tal sucesso se restringia a São Paulo e não alcançava ainda de maneira vigorosa outros estados, e a citação por parte de uma figura tão importante e respeitável na época só fez aumentar o prestígio e o renome de Monteiro Lobato, ou seja, constituiu uma importante contribuição para a prosperidade da fortuna simbólica do autor.

A repercussão de Urupês pode ser medida a partir das referências que vários críticos e intelectuais do período endereçam ao livro, muitas delas resumidas no longo (longuíssimo, é verdade) trecho escrito por Edgard Cavalheiro e citado a seguir:

“É tempo de uma pergunta: onde está o segredo do êxito de ‘Urupês’? Por ser, como quer Mário de Sampaio Ferraz, o nosso ‘j’accuse racial’? Por significar, na opinião de José Lins do Rego e outros, uma espécie de elo entre duas épocas brasileiras? Por ter sido o primeiro escritor brasileiro a dar à tristeza nacional uma verdadeira grandeza? Pela ausência de ênfase, pela impassibilidade álgida com que apresenta os quadros mais tétricos? Por representar a obra básica do modernismo? Para Sud Mennucci, o segredo do sucesso de

96 Como é igualmente verdadeiro o fato de que a referência ao Jeca Tatu feita por Rui contribuiu para esgotar a quarta impressão. Quem confirma a informação é o próprio Lobato: “O discurso do Ruy foi um pé de vento que deu nos Urupês. Não ficou um para remédio, dos 7.000! estou apressando a quarta edição, que irá do oitavo ao décimo segundo milheiro. Tiro-as agora aos quatro mil. E isto antes de um ano, hein? O livro assanhou a taba - e agora, com o discurso do Cacique-Mór, vai subir que nem foguete.” (LOBATO, 19515: 194, vol. II).

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“Urupês’ está no contraste de que sendo livro que trata de assuntos nacionais, ‘não é uma obra pró-nativismo, é, ao contrário, um traço caricatural, apanhado com justeza e uma verdade quase diabólica no que tal sentimento tem de mais indesejável para os modernos’. Outro é o ponto de vista de João Pinto da Silva, que explica tal êxito pela revelação, em tais páginas, ‘de um conteur já senhor dos segredos todos do ofício, um conteur, enfim, entre Górki e Maupassant, armado de poliédrica imaginação, de pontos de vista originais e de estilo nervoso, colorido, impressionante, elástico e fulgente’. Agripino Grieco concorda com as qualidades técnicas apontadas pelo crítico sulino, dizendo que ‘sentia-se que efetivamente havia, diante do leitor, um ficcionista robusto e novo, e era difícil deixar de aplaudir’. Opinião com a qual Nestor Victor está de inteiro acordo. Tristão de Ataíde vai mais longe: para ele dizer que Monteiro Lobato é o maior contista da sua geração é quase lugar-comum. A seu ver, o segredo dessa vitória está na naturalidade do escritor, na maneira anti-romântica e contrária ao mito do otimismo nacionalista de de encarar as coisas brasileiras. ‘Foi esse realismo, foi essa naturalidade, foi o tom de franqueza rude e sem modos com que esse fazendeiro de Taubaté empurrava de repente a porta de nossas letras, que lhe garantiram a fulminante popularidade’. Para Gilberto Freyre, quem diz ‘Urupês’ diz ‘uma revolução nas letras brasileiras’. ‘Urupês ... nossa magna carta, documento da nossa independência cultural’, afirma João Ribeiro. O crítico argentino Juan Torrendall observa que as narrativas de Lobato interessavam não tento pelo que diziam, mas pela maneira como as coisas são ditas. ‘As personagens surgem rapidamente debuxadas com meia dúzia de linhas acentuadoras - às vezes com uma frase característica - e em seguida entra-se na matéria

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anunciada por si mesma, como num cenário, e desenvolvida rapidamente e naturalmente, sem vacilações, com graça, muita graça e desenho firme de traços fortes.’ ‘Não há quem - acentua Veiga Miranda - ao ler as páginas em que se agitam tipos como os do Pernambi, do Biriba, da preta Inácia, e de tantos outros dessa galeria real e viva dos ‘Urupês’, não se convença de que tais criações não brotaram da fantasia do autor, porém foram transladadas para o livro de modelos de carne e osso, figuras com que deparou por acaso, aqui e ali, nas horas da sua maior receptividade emotiva.(...) Mas a prosa com que vestira ‘Urupês’ não era tudo. Linguagem somente jamais construiu boa obra literária. Em ‘Urupês’, além dos vocábulos regionais, que tanto trabalho dariam a Cândido de Figueiredo, do boleio da frase, da precisão com que fixava um ambiente, havia algo ainda mais importante: o sentido humano, o largo sopro de vida com que o contista envolvia suas histórias. (CAVALHEIRO, 1962: 174-176, vol. I).

Desculpe o leitor por tão longa citação, mas ela interessa porque traz informações sociologicamente relevantes. Edgard Cavalheiro faz desfilar críticos e intelectuais renomados, contemporâneos de Lobato, que tomaram, num certo sentido, a defesa do escritor e contribuíram, indubitavelmente, para a consagração do autor de Urupês, o que dá a medida da envergadura de Lobato nos meios literários e intelectuais do final dos anos 10 do século passado. É esclarecedora também a forma que Cavalheiro confere ao seu próprio texto: o biógrafo pretende disfarçar os laços afetivos e de amizade que o ligavam a Lobato ao tentar legitimar seu discurso a partir da fala alheia, isto é, por meio da análises, opiniões a avaliações (bastante elogiosas) de outros - e não quaisquer outros, mas intelectuais de prestígio -, Cavalheiro pretende provar a excelência da literatura lobatiana, pretende trazer à tona a

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“verdade” das coisas, a saber, o valor inquestionável do livro (e por extensão, toda sua obra) de Monteiro Lobato. Ao imprimir um tom de objetividade à sua exposição, Cavalheiro revela muito mais: não somente o prestígio alcançado pelo escritor naquele momento, mas que a batalha em torno do nome de Monteiro Lobato não ficara restrita ao tempo de Lobato, mas se alongava ao longo de algumas décadas 97, exigindo todos os recursos disponíveis para participar (e vencer) a contenda 98. No caso, Cavalheiro participa da peleja lançando mão da opinião balizada de críticos e intelectuais de prestígio, justamente para conferir força ao argumento que desenvolve ao longo de sua biografia sobre Monteiro Lobato. Se se limitasse a oferecer apenas suas próprias idéias correria o risco de vê-las completamente deslegitimadas por seus adversários em virtude de sua ligação pessoal com o biografado.

Motivado pelo impacto altamente positivo - atestado pelo rol de críticos que Cavalheiro perfila no trecho acima citado - de seu livro de estréia, Lobato, no mesmo ano de 1918, dá a luz ao seu segundo livro: Problema vital. Não é um livro de contos, mas artigos e crônicas por meio das quais torna-se o aliado de Belisário Pena e Artur Neiva na campanha pelo saneamento no Brasil. O que aproxima esse livro do anterior é, creio eu, menos as afinidades literárias do que a temática: o mergulho na “realidade” do sertão brasileiro, as vicissitudes que vive o sertanejo, o descaso em relação às condições de vida do interior, a miséria que exala do sertão. De certa maneira todos esses temas já estão presentes nos artigos e contos publicados anteriormente, tornando evidente o caráter social e militante da obra de Lobato. Foi mais um sucesso editorial que popularizou ainda mais o nome de Monteiro Lobato. E, desta feita, o sucesso se deve à abordagem de um problema que está na ordem do dia, palpável por todos, ao alcance inclusive das grandes cidades; e tal proximidade temática alargou o universo de leitores de Lobato - que era, inclusive, uma preocupação de Lobato presente em todo seu projeto literário.97 A primeira edição do livro de Edgard Cavalheiro sobre a vida e a obra de Lobato é de 1956.98 Como foi visto no capítulo anterior.

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Sucesso após sucesso (material e simbólico) Lobato encontrou condições de formar uma casa editora com oficina própria, cuja firma é registrada na Junta Comercial em março de 1919. O novo investimento, mais o prestígio literário alcançado por Lobato, tornaram-no “o centro de convergência das rodas literárias da Paulicéia” (CAVALHEIRO, 1962: 213, vol. I). Sua editora, a Monteiro Lobato & Cia., transforma-se numa das mais importantes casa do ramo, reunindo uma variedade de jovens e talentosos escritores, alguns em ascensão e outros já donos de um certo renome. A editora de Lobato lhe assegura definitivamente uma posição hegemônica - que vinha se delineando desde a publicação dos seus artigos e contos na imprensa e mensários da época - no campo literário. Num mercado editorial marcado pelo marasmo, no qual a atividade editorial era escassa, a editora de Lobato até com uma certa facilidade deixou seus concorrentes para trás. Efetivamente, Lobato revolucionou o sistema de distribuição do livro, investiu no marketing do produto, modificou radicalmente o padrão editorial dos livros, alterando tanto seu aspecto interno quanto o externo (capa, ilustrações, tipo de letra, etc.). Sem contar o rol de escritores que publicava sob a chancela de sua editora. Na realidade, a importância de sua editora chegou a tal ponto que boa parte dos literatos do período desejavam ser editados por Lobato. O monopólio do sistema de classificação dos escritores estava concentrado nas mãos de Lobato: quem ou o quê seria publicado necessariamente dependia de suas decisões e de seus critérios. Sem dúvida havia aí uma certa negociação: enquanto o escritor tomava emprestado o prestígio e o respeito da “marca” Monteiro Lobato para alcançar o reconhecimento, cedia ao editor-escritor, por outro lado, o vigor de sua expressão literária e/ou a porção de fama que havia conseguido juntar ao longo da carreira. Não é um exagero repetir parte da lista de escritores que compunham o catálogo de sua editora - no primeiro capítulo foram citados alguns literatos editados por Lobato -, repetindo alguns nomes, suprindo e acrescentando alguns outros, bem como citar as áreas de atuação de

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sua editora: na literatura (poesia, contos e romances) Alphonsus de Guimaraens, Vicente de Carvalho, Menotti del Picchia, Ribeiro Couto, Léo Vaz, Valdomiro Silveira, Godofredo Rangel, Humberto de Campos, Cornélio Pires, Hilário Tácito, Oswald de Andrade, Lima Barreto, Júlio Ribeiro, Visconde de Taunay, Afonso Schmidt, Coelho Neto, Manuel Antônio de Almeida; obras de filologia de João Ribeiro, Assis Cintra e Agenor Silveira; ensaios sociológicos de Oliveira Vianna, Sampaio Dória ou Ingenieros; ensaios e estudos de Graça Aranha, Gilberto Amado, Amadeu Amaral, Alcides Maia, Sud Mennucci; e ainda livros técnicos de medicina, higiene, veterinária, contabilidade, gastronomia, educação física e engenharia, psiquiatria e direito; ocultismo; história, política e viagens de autores como Paulo Prado, Saint Hilaire, Hans Staden e Rodolfo Teófilo; e, por fim, livros didáticos (CAVALHEIRO, 1962: 199-200, vol. I) - compondo um catálogo bastante variado de autores e assuntos.

Nesse intercâmbio de bens simbólicos ambas as partes saíam ganhando. Se bem que é razoável considerar uma certa vantagem de Monteiro Lobato, uma vez que ele conseguia agregar mais valor a um montante expressivo de bens simbólicos já acumulado. A atividade editorial de Lobato contribuiu bastante para torná-lo um ponto de referência obrigatória no campo literário, aumentou sua influência no meio literário e sua rede de relações no ambiente intelectual.

Além de atuar na publicação dos outros, Lobato publicava a si mesmo e contribuía duplamente sua própria consagração. Explico. Com sua editora, Lobato não só transformou o sistema de distribuição e venda do livro, bem como seu aspecto gráfico e a política de publicação, mas influiu profundamente no processo de profissionalização dos escritores, efetuando pagamentos generosos (e, em geral, pagamentos adiantados) aos literatos publicados por ele, o que possibilitava aos homens de letras uma dedicação muito maior e unicamente ao ofício da pena. Destarte, Monteiro Lobato permitiu a libertação dos escritores das péssimas condições de trabalho que os editores estrangeiros (como Francisco Alves, Garnier, Briguiet, etc.) -

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praticamente os donos do mercado editorial até o empreendimento de Lobato - lhes infligiam, como o não pagamento ou o pagamento muito baixo pelos direitos autorais. Lobato liberta, portanto, vários escritores do jugo dos antigos editores e , importante atentar, a si mesmo; com isso pode editar seus próprios livros com o cuidado que achava que mereciam, que ia desde a sua preparação gráfica até a elaboração das estratégias de propaganda e venda. Possivelmente, se o Lobato-escritor dependesse de outros editores seus livros talvez não fossem alvo da diligência consentida pelo Lobato-editor, e, quem sabe, sua repercussão não teria sido tão estrondosa. De um lado Lobato foi o editor zeloso de outros escritores, e, de outro, foi o anjo da guarda dele mesmo. Dessa maneira garantia, pelo menos num certo grau, sua consagração como editor e sua consagração como escritor.

Tanto prestígio acumulado, agora em duas frentes de ação, tornou-o uma figura singular no campo literário nacional e o colocou sob a mira das mais duras críticas (como vimos no capítulo anterior) e dos mais rasgados elogios - pincelados rapidamente no longo trecho transcrito da obra de Edgard Cavalheiro. Alguns dos mais respeitados intelectuais, literatos e críticos literários, contemporâneos ou não de Monteiro Lobato, não pouparam adjetivos para classificar a força da prosa lobatiana.

Alceu Amoroso Lima, em artigo publicado no diário carioca O Jornal, em 23/06/1919, afirma que Lobato é:

“(...) um dos batedores mais ousados de nossa literatura. Vibrante, expressivo nas comparações vegetais, independente, cria neologismos, inventa construções inéditas, e para idéias novas aplica termos novos. Pode-se dizer que ele sacode a velha árvore da língua, e ao agitar da fronde caem os frutos secos, vigorizam-se os novos e repontam outros.”(In Ciência e Trópico, vol. 9, no 2, jul/dez 1981: 179, grifos meus).

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É de espantar a diferença com que o autor se refere a Lobato quando comparado com os modernistas. Se estes últimos relacionavam Lobato ao academicismo literário, o crítico Alceu Amoroso Lima diz que o escritor é capaz de balançar a “velha árvore da língua”, numa referência explícita à novidade que Lobato representava no mundo literário.

E ele não foi o único. Outro crítico conhecido, Agrippino Grieco, no seu livro Evolução da prosa brasileira, editado pela José Olympio Editora em 1947, chama Lobato de “Maupassant brasileiro”, por ser, segundo ele, “um ficcionista robusto e novo.” (In Ciência e Trópico, vol. 9, no 2, jul/dez 1981: 187). É importante prestar atenção no ano de publicação desse livro: 1947. Ou seja, vinte e cinco anos depois da Semana de Arte Moderna o crítico ainda filiava Monteiro Lobato, submergido pela onda modernista, entre os grandes contistas de nossa literatura.

Em 1943, Gilberto Freyre, ele também um representante do modernismo no meio intelectual brasileiro - ligado ao movimento modernista que vinha do nordeste -, escreve um artigo publicado n’O Jornal do Rio de Janeiro e também no Diário de Pernambuco do Recife, em que afirma o seguinte: “E quem diz Urupês diz uma revolução nas letras brasileiras”, um dos “(...) iniciadores mais vigorosos da fase atual da literatura do nosso país.” (In Ciência e Trópico, vol. 9, no 2, jul/dez 1981: 209-210). E aqui, é bom frisar, trata-se da avaliação dum intelectual inserido no modernismo, que reconhece em Lobato um bandeirante literário, isto é, um homem que abriu caminhos para a literatura nacional.

A lista dos aliados poderia se estender: Tristão de Athayde, Bernardo Elis, Jorge Amado, e outros - assim como a dos adversários. Mas a intenção não é elaborar listas e quem sabe compará-las para verificar em qual delas está o maior número de intelectuais famosos e respeitados para, a partir de um critério altamente duvidoso, tentar concluir se Lobato foi ou não um precursor em nossa história literária. O propósito é outro. É mostrar que Lobato se encontrava (e talvez ainda

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se encontre) no epicentro de uma batalha. Uma luta renhida por sistemas de classificação, critérios de consagração e pelo estabelecimento de “verdades literárias”, em que cada um dos lados oponentes julga sua “verdade” mais legítima e “mais verdadeira” que a do outro.

O que este capítulo procurou demonstrar é que não é por acaso que Monteiro Lobato se tornou o pivô desse ardoroso conflito. O capital social e simbólico acumulado por Monteiro Lobato num espaço tão curto de tempo foi espantoso, fazendo dele uma figura ímpar em nosso campo literário. Aqui, tentei reconstruir toda a trama que configura uma pista importante para entender por que Lobato se transformou na “vítima” dos modernistas. E esta trama se concentrou na trajetória individual do escritor, na sua biografia; entrelaçada, como não poderia deixar de ser, com o processo de estruturação do campo literário brasileiro, levando-se em conta os aspectos internos desse campo e com os fatores externos que de certa forma exerceram algum tipo de influência na sua formação.

Além dos elementos sociais que concorreram para o posicionamento privilegiado de Monteiro Lobato no campo, é claro que a “pulsão expressiva” do escritor também constitui um fator que contribui imensamente para o sucesso de sua trajetória literária, para a realização efetiva de seu “projeto criador”. No entanto, não é possível reduzirmos o êxito de tal projeto simplesmente à “vontade criadora” do escritor, sob efeito de cairmos na armadilha romântica que atende pela expressão de “gênio do artista”. E mesmo a “pulsão expressiva” do autor sofre também os efeitos da ação do campo, tanto para potencializar tal “pulsão” como também para inibi-la 99.

A seguir, tratarei da terceira pista que nos leva aos motivos da morte de Lobato anunciada no capítulo primeiro: o projeto literário lobatiano propriamente dito, composto por duas faces não excludentes mas complementares, quais sejam, o ofício do escritor - tentando

99 A respeito de uma possível sociologia do gênio, ver: ELIAS, Norbert (1995). Mozart - sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

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analisar sociologicamente a expressão literária manifesta nos seus contos - e a atividade editorial.

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Capítulo 3.

(O artista e seu projeto criador)

I. Um solo fértil de idéias

A Primeira República trouxe ao Brasil, no seu alvorecer, uma lufada de esperança: a liberdade definitiva em relação à família real e a possibilidade de alargar a participação política aos outros setores da sociedade, o incremento dos negócios em virtude do comércio do café, a penetração de capital estrangeiro, uma incipiente industrialização etc. Respirava-se os ares da modernidade e da modernização e a Belle Époque atracava em terras brasileiras - a rigor, apenas nas grandes cidades próximas da faixa litorânea, São Paulo e notadamente o Rio de Janeiro, coração de nossa Belle Époque tropical.

A cidade do Rio, particularmente, sofreu uma intensa transfiguração urbana que visava a “regeneração” da cidade: são demolidos os antigos e imensos casarões coloniais e imperiais - símbolo de um passado que deveria ser apagado - e em seu lugar são plantadas amplas avenidas, praças, jardins e novos monumentos - marcas de uma cidade mais moderna e aburguesada. Se não bastassem as mudanças físicas da cidade, ocorrem também alterações no estilo de vida e na mentalidade cariocas: segundo Sevcenko, os hábitos e costumes associados à sociedade tradicional são veementemente condenados, nega-se qualquer elemento da cultura popular em nome de uma sociedade civilizada segundo os moldes europeus (mormente franceses), a expulsão de grupos populares da área central da cidade e um “cosmopolitismo agressivo” (SEVCENKO, 1995: 30-31). Nada escapa ao processo de “regeneração” da cidade, contaminada pelo ar da (suposta) redenção completa da situação colonial: a chamada velha cidade é destruída em todos aspectos, materiais e espirituais; e no seu

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lugar uma cidade nova, suntuosa e civilizada estava sendo erigida. A urbanização do Rio levada à cabo em moldes muito semelhantes àqueles aplicados por Georges Eugène Haussmann em Paris 100

denunciava o “desejo de ser estrangeiros” que tomava conta de parte considerável das elites urbanas e toda sua feição cosmopolita 101. “A imagem do progresso - versão prática do conceito homólogo de civilização - se transforma na obsessão coletiva da nova burguesia.” (SEVCENKO, 1995: 29)102.

Contudo, nossa Belle Époque possuía uma face mais sombria. O sertão brasileiro conhecia somente a miséria, as doenças e o descaso do Estado. A redenção, de fato, nem sequer chegou até as poucas manchas urbanas que cobriam o território nacional (São Paulo e Rio de Janeiro). A abolição e a crise cafeeira arrastaram imensas massas humanas para as cidades:

“(...) a oferta de mão-de-obra abundante excedia largamente a demanda do mercado, aviltando os salários e operando com uma elevada taxa de desemprego crônico. Carência de moradias e alojamentos, falta de condições sanitárias, moléstias (alto índice de mortalidade), carestia, fome, baixos salários, desemprego, miséria: eis os frutos mais acres desse crescimento fabuloso e que cabia à parte maior e mais humilde da população provar.” (SEVCENKO, 1995: 52).

O cenário tornou-se ainda mais sombrio com as sucessivas crises econômicas que se sucedem a partir de 1888, com a depressão da 100 Sobre as mudanças da feição urbana parisiense e suas implicações culturais, ver BERMAN, Marshall (1996). Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Cia. das Letras.101 Talvez em menor grau e intensidade, fenômeno semelhante também ocorre na cidade de São Paulo, onde o “desejo de ser estrangeiro” de parcela das elites urbanas não é muito diferente daquele observado no Rio de Janeiro.102 Para uma discussão mais aprofundada do tema, consultar SEVCENKO, Nicolau. (1995) Literatura como missão. São Paulo: Brasiliense; e os volumes 8 e 9 da excelente (e bastante útil) coleção História geral da civilização brasileira, ambos organizados pelo Prof. Boris Fausto.

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economia cafeeira, a crise bancária de 1900 e a crise do setor industrial-comercial de 1905-1906. A Belle Époque, paradoxalmente, trazia a promessa da salvação e instalava um verdadeiro inferno social.

Se, de um lado, o regime republicano alimentava sonhos e expectativas, de outro aguçava antigos problemas: ao lado da modernização persistiam traços oligárquicos e coloniais, como uma cidadania extremamente precária, pois a República sustentava-se na manutenção das iniquïdades sociais e acabava por criar cidadãos de segunda classe; o poder oligárquico respirava vigorosamente no sertão do país, diluindo “o formalismo do Estado e das instituições”; a distância entre as várias regiões do país se acentuava cada vez mais, o que comprometia a formação e consolidação de um estado verdadeiramente republicano (SALIBA, 1998: 290-291). Co-existiam, portanto, as representações de uma sociedade cosmopolita e provinciana, moderna e antiquada, liberal e oligárquica 103.

Num ambiente que oscilava entre a euforia desmedida de alguns setores da sociedade - responsáveis pela ideologia do “país novo”, do “gigante adormecido”, cujo futuro haveria de ser grandioso - e um painel social mais grave, os intelectuais brasileiros adotavam duas posturas assimétricas. De um lado, aqueles que pregavam o progresso, a abolição, a república e a democracia como a panacéia do país, e, para tanto, acreditavam que a saída era simplesmente atualizar a sociedade brasileira com o modo de vida típico europeu (daí a importação de modelos artísticos e culturais, principalmente franceses) , ou seja, bastava transplantar o estilo de vida que vigorava além do Atlântico para as nossas praias, e, quase num passe de mágica, o Brasil modernizar-se-ia. Esse contexto de radical otimismo, marcado pela imitação de costumes e da arte européias, exerce influência sobre 103 O movimento pendular da sociedade brasileira, entre o apego às leis racionais e impessoais que marcam a organização da sociedade capitalista moderna e o completo desrespeito e desconsideração de tais regras, entre as representações positivas da sociedade brasileira e as mais pessimistas, é abordado primorosamente no ensaio crítico-sociológico que Antônio Cândido dedica ao livro de Manuel Antônio de Almeida, Memórias de um sargento de milícias. Ver CÂNDIDO, Antônio. “Dialética da malandragem” In Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, USP, São Paulo, no 8, 1970.

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parte de nossa produção literária: exageradamente erudita, elitista e até descomprometida em relação às questões sociais, tal literatura ficou conhecida como “sorriso da sociedade”, típica da boêmia literária, dos dandys que dominavam os cafés, restaurantes e salões literários 104. De outro lado, havia aqueles intelectuais que influenciados pelo cientificismo - também importado da Europa - adotavam uma postura diferenciada e preconizavam o mergulho na realidade brasileira para melhor conhecê-la, o estudo aprofundado de nossa história, nossos processos, características e problemas. Estes últimos estavam preocupados em construir um saber próprio sobre o Brasil e, quiçá, transformar a realidade. Aliás, somente uma ciência sobre o país forneceria os meio legítimos para a compreensão e solução de seus problemas, e, por conseguinte, estabelecer diretrizes que norteassem os passos da nação em direção ao futuro. A raiz deste tipo de atitude talvez possa ser encontrada na chamada “geração modernista de 1870”, que preconizava o engajamento dos literatos no processo de mudança social que o país reclamava, condição ética sine qua non do homem de letras. De acordo com Machado Neto, o Manifesto republicano de 1870 marca o início da modernização do país, uma vez que estava preocupado com a renovação da vida espiritual e material do Brasil:

“É aí que se implantam as raízes do movimento realista-naturalista nas nossas letras, e é também daí que partem as primeiras expressões da escola do Recife, ambos movimentos de extraordinário poder inovador, que iriam produzir os seus melhores frutos no seguinte decênio e, ainda, no decênio final do século.” (MACHADO NETO, 1973: 32).

É no bojo de tais reflexões que nascem inúmeras teorias e projetos sobre o país e sua população, desde os mais ufanistas até 104 Para maiores detalhes sobre o período, consultar o ótimo trabalho de MACHADO NETO, A. L. (1973). A estrutura social da República das Letras. São Paulo: EDUSP/Grijalbo.

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aqueles que adotaram uma atitude crítica visceral, marcados mais pelo inconformismo e pessimismo. E o choque entre a literatura “sorriso da sociedade” e uma “consciência social mais nítida” (MACHADO NETO, 1973: 33) tornou-se inevitável. É importante, contudo, fazer um alerta: a atitude visceralmente crítica, contundente, inconformada, que teve o mérito de apontar a oposição entre um “país legal” e um “país real”, não deu origem apenas a um pensamento que poderia ser denominado (ingênua e simplificadamente) de progressista, mas trouxe à tona seu antípoda, o pensamento conservador, o qual Bolivar Lamounier chama de “pensamento político autoritário”. Lamounier afirma que há uma tradição de um pensamento político autoritário formado na I República que visava a ação política, a “intenção de influir sobre os acontecimentos.”(LAMOUNIER, 1985: 345). Esses críticos, continua o autor, viam a ação política como o desdobramento necessário da constituição de um saber sobre o Brasil; por isso, além de instaurarem um pensamento antiliberal no meio intelectual e político do país, contribuíram, e muito, para a difusão e institucionalização acadêmica das ciências sociais, dada sua preocupação em elaborar um conhecimento (científico) sobre a nação e que balizasse e orientasse sua ação política. Há nesse contexto a participação ativa dos intelectuais, dentre eles Alberto Torres, Gilberto Amado e Oliveira Vianna, no sentido de construir não apenas teorias e projetos para o Brasil como também um sistema ideológico que servisse para sustentar a organização de um certo tipo de estado, mais especificamente, um estado cuja autoridade estivesse toda ela voltada para tutelar a sociedade civil - e que retirasse justamente daí sua legitimidade. Pensamento progressista e pensamento conservador, curiosamente, davam-se as mãos quando o assunto era pensar o país para transformá-lo por meio de uma atitude engajada - ainda que a forma que tais pensamentos e atitudes divergissem em alguma medida, ambas as linhagens concordavam que apenas por meio da ação do intelectual militante que as mais graves questões e problemas que atravancavam o desenvolvimento nacional seriam solucionados.

