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0 UNIVERSIDADE ESTADUAL DA PARAÍBA – UEPB DEPARTAMENTO DE LETRAS E ARTES CENTRO DE EDUCAÇÃO MESTRADO EM LITERATURA E INTERCULTURALIDADE A CRIAÇÃO POÉTICA DE PATATIVA DO ASSARÉ: UMA ANÁLISE SÓCIO-GEOGRÁFICA LITERÁRIA SILVÂNIA LÚCIA DE ARAÚJO SILVA Campina Grande-PB 2008

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DA PARAÍBA – UEPB DEPARTAMENTO DE LETRAS E ARTES

CENTRO DE EDUCAÇÃO MESTRADO EM LITERATURA E INTERCULTURALIDADE

A CRIAÇÃO POÉTICA DE PATATIVA DO ASSARÉ: UMA ANÁLISE SÓCIO-GEOGRÁFICA LITERÁRIA

SILVÂNIA LÚCIA DE ARAÚJO SILVA

Campina Grande-PB 2008

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SILVÂNIA LÚCIA DE ARAÚJO SILVA

A CRIAÇÃO POÉTICA DE PATATIVA DO ASSARÉ: UMA ANÁLISE SÓCIO-GEOGRÁFICA LITERÁRIA

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Literatura e Interculturalidade, da Universidade Estadual da Paraíba – UEPB, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Literatura, área de concentração: Literatura e Estudos Interculturais.

Orientação: Profª Drª Geralda Medeiros Nóbrega

Campina Grande-PB 2008

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F ICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL-UEPB

S586c Silva, Silvânia Lúcia de Araújo. A Criação poética de Patativa do Assaré: uma

análise sócio-geográfica literária / Silvânia Lúcia de Araújo Silva. – Campina Grande: UEPB, 2008.

144 f.: il. color.

Dissertação (Mestrado em Literatura e

Interculturalidade) – Universidade Estadual da Paraíba. “Orientação: Prof. Dra. Geralda Medeiros Nóbrega,

Departamento de Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa”

1. Literatura Popular. I. Título.

22. ed. CDD 398.2

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SILVÂNIA LÚCIA DE ARAÚJO SILVA

A CRIAÇÃO POÉTICA DE PATATIVA DO ASSARÉ: UMA ANÁLISE SÓCIO-GEOGRÁFICA LITERÁRIA

Dissertação de Mestrado apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Literatura do Programa de Pós-Graduação em Literatura de Universidade Estadual da Paraíba – UEPB.

Área de Concentração: Literatura e Estudos Interculturais Lina de Pesquisa: Cultura Popular e Práticas Simbólicas

Aprovada em 20 de fevereiro de 2008.

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________________________

Profª Drª Geralda Medeiros Nóbrega (Orientador – Mestrado em Literatura e Interculturalidade – UEPB)

______________________________________________________________________

Profª Drª Maria Claurênia Abreu de Andrade Silveira

(Examinadora Externa – PROLING – UFPB) ______________________________________________________________________

Profª.Dr. Sébastien Joachim

(Examinador Interno – Mestrado em Literatura e Interculturalidade – UEPB)

______________________________________________________________________

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A EU SOU, o Deus de Fidelidade, que tem me honrado em todos os momentos da minha

vida, colocando-me em lugares antes apenas sonhados. À memória de meu PAI,

que, em vida, sempre foi exemplo a ser seguido, DEDICO.

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Nada pode ser considerado impossível até que o fim daquilo que queremos ou esperamos não tenha chegado à sua concretização. Todavia, é impossível que a conquista do que se quer ou se espera se concretize sem a ajuda do outro. O homem sozinho torna, realmente, sonhos impossíveis, mas quando ele crê no seu Deus e tem nas pessoas que estão ao seu redor sentimentos de compreensão, suas possibilidades de conquistas se tornam reais. Até minha chegada aqui, muitos contribuíram para que o sonho se tornasse uma realidade, contudo, alguns foram especiais. Assim, faz-se necessário que os agradecimentos sejam dirigidos diretamente a eles. Como não poderia deixar de ser, agradeço com singular destaque, ao meu companheiro, que encurtou distâncias e perseverou comigo sempre. Sua presença afetiva me impediu de sentir-me só, mesmo estando longe. Acredito que esse Mestrado é um pouco seu também. À minha família, grande baluarte nos momentos mais necessários. Essa família assumiu uma relevância especial nesta fase da minha vida, por isso, só tenho agradecimentos a fazer. De forma particular, à minha mãe, braço forte, e, por extensão, à minha tia, cujas orações e apoio incansáveis de ambas foram exemplares. À minha orientadora e professora, hoje, uma amiga querida, Geralda Medeiros Nóbrega, que tornou essa pesquisa um estudo carregado de simbologias e práticas enaltecedoras da cultura popular. À minha banca de qualificação: ao Profº Dr. Sébastien Joachim, por acreditar em minha seriedade e por ser quem é: um ser humano que transforma a educação e a literatura em momentos de pura arte; e ao Profº Dr. Luciano B. Justino, por colaborar com suas críticas e sugestões precisas, colocando-me frente a novas discussões. A Profª Drª Maria Claurênia Abreu de Andrade Silveira que, com muita disponibilidade, aceitou nosso convite, e cuja participação permitiu mais um olhar de colaboração na pesquisa. A todos os professores do MLI, da Turma 2006, que conseguiram descobrir potencialidades em cada aluno com suas discussões inteligentes. Aos Coordenadores e Funcionários do Curso, agradeço, cujos nomes destaco o do Profº Dr. Antônio de Pádua e o de Roberto dos Santos. Aos colegas do Mestrado, que conseguiram se tornar amigos inesquecíveis, como Socorro, Alcinara, Patrícia, Ruth, Suênio e Elisabeth, seres humanos maravilhosos.

AGRADECIMENTOS

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“INSPIRAÇÃO NORDESTINA” Sou MATUTO DO NORDESTE Criado dentro da mata Caboclo cabra da peste Poeta cabeça chata Por ser poeta roceiro Eu sempre fui companheiro Da dor, da mágoa e do pranto Por isto, por minha vez Vou falar pra vocês O que é que eu sou e o que canto.

Com muita simplicidade Nesta linguagem singela A pura realidade AQUI TEM COISA revela, Fala sobre o sofrimento, Do grande padecimento Da pobre Classe Operária E do agregado sem nome Que vive sofrendo fome Pedindo Reforma Agrária.

A vida tem um tempêro De alegria e de rigô Derne o mais pobre trapêro Ao mais ricaço doto Na roda desta ciranda O mundo intêro disanda, Não ficou pra um sozinho, O sofrimento é comum A estrada de cada um Sempre tem FULÔ E ISPINHO.

Aqui findo esta verdade Toda cheia de razão: Fique na sua cidade Que eu fico no meu sertão. Já lhe mostrei um ispeio, Já lhe dei grande conseio Que você deve tomá. Por favo, não mêxa aqui, Que eu também não mexo aí, CANTE LÁ QUE EU CANTO CÁ.

Patativa do Assaré (2001, 2004, 2005)

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RESUMO

Os estudos realizados em “A criação poética de Patativa do Assaré: uma análise sócio-geográfica literária” postulam uma abordagem que ultrapassa o caráter biográfico da vida ou da poiesis de Antônio Gonçalves da Silva. Aqui, nossa proposta é investigar características da poesia de Patativa até então não enunciadas pelos estudiosos de sua poética, o que se configura numa pesquisa de caráter exploratório e que tem por objeto de estudo a representação de sua natureza matuta, enquanto testemunho e documento social do povo e da região nordeste. Subjacente à analise literária da obra de Patativa, enveredamos por caminhos e fronteiras que nos conduziram: 1) ao universo sócio-geográfico do homem matuto que se quer poeta hibrido, com base na representação simbólica de sua oralidade, refletindo, ainda, sobre sua atitude essencialista; 2) à construção do processo identitário do poeta sertanejo, que tem a cidadania como um projeto que rompe fronteiras tendo em vista sua ética pessoal; 3) a configuração de uma poesia incrustada numa “literatura dos mundos”, que se engaja em práticas sociais a partir de elementos como a memória e o trauma, cujas potencialidades marcam sua criação poética; 4) à problematização do teor testemunhal contido na obra patativana, entendendo e exemplificando, através dos versos selecionados, esse gênero ficcional como “literatura de testemunho”. Tais caminhos e fronteiras buscaram referências no campo dos estudos culturais e das ciências sociais a fim de subsidiar os aspectos teóricos e conceituais que perpassam todo o seu desenvolvimento. Com base nestas veredas, defendemos alguns pontos de vista: a poesia de Patativa é matuta, cuja análise sócio-geográfica reafirma tal característica; o poeta propõe em sua poética um projeto cidadão com vistas a uma ética pessoal; a obra é permeada pelo uso de uma memória oral que a caracteriza como testemunhal, “documental”. Enfim, concluímos que Patativa do Assaré consegue acrescentar estilo à realidade e capta, nesta forma estilizada do real, a essência da arte literária através de sua poiesis.

Palavras-chave: Criação Poética; Sócio-geográfica; Literária; Patativa do Assaré.

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ABSTRACT

The studies carried out in “A criação poética de Patativa do Assaré: uma análise sócio-geográfica literária, (Patativa do Assaré’s poetic creation: a literary socio-geographic analysis), postulates an approach which exceeds Antonio Gonçalves da Silva’s life and poesy bibliographic character. The aim of this study is to investigate the characteristics of Patativa’s poetry, which are not already enunciated by the researchers of his poetic, the reason that configures an exploratory character research, and it has as the object of study his mutual nature representation in terms of people and Northeast Region’s evidence and social document. Subjacent to Patativa’s work literary analysis, it was observed: 1) peasant man socio-geographic universe that requires the hybrid poet based on his orality symbolic representation which reflects about his essentialist attitude; 2) the “sertanejo” poet’s identity process construction, which has his citizenship as the project that goes ahead in terms of his personal ethic; 3) the configuration of an incrusted poetry in a “literature of the worlds”, that engages in social practices from elements as the memory and the trauma, which its potentialities mark its poetic creation; 4) the testimonial content problematization contained in Patativa’s work, that understands and exemplifies, through the selected verses, the fictional genre as the “literature of testimonial”. The observations brought references in the culture study field and in social sciences proposing to subsidize the theorical and conceptual aspects that pass along their development. Based on the observations above mentioned, they were defended some points of view: Patativa’s poetry, in accordance with his socio-geographic characteristic, is mutual; so the poet proposes through his poetic a personal-ethic-citizen- project; the work is permeated by the use of the oral memory that characterizes it as a “documental” testimonial. At last, it has been concluded that Patativa do Assaré’s, through his poesy, can add style to orality, and develops, in this real stylized way, the artistic-literary tonus. Keywords: Poetic creation; Ethic-citizen project; Oral memory; Literature of testimonial.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 .................................................................................................................... Figura 2 ..................................................................................................................... Figura 3 .....................................................................................................................

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 1 PATATIVA DO ASSARÉ: PONTOS REFLEXIVOS DA VIDA E OBRA DO FILÓSOFO TROVADORESCO .................................................................... 1.1 A poética sócio-geográfica de Patativa ............................................................... 1.2. A poesia matuta: caminhos e fronteiras ............................................................. 1.2.1 A oralidade na poesia patativana ..................................................................... 1.2.2 Oralidade e cordel: marcas da literatura popular ............................................. 1.2.3 Em torno da poesia matuta ............................................................................... 1.3. O filósofo trovadoresco e sua criação poética ................................................... 2 IDENTIDADE, CIDADANIA E ÉTICA: CONQUISTAS DE UM POETA SOCIAL .................................................................................................................. 2.1 Breve análise do conceito de cidadania à luz dos versos patativanos ................ 2.1.1 Entre o culto e o inculto, uma cidadania intercultural ..................................... 2.1.2 Cidadania em Patativa: um projeto que rompe fronteiras ................................ 2.2 Do projeto de cidadania à construção identitária do poeta matuto ..................... 2.2.1 Um poeta em busca de sua identidade cultural ................................................ 2.3 O canto do poeta matuto entre confluências éticas e estéticas ........................... 2.3.1 O local da ética nas relações interculturais ...................................................... 3 UMA LITERATURA DOS MUNDOS: HIBRIDAÇÃO, MEMÓRIA E TRAUMA NA FONTE PATATIVANA ............................................................... 3.1 Por que uma literatura dos mundos? ................................................................... 3.2 Por uma literatura de caráter híbrido .................................................................. 3.3 A memória patativana como recurso representativo do social .......................... 3.4 Trauma e memória: a seca e a pobreza no sertão nordestino como temas de criação poética .......................................................................................................... 3.4.1 O sertão imaginado por Patativa: significação, percepção e criação ............... 3.4.2 Sertão: um lugar de traumas? ........................................................................... 3.4.3 Aspectos da memória de um poeta prodigioso nas palavras ............................

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4 O TESTEMUNHO: A REALIDADE ESTILIZADA PELA LITERATURA FICCIONAL DE PATATIVA DO ASSARÉ ....................................................... 4.1 Literatura e testemunho: faces de uma poética social ......................................... 4.1.1 O testemunho de um poeta cearense ................................................................ 4.1.2 Do oral à escritura, uma poesia documental .................................................... 4.2 Fragmentos da vida no sertão: do canto à poesia, da cena ao testemunho ......... 4.2.1 Fragmentos da vida no sertão ou cenas da vida real? ...................................... 4.2.2 Do canto à poesia ............................................................................................. 4.2.3 Da cena ao testemunho ................................................................................... CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. REFERÊNCIAS ...................................................................................................... GLOSSÁRIO ...........................................................................................................

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INTRODUÇÃO

ocalizado na região do cariri cearense, o município do Assaré, no Ceará,

apresenta para o mundo Antônio Gonçalves da Silva, o poeta-versejador da

literatura do Nordeste brasileiro, cuja vida e obra se fundiram para produzir o Patativa do

Assaré que hoje conhecemos.

O cantor tornou-se poeta na mesma medida em que o poeta tornou-se cantor. Canto e

poesia1, interfaces da obra literária de Patativa, expandiram-se e se mesclaram num constante

fluir, como pode ser detectado ao longo deste estudo.

O enfoque da pesquisa não se dá simplesmente pelo caráter biográfico ou mítico do

poeta matuto, uma vez que muitos já associaram seu nome a relatos biográficos e a meios

midiáticos para difundir sua obra. Procura-se, sobretudo, entender o canto poético de Antônio,

sob a perspectiva do entendimento intercultural do “ser caipira/matuto”2, que se utilizando do

codinome Patativa, transformou o vôo da pequena ave em literatura matuta e o canto do

pássaro, de coloração acinzentada, em poesia matuta. A ave do mato se transforma em poeta

do mundo. É a poesia matuta deixando as regiões interioranas brasileiras para ser

(re)conhecida além de suas fronteiras, de seus espaços locais e regionais.

No estudo desenvolvido por Cláudio Portella para a apresentação do livro Melhores

Poemas: Patativa do Assaré, o autor retoma as palavras do professor Gilmar de Carvalho, um

dos maiores estudiosos da obra patativana:

Patativa não é pássaro por acaso. Talvez nunca tenha havido uma simbiose tão forte entre pessoa e epíteto: é como se, magicamente, ele abdicasse da sua condição humana para gorjear poesia. Canto que traz, de modo contundente, a complexidade das questões filosóficas da dor, da finitude, do amor e da cidadania (ASSARÉ, 2006, p. 12).

Com o povo nordestino – sempre bastante estereotipado e controvertido devido seu

modo de ser e viver – jaz hoje toda uma “tradição esquecida3”, o que o impede, de forma

1 Canto e poesia, neste sentido, são sinônimos. O próprio Patativa afirma essa fusão quando compõe os versos: Poeta, cantô da rua/Que na cidade nasceu/Cante a cidade que é sua/Que eu canto o sertão que é meu. (poesia do compêndio “Cante lá que eu canto cá”). 2 Esses vocábulos terão suas diferenças semânticas explicadas posteriormente referenciadas a partir do estudo de Nelly Carvalho, em Matuto/Caipira, Ed. UFPE, Recife: 2002. ISBN: 8573152850. 3 A tradição esquecida de que falamos se refere a toda culturalidade que envolve o povo do Nordeste e que grande parte da população brasileira parece esquecer: espaço geográfico, lugar onde nasceu o Brasil para o

LLLL

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definitiva, de se firmar social e culturalmente, enquanto povo massificador e constitutivo de

lutas e alegrias. O homem do interior nordestino é o matuto, é o caipira que, corajoso e

destemido, faz do Nordeste brasileiro não uma terra esquecida, mas uma terra merecedora de

respeito e reconhecimento. Pois, o homem do Nordeste se traduz muito além de estereótipos

enunciados por muitos. O próprio Patativa, ao longo de sua obra, procura apresentar um

homem que parece não se importar com o sofrimento, seja natural ou social, porque passa no

sertão, que padece simplesmente porque o destino quer assim.

Enquanto agricultor, o poeta elabora uma poesia em processo de luta, suor, fome,

sofrimento e fadiga; é uma poesia que nasce, por si só, cabapiranga4, cabocla por natureza.

Uma poesia forte e destemida. Observemos estas palavras do poeta:

Eu sou de uma terra que o povo padece Mas nunca esmorece, procura vencê, Da terra adorada, que a bela caboca De riso na boca zomba no sofrê. Não nego meu sangue, não nego meu nome, Olho para fome e pergunto: o que há? Eu sou brasilêro, fio do Nordeste, Sou cabra da peste, sou do Ceará.

(ASSARÉ, 2006, Sou cabra da peste, p. 159)

Bastante discutida no meio artístico-cultural, mas pouco difundida em escolas e

academias, a obra patativana quase sempre é interpretada à luz de tendências que a conduzem,

preponderantemente, a falar sobre o homem Patativa, o mito Patativa, mas não revela de

forma específica seu caráter matuto, uma poesia que nasce matuta, que sai dos recônditos

interioranos do sertão nordestino para alcançar espaços longínquos de reconhecimento e

socialização.

Hoje, pode-se considerar que a voz de Patativa é uma voz que estremece e emudece, na

mesma medida, todos aqueles que a ouvem e almejam um mundo efetivamente mais humano,

uma voz que sombreia sua cosmovisão. A postura do homem-poeta que faz da alteridade uma

responsabilidade social, reverbera sons de ética e cidadania por toda sua obra.

Desta feita, quando iniciamos esta pesquisa, tendo por principal enfoque a poesia matuta

de Patativa do Assaré, ainda, no período de seleção para o Mestrado, durante a entrevista,

fomos questionados pela banca examinadora da linha de pesquisa acerca da vertente que esta

mundo; cultura, cujas variações lingüísticas e artes em geral são destaques nacionais, entre outros elementos que a compõe. 4 Ferreira nos indica que “cabapiranga” é o mesmo que caboclo, nome dado ao homem das regiões interioranas.

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pesquisa conduziria a obra do autor, uma vez que sua obra já possui toda uma carga de análise

desenvolvida por diversos estudiosos, inclusive fora do Brasil, os quais não apenas estudaram

e analisaram com performances notáveis a obra do poeta, mas muitos foram seus

contemporâneos e tiveram a oportunidade de, em algum momento de seus trabalhos, fazer

parte presencialmente da vida de Patativa.

Contudo, a partir daquele momento, a inquietação foi grande e se tornou o fio condutor

para um estudo que seria muito mais do que um documento dissertativo para obtenção de nota

do curso desenvolvido. Este, seria, sobretudo, um desafio a ser vencido em nome de uma

geração que busca, na cultura de seu povo e na literatura, a diagnose constitutiva de sua

identidade.

Foi ao longo dos primeiros seis meses do Mestrado que surgiram vários temas a serem

estudados em Patativa. Contudo, era preocupação nossa não cair na armadilha de repetir o que

muitos já tinham realizado com sua obra, apesar da influência das várias leituras realizadas de

autores como Gilmar de Carvalho, Luiz Tadeu Feitosa, Cláudio H. Sales Andrade, Cláudio

Portella, Sylvie Debs, entre outros, que nutriam não apenas uma admiração profunda por

Patativa, mas estudaram, conforme a dialética individual de cada pesquisador, sua poética

sertaneja e o conheceram de perto. Ainda nesse meio tempo, conseguimos nos comunicar com

Márcio Seligmann-Silva5, através de e-mails, entre uma e outra de suas viagens para o

exterior. Desta comunicação, uma das nossas inquietações foi respondida: a obra de Patativa

do Assaré poderia ser reconhecida como literatura de testemunho, uma vez que continha,

conforme suas palavras, “um alto teor testemunhal”. Essa resposta foi motivadora e nos

colocou frente a caminhos que divergiam do projeto inicial.

Deparemo-nos, por assim dizer, com outras questões... Inquietações que nos

conduziriam a outras problematizações: Por que os versos patativanos são considerados

poesia matuta? O que identifica e/ou justifica essa modalidade poética em Patativa? Que

influência teria a região para situar sua obra numa análise sócio-geográfica literária? Como

um poeta já lido e discutido nacional e internacionalmente construiu sua identidade cultural,

tendo por referência um projeto ético-cidadão pessoal? De que maneira compreender sua

poesia com base na literatura de testemunho?

Os problemas foram se descortinando e os caminhos foram se estendendo à proporção

que as nossas inquietações surgiam. A pesquisa continha, sem sombra de dúvida, dois

5 Seligmann-Silva é professor de Teoria Literária na Universidade Estadual de Campinas e pesquisador do CNPq. É Mestre em Literatura Alemã pela USP e Doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade Livre de Berlim. Tem pós-doutorado pela Universidade de Yale, nos Estados Unidos.