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Interessa-me, particularmente, tais escritores engajados, os literatos preocupados com as questões nacionais. Nas palavras de Antônio Cândido: “Diferentemente do que sucede em outros países, a literatura tem sido aqui, mais do que a filosofia e as ciências humanas, o fenômeno central da vida do espírito.” (CÂNDIDO, 1976: 156). E são justamente esses escritores militantes que produzem as obras mais representativas do período, que ocupam efetivamente o centro da vida espiritual do país 105 . Nesse sentido, escreve Sevcenko:

“(...) apenas o último conjunto, o dos escritores inconformados e reformistas, iria se ajustar adequadamente às potencialidades da nova realidade, dedicados que estavam a dispor do manancial científico e cultural europeu a fim de conhecer a fundo a realidade nacional e poder dirigir conscientemente o curso da sua transformação a partir do interior mesmo de seu mister. Espécie de ‘escritores-cidadãos’, exerciam suas funções com os olhos postos nos centros de decisão e nos rumos da sociedade numa atitude pervicaz de ‘nacionalismo intelectual’. (SEVCENKO, 1995: 106).

E, dentro da história literária brasileira, o período conhecido como pré-modernista 106 ofereceu expressões interessantes do pensamento nacional. Ao contrário do que por muito tempo se apregoou, essa não é uma fase de “estagnação da atividade literária”, tampouco de empobrecimento e/ou esterilidade da produção literária (MICELI, 1977: 13-15). Talvez porque esta geração que nasce no último quartel do século XIX, entre 1878 e 1892 - portanto, geração da

105 Nas três primeiras décadas deste século há uma convivência e um diálogo intensos, no Brasil, entre literatura e ciências sociais. Mas, a meu ver, esse profícuo diálogo não se dá com qualquer tipo de literatura, mas com aquela que podemos chamar de engajada ou militante.106 Para uma avaliação crítica do próprio termo pré-modernismo, com toda carga ideológica que carrega, consultar LEITE, Sylvia Helena Telarolli de Almeida. “O pré-modernismo em São Paulo.” In Revista de Letras, UNESP, São Paulo, v. 35, 1995; e também o primeiro capítulo deste trabalho.

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qual Monteiro Lobato faz parte, posto que Lobato nasceu em 18 de abril de 1882 -, sublinha Machado Neto, é marcada por uma situação histórico-social de transição e decadência, o que torna o ambiente intelectual próprio para o debate e teorização acerca do país, terreno propício para os projetos de (re)construção nacional.

Podemos citar en passant Euclides da Cunha e Lima Barreto como exemplos. Aponta Sevcenko que, a despeito de suas diferenças, tous les deux empenharam-se no debate, na análise e no combate de questões que julgavam essenciais para o entendimento e a transformação do momento histórico que viviam, evidenciando o paralelismo entre seus escritos. Lima e Euclides tentavam responder às questões de seu tempo por meio da literatura e na literatura. Os dois escritores transformaram a própria literatura em fator de mudança e apagaram as fronteiras entre o homem de letras e o homem de ação 107:

“Ambos procuravam carregar ao máximo as suas obras de conteúdo histórico, num esforço de vê-las compartilhar assim, influindo e deixando-se influir, do destino da comunidade a que se ligavam conscientemente. Nelas a postura intelectual crítica e combatente é simultaneamente epidérmica e estrutural, constituindo um produto estético tanto ao nível do assunto, dos personagens, dos cenários e dos procedimentos de linguagem quanto das camadas mais profundas de significação. Só a essa atitude crítica e combatente os autores conferiam validade intelectual.”(SEVCENKO, 1995: 127).

Euclides da Cunha, preocupado com as turbulências republicanas “(...) delineia todo um programa de ação capaz de restaurar a moralidade, a dignidade e a racionalidade no país, entregando-o de 107 Lima Barreto e Euclides da Cunha foram utilizados por Nicolau Sevcenko quase como modelos paradigmáticos do intelectual do final do século XIX e princípio do XX, e aqui foram retomados como exemplos da atividade intelectual engajada, militante, o que não quer dizer que outros tantos intelectuais inseridos no mesmo contexto não tenham tido posturas semelhantes.

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volta ao seu destino natural.” (SEVCENKO, 1995: 148). Euclides propõe um conjunto de reformas para recolocar o Brasil nos trilhos de seu desenvolvimento, todas elas balizadas pelo saber científico, tão valorizado pelo escritor.

Assim como Euclides, Lima Barreto também acreditava na inserção social do escritor, no seu dever quase cívico de interferir na realidade:

“No projeto de Lima Barreto a necessidade de uma literatura posta em situação conduz à estratégia de recuperar uma espécie de autonomia da verdade literária, o que torna de certo modo implícita a obsessão em perseguir em cada texto um fundo revolucionário latente que o amoldasse às contradições presentes nos temas que o inspiravam.” (PRADO, 1989: 25).

Enquanto que no projeto euclideano a literatura se transforma em veículo de suas idéias de reforma social, em Lima Barreto a própria literatura, a própria linguagem, é objeto de reflexão e mudança. Ou seja, sua literatura militante, além do escopo sociológico e do projeto de reformulação social, trazia embutida um pesquisa estética (filiada ao plano social e político).

A literatura pré-modernista, em certo sentido, modificou e aproximou as relações entre escritor e público ao se tornar porta-voz desse público, dos seus anseios, desejos e necessidades. A aproximação também reverbera nos procedimentos estilísticos: filiação com a oralidade, incorporação de temas folclóricos, mergulho no regionalismo. As transformações formais são acompanhadas de mudanças no conteúdo das obras, cada vez mais voltadas para temas populares e cotidianos, e que retratavam em certa medida a condição e o imaginário do público leitor.

Outro autor que elabora um projeto dentro desses moldes - e menos conhecido que os dois anteriormente citados - é o gaúcho João Simões Lopes Neto. O projeto de Simões Lopes, de acordo com Lígia

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Chiappini Moraes Leite, possuía “intenções explícitas”, isto é, contornos ideológicos bem definidos que marcam a opção do escritor pelos “excluídos” da República e “uma desconfiança em relação aos dogmas do progresso.” (LEITE, 1988: 147); e “intenções implícitas”, que dizem respeito à poética de Simões Lopes, como a incorporação de mitos e lendas do sul em sua obra e o emprego de uma linguagem próxima à oralidade.

É nesse solo fértil de idéias sobre e para o Brasil que é possível enquadrar Monteiro Lobato. O escritor vale-paraíbano, assim como outros tantos intelectuais do período, também tinha um projeto para o país, também fez de sua pena sua principal arma de combate contra as mazelas da jovem república. Mas a intenção deste capítulo é mostrar a peculiaridade e a originalidade do projeto lobatiano, aquilo que o distinguia dos demais componentes de nossa intelligentsia. Então, o que era o projeto de Lobato ? Em que consistia ?

II. O Projeto lobatiano: a pena e o escritor

Adriano da Gama Kury, notório lingüísta, afirma que a leitura atenta de vários livros publicados nas três décadas que precedem a Semana de Arte Moderna revela que muitos dos “fatos de linguagem” atribuídos a “desvios intencionais” dos modernistas ocorrem, freqüentemente, em autores do chamado pré-modernismo, e até em outros de anos escritores. Segundo ele, há no pré-modernismo um “vocabulário neologizante” e a escolha de palavras de uso raro no Brasil (KURY, 1988: 205, 206, 214 e 215). Corroborando a análise de Kury, outras três pesquisadoras do léxico pré-modernista, Helena Cavalcanti de Lyra, Ivete Sanches do Couto e Rachel Teixeira Valença, afirmam que a linguagem utilizada por vários escritores da já referida escola é marcada por “rica diversidade”: regionalismos, estrangeirismos, gírias e expressões populares, eruditismos,

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neologismos, tudo isso convive na produção global do período, e, às vezes, numa mesma obra.

Dentre todos esses escritores que já mostram uma ousadia estilística e que começam uma revolução lingüística e literária em nossas letras, destaco Monteiro Lobato. Um primeiro ponto que chama a atenção em Lobato e que o distingue de outros escritores é o fato de que ele concebeu um projeto eminentemente literário, pois, ao contrário de outros literatos contemporâneos dele, a literatura não constituía mero veículo das transformações ou simples porta-voz das idéias de mudança, mas o próprio instrumento das transformações108: as questões sociais e políticas exteriores ao campo literário são transformadas em matéria literária propriamente dita de acordo com os critérios e regras formados no campo e pelos agentes que o constituem. Essa mudança empreendida por alguns literatos brasileiros no período, e entre eles estava Lobato, guarda relação, respeitadas todas as particularidades históricas, sociais e culturais de ambos os contextos, com a postura de Émile Zola no caso Dreyfus, problema de caráter eminentemente político traduzido esteticamente no texto J’accuse. Para Bourdieu, a postura de Zola, a um só tempo, revela a atitude intelectual diante dos problemas e poderes políticos e/ou econômicos e manifesta a independência do escritor diante dos problemas e poderes externos ao campo literário. Zola cria, com isso, um tipo de intelectual que, em nome das normas do campo literário, intervém no campo político e utilizando armas que não são as da política, mas especificamente as da literatura e do intelectual. Como disse acima, as especificidades e as historicidades particulares de cada ambiente devem ser respeitadas, como por exemplo o auto grau de autonomia do campo literário e intelectual francês e que não havíamos ainda conquistado, mas, de qualquer forma, é possível enxergar em vários projetos criadores dos literatos nacionais a ambição de criar um

108 Nicolau Sevcenko, ao analisar a obra de Euclides da Cunha e Lima Barreto, afirma que nesses autores as transformações não se dão na literatura mas por meio dela. Opinião divergente tem Antônio Arnoni Prado sobre Lima Barreto, que já vê neste último autor uma pesquisa estética.

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mesmo tipo de escritor-intelectual a partir da atitude de Zola e também de demarcar claramente qual o território da literatura. Outra faceta do projeto criador de Lobato e talvez a maior novidade de seu projeto literário é seu desdobramento em duas frentes igualmente importantes: a própria escrita literária e o empreendimento editorial.

Lobato era um escritor que valorizava a observação cuidadosa do ambiente que o circundava - fruto da influência das teorias cientificistas do início do século - para justamente cumprir aquele que julgava ser o papel social do intelectual: produzir conhecimento e torná-lo acessível a um público sempre maior. O público aparece como potencialidade do texto lobatiano, e não mero receptor passivo da informação.

A literatura militante de Lobato procurava conquistar um público cada vez mais amplo, apontar para seus leitores os problemas do país e convidá-los para a ação. “Monteiro Lobato é, acima de tudo, arguto crítico social, um homem preocupado com os destinos do seu país.” (AZEVEDO, 1997: 58). E é fácil notarmos tal característica ao longo de toda sua obra. Já no seu primeiro livro de contos, Urupês, Lobato, como já vimos, incorpora dois artigos que publicara n’O Estado de S.Paulo: Velha Praga e Urupês. Neles, o escritor paulista denuncia as queimadas comuns nas regiões interioranas do estado e cria um dos seus principais personagens, o Jeca Tatu, avesso da imagem romântica do caboclo, para revelar, segundo ele, a “verdadeira” face do homem do campo: indolente e doente. Em Cidades mortas, Lobato nos oferece a triste realidade do Vale do Paraíba, outrora uma região rica devido ao cultivo do café, e transformada num terreno de miséria e fantasmas. O livro O problema vital alerta quanto ao problema do saneamento do país e é inteiramente dedicado à campanha da vacinação. A lista poderia continuar e seria extensa. O que é preciso frisar é o engajamento do escritor em praticamente todas as questões sociais do país: queimadas, saneamento, petróleo, eleições, etc - problemas que faziam parte do cotidiano do povo brasileiro, sempre questões da

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ordem do dia. E foi esse o material sobre o qual Monteiro Lobato se debruçou para elaborar o enredo de seus livros.

Quanto aos aspectos formais da escrita lobatiana, utilizo um trecho de carta endereçada ao seu epistolar amigo, Godofredo Rangel, em 30/08/1909:

“O que mais aprecio num estilo é a propriedade extata de cada palavra e para isso temos de travar conhecimento pessoal, direto, com todos os vocábulos, um por um, em demorada, pensada e meditada vocabulação dicionarística. Só pelo conhecimento exato do valor de cada um é que alcançaremos aquela qualidade de estilo(...) Machado de Assis é o clássico moderno mais perfeito e artista que possamos conceber. Que propriedade! Que simplicidade! Simplicidade não de simplório, mas do maior dos sabidões. (LOBATO, 1951: 263, vol. I).

A linguagem exata, o texto enxuto, na medida certa, sem ornamentos e excessos, que atingisse diretamente o leitor, que o incorporasse ao próprio texto. Sua maneira clara e direta de escrever, portanto, visava a um único objetivo, a saber, ampliar o número de leitores. E, para tanto, preconizava uma estética dinâmica, um texto que se lê facilmente - e ao mesmo tempo que leve o leitor à reflexão -, o cultivo de um estilo que refletisse uma oralidade tipicamente nacional, livre de imitações e da erudição basbaque 109.

Em vários artigos reunidos no volume Idéias de Jeca Tatu, encontramos a proposta estética de Lobato: ele defendia a criação de um estilo propriamente brasileiro, livre das influências estrangeiras, da simples cópia de modelos e que negasse os excessos ornamentais do art nouveau 110 ; um estilo que remetesse às nossas origens e que

109 Daí a predileção de Lobato pelos contos, que, segundo ele, possuíam a medida exata, pois prendiam a atenção do leitor, envolviam-no, levavam-no à reflexão e não o cansavam.110 Para uma lúcida discussão acerca do art nouveau, consultar PAES, José Paulo. “O art nouveau na literatura brasileira.” In PAES, José Paulo (1985). Gregos e baianos. São Paulo: Brasiliense.

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reconhecesse nossa “mestiçagem” (LOBATO, 1948: 35). O estilo, segundo o escritor, é espelho dos costumes, dos usos, das necessidades, de nossa “intimidade racial” (LOBATO, 1948: 92).

A seguir, tentar-se-á perscrutar a estética lobatiana expressa em seus contos e estabelecer as relações possíveis entre essa dimensão de seu projeto criador e o estágio de desenvolvimento do campo literário e a própria posição do escritor no campo. Noutras palavras, a intenção da análise é procurar estabelecer os vínculos entre o posto ocupado no campo e a expressão literária do escritor, tentando demonstrar como a posição ocupada permite a concretização do projeto criador do artista, como essa posição autoriza e legitima a audácia estilística e a inovação literária, como as condições históricas e sociais que contribuem para a estruturação do campo criam também certas demandas internas e próprias do campo que possibilitam (ou não) a realização do projeto criador do artista.

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A análise sociológica da obra de Monteiro Lobato, logo de início, já apresenta uma importante e não menos interessante questão: qual seu livro de estréia? Seria O Sacy-Perêrê. Resultado de um inquérito? Ou Urupês? Ambos são publicados no mesmo ano, 1918, mas o Sacy precede cronologicamente os Urupês. No primeiro, Lobato não aparece como autor ou organizador do livro, muito embora tenha sido o responsável pela pesquisa que o originou, e tenha escrito o prefácio, as notas, epílogo etc; enquanto que no segundo a autoria é mais do enunciada, uma vez que seu nome literário já gozava de algum reconhecimento em virtude de sua participação na imprensa - principalmente em virtude dos artigos Velha praga e Urupês publicados anteriormente n’O Estado de S. Paulo e reunidos no seu primeiro livro de contos.

A questão interessa sociologicamente porque nos obriga a refletir sobre o que é um livro de estréia e quais elementos agem para a

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elaboração da rubrica “estréia”. O chamado livro de estréia, antes de mais nada, necessita do reconhecimento do agentes e agências pertencentes ao campo e que legitimam um determinado livro de estréia enquanto tal. Daí já é possível deduzir que nem sempre o primeiro livro de um autor é reconhecido como sua estréia literária, e, segundo, ainda que a publicação seja um ato imprescindível, ela por si só não é suficiente para classificar, avaliar e qualificar o produto do trabalho do autor. Alfredo Wagner Berno de Almeida propõe, a meu ver acertadamente, que é preciso “(...) confrontar o tipo de demanda social a que a produção se propõe responder com a aceitação social efetivamente obtida por ela.” (ALMEIDA, 1979: 24). Além da demanda social, é preciso levar conta também a interação social que o autor estabelece com outros agentes do campo em questão, qual sua rede de relações e o capital social já adquirido por meio dessa intrincada teia de contatos, negociações e trocas efetuadas no espaço sócio-literário. Num certo sentido, o livro de estréia, apesar de ser de “estréia”, necessita de uma “aceitação social prévia” (Idem: 26), i.e., para que seja publicado o livro passa por instâncias próprias do campo que agem como uma espécie de filtro que autoriza ou não sua edição. Em situações específicas, a reação do público leitor em relação à obra pode determinar, juntamente com os atores sociais que formam o campo, qual livro será considerada a estréia do autor, e até mesmo possibilitar duas estréias 111.

Outro fator igualmente importante para a classificação de um livro específico ou de toda uma obra é reconstrução da biografia do autor, de toda sua trajetória literária feita quando esse autor já goza de uma posição privilegiada no campo. Nesse sentido, todo o passado do escritor, toda sua história, é escrita em função do presente, a partir de

111 A pesquisa sociológica levada a cabo pelo já citado Alfredo de Almeida mostra que o campo literário considera o livro O país do carnaval como a estréia literária de Jorge Amado, muito embora o escritor já tivesse publicado anteriormente, ao lado de outros dois autores, Lenita, obra relegada à obscuridade pelo público, editores, críticos e historiadores da literatura de maneira geral. Para maiores detalhes, ver ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de (1979). Jorge Amado: política e literatura. Rio de Janeiro: Editora Campus.

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um ponto de chegada que já é conhecido. Assim, sua biografia serve para referendar uma consagração já conquistada. A biografia tenta apagar uma arbitrariedade que não é completamente arbitrária uma vez que foi socialmente estabelecida: daí as noções de “gênio criador” ou “vocação literária”, predicados atribuídos posteriormente e que tendem a naturalizar a expressão do artista e reafirmar, ou pelo menos procurar afirmar, sua posição social no interior do campo.

No caso de Lobato não poderia ser diferente. O livro de estréia funciona como um passaporte de admissão no campo literário e, mais além, até como garantia de permanência no território socialmente constituído da literatura. Apesar do sucesso do inquérito sobre o Saci, é Urupês que abre as portas do campo para Lobato; é lá que está o personagem, o Jeca Tatu, citado por Rui Barbosa e que leva o nome do escritor para todo o país; é esse o livro que transita pelo circuito legítimo de avaliação e crítica da obra sancionado pelo campo. Contribui para corroborar este argumento a reedição de sua obra pela Cia. Editora Nacional, pertencente ao seu amigo e antigo sócio da Monteiro Lobato & Cia., Octalles Marcondes Ferreira, e a posterior edição de suas obras completas pela Editora Brasiliense, nas quais o livro resultante do inquérito sobre o trickster nacional é ignorado.

É possível argumentar, com razão, que é nos Urupês que encontramos uma forma literária mais bem acabada, lapidada e que é nele que se pode, inclusive, avaliar com mais propriedade o Lobato-escritor, pois é aí que encontramos, pela primeira vez, o autor dos contos, ao passo que no livro anterior Lobato é mais o idealizador e o organizador do que o autor. De qualquer maneira, o Sacy-Perêrê preserva seu interesse sociológico - e mesmo literário. O livro serviu como uma espécie de ensaio para Lobato, uma pré-estréia que revelou o potencial do autor junto ao público, estreitou suas relações com determinados agentes do campo e encorajou o autor para publicar, no mesmo ano, seu primeiro volume de contos. Inesperadamente, o livro causa enorme repercussão. Já na primeira fase do projeto, que consistia

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na resposta de três perguntas 112 pelos leitores, uma surpresa: uma avalanche de cartas invade a redação d’O Estado, num primeiro indício do sucesso da empresa de Monteiro Lobato. Em seguida, o idealizador do projeto organiza um concurso de pintura para escolher a melhor representação pictórica do moleque endiabrado, e do qual participam artistas estrangeiros e brasileiros - dentre estes, destacam-se Celso Mendes, Joab de Castro e Anita Malfatti 113. Posteriormente, com o apoio do grupo O Estado que viabilizou a impressão, Lobato transforma os depoimentos em livro, que contou ainda com ilustrações de Voltolino e capa de Wasth Rodrigues.

O projeto alcança sucesso junto ao público e mexe com o meio intelectual paulistano, habilitando Lobato a novas investidas no campo: além da excelente recepção por parte do público, ele contava ainda com o apoio de uma importantíssima instância que participou ativamente na profissionalização do escritor no Brasil e contribuiu para a estruturação de um campo literário nacional, a saber, a imprensa, especificamente O Estado de S.Paulo, o mais importante periódico paulista do período; e, por fim, uma boa parte da crítica especializada bem como do meio intelectual geral estava ao seu lado - aliança esta conseguida, em boa medida, devido à participação de Lobato não apenas no jornal mas também à frente da Revista do Brasil. Sua pré-estréia, portanto, fornece a Lobato o lucro simbólico suficiente para um re-investimento. É importante lembrar e ressaltar que seu primeiro livro, no qual se apresenta como “demonólogo amador” e não como Monteiro Lobato, não passa formal e oficialmente pelo crivo das instituições e agentes que compõem o campo, e, portanto, não é possível ainda conferir qualquer tipo de classificação ao escritor; mas, por outro lado, seu primeiro livro não oficial abre algumas portas do campo e serve para estreitar relações com tais instituições e agentes,

112 As três questões eram: “1. Sobre a sua concepção pessoal do Saci; como a recebeu na sua infância; de quem a recebeu; que papel representou tal crendice na sua vida; 2. Qual a forma atual da crendice na zona em que reside; 3. Que histórias e casos interessantes, ‘passados ou ouvidos’, sabe a respeito do Saci.” (AZEVEDO, CAMARGOS & SACCHETTA, 1997: 66).113 O vencedor do concurso foi o artista plástico Roberto Cipicchia.

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que se não avaliam Lobato, avalizam o escritor, o que nesse momento parece ser ainda mais importante do que seu reconhecimento, que acontecerá posteriormente, e de maneira vibrante, com Urupês.

Do ponto de vista literário, sua pré-estréia já anunciava características importantes de seu projeto literário, como a valorização da mitologia nacional, a pesquisa de nosso folclore como meio para resgatar a brasilidade do “povo brasileiro”, o questionamento do conceito de civilização à la française que a burguesia nacional insistia em copiar e a incorporação dos temas populares pela literatura. Cassiano Nunes, o maior “lobatólogo” do Brasil segundo a professora Marisa Lajolo, aponta que:

“O folclorista Alceu Maynard Araújo acentuou o pionerismo de Lobato na área de pesquisas sociais. Adverso às influências estrangeiras no Brasil, o contista regional deve ter achado que o estudo das crendices populares possibilitaria o encontro com o cerne do Brasil.”(NUNES, 2000: 12).

O conteúdo da obra lobatiana, em certo sentido, já estava delineada no inquérito sobre o Saci. Faltavam elementos, no entanto, para avaliar o tratamento formal que moldaria a matéria bruta, em que medida a experimentação estética seria também um instrumento de investigação da “realidade” brasileira. A ousadia estilística do autor pode ser percebida em seu próximo empreendimento literário, Urupês, agora sim a considerada estréia no mundo das letras.

2.1 Urupês

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Inicialmente, o primeiro livro oficial de Lobato receberia o nome de Dez mortes trágicas 114 - depois alterado para Urupês 115, a conselho de seu amigo cientista e escritor, Artur Neiva -, e, efetivamente, os doze contos que compõem o volume são perpassados pela tragédia, e vários deles marcados pelo sombrio e o grotesco. A morte espreita em quase todos os contos do livro, com exceção de um ou outro em que o clima é pouco menos carregado do horror, sem deixar, contudo, de ter um desenlace fatal ou infausto. O humor vez por outra pontua algumas das histórias, mas o autor não abre mão dos toques trágicos, compondo aquele gênero misto conhecido como tragicômico.

As histórias trágicas de Lobato em Urupês podem ser lidas, sem sombra de dúvida, como uma metáfora das condições sócio-econômicas do Vale do Paraíba, arrasado após a crise da cultura do café na região. Reforça esse tipo de leitura o fato de que a maior a parte dos enredos tem como pano de fundo o ambiente rural - com exceção dos dois primeiros contos do volume, Os faroleiros, cuja trama se desenrola numa cidade litorânea; e O engraçado arrependido, ambientado na cidade grande -, representado em vários deles pela cidade fictícia de Itaoca, quase um tipo-ideal das cidades vale-paraíbanas, que encarna todos os problemas, os dilemas e as condições de vida das gentes que habitam aquela área.

Nos contos Os faroleiros, A vingança da peroba, Bucólica, O mata-pau, Bocatorta e O estigma, o terror está mais presente do que nunca, e por isso é possível analisá-los num único bloco. A primeira das mortes trágicas gira em torno do tripé amor/traição/morte. Nesse primeiro conto 116 ainda é difícil visualizar os temas e a experimentação 114 Apesar do título, a primeira edição de Urupês é composta por doze contos e um artigo, justamente aquele que dá título à obra. Posteriormente, mais um artigo é acrescentado ao livro, Velha praga, reafirmando a hipótese da pesquisadora Milena Ribeiro Martins, segundo a qual, Monteiro Lobato revisitava seus contos e suas obras constantemente, “aumentando, diminuindo e modificando”. Para maiores informações sobre o processo de escrita lobatiano, consultar MARTINS, Milena Ribeiro. Quem conta um conto... aumenta, diminui, modifica. O processo de escrita do conto lobatiano. Dissertação de mestrado, Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp, Campinas, 1998.115 A edição aqui utilizada para análise é de 1994, publicado pela Editora Brasiliense.116 O conto Os faroleiros, foi publicado primeiramente na Revista do Brasil, no 20, agosto de 1917, com o título de Cavalleria Rusticana.

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estilística que fizeram da literatura lobatiana um dos fatores que o impulsionaram a uma posição privilegiada no campo. Já nos outros quatro, a despeito do tratamento literário conferido pelo autor e bastante marcado pelo clima tenso e violento, visualizamos a temática e a linguagem lobatianas. Vários aspectos chamam a atenção nesses contos: a falta de trabalho crônica que assola a região rural e afeta grande parte das famílias que nela vivem traduz a decadência do norte paulista, e leva os personagens das tramas ou a atitudes desesperadas (A vingança da peroba 117) ou a golpes escusos (O mata-pau), redundando invariavelmente em finais carregados de tristeza e horror. Além de se voltar para as áreas sertanejas e perscrutar os problemas econômicos que devastam não só a região como também as relações humanas, Lobato se debruça sobre a cultura local e resgata as crendices e mitos das zonas rurais. No mesmo A vingança da peroba, Nunes, personagem que derruba a árvore que dá nome ao conto para construir seu monjolo e vencer seu vizinho e adversário na disputa pela maior produção de milho pilado, ouve de seu compadre a história do pau de feitiço, prenunciando o desfecho do conto:

“- Então, dizia ele, há em cada mato um pau que ninguém sabe qual é, a modo que peitado p’r’a desforra dos mais. É o pau de feitiço. O desgraçado que acerta meter o machado no cerne desse pau pode encomendar a alma p’r’o diabo, que está perdido. Ou estrepado ou de cabeça rachada por um galho seco que despenca de cima, ou mais tarde por artes da obra feita com a madeira, de todo jeito não escapa. Não ‘dianta se precatar: a desgraça peala mesmo, mais hoje, mais amanhã, a criatura marcada.” (LOBATO, 1997: 62).

Dito e feito. O pequeno filho de Nunes tem sua cabeça esmagada pelo monjolo fabricado com a madeira da peroba. No conto O estigma,

117 O conto A vingança da peroba foi publicado na primeira edição de Urupês com o título de Chóóó! Pan!.

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mais uma vez a crendice e o fantástico estão presentes. Ambientado em Itaoca, a história narra o caso de uma esposa enciumada que assassina a sobrinha de seu próprio marido, que aliás casara-se interessado na fortuna da mulher, por dela desconfiar. Tempos depois, a companheira dá à luz a um menino que carrega uma marca no peito exatamente igual ao ferimento da moça e no mesmo lugar, denunciando o crime e o criminoso. Se, de um lado, Lobato mergulha no imaginário popular e traz à tona certas crenças, por outro, ele não deixa de criticar o obscurantismo que cerca, segundo ele, a população interiorana, agarrada excessivamente em tais crenças. É preciso frisar que Lobato diferenciava as crendices e a religiosidade caipiras, organizadas “jecocentricamente” de acordo com o escritor, da cultura brasileira de maneira geral, de nosso folclore por exemplo, da sabedoria popular, extremamente rica e por meio da qual vislumbramos a nossa mais autêntica nacionalidade.

A crítica ao estilo de vida sertanejo não pára por aí. Seguindo a trilha aberta por seus artigos Velha praga e Urupês, Lobato dessa vez confere forma literária aos seus ataques. Em Bucólica, o escritor principia o conto tecendo elogios à natureza e à exuberância do campo para, em seguida, apontar a ignorância do caipira e a sua rudeza, e denunciar os maus tratos que ele dedica à sua própria gente e à terra. Está presente nesse conto, ironicamente intitulado Bucólica, toda a desconfiança do escritor em relação ao bucolismo romântico, ao sertanejo idealizado pelo romantismo, mormente José de Alencar, e que, segundo Monteiro Lobato, jogava um manto sobre o mundo concreto e limitava o acesso à “realidade” nacional, permitindo apenas entrever tal realidade; se se quisesse realmente enxergar o Brasil, com todas suas potencialidades e problemas, era preciso retirar o véu romântico e adotar um olhar objetivo, científico até, sobre o país. N’O mata-pau, Lobato associa o parasitismo da planta - por isso denominada mata-pau- ao parasitismo de uma das personagens centrais, Ruço, que não por coincidência é meio sertanejo e meio europeu. Por meio de um personagem híbrido, Lobato destila toda sua

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crítica ao caboclo que não vive mas modorra, apático e indolente, o Jeca-Tatu que continua de cócoras e nada faz porque “não paga a pena”; mas Lobato não perdoa também o europeu, cuja influência o literato vê com olhos desconfiados e preocupados porque ela oculta, assim como o romantismo, as virtudes do “povo” brasileiro e de sua cultura e nega, com isso, a possibilidade de se construir uma identidade genuinamente nacional, não deixa que o Brasil tenha uma arte, uma cultura e um estilo de vida efetivamente brasileiros.

Por fim, neste último conjunto de contos temos Bocatorta, talvez a mais mórbida história de todas as que estão presentes no livro: a trama trata de um homem totalmente deformado, quase um monstro, e necrófilo, que desenterra uma das personagens, Cristina, pela qual era apaixonado, tão somente para realizar aquele que era seu maior desejo, beijá-la. Revoltados o pai da moça e seu capataz perseguem-no e jogam-no num pântano para matá-lo. Ambientado mais uma vez no meio rural, Bocatorta é a metáfora de um mundo igualmente mórbido, sombrio e sem futuro algum, que serve apenas como palco de histórias terríveis.

Os contos O engraçado arrependido 118 e A colcha de retalhos apresentam algumas diferenças em relação aos demais. O final trágico e a morte ainda são elementos presentes, mas a morbidez, o grotesco e o terror são suprimidos e no seu lugar há alguns toques de humor, no caso do primeiro, e ternura, elemento presente no segundo. O humor d’O engraçado arrependido obedece o sentido original grego, a lágrima que ri, pois o riso não exclui a tristeza nem esconde a tragédia. É a história de um jovem que utiliza sua incrível veia cômica para matar, por meio de uma piada antecipadamente planejada, o ocupante do cargo de coletor federal de sua cidade e assumir o posto. Arrependido do seu ato o rapaz se esconde por vários dias, perde a chance do emprego e acaba se suicidando. O autor mostra a busca desesperada do personagem por um trabalho, algo difícil de se alcançar tanto na

118 Publicado pela primeira vez na Revista do Brasil, no. 16, abril de 1917, com o título A gargalhada do coletor.

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área rural - principalmente na região norte do Estado de São Paulo - quanto na capital, que lhe garantisse o respeito dos demais e alguma colocação mais digna em seu meio social; além de apresentar o Estado como uma espécie de tábua de salvação a que todos recorriam. Está implícita aí a crítica de Lobato contra o empreguismo público, segundo ele um dos grandes males nacionais. A colcha de retalhos retrata a desestruturação da família rural em virtude da miséria e das vicissitudes por ela causadas e o sonho da cidade grande como redenção a partir da história de uma jovem tecida por sua avó nos retalhos da colcha, desde seu nascimento, passando pelos momentos importantes da vida da neta, até a fuga da moça para a cidade e sua prostituição. Triste e solitária, a “velhinha da roça” acaba por morrer. Lobato trata literariamente de uma grave situação: a crise que devasta o campo e empurra um grande número de migrantes para a capital, que, inchada, não dispõe da infra-estrutura necessária para receber e acomodar uma massa tão grande de pessoas.

No quinto conto que compõe o volume, Um suplício moderno, a ironia implacável do escritor já se faz presente desde o título. O que se encontra ao longo do texto não é exatamente um “suplício moderno” mas vários martírios que afetam a sociedade brasileira historicamente, como se fossem elementos constitutivos da formação do Brasil, num país (ou pelo menos em algumas cidades) que se pretendem modernas, livres das agruras de um passado arcaico, escravista e colonial que há muito tempo (imagina-se) foi deixado para trás. Lobato mostra que se trata de um ledo engano. Estruturas antigas, coloniais, convivem com a modernização do país numa combinação peculiar, gerando uma sociedade que oscila, tal como os movimentos de um pêndulo, entre duas posições: a tradição e o moderno119.

Lobato, no conto acima citado, volta à carga contra o Estado e chama a atenção para sua burocracia incompetente e o descaso em

119 Essa ambigüidade é igualmente verificada (e verificável) no próprio texto de Monteiro Lobato, pois, como um escritor de passagem entre dois momentos literários (e, mais do que isso, dois momentos históricos), aponta para o modernismo sem abandonar completamente o realismo-naturalismo.

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relação às cidades interioranas, aqui representada pela fictícia Itaoca. O autor não poupa a política local, caracterizada pelo domínio dos coronéis, a compra de votos e a troca de favores, prática esta provavelmente resultante da própria ausência do Estado da vida rural, o que abria certas lacunas na organização política das cidades localizadas mais no sertão dos estados e preenchidas por esse tipo de prática política. Já na primeira página começam as alfinetadas de Lobato, que seguem ao longo de toda a história:

“Estafeta-se um homem da seguinte maneira: o governo, por malévola indicação dum chefe político, hodierno sucedâneo do ‘familiar’ do Santo Ofício, nomeia um cidadão estafeta do correio entre duas cidades convizinhas não ligadas por via férrea.O ingênuo vê no caso honraria e negócio. É honra penetrar na falange gorda dos carrapatos orçamentívoros que pacientemente devoram o país; é negócio lambiscar ao termo de cada mês um ordenado fixo, tendo arrumadinha, no futuro, a cama fofa da aposentadoria.(...) Dá-lhe o estado - o mesmo que custeia enxundiosas taturanas burocráticas a contos por mês, e baitacas parlamentares a 200 mil réis por dia - dá-lhe o generoso estado... cem mil réis mensais. Quer dizer ‘um real’ por nove braças de tormento. Com um vintém paga-lhe trezentos e trinta metros de suplício. Vem a sair a sessenta réis o quilômetro de martírio. Dor mais barata é impossível.” (LOBATO, 1997: 71-73).

Neste trecho, creio eu, encontramos resumidamente todo o ataque do escritor contra os vícios da política nacional. Primeiro, o sistema de indicações para cargos públicos, desde a base, como é caso retratado pelo conto, até os altos postos, que privilegia as alianças e amizades - que fazia “correr a vassoura do Olho da Rua em tudo quanto era olhodarruável em matéria de funcionalismo público” (Idem: 76),

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menos os compadres - ao invés dos critérios racionais que norteiam a organização do estado moderno. Depois, a procura do cidadão pelo empreguismo público e sua acomodação nessa situação, denunciando além do vícios estatais também os vícios da sociedade civil, originados a partir de uma certa representação do estado criada pelo próprio estado, a saber, o estado-patrão e paternalista, responsável pela tutela dos cidadãos. Se o tal empreguismo garante, de um lado, “a cama fofa da aposentadoria” “arrumadinha” - o diminutivo utilizado pelo o autor demonstra sua desaprovação em relação a essa prática -, de outro, o emprego público não oferece os recursos adequados para a execução do trabalho e nem salariais, habilidosamente retratadas por Lobato a partir da transformação do substantivo “estafeta” (entregador de cartas e telegramas) no verbo “estafeta-se” (verbo inexistente), que serve para sublinhar a condição do funcionário público, a péssima situação em que se encontrava. A velha mas conhecida malversação do dinheiro público, ou mal gasto - como as bolsas concedidas para o estudo (utilíssimo aliás) da “influência zigomática do periélio solar no regime zaratústrico das democracias latinas” (Idem: 74) na Europa - ou gasto privadamente, não escapa aos olhos de Lobato ao acusar a ação dos “carrapatos orçamentívoros”, neologismo para os parasitas carnívoros do orçamento público.

Os dois contos seguintes, Meu conto de Maupassant e Pollice verso, interessam pelo feliz casamento entre forma e conteúdo, entre o assunto e a maneira pela qual é tratado. No primeiro encontramos a medida justa, exata, sem nenhum tipo de excesso dramático ou estilístico, apesar de o tema do conto dar margem à verborragia: um inocente é acusado de um crime que não cometeu e acaba por suicidar-se. Daí o título do conto, justificado por um dos personagens: “Porque a vida é amor e morte, e a arte de Maupassant é nove em dez um enquadramento engenhoso do amor e da morte.” (Idem: 83, destaque meu). A palavra “engenhoso” é usada pelo autor para denotar o talento e a destreza do literato francês em arranjar as peças do conto apropriadamente, de maneira quase calculada, sem desperdícios, a fim

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de produzir o efeito desejado. Uma linguagem quase científica na literatura era um dos objetivos de Monteiro Lobato, que trabalhava e retrabalhava inúmeras vezes seus contos até chegar ao ponto por ele considerado ideal.

Na história seguinte deparamo-nos com um jovem e ambicioso médico (ou suposto médico) que pretendia extrair o máximo dos recursos financeiros dos seus pacientes, todos eles da cidade interiorana de Itaoca, para fixar residência em Paris e fugir da mediocridade local. Dois pontos, a meu ver, merecem destaque nesse conto: a crítica sempre presente de Lobato contra a sedução que o ambiente estrangeiro, principalmente o francês, exercia sobre as elites nacionais, cegando-as e impedindo-as de conhecer de fato o Brasil; e o ataque contra a linguagem exageradamente culta, empolada demais, empregada pelo personagem-pivô da trama, que mascara a “verdade” das coisas - um mero verniz que dá a aparência de literário àquilo que é mera literatice. A linguagem, para o escritor, afigurava-se como um meio para se chegar à cultura brasileira autêntica e, ao mesmo tempo, como o resultado da pesquisa dessa mesma cultura.

Por fim, O comprador de fazendas. O tema já é conhecido e permeia boa parte dos contos lobatianos. O autor trata da crise e falência das fazendas produtoras de café inseridas num cenário sombrio, sem perspectivas e quase condenado à morte. O campo se configura num espaço social sem presente e sem futuro, preso a um tempo outrora promissor. O homem da cidade presente no conto primeiro aparece como esperança, para no momento seguinte converter-se em ilusão e engano, a imagem de um oásis que só aparentemente traz a salvação, mas que é de fato uma armadilha. Mesmo que o personagem, metáfora do próprio meio urbano, posteriormente arrependido retorne para a fazenda e os que lá vivem a fim de comprar realmente a fazenda e casar-se com a filha do proprietário, satisfazendo-o duplamente, ele não é mais aceito porque é visto com desconfiança e, mais do que isso, está desacreditado. Diante

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dum oásis ilusório, os personagens preferem ficar no campo que é, apesar da crise, real. E talvez resida aí a tragédia do conto.

Além desses contos revelarem alguns dos grandes temas da obra lobatiana, a saber, a decadência das condições de vida nas zonas rurais, notadamente o vale do Paraíba, a crítica à burocracia estatal, eles apontam certas ousadias estilísticas do escritor. O uso de coloquialismos, expressões regionais, neologismos e outros recursos formais conferem ao texto maior fluidez, i.e, uma narrativa mais ágil e dinâmica, interessada em prender a atenção do leitor - mas que não descarta a provocação desse leitor, interessada em despertar nele a reflexão acerca das questões que o cercam. Os contos muitas vezes se assemelham a crônicas, dado o tema e a construção formal do texto. Isso se deve à influência que Lobato recebeu de seus tempos de jornalista, transplantando para a literatura o estilo jornalístico. Não podemos descartar também, de acordo com o alerta de Flora Süssekind, o impacto de outros meios de comunicação e do novo horizonte técnico que desabrochava sobre a produção e a recepção literárias, como o cinematógrafo 120.

Muitas vezes a agilidade do texto é construída a partir do uso de onomatopéias, que dispensam a utilização de frases mais longas para descrever certas situações narrativas: o qua, qua,qua no lugar do riso dos personagens ou para ressaltar a comicidade de um determinado momento, o tchá, tchá do barulho das águas do mar, o zás que indica a rapidez e exatidão de um golpe de foice, o chóó-pan perene e assustador do monjolo. As onomatopéias servem para agilizar o ritmo do texto e, ao mesmo tempo, musicar tal ritmo, incorporando os sons, em princípio elementos exteriores ao texto literário, ao corpo da narrativa e tornando-os elementos constitutivos da própria narrativa.

O linguajar cotidiano também é transformado em elemento literário por Monteiro Lobato a fim de conferir verossimilhança aos seus

120 Ver SÜSSEKIND, Flora (1987). Cinematógrafo de letras. Literatura, técnica e modernização no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras. As relações entre a literatura lobatiana e os desenvolvimentos técnicos do período serão um pouco mais explorados no item 4 deste capítulo.

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personagens e aproximar suas vozes das vozes dos leitores concretos. A forma culta de vários verbos ganha tons mais coloquiais: ‘maginava (imaginava), ‘garre (agarre), ‘ranque (arranque); o pronome “você” se torna suncê ou vosmecê; a imensidão do mundo é traduzida por mundéu; os regionalismos servem, igualmente, para expressar uma fala brasileira mais autêntica, como “munheca” e “virgem”, vocábulos dicionarizados e presentes na norma culta, mas que em algumas regiões rurais designam, respectivamente, madeiro comprido que constitui a parte principal do monjolo e a mão do monjolo, a peça que serve para pilar, o verbo deslombar como indicativo de surra; as palavras empregadas no diminutivo tão comuns na linguagem popular para comunicar as idéias de atenção e carinho, exatidão ou escárnio não faltam em Lobato, como assinzinho, bocadinho e sãozinho da silva; quando o autor não encontra a palavra exata para expressar aquilo que deseja, recorre aos neologismos, como ingramaticalíssima, que serve para apontar a ignorância da gente da roça; sem contar outras tantas palavras e expressões tomadas de empréstimo do vocabulário praticado habitualmente, trela, pernada, braba, matar bem matadas as saudades.

Da conjugação harmônica entre os temas e a linguagem literária oferecidos por Monteiro Lobato e uma certa demanda tanto do contexto social mais abrangente quanto do campo intelectual especificamente, talvez se explique o imenso, e até certo ponto inesperado, sucesso do livro. A primeira edição de Urupês, com 1.000 exemplares, foi vendida em um mês; a segunda edição, já com 1.800 exemplares, também esgotou-se rapidamente; em abril do ano seguinte ao seu lançamento, a obra contava com um total de 8.000 exemplares vendidos. Até 1923 Urupês já contava com nove impressões, totalizando 30.000 exemplares (HALLEWELL, 1985: 241).

2.2 Cidades mortas

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No ano seguinte, 1919, Monteiro Lobato publica seu segundo volume de contos, Cidades mortas. Livre do peso da estréia literária, oficialmente realizada com Urupês, e dono de uma posição hegemônica no campo literário, Lobato nesse livro dá continuidade à proposta literária esboçada no inquérito sobre o saci e reafirmada nos Urupês. Os temas constituem basicamente os mesmos e o experimento estilístico continua. Manter a postura literária, no que tange ao conteúdo e a forma, revela mais do que a coerência do escritor. Em termos sociológicos significa sustentar a estratégia 121 que lhe abriu as portas do campo e lhe assegurou a consagração e o reconhecimento, logo, um posto altamente privilegiado. Esta face do seu projeto, o ofício do escritor - bem como a outra, o trabalho editorial -, ao mesmo tempo em que rompe com algumas regras e critérios do campo literário, reafirma a especificidade dessas regras e critérios, próprios do campo, isto é, confirma a autonomia do campo, que só pode ser transformado a partir dele próprio, de suas normas particulares, numa palavra, de sua reprodução.

A edição utilizada para a análise (sociológica) dos contos é recente: 1995, trazida a lume pela editora Brasiliense. Alguns esclarecimentos são necessários quanto a essa publicação. Nela foram incorporados alguns contos que não constavam na primeira edição, aumentando consideravelmente o número de histórias do volume: um total de trinta contos. De maneira geral, estes receberam do autor a data de sua feitura, o que facilita a identificação daqueles que, provavelmente, faziam parte da edição original. Dentre os trinta, dezenove deles recebem data anterior a 1919, ano do lançamento de Cidades mortas; o décimo quinto conto (O plágio) e do vigésimo segundo (Toque outra) até o vigésimo quinto (O avô do Crispim), não há nenhuma indicação do ano, como de resto acontece com os demais

121 A estratégia dos agentes, segundo Bourdieu, nunca é traçada com plena consciência por parte deles, com total conhecimento das regras que organizam e estruturam o campo. Tampouco os agentes são capazes de antecipar ou prever os resultados de suas ações, portanto, não há um a priori que direciona os atores sociais nesta ou naquela direção, nem a garantia de que os resultados de seus atos sejam aqueles inicialmente esperados.

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textos; o décimo sexto conto (O romance do Chopim 122) e do vigésimo sexto (Era no Paraíso) ao trigésimo (Tragédia dum capão de pintos), todos são posteriores a 1919, ou de 1923 ou de 1924, portanto, incluídos mais tarde no Cidades mortas. Esta constatação corrobora a observação de Milena Ribeiro Martins segundo a qual:

“(...) Sabemos que os contos publicados na 1a edição de Cidades mortas eram antigos já na data da edição, frutos de constantes reescritas, e que passaram por diversas edições em jornais e revistas. Talvez aí esteja a resposta: estes contos publicados na Revista do Brasil que foram posteriormente para Cidades mortas já haviam sofrido alterações profundas, diversas. No momento da edição, coube a eles poucas alterações importantes.” (MARTINS, 1998: 79).

A pesquisadora, inteligentemente, elabora a partir dos dados recolhidos uma tabela (Idem: 32) - ver nota 124 - na qual visualizamos vários contos do livro O macaco que se fez homem, de 1923, reunidos posteriormente nos volumes Cidades mortas ou Negrinha. Nas edições posteriores das obras completas de Monteiro Lobato, uma organizada pela Companhia Editora Nacional e a outra pela Brasiliense, desaparece o volume O macaco que se fez homem, uma vez que seus contos são reagrupados noutros livros.

Esta observação é importante porque nos remete, como afirmei algumas páginas acima, à concretização do projeto criador do artista por outros agentes e agências sociais do campo literário que contribuem para a construção da história do autor e de sua obra, pois não depende somente do escritor a definição de sua estréia literária ou da organização de suas obras completas, tampouco a elaboração de

122 No caso particular desse conto há um desencontro de datas: na tabela de Milena Martins, a data de publicação indicada é 1920; no volume do qual me valho, com a indicação do ano feita pelo autor ao final de cada conto, a data é 1923. Ver MARTINS, Milena (1998). Quem conta um conto... aumenta, diminui, modifica. O processo de escrita do conto lobatiano. 121 p. Dissertação (Mestrado). Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade de Campinas, p. 32 e tabela móvel.

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sua própria biografia. Todos esses elementos são reelaborados e re-signficados por outros atores sociais, cujos sentidos atribuídos a esse ou aquele escritor, ou a uma determinada obra, responsáveis pela classificação do artista e sua arte, dependem da posição ocupada por tais agentes no campo. À valorização da obra corresponde uma posição, um posicionamento e uma disposição, determinadas em boa medida pela proximidade, seja afetiva ou intelectual, dos agentes sociais com o autor; se, por outro lado, ocorre sua desvalorização, a posição, o posicionamento e a disposição do agente são outras, dessa vez definidas pela oposição de certos atores sociais em relação ao artista.

Ainda que concentrássemos nossa atenção sobre o escritor, percebemos o quanto a obra é afetada pela posição do artista no campo, ou seja o texto deve estar à altura da posição ocupada pelo seu autor no campo literário. No caso de Monteiro Lobato, um conto publicado em 1904, seja ele qual for, corresponde a um posto tímido, sem qualquer relevância no interior do campo; porém, as circunstâncias que cercam a edição de um conto em 1919 são bem diferentes, pois o autor já ocupa posição hegemônica, digamos, bem no núcleo do campo, logo, o texto não pode ser o mesmo de um autor pretendente ao reconhecimento, como acontecia em 1904, mas deve ser o texto de um escritor amplamente reconhecido. Daí a chave sociológica para interpretarmos as sucessivas reelaborações literárias de um mesmo conto por parte de Lobato e tão bem identificadas por Milena Ribeiro Martins: a posição ocupada pelo artista no campo literário ressoa sobre a própria obra, que não é imune aos efeitos do campo.

De qualquer modo, a análise dos contos lobatianos a ser realizada não fica comprometida, uma vez que o escopo deste trabalho é avaliar sua produção literária entre 1918 e 1926. Outro esclarecimento se faz necessário. A análise individual de cada um dos textos perde o sentido porque vários deles podem ser reunidos sob única rubrica de acordo com sua temática, ou seja, existe um mesmo fio condutor que

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estrutura, ao mesmo tempo, vários desses contos. Por isso, eles serão interpretados “em blocos”.

O primeiro deles diz respeito à decadência do Vale do Paraíba, refere-se justamente às cidades mortas. Podemos reunir nesse conjunto os seguintes contos: Cidades mortas, Os perturbadores do silêncio, Cavalinhos, Cafe! Café!, Um homem de consciência e Tragédia dum capão de pintos. O primeiro deles não é bem um conto, mas uma crônica que retrata a decadência das fazendas e cidades inteiras que basearam sua economia no plantio e comércio do café, onde predominam as imagens da morte: “Ali tudo foi, nada é. Não se conjugam verbos no presente. Tudo é pretérito.” (LOBATO, 1995: 21). O passado grandioso é sempre revivido pelso verbos no pretérito numa tentativa de apagar um presente decadente. Esses “velhos sons coloniais”, muitas vezes representados pelo próprio silêncio, dão o tom dos contos acima indicados. As imaginárias Itaoca ou Oblivion constituem o palco no qual se desenvolvem os dramas lobatianos. No conto seguinte, o silêncio que impera em Oblivion - “O silêncio em Oblivion é como o frio nas regiões árticas: uma permanente. Não se compreende a segunda sem o primeiro. Ele a completa; ela o define,” (Idem: 29) -, metáfora da morte, da ausência da história, só é quebrado pelo som do nhem-nhim, nhem-nhim (Idem: 30) do carrinho da prefeitura, comido pela ferrugem pois passa “a mor parte do tempo a cochilar no depósito”, o maior e único indício da modernização que chegou até a cidade. Em Cavalinhos, a falta de perspectiva de toda uma cidade está contida no personagem central, Lauro, dominado pela impotência e o desânimo não vê mais encanto naquilo que alegrava sua infância, o circo, lugar dos “paiaço”, das “olhadelas gulosas”, onde “repimpavam os moleques” (Idem: 43). Mas o passado para Lauro está morto e só lhe restam fugazes lembranças, que não lhe permitem sequer vislumbrar um futuro. E é esta a condição do Vale do Paraíba: lembranças de um passado glorioso, um presente sem vida e a falta de um futuro. O conto Café! Café!, cujo título é por si só bastante sugestivo, trata dum velho major que resistia veementemente à

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introdução de novas idéias a respeito do cultivo de novos produtos por acreditar cegamente no potencial do café: “Se algum atrevido ousava insinuar-lhe a necessidadezinha de plantar outras coisas, um mantimentozinho humilde que fosse, (...) fulminava-o com apóstrofes.” (Idem: 160), pois o café “dava para tudo”. Para o major: “O café não baixa e se baixar sobe de novo.” (Idem, ibidem). Contudo, não foi que aconteceu naquele ano de 1900. Veio a baixa dos preços do café, que baixavam sempre e cada vez mais, levando o pobre major à míngua. Está presente aí a crítica de Lobato à monocultura do café, que, segundo ele, levava os produtores (e o país de maneira geral) à dependência completa do mercado externo, da importação. Em Um homem de consciência, a decadência de uma cidade, Itaoca, é vista pelos olhos de um homem igualmente decadente. A linguagem neste conto se adequa com perfeição ao seu conteúdo: direta, seca, sem ornamentos, árida até, em sintonia com o tema tratado - a aridez do personagem e do ambiente, a pobreza que viceja naquela cidade morta. Além da combinação entre forma e conteúdo, percebe-se também umas das grandes preocupações lingüísticas de Lobato, a saber, a recusa dos excessos estilísticos e da ornamentação vazia, sem efeito literário. Lobato buscava a exatidão das palavras, que se encontram justamente na sua simplicidade. Por fim, no último conto que faz parte desse conjunto, Tragédia dum capão de pintos, Lobato elabora uma fábula, ou melhor, uma anti-fábula mórbida, sombria e resignada, que lembra muito os contos de Urupês. Nela há uma visão sombria e resignada da vida rural brasileira, completamente consumida - tal como as aves (pintos, perus e marrecos) da fazenda presentes na história - pela economia cafeeira. A resignação apontada acima fica patente num dos personagens, o cão Peva, diante do sucessivo sacrifício das aves:

“No dia do marreco a dor que sentiu foi verdadeira dor de pai; em seguida, pela morte do frango, a sua dor foi dor de pai adotivo; agora, ao perder o peru ,a dor era calma e

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resignada. Dor de filósofo. Compreendia, afinal, que a vida foi, e é assim, e não melhora...” (Idem: 238).