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agravantes contrários àqueles vivenciados pelos pesquisadores da obra de Patativa, já citados

anteriormente:

1) a contemporaneidade do nosso tempo, que nos tornava “distante” do Patativa homem

e se colocava para nós como mito da literatura popular, como um poeta midiático de voz de

longo alcance e versos burilados pela paisagem do Nordeste brasileiro, uma voz que ecoa

Brasil afora em favor do povo nordestino;

2) a localização geográfica em que nasceu a obra de Patativa, que apesar de ser eco em

todos os estados do Brasil, tem seu rizoma primeiro desenvolvido no Ceará, terra natal do

poeta. Tal fato pressupunha, neste sentido, uma visão “distanciada” do viver do poeta que se

fez agricultor, cantor, repentista, cordelista, um homem “local” que se fez “global”, ou seja,

um homem do mundo para o mundo.

Estes foram agravantes que se tornaram, como pudemos perceber mais tarde, o que

faltava para distanciar-nos um pouco da visão simbiótica dos demais pesquisadores de sua

obra e aproximar-nos de forma diferenciada de seus estudos: fazemos parte de uma geração

que precisa entender o relevo de sua cultura, a partir do viver do seu próprio povo, que faz

cultura em todo tempo e lugar. E a literatura estava nos concedendo essa oportunidade na

medida em que passou a encurtar o tempo e o espaço de contemporaneidades diferentes e de

localizações geográficas distintas, embora afins. As fronteiras foram derrubadas e se tornaram

sem limites entre pesquisador e objeto da pesquisa.

Isto posto, o objeto de nossa pesquisa se configura na representação da natureza matuta

da obra de Patativa do Assaré, enquanto testemunho e documento social do povo e da região

nordeste. Pois, no geral, sua obra só tem sido analisada com base na cosmovisão do próprio

poeta, como uma sombra de seus pensares e falares, uma vez que não discutem com

argumentos contrários aos do poeta, apenas confirmam o essencialismo subjacente à sua

poesia. Nossa pesquisa, diferentemente, busca argumentar sobre outras vertentes da poética de

Patativa a fim de lhe proporcionar novas feições, factíveis de discussão.

Sendo, portanto, um estudo de caráter exploratório6, cuja teoria se encontra

fundamentada em uma revisão bibliográfica centrada no campo dos estudos culturais e das

ciências sociais, nosso estudo aborda os principais conceitos discutidos no trabalho, referentes

à criação literária de Patativa do Assaré. Com base nesta metodologia de pesquisa, seus

objetivos estão assim pautados:

6 Segundo Yin (1984) esse tipo de pesquisa pressupõe um estudo de caso, cuja característica, múltipla, se dá devido às várias facetas da obra patativana que aqui estão sendo investigadas e explicadas.

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a) caracterizar o universo sócio-geográfico do homem matuto que se quer poeta

híbrido, com base na representação simbólica da oralidade presente na fonte

patativana, assumindo paralelamente sua atitude essencialista;

b) construir o processo identitário do poeta sertanejo, que tem a cidadania como um

projeto que rompe fronteiras tendo em vista sua ética pessoal;

c) identificar a poesia de Patativa incrustada numa “literatura dos mundos”, que se

engaja em práticas sociais a partir de elementos como a memória e o trauma, cujas

potencialidades marcam sua criação poética;

d) problematizar o teor testemunhal contido na obra patativana, entendendo e

exemplificando, através dos versos selecionados, esse gênero ficcional como

“literatura de testemunho”.

Subsidiados por estas especificidades, dividimos o estudo em capítulos que se

complementam e trazem, por si só, elos temáticos que emblemam a natureza deste estudo.

Temas como a natureza matuta da poética patativana, a literatura de testemunho, a ética e a

cidadania, foram conquistando espaços e dando forma a uma pesquisa literária de caráter

sócio-geográfica, que encontrou nas Ciências Sociais vários caminhos para referenciar e

servir de base ao que seria um estudo analítico da obra, muito mais do que da vida do poeta

matuto. Lembramos que as análises de tais temas foram construídas ao longo do trabalho.

Este foi um percurso metodológico escolhido no intuito de dar vida à pesquisa num fluxo

constante entre teoria crítica e análise literária.

Esse tipo de metodologia permite que a análise discorra e aprofunde-se ao longo do

estudo sócio-geográfico literário ora desenvolvido, à medida que vão sendo descortinados os

aspectos teóricos e conceituais que permeiam seu processo constitutivo.

O primeiro capítulo, intitulado “Patativa do Assaré: pontos reflexivos da vida e obra do

filósofo trovadoresco”, vai ressaltar traços da biografia do poeta com base nos autores que

estudaram – anteriormente já citados – seus dados biográficos, bem como trazer uma

discussão sobre a formação (origem) da poesia matuta, cujo estudo recebeu um reforço

teórico que nos ajudaria a compreender a figura do homem da região interiorana: Os

parceiros do rio Bonito, de Antonio Candido. Tal leitura mais do que necessária, foi

importante para elucidar uma altercação que vem sendo pouco conhecida pelas novas

gerações: a tradição identitária cultural de um povo que também tem no homem interiorano a

sua raiz fecunda. Este capítulo também traz discussões sobre a obra de Patativa, enquanto

poesia matuta, cujos caminhos e fronteiras nos conduzem ao diálogo com a oralidade e o

cordel (ambos, marcas da literatura popular). É um capítulo que sintetiza a trajetória literária

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exageradamente essencialista e bastante híbrida de Patativa, ao mesmo tempo em que nos

permite conhecer a relação entre oralidade, cordel e poesia matuta.

O segundo capítulo deste estudo nos coloca face a face com os versos de Patativa em

busca de sua identidade e cidadania, enquanto conquistas de um poeta social com vistas a sua

ética pessoal. A partir desse enfoque, foi possível esquadrinhar na poesia matuta a garantia de

uma análise constitutiva do caráter social da fonte patativana. Assim, com base nas

possibilidades advindas do canto patativano e de seu alcance, tentamos “refletir” sobre o

significado de identidade e cidadania, a partir dos conceitos de diversidade cultural, diferença

cultural e compreensão do outro, fundamentados em teóricos como Homi Bhabha (1998),

Marilena Chauí (2006), Dilthey (2000), Baumann (2005), Marshal (1949) e Hall (2000,

2002). Para mediar essa vertente de nossa pesquisa, também tratamos da oposição

igualdade/diferença, binaridade que gera uma oposição dicotômica, e que precisa ser superada

nos espaços sociais, em geral, pois, como afirma Joan Scott, é necessário que se

“desconstrua” a oposição igualdade/diferença como única via possível, chamando atenção

para o constante trabalho da “diferença dentro da diferença”, uma vez que a mesmidade

construída, ao longo da história, em cada lado da oposição binária, oculta o múltiplo jogo das

diferenças e mantém sua irrelevância e invisibilidade (SCOTT, 1988, p.45). Neste capítulo

ainda encontramos ecos de fragmentos de sua vida e obra, uma vez que não é possível

desprender os conceitos de cidadania, identidade e ética pessoal sem alvejá-las (vida e obra).

Consideramos, portanto, este um capítulo-extensão do primeiro, embora, não tenhamos

considerado a possibilidade de uni-los, pois era importante para a nossa pesquisa que os

termos usados como referencial neste estudo tivessem o destaque merecido, dada a sua

potencialidade de significação no momento atual.

A terceira discussão foca o tipo de literatura anunciada por Patativa, uma literatura,

usando as palavras de Glissant (2005), dos mundos, que se hibridiza entre dicotomias que a

caracterizam: popular/erudito, oral/escrito, tradicional/moderno. Aqui, buscou-se explicar o

que seria esta literatura dos mundos e a hibridação presente na obra. Destas reflexões,

partimos para outros elementos que a coloca de forma suscetível às críticas: a memória e o

trauma. O primeiro elemento, a memória, foi discutido enquanto recurso representativo do

social, onde a memória coletiva se funde à individual para estabelecer conexões sociais,

independente de suas características distintas. Já o segundo elemento, o trauma, tem na

memória patativana, genuína participação, pois é de sua memória que são produzidos os

quadros imagéticos de horror, estabelecidos pela seca e a pobreza nordestina e vividos pelo

povo sertanejo. Neste tópico, também abordamos o sertão imaginado por Patativa – sua

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percepção, criação e significação – e fizemos o questionamento: ”Sertão – um lugar de

traumas?”. Finalizando o capítulo, temos os aspectos da memória de um Patativa prodigioso

nas palavras, que utilizava a escritura em função de sua oralidade. É uma discussão que

propõe aberturas para o capítulo seguinte.

A quarta e última reflexão capitula o título “O testemunho: a realidade estilizada pela

literatura ficcional de Patativa do Assaré”, cuja proposta nos remonta àquele debate que

consideramos nossa inquietação principal na busca de refletir sobre o caráter testemunhal da

fonte patativana, enfatizando a memória, o trauma, o oral, a escritura, construtos reveladores

do real estilizado pela arte literária, cujo referencial teórico se pautou nos estudos de

Seligmann-Silva (2003, 2005, 2006), Bosi (2002) e Penna (2003). Nossa abordagem, neste

capítulo, conduz-nos, portanto, ao testemunho, enquanto gênero ficcional, que identifica a

realidade de uma comunidade sob o olhar da “testemunha” em função do coletivo, assim

como procurou fazer Patativa ao preservar sentimentos de solidariedade, cidadania, alteridade

e justiça, uma voz em função dos menos favorecidos, a “voz testemunhal”. Procuramos,

ainda, enfatizar o testemunho do poeta cearense, o caráter documental de sua obra,

ressaltando, como exemplos dessa particularidade da poética, fragmentos da vida no sertão

(ou cenas da vida real?) narrados em seus versos. São narrativas que nos permitem entender

que o diálogo da obra de Patativa com o testemunho, torna sua poesia “literatura de

testemunho”, uma vez que utiliza a ficção para estilizar o real, não como historiografia ou

autobiografia, mas apenas testemunho.

Diante desse percurso desenvolvido, buscamos chegar ao final do estudo com as

respostas dos objetivos propostos, intuindo novas discussões que sugerem desconstruções e

novas possibilidades de interpretação de uma obra já bastante comentada e analisada, como

sombras do discurso ideológico patativano, mas nunca contrariado, argumentado.

A título de ilustração e uma compreensão simbólico-representativa da obra analisada,

destacamos também um glossário contendo um grupo de palavras-temas que consideramos

recorrentes em Patativa, ao longo de sua obra. Este glossário objetiva, pois, proporcionar ao

leitor da pesquisa uma interação maior com os versos intuídos pelo poeta e sua “visão de

mundo”.

Lembramos que, de modo algum, há qualquer tipo de pretensão em negar a filosofia de

vida do trovador nordestino, cuja obra alcançou proporções que vão além dos espaços

regionais do local-espaço – o sertão – como assim interpreta Patativa. Pelo contrário, o que se

quer nesta pesquisa é a proposição de novas discussões, novas leituras, novos olhares, novas

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interpretações, novos caminhos, que nos conduzam ao encontro com nossa cultura, através da

literatura.

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CAPÍTULO 1

PATATIVA DO ASSARÉ: pontos reflexivos da vida e obra do filósofo trovadoresco

ntônio Gonçalves da Silva é o nome de batismo de Patativa do Assaré. Poeta

contemporâneo da literatura regionalista, nascido a 05 de março de 1909, na

Serra de Santana, município de Assaré/CE, e sujeito de nossa pesquisa. A casa em que nasceu,

construída há cerca de 111 (cento e onze) anos, é uma das construções que, por ocasião de seu

nascimento, constituía a aldeia dos Gonçalves, na Serra.

FIGURA 1 Foto: Ilson Neves, 20077.

Autor de uma obra oral, Patativa procurou fazer de sua poesia, testemunha social do

povo de sua terra, como reflexo do mundo utopista e imaginário do caboclo. Para os

estudiosos de sua obra, a figura de Patativa tem postulado dicotomias que o caracterizaram

como mito: tradicional/moderno, popular/culto.

Margeando uma contundente análise dos termos dicotômicos acima, recorremos à

formulação teórica do hibridismo cultural de Canclini (2006), que trata o tradicional e o

moderno como termos que se misturam em “cruzamentos socioculturais”. Diferentemente do

que pensavam os teóricos da Escola de Frankfurt, a massificação da informação e das

7 Esta é a foto da casa em que nasceu Patativa na Serra de Santana, município do Assaré/CE, construída a aproximadamente 111 anos.

AAAA

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comunicações não se alardeou como divisor de águas, como o apocalipse da sociedade. Para

Canclini, o fato de os meios de comunicação de massa atuais difundirem maciçamente os

produtos das classes eruditas e populares é reflexo de um processo de “reestruturação

simbólica” dos saberes e culturas anteriormente antípodes, o que vem colocar os saberes, as

etnias, as nações e as classes sociais em eterno diálogo, em constante convívio com as

diferenças. A forma ativa com que recebemos as informações não nos permite perder, mas

trocar e dialogar, as convicções de base de nossa cultura.

A literatura popular, apesar de sua relativa impropriedade, é a de mais extenso

significado nos estudos literários. Nesta concepção, a locução adjetiva – popular – apresenta

dois sentidos:

a) o de produção literária de eruditos destinada ao povo ou que, sem essa

intenção, o povo adota – Gramsci (1997) até a designa de literatura popular artística –, ou

seja, é aquela literatura produzida por eruditos, mas reservada ao povo, como, por exemplo, a

literatura popular desenvolvida por Jessier Quirino, poeta paraibano;

b) e o de obras literárias de invenção popular destinada diretamente ao povo,

literatura popular é, pois, a que corre entre o povo, a que ele cria, e a que se encontra alheia de

quem gosta e/ou adota.

Assim, quando nos deparamos com o grau de riqueza cultural de nossa literatura

popular, verificamos quão grande é sua relevância para os tempos globalizantes que vivemos.

Pois, rica em seu macrocosmo variado de autores, temas e obras, a literatura popular se revela

também riquíssima no microcosmo de cada um de seus autores, sendo hoje amplamente

reconhecida e divulgada na pessoa de Patativa do Assaré.

Personagem chave do panteão nordestino; homem do sertão, agricultor pobre que

passou por poucos meses de contato com o aprendizado escolar, como assim destaca suas

biografias, e que é considerado aqui, sob o signo de poeta e artesão da linguagem, autor de

uma obra consistente e reconhecida. Uma obra emblemática da Literatura Popular do

Nordeste e, por extensão, nacional.

Sua poética, marcada pela oralidade, constitui-se como voz que posteriormente fez-se

letra; o poeta foi, originalmente, um artesão da palavra falada, narrador performático de

improvisos versificados numa linguagem matuta.

Patativa, segundo Feitosa (2003), tem como potencial criativo a mistura das linguagens

culta e popular. O poeta tem consciência de que essas classificações postuladas ordenam as

linguagens em condições e lugares separados, mas ao optar por uma das modalidades da

língua, ele o faz sem o peso ordenador aferido pela modernidade. Com efeito, entre um poema

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culto e um poema “matuto” estão mais presentes as diferenças clássicas, como a noção de

diálogo, de troca, de linguagens que se complementam, ou o cruzamento sociocultural,

apregoado por Canclini (2006).

De várias formas e sob vários matizes, através da obra de Patativa, é possível identificar

aquilo que Plácido Cidade Nuvens, na apresentação do livro, determinou como uma

“cosmovisão ou ideologia cabocla, desapontada com a modernização, sedenta de justiça,

marcada pela saudade, impregnada de misticismo, serviçal, disponível, leal” (ASSARÉ, 2004,

p. 13), onde o “filósofo trovadoresco8” aprende e ensina a filosofar sem conceituar Filosofia,

apenas cantando versos, cantando a vida, a vida simples do homem sertanejo. O termo

Filosofia adentra nossa pesquisa tendo por base o conceito de Martin Heidegger (1995), o

qual afirma que filosofar seria “uma das raras possibilidades de existência criadora. Seu dever

inicial é tornar as coisas mais refletidas, mais profundas”. E assim o fez nosso poeta, ele usou

sua habilidade criadora em função daquilo que sempre considerou como possibilidade de

integração do homem sertanejo no meio social, embora com grande tendência ao

essencialismo.

Eu sou um poeta que tenho criatividade e fui um agricultor a vida toda, vivendo da roça, fazendo a minha poesia lá, sem precisar escrever, fazendo verso retido na memória pra depois passar para o papel... eu sempre falo com rima. Eu sou poeta, mas tem muitos versejadores. Tudo meu, eu faço é criar, eu crio aquele quadro, aí vou reproduzir em versos, viu? Porque o poeta... a vantagem não é a sua beleza, a sua medida, as suas rimas, as suas sílabas predominante não. É a verdade, é contar uma coisa toda filosófica, pois é, justamente, minha poesia é dentro desse tema, dentro desse quadro (ASSARÉ, 2001, p.16).

Os dados biográficos que são aqui evocados transitam entre os estudos realizados pelo

professor e pesquisador Gilmar de Carvalho (2000), pelo estudioso Tadeu Feitosa da Silva

(2003) e pelo sociólogo e professor Cláudio Henrique S. Andrade (2003). Estes biógrafos e

estudiosos de Patativa do Assaré elencam em seus trabalhos fases marcantes da vida do poeta,

e ora esses dados se confundem, ora se completam, ora se chocam. Contudo, sempre

mistificando a figura de Patativa como poeta do povo, o poeta que teve, ao longo de seu

processo criativo, sua obra encarada como “de cordel”, “popular”, “inculta”, “cabocla”,

“rústica”, “sertaneja”, “iletrada”, “marginal”. Aqui, todavia, seguirá mais uma tendência, a

“matuta”, como forma de (re)intepretar a poesia de Patativa.

8 A expressão que usamos, “filósofo trovadoresco”, tem sua origem no título do livro de Patativa do Assaré Cante lá que eu canto cá: filosofia de um trovador nordestino.

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O texto subseqüente traz uma descrição daquilo que consideramos importante para

ilustrar a vida do poeta, uma vez que sua “vida vivida” se confunde com sua vida de artista,

em graus variáveis de simultaneidade. Carvalho (2000) destaca em sua análise biográfica que

o fazer poético de Patativa nasce e é “amadurecido ao longo de uma vida inteira”.

1.1 A poética sócio-geográfica de Patativa

Segundo filho de um agricultor muito pobre, Patativa, depois da morte de seu pai,

trabalhou bastante na pequena terra herdada, ao lado de seu irmão mais velho, a fim de

garantir o sustento dos demais irmãos. Aos 12 anos, freqüentou uma escola muito atrasada,

onde saiu lendo o livro de Felisberto de Carvalho9, quatro meses depois, e daí não mais

freqüentou a escola. Todavia, sempre que o tempo da lida na agricultura permitia, Patativa

não deixava as letras se distanciar de sua vida. Por isso, entre os 13 e 14 nos, passou a compor

versinhos que faziam a graça dos serranos de sua comunidade. Aos 16 anos, comprou sua

primeira viola e passou a cantar motes de improviso; quatro anos depois, aos 20 anos, o poeta

do sertão recebe a visita de um parente que morava no Estado do Pará, José Alexandre

Montoril, que encantado com sua performance de violeiro, propõe levá-lo para o Pará

custeando todas as suas despesas.

Já no Estado do Norte, seu primo o apresenta a José Carvalho de Brito10, jornalista do

Crato/CE, que na época morava em Belém e, ao ouvir a cantoria do jovem Antônio, deu-lhe o

epíteto de Patativa, ao compará-lo com o pequeno pássaro que tem por característica basilar o

hábito de se refugiar na mata e imitar o canto de outros pássaros. Cinco meses depois, o poeta

cantador volta a Assaré, onde se apresenta em noite festiva e conhece Juvenal Galeno, o

“Poeta das Lendas e Canções Populares”. Em 1936, casa-se com D. Belarmina Paes Cidrão,

com quem teve 14 (quatorze) filhos, dos quais 07 (sete) morreram. Foi a partir de 1940 que

Patativa iniciou sua trajetória de violeiro, cantando em festas do Cariri com cantores

regionais. Somente em 1955, sob a influência de José Arraes de Alencar11, Patativa tem seus

poemas transcritos.

9 Felisberto Rodrigues Pereira de Carvalho (1850-1898) foi jornalista, músico, professor e autor de livros didáticos que deixaram marcas na memória nacional. 10 Autor do livro O Matuto Cearense e o Caboclo do Pará, publicado em 1930 e republicado pelas Edições UFC em 1973, o qual tem um capítulo referente à Patativa do Assaré e o motivo de sua viagem, em 1928, ao Pará. 11 De acordo com Gilmar de Carvalho (2002), José Arraes de Alencar era um intelectual cratense radicado no Rio de Janeiro, que em uma de suas visitas anuais para rever a família ouviu os poemas de Patativa pela rádio local e se encantou, procurou-o e se ofereceu para publicar seus poemas.

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Daí em diante, são poemas publicados em livros, poemas discografados, poemas

musicados e gravados por cantores populares, documentários e filmes produzidos, biografias

lançadas, apresentações em programas televisivos, participações relâmpago em novela. É

tema (vida e obra) de seminários, de monografias, de dissertações de mestrado e teses de

doutorado. E, em 1999, no Assaré, é construído em sua homenagem o Memorial Patativa do

Assaré, local para visitação pública e apreciação de sua obra.

Como laboratório de sua poética, Patativa tem no sertão e na vida no campo (roça,

mato) – concentrado na região Nordeste –, todo o processo constitutivo de sua formação

“matuta”, que se projeta no caráter sócio-geográfico de sua poética, cuja formação será

discutida no próximo tópico com base na análise de sua realidade social e no espaço

geográfico de que faz parte, e que são construtos de sua criação literária.

1.2 A poesia matuta: caminhos e fronteiras

Antes de iniciarmos uma discussão sobre poesia, busquemos entender o que significa o

vocábulo que caracteriza a poesia aqui estudada: “matuta”. Para a nossa língua, matuto é

quase sinônimo de caipira, pois ambos os vocábulos se referem a uma mesma realidade: o

morador do interior visto e nomeado pelo prisma do habitante da Capital, diga-se de

passagem, com uma boa dose de preconceito. O segundo termo, caipira, é mais usado nas

regiões Sul/Sudeste. Seu oposto é o caiçara, o morador nativo do litoral. A origem de ambos é

do tupi: "caipira, caipora e curupira", e diz o dicionário etimológico, serem variantes do

mesmo termo. "Caiçara", que antes queria dizer "cerca velha ou barco velho", hoje tem

significados outros, entre os quais o pejorativo "praiano humilde e pobre". Por outro lado, o

termo matuto é mais usado na região do Nordeste brasileiro. Os vocábulos supracitados –

matuto e caipira – são, portanto, utilizados no mesmo contexto, só que em diferentes regiões

do país (CARVALHO, 2002).

Entendendo que na busca de certas explicações etnogeográficas sobre o homem

caipira/matuto somos levados, de forma recorrente, à História, lembramos que o Brasil

“nasceu” para o mundo no Nordeste, e isto nos conduz, por sua vez, ao entendimento de que

ele nasce também com uma carga de responsabilidade que se estende do seu falar ao seu

viver.

O termo caipira em língua tupi significa “cortador de mato”, nome que os índios do

interior de São Paulo deram aos homens brancos e caboclos. Genericamente, é uma

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designação dada aos habitantes do interior de São Paulo – região não metropolitana, afastada

do litoral paulista (JACKSON, 2002).

Longe de ambigüidades, o homem caipira/matuto faz parte da história primeira do

Brasil, o que significa dizer que o processo constitutivo do tipo brasileiro também se fez a

partir da construção identitária do homem rural que, segundo Jackson (2002 p. 52), tem sua

cultura “resultado do ajustamento do colonizador português ao Novo Mundo, seja por

transferência e modificação dos traços da cultura original, seja em virtude do contato com o

aborígene”. Hoje, toda a tradição conquistada por esse homem tem sido esquecida,

marginalizada, a ponto de muitos deslembrarem sua importância para a formação do homem

cultural brasileiro, cuja identidade móvel o torna um homem caracteristicamente híbrido.

Embora ligada à cultura que se desenvolveu nos latifúndios, a cultura rústica estaria mais próxima das culturas indígenas e teria se desenvolvido de forma mais isolada. O camponês pobre, mais ou menos presente de acordo com a região, seria o ‘representante típico’ (JACKSON, 2002, p. 52).

A cultura matuta nunca foi adequadamente assimilada pela sociedade abrangente. E esse

fato talvez tenha se concretizado efetivamente pela ocorrência de, desde sua formação

histórica, o homem caipira ter sido sempre considerado representante de um grupo

marginalizado pela sociedade. O caipira, por assim dizer, é o homem rústico de áreas

delimitadas da colonização brasileira. Um tipo social considerado, segundo Antonio Candido

(2001), em seu estudo Os parceiros do Rio Bonito, marginalizado da colonização, e não

adequadamente contemplado pelas grandes interpretações de nossa formação histórica. Isto

torna esse homem um representante típico da construção identitária da cultura – tradicional –

brasileira, mas uma tradição se não esquecida, então, certamente, marginalizada.

Pois aqui veve o matuto De ferramenta na mão. A sua comida é sempre Mio, farinha e fejão E, se às vez, mata um porquinho, Come iguamente a um barão.

(ASSARÉ, 2004, Coisas do meu sertão, p. 289/290)

Essa cultura, a rústica – que aqui chamamos de matuta –, foi a grande baliza na análise

do autor. Em seu texto, Candido acentua a necessidade de distinguir o conceito de cultura

rústica do conceito de folk-culture, pois, se em ambos trata-se do tema do isolamento relativo

e da incorporação e reinterpretação de traços culturais, que vão se alterando ao longo do

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contínuo rural-urbano, o primeiro conceito indica um padrão específico de contato interétnico

e cultural. A principal característica dessa cultura consistia na rusticidade, resultado do

encontro de padrões culturais europeus com os de “sociedades primitivas”, modelando esses

últimos, em grande parte, o modo de ser dos caipiras (LIMA, 1999, pp.178-179).

A sociologia proposta pela crítica do estudo de Candido (2001) é chamada de

“sociologia dos meios de subsistência”. Para o pesquisador, de acordo com a análise de

Jackson (2002), seu objetivo de relevo em Os parceiros do Rio Bonito é buscar a

interpretação de todas as dimensões da vida social, a partir da alimentação. Sua obra vem

recuperar a formação histórica do caipira paulista e chega à conclusão de que a sociedade

caipira se formara durante a expansão de São Paulo, em especial no final do século XVIII,

momento em que os homens abandonavam as expedições e fixavam moradia no interior do

estado. Diante do exposto, Antonio Candido nos conduz à idéia de que o mundo caipira teria

sua influência maior a partir desse processo de formação histórica do homem paulista

caipirizado. “Terra abundante, mobilidade constante, caráter aventureiro do mameluco e

relação quase visceral com a natureza determinariam as formas de adaptação do caipira ao

meio ambiente” (2002, p.53).

Seja caipira, seja matuta, uma vez que a denominação adjetivada de literatura caipira

ou literatura matuta não terá qualquer influência decisória nesse estudo, a poesia popular

qualifica não uma expressão, mas um estilo de vida. Ao transitar entre o culto e o caboclo,

Patativa do Assaré de forma alguma permitiu que sua obra, tendenciosamente matuta,

deixasse de expressar a vida de seu povo, um povo simples e forte. Simples, não no sentido

pueril de sua expressividade vocabular, mas simples por ser um povo livre de conveniências

sociais, liberdade esta que o classifica como representante de um grupo que se distancia de

determinados padrões ditados pela sociedade pós-moderna. E, forte, não pela força do poder

que exclui e demanda ordens, mas forte por ser um povo que, na sua desdita ou na felicidade,

se aproxima de Deus – do Divino – acreditando que dias melhores são os dias do amanhã,

dias possíveis de serem vividos junto com seus coetâneos, caso a sociedade não o negue como

sempre o fez por ser um povo de origem inculta. Em outras palavras, é a força que nasce da

fé, simplesmente.

Eu sou do campo, pois nasci ali Assim Deus quis e assim Deus me fez, Muito me orgulho de ser camponês, Sou filho nato deste Cariri.

(ASSARÉ, 2006, Eu sou do campo, p. 186)

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Tal simplicidade e fortaleza é o reflexo da natureza, do ambiente natural em que vive o

homem sertanejo. O poeta matuto que temos em Patativa do Assaré traduz toda uma história

que inicia concomitantemente com seu trabalho na lavoura. Sua criação poética reflete sua

vida enquanto homem do sertão, que vive do fruto da terra.

A poesia matuta do autor é aquilo que já destacamos anteriormente em outros estudos:

“Tipo de poesia característica do poeta do mato, do homem de regiões interioranas que vive e

convive com problemas existenciais e que se tornam, por si só, ambientes propícios para a

elocução desse tipo de literatura” (SILVA e NÓBREGA, 2007, p 112). Sua poesia é

essencialmente uma voz em defesa do homem puro, natural e livre de amarras, de

conveniências sociais.

Nos anos 50, enquanto os poemas patativanos começavam a ser transcritos, Antonio

Candido na busca de entender o mundo rural do homem caipira, praticamente já com seu

trabalho encerrado, tem seu primeiro contato com o Nordeste, precisamente com o Ceará,

Estado lócus da poesia de Patativa. O sociólogo afirma que a miséria descrita em seu livro

parece ser amena se comparada ao que presenciou ali sobre a problemática das questões

agrárias que, ao longo da história sócio-política brasileira, continua em “reforma”

(CANDIDO, 2001, p. 13).

De acordo com a memória cultural do país, os festejos juninos se referem às festas

próprias das regiões interioranas, às tradições de música, dança e culinária. A região do Brasil

onde se iniciou a colonização portuguesa, que nos legou as tradições juninas, foi o Nordeste

brasileiro. A região ficou praticamente isenta de outras migrações que enfraquecessem a

influência lusa. Além do mais, não precisa ser historiador para saber e perceber a

predominância do Nordeste nos festejos juninos: ritmos, culinária, tudo parte daqui. E invade

o Brasil afora.

Essas tradições chegaram aqui com os colonos portugueses, que vieram, na maioria, da

região norte de Portugal, do Douro e do Minho, onde aqueles festejos permanecem até hoje

bem vivos, como no Porto, em Braga e em Vila do Conde. Coincide, lá, com o solstício de

verão, marcante no clima temperado, e com o início das colheitas. A comemoração desta data

(solstício de verão, o dia mais longo do ano) e a forma de festejá-la foram herdadas dos celtas,

ancestrais do povo do norte da Península Ibérica. Esses se dedicavam à agricultura e

festejavam a data com fogueiras para espantar os maus espíritos e as bruxas que podiam

prejudicar a safra. A lenha usada devia ser verde para que o seu crepitar fosse ouvido a

distância. Ainda hoje esse costume permanece na Galícia, região da Espanha, que é um

prolongamento natural do norte português (CARVALHO, 2002).

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Assim, tornada uma festa cristã e transplantada para a colônia, os seus costumes tiveram

que ser adaptados, mas continuaram coincidindo com colheitas e fartura, com comidas

consumidas entre festas, cantos e danças.

É, portanto, o Nordeste que dá o tom às festas juninas, transformando o país num

grande "arraiá matuto". Além disso, foi aqui , no cadinho cultural, onde começou a se formar

a identidade brasileira, desde o tempo da colonização, fermentando, por assim dizer, os vários

ingredientes para criar uma cultura marcante, de caráter híbrido. Uma identidade nacional que

perpassa sua origem por três raças: a negra, a indígena e a branca, e que se faz cultural na

junção de seus elementos mais intrínsecos: a língua e a cultura.

Sabe-se que durante o Brasil Colônia o falar “caipira ou matuto”, bastante característico

para ser notado pelos mais desprevenidos como um sistema distinto e inconfundível,

dominava em absoluto a grande maioria da população e estendia a sua influência à própria

minoria culta. As mesmas pessoas educadas e bem falantes não podiam se esquivar a essa

influência. A autoridade da cultura popular sobre a cultura erudita sempre se fez presente.

Contudo, o próprio meio foi determinando o que era certo e o que era errado e passando a

marginalizar certos grupos sociais.

Segundo Amaral (1955, pp.41-42), os genuínos “caipiras”, roceiros ignorantes e

atrasados – como eram definidos –, começaram também a ser marginalizados: eram atirados

do convívio coletivo, e tinham uma interferência cada vez menor nos costumes e na

organização da nova ordem das coisas, estabelecida pelo grau de “letramento12” dos homens

cultos. A população cresceu e mesclou-se de novos elementos.

Em detrimento de este dialeto ser conseqüência e não origem em nossa formação, a

partir dele construíram-se vias de comunicação por toda parte, intensificou-se o comércio, os

pequenos centros populosos que viviam isolados passaram a trocar entre si relações de toda

espécie e a província entrou, por sua vez, em contato permanente com a civilização exterior.

A instrução, limitadíssima, tomou extraordinário incremento. Nestes termos, era impossível

que o dialeto “caipira/matuto” deixasse de sofrer com tão grandes mudanças do meio social.

Hoje, ele se encontra acabrunhado, acantoado em pequenas localidades, em geral

interioranas, que não acompanharam de perto o movimento da era globalizada e subsiste, fora

desses espaços, na boca de pessoas idosas, influenciadas pela antiga educação, através da

oralidade.

12 Ler também Magda Soares (2006). A estudiosa entende que letramento constitui usos e práticas de leitura e escrita em determinado grupo social.

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Altamente marcado por traços característicos, o falar “caipira/matuto” é uma linguagem

vagarosa, “cantada”, arrastada, que se caracteriza justamente por um estiramento mais ou

menos excessivo das vogais. Além disso, os acentos em que a voz mais demoradamente

carrega, na prolação total de um grupo de palavras, não são em geral os mesmos que teria esse

grupo no falar culto; e as pausas que dividem tal grupo na linguagem corrente são aqui mais

abundantes, além de distribuídas de modo diverso (AMARAL, 1955, p. 45). Reconheçamos

tais particularidades em alguns versos da poesia Brasi de Cima e Brasi de Baxo (ASSARÉ,

2004, p.271):

Aqui no Brasi de Cima Não há dô nem indigença,, Reina o mais soave crima De riqueza e de opulença; Só se fala de progresso, Riqueza e novo processo De grandeza e produção. Porém, no Brasi de Baxo Sofre a feme e sofre o macho A mais dura privação. Inquanto o Brasi de Cima Fala de transformação, Industra, matéra prima, Descobertas e invenção, No Brasi de Baxo isiste O drama penoso e triste Da negra necessidade É uma cousa sem jeito E o povo não tem dereito Nem de dizê a verdade.

Nestes versos, Patativa usa o dialeto da gente do sertão nordestino numa performance

condizente com sua vida de interiorano. As variações lingüísticas que permeiam nosso país

caracterizam o falar de grande parte da população brasileira, onde a localidade é fator

preponderante para permitir que esse falar seja marca registrada. No plano da escrita, percebe-

se, ao longo da obra e não apenas nos versos supracitados, que houve uma preocupação do

poeta em afirmar o falar do povo sertanejo, através da transcrição literal dos seus versos, os

quais, na sua maioria, seguem, face a face, o ritmo e a cadência da fala deste povo. Essa

discussão segue de forma mais profunda no texto a seguir, quando estaremos nos voltando

para o relevo da oralidade no processo criativo da poética de Patativa. Como veremos a

seguir, é da memória oral do poeta que surge a responsabilidade social presente em sua obra.

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1.2.1 A oralidade na poesia patativana

Retornemos, pois, para a expressão “poesia matuta”... A fim de que entendamos seu

surgimento se faz necessário que recorramos a uma de suas formas originais: a literatura

popular, que abrange a literatura oral e a literatura de cordel, de que Patativa também foi

representante, e sobre a qual iremos abordar algumas questões.

De acordo com Urbano (2000, pp.35-36), o ato de narrar foi uma das primeiras

manifestações sociais, bem como uma das primeiras variantes da comunicação oral, cuja

possibilidade conduzia as pessoas inicialmente para comunicar necessidades. A comunicação

tem por objetivo ser usada como prática social: perguntas e respostas, relatos de eventos reais

– e, depois, fictícios.

Para o autor, tanto a forma da narrativa oral, de fatos reais, não literária, quanto a forma

posterior, a narrativa escrita de eventos fictícios, literária, tem grosseiramente, a mesma

estrutura básica, e utiliza de forma basilar as mesmas técnicas. Pois, ambas as formas não

deixam de conter outros pontos em comum: o fato, o enredo, as personagens, a seqüência

temporal, etc.

Na poesia patativana, observa-se, porém, que a realidade da fala e da narrativa falada de

fatos reais têm sua preocupação última na narrativa literária. Basicamente, como veremos na

discussão mais adiante sobre a literatura de testemunho, a obra fictícia de Patativa é marcada

por traços da oralidade, do falar da realidade.

A composição oral tem, segundo Havelock13 (1996, p.13), um ritmo tal que a

caracteriza como poética, ou de forma mais rude, um estilo poetizado, mas não

“improvisado”, o que se diferencia um pouco da obra de Patativa, que se inicia,

originalmente, através dos versos improvisados do violeiro-cantador. Há de se ressaltar que

para Havelock, “poesia é o nome de um uso ideal da linguagem, superior, em certos aspectos,

aos poderes expressivos da prosa”, ou seja, é uma forma especial da linguagem.

Nas culturas orais, o conhecimento é conceituado e, por extensão, verbalizado, sempre

em referência, maior ou menor, à experiência humana. Mesmo o que seria estranho à vivência

imediata é assimilado, transformado, adaptado às interações e às necessidades concretas das

pessoas. Nesse sentido, a própria aprendizagem ocorre por meio da observação e da prática e,

minimamente, pela explanação verbal e pela recorrência a conceitos abstratos. O tom

13 O pesquisador desenvolve um estudo sobre a cultura oral da Grécia. Para Havelock (1996, p. 13), a composição oral, tal como era praticada pelos mestres gregos, por certo não deve ser pensada como matéria de improviso, à maneira do que fazem os cantadores iugoslavos; nem deve entender-se o seu caráter em termos estritamente estilísticos.

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predominantemente emocional também caracterizaria o pensamento oral, na avaliação de Ong

(1998).

Além disso, Havelock fala de uma “memória acústica” proveniente da oralidade de seu

interlocutor, onde o poeta/cantor pode esquecer temporariamente o que estava pronto a dizer,

passando de contínuo, de uma série de concentrações para uma outra, substituindo um

momento de memória por outro. Assim destaca ele:

Em suma, a memória acústica é associativa, mas não compreensiva; vive e funciona por dedicação total temporária a uma extensão de mythos, antes de volver-se, em transição, para um novo mythos, correspondente a um novo ato de recordação. Mas o segundo há de compartir o mesmo ethos do primeiro, pois ambos, em sua expressão, refletem e preservam o mores da cultura; ambos são parte da mesma enciclopédia cultural; assim, disgressão e repetição à parte, e admitidas algumas inconsistências inevitáveis, o estilo e a substância do poema permanecem uniformes, a um grau que um “comitê” de poetas letrados nunca poderia atingir (HAVELOCK, 1996, p. 175).

É possível observarmos esse tempo de esquecimento da memória acústica de Patativa ao

confrontarmos a poesia Cante lá que eu canto cá, no livro, em sua versão escrita, e a mesma

poesia no CD “Poemas de Patativa”, o qual é recitado pelo próprio Patativa e traz as estrofes

em posições diferentes daquelas contidas no suporte anterior. Isto porque ao usar a oralidade,

o poeta tem em sua memória os versos retidos em grupos – estrofes – e a seqüência, caso não

seja uma narrativa, de estrutura lógica e continuada, passa a ser insignificante.

1.2.2 Oralidade e cordel: marcas da literatura popular

Sendo também, ao longo de sua vida artístico-literária, um representante do cordel,

Patativa alcançou um nível mais diferenciado de sua criação poética, uma vez que a obra não

ficou nos folhetos de cordel, sua poesia foi para o livro, que tecnicamente possui uma

“arrumação” própria, na sua impressão e formatação artístico-digital.

Contudo, a oralidade e o cordel possuem um cordão de entrelace tal que une e amarra

acontecimentos de sua contemporaneidade, em especial como elementos da literatura popular.

A memória oral, assim como o cordel, trabalha com narrativas míticas, personagens fortes,

cujas mortes em geral são monumentais, memoráveis e comumente públicas. A heroicização

dos personagens não se baseia, para o cordelista, em razões românticas ou mesmo didáticas,

mas corresponde à necessidade de organização da experiência daquela sociedade de uma

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forma permanentemente memorável. O herói e o anti-herói, nesse sentido, servem a uma

função específica na organização do conhecimento no mundo oral.

A narrativa é marcada, freqüentemente, pela descrição entusiasmada da violência física.

A própria especificidade da expressão oral contribui para que essa característica seja

marcante: a comunicação verbal está sempre envolvida em relações interpessoais,

caracterizadas tanto pela atração, quanto pelos antagonismos.

Na obra de Patativa, verifica-se, embora bem pouco explorado, o fato de que mesmo

tendo abandonado a viola, o poeta continua no terreno da oralidade. Afirma Carvalho (2002,

p. 05):

A agilidade do improviso, o inesgotável repertório, de situações, as respostas instantâneas às sugestões recebidas fazem dele o repentista capela, sem as cordas do instrumento musical. Mas em sintonia com o prazer do ouvido, com a música da fala poética e com o caráter de arauto das verdades ancestrais. Patativa não recorre aos artifícios do poeta de bancada. Não burila o verso porque abre mão do rascunho, não empreende a busca da forma perfeita. E sua obra, mesmo escrita, evidencia a dicção da oratória. Métrica, ritmo e rima fluem com a naturalidade com que enuncia seu canto. O que ele diz é transcrito para o papel, mas continua fiel aos códigos da transmissão oral. É como se ele estivesse em permanente peleja, não contra um rival de ofício, que nenhum chegaria à sua estatura, mas com a própria poesia. Ele é seu opositor e seu duplo, enunciador e personagem de uma litania sertaneja.

Diante do exposto, palavras como “cultura” e “literatura” constituem modalidades do

saber que podem existir no mais remoto ambiente do meio rural, ou em tribos indígenas, ou

em vilarejos africanos. Há até quem diga que a literatura oral desses povos não tem as

qualidades da literatura escrita pelos grandes mestres literários... O que é verdade. Como

também é verdade que os grandes mestres literários provavelmente não seriam capazes sequer

de imitar as técnicas de memorização, recriação e performance presentes em suas veias

artistas (TAVARES, 2005, pp. 104-105). No caso de Patativa, o improviso é marca do cordel,

assim como o é dos repentistas, e sua poética flui com a naturalidade do poeta-versejador.

Persuadido pela idéia de que o povo era capaz de se exprimir espontaneamente,

escritores como Montaigne (1553-1592) já afirmavam que a poesia natural e puramente

natural possui ingenuidade e graça, por onde ela se compara à principal beleza da poesia

perfeita segundo a arte: como se vê em vilarejos da nossa região e nas canções que se nos

relatam sobre nações que não possuem conhecimento de ciência alguma, tampouco de escrita.

Em outros termos, a poesia popular existiria ao largo de toda aprendizagem ou em respeito às

regras acadêmicas e apresentaria êxitos dignos de serem reconhecidos.