Há uma observação do autor quanto a linguagem, tema lobatiano por excelência, que ao invés de servir de instrumento para se chegar à “verdade” das coisas, pode servir para falsear o mundo que nos cerca, ataque que Lobato dirigiu principalmente aos escritores românticos. Vinagre, outro cão-personagem, afirma num determinado momento: “A linguagem dos homens varia, ora quer dizer isto, ora aquilo. Mas que não é coisa boa, isso eu asseguro.” (Idem: 235) - referindo-se ao sacrifício das aves anunciado anteriormente pela simples frase “Está no ponto.”

A reunião dos contos que seguem obedece ao seguinte critério: todos eles expresam a crítica do autor à (suposta) indolência do caipira, ao seu estilo de vida apegado às crendices. Por meio de pequenos episódios que mais lembram “causos”, Monteiro Lobato traça os detalhes do cotidiano de Oblivion no conto Vidinha ociosa. O título já indica o ritmo da cidade por meio do diminutivo “vidinha”, que desqualifica o substantivo “vida”, e a idéia de uma cidade que permanece a modorrar ainda é reforçada pelo adjetivo “ociosa”. Em Oblivion só se encontra a “preguiça de pensar”, a mesmice de todos os dias: “A vida em Oblivion é um perpétuo ‘buttoning and unbuttoning’ que não desfecha no suicídio.” (Idem: 33). Cidade onde os habitantes pisam “passinhos miúdos e lentos”, terra em que a “inconomia” está arruinada e resta apenas a “comichão mexeriqueira” para passar os dias sempre tão iguais, sempre óbvios, como o próprio nome da cidade insinua. Toda essa indolência é traduzida sob a forma dos personagens Pedro e o caboclo Bento Cego nos contos Pedro Pichorra e O rapto, respectivamente. No primeiro, novamente o título revela a intenção de Lobato. Pichorra significa, ao mesmo tempo, pequeno cântaro de barro - que Pedro, medrosamente, confunde com um saci - e preguiça, lassidão, indolência. No segundo conto, Bento Cego recusa a cura da cegueira porque implicaria o fim dos privilégios e das ajudas, de uma

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vida que permite ser levada pelos “martelinhos”123 de pinga de que o caboclo tanto gosta. Os contos apresentam personagens, portanto, avessos ao trabalho, numa referência direta oa estilo de vida dos caboclos do interior paulista. Como vimos, a preguiça do caboclo havia sido sintetizada na figura do Jeca Tatu, ao lado da boneca Emília um dos maiores personagens de Lobato. Alguns críticos, como Alfredo Bosi e Nelson Werneck de Castro, argumentam que o Jeca é fruto de uma visão superficial e estereotipada do caipira, e não fornece a análise detalhada das condições de vida no interior do país. É muito provável que eles estivessem certos. E o próprio Lobato, alguns anos mais tarde reconhece seu equívoco por meio do personagem Jeca Tatuzinho, segunda versão do primeiro Jeca, homem do campo pobre, vítima da precariedade do campo, alvo de um sem número de doenças que o tornam indolente. “Você não é assim, você está assim”, afirma Lobato. De qualquer modo, a criação de Lobato não deixa de ter seus méritos pois chamou a atenção do país para o homem do campo e o ambiente no qual vivia, fez perceber o quanto a situação do caboclo era miserável e insuportável. Anos mais tarde, Antônio Cândido no seu clássico Os parceiros do Rio Bonito fornece a interpretação sociológica que faltava em Monteiro Lobato e que permite entender o equilíbrio ecológico e social alcançado pelo caipira:

“Tendo conseguido elaborar formas de equilíbrio ecológico e social, o caipira se apegou a elas como expressão da sua própria razão de ser, enquanto tipo de cultura e sociabilidade. Daí o atraso que feriu a atenção de Saint-Hilaire e criou tantos estereótipos, fixados sinteticamente de maneira injusta, brilhante e caricatural, já neste século, no Jeca Tatu de Monteiro Lobato.” (CÂNDIDO, 1964: 60).

Caracterização injusta porque naquele momento Lobato foi incapaz de perceber que a cultura caipira era o produto (social) da 123 Martelo: medida de pinga, correspondente a 0,165 litro.

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precariedade dos seus direitos à terra para garantir os níveis mínimos necessários para sua sobrevivência, obrigando-o a estabilizar sua vida em torno de padrões mínimos, inclusive a “desnecessidade de trabalhar” (Idem: 64). E brilhante porque a intuição de Lobato estava correta, a vida do homem do campo beirava o desespero - e o processo de modernização que atingia (parcialmente) algumas cidades do país fechava os olhos para tal situação.

O bloco seguinte de contos tem como fio condutor a crítica veemente de Lobato aos superficialismos da vida cotidiana - principalmente aqueles manisfestados pelo estilo de vida das elites do país - resultantes, em geral, da importação de modas e modelos culturais, os estrangeirismos, ou do ufanismo exacerbado que emana de alguns setores da sociedade brasileira. Invariavelmente, de acordo com Monteiro Lobato, ambas atitudes geram o comportamento hipócrita e artificial, autêntico véu que cega os indivíduos diante dos problemas vitais do país e obstáculo que impede a valorização da cultura nacional. Os contos que fazem parte desse conjunto são: O pito do reverendo, A cruz de ouro, O espião alemão e Toque outra. O primeiro talvez mereça um pouco mais de atenção, uma vez que os elementos dos outros contos se encontram todos nele: toda a história gira em torno da chegada de um diplomata (“ex-ministro da Áustria”) que se hospedaria na casa do reverendo. Sua chegada provoca mudanças nos hábitos da cidade e principalmente os do reverendo, que se vê obrigado até a abandonar seu “pito” , tratado no conto como verdadeiro símbolo da cultural local, com seus costumes e tradições - inclusive os “itaoquismos”, “palavras e locuções de uso local” que “escapam à compreensão dos forasteiros” (LOBATO, 1995: 53), que, certamente, supõe o personagem, seria mal visto pelo diplomata, possuidor de uma “alta cultura”, imensa erudição. Vemos aqui como tais estrangeirismos são responsáveis pelo abandono da cultural nacional, vista como inferior, logo, desvalorizada. É justamente esse tipo de comportamento - a adoção de um estilo de vida que não corresponde à cultura brasileira - que provoca, segundo Lobato, os

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superficialismos que se manifestam na maneira de falar, no modo de se vestir, na decoração e arquitetura das casas, nas artes, na política, enfim, em todas as dimensões da vida brasileira. No conto A cruz de ouro, Lobato sublinha tal superficialidade por meio da descrição da sala de um dos coronéis presentes na escola:

A sala de fora do Coronel Liberato merece relatório para que a posteridade se deleite em conhecer como era uma sala de visitas do coronel brasileiro no século XX. Cadeiras austríacas, sofá e cadeiras de balanço, tudo enfeitado com os crochezinhos das filhas. Mesinha central de cipó com embrechados, obra de um ‘curioso’ do lugar. Duas almofadas no sofá, uma tendo um gato estufado, de lã, com olhos de vidro; outra um papagaio de miçanga verde - matavilhas feitas por certa afilhada prendadíssima. Dois aparadores com vasos para flores artificiais, figurinhas de louça - ‘bibelotes’como lá dizia o dono, e várias curiosidades naturais - caramujos, conchas, um ninho de joão-de-barro, um mico seco e duas famílias de içás vestidos. Nas paredes, espelho oval, dois retratos grandes a carvão e fotografias em porta-cartões de talagarça, bordados pelas meninas. Pendurado do lampião belga suspenso ao teto, grande abacaxi de papel de seda. Piano de armário. Tapete com grande onça. Que mais? Iam-me esquecendo as duas ‘escarradeiras de sobrado’, com caraças de leões... Viva o naturalismo! (Idem: 136).

Uma verdadeira Babel de estilos e modismos, pura cópia sem nenhuma autenticidade, miscelânea de culturas diversas que quando incorpora os elementos nacionais os transfiguram em exóticos, reduzindo, portanto, a importância do caráter genuinamente brasileiro desses elementos. A perniciosidade de todo esse luxo e refinamento afetados, são tratados de forma bem-humorada no conto De como quebrei a cabeça à mulher do Melo. A hipocrisia que essa afetação

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causa é tema de Toque outra, história na qual todo o fingimento da high society tenta ser mascarado por alguns artifícios, como a música tocada no salão por Sinhazinha, símbolo da erudição e do bom gosto dos participantes que incessantemente renovam os pedidos para que a música continue; mas sua intenção, na verdade, não é a de se embevecer com a melodia que sai do piano de Sinhazinha, e, sim, abafar as fofocas do salão. O remédio contra a importação de um estilo de vida europeu, avisa Lobato, não é o ufanismo, pois gera tanta superficialidade e ignorância quanto os estrangeirismos. Em O espião alemão, os personagens tentam comprovar a superioridade nacional frente à cultura germânica de várias maneiras, inclusive por intermédio da “patética eloqüência” (Idem: 155) do padre:

“O alemão deste homem - concluiu ele sentenciosamente - é o alemão turíngio da baixa germanidade valona da Silésia hanoveriana. Ininteligível, portanto, a quem, como eu, só conhece o alemão gramatical da alta germanidade dos Goethes, dos Lessings, dos Bergsons, dos Schneider-Canets.” (Idem: 154).

Ininteligível é o discurso ufanista e recheado de ornamentos proferido pelo padre, que pretende colocar, assim como todos habitantes de Itaoca, “a pátria acima de tudo!” e protegê-la da perigosa comunidade alemã da cidade, formada por possíveis espiões do Kaiser. Não só o discurso do padre é patético mas todo o enredo da trama esbarra no absurdo e no ridículo, frutos dum ufanismo que cega. Este, de fato, o alvo de Lobato no conto.

A maior parte dos contos de Cidades mortas podem, a meu ver, ser enfeixados num mesmo tema, a linguagem literária e sua importância como como instrumento de investigação do mundo que nos circunda. São eles: A vida em Oblivion, Noite de São João, Cabelos compridos, “O resto de onça”, Por que Lopes se casou, Júri na roça, “Gens ennuyeux”, O fígado indiscreto, O plágio, O romance do chopim e, por último, Anta que berra. Em todos eles, invariavelmente, o grande

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tema é a língua e a literatura nacionais, com todas suas potencialidades e problemas, do ponto de vista lobatiano é claro. Lobato vai tecendo ao longo desse conjunto de histórias sua crítica à superficialidade e artificialidade daquela literatura excessivamente rebuscada e acadêmica, que serve tão somente para mascarar o mundo, e não descobri-lo. A linguagem, seja a coloquial, seja a literária, não se limita a colocar “decentemente os pronomes” (p. 169), pois corre o sério risco de se tornar inútil, sem profundidade. Não basta, de acordo com Lobato, usar as palavras como mero recurso estilístico para embelezar os discursos, como pretendia o personagem Julius d’Altamira, “Júlio da Silva de nome”, o “literatelho” da cidade (p. 50) - cujo próprio pseudônimo já exemplificava o uso demasiadamente empolado da língua e, por isso mesmo, artificial e sem efeito. Nosso escritor de grossas sobrancelhas preconizava a reflexão sobre o uso da palavra, quais entendemos e quais não compreendemos, por que usamo-las, qual seu sentido: “Meditai, meus irmãos, refleti em cada uma das palavras das vossa orações quotidianas, pois do contrário não terão elas nenhum valor” (p. 66), já alertava o padre de Cabelos compridos. E era justamente tal preocupação que faltava aos imortais acadêmicos brasileiros, cuja literatura, nas palavras de Lobato, não passava de enfadonha:

“- Leram o conto de Alberto de Oliveira?- O imortal?- Sim.- Perdemos alguma coisa?- Não perderam coisa nenhuma, que aquilo que é maçador. Confesso que bocejei de enfado e, consoante velho costume, passei-o à minha cozinheira, velha mulata sabidíssima, parenta da cozinheira de Molière.- ‘Josefa, lê-me isto e bota opnião’.A excelente criatura lavou as munhecas, diminuiu o gás ao fogão, acavalou no nariz os óculos através de cujos vidros costuma coar-se-lhe para o cérebro todo o rodapé dos

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jornais e albertizou-se durante meia hora. Ao cabo, veio ter comigo.- ‘Pronto, sinhozinho, está lido.’- ‘E que tal?’(...)- ‘Não fede nem cheira’, disse, ‘é virado de feijão velho mexido com farinha mal torrada. Falta sal, tem gordura demais; parece comida feita por menina da Escola Normal’, concluiu com sorriso de veterano ao ouvir falar em proezas de recruta.” (p. 70).

Contra o passadismo do “feijão velho” Lobato quer “contos que contem coisas”, sem excesso de gordura, mas enxutos, que vão direto ao ponto e agarram o leitor de maneira inescapável, “contos, em suma, como os de Maupassant ou Kipling” (Idem, ibidem). A eficácia de um conto, para Lobato, reside na sua aproximação da narrativa popular, não tão agarrada aos formalismos da gramática, e da vida mais imediata do leitor, dos problemas que esse leitor conhece mais de perto. A “verdade”da linguagem e a “verdade” que ela é capaz de desvelar, sua harmonia perante si mesma e diante do mundo se revelam, segundo Monteiro Lobato, na sua dimensão mais popular. Daí Lobato se voltar contra o romantismo e o parnasianismo como alguns de seus alvos prediletos; pois, para ele, ambos eram incapazes de atingir o cerne das coisas por criarem imagems falsamente belas e delas se sustentarem - como é mostrado no conto Por que Lopes se casou, no qual Lucas, amigo de Lopes, apaixonadíssimo, idealizou sua musa, “amou-a em regra, e sonetou-a inteira dos cabelos aos pés, parnasianamente, nefelibatamente, com lirismo de comover as pedras” (pp.78-79), e o jovem a “poetara” inúmeras vezes, ora em alexandrinos ora em versos clássicos, sem perceber, somente após o casamento, que a musa se assemelhava mais a uma medusa, destilando o veneno de mil serpentes.

Outro recurso que torna a linguagem artificial, frisa Lobato, e usada abusivamente à sua época, eram os “francesismos” de nossa

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literatura, puro plágio afirma o escritor. Monteiro Lobato aponta o plágio como prática tão comum entre nossos literatos que sequer é percebido como tal, e o plágio passa como criação:

“Escrever um conto, uma simples ‘variedade’, em linguagem bem caprichada, com floreados bem bonitos, arabescos de alto estilo... Duas ou três personagens - não gostava de muita gente. Um conde, uma condessa pálida, a cidade de Três Estrelinhas, o ano de 18... Como enredo, uma paixão violenta da condessa de X pelo pintor Gontran. Gostava muito deste nome. A cena, já se sabe, passava-se em França, que nunca achara jeito em personagens nacionais, vivendo em nosso meio, ao nosso lado. Perdiam o encanto.(...) ‘Fazer literatura’ é a forma natural da calaçaria indígena. Em outros países o desocupado caça, pesca, joga o murro. Aqui beletreia. Rima sonetos, escorcha contos ou tece desses artiguetes inda não classificados nos manuais de literatura, onde se adjetiva sonoramente uma aparência de idéia, sempre feminina, sem pé e raramente com cabeça, que goza a propriedade, aliás preciosa, de deixar o leitor na mesma. A gramática sofre umas tantas marradas, os tipógrafos lá ganham sua vida, as beldades se saboreiam na cândida adjetivação e o sujeito autor lucra duas coisas: mata o tempo, que entre nós em vez de dinheiro é uma simples maçada, e faz jus a qualquer academia de letras, existente ou por existir, de Sapopemba a Icó.” (Idem: 107-108).

O texto acima transcrito não apenas resume a posição e o posicionamento de Lobato diante das academias literárias no Brasil, de uma ou outra escola da literatura nacional, mas evidencia uma certa maneira de se “fazer literatura” no país; noutros termos, Monteiro Lobato faz um diagnóstico do campo literário brasileiro e mostra sua

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frágil estruturação; ao realizar a leitura do campo, o escritor denuncia igualmente qual sua própria disposição (ou disposições) - relacionada, como não poderia deixar de ser, à posição ocupada no campo - em relação ao fazer literário, legítima lente por meio da qual é possível descobrir e conhecer o mundo. Possibilidades negadas à fictícia cidade de Oblivion, cuja “educação literária” se limitava a três livros: “La mare d’Auteuil, de Paulo de Kock, para uso dos conhecedores do francês; uns volumes truncados do Rocambole, para enlevo das imaginações femininas; e a Ilha maldita, de Bernardo Guimarães, para deleite dos paladares nacionalistas.” (p. 26). Oblivion espelha a situação literária do país e revela, mais uma vez, algumas das características do fazer literário evocado acima: crítica aos francesismos, ao romantismo, ao ufanismo e a preocupação em alargar o mercado consumidor de livros 124.

Dois contos presentes em Cidades mortas parecem resumir os temas lobatianos, O luzeiro agrícola e Era no paraíso. O primeiro está recheado de referências e críticas: 1) o ataque ao parnasianismo, ao romantismo, ao cubismo (e por conseguinte todas as correntes modernistas), com todos os seus excessos, sua superficialidade e o tom artificial, cujos versos e prosa 125 não levam a lugar algum por supervalorizar a forma e menosprezar o conteúdo engajado, de cunho social e político, preocupado em refletir o país; 2) a crítica à ineficiência e burocracia do estado, que, aliás, seria o único lugar que empregaria um poeta parnasiano - cuja primordial função no Ministério da 124 A rigor, a posição do escritor no campo, as disposições e os posicinamentos relacionados a tal posição, podem ser vislumbrados na fatura da obra. Em cada um de seus contos é possível enxergar traços de seu projeto literário, produto do circuito percorrido no campo e reprodutor desse circuito.125 Vejamos descrição do poeta feita por Lobato: “Eu...fui poeta. Cantei o amor, a Mulher, a Beleza,as manhãs cor-de-rosa, as auroras boreais, a natureza, enfim. Romântico, embriaguei-me na Taverna de Hugo. Clássico, bebi o mel do Himeto pela taça de Anacreonte. Evoluído para o parnasianismo, burilei mármores de Paros com os cinzéis de Heredia. Quando quebrei a lira, estava ascendendo ao cubismo transcendental. Sim, general, sou um gênio incompreendido, novo Asverus a percorrer todas as regiões do Ideal em busca da forma perfeita. Qual Prometeu, vivi atado ao potro do Inania Verba, onde me roeu o Abutre da perfeição Suprema. Fui um Torturado da Forma.” (LOBATO: 1995: 125). Os versos do poeta incompreendido ao menos lhe garantiram um emprego, fez conhecer a filha do ministro, com quem casou e “luademelou”.

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Agricultura era o de “produzir relatórios de arromba sobre o que há e o que não há” (Idem: 126), que depois são simplesmente lançados ao forno - dada sua mesma ineficiência, comprovada ao final do conto; 3) a incapacidade de alguns escritores e intelectuais de reconhecer os reais problemas do interior do país; e 4) o mal de um ufanismo acrítico, incapaz de perceber quais as grandes questões nacionais a serem resolvidas - aqui Lobato não perde a oportunidade de alfinetar Afonso Celso. Em Era no Paraíso..., Deus, um dos personagens, reflete sobre sua própria criação e prevê os efeitos de algumas ações humanas:

“(...)E eles elaborarão ciências, e excogitarão toda a mecânica das coisas, adivinhando o átomo e o planeta invisível, e saberão tudo - menos o segredo da vida.E um Pascal, muito cotado entre eles, dará murros na cabeça, na tortura de compreender os xx supremos - e os homens admirarão grandemente esses murros.E criarão artes numerosas, e terão sumos artistas e jamais alcançarão a única arte que implantei - a arte de ser biologicamente feliz.E organizarão o parasitismo na própria espécie, e enfeitar-se-ão de vícios e virtudes igualmente antinaturais. E inventarão o Orgulho, a Avareza, a Má-fé, a Hipocrisia,a Gula, a Luxúria, o Patriotismo, o Sentimentalismo, o Filantropismo, a Colocação dos Pronomes - esquecidos que eu não criei nada disso e só o que eu criei é.” (Idem: 186-187).

As “macacalidades” (Idem, ibidem) do homem inventariadas pelo escritor constituem, no fundo, um resumo dos temas lobatianos sempre abordados em seus contos - e mesmo posteriormente, na sua literatura infantil.

Por fim, alguns dos contos de Lobato são difíceis de serem agrupados num mesmo eixo temático em virtude dos assuntos abordados, principalmente aqueles escritos em 1923. A meu ver, tais

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contos não apresentam a mesma força expressiva dos anteriores e é perceptível a crise criativa do autor, bastante ligada à sua própria condição no campo literário 126. São eles: Um homem honesto, que aborda a perda de alguns valores (morais) no mundo moderno - no caso, a honestidade - e a difícil situação daqueles que desejam preservá-los a despeito da “vidinha miserável, comendo o pão que o diabo amassou” (Idem: 201) a que são condenados; A nuvem de gafanhotos, no qual Lobato volta a atacar o funcionalismo público e o parasitismo do caboclo; e O avô do Crispim, em que o autor privilegia mais a forma do que o conteúdo, e confere ao texto um tom de conversa, um “causo”, enfatizando mais os diálogos do que certas situações dramáticas ou mesmo os personagens.

2.3 Negrinha

Em 1920 Lobato publica o terceiro livro de contos, Negrinha, que se transformaria nas edições das obras completas pela Editora Companhia Nacional e pela Editora Brasiliense no terceiro e último livro dos seus contos. A edição aqui utilizada é a de 1959, acrescida de algumas histórias não presentes na primeira edição. E algumas dessas histórias nem sequer são da década de 20, mas do final dos anos 30; são elas: Quero ajudar o Brasil (1938) - na verdade, uma crônica por meio da qual o autor relata sua experiência na campanha pela exploração do petróleo no país -, Sorte grande (1939), Dona Expedita (1939) e Herdeiro de si mesmo (1939). Estes contos não fazem parte do escopo deste trabalho, que se limita a estudar a produção literária de Monteiro Lobato até a publicação de O presidente negro (1926).

Não tem sentido empreender aqui uma análise (sociológica, repito) de cada um dos contos, uma vez que os temas lobatianos - a crise do ambiente rural, a importação de estilos, hábitos e padrões de gosto europeus, a afirmação da individualidae do artista, crítica à

126 A crise da produção dos contos lobatianos será abordada no capítulo seguinte.

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literatice, ataque aos órgãos públicos etc. - e os procedimentos estilísticos se repetem ao longo da obra do autor, com algumas pequenas variações, desde Urupês - a rigor, desde o inquérito sobre o saci 127. Portanto, um trabalho desse tipo, tornar-se-ia enfadonho e desnecessário. O que não quer dizer que alguns contos não mereçam uma atenção especial ou pelo menos um comentário.

Negrinha e Os negros (uma pequena novela), por exemplo, são dignos de nota porque mostram a discordância do autor em relação à discriminação racial e denunciam o aviltamento dos negros no Brasil, fruto de nossa história escravagista. Ora, a insinuação por parte de alguns críticos 128 de que Lobato era um aliado das teorias racistas ou de que tratava os negros apenas de forma estereotipada em sua literatura é deitada ao chão quando nos debruçamos sobre os textos acima apontados. Ao contrário, notamos neles a indignação do autor diante das crueldades infligidas aos povos afro-brasileiros 129.

Outro conto que merece alguma menção é A morte do camicego (infelizmente, sem data), pois notamos vários elementos importantes para a posterior construção da literatura infantil lobatiana, como a presença da cozinheira Anastácia, o imaginário infantil, a incapacidade generalizada dos adultos em se relacionar com as fantasias pueris. Apesar de o conto não ser datado, é razoável supor que é anterior a 1926, ano a partir do qual Lobato se voltaria com mais afinco à literatura infantil. No próximo capítulo, tentarei oferecer uma explicação para tal guinada a partir de uma chave sociológica.

Por fim, restam aqueles contos que, a meu ver, exibem a maturidade literária de Lobato - maturidade esta que corresponde à posição hegemônica e quase inabalável, naquele período, conquistada pelo escritor no campo literário. Como já disse, a um posto elevado é 127 É claro que é possível perceber a heterogeneidade de sua produção literária e afirmar, sem temor, que a construção (temática e formal) de alguns de seus contos é superior a outros. 128 Ver, por exemplo, MELERO, Margareth Y.G. & OLIVEIRA, Maria A.O. de. “Um diálogo com Monteiro Lobato” In Imaginário, no 4, São Paulo, 1998.129 De qualquer forma, em alguns momentos de sua produção literária notamos a posição dúbia de Lobato, como n’O presidente negro, romance analisado no capítulo seguinte.

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correlata uma literatura “elevada”, no mínimo, mais audaciosa. A ousadia lobatiana nesses contos se expressa na maneira como utiliza a linguagem literária para refletir, ao mesmo tempo, sobre os problemas que assolam a sociedade brasileira e sobre a própria linguagem literária. O instrumento que Lobato utiliza para pensar o mundo social que o circunda é a linguagem literária, e ela mesma é objeto de reflexão. Este fato demonstra não só o domínio das técnicas estilísticas alcançado pelo autor como também o processo de autonomização do campo literário perante os campos político e econômico. Noutros termos, Monteiro Lobato transforma matéria extra-campo literário (as questões políticas, econômicas e sociais da nação) em material propriamente literário por meio da tradução dessa matéria de acordo com os princípios e critérios que organizam o campo; mas a tradução só é possível graças ao grau de autonomia (sempre relativa, jamais absoluta) que o campo literário atingiu, e não “somente” devido ao suposto talento de Monteiro Lobato. A literatura (como qualquer outra forma de expressão artística) permite enxergar, concomitantemente, as qualidades do artista e, de forma mais abrangente, o estágio em que se encontra o campo da produção intelectual num determinado momento - e como esse campo interage com os outros campos constitutivos de uma dada formação social.

No primeiro desses contos, o Bugio moqueado, o escritor retorna ao tema da decadência e morte do sertão brasileiro tratada a partir da história sombria e aterradora de um marido provavelmente traído (um poderoso coronel-fazendeiro) que mata o suposto amante da esposa e a obriga a comer sua carne. Formalmente, o texto apresenta uma estrutura interessante, uma vez que existem dois enredos que servirão de condutores da história. Num, o narrador descreve um jogo de pelota; a descrição é interrompida para o protagonista narrar o segundo e principal enredo, que posteriormente também é interrompido para se voltar ao jogo. Ao final do conto ambos fios condutores se entrecruzam com a intervenção de um segundo narrador, que oferece o desfecho da trágica história. Todo o texto é marcado pelo uso constante de

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diálogos, conferindo maior dinamismo à narrativa e um caráter de linguagem informal, como se fosse uma conversa entre os participantes do jogo de pelota.