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No contexto nordestino, é preciso recordar que a poesia popular inscreve-se na tradição

oral desta região do interior: um de seus principais agentes, o cantador, proveniente do meio

rural, em geral analfabeto – mas nem sempre –, improvisa ou narra, graças à sua memória

prodigiosa, a história dos homens famosos da região, os acontecimentos maiores, as aventuras

de caçadas e de derrubadas de touros, enfrentando os adversários nos desafios que duram

horas e noites inteiras, numa exibição assombrosa de imaginação, brilho e singularidade da

cultura tradicional. A versificação utilizada, em geral a sextilha hexassilábica ou a décima

heptassilábica de rimas contínuas, parece mais ser a expressão de uma técnica de

memorização do que a expressão de uma forma poética erudita, a serviço da transmissão de

um saber simbólico: ciência, cultura popular, tradição.

1.2.3 Em torno da poesia matuta

A poesia matuta, por sua vez, tem seu “berço” na contemporização do poeta regionalista

que (de)clama através de seus versos sua gente e seu viver. Constitutiva na literatura popular,

essa poesia encontra reflexos fortes no cordel, sua sementeira maior, embora carregue um teor

mais condizente com os tempos atuais de recursos tecnológicos. É produzida não em folhetos,

como o cordel, pelo contrário, admite uma produção mais elaborada e arrojada, tecnicamente

falando.

Na verdade, essa poesia já é um estilo consagrado (mas, pouco divulgado) da literatura

brasileira. Patativa do Assaré, entre outros nomes, como Catulo da Paixão Cearense e Zé da

Luz são conhecidos em todo o país como os principais representantes do gênero. Um pouco

menos famoso que os três, mas podendo ser considerado um nome tão relevante quanto para a

nossa cultura, é Jessier Quirino, poeta paraibano que vem se destacando por seu estilo

humorístico com visível tendência à poesia matuta. Alguns deles são poetas que,

comprometidos com o povo e com seu tempo, constituem a expressão maior de uma cultura

forjada num amálgama de outras culturas; constituem a expressão máxima de uma cultura

riquíssima exatamente porque bebeu em fontes as mais diversas. Daí destacarmos que a

cultura, na contemporaneidade, é significativamente plural, cujos diálogos se (inter-)cruzam a

fim de pluralizar trocas culturais de povos e regiões distintos.

Independente do poeta, dito matuto, o analfabetismo não é característica fecunda para

quem se apropria desse gênero literário. Dentre os grandes nomes de nossa literatura popular

– cordel e poesia matuta –, muitos se destacam pelo teor clássico, embora matuto (interiorano)

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nos versos altamente elaborados. Sendo uma extensão progressiva da literatura de cordel, os

poetas interlocutores do gênero seguem toda uma tradição que vem muito antes do século XX.

Neste sentido, ao falarmos de poesia matuta, elucidamos um pouco da história do cordel

a fim de melhor localizarmos o berço desse gênero. Tendo sido transplantada para o nosso

país pelos colonizadores lusitanos, esta manifestação popular, de universo semiótico multiface

– o cordel –, evoluiu independente e diversamente, num fecundo processo de mestiçagem

cultural, originando uma literatura com características marcantes e próprias – a nossa

“literatura de folhetos”.

A poesia matuta, embora ainda pouco enunciada, enquanto gênero literário, tem

encontrado seu espaço, pouco a pouco, graças a nomes ícones de nossa literatura popular,

como o de Patativa. É, pois, um gênero que também dialoga com outros gêneros num

entrelace constante e possível de interação cultural. Observemos os versos a seguir que,

embora no plano da escrita siga o uso formal das palavras, não deixam de mostrar o tom

matuto, de quem canta o mato e suas representações. Todavia, há de se considerar que o poeta

usa seus versos para colocar em relevo a vitimização do povo da roça, estigmatizando-o como

um povo pobre, infeliz, oprimido, como é possível verificar nos versos da segunda estrofe do

poema Caboclo roceiro (ASSARÉ, 2004, p.99):

Caboclo roceiro, das plagas do norte, Que vives sem sorte, sem terras e sem lar, A tua desdita é tristonho que canto, Se escuto o teu pranto, me ponho a chorar. Ninguém te oferece um feliz lenitivo, És rude, cativo, não tens liberdade. A roça é teu mundo e também tua escola, Teu braço é a mola que move a cidade. De noite, tu vives na tua palhoça, De dia, na roça, de enxada na mão Julgando que Deus é um pai vingativo Não vês o motivo da tua opressão. [...] Tu és, nesta vida, um fiel penitente, Um pobre inocente no banco do réu. Caboclo, não guardes contigo esta crença, A tua sentença não parte do céu. [...] As tuas desgraças, com suas desordens Não nascem das ordens do Eterno Juiz.

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Nestes versos, embora conduza o povo roceiro ao papel de vítima, observa-se que

Patativa solidarizava-se também em âmbitos maiores, além de seu espaço regional. Quase foi

preso pelas forças militares da cidade do Crato/CE por ter composto o poema acima, que traz

em seu contexto literário denúncias contra a política da época. Neste tempo, Patativa era

ativista, mas se esquivava de participar de eventos em público. Usava o pseudônimo Galdino

Mororó e enviava seus versos para São Paulo a fim de que fossem publicados (período da

Ditadura Militar).

A lua te afaga sem ter empecilho, O sol o seu brilho jamais te negou, Porém os ingratos, com ódio e com guerra, Tomaram-te a terra que Deus te entregou. De noite, tu vives na tua palhoça, De dia, na roça, de enxada na mão, Caboclo roceiro, sem lar, sem abrigo, Tu és meu amigo, tu és meu irmão.

Na realidade, o exercício político-ideológico de Patativa, através de sua poesia matuta,

acompanhou sua trajetória de vida desde sempre. Esquivava-se da publicidade, uma vez que

preferia não se apresentar à mídia, mas não deixava de alfinetar – sempre que possível – uma

minoria que se utilizava de pensamentos egoístas e se aproveitava da generosidade em

detrimento da maioria. E tal particularidade é uma constante em grande parte de sua obra.

Entretanto, é na poesia Versos do Patativa (ASSARÉ, 2006, p.211) que encontramos

uma forte associação de sua lida e de sua poiesis. Aqui, verifica-se que Patativa usa os versos

poéticos para dialogar sua vida de agricultor com sua vida de poeta. Contudo, o tom de

vitimização é uma constante, em especial como traço paradigmático do povo nordestino, que

trabalha na roça e, muitas vezes, precisa se distanciar para outras regiões na busca da

sobrevivência pessoal e de sua família :

Trabalhei qual condenado Lá nas minas da Sibéria, Porém vejo meu roçado Exposto à grande miséria. O milho não tem boneca, E o feijão deu um sapeca Com o sol abrasador. Não chovendo agora em maio, Não há de esperança um raio Para o pobre agricultor.

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Ouve-se o triste lamento, Dinheiro que é bom não há E os preços dos alimentos Estão no inferno para lá. Aqueles mais precavidos Correram espavoridos E foram viver no Sul E outros inda estão Aguardando a proteção Do chefe Garrastazu. [...] No meu viver de matuto Ao da minha gente, Trabalahndo como um bruto, Estou preso na corrente Na ase do papagaio, Porém daqui para maio Eu irei a Fortaleza Saber se a noiva do sol Canta como um rouxinol Ou também chora de tristeza.

Ao participar e interagir diretamente com seu meio social, Patativa foi catalogando e

experienciando suas inquietações e colocando na sua poesia aquilo que Seligmann-Silva

(2005) conceitua de “Literatura de Testemunho”. Esta vertente na obra patativana será

analisada em capítulo posterior deste estudo, a qual, conforme os conceitos do autor, traz em

seu conteúdo um alto teor testemunhal.

A consciência do poeta, motivada por toda uma história de vida, era engajada,

comprometida com o padecer do povo nordestino. Na verdade, conforme dados biográficos, é

possível abstrair essa consciência na filosofia de vida de Patativa, que automaticamente

perpassou para sua poesia. Não relegando a planos secundários o conceito de “consciência”,

fornecido por vários teóricos, mas apenas não os citando, destacamos, para este estudo, o

termo como assim é analisado por Dilthey14: “... consciência é vivência e não mero

fundamento do existir, nem condição de possibilidade do conhecimento, nem um lugar, ao

qual chegam as percepções do mundo externo, nem um abstrato processo de determinação do

eu” (2000, p.80).

Para o autor, segundo Di Napoli, a consciência é o resultado de uma relação do eu com

seu corpo ou com o mundo externo à própria consciência, sejam coisas ou pessoas. No caso

de Patativa, sua consciência se encontrava em estreita ligação com seu eu, com as coisas e as

14 Wilhelm Dilthey (1833-1911) é pouco conhecido na História da Filosofia. De sua obra, costuma-se destacar apenas sua preocupação com a fundamentação das Ciências do Espírito, em particular da história, pois ele ficou conhecido como o filósofo do historicismo alemão.

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pessoas que lhe eram mais caras (natureza, família, amigos, etc). Ele sabia utilizar,

conscientemente ou não, a literatura, para fazer-se compreender e “compreender o outro” na

dimensão também proposta por Dilthey.

1.3 O filósofo trovadoresco e sua criação poética

Como representante fiel de uma literatura que se faz matuta para caracterizar um tipo

nordestino, para “além do cânone”, evocamos a poesia de Patativa, lembrando que nas

biografias do poeta é marcadamente narrado o infeliz fato de sua cegueira, decorrente da

combinação de duas doenças que o acometeram por volta de um ano de idade, para alguns

pesquisadores, ou até por volta dos quatro anos, para outros. A seqüela, apesar de marcada

pela negatividade, acabou sendo posteriormente associada a características de outros grandes

poetas, entre os quais Homero e o violeiro cego Aderaldo; ou associada a Camões, pelo

próprio Patativa. O mundo do menino Antônio era a Serra de Santana, município do

Assaré/CE, na qual o lazer era contemplar a paisagem e brincar com seus irmãos, além do

constante trabalho na roça; em sua memória da infância, porém, impregnou-se a visão

performática de violeiros e versejadores repentistas que, muitas vezes, presenciou ainda

criança e almejou um dia aventurar-se a imitar.

Apesar da visão um tanto bucólica de sua própria infância, as análises constitutivas

sobre o poeta e sua obra revelam indícios da forte influência do mundo adulto na formação de

sua personalidade. O trabalho precocemente presente e o pouco contato com crianças de sua

idade corroboraram na construção dos sentidos e valores de sua vida e, conseqüentemente, de

sua poética. Sem determinar por completo ou delimitar diretamente caminhos pré-concebidos

unicamente pela tradição, Patativa revela sua individualidade ao reelaborar essa visão adulta

do mundo e transcrevê-la em sua poética, sem, contudo, negar sua infância. Pesquisadores

como Gilmar de Carvalho (2000) consideram que a vocação poética de Patativa teve origem

já na infância, no lazer de contemplação da natureza, bem como nas participações de leituras

coletivas de folhetos de cordel, de ponteios de viola e de pelejas. A partir dessas experiências

contemplativas da beleza, natural e cultural, descobriu a possibilidade da criação própria e do

improviso de versos.

No poema Cante lá que eu canto cá (ASSARÉ, 2004, pp.25-29), Patativa do Assaré

deixa claro que tipo de lugar é versado em seus poemas que, cantados ou falados, retratam e

singularizam sua poesia de forma inter- e transcultural.

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Poeta, cantô de rua, Que na cidade nasceu, Cante a cidade que é sua, Que eu canto o sertão que é meu.

Esse poema, que deu título a uma de suas grandes obras (Cante lá que eu canto cá:

filosofia de um trovador nordestino) resume sua cosmovisão, sua visão de sertão, num retrato

fiel do...

mundo que o sertanejo intui dividido não entre cidade e campo, mas entre suas formas de ser, as duas culturas, uma rural e outra urbana, com uma, a cultura urbana, invadindo avassaladoramente todos os rincões dos campos e gerando um conflito cultural de conseqüências incalculáveis para a cultura do povo (ASSARÉ, 2004, p. 13).

Mais adiante, propomos uma discussão que trata justamente do tipo de literatura que

engloba a poética de Patativa: uma “literatura dos mundos”, a qual intui o estudo de um tipo

de arte que gera conflitos/misturas de culturas (GLISSANT, 2005) para se constituir. Esta

modalidade de literatura pressupõe ganhos e não perdas, uma vez que corrobora para a

construção de uma poética de estilo híbrido.

Se aí você teve estudo, Aqui, Deus me ensinou tudo, Sem de livro precisá Por favô, não mêxa aqui, Que eu também não mexo aí, Cante lá, que eu canto cá. Você teve inducação Aprendeu munta ciença, Mas das coisa do sertão Não tem boa esperiença. Nunca fez uma paioça, Nunca trabaiou na roça, Não pode conhecê bem, Pois nesta penosa vida, Só quem provou da comida Sabe o gosto que ela tem.

(ASSARÉ, 2004, pp.25-29)

Não é simplesmente o uso estilístico de uma linguagem que se quer matuta para

impressionar e diferenciar. Conforme o aporte teórico de Alfredo Bosi (2000, p. 13), é preciso

debruçar-se sobre a obra do poeta, iluminando-a sob a luz da história da consciência humana,

que não é estática e nem mesmo homogênea. É preciso considerar o contexto do poeta, sua

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relação com a História, bem como a história particular imanente e operante em cada um de

seus poemas: repensando o conceito de historicidade dessa obra poética, derrubando

cronologismos apertados e relacionando poesia e sociedade, como está explicitado nos

fragmentos a seguir:

Pra gente cantá o sertão, Precisa nele morá, Tê armoço de fejão E a janta de mucunzá, Vivê pobre, sem dinhêro, Socado dentro do mato, De apragata currelepe, Pisando inriba do estrepe, Brocando a unha-de-gato. Você é munto ditoso, Sabe lê, sabe escrevê, Pois vá cantando o seu gozo, Que eu canto meu padecê. Inquanto a felicidade Você canta na cidade, Cá no sertão eu infrento A fome, a dô e a misera. Pra sê poeta divera, Precisa tê sofrimento...

(ASSARÉ, 2004, pp.25-29)

Ao carregar sua narrativa de subjetivações, o poeta entende que não é qualquer um que

pode cantar o sertão, o mato, a roça, as coisas da natureza. Tal essencialismo exagerado marca

praticamente toda a obra de Patativa, pois, conforme sua percepção de vida, é preciso

conhecer e reconhecer-se no ambiente sertanejo, é preciso conviver e nele viver para dele

falar com maestria e eloqüência a fim de que os ouvintes do seu som compreendam a

extensão desafiadora que é mostrar ao mundo o poder da literatura popular no mais profundo

de seu berço: o ambiente em que se vive. Bosi (2000, p.15) entende o poema como sendo uma

expressão poliédrica, herdada e inventada, pela qual o poeta enfrenta a rotina retórico-

ideológica da sociedade usando livremente instrumentos da própria tradição e a necessidade

de reconhecer o sim e o não em todas as coisas.

Isto posto, nossa interpretação é que, a partir da palavra poética, é possível compreender

as relações entre produção literária, religiosidade, imaginário e cultura para, então,

aprofundarmos o conhecimento a respeito da obra poética de Patativa do Assaré e

compreendermos as formas populares de (re)elaboração e (re)ssignificação do “imaginário

cristão/católico”, segundo o qual o conceito de messianismo ‘compreende todo e qualquer

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conjunto de crenças religiosas, idéias e atividades, através do qual uma coletividade dada

expresse a sua recusa diante de intoleráveis condições de existência, manifestando a esperança

de que um herói sobrenatural abrirá as portas de uma vida livre de misérias e injustiças

(QUEIROZ, p. 250, 1981).

Além disso, partindo desta palavra poética, também é admissível a discussão da

hipótese de que a poesia de Patativa e seus elementos da Cultura (sociedade) e Religiosidade

Popular (crenças e tradições populares) caracterizem fator de resistência15.

Sua rima, inda que seja Bordada de prata e de ôro, Para a gente sertaneja É perdido este tesôro. Com o seu verso bem feito, Não canta o sertão dereito, Porque você não conhece Nossa vida aperreada. E a dô só é bem cantada, Cantada por quem padece. Só canta o sertão dereito, Com tudo quanto ele tem, Quem sempre correu estreito, Sem proteção de ninguém, Coberto de precisão Suportando a privação Com paciença de Jó, Puxando o cabo da inxada, Na quebrada e na chapada, Moiadinho de suó.

(ASSARÉ, 2004, pp.25-29)

Se todo discurso revela uma forma de ver o mundo e de interpretá-lo – pois, através da

palavra atribuímos sentido e significado a esse mundo –, no caso do discurso poético de

Patativa, o sentido é dado pela relação com a natureza e com a religiosidade popular, o que

nos possibilita ampliar o conhecimento sobre a Literatura Popular no Brasil, enquanto

manifestação artística, e suas relações com a religiosidade e a cultura.

Ao contextualizarmos essa forma de transcrever a vida no campo com a religiosidade

popular, ressaltamos o que coloca Rossi (2002, pp. 32-33) ao citar a fala de Diacon:

15 Para Alfredo Bosi (2000, p. 167), a poesia de resistência tem muitas faces: ora propõe a recuperação do sentido comunitário perdido (poesia mítica, poesia da natureza); ora a melodia dos afetos em plena defensiva (lirismo de confissão); ora a crítica direta ou velada a desordem estabelecida (vertente da sátira, da paródia, do epos revolucionário, da utopia).

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[...] ‘no Nordeste brasileiro, uma série de secas devastadoras ameaçavam a subsistência dos camponeses, aumentando o prestígio dos líderes que ofereciam comida e abrigo em segurança’. Para ele, as situações particulares das necessidades de um povo em crise são capazes de desencadear a transformação da sociedade por intermédio do messianismo, quer o sofrimento provenha de uma ‘crise material ou ainda espiritual’.

Alfredo Bosi (2000) afirma que o poeta é caracterizado como o “doador de sentido”,

mas que no mundo moderno ocorre uma cisão, restando à poesia o papel de aguçar a

consciência dessa contradição do sentido, pois não se integra mais aos discursos correntes na

sociedade. Para ele, o poema pode ter o papel de acender no homem, ou de revelar, o

inconsciente desejo de uma outra existência, mais livre e mais bela e, sendo assim, a poesia

traduz em sons e símbolos essa realidade pela qual ou contra qual vale a pena lutar. Além

disso, mesmo se encontrando num plano erudito e não no plano do “comunitarismo” da

poesia popular, a fala de Bosi nos conduz ao sentido do “poeta” e do “poema”, o que

pressupõe afirmar que não importa se ambos são cultos ou populares, mas sim que são

conceitos aplicáveis para poetas ou poemas, sejam cultos ou populares, uma vez que estamos

falando da arte literária.

Sua vida é divirtida E a minha é grande pená. Só numa parte de vida Nóis dois samo bem iguá: É no dereito sagrado, Por Jesus abençoado Pra consolá nosso pranto, Conheço e não me confundo Da coisa mió do mundo Nóis goza do mesmo tanto. Eu não posso lhe invejá Nem você invejá eu, O que Deus lhe deu por lá, Aqui Deus também me deu. Pois minha boa muié, Me estima com munta fé, Me abraça, beja e qué bem E ninguém pode negá Que das coisa naturá Tem ela o que a sua tem.

(ASSARÉ, 2004, pp.25-29)

Bosi (2000, pp. 09-17) decifra a linguagem poética como um dos aspectos da Literatura

sobre o qual pesa, ainda mais, o caráter de complexidade e de múltiplas relações de

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interdependência com o contexto histórico. Segundo o pesquisador, a poesia não se integra

nos discursos correntes da sociedade, permanecendo sob formas estranhas e sobrevivendo

mesmo nesse meio hostil; ele afirma ainda que a poesia pode representar resistência sob

variadas formas, seja através de sua forma mítica, de um lirismo de confissão ou de sátira,

paródia, utopia.

Sumariamente, Alfredo Bosi (2000) supõe vários caminhos de resistência poética, entre

os quais o da poesia mítica como aquela que responde ao presente, ressacralizando a memória

como base da infância recalcada, na qual as figuras da infância e da tradição assumem sentido

encantador, proporcionando o reencontro do adulto com o mundo mágico da criança. E, ao

deparar-nos com certos versos de Patativa, como não reconhecê-lo, também, como poeta

mítico que proporciona o encontro com o mundo mágico da criança nordestina? Como poesia

mítica, a obra de Patativa se enquadra nesta categoria, pois recupera figuras e sons, faz-se

poesia da natureza e da saudade, revelando o poeta como uma consciência que se volta para

aquilo que não é, ainda, consciência.

Em entrevistas concedidas a Tadeu Feitosa (2003), Patativa demonstrou a faceta do

homem, que o poeta mito impediu muitas pessoas de conheceram: aquele homem que, ao

longo de sua vida, defendia princípios, valores e conceitos fortemente arraigados em projetos

pessoais que se estenderam para sua poesia. É deste homem e não simplesmente do poeta, que

surge uma poesia marcada pela força expressiva de fazer com que todos reconheçam o

homem nordestino (do campo, do interior, do mato, do sertão, seja lá qual for a locução que

venha adjetivar o indivíduo por Patativa cantado). Na sua poesia, fica evidente o desejo de

fazer com que o nordestino seja reconhecido como cidadão, um indivíduo colaborador da e na

sociedade, sem qualquer tipo de preconceito que, porventura, colabore para depreciar sua

identidade nacional. Todavia, será que seu discurso poético realmente conseguiu colocar esse

homem no lugar que merecia estar? Ou, equivocadamente, colaborou para intensificar a idéia

de que o nordestino é um homem vitimado, pobre de recursos e espírito, sem muitas

pretensões cidadãs?