O colocador de pronomes quase representa, sob a forma de conto, um tratado teórico sobre a linguagem literária. A história trata de um personagem chamado Aldrovando Cantagallo, um apóstolo das regras gramaticais, um prócer do bem falar e do bem escrever, defensor das normas cultas da linguagem e avesso ao dinamismo e à mutabilidade da língua. Toda a vida do personagem (e até a sua morte) modelada por Lobato é a imagem da luta inútil e da resistência dos gramáticos mais ortodoxos diante da vivacidade da língua - inclusive aquela empregada na literatura -, de sua capacidade de se transformar e se tornar acessível a um número cada vez maior de leitores. Este conto, reafirmo, representa um verdadeiro manifesto lobatiano: sua preocupação em simplificar a linguagem, em resgatar a valorizar a coloquialidade e a oralidade, para ele a verdadeira língua é aquela que se fala nas ruas e no sertão, não aquela enclausurada nas gramáticas e academias. É importante sublinhar que Lobato alia forma e conteúdo em torno do mesmo assunto. Ele mescla uma linguagem simples e coloquial, pontuada por neologismos e acessível a qualquer leitor (“pererecou”, “estrepou”, “ressabiado”, “velhacamente”, “trabuco” etc) com uma bastante formal, exageradamente culta e até mesmo ininteligível (“alfarrábios freiráticos”, “soporosa verborréia espapaçava”, “garabulha”, “galicígrafos”, “deletreemo-lo”, entre outros), principalmente para marcar a presença de Aldrovando, cujo nome pode muito bem ser uma corruptela de “aldravão”, que significa, além de aldrava grande, homem trapaceiro e mentiroso, ou homem que trabalha mal. Os sentidos cabem perfeitamente ao personagem, um homem que não deixa de trabalhar mal com a linguagem por seu um defensor das rígidas regras gramaticais, e por isso torna a língua um veículo da mentira, pois o excesso de rigor e ornamentos não deixam ver a “verdade” das coisas que a linguagem é capaz de desvelar.

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Duas cavalgaduras, por sua vez, é um exercício metaliterário. O personagem-narrador começa sua história resumindo um conto de Ribeiro Couto, O crime do estudante Batista, e se diz impressionado por um dos tipos elaborados por Couto, um vendedor de livros judeu (e mulato). O narrador acredita existir tal figura e começa a procurá-la; e numa loja próxima ao palácio do Catete o curioso “herói” encontra um comerciante muito parecido. Lobato, por meio de seu personagem, interrompe a narrativa e inicia uma segunda história - a interrupção é marcada pela frase “Abra-se um parêntesis”-, toda ela fruto da imeginação do personagem, dando a impressão de que Lobato perdeu o controle sobre a narrativa. Na segunda história, as relações entre vida e arte, a todo momento, são questionadas e discutidas (a citação explícita a Oscar Wilde e seu O retrato de Dorian Gray não é à-toa). Este segundo mote chega ao fim assinalado por um “Fecha-se o parêntesis”; a narrativa “principal” é retomada e o personagem reinicia suas investigações sobre o vendedor de livros, e conclui que ele nada tem a ver com o tipo descrito por Ribeiro Couto. Outro recurso formal utilizado por Lobato é o convite, repetido várias vezes, para as interferências do leitor, ou diretas (quando é o próprio leitor quem dialoga com o escritor) ou indiretas (pelo uso das reticências, que abrem um outro tempo e um outro espaço no interior do texto para as reflexões do leitor; por intermédio de períodos muito curtos, quase telegráficos, estimulando o leitor a completá-los, a pensar sobre eles). Na refinada elaboração desse conto é possível notar o quanto o processo de autonomização do campo está presente no texto: ao se utilizar de um conto de Ribeiro Couto para construir o seu próprio, quando toma de empréstimo parte de um outro enredo para tecer sua narrativa, ao citar explicitamente não apenas um segundo escritor mas até um personagem alheio, Lobato reafirma uma certa tradição do campo e rende tributo à história interna do campo literário. Retomar a história interna ao campo, ou seja, retomar outros escritores, outras histórias e personagens, significa continuar a escrevê-la.

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Por fim, temos o conto Marabá. Narrado em terceira pessoa, quase não há diálogos, o que mais chama a atenção é sua elaboração formal. Logo no início Lobato tece algumas críticas às receitas literárias e às cópias, aos exageros e falsidades do romantismo, e sublinha a importância do compromisso entre os escritor e a “realidade”. Após essa pequena “introdução”, o narrador, alter-ego do autor, chega ao cerne do enredo: confessa ao leitor que tem em mente “uma novela tão ao sabor antigo” , e que se chama “Marabá”. Começa então a narrar a trágica história de Marabá, filha de uma índia com um português, e justamente por isso perseguida pelos de sua tribo. Marabá se apaixona por Ipojuca, filho do cacique, e ambos são perseguidos pelos membros da tribo. Ao final os dois morrem, vítimas da intolerância. Além de praticamente virar ao avesso a temática alencariana, o narrador revela sua insatisfação quanto ao ritmo habitual das narrativas literárias, lentas demais, enfadonhas demais; e decide, então, acelerar a cadência do texto, empregando um outro tipo de linguagem, mais afeita à época em que vive, com os tempos modernos. Confere ao texto, pois, um ritmo cinematográfico: “Nada disso. Sejamos da época. A época é apressada, automobilística, aviatória, cinematográfica, e esta minha Marabá, no andamento em que começou, não chegaria nunca ao epílogo.” (LOBATO, 1959: 223) - e passa a dividi-lo em “quadros” (tal como num filme) e “letreiros” (como nos reclames), e até uma “nota a Mr. Cecil B. de Milles”, em mais uma referência à película fílmica. A ironia lobatiana está presente no conto a partir do momento que utiliza uma linguagem literária ousada, formalmente “moderna”, ligada a um conteúdo que segue as receitas literárias mais tradicionais, criticadas por Lobato no início do conto. Sua ironia aponta a imbricação entre tradiconal e moderno na cultura e nas artes brasileiras, da qual a própria literatura lobatiana era exemplo. Com um pé fincado no realismo-naturalismo, com o outro pisava o modernismo, e cuja amostra está no desenvolvimento estilístico de Marabá. Monteiro Lobato demonstra estar antenado com o novo horizonte técnico que se abre e afeta inclusive a produção e a recepção

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literárias. Tanto escritores quanto leitores foram afetados pelas inovações e transformações dos meios e formas de comunicação, transformando seu cotidiano e até mesmo sua sensibilidade. Portanto, se a literatura quisesse manter os nexos com o mundo social no qual estava inserida - e mesmo refletir sobre tal mundo e questioná-lo - e inclusive continuar atraindo leitores (preferencialmente, sempre mais) ao invés de perdê-los para o sedutor cinematógrafo, era preciso incorporar nela própria os novos recursos de linguagem que os avanços tecnológicos disponibilizavam.

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Todo o programa estético de Monteiro Lobato já era visível em Urupês, publicado em 1918. Vasda Bonafini Landers assinala que esse livro “(...) é o primeiro documento da nossa modernidade literária: aí a língua já é brasileira, de sabor inteiramente nacional e o herói(...) é caracteristicamente o homem da terra.” (LANDERS, 1988: 26). A literatura lobatiana valorizava os traços orais da linguagem, incorporando um sem número de expressões regionais, os coloquialismos e brasileirismos típicos da fala popular - além dos neologismos freqüentemente utilizados pelo escritor -, negava veementemente o rebuscamento exagerado, rompendo com a rigidez gramatical e a fixidez da linguagem, e combatia a literatice que afastava os leitores dos livros. E é aqui que encontramos a revolução lobatiana: pela primeira vez o público passava a ser parte integrante da obra literária. Para Lobato, a separação entre a língua falada e escrita constituía o fundamental problema da separação entre escritor e leitor e, por conseguinte, da ausência de um público ledor mais amplo. “Foi ele, pode-se dizer, o primeiro a se preocupar em fazer dessa massa isolada, parte do processo da produção literária, elevando-a a leitor-participante.” (LANDERS, 1988: 76).

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O público, de acordo com Monteiro Lobato, era o tribunal dos escritores e decidia qual o futuro dos livros: ou o êxito ou o malogro 130. Lobato queria ser lido pelo grande público e, por esta razão, tanto em relação ao conteúdo quanto à forma, tentava aproximar o máximo possível seus textos dos leitores: abordava os temas que lhes interessavam e se utilizava de certos recursos estilísticos que permitiam uma fácil apreensão por parte do público. Mas a preocupação com os leitores não permitia a Lobato abrir mão de seus princípios: sua literatura era eminentemente militante, crítica e social, voltada para os problemas que assolavam a nação; e a linguagem literária, por sua vez, ainda que destinada ao grande público, era elegante e apurada, cuidadosamente construída - Lobato revisava inúmeras vezes os seus escritos. Era sua prática publicar os textos nos periódicos para depois corrigi-los, reescrevê-los e editá-los131.

III. O projeto lobatiano: a revolução editorial

A outra face do projeto de Monteio Lobato, ligada à anterior por uma mesma concepção de literatura, é a sua atividade no ramo editorial. Mas, para termos uma noção mais clara da importância de Monteiro Lobato para o desenvolvimento do setor editorial brasileiro, creio ser necessário traçar o perfil desse mercado no período um pouco anterior à ação lobatiana.

Em meados do século XIX, livreiros importadores e editores fixaram-se na corte, sendo uma boa parte deles filiais de grandes casas editoriais européias. “Trabalhavam distribuindo a produção literária estrangeira e também editavam alguns autores brasileiros da época (...) - Laemmert, Garnier e Francisco Alves foram os principais livreiros

130 Do ponto de vista sociológico, além do público leitor outras agências e agentes do campo literário estão envolvidos na realização do projeto criador de um artista, como venho tentando mostrar ao longo de todo o trabalho.131 Sobre o processo de reescrita dos textos de Monteiro Lobato, ver MARTINS, Milena Ribeiro. “E era à máquina e de pijamas que Lobato escrevia.” In LOPES, Eliane Marta Teixeira & GOUVÊA, Maria Cristina Soares de (1999). Lendo e escrevendo Lobato. Belo Horizonte: Autêntica.

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importadores e editores da segunda metade do século XIX no Brasil.” (KOSHIYAMA, 1982: 23) 132. Percebe-se ainda a presença majoritária de traduções portuguesas e obras francesas em nosso parco mercado editorial. Nesse período, as tiragens eram reduzidas e vendiam-se poucos livros. De acordo com Koshiyama, as cifras de vendas de livros indicavam as restritas possibilidades de consumo do livro no Brasil no último quartel do século passado. As condições para publicação com as quais os intelectuais brasileiros se deparavam, portanto, não eram das mais encorajadoras devido ao número restrito de leitores e à valorização de obras e autores estrangeiros (KOSHIYAMA, 1982: 35). E no século XX, aponta Hallewell, a situação continuava desalentadora: os pontos de venda eram restritos e a produção editorial estava circunscrita aos livros didáticos e livros sobre a legislação brasileira (HALLEWELL, 1985: 235). Sem contar a exígua porcentagem de habitantes aptos para a leitura: em 1920, estimava-se que 76% da população de todo o país era composta de analfabetos; em São Paulo, particularmente, a situação também era assombrosa, cujo índice de analfabetismo na capital atingia 42%, e 70% em todo o estado.

Ciente dessa situação, Lobato escreve a Rangel, em 1915: “Não há livros, Rangel, afora os franceses. Nós precisamos entupir este país com uma chuva de livros.”(LOBATO, 1951: 7, vol. II). E ao adquirir a Revista do Brasil junto ao Estado de S.Paulo, em 1918, Lobato inicia imediatamente a revolução editorial. O primeiro passo foi utilizar a própria revista como veículo de propaganda para os livros que editava, para, em seguida, começar anunciar noutros periódicos. O segundo passo foi melhorar as condições de distribuição do livro: “Para aumentar a rede de distribuidores, ele enviou cartas a cerca de 1200 endereços de comerciantes propondo que aceitassem livros em consignação. Se os livros fossem vendidos, os comerciantes teriam 30% de comissão sobre o preço do produto vendido; se não, dentro de um prazo determinado, poderiam devolver a mercadoria, sendo o frete

132 José de Alencar e Machado de Assis, por exemplo, tinham seus livros impressos em Paris e editados no Brasil pela Garnier.

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pago pelo editor.” (KOSHIYAMA, 1982: 72-73). Segundo Tania Regina de Luca, Lobato pretendia adequar a revista a um público cada vez mais amplo, tendo como alvo o crescimento do número de leitores.

A Revista do Brasil, que já gozava de algum prestígio antes de Lobato adquiri-la 133, sob sua direção torna-se o periódico mais importante e influente do meio intelectual e literário da década de 20 - além de possuir vida mais longa que as demais revistas do período 134 , uma vez que reunia entre seus colaboradores intelectuais com algum peso, que utilizavam a própria Revista como porta-voz de seus ideais 135:

“Listar os colaboradores da Revista do Brasil é uma tarefa árdua. Durante seus nove anos de existência praticamente todas as figuras que desfrutaram de certa projeção nos meios literários e artísticos, ou em qualquer outra área do saber, encontraram acolhida em sua páginas, seja através da publicação de textos especialmente produzidos para o periódico, seja por meio de transcrições.”136 (LUCA, 1999: 53).

A revista tornou-se, sem sombra de dúvida, no maior fórum de debate do meio intelectual da época; tanto é que observamos modernistas e regionalistas se degladiando e medindo forças em vários números do periódico - mesmo quando a Revista do Brasil era de propriedade de Monteiro Lobato. Apesar da diversidade de autores presentes nas páginas da revista, há, talvez, um denominador comum 133 A Revista do Brasil tem seu primeiro número lançado em 25 de janeiro de 1916, tendo como idealizador Júlio de Mesquita Filho, proprietário também do jornal O Estado de S.Paulo. Desde o princípio da revista Júlio de Mesquita manifestava o desejo de torná-la “um núcleo de propaganda nacionalista” e um meio de ação dos intelectuais, cuja missão era a de conduzir os destinos da nação (LUCA, 1999: 45-46).134 Sob a direção de Lobato a Revista do Brasil circulou de maio de 1918 até maio de 1925, perfazendo um total de 84 números.135 Landers chega a afirmar que: “A Revista passa a ser imediatamente um centro intensivo de debates sobre assuntos brasileiros de toda ordem; da política à literatura. Ali se concentraram os mais importantes nomes do momento e o espírito era essencialmente brasileiro, principalmente depois de 1918 quando Monteiro Lobato compra a revista e assume a sua direção.” (LANDERS, 1988: 100).136 Duas listas parciais com os nomes de alguns dos colaboradores da Revista podem ser encontradas nos dois primeiros capítulos deste trabalho.

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entre quase todos eles, eleger o Brasil como o grande tema de discussão e reflexão. Muitos dos intelectuais se ocuparam de uma releitura do passado para uma melhor compreensão do presente nacional e revelaram a existência de muitos “brasis” co-existindo num mesmo território. As grandes questões que em algum sentido perturbavam os meios intelectuais foram debatidos na Revista: a configuração étnica do país, a identidade nacional (positivamente mestiça para alguns e fonte de nossos problemas para outros), a abordagem sanitarista e a posterior campanha em prol do saneamento 137, o hábito de valorizar e imitar cegamente tudo o que fosse estrangeiro e questão da língua como um fator primordial de coesão nacional - nas páginas da Revista do Brasil começou a se esboçar “(...) o estabelecimento de um caminho peculiar para o português do Brasil, dotado de ritmo cadência, pronúncia e regras de sintaxe próprias, [o que] contribuiu para afirmar o direito à alteridade.” (LUCA, 1999: 256).

A posse da revista, é importante destacar, permite a realização de uma das faces do projeto criador de Monteiro Lobato, sua atividade propriamente literária, pois o periódico serve como escoadouro de boa parte da produção do próprio Lobato. Segundo Tania Regina de Luca, o escritor paulista figura no topo da lista dos autores mais publicados com 40 artigos. Lembrando, é verdade, que mesmo antes da aquisição da Revista do Brasil Lobato aparecia como um dos seus mais assíduos colaboradores. Por outro lado, não se pode negar que a propriedade da revista - e não de qualquer revista, mas de uma prestigiada -, num certo grau, “facilitava” e contribuía bastante para a realização de seu trabalho literário uma vez que tinha publicação garantida; e publicação esta que contava ainda com a chancela da revista, provavelmente, a mais respeitada do período aqui tratado.

O projeto literário de Lobato, desta vez concretizado na forma de um periódico, encontrava profícua ressonância nos meios intelectuais do período, possibilitando, e até mesmo favorecendo, a realização e o

137 Campanha da qual Lobato participou ativamente, inclusive escrevendo um livro a favor da causa, o Problema vital, de 1918.

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êxito de tal empreitada. Vimos que a finalidade da revista, desde seu primeiro número, ainda sob o comando de Júlio de Mesquita, se coadunavam com os anseios não só de Lobato mas de uma parcela considerável da intelligentsia brasileira. O que Lobato fez foi expandir o alcance da revista para além dos círculos intelectuais e ampliar o número de leitores do periódico para garantir a sobrevivência econômica da publicação e, principalmente, torná-la um grande veículo de informação e formação intelectual - e, por conseguinte, transformá-la num instrumento de uma possível conscientização - de parcelas cada vez maiores da população alfabetizada. E o êxito do projeto literário, por usa vez, resulta no acúmulo crescente do capital simbólico de Monteiro Lobato, assegurando-lhe uma posição destacada e hegemônica no status quo literário do final dos anos 10 e parte da década seguinte do século passado. A posse de dividendos simbólicos permitiu novos investimentos no campo literário que provavelmente (mas não certamente) serviriam para consolidar tal posição.

O sucesso da revista permitiu a Lobato, em meados de 1920, junto com Marcondes Octalles Ferreira, fundar a Monteiro Lobato & Cia. E, mais uma vez, Monteiro Lobato sacode o mercado editorial. Disposto a transformar o livro numa mercadoria atraente, que chamasse a atenção dos potenciais consumidores, ele é responsável por uma inovação sem precedentes dos seus aspectos gráficos. Por volta de 1920, a capa típica dos livros era apenas a reprodução, principalmente em papel amarelo - às vezes também era utilizado o papel cinza -, dos caracteres tipográficos que apareciam na página de rosto (HALLEWELL, 1985: 251). Lobato passou a utilizar ilustrações nas capas dos livros de sua editora, realizadas por conhecidos pintores brasileiros da época, como Di Cavalcanti, Anita Malfatti e J.Prado. O aspecto interno foi igualmente melhorado: diagramação, tipo de letra, ilustrações, qualidade do papel; tudo era feito para conquistar novos leitores. Além disso, o jovem editor abandona o formato francês (12 x 19 cm) do livro e introduz um novo padrão próprio, 16,5 x 12,0 cm. O formato menor - quase igual ao dos folhetos de cordel - combinado com

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o menor custo unitário (possibilitado pelas tiragens maiores) permitiu a Lobato reduzir o preço de capa usual de seus livros (HALLEWELL, 1985: 252), numa estratégia que visava, mais uma vez, atrair e aumentar o público leitor. E os resultados obtidos não poderiam ser mais satisfatórios: em 1920 a Monteiro Lobato & Cia. alcançou uma tiragem de 56.000 exemplares vendidos, tornando-se a quarta editora em número de obras e a sexta em tiragem; das 48 novas obras editadas no período compreendido entre 1920 e 1922, 28 delas foram editadas pela Revista do Brasil e Monteiro Lobato & Cia., ou seja, 58, 33% do total publicado nesses três anos (DEL FIORENTINO, 1982: 66). Pedro Bodê de Moraes observa, acertadamente, que o problema do mercado editorial para Lobato não se limitava à impressão de livros, mas também dizia respeito à “criação” de um público capaz de consumi-los (MORAES, 1996: 235).

Lobato também inovou quanto aos escritores por ele editados. Privilegiava os novos talentos, aqueles cuja consagração ainda estava se processando; e foi responsável pelo lançamento de Oliveira Vianna, Lima Barreto, Menotti del Picchia, Oswald de Andrade e tantos outros 138. O Lobato-editor criou um circuito que ultrapassava os limites da impressão das obras e produzia “(...) as condições sociais que tornam possível a redação, publicação e o consumo do livro, dentre as quais se destacam a divulgação e a circulação deste bem cultural.” (MORAES, 1996: 234-235).

A formação de um circuito com tais características permitiu a profissionalização da condição de escritor em moldes até então inéditos: o lançamento de novos autores, da ampliação da distribuição do livro e aumento do número de leitores. E, além disso tudo, Lobato tornou-se o primeiro editor brasileiro a pagar direitos autorais bastante

138 Cabe frisar que vários, mas não absolutamente todos, escritores escolhidos e editados por Lobato eram donos de estilos e temáticas inéditas até então, cujas obras discutiam alguns dos problemas nacionais. É importante lembrar que esta preocupação - debruçar-se sobre as questões nacionais - era uma marca característica da atuação de Monteiro Lobato, seja na sua vertente propriamente literária, seja na sua atuação como editor

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compensadores, comprovando novamente a importante participação que teve no campo literário brasileiro:

“Ele [Lobato] também os pagava generosamente [aos escritores], e freqüentemente antes da publicação. Parece ter sido de dez por cento a taxa de direitos autorias que ele normalmente pagava, mas muitas vezes essa porcentagem era maior. Em novembro de 1918 ofereceu a Lima Barreto metade dos lucros de Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, com que o autor não concordou; Lobato então sugeriu as alternativas de 800$000 contra a entrega dos originais ou 500$000 nessa ocasião e mais 500$000 três meses após a publicação. Como o livro seria vendido a 2$500, isso representava direitos de mais de 13% sobre toda a edição de 3.00 exemplares - e muito possivelmente prejuízo para o editor (...) (HALLEWELL, 1985: 247).

Lobato, num certo sentido, dessacralizou o livro, desfez a aura que o cercava e que o definia como um artigo de luxo, cujo usufruto era restrito a uma pequeníssima parcela da população, alguns poucos “eleitos” que tinham acesso àquele totem chamado livro. Lobato encarava o livro como uma mercadoria - de primeira necessidade, é certo. E por isso deveria estar na mesa e ser consumido pelo maior número possível de brasileiros. Inserir o livro nos moldes da produção e circulação de mercadorias típicas do sistema capitalista criava, segundo ele, as condições necessárias para se estabelecer a relação entre obra e público, logo, para a circulação do texto literário e o consumo do livro.

Neste ponto vislumbramos a peculiaridade e a originalidade do projeto literário lobatiano: as duas linhas de ação que emanam do projeto são unidas por uma mesma preocupação, a saber, a aproximação entre público e obra, a criação de canais que possibilitem o encontro entre escritores e leitores, ou noutros termos, a ampliação incessante do mercado consumidor de livros. O escritor e o editor

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Monteiro Lobato são um único agente social que pôs em prática uma concepção moderna de literatura, que incluía o leitor como “virtualidade presente no texto” (LAJOLO, 1983: 43). Notamos, pois, que a atuação literária e editorial de Lobato foram movidas por uma única concepção de literatura: o bem cultural “literatura” não é anterior e nem deve sobrepujar o leitor; ao contrário, ela só ganha sentido na medida em que é aceita e consumida pelo público. E a literatura somente é aceita e consumida quando responde às necessidades e desejos do público leitor e quando se coloca no mesmo nível de linguagem desse público. Daí o caráter social e militante da literatura lobatiana, bem como a incorporação da coloquialidade na sua linguagem literária. Para (e em) Monteiro Lobato, a literatura só existe se há um público - a recepção do texto constituía a preocupação basilar da atuação editorial e da escrita lobatianas.

Seria um erro imaginar que por trás de tal preocupação havia uma concepção unívoca de literatura e de público. Monteiro Lobato sabia que não havia apenas um público, mas vários, e, por conseguinte, muitas formas de manifestação literária139. E o que atesta tal percepção é o fato de que, como editor, Lobato publicou livros didáticos, ensaios sociológicos, romance, poesia, contos, novelas; e, como escritor, dedicou-se aos contos, à literatura infantil, à crítica literária e de arte, à crônica, ao ensaio e até ao panfleto de cunho político140. O que é possível dizer, quando se trata do projeto literário de Lobato, é que seu objetivo primordial era atingir aquela massa de não-leitores, aqueles que estavam distantes dos livros, ou seja, sua meta era a formação e ampliação de um público leitor ainda inexistente no Brasil.

139 É o que Bourdieu chama de “categorias de público” e “categorias de obras” .140 O pequeno livro Zé Brasil, escrito por Lobato em 1947, trazia em seu enredo a defesa dos pequenos agricultores e ao ataque aos grileiros, denunciando a estrutura agrária brasileira. O teor político (mas não partidário) e crítico do livro desagradou às autoridades estatais e foi considerado perigoso à segurança nacional, o que implicou a apreensão e censura do livro. Para maiores detalhes, ver CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (1997). Livros proibidos, idéias malditas - o Deops e as minorias silenciadas. São Paulo: Estação Liberdade.

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A preocupação lobatiana em atingir um número crescente de leitores sem abrir mão daquilo que julgava ser qualidade literária lança-nos noutra discussão importante na sociologia dos campos proposta por Pierre Bourdieu: o mercado editorial constitui um campo à parte e autônomo em relação ao literário? Ou, quem sabe, estaria até mais próximo do campo econômico? Pedro Bodê de Moraes, por exemplo, ao tratar da atuação de Monteiro Lobato no processo de constituição das editoras nacionais afirma que até o início das atividades de Lobato o “campo editorial” não era dotado de certa autonomia, e tenta mostrar sua importância para a “implantação do campo e do mercado editorial no Brasil” e sua autonomização (MORAES, 1996: 245, 247). Provavelmente, o que leva Pedro Bodê, e talvez outros autores, a esse tipo de raciocínio é o fato de que as editoras, apesar de perseguirem uma legitimidade simbólica e lidarem com uma mercadoria em vários aspectos sui generis, somente sobrevivem se auferirem lucros financeiros. Todavia, o ganho econômico não deve, exceção feita aos best sellers, apagar as especificidades desse produto chamado livro, que diferentemente de outras mercadorias carrega toda uma carga de sentidos culturais: é o veículo da informação, o símbolo da erudição, fonte de conhecimento, suporte material de idéias etc. A partir desse cruzamento entre legitimidade simbólica e auto-suficiência econômica, entre cultura e indústria, supõe-se que as editoras, em seu conjunto, formem um campo relativamente autônomo, diferente do literário e do econômico.

Entretanto, Heloísa Pontes, num artigo de 1989 141, demonstra que o papel social dos editores é análogo ao dos intelectuais e escritores engajados, “ou pelo menos se auto-representam” assim (PONTES, 1989: 360). Se o papel social do editor se aproxima de fato daquele do intelectual ou se se trata de sua auto-representação é o que menos importa; o que realmente conta é que toda a legitimidade - com todos os desdobramentos que tal legitimidade acarreta - do editor, seja 141 Ver PONTES, Heloísa. “Retratos do Brasil: Editores, Editoras e ‘Coleção Brasiliana’ nas Décadas de 30, 40 e 50.” In MICELI, Sérgio (Org.) (1989). História das Ciências Sociais no Brasil - Volume I. São Paulo: Vértice/Idesp.

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diante do público, dos escritores ou de seus pares, depende da inserção do editor no campo especificamente intelectual:

“No mundo editorial, o prestígio assim como o lucro - indício seguro da editora bem sucedida - são os mais cobiçados predicados. É por meio do prestígio que os editores se diferenciam do simples comerciante e do empresário. E mais: é através dele que os negócios editoriais parecem perder a sua dimensão ‘profana’, ganhando uma espécie de ‘aura’, que os demais empreendimentos empresariais dificilmente chegam a possuir um dia (a não ser em contextos sociais e políticos muito particulares).” (PONTES, 1989: 379).

O prestígio do editor (e, conseqüentemente, de sua editora) deriva da associação de sua atividade com a atividade intelectual e não de seu sucesso comercial. Aliás, tal prestígio pode funcionar como uma espécie de lucro indireto do editor, isto é, o trânsito e a distinção que adquire junto ao meio intelectual, artístico, literário e editorial possivelmente lhe fornecerá lucro propriamente financeiro, ao passo que o caminho inverso não se realiza - o ganho monetário não proporcionará ao editor dividendos simbólicos - pelo contrário, pode ocasionar a representação puramente negativa do editor e subtrair seu prestígio. Aproximar o trabalho editorial ao ofício do escritor não se trata apenas de auto-representação, mas da representação acerca da figura do editor formulada por todos aqueles agentes que participam do campo literário, que atinge, logicamente, a representação que o editor faz de si mesmo.

A “função cultural” que o campo intelectual atribui ao editor (e que ele atribui a si mesmo) 142 acaba por orientar sua estratégia editorial. É o caso do lançamento das coleções Brasiliana, Documentos 142 Sobre a representação social dos editores e sua própria auto-representação (que, sem dúvida, deriva da primeira), ver: ROBERTO, Adriana T. C. (2000) Mercado editorial paulista: momento de expansão e diferenciação do setor. São Paulo, Dissertação (Mestrado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

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Brasileiros e Biblioteca Histórica Brasileira, que, de acordo com Heloísa Pontes, “são o resultado da articulação do sistema de produção intelectual com o sistema editorial” (PONTES, 1989: 384). A edição de tais coleções forneceu prestígio, reconhecimento e legitimidade aos respectivos editores, pois passaram a ser encarados, juntamente com os intelectuais, como redescobridores do Brasil. Todo esse prestígio, reconhecimento e legitimidade, por sua vez, geraram lucros materiais. Esse lucro, é claro, é de suma importância para a sobrevivência do editor e de sua editora, mas, note-se, tal ganho só pode ser o resultado (e jamais o elemento motivador) da sua atividade, digamos, cultural ou voltada às questões chamadas culturais. A equação é simples: não é porque o editor obtém ganhos financeiros que possui legitimidade simbólica (o prestígio, por exemplo), mas porque detém legitimidade atinge lucros materiais.

Os critérios e princípios que orientam as decisões dos editores e direcionam suas estratégias estão, portanto, fincadas no campo literário, a despeito do lucro que o editor, como empresário, persegue. O que não quer dizer que a atividade editorial não possua características peculiares quando comparada com outras instâncias pertencentes ao campo literário. Estou adentrando agora num tema já sugerido mas pouco desenvolvido por Pierre Bourdieu, a saber, a inter-relação entre os campos.

Em seu As regras da arte, a leitura sociológica de Bourdieu da obra A educação sentimental de Flaubert, trata sutilmente da espinhosa questão da comunicação entre os campos a partir da análise de um dos personagens do romance, Arnoux, um comerciante de quadros, “o representante do dinheiro e dos negócios no seio do universo da arte” (BOURDIEU, 1996: 22). Arnoux, segundo o sociólogo francês, é um “ser duplo”, que trafega entre “duas lógicas antitéticas”, retirando proveito de ambas quando lhe convém. Porém, o destino de Arnoux às vezes se assemelha a uma maldição, pois está condenado à marginalidade: para os artistas, ele não é um artista puro; para os burgueses, não é um comerciante puro. A condição de marginal gera

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em Arnoux dúvidas e insegurança, titubeando diante de uma e outra lógica - a da arte e a do dinheiro. Para escapar da situação de marginalidade Arnoux é obrigado a optar por uma delas e resolve se aproximar do campo artístico, decretando, com isso, sua ruína econômica.

Como afirmei acima, Bourdieu não desenvolve sociologicamente tal questão, mas não me parece despropositada a hipótese de que haja uma área de intersecção entre os campos, preenchida por agentes e agências sociais de um dos campos em contato ou de ambos. O estudo sociológico do projeto artístico de Monteiro Lobato nos mostra que no caso do entrelaçamento entre o campo literário e o campo econômico é a figura do editor que faz a mediação e estabelece a comunicação entre eles. Portanto, nesse caso, a área inter-campos corresponde à região editorial. Se a região editorial se encontra na zona de contato entre dois campos, supõe-se que ela sofra os efeitos das regras, princípios e exigências específicos de cada um deles; no entanto, essas regras, princípios e exigências de um dos campos são retraduzidos de acordo com os critérios e normas que regem o campo no qual está originariamente ligado. Nesse caso, o reconhecimento que gera prestígio e legitimidade daqueles que fazem parte da região editorial depende do respeito e cumprimento das determinações engendradas pelo campo literário, e não pelo econômico - ainda que sofra em alguma medida os efeitos da ação deste último.

E o caso de Lobato corrobora a hipótese acima sugerida. A consagração de Monteiro Lobato e a consolidação de sua hegemonia no campo literário devem-se ao fato de que a realização de seu projeto literário, tanto no que diz respeito ao seu ofício de escritor quanto na sua atividade editorial, obedeceu aos critérios literários e artísticos elaborados no seio desse campo específico, com todas as suas tensões, conflitos, exigências e necessidades exclusivas do campo em questão - inclusive, o lucro econômico de Lobato é conseqüência de sua consagração, e não o contrário. Repito que não quero defender aqui a estapafúrdia idéia de que o Lobato-editor, assim como qualquer outro

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editor, desprezava absolutamente os ganhos materiais 143. Não é isso. Procuro argumentar que o mercado editorial não se limita a um mercado de bens materiais, mas está, principalmente, vinculado a um mercado de bens simbólicos, configurado de acordo com as regras do campo intelectual (ou de suas ramificações, o campo artístico, o científico e o literário). Noutros termos, apesar de antitéticas duas lógicas convivem naquilo que denominei região editorial ou área de intersecção entre campos, contudo, uma dessas lógicas se sobrepõe à outra, ou pelo menos a antecede, no caso, a lógica literária apresenta primazia, mas não descarta completamente a lógica econômica.

IV. Livros e leitores: esboço de uma sociologia da leitura

Segundo Robert Darnton, os livros possuem, aproximadamente, o mesmo ciclo de vida:

“Este pode ser descrito como um circuito de comunicação que vai do autor ao editor (se não é o livreiro que assume esse papel), ao impressor, ao distribuidor, ao vendedor, e chega ao leitor. O leitor encerra o circuito porque ele influencia o autor tanto antes quanto depois do ato de composição. Os próprios autores são leitores. Lendo e se associando a outros leitores e escritores, eles formam noções de gênero e estilo, além de uma idéia geral do empreendimento literário, que afetam seus textos, quer estejam escrevendo sonetos shakespearianos ou instruções para montar um kit de rádio. Um escritor, em seu texto, pode responder a críticas a seu trabalho anterior ou antecipar reações que serão provocadas por esse texto. Ele se dirige a leitores implícitos e ouve a resposta de resenhistas explícitos. Assim o circuito

143 Tanto isso não é verdade que Lobato, a partir de um determinado momento, passou a publicar livros didáticos e jurídicos, pois eram a garantia de lucro certo.

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percorre um ciclo completo. Ele transmite mensagens, transformando-as durante o percurso, conforme passam do pensamento para o texto, para a letra impressa e de novo para o pensamento.” (DARNTON, 1995: 112).

A longa citação de Robert Darnton serve para ilustrar a importância e o papel do leitor na produção literária - que, como vimos, envolve escritores e editores, além de outros agentes sociais -, o grau de interferência e envolvimento do público ledor nos textos literários. Se o leitor ocupa posição central no processo de produção da literatura, não é descabida a indagação sociológica sobre quem lê o quê, em que condições, em que momento e com que resultados (DARNTON, 1995: 129), pois só assim será possível compreender a formação de um campo literário.

Num artigo publicado em 1993, Wendy Griswold assinala que a mais significativa mudança de direção nas pesquisas sociológicas acerca da literatura na última década é justamente a reconceituação dos leitores como agentes criativos, abandonado a noção de leitor como recipiente passivo daquilo que os escritores escrevem. Assim como Darnton, Griswold também afirma que os padrões de leitura constituem objeto da investigação sociológica.

Mas, enfim, qual o papel do leitor no processo de estruturação do campo literário ?

O sistema de produção de bens simbólicos e da própria estrutura de tais bens, está intimamente associada à constituição progressiva de um campo intelectual e artístico, “(...), ou seja, à autonomização progressiva do sistema de relações de produção, circulação e consumo de bens simbólicos.” (BOURDIEU, 1998: 99). A autonomia do campo intelectual e artístico se dá em relação aos campos econômico, político e religioso, noutras palavras, em relação a todas aquelas instâncias que pretendem legislar na esfera cultural em nome de um poder e/ou uma autoridade que não é propriamente cultural. De acordo com Pierre Bourdieu, o processo de autonomização do campo artístico liga-se a

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uma série de outras transformações: a constituição de um público de consumidores cada vez mais amplo e socialmente diversificado; a constituição de um corpo igualmente numeroso e diferenciado de produtores e empresários de bens simbólicos; e, por fim, a multiplicação das instâncias de consagração 144.

Ora, fica evidente que a independência do campo literário em relação às influências e ingerências de outros campos depende da liberdade dos produtores culturais (sejam os escritores ou os editores) frente aos mecenas, às autoridades estatais e eclesiásticas. E tal liberdade, por sua vez, só é conquistada se os produtores de bens simbólicos possuírem seu próprio público consumidor, que fornecerá os ganhos materiais e simbólicos necessários para manter a existência desses produtores, bem como direcionará a produção de bens culturais para esta ou aquela direção, independentemente das diretrizes instaladas noutros campos. Os produtores culturais não estarão mais sob as leis que regem os outros campos, mas sob aquelas regras elaboradas dentro do próprio campo literário e pelos agentes sociais que dele fazem parte (leitores, escritores, editores, etc.)145. Em resumo: a formação e a extensão do público leitor é condição sine qua non para a autonomização do campo literário.

Nesse sentido, a ação de Lobato é parte fundamental do processo de formação de um campo literário no Brasil. Sua intensa e infatigável batalha para a formação do público leitor, que, como vimos, pode ser percebida na sua atividade propriamente literária e editorial, possibilitou um princípio de autonomia para o campo146. Seu projeto 144 Durante o período aqui tratado, e no qual se desenvolve todo o projeto artístico de Monteiro Lobato, todas essas transformações estavam em curso.145 É claro que o campo literário não se debruçará sobre si mesmo e tornar-se-á imune aos fatos políticos e econômicos, por exemplo. Os campos comunicam-se entre si e se influenciam mutuamente. A autonomia de um determinado campo implica a mediação de tais influências, que não se darão mais de forma direta, pelas regras e agentes do próprio campo.146 Cabem, aqui, dois alertas: primeiro, não é minha intenção estabelecer a atuação de Monteiro Lobato (seja a propriamente literária, seja a editorial) como uma espécie de marco zero na história cultural brasileira, como o criador de um campo literário nacional, pois, efetivamente, ele não o foi - o processo de estruturação do campo literário encontrava-se em gestão já há algum tempo, configurando certas condições sócio-históricas apropriadas para a ação um ator social individualizado, no caso, Monteiro Lobato.

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literário foi responsável pela criação de um novo habitus literário, que tomava o leitor como potencialidade, como parte integrante da produção cultural. O público - a partir de Lobato -, com toda sua heterogeneidade e pluralidade, passou a constituir o alvo de escritores e editores147.

Ao mergulhar no texto lobatiano é imediatamente perceptível seu cuidado com o leitor, sua intenção de conquistá-lo - seja por intermédio da forma, seja por meio do conteúdo. A ação editorial de Lobato, num segundo momento (mas não menos importante), somente comprova a atenção que dedicava ao público, uma vez que as estratégias revolucionárias que adotou - a melhoria na distribuição do livro, a propaganda, a renovação gráfica, a escolha dos escritores a serem editados - visavam levar o livro ao maior número possível de leitores.

No afã de criar um mercado consumidor de literatura, Lobato não se entregou à subordinação total às demandas externas ao campo literário, tampouco se manteve absolutamente independente em relação ao mercado e às suas exigências. Se, por um lado, adotou “práticas avalizadoras do lucro como direito do empresário editor e gráfico” (KOSHIYAMA, 1982: 188), por outro, sempre buscou editar escritores que, segundo ele, apresentassem qualidades literárias - qualidades estas definidas de acordo com os critérios de classificação engendrados no campo literário, espaço social onde Lobato ocupou, durante alguns anos, posição hegemônica 148.

E, vale lembrar, Monteiro Lobato em nenhum momento abriu mão de sua literatura militante, crítica (às vezes cáustica demais), de cunho visivelmente social, em nome dos consumidores; não abandonou a crença no poder transformador da literatura: os livros deveriam ser um convite para a reflexão e para a ação.

147 Para uma avaliação mais detida do impacto das estratégias editoriais de Lobato sobre os futuros editores, ver PONTES, Heloísa. “Retratos do Brasil: editores, editoras e ‘Coleções Brasiliana’ nas décadas de 30, 40 e 50.” In MICELI, Sérgio (1989). História das ciências sociais no Brasil - volume 1. São Paulo: Vértice/IDESP.148 Para confirmar esta afirmação, basta consultar o catálogo de sua editora, parcialmente reproduzido nos dois capítulos anteriores.

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Uma literatura engajada, que tratasse dos problemas da nação, que se voltasse para as questões que afetavam boa parte da população no seu dia-a-dia, que sugerisse alternativas para o país e que buscasse a melhoria das condições de vida do povo. Eis a maneira que Lobato enxergava para aproximar os livros do público e aumentar constantemente o número de leitores. E tal concepção não era meramente instrumental uma vez que o próprio público (num primeiro instante, virtual) fornecia matéria para a literatura, que a devolveria de forma transformada, trabalhada literariamente. A investigação sociológica permite afirmar que a literatura, em Lobato, é social porque é produto de condições sociais específicas; e metassocial porque, como um produto sui generis, permite à sociedade refletir sobre si própria, como uma espécie de consciência. Lobato percebia o caminho de mão dupla que ligava o público à literatura.

Lobato, a meu ver, foi o ponto alto de um, digamos, “processo civilizador literário” que estava em curso no período. Isso quer dizer que apesar de representar, talvez, o ápice de um processo, Lobato não estava só; ao contrário, estava mergulhado numa determinada configuração social responsável pelo estabelecimento de sua interdependência com outras figuras e instituições sociais da época. Por exemplo, é nesse período, segundo Flora Süssekind, em que a relação entre as novas formas de produção cultural (e mesmo literária) - o desenvolvimento da imprensa, do mercado editorial, da linguagem cinematográfica e da propaganda - e a transformação das formas de recepção se torna mais aguda. Se há o que Norbert Elias chama de um “novo padrão de criação artística”, há também uma nova “estrutura da arte” (ELIAS, 1995: 44), ou seja, a mudança nos padrões de produção afeta os padrões de recepção da obra de arte, que, por sua vez, também influencia a produção artística; e à medida que muda a relação entre os que produzem arte e os que a compram, muda também a estrutura da arte.

Monteiro Lobato, melhor do que outros, capta todo o clima de transformação que paira sobre o meio literário e artístico e incorpora

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tais mudanças na tessitura de seu projeto literário. Seu trabalho editorial sinaliza uma visão social, e não apenas de Lobato, a respeito da literatura - e que afirma a “materialidade gráfica do trabalho literário” (SÜSSEKIND, 1988: 44) -, resumida por Flora Süssekind nos seguintes termos:

“A preocupação com o projeto gráfico explicita a redefinição que se ensaia então do trabalho do escritor, submetido a certa profissionalização; da literatura, entendida também como técnica; e do livro, visto na sua materialidade de objeto tipográfico, de produto em série.”(SÜSSEKIND, 1988: 43).

Os próprios escritores, escrevem Lajolo e Zilberman, mostram que o texto literário se articula com os modos de produção vigentes (LAJOLO & ZILBERMAN, 1998: 117). E a articulação se dá de várias maneiras, desde a inclusão do projeto gráfico como uma das dimensões do trabalho literário até a incorporação de outras linguagens, como a fílmica, pelo texto literário. Tudo isso é visível no projeto artístico lobatiano, o que explica em boa medida o seu sucesso, principalmente no que diz respeito à aproximação entre tal projeto e o público leitor.

Porém, a despeito de se utilizar das mais novas técnicas de produção gráfica e editorial para a confecção do livro e até mesmo incorporar essas novas técnicas para a própria elaboração do texto literário, Lobato, apontam Marisa Lajolo, Regina Zilberman e Cassiano Nunes, não abriu mão daquela que é a mais antiga forma narrativa, a oralidade, agindo como uma espécie de contador de histórias cuja platéia atenta também é participante - e assim “contador e ouvintes partilham espaço e tempo” ((LAJOLO & ZILBERMAN, 1998: 217). Utilizar-se da narrativa oral como recurso literário - e por isso mesmo promover a aproximação entre o leitor e o texto - não foi exclusividade de Lobato. Vários outros escritores - Lima Barreto, João Simões Lopes Neto, Valdomiro Silveira; os modernistas Mário de Andrade, Antônio Alcântara Machado etc - lançaram mão do mesmo recurso uma vez que a linguagem se constituía num dos instrumentos de investigação da

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“realidade”nacional, num dos caminhos pelos quais era possível se chegar até essa “realidade” - preocupação esta que se estendeu no solo literário brasileiro, aproximadamente e sob formas diversas, desde o romantismo até a segunda fase do modernismo. Nesse sentido, a aproximação entre linguagem literária e linguagem cotidiana se apresentava como uma modalidade de pesquisa estilística e pesquisa social.

E não é demais lembrar que a utilização do falar coloquial, a incorporação dos regionalismos, a criação de neologismos, se mostrará mais tarde como uma das marcas do modernismo, ou seja, avizinhar a linguagem literária de uma das mais antigas formas narrativas, a oralidade, era, no período, um traço de modernidade literária; e atesta, mais uma vez, que a distância entre os considerados pré-modernistas e os modernistas era menor do que supunham estes últimos e toda uma geração de historiadores e críticos literários.

O que se pretende argumentar é que a arte, nos termos utilizados por Norbert Elias, não é “algo que flutua no ar, exterior e independente das vidas sociais das pessoas” (ELIAS, 1995: 56); há uma conexão que liga a sociedade ao artista e às obras por ele produzidas. Daí o argumento de que Lobato é parte (importante, é claro) de um processo mais amplo de civilização literária responsável pela formação, e constante ampliação, do público leitor. O projeto literário lobatiano, que tinha como diretriz primordial encurtar a distância entre livros e leitores, relaciona-se a outros fatores que promoveram a formação e a consolidação da leitura no país, mormente São Paulo: Antônio Cândido chama a atenção para a importância das repúblicas estudantis como fator de elaboração de uma “atitude literária”, que estimulava a produção de literatura, a leitura e o intercâmbio literário (CÂNDIDO, 1976: 182-184); o desenvolvimento da imprensa da capital paulista é outro fator que contribui para, além da profissionalização da atividade literária, a constituição e um alargamento do público ledor; as discussões e pressões preocupadas com o desenvolvimento escolar tomam conta de alguns setores da sociedade brasileira a partir de 1915

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e resultam no início de algumas batalhas - a difusão da escola primária, por exemplo - que procuravam debelar o analfabetismo no país, e, conseqüentemente, contribuir para a instituição da leitura, um golpe duro contra a antiga “aristocracia dos que sabem ler e escrever” (NAGLE, 1985: 262, 263); sem contar as inúmeras transformações pelas quais a cidade de São Paulo passara, dentre elas o aumento populacional e a diferenciação social (nos sentidos horizontal e vertical), que contribuíram para o aumento do número de leitores e fizeram com que a literatura, e por conseguinte a leitura, conforme as palavras de Antônio Cândido, fossem absorvidas pela comunidade e deixassem de ser manifestação limitada a um grupo determinado (CÂNDIDO, 1976: 188-189).

A sociologia da leitura aqui delineada, imprescindível para o estudo da formação do campo literário, pretende visualizar o projeto criador de Lobato a partir de sua inscrição num processo social mais amplo justamente para tentar compreender o processo como um todo, inclusive suas particularidades, e, ao mesmo tempo, tentar entender a especificidade de tal projeto, somente possível se comparado a um quadro social abrangente.

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Capítulo 4.

(Crise à vista)

Chegamos a 1926, ano da publicação do necrológio de Lobato escrito por Mário de Andrade - e transcrito no primero capítulo deste trabalho. É preciso perguntar por que sua publicação ocorreu justamente em 1926 e por que não antes, já que as rusgas entre Lobato e os modernistas, capitaneados por Mário de Andrade, vinham acontecendo desde o final da década de 10 do século passado. Certamente não se trata de mera coincidência. Existem razões outras que ajudam explicar o golpe final perpetrado pelos barões do modernismo no ano acima citado. E essas “razões outras” tornam-se visíveis sob a luz da sociologia.

Vimos, até aqui, que a trajetória de Lobato como escritor possibilitou a aquisição da Revista do Brasil, que, por sua vez, resultou na inauguração de sua casa editora, a Monteiro Lobato & Cia., e a atividade editorial, de certa forma, “facilitou” seu trabalho literário, uma vez que Lobato tornou-se editor de si mesmo. Portanto, a realização do projeto literário lobatiano só pode ser pensada a partir da estreita relação entre o ofício de escritor e o desempenho como editor. Se, por um lado, esse verdadeiro amalgamento de atividades contribuiu para a conquista da hegemonia do campo literário nacional por alguns anos, por outro, é também a partir da interface escritor/editor que é possível compreender a drástica perda de espaço - logo, de poder - sofrida por Monteiro Lobato no biênio 1925-1926.

Comecemos pela crise de sua editora. Já em 1923, em carta de primeiro de dezembro endereçada a Godofredo Rangel, Lobato menciona, pela primeira vez, a depressão que se insinua no mercado livreiro:

“A vendagem dos livros tem caído; todos os livreiros se queixam - mas o público tem razão. Câmbio infame, aperto geral, vida cara. Não há sobras nos orçamentos para a compra

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dessa absoluta inutilidade chamada ‘livro’. Primo vivere.” (LOBATO, 1951: 259-260, vol. II)Em dez de junho de 1926, noutra carta a Rangel, Lobato se

mostra preocupado em relação aos problemas de abastecimento de energia e o impacto sobre a produção de sua editora:

“Nada sei de como desfechará o nosso caso. A situação piora. A Light, que prometera restabelecer a força este mês, avisa hoje que fará nova redução na energia fornecida. Só podemos trabalhar agora dois dias por semana! E como a horrenda seca que determinou esta calamidade continua, é voz geral que teremos completa supressão de força em novembro.” (LOBATO, 1951: 277).

De fato, parte da década de 20 é crivada por crises diversas que se manifestam em diferentes setores da sociedade brasileira, e particularmente São Paulo em alguns casos, trazendo conseqüências nada positivas para a produção industrial. Primeiro, o levante militar de 1924 em São Paulo, responsável pela paralisação da vida comercial da cidade e por certa desestabilização política do estado e da nação, que resultou, por conseguinte, no endurecimento do regime e reforçou o poder do presidente Arthur Bernardes, responsável pela reversão da política econômica do país visando combater a crise que aqui se instalara. Segundo Fausto Saretta:

“Dadas as características da economia brasileira, o plano de estabilização implementado repercutiu pesadamente sobre a atividade produtiva, como demonstram os dados disponíveis. A taxa de crescimento do produto foi de 1,4%, em 1924, e nula no ano seguinte, sendo expressivos os números de falências nas praças do Rio de Janeiro e São Paulo.”(SARETTA, 1997: 230).

Além disso, a recessão do quadro internacional no início dos anos 20, que atingiu principalmente os Estados Unidos e a Inglaterra,

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impactou a economia brasileira: a queda das exportações causou a depreciação da moeda, logo a desvalorização cambial, responsável, por sua vez, pela inflação, queda do salário real e imensa pressão sobre os custos daquelas empresas que dependiam das exportações - como era o caso da Monteiro Lobato & Cia., que necessitava da importação de papel para a manutenção de suas atividades 149. Por fim, a crise de abastecimento de energia que recai sobre São Paulo na década de 20, fruto, paradoxalmente, do intenso crescimento urbano e industrial, que exigia, crescentemente, maior disponibilidade de energia elétrica, impossível, naquele momento, de ser gerada e fornecida. Ademais, a partir de 1924 a crise no abastecimento é agravada por prolongada seca que ocorria desde 1919, forçando a São Paulo Light “ao estabelecimento de medidas de contenção do consumo e à busca por ampliar a produção de eletricidade.” (LORENZO, 1997: 170).

Acerca do complicado cenário que se desenhava no contexto sócio-econômico do período, escreve Alice Koshiyama:

“As falências do ano de 1925 coincidiram com a execução, pelo governo federal, de uma política deflacionária, implantada como tentativa para contornar a crise econômica e social vigente. As empresas menores, as mais descapitalizadas, as que dependiam de empréstimos bancários para suas operações diárias, foram aniquiladas.” (KOSHIYAMA, 1982: 90).

A variação da taxa cambial, que encarecia sobremaneira as importações, somada à retração do crédito bancário, empurrou ainda mais as pequenas e médias empresas em direção à falência. E a casa editora de Monteiro Lobato não escapou do nefasto destino: em carta de sete de agosto de 1925, o intelectual-empresário comunicava a Godofredo Rangel a concordata de sua antiga empresa, uma vez que se

149 A redução das taxas de importação para a indústria nacional foi sempre uma bandeira levantada e defendida por Moteiro Lobato.

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encontrava impossibilitado de pagar as dívidas contraídas junto aos credores 150.

Interessa saber qual o efeito (ou os efeitos) que todos esses eventos ocorridos noutros campos, primordialmente o político e o econômico, provocaram no campo literário nacional do período. O impacto dos fatos extra campo literário não se faz sentir de maneira direta sobre o campo em questão, mas é retraduzido de acordo com as regras e princípios que o organizam, pela sua lógica interna, ou seja, a influência de quaisquer campos sobre outros sempre é mediada pelo conjunto de normas específicas que estrutura cada um deles, negando a possibilidade de existir relações mecânicas na comunicação inter campos. Destarte, fenômenos e problemas políticos e/ou econômicos, por exemplo, acarretarão, sim, desdobramentos no campo artístico, mas desdobramentos nos padrões estéticos que regem o espaço artístico, e não conseqüências puramente políticas e/ou econômicas.