Lembramos que a fonte patativana tem na Teoria Essencialista16 forte influência, dada

estar permeada por sua maior característica: “ser a mãe da necessidade”. Em Patativa, o

essencialismo se fez concomitante com sua filosofia de vida e conceitos ideológicos sobre o

16 Deixamos para comentar esta teoria no fim do primeiro capítulo porque ela será retomada incontáveis vezes ao longo do estudo com base em Medin (1989). Para o crítico, o essencialismo é uma tendência das pessoas a atuarem como se houvesse essência nas coisas, ou seja, como se existissem estruturas subjacentes que tornam as coisas o que elas em definitivo são. Ler também MEDIN, D. L. Concepts and conceptual structure. American Psychologist, p. 44 (12), 1989.

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sertão, cidadania, identidade. Provavelmente é neste caráter de sua poética que reside o fato,

embora não anunciado pela crítica, de sua criação estigmatizar a identidade do homem

nordestino. Pois, ela corrobora para descaracterizar esse homem nordestino na medida em que

seus versos o estereotipam como sendo um indivíduo sofrido, injustiçado, excluído, sem

qualquer reconhecimento positivo na construção de uma identidade nacional, cujos direitos e

deveres precisam ser “complexificados” na sua voz.

Intuindo continuar com as discussões ora desenvolvidas, ressaltamos que nas próximas

páginas serão destacadas questões constitutivas da sociedade contemporânea, como

identidade, cidadania e ética. Essa tríade identifica temas atuais que permeiam a vida e a obra

de Patativa. Entretanto, indicamos que, apesar de persistirmos na reflexão sobre aspectos

biográficos do poeta, estaremos enfatizando outros valores de sua poética.

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CAPÍTULO 2

IDENTIDADE, CIDADANIA E ÉTICA: conquistas de um poeta social

o longo de sua obra, é possível observar que Patativa do Assaré entendia o

termo “filosofia” como um valor – uma postura de vida. Mesmo utilizando-

se de estigmas para caracterizar o povo nordestino e fazendo-se excessivo na subjetivação que

permeia sua obra, ele fez de seu projeto literário um canto poético peculiar, uma arma

defensiva para professar as injustiças que comumente estereotipam e desnivelam o retrato do

homem nordestino no cenário nacional. Bastante diversificado, mas com alto teor social e

testemunhal, seu “canto”, que se tornou midiático, é considerado pela crítica uma voz do

Nordeste que luta pela cidadania do homem interiorano, e que procura convocar todos a

valorizá-lo, enquanto ser humano, enquanto ser cidadão, pertencente a uma sociedade

pluricultural, uma sociedade de identidade transitória que se impõe sobre o perene.

Numa sociedade que tornou incertas e transitórias as identidades sociais, culturais e sexuais, qualquer tentativa de ‘solidificar’ o que se tornou líquido por meio de uma política de identidade levaria inevitavelmente o pensamento crítico a um beco sem saída (BAUMANN, 2002, p. 12).

É justamente tentando desocultar as mesmidades e enfrentar o difícil desafio de superar

as lógicas binárias e os argumentos dicotômicos no conceito de “cidadania”, sobretudo nos

dias atuais, que observamos ser necessário compreender a literatura como um canal possível

para manifestar e fazer fluir tais possibilidades. Quando falamos numa sociedade e numa

atuação do cidadão em caráter individual e coletivo, que tenham por referência a perspectiva

cultural, destacamos a dimensão conceitual chamada por Homi Bhabha (2005) de

“intertranscultural”, a qual nos permite adentrar em interpretações que ultrapassam fronteiras

culturais.

Em se tratando de Patativa do Assaré, é admissível transpor as barreiras do olhar “à

primeira vista” e verificar que no lamento do poeta existe um quê de profundo interesse pela

cidadania, eticidade, liberdade, interatividade e inclusão do povo nordestino aos demais povos

que compõem toda a estrutura nacional, que dividida regionalmente, tende a marginalizar os

habitantes (e o conjunto de saberes que norteia sua disseminação cultural) de determinadas

regiões em detrimento de outras.

AAAA

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2.1 Breve análise do conceito de cidadania à luz dos versos patativanos

Para enfatizar o caráter social de sua obra e o seu interesse pelo povo, Patativa permitiu

que sua poesia se tornasse uma arma em defesa de algumas minorias presentes na sociedade;

por isso, tratar de temas que envolvessem o ser cidadão estava intrínseco em seu fazer poético

e na sua vida, enquanto homem. Na obra, é fácil identificar que as marcas humanas de

Patativa andam de mãos dadas com sua trajetória poética. Dados biográficos, como a sua

prisão, de apenas 15 minutos – aos 34 anos –, indicam que esse acontecimento foi motivado

em conseqüência de sua poética.

A poesia Prefeitura sem Prefeito (ASSARÉ, 2006, p.25) teria sido o pivô maior da

prisão. O poema foi escrito para chamar a atenção do prefeito de Assaré/CE, mas foi

entendido, pelo político, como um desacato à autoridade. Com estes versos, o poeta mostra a

vertente cidadã que permeia sua obra e que transita por vários poemas, caracterizando o autor

como poeta social:

Nesta vida atroz e dura Tudo pode acontece, Muito breve há de se ver Prefeitura sem prefeito Vejo que alguém me censura E não fica satisfeito, Porém, eu ando sem jeito, Sem esperança e sem fé, Por ver, no meu Assaré Prefeitura sem prefeito. Por não ter literatura, Nunca pude discernir Se poderá existir Prefeito sem prefeitura. Porém, mesmo sem leitura, Sem nenhum curso ter feito, Eu conheço do direito E sem lição de ninguém Descobri onde é que tem Prefeitura sem prefeito.

Patativa, de forma solidária, utilizou esse poema para ajudar as pessoas do Assaré, que

caminhavam léguas para falar com o prefeito e nunca o encontravam na prefeitura. Tal evento

foi pouco noticiado e apenas alguns biógrafos o revelam, uma vez que para Patativa não era

fácil assimilar a atitude arrogante do prefeito, já que se entendia como um homem simples,

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que gostava da verdade e que prezava os amigos, como é possível ser verificado nos

fragmentos a seguir :

Ainda que alguém me diga Que viu um mudo falando E um elefante dançando No lombo de uma formiga Não me causará intriga Escutarei com respeito, Não mentiu esse sujeito. Muito mais barbaridade É haver numa cidade Prefeitura sem prefeito. Não vou teimar com quem diz Que viu ferro dar azeite, Um avestruz dando leite E pedra criar raiz, Ema apanhar de perdiz E um rio fora do leito, Um aleijão sem defeito E um morto declarar guerra, Porque vejo em minha terra Prefeitura sem prefeito.

Tomando por base o texto de Patativa, propõe-se, agora, uma incursão, sob a

perspectiva da “compreensão do outro”, pelo conceito de cidadania cultural através da

literatura, onde realidade e arte se confundem e se complementam na difícil tarefa de tornar o

homem um indivíduo que entenda sua necessidade do outro para existir. Este é o conceito de

cidadania nas palavras de Marshall (1949, p.76):

A cidadania é um status concedido àqueles que são membros integrais de uma comunidade. Todos aqueles que possuem o status são iguais com respeito aos direitos e obrigações pertinentes ao status. Não há nenhum princípio universal que determine o que estes direitos e obrigações serão, mas as sociedades nas quais a cidadania é uma instituição em desenvolvimento criam uma imagem de uma cidadania ideal em relação à qual o sucesso pode ser medido e em relação à qual a aspiração pode ser dirigida'.

O conceito supracitado, sem dúvida, caracteriza-se na tradição cultuada à cidadania, no

decorrer dos tempos, que foi se vinculando cada vez mais às mudanças nas estruturas sociais.

Na verdade, o uso analítico do termo remete de forma sintética a processos longos e

conflituosos de sedimentação de direitos civis, políticos e sociais, mediante os quais se

equacionaram, nas sociedades ocidentais, os dilemas da subordinação política e da integração

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social. Se em cada caso histórico os usos práticos – políticos e ideológicos – da idéia de

cidadania englobam o valor da vida digna presente nessa sociedade, a reconstrução analítica

do conceito, do ponto de vista da teoria social, não pressupõe a aceitação ou prescrição de

qualquer conteúdo necessário à substância da cidadania. Hoje, uma variedade de atitudes

caracteriza sua prática nos grupos sociais.

Neste sentido, compreendemos que um cidadão deve atuar em benefício da sociedade,

ao mesmo tempo em que ela deve garantir-lhe os direitos básicos à vida, como moradia,

alimentação, educação, saúde, lazer, trabalho, entre outros. Como conseqüência, o termo

“cidadania” passa a significar o relacionamento entre uma sociedade política e seus membros.

Os reflexos dessa condição no direito internacional, por outro lado, emulsionam esse conceito

ao de nacionalidade.

Temos, portanto, associado ao atual conceito de cidadania, um repertório teórico e

mesmo prático, cuja amplitude acompanha o próprio desenvolvimento das sociedades

modernas. Contudo, a extensão desses direitos à totalidade da população não possibilitou a

garantia da liberdade e da igualdade idealizadas por Rousseau (1983). Para isso, contribuíram

todas as transformações vistas nas estruturas econômica e social.

Por outro lado, podemos dizer que todos esses anos de evolução acabaram por afirmar

que a cidadania de fato só pode se constituir por meio de acirrada luta cotidiana por direitos e

pela garantia daqueles que já existem. Mais do que isso, notamos maior preocupação com a

difusão desses direitos, seja por meio de educação formal, seja pelos meios de comunicação.

Programas de televisão debatem temas como violência, habitação, saúde, educação e outros

direitos básicos. Livros didáticos e paradidáticos fomentam a discussão sobre o status de

cidadão e os direitos humanos; outros associam ao desenvolvimento da cidadania uma

discussão sobre os meios de comunicação e o próprio Capitalismo. Não há mais espaço, no

meio social, para fechar os olhos a projetos que envolvam a prática cidadã.

2.1.1 Entre o culto e o inculto, uma cidadania intercultural

Para chegarmos à compreensão de cidadania cultural, de acordo com Marilena Chauí

(2006), ainda que cultura passasse a significar o campo materialmente determinado das

formas simbólicas e dos modos de vida de uma sociedade, a divisão social das classes como

distinção entre "culto" e "inculto" tornou-se predominante. Daí o termo ser tão abrangente na

contemporaneidade quanto o próprio conceito de cidadania.

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A partir desta divisão social de classes, a autora nos lembra que a cultura e as artes

distinguiram-se em dois tipos principais: a erudita (ou de elite), própria dos intelectuais e

artistas da classe dominante, e a popular, própria dos trabalhadores urbanos e rurais. Quando

pensadas como produções ou criações do passado nacional, formando a tradição nacional, a

cultura e a arte populares receberam o nome de folclore, constituído por mitos, lendas e ritos

populares, danças e músicas regionais, artesanato etc. E a arte erudita ou de elite passou a ser

constituída pelas produções e criações das belas-artes, consumida por um público de

“letrados”, isto é, pessoas com bom grau de escolaridade, bom gosto e consumidoras de arte.

Conforme posicionamentos de Chauí (2006), a distinção entre cultura/arte popular e

erudita, embora seja realmente expressão e conseqüência da divisão social das classes,

aparece, invariavelmente, como diferença qualitativa, que pode ser observada nos seguintes

aspectos:

- complexidade da elaboração (a arte popular é mais simples e menos complexa do que

a erudita);

- relação com o novo e com o tempo (a popular tende a ser tradicionalista e repetitiva,

enquanto a erudita tende a ser de vanguarda e voltada para o futuro);

- relação com o público (na popular, artistas e público tendem a não se distinguir,

enquanto na erudita é clara a distinção entre o artista e o público); e

- modo de compreensão (na arte popular, o artista exprime diretamente o que se passa

em seu ambiente e é imediatamente compreendido por todos; na erudita, ele cria novos meios

de expressão, de maneira que sua obra não é imediatamente compreensível a não ser para os

entendidos, que por isso a interpretam para o restante do público).

Na poesia de Patativa, verificamos os aspectos acima bem distinguidos, os quais a

caracterizam como uma obra de elaboração descomplicada, simples na linguagem, mas

esteticamente bem estruturada, embora repetitiva em seu conteúdo, que geralmente trata de

política, da natureza, do sertão, de personagens matutos e comuns do Nordeste. Além disso, a

relação com o público é indistinta, onde não se sabe bem quem é artista e público, e o modo

de compreensão se dá de forma mais direta – diferentemente da relação com o público da arte

erudita –, uma vez que a narrativa é versada por um homem do povo para o povo, cujo

linguajar reflete fielmente a relação artista/público:

Derne o Sú até o Norte O mundo cria de tudo, Cabra fraco e cabra forte, Um alegre, outro sisudo.

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Diz o professô Raimundo Que este nosso véio mundo De tudo pissui sem sobra, Coisa bela e coisa feia, Home do geno de uvêia, Muié do geno de cobra. [...] Mas, como quarqué sujeito Qué tê razão e dereito, Dá notiça e discrimina As coisa deste universo, Eu vou contá nestes verso As proeza de Sabina. Sabina é muié dereita, Munta honestidade tem, Não apóia nem aceita Brincadêra com ninguém. E dessas muié valente, Atrevida e renitente, Que, quando pega a falá, Nem o santanás resiste. [...] Pensando nesta senhora, Vem logo em minha mimora O que diz certo cantô Nos seus verso nordestino : ‘‘Paraíba masculino, Muié macho, sim sinhô!’’ (ASSARÉ, As proezas de Sabina, 2006, pp.54-55)

No intuito de percorrer as trilhas conceituais do significado de Identidade e Cidadania,

resta-nos manter um olhar instigante e revelador sobre a cultura e suas condições de produção

e difusão – neste caso, através da literatura –, pois só desta forma, verdadeiramente, será

possível estabelecer uma conexão eqüitativa das produções culturais.

Conforme destaca o prefácio da obra Cante lá que eu canto cá: filosofia de um trovador

nordestino, sob o título “Patativa do Assaré, poeta social”, Plácido Cidade Nuvens destaca:

“A figura legendária do poeta popular nordestino Patativa do Assaré, através da sua obra

poética, oferece incomparável contribuição ao estudioso de problemas humanos que pretenda

uma abordagem compreensiva da realidade do sertão nordestino” (2004, p.13). De forma

constitutiva, Nuvens descreve a poesia de Patativa, tendo em vista seu conteúdo social, como

obra refletora das discussões que envolvem os binários que a caracterizam; cidade/campo,

urbano/rural, distinguindo culturas como sendo uma superior a outra.

Buscando sempre impedir essa diferenciação injusta, Patativa transpõe para sua poesia

uma cosmovisão sedenta por direitos igualitários, é uma visão do mundo que o sertanejo intui

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dividido não entre cidade e campo, mas suas formas de ser, as duas culturas, uma rural e outra

urbana, com uma, a cultura urbana, invadindo avassaladoramente todos os rincões dos campos

e gerando um conflito cultural de conseqüências incalculáveis para a cultura do povo. Daí sua

pretensão, enquanto poeta representante do povo, não em tornar a cultura popular superior à

erudita, mas torná-las possíveis de serem compreendidas como formas diferentes sim, mas

não desiguais em grau de relevância.

Ao destacarmos a estrutura poética de Patativa, o poeta e cantor da roça, estamos

enfatizando a possibilidade que ele utilizou a literatura como uma forma especial de captar e

descrever, com aguda perspicácia, a realidade social de seus contemporâneos em toda sua

abrangência. Pois era como uma “necessidade” sua abordar temáticas locais, a fim de permitir

que sua voz ecoasse, através de seu canto, tendo ao fundo a sonoridade da justiça e da

liberdade.

Com base nisso, percebe-se claramente que sua poesia transformou-se num suporte

disseminador da dor do povo nordestino, que também era sua. Sua fidelidade às causas sociais

era impulsionada por um sentimento de justiça e liberdade, uma busca utópica – do não-lugar

– da verdade presente na vida de seus coetâneos, onde umas das matrizes (talvez a principal)

de sua poética é seu próprio cotidiano e as experiências por ele vivenciadas.

A fonte patativana tem se permitido participar, de forma espontânea, da produção de

traços identificadores do homem nordestino, representando-o de tal maneira que particulariza

e mantém sua identidade cultural sem transformá-la ou subtraí-la. Sem dúvidas, muitas são as

poesias que trazem em seu cerne a prática e a busca desta cidadania. Os exemplos

supracitados se constituem como mera ilustração de uma obra que valoriza a sensibilidade

poética do interiorano e que garante a perenidade de criações instintivas e enraizadas no

Nordeste.

Praticamente todos os estudos que envolvem o fazer poético de Patativa do Assaré nos

conduzem ao seu processo de elaboração fecundado a partir de sua lida, do seu lugar, do seu

sentir, da necessidade de expressar a vida e a busca da dignidade nordestina.

No artigo Canto da terra, da revista Globo Rural, Cláudio Cerri (1994) afirma que os

temas sociais que interagem livremente com o falar do poeta estão imbricados em aspirações

universais de justiça e igualdade, sem qualquer refinamento ideológico (ASSARÉ, 2005, p.

12). Reforma agrária, melhores condições de vida, direitos trabalhistas, enfim, todo tipo de

situação que envolvesse desejos reais de justiça e igualdade fazia da voz poética de Patativa a

voz do povo do sertão nordestino.

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Algumas dessas características são distinguíveis no poema Apelo de um agricultor.

Neste texto, o poeta clama ao “doutor” – o político da região – que o escute e atenda ao seu

pedido, cujo teor principal é alcançar sua aposentadoria. Percebe-se no tom do narrador o

desejo de contar a sua história e arrancar certa compaixão do “doutor”, lembrando-lhe que são

quatorze filhos, ou seja, quatorze votos, e que cada um deles representa um degrau para a

própria ascensão do político em foco:

Seu dotô, não lhe aborreço, Venho é fazê um pedido E como sei qui mereço, Espero sê atendido, Não quera se aborrecê, Pois ante de lhe dizê O meu desejo sagrado, Vou minha histora contá E o senhô vai iscutá Todo meu palavriado.

Vevi sempre a trabaiá De ferramenta na mão Tenho no rosto o siná Do quente Só do sertão. Tratando de agricurtura Já mostrei uma grande bravura [...] Sou pai de quatôze fio, Cabras macho de valô, Pois não tem nem um vadio, São todos trabaiadô, Cada um destes cabôco Aprendeu a lê um pôco, Mais porém mode votá Nunca nem um levo pau, Já são quatôze degrau Pra seu dotô se atrepá. [...] (ASSARÉ, 2004, pp. 167-168)

2.1.2 Cidadania em Patativa: um projeto que rompe fronteiras

Uma das vertentes mais fortes na poesia social de Patativa do Assaré é a cidadania

enquanto projeto de rompimento de fronteiras. Pois, como afirma o professor Gilmar de

Carvalho, no texto de apresentação de Cláudio Portella, já citado anteriormente, que

intensificam essa força, observamos que o canto do poeta “traz de modo contundente, a

complexidade das questões filosóficas da dor, da finitude, do amor e da cidadania” (ASSARÉ,

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2006, p. 12). É um autor que busca, no seu fazer poético, os direitos civis, direitos

importantíssimos para o homem matuto do Ceará e do Nordeste: vida, liberdade, propriedade,

igualdade perante as leis. Em outras palavras, o direito de ser cidadão.

Compreendendo melhor a extensão dessa vertente em Patativa, destacamos que a

história da cidadania se camufla na própria história da humanidade, uma história que vai dos

profetas sociais – e do deus da cidadania – com os Hebreus até a evidência do Renascimento

em Florença e Salamanca; e da Revolução Inglesa passando pela Americana até a Revolução

Francesa na conquista dos alicerces da cidadania (PINSKY e PINSKY, 2003).

Hoje, o termo cidadania apresenta um conceito de caráter histórico, processual e

atemporal. O que nos permite entender que seu significado sofre sentido de variação no tempo

e no espaço ao longo de seu desenvolvimento nas sociedades. Tal fato se dá tanto em relação

a uma abertura maior ou menor do estatuto de cidadão para sua população, ao grau de

participação política de diferentes grupos, quanto aos direitos sociais, à proteção social

oferecida pelos Estados aos que dela necessitam (PINSK, e PINSK, 2003, pp. 09-10).

Continuemos a observar essas particularidades do projeto cidadão do poeta nos versos a

seguir:

Defendendo a vida alêia, Vivi sempre a trabaiá E nunca fiz cara feia Promode imposto pagá, Pois todo aquele que tem Budega, loja, armazém E ôtras venda de valô O seu lucro nunca estraga, Pruquê o imposto quem paga É sempre o consumidô.

Fui um correto sujeito E nunca baruio fiz, Bradando cronta os dereito Criado em nosso país. [...] Não lhe minto e nem lhe nego Já tenho sessenta ano, Sofro munto, não sossego, Já vivo mole, sem prano; E por isto, nesta idade, Cheio de necessidade, Eu venho aqui lhe rogá Pra eu sê apusentado Com dereito carimbado, Por meio do FUNRURÁ. (ASSARÉ, 2004, pp. 168-169)

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Através destes versos, reconhecemos um Patativa que, embora não utilize sua poesia

enquanto manifesto político, não deixa de divulgar o povo do Nordeste, que vive em terras

arrendadas, que procura se fortalecer para lidar com a seca e com a exclusão social, que

muitas vezes tem seu direito cassado, que come do fruto da terra e não nega sua origem de

homem interiorano.

Com efeito, verificamos de forma expressiva um poeta que se faz esteta para se tornar

social, um poeta com claras tendências para a construção de um projeto cidadão ao cantar não

apenas as agruras de seu povo, mas que, como afirma, em citação, o professor Gilmar de

Carvalho, “rompe as barreiras das divisões arbitrárias impostas pelos preconceitos de parte

crítica e de alguns leitores... e se inscreve no telúrico, no amor” e faz uma poesia que ele

chama de cidadã (ASSARÉ, 2006).

O projeto intercultural, que contempla todas as formas de inclusão social, conduz-nos à

própria história da cidadania, a qual se instaura a partir dos processos de lutas que culminaram

na Declaração dos Direitos Humanos, dos Estados Unidos da América do Norte, e na

Revolução Francesa. Ambos os eventos serviram para romper o princípio de legitimidade

vigente até então, baseado nos deveres dos súditos, e passaram a estruturá-lo a partir dos

direitos do cidadão. A partir daí, todos os tipos de luta foram travados para que se ampliasse o

conceito e a prática de cidadania e o mundo ocidental o estendesse para mulheres, crianças,

minorias nacionais, étnicas, sexuais, etárias. Destarte, é possível afirmar que, na sua

concepção mais ampla, cidadania é a expressão concreta do exercício da soberania popular,

ou seja, da democracia (PINSKY e PINSKY, 2003, p. 10).

Em sua autobiografia escrita no livro Cante lá que eu canto cá, Patativa afirma aquilo

que estamos buscando elucidar em sua poética:

Não tenho tendência política, sou apenas revoltado contra as injustiças que venho notando desde que tomei algum conhecimento das coisas, provenientes talvez da política falsa, que continua fora do programa da verdadeira democracia (ASSARÉ, 2004, p. 16).

Estas palavras vêm confirmar o sonho do poeta na busca pela cidadania plena em uma

sociedade desigual, onde o acesso aos bens e serviços é restrito para muitos e progressivo para

poucos. Todavia, é perceptível na obra de Patativa que se os avanços da cidadania surgem

com a riqueza do país e a própria divisão de riquezas, eles dependem valorativamente também

da luta e das reivindicações, da ação concreta dos indivíduos. E se tais avanços vierem através

da literatura aí, então, o casamento é perfeito, uma vez que é possível que se entenda a

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literatura como forma de (re)interpretação da realidade num transitar, via direta, entre os

espaços fronteiriços que permeiam o plano da abstração e o mundo real. Além disso, é desse

mundo real que o imaginário literário – poético – se mantém e, conseqüentemente,

(re)interpreta-o, ou seja, a realidade quando transmutada pela literatura passa a ser estilizada,

a ter um estilo próprio.

2.2 Do projeto da cidadania à construção identitária do poeta matuto

É com base no entendimento que discorremos anteriormente sobre “cidadania” que

Patativa segue construindo a identidade do homem sertanejo. Todavia, em geral, toda a

identidade traçada pelos biógrafos da vida e obra do poeta mostra um Patativa essencialista

que, a todo instante, torna-o demasiado preocupado com as coisas que o cerca, quase como se

fosse um anjo da guarda do povo da sua terra. Um exemplo de tal essencialismo neste

processo identitário pode ser refletido a partir das palavras do professor Gilmar de Carvalho

(2002, p.15), que assim descreve a poética do cidadão comprometido:

Patativa passou a ser o cantor das coisas da sua terra, daí viria sua universalidade. Espécie de intérprete da beleza, do sofrimento e dos sonhos do homem do campo. Ele afinou seu canto nesta perspectiva e, pássaro que é, soltou-se, sem perder de vista sua inserção em uma realidade contraditória e perversa. E onde se acentua seu cristianismo primitivo, ansioso por partilha, pela igualdade das oportunidades e pela correção do social. Como se o mundo às avessas fosse o ideal de sua comunidade e dele, porta-voz daqueles que interferem pouco nas decisões de poder.

Na Serra da Santana, território idílico para Patativa, surgem outros poetas, reflexos da

identidade que nosso poeta foi desenvolvendo às custas de sua lida e filosofia de vida.

Segundo Carvalho (2002, p.50), a figura de Patativa foi fundamental para a vida da Serra de

Santana. O canto poético dele era ouvido nas festas, onde declamava seus versos quando

havia pessoas reunidas, dispostas a saber o que acumulava o poeta enquanto lidava com a

agricultura. Como o próprio Patativa afirma, ele passou a ser a “fonte”. Várias pessoas na

pequena Serra foram herdeiros desse fazer poético:

Convém insistir na relação que eles mantêm com a terra e no fato de a grande maioria ser constituída de pequenos proprietários para apontar em outra direção. É onde poderíamos falar em dignidade, na idéia de cidadania, na consciência de ser sujeito de ações, atores sociais e não meros figurantes.

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A influência de Patativa é algo que não se pode desprezar, pelo contrário, mas ela se soma a outros fatores e se dá não apenas no fazer poético, mas na qualidade de uma poesia comprometida com as questões sociais. A poesia desse grupo não é diletante, no sentido em que tem um papel social e político da maior relevância (CARVALHO, 2002, p.50).

De acordo com as colocações do autor supracitado, a influência de Patativa vem somar,

na acepção do imaginário católico/cristão, ao que poetas sertanejos chamam de dom divino,

como se tivessem sido escolhidos para serem porta-vozes de um povo, e não como se seus

poemas fossem resultantes da necessidade mesma de uma expressão, onde a voz passa a ser o

conduto para uma inserção num contexto mais abrangente, de interferência política, na qual o

dom se alia a uma espécie de missão – a do messias – e a Religiosidade Popular assume um

caráter leigo, reivindicatório, reinventador do sonho, onde se abre a possibilidade “de por

meio das palavras recriar o mundo na medida das utopias e das expectativas de cada um

deles” (CARVALHO, 2002, p.50).

O messianismo se apresenta novamente como um fenômeno que acompanha as lutas das classes oprimidas pela realização de seus sonhos e aspirações. Parece que não há como romper essa relação crônica existente entre o messias e sua função circunscrita ao mundo dos pobres. (ROSSI, 2002, p.36)

Opressão e libertação. Estes pólos gêmeos que se impõem à existência social, para

Baumann (2005, p. 13), se distintos, auxiliam na investigação das ambivalências que

impregnam o tema da identidade. E ambos os pólos constituem marcas efusivas da obra de

Patativa na busca de definir uma identidade cultural para o homem sertanejo: opressão (seca,

fome, miséria, abandono, exclusão, morte) e libertação (alteridade, cidadania, solidariedade,

vida). Opressão, do homem; libertação, de Deus. Este é, sem dúvida, um tema

tendenciosamente marcante na obra patativana, onde o poeta se utiliza da necessidade do

povo de colocar a culpa dos males mundiais em alguém e de dar nome a um “salvador da

pátria”:

Meu Jesus Reis dos Judeu, Saibo, Divino e profundo Que padeceu e que morreu Pra miorá este mundo Que pregou na Palestina A pura e santa doutrina De paz , amô e inguldade E deu na sua insistença Um inzempro de cremensa Para toda a humanidade.

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Isto tudo o Senhô fez Para o mundo consertá Sendo poderoso Reis, Quis a todos se umiá. Mas a farsa humanidade Não quis sabê das verdade Dos insinamento seu, [...] Os home sem piedade Não qué paz, nem qué amo. Não pratica a caridade Que o Senhô tanto pregou. Somente nas istrução Na ciença e na invenção Tem desinvorvido bem; Já entraro inté na lua, Mas a natureza é crua, Não tem pena de ninguém. Tá tudo disinvorvendo Nas descoberta importante, Mas o sabido vivendo A custa do inguinorante. Meu Jesus, meu Pai querido, Tudo aqui ta disunido, Iscute, eu vou contá Um causo muito penoso, Um inzempro monstruoso De ingratião patroná.

(ASSARÉ, 2004, Ingratidão, pp. 190-192)

Como outro exemplo do essencialismo contido na obra patativana, este poema traz “um

grito com densidade cultural”, onde a voz de destaque, na multidão de vozes que povoam a

sociedade, é a voz dos povos “oprimidos”. É uma voz que se levanta como crítica e denúncia

diante da cultura de massa, imposta pela inflexibilidade de uma sociedade exclusivista. Para

os povos oprimidos, o grito é um clamor, é, ao mesmo tempo, um grito de liberdade e também

de libertação. “Mais do que isso, é um grito com densidade cultural; uma manifestação que

consegue traduzir e denunciar as insuficiências e as contradições específicas em que vivem os

povos oprimidos” (ROSSI, 2002. p. 38).

Diante do exposto, há, na obra de Patativa e nas análises realizadas sobre ela e sua vida,

a personificação mítica em torno do poeta como um ser “sobrenatural” que existe para

“salvar” ou “salvaguardar” o povo de sua terra da opressão. Patativa seria, por assim dizer,

um “messias” moderno. Contudo, a custa de que o poeta permitiu construir essa identidade?

Até que ponto os críticos e pesquisadores de sua obra induziram-no a ser interpretado como

um dos últimos mártires dos novos tempos?

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Ao estudarmos os autores que se interessaram por sua vida e obra, verificamos o

“endeusamento” pelo processo identitário construído em torno do poeta para fomentar o

homem mítico e midiático que representou para seu povo e sua terra. Tal apoteose tem se

perpetuado continuamente, visto que os olhos analíticos sobre a obra de Patativa são sombras

de sua poética, não são olhos livres das marcas a que o poeta condensou sua obra. A empatia

e/ou envolvimento de quem estuda ou pesquisa sua obra é reflexo de seus próprios versos.

Mas, como não se envolver com a fonte patativana?

O que se observa, ainda, com a poesia Ingratidão, é um mundo completamente

fragmentado social e economicamente. Segundo Baumann (2005, pp. 18-19), em nossa época

“líquido-moderna”, o mundo que nos rodeia está dividido em fragmentos mal coordenados,

enquanto nossas existências individuais são fatiadas sucessivamente de episódios sutilmente

conectados e grosseiramente desprovidos de sentimentos bons. A cada dia, o homem se

distancia mais do outro e, nesta mesma medida, afasta-se de si mesmo e se esquece de quem é

ou o que representa. Atentemos, pois, para tais condições nos seguintes versos do poema, o

qual destaca a falta de interesse do homem pelo outro, a não ser que aquele “precise” de

alguma forma deste:

A históra do pobre João, Aconteceu mesmo aqui, Nesta invejada nação, Nas terra do meu Brasí. Sem um raio de esperança Começou derne criança A trabaiá no roçado, Pro causa das consequença Dos home sem consiença, Já nasceu sendo agregado. Por bem pequena quantia Trabaiando o dia intêro Aquele pobre vivia No seu trabaio grossêro E o patrão sempre a mandá João prali, João pracolá, Faça isto, e faça aquilo, E o pobrezinho às carrera Naquela grande cansêra Pulando quem nem grilo. E não era ele sozinho, O João não sofria só No mesmo estado mesquinho Sofrendo de faze dó, Sua mãe e duas irmã, Agarrava de dimenhã Na mesma labutação,

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Trabaiando, trabaiando Cada vez mais omentando A riqueza do patrão. (ASSARÉ, 2004, pp.192-193)

2.2.1 Um poeta em busca de sua identidade cultural

Quando se fala em identidade, recordamos o discurso pós-moderno de uma identidade

de caráter cultural, uma identidade movida pelo não fetichismo ou fixidez teorizada por Stuart

Hall e Zygmunt Baumann. Este último, por exemplo, coerentemente nos lembra que “uma

identidade coesa, firmemente fixada e solidamente construída seria um fardo, uma repressão,

uma limitação da liberdade de escolha” (BAUMANN, 2005, p. 60) do indivíduo, seria uma

identidade marcada pela não socialização com outras histórias, outras vidas, outras

identidades.

Neste mesmo espaço, encontramos abertura para as proposições de Giddens (2002, pp.

09-16) ao veicular em seus estudos as transformações inerentes à sociedade e à identidade.

Ele ressalta que a modernidade altera radicalmente a natureza da vida social cotidiana e afeta,

sobretudo, os aspectos mais pessoais de nossa existência, uma vez que, de um lado,

encontram-se influências globalizantes e, de outro lado, as disposições pessoais. Para o autor,

“a modernidade deve ser entendida num nível institucional; mas as transformações

introduzidas pelas instituições modernas se entrelaçam de maneira direta com a vida

individual, e, portanto, com o eu”, que, por sua vez, não é uma entidade passiva, determinada

por influências externas. Pois, ao forjar suas auto-identidades, independente de quão locais

sejam os contextos específicos da ação, os indivíduos contribuem para (e promovem

diretamente) as influências sociais que são globais em suas conseqüências e implicações.

Apesar de uma das escolhas preferenciais de Patativa em sua obra ter sido cantar sua

vida e sua gente, em nenhum momento, ele deixou de entender que essa mesma vida e essa

mesma gente pertenciam não apenas a um lugar, mas a uma região, a um país, a um

continente, que interage, que participa de vidas comuns e incomuns, de vidas que transitam

entre si, apesar das diferenças que as permeiam. Na sua voz, a diferença se fez igualdade. Na

sua poesia, a exclusão se fez inclusão. Ao mesmo tempo, o sentimento de “pertencimento” de

Patativa também deixa densas marcas em sua obra... O que talvez o tenham tornado, bem

como às pessoas que o estudaram, um poeta, cuja obra está intrinsecamente balizada por um

alto grau de idealização.

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Com efeito, a narrativa poética de Patativa simbolizaria bem sua fidelidade em amenizar

o cárcere da miséria dos injustiçados a que é submetido o homem do campo, produto de um

meio, que vai se degenerando, cada vez mais, como reflexo da ação social abrangente. Pois,

como enfatiza Candido (2003, pp.32-33), através das palavras de um economista

contemporâneo, Goodfellow, “o homem não precisa apenas de comida, mas de uma

organização para obter comida”. Então, como se sentir pertencendo a um lugar que traz tantos

conflitos?

O homem matuto, que nasce no mato – neste caso, no interior do sertão cearense – e

vive no mato, construiu uma identidade cultural pautada na sua escolha de vivenciar o

“pertencimento”, pois segundo Baumann, ao citar Jean Paul Sartre, não basta nascer num

lugar ou fazer parte de um determinado grupo social para ter uma identidade, é preciso

também neles viver e conviver, respectivamente (BAUMANN, 2005, pp. 55-56).

Sob essa perspectiva, para Baumann (2005, pp. 17-18), a idéia de ter um pertencimento

não vai ocorrer às pessoas enquanto o ‘pertencimento’ continuar sendo o seu destino, uma

condição sem alternativa, cômoda e aceitável. Faz-se necessário para a construção da

identidade, vivenciar o pertencimento, não de forma passiva, mas de forma que se recrie a

realidade em função de uma realidade melhor, possível, que ultrapasse a narrativa de ficção.

A idéia de ‘identidade’ nasceu da crise do pertencimento e do esforço que esta desencadeou no sentido de transpor a brecha entre o ‘deve’ e o ‘é’ e erguer a realidade ao nível dos padrões estabelecidos pela idéia – recriar a realidade à semelhança da idéia (BAUMANN, 2005, p.18).

Em Patativa, observa-se que ele não somente nasceu matuto, mas viveu uma vida

matuta, por isso construiu uma identidade cultural: a identidade matuta, que o permite lutar

em busca de dias melhores para si mesmo e pelos demais de sua comunidade.

A identidade cultural de Patativa foi, pois, produzida concomitante na relação entre

cultura e significado (HALL, 1997), através dos sistemas de representação. A representação,

compreendida como um processo cultural, estabelece identidades individuais e coletivas e os

sistemas simbólicos nos quais ela se tem por base estrutural e fornece possíveis respostas e/ou

soluções para as crises, conflitos e questões existenciais. Observemos estes fragmentos:

Sou matuto sertanejo, Daquele matuto pobre Que não tem gado nem quêjo, Nem ôro, prata, nem cobre. Sou sertanejo rocêro,

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Eu trabaio o dia intero, Que seja inverno ou verão. Minhas mão é calejada, Minha péia é bronzeda Da quintura do sertão.

(ASSARÉ, 2004, Vida sertaneja, p.75)

O poeta, para se firmar no seu essencialismo, não apenas se diz matuto, mas afirma

viver uma vida de matuto. Sua existência, experienciada no mato, permitiu-lhe construir uma

identidade que vivencia o pertencimento ao lugar ou ao grupo social de que faz parte. Daí a

“necessidade” de cantar o sertão, o mato, tal qual ele se apresenta para o poeta, uma vez que

ele está cantando nada mais, nada menos, do que o seu próprio viver. Com profundo orgulho

de ser matuto, o poeta consegue fazer da sua poesia um método de sociologia:

Por força da natureza Sou poeta nordestino Porém só canto a pobreza Do meu mundo pequenino. Eu não sei cantá as gulora, Também não canto as vitora Dos herói com seus brasão, Nem o má com suas água... Só sei cantá minhas mágua E as mágua de meus irmão. Canto a vida desta Que trabaia inté morrê Sirrindo, alegre contente, Sem da fé do padecê, Desta gente sem leitura, Que, mesmo na desventura, Se sente alegre e feliz, Sem nada sabê na terra, Sem sabê se existe guerra De país cronta país. [...] Eu canto o sertão querido, A fonte dos meus poema, [...] Sou sertanejo e me gabo De já tê visto o vaquêro, Atrás do novio brabo Atravessá o tabulêro Amo a vida camponesa, Nunca invejei a beleza E a fantasia da praça. Eu sou irmão do cabôco, Que ri, que zomba e faz pôco Da sua própria desgraça.

(ASSARÉ, 2004, pp. 75-76)

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O poeta social precisa de ser entendido como um intelectual. Através de um método

próprio de fazer Sociologia e Filosofia, Patativa é, usando a fala de Gilmar de Carvalho

(2002, p. 31), “um intelectual no sentido do que formula seus poemas e de sua interferência

no mundo, com a força de seu talento e a legitimação de sua sabedoria”. Identidade e

cidadania, num processo constitutivo de produção, pressupõem conquistas do poeta social.

2.3 O canto do poeta matuto entre confluências éticas e estéticas

Sua obra é como uma grife, espécie de fala que existe como suporte para traduzir o universal. A dicção ‘matuta’ nem de longe significa que ele não compreenda ou não saiba produzir poemas eruditos... sua linguagem ‘matuta’ é apenas uma opção porque o pássaro que se nos apresenta, é liberto. (FEITOSA, 2001, pp. 08)

Patativa em sua poesia nos permite não esquecer a possibilidade de aceitação entre o

bem e o belo, por isso remete o leitor de sua obra a uma discussão apropriada sobre ética e

estética.

Na verdade, é possível abordar o caráter de uma poesia matuta que transita de forma,

diríamos até, disciplinar entre o bem e o belo, como afirma a possibilidade desta união a

filósofa Amélia Valcárcel (2005, p. 01). Para a autora, as relações entre o bem e o belo, ou

seja, entre a ética e a estética são históricas. Em outras palavras, a poética de Patativa

facilmente se nos apresenta com a possibilidade de reincidir numa prática que tende a buscar

na sua fonte características de uma poesia do bem (impregnada por um modo ético de fazer

poética) e, ao mesmo tempo, bela (esteticamente elaborada para representar criativamente o

povo).

Na poesia de Patativa, nada é puramente ético (bem) nem puramente estético (belo),

todavia ambas as práticas se harmonizam com o tempo e o espaço de um poeta que viu na sua

contemporaneidade a probabilidade de ajudar os seus coetâneos. O bem e o belo se

constituem ações intrapessoais e têm na literatura deste autor o espaço propício para se

fazerem “amigas”, palavras sincrônicas num mesmo diálogo.

No poema que estamos analisando, o ético e o estético são superabundados pelo autor.

Seus versos, embora simples, são extremamente eficazes para as propostas alvos que sugerem

uma gama de intencionalidade e permitem o discurso ético sem deixar a beleza ofuscada do

linguajar, do viver do homem sertanejo.

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Para Valcárcel (2005), em estado puro, a ética se ocupa do bem e a estética, da beleza.

Neste mesmo parecer, portanto, a essência social contida na poesia patativana transita com

extrema liberdade entre o bem e o belo.

Por bem, conforme nosso senso comum, entende-se tudo aquilo que conduz o homem

ao caminho da compreensão, da alteridade, da utilidade. Segundo Ferreira (2002), o bem é a

qualidade atribuída às ações e obras humanas que lhes confere um caráter moral. Para o autor,

esta qualidade se anuncia através de fatores subjetivos (o sentimento de aprovação, o

sentimento de dever) que levam à busca e à definição de um fundamento que os possa

explicar, podendo ter seu significado facilmente confrontado com o vocábulo “ética”.

Por belo, entendemos o que se considera agradável aos sentidos, aquilo que, em dados

momentos, como ressalta Ferreira (2002), pode até ser conceituado como algo “gostoso”,

também extensivo a todos os sentidos. Citado por Amélia Valcárcel (no texto de

apresentação), Cervantes destaca: “A beleza é uma carta de apresentação que sempre

predispõe a seu favor”, ou seja, a favor de quem a tem.

A luta entre os belos e os bons é desigual: teria sempre os primeiros como vencedores, porque os segundos devem provar o acerto de seus atos... a ética não tem fama de bonita, ainda que merecidamente. É rígida, severa, até mesmo tímida ou chinfrim. Por isso gosta de se fazer amiga da estética para ver se dela adquire algo e procura então usar seus adornos: a criatividade, a ironia, a graça. (VALCÁRCEL, 2005, p. XXI)

Pelo exposto, o bem sem o belo ou vice-versa parece algo inacabado, algo fragmentado

que sempre se verá diante da falta de alguma coisa indispensável sem uma das partes, apesar

de suas polissêmicas (individuais ou não) interpretações. Afirma a autora supracitada: “O belo

é o símbolo do bem moral” ao que Kant, citado por ela, conclui sobre a dialética do juízo

estético: “o belo e o bem se reconciliam assintoticamente no supra-sensível, o mesmo lugar

em que a faculdade teórica e a faculdade prática se tornam uma só” (2005, p. 13).

Iniciamos o embate entre ética/estética com o famoso aforismo de Wittgenstein: “A

ética e a estética são uma coisa só” (VALCÁRCEL, 2005). O que dizer, neste sentido, da

ética e da estética da poesia de Patativa do Assaré?