A perda da editora significou para Lobato sua ruína financeira e, talvez pior do que isso, a mudança vertical, de cima para baixo, de parte de seu status literário, uma vez que a editora auxiliou o escritor a “fazer um nome”, um nome conhecido e reconhecido, forneceu-lhe um capital de consagração que concedia a Lobato o poder de consagrar (ou não) outros escritores e obras; portanto, o efeito de griffe - para utilizar uma noção elaborada por Pierre Bourdieu - permitia a Lobato conferir valor (literário) a outros e tirar os lucros (mormente simbólicos) dessa operação. A atividade editorial se transformou numa poderosa arma que Lobato tinha à mão no complicado jogo das rivalidades literárias, dando-lhe alguns corpos de vantagem na disputa por um posto privilegiado no ambiente artístico de então. O poder de que dispunha Monteiro Lobato, devido em boa parte à sua editora, pode ser resumido no seguinte trecho de Bourdieu:

150 Para Octalles Marcondes Ferreira, aponta Hallewell, a ação de Lobato foi precipitada, já que o procedimento mais sensato teria sido procurar algum entendimento com os credores da firma, devido justamente às dimensões - e à importância - da empresa de Monteiro Lobato. (HALLEWELL, 1985: 264-265).

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“Uma das aposta centrais das rivalidades literárias (etc.) é o monopólio da legitimidade literária, ou seja, entre outras coisas, o monopólio do poder dizer com autoridade quem está autorizado a dizer-se escritor (etc.) ou mesmo a dizer quem é escritor e quem tem autoridade para dizer quem é escritor; ou, se se preferir, o monopólio do poder de consagração dos produtores ou dos produtos.” (BOURDIEU, 1996: 253).

O fato de ser o proprietário e o editor de uma das mais prestigiadas editoras, senão a mais prestigiada, do período - vinculada à principal revista cultural da época, a Revista do Brasil - permitia a Lobato apostar alto na luta renhida por um lugar ao sol no mundo literário do final da década de 10 e início dos 20 do século que há pouco foi deixado para trás, já que possuía autoridade suficiente, mas não o monopólio exclusivo do sistema de classificação literária, para determinar quem seria ou não por ele editado. Escolher qual obra publicar implicava já certa classificação, seja a da própria obra, seja a do escritor.

Contudo, seria injusto atribuir única e exclusivamente ao trabalho editorial de Monteiro Lobato a fonte de seu capital simbólico, suficientemente alto a ponto de torná-lo um dos principais, dos mais respeitados e legítimos “juízes” - se é permitido utilizar tal expressão - do campo literário nacional daquele momento histórico. Parte considerável do prestígio, do reconhecimento e da autoridade de Lobato se deve à sua obra literária, ao seu ofício de escritor. E é justamente na obra literária lobatiana que encontraremos também os indícios de sua perda de espaço no interior do campo, os sinais da diminuição desse capital simbólico até então acumulado.

A derrocada de Lobato pode ser compreendida a partir da análise sociológica de seu único romance, O presidente negro. Publicado em 1926 151, já há algum tempo afastado da atividade propriamamente

151 O texto aqui utilizado para análise é de 1979, publicado pela Editora Brasiliense e corresponde à 13a edição do livro.

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literária 152, esse livro tem sido pouco tratado pelos críticos e estudiosos de Monteiro Lobato, provavelmente porque se trata de um livro que denuncia e anuncia justamente o naufrágio do autor no seio do campo literário. No entanto, veremos que o desdobramento da precária condição em que Lobato se encontra no mundo literário o levou a outras paragens, onde conseguiu recobrar todo o prestígio que fora perdido.

O primeiro ponto que chama atenção é a escolha do tema: uma ficção científica cujo foco de atenção se concentra sobre os Estados Unidos no ano de 2228. O próprio autor justifica a Rangel a escolha do tema: “Sabe o que ando gestando? Uma idéia-mãe! Um romance americano, isto é, editável nos Estados Unidos. Já comecei e caminha depressa. Meio à Wells, com visão do futuro.” (LOBATO, 1951: 293, vol. II). À primeira vista o argumento parece bom: gestar o tal “romance americano”, ou seja, um romance ambientado na terra do Tio Sam, com temática que interesse ao público norte-americano, pois o interesse maior do escritor é publicá-lo na América do Norte. No entanto, é preciso indagar por que Lobato, afinal de contas, resolveu concentrar todos seus esforços e mobilizar sua “pulsão expressiva” para escrever e editar um romance nos Estados Unidos e não no Brasil. Por que Lobato não se voltou para os problemas e questões nacionais que ainda preocupavam nossa intelligentsia, como já fizera anteriormente, mas se voltou para um outro público e outro assunto? Publicar noutro país, tornar-se universal, não implica necessariamente em abandonar temas locais; ao contrário, o grande escritor é aquele que a partir do particular consegue atingir certas questões universais.

Este caso é possível compreender sob uma chave sociológica. Do período que se estende de 1870 até a chamada segunda geração modernista - que toma conta do decênio de 30 - há uma profícua produção de projetos para o Brasil e de reflexões sobre o país - como já foi mencionado no capítulo 3 - porque existia, indubitavelmente, uma demanda do campo por esse tipo de trabalho intelectual. Em 1926, 152 O último livro de contos publicado por Lobato foi O macaco que se fez homem, de 1923; e em 1924 o escritor publicara o seu Jeca Tatuzinho. Depois deles vem à tona o romance lobatiano O presidente negro.

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portanto, ainda havia essa mesma demanda por certos temas e por experimentações estéticas, só que Lobato, naquele momento, encontrava-se incapaz de respondê-la, ao passo que os modernistas, entronizados na posição dominante no interior do campo literário, atendiam de modo mais do que adequado às exigências que a comunidade intelectual e artística lhes impunha. Enquanto os modernistas respondiam a contento às necessidades engendradas no campo, percebemos o engessamento criativo de Lobato presente nas páginas de O presidente negro - o que ajuda a explicar, em parte, ao final de acirrada disputa a vitória modernista e a queda daqueles literatos, entre eles Lobato, que a partir de um determinado momento da história da formação do campo literário nacional não mais correspondiam às expectativas nele geradas.

Essa “verdadeira curiosidade literária”, essa “brincadeira de talento”, de acordo com amenizadora Nota dos editores que apresenta a edição da Brasiliense, abre mão da reflexão sobre o Brasil, marca registrada do texto lobatiano - mesmo aqueles que não podem ser considerados propriamente literários - e se recusa a falar do presente, jogando para um futuro longínquo uma questão que poderia muito ter sido tratada no contexto brasileiro da época, a saber, as conflituosas relações raciais entre brancos e negros.

Resumidamente, o livro trata da possibilidade de se perscrutar o futuro a partir da invenção do Prof. Benson, cientista brasileiro apesar do nome inglês, o “porviroscópio”. Com a morte do professor, sua filha, Miss Jane (igualmente brasileira ainda que o nome sugira o contrário) oferece ao amigo e ajudante do professor, Ayrton Lobo, a chance de conhecer o futuro. Mais do que isso, Miss Jane propõe a Ayrton que ele escreva uma novela a respeito do choque das raças que ocorrerá nos Estados Unidos da América no ano de 2228. A máquina do tempo conduz, então, leitores e personagens a um futuro no qual o líder afro-americano Jim Roy vence seu adversário, Kerlog, representante da raça branca, no pleito eleitoral. Todavia, este último, em nome da “harmonia dos partidos brancos” (p.145), a serviço da “união da raça branca”

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(p.145) e por “razões de raça” (p.155) resolve utilizar todos os meios possíveis para proteger o “sangue ariano” (p.163), mas sem provocar a desestabilização do regime político e desde que evitasse o combate sangrento entre as raças. A solução é dada por um de seus cientistas: a esterilização dos negros por meio dos raios ômega, que se apresentava como um inofensivo método para alisar os cabelos da população negra nos recém criados “postos desencarapinhantes” (pp. 181-182), que contou, é claro, com a imensão aceitação dos negros (pp. 182-183). Toda a população afro-americana estava condenada ao desaparecimento sem o saber, exceção feita a Jim Roy - que também alisou o cabelo -, comunicado pelo ainda presidente Kerlog. Diante de tal tragédia o líder negro comete suicídio e são convocadas novas eleições, cujo resultado final aponta a reeleição de Kerlog. Após sua vitória o tenebroso segredo de estado é revelado para toda a população americana, negros e brancos e, em seguida, é aprovada a “moção Leland”, segundo a qual o pigmento negro passava a ser incluído “entre as taras que implicam esterilização” (p. 206). Diante da solução final, filosofa Ayrton:

“Não ter futuro, acabar... Que torturante a sensação dessa massa de cem milhões de criaturas assim amputadas do seu porvir!Por outro lado, que maravilhoso surto não ia ter na América o homem branco, a expandir-se libérrimo na sua Canaã prodigiosa!” (p. 208).

Junto à ficção científica - a viagem através do tempo - corre paralelamente uma história de amor, sentimento este cultivado por Ayrton desde quase o início do romance mas não correspondido, pelo menos não explicitamente correspondido, por Miss Jane. Ao final, para ser mais exato na última página, o amor entre ambos se realiza com “o beijo de Barrymore”, um beijo cinematográfico.

A despeito de algumas curiosidades que a obra de fato apresenta, como por exemplo o “rádio-transporte”, uma verdadeira revolução da

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comunicação segundo o narrador, que tornava possível transportar palavras, sons e imagens por meio de ondas eletromagnéticas - e que nos faz lembrar de imediato das novas tecnologias de comunicação contemporâneas como a internet -, e da presença de algumas características clássicas do texto lobatiano, como a crítica à frase empolada e o elogio à simplicidade literária (p. 211), a defesa da criação e uso de neologismos (p. 188), crítica à inépcia do governo e ao parasitismo (p. 117) etc. - que, no entanto, aparecem “apagadas” diante do conjunto da obra -, a escolha do tema e a abordagem dispensada ao assunto, principalmente esta última, parecem não coadunar com as exigências do campo intelectual e artístico do final dos anos 20. Não que o debate sobre as relações raciais no Brasil fosse de menor importância; ao contrário, ocupava um lugar destacado em meio às querelas que envolviam a intelligentsia brasileira durante os anos 10, 20 e 30 do século XX (e mesmo posterior e anteriormente). Contudo, vale lembrar, Lobato projeta a questão racial para além das fronteiras nacionais, evitando tratar do assunto no contexto nativo. Mesmo a solução literária proposta por Monteiro Lobato no desfecho do texto não corresponde às discussões que formavam o clima intelectual daquele momento 153, dividido entre aqueles que desde o final do século XIX e início do seguinte já propunham uma abordagem anti-escravista e anti-racista, como Joaquim Nabuco, Alberto Torres, Manoel Bomfim e o ensaísta pernambucamo José Maria Belo, até desembocar nas perspectivas culturalistas ensaiadas antes dos 20 por Roquete Pinto e desenvolvidas no decênio de 30 por Gilberto Freyre; e, de outro lado, os defensores da tese do branqueamento, entre os quais se destacam Sílvio Romero, Afrânio Peixoto e Oliveira Vianna, teoria segundo a qual:

“Primeiro - a população negra diminuía progressivamente em relação à branca por motivos que incluíam a suposta taxa de natalidade mais baixa, a maior incidência de doenças, e a

153 Um livro que faz um bom e útil balanço histórico da questão racial no Brasil, principalmente no que tange ao debate intelectual em torno do tema, é SKIDMORE, Thomas E. (1989). Preto no branco. Raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

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desorganização social. Segundo - a miscigenação produzia ‘naturalmente’ uma população mais clara, em parte porque o gene branco era mais forte e em parte porque as pessoas procurassem parceiros mais claros do que elas. (A imigração branca reforçaria a resultante predominância branca.)”(SKIDMORE, 1989: 81).

Reparem que a saída proposta por Lobato ao final do romance não contempla, obviamente, o discurso anti-racista e até integrador das raças e nem tampouco a tese do branqueamento, que em nenhum momento propunha a expulsão dos negros do país (hipótese aventada pelo líder branco Kerlog ao longo de O presidente negro) ou seu extermínio via esterilização - ao contrário, a tese do branqueamento pressupunha a miscigenação do elemento negro ao elemento branco, a qual levaria, inevitavelmente, ao fim do primeiro devido ao fato de o “gene branco” ser “mais forte”. Poder-se-ia argumentar que Lobato, interessado em atingir o mercado norte-americano, tenha desconsiderado o debate nacional e tecido um enredo cujo fecho estivesse mais de acordo com tal mercado. Veremos, um pouco mais adiante, que a estratégia do autor não surtiu efeito.

O tratamento estético oferecido por Monteiro Lobato também não atendia às regras estéticas engendradas pelo campo. Em 26 o campo literário brasileiro respirava os cânones modernistas, a realização do projeto estético que, segundo João Luiz Lafetá, caracterizava a primeira fase do modernismo fincava com mais vigor suas raízes no solo literário nacional e passava a determinar os padrões artísticos. O livro de Lobato sofria um julgamento a partir de critérios elaborados por aqueles que outrora estiveram numa posição inferior em relação ao escritor vale-paraíbano e mostrava-se em termos estilísticos aquém dos seus primeiros textos literários, quando seus contos respondiam às necessidades e exigências formais do campo ao qual pertencia. Mudados os agentes responsáveis pelas regras da arte mudava-se também o tipo de demanda a qual os escritores deviam satisfazer.

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Lobato não conseguiu dar conta dessa nova demanda, o que contribuiu ainda mais para a diminuição de seu capital simbólico e, conseqüentemente, a perda de espaço social no campo literário.

Em relação à organização formal da obra, o primeiro fato que salta aos olhos é a mudança de gênero empreendida pelo autor. Lobato abandona o conto, do qual tinha se transformado num mestre 154, e resolve abraçar o romance. A passagem da narrativa curta e concisa para uma mais longa implicou certo prejuízo para o autor. Na primeira, Lobato possuía domínio da técnica literária, do ritmo do texto, da colocação precisa de palavras e expressões, do próprio desenvolvimento da narrativa até a chegada do clímax da história. Tal domínio abria espaço para sua experimentação estética, para a radicalização da linguagem literária, não só pela mobilização dos recursos que a própria linguagem literária oferece mas também pela incorporação de outras linguagens à literatura, como a cinematográfica por exemplo. Se no conto Lobato apresenta várias inovações, na narrativa longa o escritor não encontra lugar para vôos estilísticos mais radicais: quase não ocorre a invenção dos neologismos tão ao sabor lobatiano e o uso de metáforas que transformavam palavras em imagens autênticas, inexistem as onomatopéias que Lobato utilizava para conferir certa musicalidade e até mesmo verossimilhança ao texto, o autor abusa das expressões estrangeiras - gros bonnets, surmenage, vieux jeu, souvent femme varie, cherchez, garden-party, she is false as water entre outras - e desta vez sem a costumeira ironia que servia para valorizar a língua nativa em detrimento de todas as outras; os desenvolvimentos e desfechos inesperados cedem lugar à obviedade, ao previsível, o texto não possui a mesma cadência visível em boa parte do conto lobatiano - ainda que o escritor continue utilizando o recurso do diálogo constante para conferir um certo ritmo à sua prosa, a técnica

154 Para dar força a tal afirmação - a de que Lobato era um mestre do conto - lembro que num períodico chamado Revista Acadêmica, do ano de 1938, Mário de Andrade foi convidado a elaborar uma lista com os dez contos que ele julgava ser os maiores da literatura brasileira. Mário de Andrade, então, ofereceu uma dúzia de contos e entre eles figurava “Chóóó! Pan!”, de Monteiro Lobato - depois rebatizado como “A vingança da peroba”. Este conto faz parte do livro Urupês.

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não se mostra suficiente para alcançar tal efeito -, sem falar do desenlace piegas pintado com cores exageradamente sentimentais.

Mais uma vez é possível afirmar que Lobato resolveu deixar de lado tais recursos formais porque tinha como grande objetivo conquistar o público norte-americano, daí a impossibilidade da sua utilização, uma vez que a tradução para o inglês seria, provavelmente, prejudicada ou mesmo, em alguns casos, impossível. Contudo, volto a afirmar: optar exclusivamente por um outro público leitor - e por isso a adaptação de forma e conteúdo para os virtuais novos ledores - demonstra o quanto Lobato encontrava-se marginalizado no campo literário brasileiro. E tal marginalização se reflete na fatura da obra.

Decidido a concretizar seu projeto, Lobato envia os originais de seu romance, já vertidos para o inglês, para a agência literária Palmer, com sede em Hollywood, no final de 1927. Mas a resposta do editor-chefe, William David Ball, acaba por sepultar os planos do escritor:

“(...) o enredo central é baseado em um assunto particularmente difícil de se abordar neste país, porque ele irá, certamente, acender o tipo mais amargo de sectarismo e, por esta razão, os editores são invariavelmente avessos à idéia de apresentá-lo ao público leitor(...)”.E prossegue o editor americano:“Estivesse o senhor lidando com a invasão de uma nação estrangeira, ou raça, a reação seria bem diferente; mas o negro é um cidadão americano, uma parte integrante da vida nacional, e sugerir seu extermínio por meio da sabedoria e da capacidade superior da raça branca levaria a uma dissensão tão violenta no espírito dos leitores quanto faria um conflito entre doissi partidos políticos, ou duas religiões, em que um extirparia o outro.” (apud AZEVEDO, CAMARGOS & SACCHETTA, 1997: 220).

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Se a publicação do romance nos Estados Unidos foi inviabilizada, sua edição no Brasil foi marcada pelo fracasso, literário e comercial. Nesse sentido escreve Edgard Cavalheiro:

“E se comercialmente ‘O Choque’ não lhe trouxe os resultados esperados, literariamente representou autêntico naufrágio. Através de suas páginas o autor tenta profundas penetrações psicológicas e sociais, e temas como o conserto do mundo pela eugenia, o ajuste do casamento por meio das férias conjugais, a criação da cidade de Erópolis, o teatro onírico e outros são tratados de frente, mas sem o desenvolvimento que estavam a exigir. Lobato não imagina apenas; profetiza, com ares de reformador, de criador de mundos. Mas tudo com ligeireza, superficialmente.” (CAVALHEIRO, 1962: 275, vol. I).

O romance não encontra publicação onde Lobato inicialmente planejara, os EUA, representa um fiasco no mercado editorial interno e é mal recebido pela crítica nacional. Ora, não é difícil perceber as razões responsáveis por tal malogro. A busca pelo leitor, a sua conquista, é legítima e necessária; e Monteiro Lobato tentou alcançar um novo público 155. Até aí não há nenhum problema, pois todo artista, de uma forma ou de outra, pretende tornar-se universal. A estratégia do escritor, no entanto, mostrou-se sem efeito: Lobato pretendia atingir esse outro leitor abandonando justamente aquilo que sua arte tinha de local, isto é, deixar de lado os traços que tornavam sua literatura genuinamente nacional, uma literatura formada de acordo com as exigências, princípios e regras específicas do campo do qual fazia parte, do campo no qual foi gestada. O autor escolheu um tema e a

155 A fim de sublinhar a quem o “romance americano” era dirigido, escreve o autor no jornal A Manhã, edição de cinco de setembro de 1926: “Cumpre, todavia, não perder-se de vista que O choque foi escrito especialmente para o público americano, e pois havemos de julgá-lo não do nosso ponto de vista, mas do ponto de vista do grande povo da Norte América.” O próprio Lobato nos oferece as pistas para entender os motivos que levaram ao fracasso d’O presidente negro, tanto aqui, no Brasil, como lá, nos Estados Unidos.

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composição literária que julgava, equivocadamente, apropriadas para sua empreitada; e equivocadamente porque Lobato era um elemento alienígena no campo literário norte-americano, portanto, não conhecia suas normas e critérios, não os tinha incorporado sob a ação de um habitus muito particular. Logo, o tema e a composição não respondiam, em nenhuma medida, às necessidades daquele campo do qual pretendia participar 156. E o motivo do fracasso de seu romance no Brasil não é muito diferente. Como disse acima, Lobato quis se desvencilhar do colorido nacional de sua obra e ao fazer isso passou a não atender também aos requisitos do campo literário brasileiro, escrevendo, pois, uma obra igualmente estranha ao “gosto” - formado a partir dos critérios sociais de produção e recepção da obra, características peculiares de cada campo - local. Sua aventura literária foi uma tentativa frustrada de recuperar fama e prestígio alhures, já que sua condição no ambiente literário nacional da época era precária. Basta apenas lembrar - uma vez que o assunto foi exaustivamente tratado no primeiro capítulo - que Lobato já dava mostras da perda de seu fôlego literário até mesmo antes de seu romance, demonstrada na derrota por uma das imortais cadeiras da Academia Brasileira de Letras para o obscuro Adelmar Tavares. Parece, pois, que O presidente negro é o ponto final da curva descendente percorrida por Monteiro Lobato em 1925 e 1926. A permanência de Lobato tornava-se insustentável num campo de forças em que a tensão e o confronto eram inevitáveis e considerando que a energia de que dispunha naquele momento não era suficiente para encarar as acirradas disputas que inevitavelmente encontraria pela frente. O recurso que Lobato não tinha mas se o possuísse poderia ter utilizado numa circunstância como aquela eram os privilégios concedidos pelo campo do poder político ao artista em virtude das estreitas ligações mantidas entre ambos - e que outros escritores em

156 O próprio Lobato afirmaria mais tarde: “(...) para a América não serve, sou hoje o primeiro a convir. Necessita de uma séria remodelação que nunca me animo a fazer por falta de entusiasmo.” (LOBATO apud AZEVEDO, CAMARGOS & SACCHETTA, 1997: 222).

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ocasiões semelhantes ou mesmo distintas puderam fazer valer, principal mas não unicamente, sob a égide do Estado varguista 157.

Desprovido das condições materiais e institucionais que permitiriam a continuidade e a realização de seu projeto artístico, Lobato se afasta temporariamente do mundo literário - ou, como veremos logo a seguir, de uma certa região do mundo literário. Se as suas relações com o Estado e grupos políticos não eram suficientes para lhe garantir as tais condições logo acima mencionadas, elas foram o bastante para lhe assegurar um novo emprego: Lobato é nomeado por Washington Luís “para ocupar o cargo de adido comercial junto ao consulado brasileiro de Nova Iorque, no lugar de Arno Konder.”, e para lá se dirige em 1927. (AZEVEDO, CAMARGOS & SACCHETTA, 1997: 223). Lobato permanece nos Estados Unidos até 1931, quando é obrigado a retornar devido à mudança do regime.

Ao retornar para o Brasil, bastante influenciado pelo que vira na América do Norte, Lobato mergulha apaixonadamente nas campanhas pela exploração do petróleo e do ferro no país 158. Enquanto participa desses empreendimentos utiliza as técnicas literárias como instrumentos, armas mesmo, úteis na sua luta pelo ferro e pelo petróleo - para Lobato, os únicos caminhos possíveis para o desenvolvimento da nação. É nesse contexto que nascem os livros Ferro (1931), América (1932), Na antevéspera (1933) e O escândalo do petróleo (1936).

Nesse período, as relações que Monteiro Lobato mantém com o Estado não são as mesmas daquelas de quando partiu. Pioram. Empenhado na sua incansável cruzada pela auto-suficiência do país em combustível, Lobato desandava a escrever cartas aos governantes, inclusive ao próprio Getúlio Vargas. Era a maneira que encontrava para driblar a censura que o governo impusera à imprensa e à atividade intelectual de maneira geral. Mas, curiosamente, num primeiro momento as denúncias de Lobato contra o Estado e contra Vargas 157 A respeito dos intelectuais e escritores profissionais recrutados pelo regime Vargas, servindo de porta-vozes, diretos ou indiretos, do governo, ver MICELI, Sérgio (1979). Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945). São Paulo: Difel.158 No ímpeto de encontrar petróleo no Brasil Lobato chega a fundar uma companhia de exploração petrolífera, a Companhia Petróleo Nacional.

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acabam tendo um resultado inesperado: o intelectual-militante acaba recebendo um convite, trazido em 1940 por um emissário do presidente, para dirigir um “Ministério de Propaganda”, porém, convicto de que o intelectual a fim de conservar sua autonomia não devia receber qualquer sinecura do Estado, declina a proposta.

Mas sua batalha pelo petróleo continua. As sucessivas cartas a várias autoridades, talvez somada à recusa de um convite direto do presidente, acabam por afrontar o regime e é decretada a primeira prisão de Lobato, acontecida a quatorze de janeiro de 1941. Solto após quatro dias de detenção, Lobato não se vê ainda completamente livre das garras do Estado Novo, pois o processo contra ele continuava em tramitação. O resultado do processo é o enquadramento de Lobato no art. 3o, inciso 25, do Decreto-lei no 431/1938, ou simplesmente Lei de Segurança Nacional. Vem, em seguida, nova prisão, no dia 19 de março de 1941. O julgamento acontece em oito de abril e a sentença proferida absolve Lobato. Mas a história não pára por aí. No dia vinte de maio do mesmo ano Lobato é julgado culpado após o Tribunal Pleno reformar a primeira sentença. “Finalmente, após três meses de detenção, o presidente concede o indulto, através do decreto de 17 de junho de 1941. Libertam-no como o prenderam da primeira vez, na calada da noite, com os jornais proibidos de noticiar o caso.” (AZEVEDO, CAMARGOS & SACCHETTA, 1997: 307).

É evidente que as relações de Monteiro Lobato com o Estado e o poder político não eram apropriadas, para se dizer o mínimo, para garantir seu retorno e permanência àquele campo literário do qual foi praticamente varrido em 1925 e 26. Todavia, nesse ínterim - da ida aos Estados Unidos até sua volta e os problemas enfrentados junto ao Governo Vargas - Lobato não abandonou por completo o trabalho intelectual, dedicando-se a outras tarefas, inclusive para garantir seu sustento, como as traduções e principalmente a literatura infantil. A esse respeito assinala Edgard Cavalheiro:

“O petróleo não lhe dá os meios necessários à subsistência. Só despesas. Para manter-se, e aos seus, tem apenas um

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recurso: o trabalho intelectual. Em meio à incrível atividade - está em toda parte, na sede da Cia., no poço, em excursões de propaganda - escreve em 1932 ‘Viagem ao Céu’, publica ‘América’, e traduz os ‘Contos’, de Andersen. Em 1933 as atividades são ainda maiores: edita ‘Na Antevéspera’ e as ‘Novas Reinações de Narizinho’, e redige a ‘História do Mundo para Crianças’, grosso tomo de 300 páginas. Mas não é só: também ‘As Caçadas de Pedrinho’ é desse ano. E por incrível que pareça, ainda traduz ‘Mowgli, o Menino Lobo’, de Kipling, ‘Os Negreiros da Jamaica’, de Mayne Reid, ‘Caninos Brancos’, de Jack London, ‘Pinocchio’, de Collodi, e ‘Alice no País do Espelho’, de Lewis Carroll. Em 1934, ano dos mais cruciantes para a ‘Cia. Petróleo do Brasil’, é espantoso o que produz: escreve ‘Emília no País da Gramática’, e traduz ‘Poliana’, de Eleanor H. Porter, ‘O Lobo do Mar’, de Jack London, ‘As Aventuras de Huck’, de Mark Twain, ‘Poliana, Moça’, de Eleanor H. Porter, “O Doutor Negro’, de Conan Doyle, ‘Jacala, o Crocodilo’, de Kipling, “O Homem Invisível’, de Wells, ‘Patty’, de Jean Webster, ‘Novos Contos’, de Grimm, ‘O Querido Inimigo’, de Jean Webster e os ‘Contos de Fadas’, de Perrault.” (CAVALHEIRO, 1962: 18-19, II vol.).