Certamente, vislumbrar as confluências aí sugeridas nos permite sair da estética para a

ética, e vice-versa, com a mesma velocidade que entendemos a fonte patativana como uma

literatura que entre o bem e o belo consegue manter o teor social, testemunhal e dialético de

uma obra marcada pela cultura popular.

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A estética dos versos de Patativa não se encontra nos ajustes quase perfeitos da norma

culta de nossa língua, mas no que é possível “ver e/ou ler” além das lentes e das letras das

regras gramaticais. O poeta apresenta uma ética pessoal, valorizada pelos versos esteticamente

bem elaborados, como verificamos nos versos de Ingém de ferro:

Ingém de ferro, você Com seu amigo moto, Sabe bem desenvorvê, É munto trabaiadô. Argúem já me disse até E afirmo que você é Progressista em alto grau; Tem força e tem energia, Mas não tem a poesia Que tem um ingém de pau. O ingém de pau quando canta, Tudo lhe presta atenção, Parece que as coisa santa Chega em nosso coração. Mas você, ingém de ferro, Com este horroroso berro, É como quem qué brigá, Com a sua grande afronta Você tá tomando conta De todos canaviá. (ASSARÉ, 2004, pp.92-93)

Neste poema, Patativa reconhece o progresso através da chegada do engenho de ferro,

suas conseqüências positivas e negativas: positiva, ao afirmar que tem força e energia para

fazer do canavial uma excelente produção; mas não deixa de enfatizar o ponto negativo de seu

uso: o alto barulho que provoca poluição sonora, diferentemente do engenho de pau, que ao

moer a cana, seu som parece poesia.

Para Bakhtin (2003, p. 29), a objetivação ética e estética necessita de um poderoso

ponto de apoio, situado fora de si mesmo (do indivíduo), de alguma força efetivamente real,

de cujo interior contemplativo permitisse-lhe ver-se como outro, enquanto sua imagem

externa, viva e incorporada ao conjunto externo vivo. E foi o que Patativa fez com boa parte

de sua obra: ele via o outro, nele se espelhava, para então fazer poesia, uma poesia

marcadamente social com vias éticas e estéticas profundas e idealizadoras. Tais características

são visíveis nos versos de O agregado, cujas possibilidades de interpretação nos direcionam à

dor do outro, que se torna também a dor do poeta. Neste contexto, sob a perspectiva do

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conceito da alteridade17, o sentir do outro é manifestado pela subjetivação do poeta. É uma

dor particular demais no falar, mas coletiva demais no sentir:

Quem veve no luxo, somente gozando, Dinhêro gastando sem mágoa e sem dô, Não sabe, nem pensa e também não conhece O quanto padece quem mora a favô. Meu Deus! Como é duro se uvi o lamento, O grande trumento do triste agregado! Osente das coisa mais boa da vida, De rôpa rompida, sem cobre, coitado! (ASSARÉ, 2004, p.339)

Sendo visto como um poeta preocupado com o projeto social, o que já foi afirmado

anteriormente, Patativa permitiu que sua poesia se tornasse uma “arma” em defesa de algumas

minorias presentes na sociedade; por isso, tratar de temas que envolvessem o ser cidadão

estava intrínseco em seu fazer poético e na sua vida, enquanto homem. Há, portanto, uma

imbricação presente entre natureza e cultura em Patativa. É uma poesia que se propõe em

contínuo processo de construção, onde o autor:

[...] lança as bases de questões em que emerge uma ética pessoal, que passa por uma estética e, por isso, ganha uma dimensão mais ampla, de uma fala que é poética e é histórica. Apesar de toda a força de uma dicção inaugural do mundo e da ancestralidade de que se reveste, é a fala de um homem político, que diz sobre outros, em determinadas condições econômicas e sociais, fala que é enunciada de um lugar específico, apesar de sua universalidade, em que subjaz uma regionalidade que, longe de limitar, reforça esse cosmopolitismo sem fronteiras, a partir de todo um substrato de Humanidade. (CARVALHO, 2002, pp. 39-40)

Quando lemos os versos da segunda estrofe de A voz do milho abandonado, parece-

nos que o “grameal” de que desabafa o “milho” (sujeito-personagem do poema), conduz o

leitor à comparação de que toda situação anti-humanista é daninha à vida vivida. Tudo o que

prejudica e impede o homem de viver com dignidade, justiça e liberdade lhe seria, neste caso,

algo daninho. Conceitos caros a Patativa, como podemos observar:

17 Nesta abordagem, este conceito é entendido sob a perspectiva discutida por Todorov (1993, p.25) em Nós e os Outros, uma obra que não conceitua o termo ALTERIDADE, mas que nos induz a uma reflexão pertinente sobre seu significado ao afirmar que “todos os homens são iguais, mas nem todos o sabem, alguns se crêem superiores aos outros, e é precisamente nisso que são inferiores; portanto, nem todos os homens são iguais”. Aqui, o estudioso nos leva à reflexão sobre o grupo cultural e social ao qual se pertence e os que não fazem parte dele, e quando assim entende, observamos que Patativa se fazia igual aos outros – seus coetâneos – para, através de sua poesia, estilizar a realidade do homem nordestino.

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Ai di di Patativa e sua gente Pensam que manga é pequi Me enterraram neste chão, Não voltaram mais aqui, O mato era tão fechado Que não sei como nasci. Ai di di Dentro deste grameal Nunca mais o sol eu vi Já tem ninho de rolinha De campina e bem-te-vi E tem galho onde se arrancha Boca-torta e enxuí.

(ASSARÉ, 2006, 215)

E sendo Patativa do Assaré um poeta que simboliza com familiaridade o desejo de ser

uma voz dos excluídos, cujas idéias humanitárias transcendem o tempo e reluzem por toda a

sua obra, situamos nossas expectativas no poder que a palavra tem, na arte literária, de

organizar o que está desorganizado.

Tal discussão nos conduz a outra reflexão de Valcárcel sobre os estudos de

Schopenhauer, o qual concebe o seguinte: “a ninguém firas ou faças mal, mas ajudas se

podes”, deste mandamento se resulta toda a moral merecedora deste nome e, conforme

palavras da autora: “Dele obteremos o pouco do bem cotidiano e acessível, e da beleza,

proporcionada pela arte, nosso único repouso” (2005, p. 19). Além disso, em Patativa, a

esperança é um sentimento que se reflete na essência de sua poesia, esperança por dias e

tempos melhores para o povo.

Steiner (2003) descreve que a esperança e o medo são as duas ficções supremas

deflagradas pela sintaxe. Ficções estas, segundo ele, que dependem tanto uma da outra quanto

da gramática.

A esperança inclui o medo do incumprido; o medo carrega em si uma semente de esperança e a sugestão de uma superação. Mas é o estatuto da esperança, hoje, que é problemático. Em qualquer nível que não o do trivial ou o do momentâneo, a esperança sempre representa uma inferência transcendental. (STEINER, 2003, p.15)

Talvez Patativa do Assaré não tivesse refletido tais conceitos da forma que os filósofos

estudados por Amélia Valcárcel e outros fizeram. Contudo, certamente, ele, enquanto

“filósofo trovadoresco” que foi em sua geração, buscou intuir nos versos matutos, fossem

cantados ou escritos, a transcendência imanente de “filosofias” próprias de uma vida marcada

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pela luta, sofrimento, miséria, seca, fome, trauma. Sua obra, devido ao tom marcante do

essencialismo, permite-nos refletir sobre o entendimento de que se havia uma “missão” – e

muita esperança – a ser cumprida por ele na Terra, esta seria a reivindicação constante de uma

vida melhor para o homem do sertão nordestino.

2.3.1 O local da ética nas relações interculturais

Discutir os aspectos valorativos das questões éticas, na contemporaneidade, torna-se

demasiado relevante para o processo intercultural que ora se desenvolve nos estudos culturais.

O espaço que esta discussão abre para as assertivas provenientes das questões éticas se faz

hoje sem fronteiras, uma vez que, nas relações interculturais, o intercâmbio das diversas

manifestações das artes e a cultura são premissas para que entendamos o caráter ético aí

identificado e necessário para os estudos culturais.

Quando nos dispomos a entender o local da ética nas relações estabelecidas pela

interculturalidade, buscamos como fonte de entendimento dos termos aqui colocados uma

conceituação prévia a fim de melhor desembocarmos no teor do estudo proposto: ética e

relações interculturais.

Inicialmente, tratamos o termo ética a partir da compreensão dada por Wilhelm Dilthey,

cuja obra é estudada por Ricardo B. di Napoli (2000) e focaliza as questões éticas como base

para a compreensão do outro. Seu entendimento sobre ética foi responsável pelo

descortinamento das posteriores reflexões do autor sobre a lógica das Ciências do Espírito

fundadas nas ‘necessidades práticas da sociedade’, ou então, ‘nas necessidades’ da vida

prática (NAPOLI, 2000, p. 19). A concepção ética diltheyana pressupõe um estudo

antropológico-psicológico do homem. Para Dilthey, sem se dizer o que o homem é, não se

pode dizer como ele pode agir moralmente.

A ética, nesta perspectiva, tem seu local na disponibilidade do homem em se aceitar e

aceitar o outro sem restrições, incondicionalmente. A consciência de si do “eu” não se dá,

portanto, fora de sua relação com o mundo, o seu mundo. Dilthey parte da idéia de que o agir

humano já está sendo orientado, de alguma forma, na própria experiência de vida do homem,

por valores e deveres presentes na Cultura e na sociedade em que ele vive. Na obra

diltheyana, a ética é tratada sob duas perspectivas: a individual e a social. A primeira, procura

mostrar as determinações da vontade individual e o surgimento da consciência moral, tendo

por pano de fundo a educação do sentimento de estranhamento em face do outro e da

constituição da pessoa; já a segunda perspectiva, a social, é investigada a partir de suas

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determinações culturais, porque está determinando a relação do reconhecimento do eu para

com o outro.

As relações interculturais, por sua vez, são discutidas aqui de uma forma intimamente

ligada às questões éticas, a partir do encontro cultural, o qual muitas vezes está associado ao

encontro de “dois” que participam de tradições culturais diversas – um exemplo disso, é o

encontro do homem da cidade com o homem do mato. Essas relações interculturais, neste

sentido, serão veiculadas aqui independente dos demais neologismos que elas nos reportam:

multiculturais, transculturais, pluriculturais.

O conceito de interculturalidade, diferentemente do de multiculturalidade,

transculturalidade ou pluriculturalidade, traz uma carga irrefutável de valores, relações e

ideologias. Pois, refere-se ao grau de verticalidade ou horizontalidade do diálogo e das

relações entre os povos e suas culturas na difícil estruturação de nossas sociedades como

sociedades plurais, nas quais se reconhece o direito de todos os seus componentes a defender

e cultivar suas visões cosmológicas particulares e suas próprias tradições sem menosprezo e

com total respeito pelas demais. É com base neste parecer que encontramos o local da ética

nas relações interculturais, já que nessas relações não há um limite predisposto, mas uma

aceitação inevitável das diferenças culturais e que são internas às sociedades.

As condições nas quais se dão as relações interculturais têm se traduzido, em geral, na

violência contra, por exemplo, os grupos marginalizados dispostos em nossa sociedade:

negros, pobres, mulheres, deficientes, homossexuais, crianças, etc. A cada dia, esses grupos,

através dos movimentos sociais, clamam por mais respeito, mais eqüidade, mais inclusão.

Sem dúvida, tendo por pressuposto fundamental o entendimento ético do “conviver”

pacificamente. Estes grupos têm se destacado, em vários estudos na contemporaneidade,

exatamente por enfatizarem a necessidade de serem “aceitos” como grupos pertencentes a

uma mesma sociedade, mas com diferenças inerentes à sua diversidade.

De acordo com Fleuri (2005), a intercultura refere-se a um complexo campo de debate

entre as variadas concepções e propostas que enfrentam a questão da relação entre processos

identitários socioculturais diferentes, focalizando especificamente a possibilidade de respeitar

as diferenças e de integrá-las em uma unidade que não as anule. Para ele, a expansão do termo

intercultura vem se configurando como uma nova perspectiva epistemológica, ao mesmo

tempo em que se o compreende como um objeto de estudo interdisciplinar e transversal, no

sentido de tematizar e teorizar a complexidade (para além da pluralidade ou da diversidade) e

a ambivalência ou o hibridismo (para além da reciprocidade ou da evolução linear) dos

processos de elaboração de significados nas relações intergrupais e intersubjetivas,

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constitutivos de campos identitários em termos de etnias, de gerações, de gênero, de ação

social.

Para além de uma compreensão rígida, hierarquizante, disciplinar, normalizadora da

“diversidade cultural”, emerge da interculturalidade o campo híbrido, fluido, polissêmico, ao

mesmo tempo trágico e promissor da “diferença”, que se constitui nos entrelugares

(BHABHA, 1998) e nos entreolhares das enunciações de diferentes sujeitos e identidades

socioculturais.

Interculturalidade, pois, implica numa nova formulação filosófica e metodológica da

historiografia na pesquisa da subjetividade e da formação do ethos cultural. O tratado e o

discurso sobre a interculturalidade é sempre, a priori, um discurso sobre as culturas – neste

caso, um discurso sobre as culturas e a literatura. Assim, não se deve esquecer que a cultura

realiza-se ao nível dos sujeitos históricos concretos e como sujeitos coletivos que dão e

seguem dando vida à mesma.

A presença da temática da interculturalidade foi, entrementes, no decurso dos tempos,

sempre uma grande dificuldade para a articulação dos afazeres da filosofia, da historiografia e

da antropologia cultural, que se iniciou no final do século passado. Aqui mesmo, convém

ressaltar a dificuldade que alguns historiadores, principalmente os de formação positivista,

encontram no que fazer da historiografia ou das teorias da história, face à filosofia da história.

Grande parte do desenvolvimento da questão da identidade e da historicidade foi

possível elevar ao nível da discussão acadêmica a dimensão da interculturalidade que se

ensejou com o desenvolvimento da Antropologia, principalmente da Antropologia cultural,

iniciada no final do século passado, e alcançando um altíssimo nível de seu desenvolvimento

no século XX (DIEHL, 2002).

As principais reformulações hermenêuticas sobre as fontes dessa problemática

aconteceram nas últimas décadas que, por um lado, foi possível, graças à utilização de uma

nova metodologia da pesquisa histórica; aqui poderiam ser destacadas as inúmeras dimensões

desafiadoras do uso do método da história oral, e por outro lado, a introdução do conceito de

alteridade na filosofia e na literatura que trata da filosofia hermenêutica. Categorias estas,

empregadas principalmente para fundamentar as diversas formas de reconhecimento da

alteridade absoluta histórica do outro homem (TODOROV, 1991).

Se o reconhecimento da alteridade do outro homem dependesse em sua raiz do temor de

perder o ganho materialista ou em termos de economia, em conservar interessadamente nosso

ser, a ética, por exemplo, seria um capítulo da ontologia do materialismo histórico e da

ontologia econômica. A moral seria, no máximo, como um instrumento de conservação do

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que serviria um ente já definido para, mediante um pacto entre iguais em guerra, poder

preservar em seu ser o máximo possível. O sujeito reconheceria o outro como um igual, como

alguém mais poderoso ou menos poderoso e, dependendo disso, faria seus cálculos e

estabeleceria a relação que mais lhe conviria: poder, pacto e submissão.

Em Conversa de Matuto (ASSARÉ, 2006, pp.286-290), Patativa traz o diálogo entre

Zé Fulô e João Moiriço, dois homens do mato separados da sociedade e unidos, entre si, pela

desigualdade social. Neste diálogo, trava-se um embate sobre o político que merece a

confiança dos seus eleitores. Para Zé Fulô, o político que se apresenta na narrativa é

merecedor do seu voto e do voto dos seus amigos e familiares, pois há uma promessa de

construção de escolas e de melhoria de vida do povo através da educação. Observa-se, ao

longo da narrativa, que o político não se interessou em conquistar outras pessoas, mas fazer a

cabeça de um da comunidade, que seria sua voz junto aos demais.

Isto posto, a relação que se vê entre Zé Fulô e o candidato se dá entre um mais poderoso

e um menos poderoso, onde dela se depreende: poder, um “dotô” e um “agricurtô”; pacto, um

vota e outro é eleito – pacto político –; e submissão, por questões político-sociais, de Zé Fulô,

que precisa acreditar nas promessas pra vislumbrar melhores dias, e do candidato, que precisa

“pedir” – utilizando-se do tom de promessa – o voto da comunidade para se eleger ao cargo

público a que se propunha. Nesta relação, não se pode negar que há certa conveniência para

ambos, embora seja o tipo de relação que só venha confirmar o poder submisso da classe

popular em detrimento da classe mais favorecida. Não há uma opinião reflexiva acerca das

propostas do candidato por parte de Zé Fulô, apenas uma concordância e aceitação. Ou seja,

os versos a seguir representam atitudes ícones da maioria do povo no período eleitoreiro,

sejam candidatos, sejam eleitores, onde o projeto de cidadania está longe de ter qualquer tipo

de eticidade:

Zé Fulô: Meu amigo João Moiriço, Eu agora fiquei certo Que nóis já tamo bem perto De saí do sacrifico. Eu onte uvi um cômiço De um Dotô que é candidato, Home sero e muito isato E ele garantiu que agora Vai havê grande miora Pra o pessoá do mato. No comiço ele falou

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Que depois que ele vencê, Vai com gosto protegê A cada um inleitô. O povo trabaiadô Que padece no roçado, [...]

A questão das diferenças, do eu e do outro, do nós e dos outros, é ontologicamente

problema social porque assim tem sido construído pelas mentes individuais da cultura

dominante. Mais que a diversidade, o verdadeiro problema científico coloca-se antes com a

unidade, com a morte da diversidade, em todos os níveis. Nos próximos versos do poema

Conversa de Matuto, verificam-se tais afirmações na medida em que eles corroboram para

afirmar as discussões ora sugeridas, onde o próprio Zé Fulô chega a defender o candidato e a

ver um futuro cheio de possibilidades para seus filhos nas promessas do mesmo. Há uma

aceitação sem precedentes do discurso dominante:

Aquele é home de bem, Quando desceu do palanco, Falou com preto, com branco, Com rico e pobre também; Ali não ficou ninguém Pra ele não abraçá, [...] E pediu que eu procurasse Com munta delicadeza Aqui nesta redondeza Gente que nele votasse Que depois que ele ganhasse Ia as coisa resorvê. A premêra era fazê Aqui no nosso lugá Um grande grupo escola Pra nossos fios aprendê. [...] Eu tenho isperança e fé Nas promessa do dotô E pedi a ele eu vou Mais tarde, se Deus quisé, O meu fio faz figura, Saindo da agricurtura, Este cansado chamego E arranjando um bom imprego Lá dentro da Prefeitura...

A dialética identidade/alteridade é fecunda na produção de juízos e atitudes

etnocêntricos. Nos versos acima, verifica-se que os valores e modos de pensar que não são

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nossos não nos parecem naturais, uma vez que os modos de pensar entre Zé Fulô e o

candidato estão sujeitos às próprias necessidades e condições sociais. Lembramos que o

contato entre identidades levou, em todas as épocas, a que os povos classificassem a diferença

humana ora como não humana, ora como de selvajarie ou de "barbárie"18. Lévi-Strauss coloca

bem essa questão em “Raça e História” (1973) ao dizer que certas tribos primitivas se

chamam de homens o que não admitem para as outras. Para os sujeitos pensantes, a

humanidade acaba nas fronteiras da tribo.

Essas tribos, todavia, têm suas fronteiras não delimitadas, e até ultrapassadas, quando,

na tentativa de explorar o outro, muitos se fazem iguais e, depois, de conquistados os

“tesouros”, retornam para seus mundos e abandonam aqueles que, sob qualquer promessa de

uma vida melhor, sempre lhe foram diferentes. Nos versos a seguir, João Moiriço, de maneira

bem mais reflexiva do que Zé Fulô, procura fazer com que o amigo busque entender a

importância do voto, enquanto responsabilidade social de cada um, como decisão pessoal,

sem que opiniões divergentes ou discursos dominantes venham influir naquilo que chamamos

de conquista da cidadania:

João Moiriço: Meu amigo Zé Fulô, Vou lhe dizê a verdade: É véia a nossa amizade Porém você se enganou. Pode pedi, que eu lhe dou Uma quarta de fejão Uma arroba de argodão E cinco metro de fumo, Tudo com gosto lhe arrumo, Porém o meu voto, não! [...] Meu amigo Zé Fulô, Não siga por esta tria, Você ainda confia Em premeça de dotô? Aquilo que ele falou É somente imbromação. Quando é tempo de inleição Esse home se prepara Trazendo um santo na cara E o diabo no coração. Você não dê confiança, Pois quando a campanha vem Com ela chega tombem

18 Ver Raça e História de Lévi-Strauss, que vai tratar dessa questão de forma mais profunda.

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A pabulage e a lembrança. Às vez os matuto dança Com as fia do doto, É aquele grololô, [...]

João Moiriço, personagem-narrador da segunda parte do poema, numa atitude de não

aceitação das palavras de promessa do candidato, do “dotô”, visto que analisa de uma forma

mais livre o que acontece com essa de poder, pacto e submissão. O personagem reconhece as

diferenças que há entre eles, mas não aceita que o poder dominante sombreie suas decisões.