A longa citação de Cavalheiro - que corresponde a uma pequena mostra da produção lobatiana após sua volta dos estados Unidos - é útil para mostrar que o trabalho intelectual de Lobato é praticamente todo ele voltado para uma modalidade literária que ainda engatinhava no Brasil: a literatura infanto-juvenil. E não é à toa e nem mera coincidência que o escritor de Taubaté tenha se dedicado com maior afinco a tal ramo literário justamente após 1926. É certo que a preocupação de Monteiro Lobato em relação à literatura infantil vem desde antes da data mencionada. Numa carta de 08/09/1916, confessa a Rangel:

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“Ando com várias idéias. Uma: vestir à nacional as velhas fábulas de Esopo e La Fontaine, tudo em prosa e mexendo nas moralidades. Coisa para crianças. Veio-me diante da atenção curiosa com que meus pequenos ouvem as fábulas que Purezinha lhes conta. (...) Ora, um fabulário nosso, com bichos daqui em vez dos exóticos, se for feito com arte e talento dará coisa preciosa. As fábulas em português que conheço, em geral traduções de La Fontaine, são pequenas moitas de amora do mato - espinhentas e impenetráveis. Que é nossas crianças podem ler? Não vejo nada. Fábulas assim seriam um começo da literatura que nos falta.” (LOBATO, 1951: 104, vol. II).

Isso sem falar que em 1921 Lobato publicara seu primeiro livro infantil, Narizinho Arrebitado, sem dúvida um marco da literatura infantil brasileira e um sucesso estrondoso, com mais de cinqüenta mil exemplares vendidos - fruto da sua adoção como livro didático nas escolas públicas de São Paulo. Num levantamento feito por Marisa Lajolo 159 constata-se que entre 1921 e 1927, sem incluir este último ano, Lobato escrevera sete livros infantis. São eles: o já citado Narizinho Arrebitado (1921), O Saci (1921), Fábulas de Narizinho (1921), Fábulas (1922), O Marquês de Rabicó (1922), A Caçada da Onça (1924) e O Garimpeiro do Rio das Garças (1924). Em compensação, a partir de 1927, Lobato publica nada menos do que quarenta e seis livros, cinco deles na Argentina, voltados para o público infanto-juvenil. Uma frase de seu maior biógrafo, Edgard Cavalheiro, assevera a observação segundo a qual a literatura infantil torna-se o carro-chefe da carreira de Lobato após um certo processo de formação: “A literatura infantil nasce, cresce e termina por absorve-lhe todas as atividades intelectuais (...)” (CAVALHEIRO, 1962: 142, vol. II). A saga infantil criada por Monteiro Lobato chega a números que impressionam, como assinala Edgard 159 Consultar Monteiro Lobato. Seleção de textos, contextualizações, notas, cronologias, características e exercícios por Marisa Lajolo. São Paulo: Abril Educação, 1981.

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Cavalheiro: “Trinta e nove histórias, das quais trinta e duas originais e sete adaptações. Cerca de cinco mil páginas, quase um milhão de exemplares em circulação.” (Idem, 142-143).

O processo de formação de sua literatura infantil, acima mencionada, vincula-se à decadência experimentada por Lobato no campo literário nacional, bastante evidente, repito, no biênio 1925-26. A marginalização (literária) sofrida por Lobato empurrou-o em busca de novos nichos nos quais pudesse, novamente, exercer o trabalho de escritor. E esse novo lugar, não por mera coincidência, foi justamente a literatura infantil - senão perguntaríamos por que não se dedicara ao gênero em períodos anteriores, logo após o gigantesco sucesso de seu Narizinho Arrebitado, por exemplo. Naquele momento Monteiro Lobato não tinha necessidade alguma de procurar novas regiões para habitar seu projeto literário, pois sua realização acontecia a todo vapor no campo, sua posição era das mais privilegiadas e a hegemonia que conquistara, entre o final da década de 10 e o início dos anos 20 do século passado, era quase inabalável. Só com a perda de poder no campo e a diminuição do seu status literário é que Lobato foi empurrado a investir energia e o capital (principalmente simbólico) que lhe restava num outro ramo da literatura, um território praticamente inexplorado nas letras brasileiras, e nele fincou sua bandeira de desbravador e, ainda hoje, senhor - pelo menos é essa a opinião de tantos autores de histórias infantis, como Ziraldo, Ruth Rocha e Tatiana Belinky.

Para a literatura infantil Lobato carregou várias características de seu estilo, vários traços que ajudaram na concretização de seu projeto literário: o desenvolvimento de uma linguagem com sabor nacional, simples, sem excessos ornamentais, recheada de neologismos, regionalismo e expressões coloquiais; a formação do leitor; sem falar do tratamento de temas sempre polêmicos e questões importantes da vida brasileira. Lobato elaborou, na nova região 160 que adentrava, um novo

160 Faltam ainda estudos sociológicos que ofereçam subsídios para afirmar com mais propriedade se a literatura infantil e infanto-juvenil configuram um campo à parte, autônomo, com regras e princípios próprios, ou se apresentam como uma área ou sub-campo pertencente a um campo mais abrangente, o literário propriamente dito.

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projeto artístico, segundo o qual a literatura se convertia num poderoso e, ao mesmo tempo, divertido instrumento de aprendizagem, dirigido a um público que antes de Lobato era tratado de maneira equivocada, pois as crianças eram vistas pelos escritores como adultos em miniatura. Lobato passa a enxergá-las, apontam estudiosos 161 , como crianças:

“Captando a lógica e a estrutura do pensamento infantil, Lobato falava não para elas, mas como e no lugar delas. Por isso, pelas suas mãos o aprendizado virava brincadeira séria e lições escolares mais difíceis - em geral ministradas através de métodos e mestres antiquados - ficavam claras e acessíveis.” (AZEVEDO, CAMARGOS & SACCHETTA, 1997: 312).

O novo projeto lobatiano, num certo sentido um desdobramento daquele primeiro, lhe garante, uma vez mais, prestígio e reconhecimento; o reconhecimento de que é o legítimo fundador da literatura infantil brasileira, aumentando-lhe consideravelmente o capital simbólico que vira bastante diminuído alguns anos antes.

Contudo, apenas parte do reconhecimento é recuperado. Se, de um lado, Lobato foi e é tido como o pai da literatura infantil no país, de outro, a força da história literária escrita pela pena modernista ainda se fez sentir até a morte de Lobato e mais um bom punhado de anos além - na verdade, só recentemente reavaliada -, e o escritor, junto de outros literatos, teve seu nome quase apagado das letras brasileiras, ou na melhor das hipóteses relegado a uma espécie de limbo literário chamado “pré-modernismo”. Lobato, apesar da acolhida colorosa de seu novo projeto, de sua realização coroada de êxito, ainda não renascera para a vida literária. O necrológio escrito por Mário de Andrade que abre esta investigação parecia ter decretado definitivamente o sepultamento do escritor.

161 Alguns deles são Marisa Lajolo, Nely Novaes Coelho, Regina Zilberman, J. Roberto Whitaker Penteado etc.

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Considerações finais.

(A morte anunciada)

I. O último fio da tramaPara se entender as razões que levaram ao “assassinato”

simbólico de Monteiro Lobato é necessário, mesmo brevemente, retomar as pistas até aqui investigadas. A primeira expõe os conflitos nos quais Lobato se envolveu: a Academia Brasileira de Letras e principalmente os modernistas. A rivalidade que os transformaram em antagonistas é o primeiro indício do fatal destino de Monteiro Lobato 162, fruto de uma disputa por bens simbólicos que concederia ao vencedor a prerrogativa de estabelecer certas “verdades literárias”. Lá foi traçado um certo perfil de Lobato, das atividades (intelectuais e empresariais) que lhe granjearam distinção no espaço literário da época; e importantes vestígios apontavam questões que deveriam ser melhor trabalhadas ao longo desta investigação. Compreender por que Lobato e não outro escritor qualquer se tornara o arqui-rival do grupo modernista exigia mais do que os rastos sinalizados pela pista um, e então fui conduzido à segunda pista: resgatar toda a trajetória de Lobato, esquadrinhar os caminhos que seguiu a fim de penetrar no ambiente intelectual da época, desenrolar cada fio que compunha sua teia de relações, isto é, os grupos dos quais fez parte, desde o Largo São Francisco até sua entrada n’O Estado, inclusive saber se sua herança social lhe concedia dividendos suficientes (seja material, seja social) para bancar sua participação no campo intelectual. Feito este percurso, foi possível começar a entender os motivos que conduziram à sua morte literária. Os elementos de que dispunha, no entanto, não eram ainda

162 Mais uma vez esclareço que não se trata de desmerecer ou diminuir a importância do modernismo, de proteger ou atacar este ou aquele escritor, mas compreender o processo de formação do campo literário brasileiro num determinado período histórico. Assim, os recursos utilizados pelos modernistas - bem como aqueles mobilizados por Lobato - nessa arena de luta são válidos e não podemos (e nem devemos) pintá-los como vilões que se opõem aos “mocinhos” - os componentes de um campo ou os grupos que os formam estão, sem exceção, em disputa, em conflito.

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suficientes. A análise sociológica da biografia de Lobato fornece alguns dados que permitem perceber apenas parcialmente como e por que ele chegou a uma posição de destaque no campo. A segunda pista não dava conta do seguinte problema: literatos donos de um capital social, simbólico e mesmo material muito maiores do que os de Lobato não constituíram uma grande ameaça à concretização do projeto artístico modernista. Por que justamente Monteiro Lobato parecia encarnar, do ponto de vista dos barões do modernismo, todos os males literários que deviam ser extirpados de nosso mundo intelectual? Era necessário explicar por que o autor estava no epicentro de uma batalha literária. Daí a terceira pista, a importância da reavaliação (sociológica) do projeto literário lobatiano, dividido em duas frentes absolutamente interligadas, sua literatura e seu trabalho editorial. A análise da obra (principalmente os contos, mas também sua crítica literária e de arte) ilumina um aspecto importante de seu projeto, sublinhado por Tadeu Chiarelli nos seguintes termos:

“Lobato não foi moderno como os modernistas o foram. Sua modernidade prepara a atitude dos modernistas mas, ao mesmo tempo, se opõe a ela. Querer fundir suas atitudes renovadoras nas dos modernistas é correr o risco de ver sua obra submergir frente a produção modernista quando, na verdade, ela ocupa uma região à parte no território cultural do século XX no Brasil.” (CHIARELLI, 1995: 227).

De fato, Lobato não foi um modernista. Contudo, como afirma Chiarelli, sua presença no cenário intelectual paulistano da época foi de fundamental importância para o surgimento e afirmação do modernismo em São Paulo. Se Lobato não foi um modernista, chamá-lo simplesmente de um escritor naturalista-realista (a grande escola literária anterior ao modernismo) também significava empobrecer sua obra. Lobato foi uma espécie de bandeirantes de nossas letras, abrindo caminho em direção a algo inusitado na literatura brasileira; um escritor de transição entre duas épocas literárias, e justamente por isso

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encontramos traços de ambas em seu texto. E talvez por isso, por essa combinação muito peculiar entre inovador e conservador que ele representava, Lobato incomodasse tanto aos modernistas, pois sem pertencer ao grupo apontava alguns dos caminhos posteriormente seguidos por seus membros. Os modernistas se auto-representavam como uma ruptura radical em relação ao passado literário nacional e a presença de Lobato, sua obra, denunciava que não havia ruptura alguma, mas, ao contrário, uma certa continuidade no processo histórico de formação de nossa literatura. Oswald de Andrade, uma das lideranças do modernismo, foi um dos primeiros de seu grupo a reconhecer Lobato como “precursor de uma atitude contrária ao marasmo da arte e da cultura paulistana da época.” (CHIARELLI, 1995: 226). A respeito de Lobato escreveu Oswald em 1943 163:

“Mas você, Lobato, foi o culpado de não ter a sua merecida parte do leão nas transformações tumultuosas, mas definitivas, que vieram se desdobrando desde a Semana de Arte de 22. Você foi o Gandhi do modernismo. Jejuou e produziu, quem sabe, nesse e noutros setores a mais eficaz resistência passiva de que se possa orgulhar uma vocação patriótica. No entanto, martirizaram você por ter falta de patriotismo!” (ANDRADE, Oswald apud CIÊNCIA E TRÓPICO, vol. 9, no 2, jul/dez. 1981, p. 196).

O nacionalismo literário de Lobato, durante certo tempo, respondeu satisfatoriamente à certas exigências do campo intelectual; Lobato, melhor do que os próprios modernistas, respondia à demanda por uma literatura genuinamente nacional, com uma linguagem que expressva nossa cultura ao mesmo tempo que a investigava, sempre tratando de temas cruciais do momento histórico que vivia. E tal nacionalismo literário, ou seja, o desejo de consolidar uma literatura brasileira, estava também presente na outra face de seu projeto: sua 163 O artigo foi originalmente publicado em São Paulo, num jornal do qual não há qualquer indicação. Posteriormente foi incluído no livro de Oswald de Andrade Ponta de Lança, publicado pela editora Martins em 1945.

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editora. A Monteiro Lobato & Cia., juntamente com a Revista do Brasil, foram responsáveis pela publicação do que havia de mais expressivo no meio intelectual brasileiro da época. E não é só isso. A atividade editorial de Lobato, somada à ampliação dos setores de produção intelectual, vislumbrou uma possibilidade até então impensável, a profissionalização crescente do escritor e a autonomia do campo literário, livre do mecenato, seja do Estado, seja de qualquer outro grupo ou classe social. Sua casa editorial, portanto, assim como sua literatura, respondia igualmente a uma necessidade do ambiente intelectual de então, a saber, a conquista de autonomia que permitiria a própria inovação literária, a revolução estilística e a possibilidade de se construir, por causa dessa autonomia, critérios realmente estéticos de validação da literatura.

E é justamente nesse ponto que, a meu ver, reside a maior novidade e contribuição do projeto literário lobatiano: a ampliação do público leitor. O próprio punho do escritor-editor registra tal preocupação:

“O nosso sistema não é de esperar que o leitor venha; vamos onde ele está, como o caçador. Perseguimos a caça. Fazemos o livro cair no nariz de todos os possíveis leitores dessa terra. Não nos limitamos às capitais, como os velhos editores. Afundamos por quanta biboca existe.” (LOBATO, 1951: 239, vol. II).

Aumentar o mercado consumidor conferia ao artista maior autonomia e liberdade de criação, maior espaço para a experimentação. Num primeiro momento da constituição do campo literário a formação de um público leitor é primordial para a autonomia desse campo, ampliada no momento seguinte quando os artistas se afastam desse mesmo público e passam a produzir somente para seus pares, constituindo aquilo que se convencionou chamar de arte pura, arte pela arte. Lobato ajudou abrir uma trilha ricamente explorada pelos modernistas. A conquista de fatias cada vez mais abrangentes do

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público leitor levada adiante por Lobato, por meio de seu projeto literário, num certo sentido possibilitou a exploração estética, a profunda inovação estilística praticada pelo movimento modernista. Daí a impossibilidade de se falar numa fissura profunda entre os momentos de nossa literatura. Tais momentos fazem parte do processo de estruturação de um mesmo campo, o que não quer dizer que essa história não seja pontuada por tensões e conflitos. Ao contrário, a história do campo é a história da disputa por sua hegemonia.

A aproximação entre livros e leitores, espinha dorsal do projeto literário lobatiano, resultou em ganhos materiais e simbólicos para Monteiro Lobato, acirrando as rivalidades. O sucesso de sua obra literária e a posição privilegiada que a editora fornecia no sistema de classificação simbólica emprestava a Lobato uma posição muito firme no campo literário, uma legitimidade consistente o suficiente para rivalizar com a proposta estética do modernismo - bastante distinta da postura lobatiana, ainda que ambos tenham participado ativamente da formação de um mesmo campo literário. Naquele momento, a griffe Lobato era muito mais poderosa do que a modernista e seu status literário sombreava a intenção de Mário de Andrade e aliados em conquistar a hegemonia no campo.

Mas a disputa não findou naquele momento. A quarta pista se apresenta como o último fio da trama. Um adversário da envergadura de Lobato era difícil de bater. O golpe final teria que esperar um pouco mais e ser desferido no momento adequado, pois só assim o modernismo enterraria definitivamente aquele que julgava ser seu maior adversário e reduziria as chances de seu ressurgimento. E o tiro de misericórdia veio em 1926, sob a forma do necrológio mariodeandradiano, período de maior fragilidade de Monteiro Lobato, desprovido de forças para responder à altura e, pior ainda, sem a menor condição de retornar da cova na qual foi jogado. As fraturas expostas de Lobato que acusavam sua debilidade no campo eram seu romance, O Presidente negro, e a falência de sua editora, importante suporte da sua hegemonia. A morte decretada em 26, e não antes, é mais um sinal

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que ajuda a perceber o vigor que Lobato usufruiu durante um certo período da história do campo literário nacional; a sólida reputação que construíra tornou-o uma figura difícil de se vergar e quase impossível de se bater. Porém, em 1926, a situação era outra, o vigor arrefeceu e a solidez virou pó. Lobato tornara-se, naquele instante, um alvo fácil.

Mas Lobato não tardou a voltar, mesmo que numa outra região literária, diferente da anterior, na qual concretizara seu projeto literário. Em território distinto aquele escritor dono de sobrancelhas titânicas cavou seu espaço e nele realizou um novo projeto artístico, que lhe devolveu, noutros termos, o prestígio e o reconhecimento que perdera.

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Tentar compreender a fatura da obra a partir de sua inserção num determinado contexto histórico e social, o campo literário brasileiro entre a segunda metade dos anos 10 até 1926, ajuda a iluminar a obra mas também auxilia no estudo do próprio contexto. Esta pesquisa, portanto, é um pouco mais ambiciosa, pois a investigação da obra lobatiana é o ponto de partida para decifrar um período, creio eu, particularmente rico na formação do campo literário nacional. Espero ter mostrado que naquele breve momento da história de nosso ambiente literário ocorreu a organização mais bem acabada dos intelectuais em grupos de mútuo apoio, resultando em choques constantes entre os grupos rivais. As coteries literárias, talvez mais do que em outros períodos, se faziam mais presentes e as disputas em torno de uma nova estética eram mais feqüentes e mais renhidas. Nesse sentido, vale lembrar a observação de A. L. Machado Neto:

“A estrutura social da República das Letras compõe-se, como a outra, de instituições. A interação social dos intelectuais vai formando um tecido mais consciente de relações e vão surgindo essas configurações de conduta duradouras, complexas, integradas e organizadas, mediante as quais se exerce o controle social e por meio das quais se satisfazem os

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desejos e necessidades sociais fundamentais (...)”. (MACHADO NETO, 1973: 196).

Tal contexto também se apresenta como peculiar e interessante porque nele começa a se desenhar com maior nitidez os contornos de um campo literário dotado de uma autonomia até aquele momento inédita. As instituições autenticamente literárias, a “interação social dos intelectuais”, a formação de “um tecido mais consciente de relações”, a profissionalização do escritor, a ampliação do sistema de produção simbólica, a conquista de um público próprio, tudo isso contribui para a estruturação de um campo mais autônomo, com seus princípios e regras formulados por agentes e agências sociais internas, capazes de responder a partir de critérios estéticos às exigências exteriores (políticas e econômicas, por exemplo) ao campo.

Uma autonomia que na década seguinte, contudo, pareceu ter se retraído frente ao mecenato institucionalizado e oficial patrocinado pelo Estado Varguista. Miceli aponta que desde a geração de 1870 os intelectuais contribuíam para o trabalho de dominação (MICELI, 1979: 130); entretanto:

“Durante o regime Vargas, as proporções consideráveis a que chegou a cooptação dos intelectuais facultou-lhes o acesso aos postos e carreiras burocráticos em praticamente todas as áreas do serviço público (educação, cultura, justiça, serviços de segurança, etc.). Mas no que diz respeito às relações entre os intelectuais e o Estado, o regime Vargas se diferencia sobretudo porque define e constitui o domínio da cultura como um ‘negócio oficial’, implicando um orçamento próprio, a criação de uma ‘intelligentzia’ e a intervenção em todos os setores de produção, difusão e conservação do trabalho intelectual e artístico.” (MICELI, 1979: 131).

Luciano Martins aponta também o engajamento dos intelectuais na questão política e o estabelecimento de relações (contraditórias)

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entre a intelligentsia nacional e a classe política dirigente, comprometendo, segundo ele, o grau de autonomia do espaço cultural relativamente ao Estado. Luciano Martins chega a afirmar que o espaço cultural no Brasil ainda não configura um campo no sentido formulado por Bourdieu, mas um espaço ainda em aberto, por estruturar-se (MARTINS, 1987: 79).

As possibilidades constituídas nos anos 20 no sentido de uma sólida autonomia do campo intelectual, ao que parece, foram reduzidas nas duas décadas seguintes, o que não quer dizer que o campo não dispusesse de nenhuma autonomia. O trabalho intelectual desenvolvido nos 20 - desdobramento de um processo em curso - foi suficientemente vigoroso para garantir a autonomia relativa do campo, mesmo quando este se encontrou sob forte pressão político-estatal nos decênios vindouros.

II. Notas para uma sociologia da literatura

“Mas o que tem a ver a vocação de poeta com a do sociólogo? Nós sociólogos raramente escrevemos poemas. (Alguns de nós que o fazemos tomamos uma licença, para a atividade de escrever, de nossos afazeres profissionais.) E no entanto, se não quisermos partilhar do destino dos ‘falsos poetas’ e não quisermos ser ‘falsos sociólogos’, devemos nos aproximar tanto quanto os verdadeiros poetas das possibilidades humanas ainda ocultas; e por essa razão devemos perfurar as muralhas do óbvio e do evidente, da moda ideológica do dia cuja trivialidade é tomada como prova de seu sentido. Demolir tais muralhas é vocação tanto do sociólogo quanto do poeta, e pela mesma razão: o emparedamento das possibilidades desvirtua o potencial humano

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ao mesmo tempo em que obstrui a revelação de seu blefe.” - Zygmunt Bauman

Ao longo do texto repetidas vezes afimei que este trabalho não foi escrito para defender o argumento de que Lobato foi ou não um “bom” escritor - ainda que eu tenha uma opinião a este respeito -, uma vez que se trata de uma análise sociológica e não de uma crítica literária. Não se trata de discutir a “importância literária” de Monteiro Lobato e, sim, mediante a investigação sociológica de seu projeto literário, tentar lançar luz “sobre elementos do processo social em relação aos quais só possuimos, pelo menos no que se refere ao passado, pouquíssimas informações diretas.” (ELIAS, 1994: 95), e, concomitantemente, desvelar aspectos importantes de seu projeto visíveis apenas quando inseridos no contexto social.

Para tanto, foi preciso manusear um certo instrumental sociológico. E o aparato teórico-metodológico utilizado remete a certos avanços dos estudos culturais nos anos 70 e 80, segundo Wendy Griswold 164. Tais estudos permitiram às ciências sociais olhar a literatura de outro modo, ampliando a rede de produção literária ao incorporar certos agentes e agências sociais habitualmente excluídos das análises: os editores, a mídia, o sistema de distribuição do livro - teia de relações que a autora chama de “interaction among human agents” - e o leitor (a “reception aesthetics”) 165.

O “evento literário” pressupõe a presença, no mínimo, de escritores, livros e leitores, inter-relacionados num certo “circuito de troca” (ESCARPIT, 1994: 9), deixando claro que a realização da obra não depende apenas do autor. Uma sociologia assentada nesses termos possibilita a passagem da produção individual do artista aos 164 Apesar de a autora se referir aos estudos desenvolvidos nos 70 e 80, já na década anterior alguns pesquisadores conferiam aos trabalhos de sociologia da literatura novos rumos, como Robert Escarpit, Lucien Goldmann e mesmo Pierre Bourdieu.165 Ver o artigo da autora citada: “Recent moves in the sociology of literature” In Annual Review of Sociology, 1993, 19: 455-67.

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símbolos coletivos, ampliando, inclusive, a aprópria definição de “autor”, uma vez que o “sujeito criador” não é uma figura isolada (CHAMBOREDON, 1986: 510-511) mas está em constante relação com os movimentos e escolas literárias, tendências estéticas, academias e grêmios, ou seja, inserido nalgum “grupo social”, para usar a expressão de Goldmann. Ainda de acordo com Goldmann, o grupo social que numa certa medida o autor representa constitui, em última instância, o “verdadeiro sujeito da criação” (GOLDMANN, 1976: 206-207).

Sob uma perspectiva sociológica, o estabelecimento de relações compreensivas e explicativas só é viável quando se procura englobar elementos que, num primeiro momento, parecem estranhos à obra. Ou seja, a elucidação da própria “estrutura significativa” da obra, sua “unidade estrutural” (GOLDMANN, 1976: 211), depende da sua inserção numa estrutura mais vasta, a estrutura social - a qual Bourdieu denomina “campo”.

A sociologia dos campos de Bourdieu revela que o conhecimento de uma obra está ligado ao conhecimento das propriedades associadas à posição dos produtores: qual a posição do escritor no campo e a quais grupos e atores sociais está ligado, pois é toda essa rede de relações a responsável pela realização do projeto criador do artista. O sentido social de uma obra somente pode ser entendido, aponta Louis Pinto, de modo indireto , “em função dos universos possíveis onde ela se insere.” (PINTO, 2000: 82). A sociologia da literatura de inspiração bourdiesiana não considera os textos como coisas já feitas - “opus operatum” -, mas como indícios objetivados de atos - “modus operandi” - (BOURDIEU, 1998: 279), ou seja, a obra não é um dado em si, que frutifica a partir dela mesma, mas o resultado de certas relações sociais responsáveis por sua realização ou por seu esmaecimento. A obra depende de um intrincado processo social do qual fazem parte uma esfera da produção, uma esfera da recepção e uma da distribuição, cujos agentes e instituições que as compõem se encontram em disputa permanente.

Retornando a um problema sugerido logo na introdução deste trabalho, reafirmo que a análise sociológica da literatura (e da arte em

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geral), nos termos propostos, é extremamente bem-vinda, pois a sociologia não trata diretamente da “pulsão expressiva” - ou da “pulsão expressiva” em si mesma - do artista, mas se debruça sobre os fatores sociais que influem na concretização do projeto criador e possibilitam, inclusive, a realização da própria “pulsão” do artista. A sociologia não pretende se ocupar da obra de arte isoladamente, como se esta fosse um objeto individualizado, particularizado e repleto de autonomia. Nesse sentido, a sociologia da arte e da literatura, no mínimo, serve como um alerta que nos previne contra o risco do relativismo, que encara o texto literário como algo apartado e descolado das condições sociais nas quais está mergulhado, e não deixa perder de vista os nexos mais abrangentes que extrapolam os limites da obra e a ligam ao mundo social.

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