Aí, a ética contida nas palavras de João Moiriço promove a construção de um juízo de valor

pessoal que ressoa na prática de atitudes cidadãs. Os próximos fragmentos vão de encontro a

essas discussões, ilustrando-as:

Mas depois que passa o preito, O desmantelo renova, Palavriado não prova A bondade sujeito. Pra garrafa deste jeito Não iziste sacarrôia. Não quera fazê iscôia Se não você sai perdendo, Este dotô tá inchendo As suas venta de fôia. Isto já vem do passado E a pisada ainda é essa, Por causa dessas premessa Meu avô foi inganado, O meu pobre pai, coitado! Foi inganado tombem E eu, que já conheço bem, Pra votá sou munto franco, Mas porém só voto em branco, E não confio em ninguém [...] E se você se afobá E pegá com lerolero, Zangado, falando sero, Querendo se revortá, Pedindo pra lhe pagá Todas premessa que fez, Ele, com estupidez, Fica cheio de maliça, Dá logo parte à puliça E lhe mete no xadrez. Portanto, vá se aquetá Não entre neste curtiço. [...] (ASSARÉ, 2006, pp. 290-292)

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É, portanto, a partir da construção dessa analogia: questões éticas e relações culturais,

que encontramos o diálogo da obra de Patativa do Assaré com sua ética, com sua

compreensão do outro. Ao destacarmos a estrutura poética de Patativa, o poeta e cantor da

roça, estamos enfatizando a possibilidade que ele utilizou – a literatura – como uma forma

especial de captar e descrever, com aguda perspicácia, a realidade social dos nordestinos em

toda sua abrangência. Para enfatizar esta característica na fonte patativana, relembramos os

versos do poema Prefeitura sem Prefeito:

Nesta vida atroz e dura Tudo pode acontecer, Muito breve a de se ver Prefeitura sem prefeito Vejo que alguém me censura E não fica satisfeito, Porém, eu ando sem jeito, Sem esperança e sem fé, Por ver, no meu Assaré Prefeitura sem prefeito.

Os versos, na íntegra deste poema, corroboram para o aspecto constitutivo de mais

uma vertente de caráter social na poesia de Patativa: a ética. A interpretação de seu

significado realizada pelo poeta nos permite entender que a construção de uma sociedade se

dá sempre a partir dos elementos idealmente criados e dos elementos externos que são

internalizados pela cosmovisão do indivíduo a partir de suas experiências psicológicas,

sociais, da sua capacidade intelectual e de seu imaginário19.

Pois, era como uma necessidade ética pessoal, tendo em vista sua observação no

mundo da existência das relações interculturais, abordar temáticas locais a fim de permitir que

sua voz, seu canto – de uma eticidade peculiar – ecoasse tendo ao fundo a sonoridade da

justiça e da liberdade. Apenas para ilustrar esta faceta do poeta, trazemos a poesia Prefeito

com Prefeitura, que intensifica o caráter ético de sua obra:

O que eu tenho publicado O leitor sabe direito, Eu publiquei no passado “Prefeitura sem Prefeito” Porém, hoje é diferente, Falo para toda gente E sei que ninguém censura, Com esperança e com fé

19 Imaginário, nesta pesquisa, define-se de acordo com os estudos sobre o imaginário desenvolvidos por Gilbert Durand (1982): “imaginário é o conjunto de imagens que constitui o capital pensado do homo sapiens”.

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Temos no Assaré Prefeito com Prefeitura. Digo com muito respeito E mostro a prova real, Oliveira é o prefeito Da energia rural, Com o trabalho que fez, Nosso povo camponês Se livrou da treva escura E hoje está muito bem Provando que Assaré tem Prefeitura com Prefeito. Vive muito satisfeito Nosso povo camponês O que Oliveira tem feito Outro prefeito não fez, Dentro de sua gestão Levou iluminação Ao campo e ao arraial, O que eu digo é bem aceito Oliveira é o Prefeito Da energia rural. Me deixa entusiasmado Sua administração, Pois muito tem trabalhado No setor da educação, [...]

Através desses versos, se comparados com os versos de Prefeitura sem Prefeito,

observamos que Patativa sabe perfeitamente a hora em que deve usar sua voz como eclosão

de protesto e a hora em que deve usar sua voz em tom de agradecimento. A poesia Prefeito

com Prefeitura foi desenvolvida para homenagear o prefeito do Assaré/CE Antônio

Benjamim de Oliveira Filho, que como político local, nas palavras do poeta, soube “honrar”

as necessidades de seu povo. Observa-se, ainda, que a poesia de Patativa responde ao seu

próprio apelo: se ele considerasse importante denunciar, protestar, era o que sempre fazia; se

ele considerasse importante lisonjear, agradecer, assim respondia na mesma medida:

Trabalha muito animado, Sacrifício não lhe abate, Porque tem sempre a seu lado Doutor Tasso Jereissate, Esta sadia amizade Lhe dá oportunidade Na sua boa atitude, Com o nosso governador

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Foi como que interventor Para a construção do açude.[...] Com licença do prefeito Gritou o povo satisfeito Com um tom de mangação: Vai para lá, carro pipa! Agora ninguém constipa Com tua poluição! Disse a verdade completa Do campo até a cidade, Porque sou velho poeta Da justiça e da verdade Eu nunca fui lisonjeiro Gosto de ser verdadeiro E dar a prova segura Digo e ninguém ignora Nosso Assaré tem agora Prefeito com Prefeitura. (ASSARÉ, 2006, pp. 131-134)

Ética pessoal... Mais do que um aspecto moralista em Patativa parecia ser uma postura

de vida, como afirma Carvalho (2002, p. 99): “Impressionante sua dignidade, sua altivez e sua

ética sertaneja, marcada por códigos rígidos como lealdade e coerência e, ao mesmo tempo,

pela generosidade e compaixão.”

Para o crítico, Patativa enuncia uma poética que parte da ancestralidade para atualizá-la.

Daí a sua relevância - independente do essencialismo nela sugerido, enquanto literato popular,

uma vez que não buscou fazer de sua poética uma anedota ou algo parecido. Quando traz um

tema atual – Carvalho (2002) destaca a reforma agrária, a televisão e os meninos de rua –, ele

“trata o cotidiano com a grandeza do épico e a eternidade do clássico”, permitindo que a

poesia matuta seja universalizada em todo tempo e lugar.

Daí sua obra, apesar de ser caracterizada por um alto grau de essencialismo em sua

estrutura semântica, não deixa de estar fomentada atualmente por uma crítica positiva, que a

trata com todas as pompas e honras possíveis depreendidas do caráter popular/híbrido de uma

“literatura dos mundos” – temática que será discutida no próximo capítulo. Uma obra que se

torna ícone para a nossa literatura na medida em que contemporiza temas sociais e os trata em

tom de diálogo permanente.

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CAPÍTULO 3

UMA LITERATURA DOS MUNDOS: hibridação, memória e trauma na fonte patativana

uitas têm sido as tentativas, ao longo da história, de definir o termo

literatura. Críticos contemporâneos já a entendem como sendo algo

definível, sistematizado não pelo fato de ser ficcional ou imaginativa, mas, sobretudo, porque

emprega a linguagem de forma peculiar.

Eagleton (1997, p. 02), em seus estudos, já afirmava que “a literatura transforma e

intensifica a linguagem comum, afastando-se sistematicamente da fala cotidiana”. De fato, o

texto literário vem tratar de um tipo de linguagem que chama a atenção sobre si mesma e

demonstra sua existência material, uma vez que em literatura não se abstrai algo meramente

subjetivo.

Destarte, é no uso da sua variedade, de seu idioleto, que associamos o sujeito usuário de

uma língua a um determinado grupo social. Com efeito, vários fatores como a pronúncia de

determinados vocábulos, a opção pela seleção vocabular, os mecanismos morfológicos

identificam a região em que se vive, o grupo social do qual se faz parte, a situação em que se

encontra, etc. Enfim, somos aquilo que vivemos e participamos em sociedade.

Sobre a literatura, objeto de nosso estudo como “forma ‘especial’ da linguagem, em

contraste com a linguagem ‘comum’” (EAGLETON, 2003, p.06), afirma o poeta Bráulio

Tavares (2005):

Não existe evolução literária da Humanidade. Não podemos dizer que a literatura do século 20 é melhor que a do século 16, ou que esta é melhor do que a literatura da Antiguidade. A literatura não existe abstratamente, como um ponto num gráfico que sobe ou desce ao longo dos séculos. A literatura de cada povo é um fim em si. É um limite que só aquele povo pode atingir. São formas que só ele vai poder criar (p.104)

Por muito tempo, estivemos habituados a compreender e fazer uso da literatura a partir

de conceitos – pré-definidos – europeus, cuja estrutura conceptual sempre colocou a literatura

como mito. Um mito que tem gerado tantos outros mitos, como uma imagem de si mesma

refletida e difusa em todas as direções. Um mito que costumamos chamar de literatura

mundial e/ou universal, e que se comportou como reflexo preponderante das nações européias

a partir do século XVI. Historicamente falando, esse processo de mistificação só se torna

MMMM

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concluso após a II Guerra Mundial, quando passamos da era do imperialismo colonial à era do

imperialismo pós-colonial, da assim chamada era da globalização, guiada pelos Estados

Unidos (EUA) e como sustentam os estudiosos Homi Bhabha (2005) e Edward Said (2007):

“uma era ainda muito confusa”.

3.1 Por que uma literatura dos mundos?

Para dar sustentação ao nosso entendimento de que a literatura popular produzida por

Patativa transformou-se – livre de quaisquer possibilidades visíveis de paradigmas e/ou

subjetivações – numa poética sem fronteiras, fazemos uso de autores pós-modernos e ditos da

literatura erudita a fim de caracterizar a extensão alcançada pelo canto do poeta matuto. Pois,

entendemos que, em literatura, diálogos são possíveis sem que, em nenhum momento, a arte

deixe de ser arte.

Assim, utilizando inicialmente a dicotomia antes/agora, verificamos que a literatura,

antes, existia a partir de toda uma configuração sistematizada pela Europa, pelos países

imperialistas que invadiram e colonizaram os outros mundos através de suas línguas e

culturas. Hoje, existe uma "literatura global", tendenciosamente marcada pela unificação do

mercado global e pela indústria de cultura de massa – Indústria Cultural –; e outra chamada de

"literatura dos mundos" (GLISSANT, 2005), que quer se fazer multi-, inter- e pluricultural,

caracterizada pela escolha de palavra e de posição comum e traduzível dos diversos mundos,

os quais não querem ser assimilados pelo mercado único de todas as mercadorias nem

traduzidos em uma única língua, na qual todas as outras devem se perder... Uma literatura sem

fronteiras. Uma literatura que podemos dizer, sob quaisquer pensamentos arbitrários, com

muitos caminhos, mas, particularmente, sem fronteiras.

A idéia de uma literatura mundial, que trazemos a essa discussão, une todos os povos a

partir do reconhecimento dos valores comuns. Ela deixa de ser uma ilusão, como queriam os

poetas românticos, para se transformar, efetivamente, em um mercado mundial das letras que

a cultura de massa vende e apresenta sob uma máscara nobre e espiritual. Ao lado desta face

da literatura, mais ou menos comprimida pelo mercado e pelas suas leis, mas com eles

entrelaçados, existe ainda uma nova literatura dos mundos que começa a formar uma rede

planetária de conhecimentos e reconhecimentos, de traduções e de múltiplas reciprocidades.

Esta literatura dos mundos, a qual parece nos engolir, tem como objetivo opor-se à

globalização da cultura de massa e do mercado único euro-norte-americano: ela é alternativa e

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utópica, e pretende transformar-se em uma zona móvel e incontrolável, imprevisível, como

diria Édouard Glissant (2005), de diálogo entre os mundos, e em “sujeito expressivo e

evolutivo” da comunicação dos sentidos e do nivelamento não violento das culturas. Ao

mesmo tempo, esse novo conceito literário escapa às teorizações paradigmáticas, típicas da

tradição européia: parece sempre mais prazeroso querer consignar-se a certo conhecimento

historiográfico que essa mesma tradição contribuiu para construir e alimentar.

Na verdade, é uma literatura que se torna singular não porque seja unificada, mas

porque revela a capacidade da literatura de traduzir-se e traduzir os mundos, e revela, ainda, a

pluralidade dos discursos e das culturas que se aliam contra a globalização e que mantêm

entre si um diálogo aberto através das migrações, das hibridações, das mestiçagens que

permeiam sua evolução GLISSANT (2005, pp.46-49).

Contudo, independente do conceito abarcado, hoje, pelo termo literatura, esta arte, em

toda sua concretude e superficialidade, supõe imaginário, supõe uma constelação hipotética de

imagens. Suas imagens tanto podem se originar do mundo extra textual, quanto podem

resultar da apropriação de estruturas textuais pré-existentes à ficção que se constrói em dado

momento.

Grandes obras da literatura européia explicam-se como imitação de discursos literários

por entenderem a ficção como integrante do mundo real – o mundo real das construções

culturais, concebidas como fatos sociais. Em vez de cópia da natureza, essas obras

apresentam-se como imitação de textos especificamente considerados como reduplicação da

linguagem da própria literatura, cuja gramática se converte tanto em imagens da vida quanto

em imagens do processo de semantização da vida. Além disso, Eagleton (2003, p.15) destaca:

“Assim como uma obra pode ser considerada como filosofia num século, e como literatura no

século seguinte, ou vice-versa, também pode variar o conceito do público sobre o tipo de

escrita considerado como digno de valor”. Atentemo-nos para os fragmentos do poema Ao

leitô, os quais traduzem aquilo que Patativa transportou de sua vida para a sua obra,

permitindo que, do seu jeito, a literatura popular alcançasse o espaço dialógico da arte:

Não vá procurá neste livro singelo Os canto mais belo das lira vaidosa, Nem brio de estrela, nem moça encantada, Nem ninho de fada, nem chêro de rosa. Em vez de prefume e do luxo da praça, Tem chêro sem graça de amargo suó, Suó de cabôco que vem do roçado, Com fome, cansado e queimado do só. (ASSARÉ, 2003, p.13)

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Apenas para determinar uma elucidação clara desta discussão, enfatizamos que a

literatura, hoje, embora já bastante redimensionada, não deixa de ser um termo que continua

sendo redefinido. Pois, é certo que, não raro, despontam dificuldades de natureza variada

quando, em ordem a uma caracterização segundo cânones (pré-)existentes, dispomos-nos a

equacionar ou a problematizar uma determinada área da produção humana.

Quanto à produção desenvolvida nos patamares altaneiros do meio literário, percebe-se

claramente a exaltação de uma nova dinâmica da sociedade que tem produzido uma literatura

aquém e além do rol do que é tido como canônico. Essa produção literária, em sua maioria,

tem sido guiada pela lógica do mercado e pelo fetiche do “concurso”, transformando-se em

“moda” e “modelo”. As novas produções se afastam das concepções da tradição crítica e

instituem outras formas também dotadas de literariedade. Por conseguinte, a instituição

literária não sabe se resiste ou reconhece esse processo histórico-cultural em que nos

encontramos. De qualquer forma, afirmam Wellek e Warren (2003, p. 09):

Mas devemos reconhecer que cada obra de literatura é tanto geral como particular ou – melhor, talvez – tanto individual como geral. A individualidade pode ser distinguida da particularidade e da singularidade completas. Como todo ser humano, cada obra de literatura tem as suas características individuais mas também compartilha propriedades com outras obras de arte, assim como todo homem compartilha características com a humanidade, com todos os membros do seu sexo, nação, classe, profissão, etc.

Apenas a título de destaque, lembramos que diante dos fatos supracitados, a literatura

“hoje” acaba tendo que disputar espaços e derrubar fronteiras, optando, na maioria das vezes,

por retratar seres que vivem imersos no prazer visual e na fantasmagoria da cultura capitalista.

Todavia, são a crítica literária e a história literária que tentam caracterizar a individualidade

de uma obra, de um autor, de um período ou de uma literatura nacional, onde, essa

caracterização só pode ser obtida em termos universais, referenciada por uma teoria literária, a

qual é a grande necessidade da pesquisa literária hoje (WELLEK e WARREN, 2003, p.09).

Em Patativa do Assaré, encontramos uma literatura que voou do local para o global e

tornou-se, diligentemente, uma literatura dos mundos, uma vez que sua poética teve emissão

original proveniente do “mato”, onde era ouvida por agricultores, pessoas da comunidade

rural, em noites festivas do sertão, para, então, lugares mais longínquos, como outros países,

onde, hoje, sua obra é lida e estudada. Embora bastante imitado e, muitas vezes, comparado

com outros poetas populares, sua voz sintetizou e superou dicotomias, dentre elas, a

dicotomia pungente de sua obra entre natureza e cultura.

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“Toda obra inovadora é elaborada com um material tradicional”, concretiza Lotman

(1978). Patativa emblema tal possibilidade aceitável da literatura, em detrimento de quaisquer

críticas, uma vez que sua obra inova porque vai além dos versos de violeiro, vai além do

cordel, ela arruma-se numa elaboração mais arrojada, embora forjada em seu cerne por

elementos clássicos da literatura popular: os versos rítmicos, cantados, o linguajar coloquial, a

ênfase nos temas que permeiam a comunidade, mas de caráter universal. Glissant (2005), por

sua vez, destaca que sob o poema aparentemente mais claro, pulsa em seu recôndito uma

visão do mundo. Em Patativa isto se dá de forma extensiva à sua obra:

O poeta sempre reivindicou para o seu conhecimento essa relação com a ‘totalidade-mundo’ que autoriza, ela, e apenas ela, as suas mais inocentes reflexões... Praticar uma poética da totalidade-mundo, é unir de maneira remissível o lugar, de onde uma poética ou literatura é emitida, à totalidade-mundo, e inversamente. Ou seja, a literatura não é produzida em suspensão, não se trata de algo em suspensão no ar. Ela provém de um lugar, há um lugar incontornável de emissão da obra literária. Mas, em nossos dias, a obra literária convirá tanto mais ao lugar quanto mais estabelecer uma relação entre esse lugar e a totalidade-mundo (GLISSANT, 2005, p. 42).

O poeta matuto permite ao leitor de seus versos essa viagem pelo mundo, do local para

o global, num confluir congruente de uma poética feita em regime de comunidade rural que

transcende pelo mundo, totalizando-se e transpondo fronteiras antes inconciliáveis:

erudito/popular; rural/urbano; tradicional/moderno. É uma literatura de caráter “intercultural”,

de natureza “épica”, como assim a também denomina Glissant (2005, p.81).

3.2 Por uma literatura de caráter híbrido: erudito/popular

Numa discussão dialógica sobre literatura, o termo passa a ser evocado de forma mais

híbrida, mais abrangente, mais intercultural. Atualmente, há uma clara disponibilidade de

junção adicional entre o que seja literatura erudita e o que se entende por literatura popular.

A partir de leitura histórica, o que antes era global – no caso, a cultura erudita – tornou-

se local; os espaços locais da cultura popular hibridizaram-se com os espaços globais da

cultura erudita. Agora, a cultura popular também é global. O diálogo entre diferentes mundos

tem possibilitado uma hibridação visível em vários espaços sociais, o que nos permite dizer,

retomando palavras de Ortiz (1995), há uma “transculturação” acontecendo no mundo,

sobretudo no contato, na troca de saberes, entre povos de diferentes culturas.

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Essa questão nos leva a refletir sobre a separação/junção entre popular e erudito. O que

é popular está, historicamente, condenado a não ter acesso aos ambientes eruditos. Se isso é

fato em todas as áreas, em literatura é especialmente válido por razões fáceis de entender. A

literatura erudita, aquela que é estudada pela academia, é a literatura escrita. Mesmo tendo

sido criado oralmente – como é provavelmente o caso de muitos textos altamente eruditos, a

Ilíada, de Homero, por exemplo –, o meio pelo qual o texto tem que circular para chegar à

Academia é o escrito.

Só muito recentemente, a literatura popular passou a receber atenção da academia. O

desenvolvimento de estudos sobre a oralidade foi um dos fatores que permitiu essa atenção.

Mais importante que isso, no entanto, foi o ataque à essência do pensamento que permite

barrar o acesso da literatura popular aos meios eruditos, ou seja, a própria divisão

erudito/popular foi questionada.

Todavia, entre o erudito e o popular e as questões daí advindas, uma coisa é certa: não

há poesia sem arte e a do povo só se nega ou se tem por simples, porque se ignora ou mal se

conhece. O homem do povo, assim como o intelectual de gabinete, utiliza os mesmos

instrumentos na elaboração poética: palavra, inspiração e técnica. E estas, se a escola as

ensina, também de ouvido se aprendem e consciente ou inconscientemente se aplicam; o

processo poético é idêntico tanto no vulgo como no não vulgo. Supor o povo a cantar, como

se seus versos lhe saíssem espontânea, instintivamente, sem estudo, sem a lucidez intelectual

que preside a toda a criação artística é erro que só à ignorância, à alienação do cotidiano

popular se deve.

Sem dúvida, o poema que vem da boca do povo precedeu-o, por vezes, longa

meditação. Na rabiça do arado ou no trabalho oficinal, vai o espírito organizando a peça

literária que a voz ou as poucas letras reproduzem, como assim procedeu Patativa com seus

versos, os quais têm na oralidade todo o seu perfil constitutivo de transmissão e caracterizou

uma obra de mais de mil poemas, todos (re)conhecidos pelo poeta de cor:

É simpre, bem simpre, modesto e grossêro, Não leva o tempero das arte e da escola, É rude poeta, não sabe o que é lira, Saluça e suspira no som da viola. (ASSARÉ, 2003, p.13)

Literatura popular e literatura erudita tem sido no interior dos estudos culturais uma

dicotomia corrente. Uma, a última, diz-se dos homens de saber, de longa informação escolar;

outra, a primeira, de homens que não alcançaram, convencionalmente, a intimidade dos livros.

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A ciência do povo é chamada de sabedoria, conhecimento empírico que lhe não dá para

conhecer as verdadeiras causas dos fenômenos que observa, um empirismo bruto que o

confina a uma limitada – e, ainda, negada – atividade intelectual, como se um saber profundo

se não alcançasse no livro aberto da natureza, no convívio dos homens, na experiência do

cotidiano.

Mesmo correndo o risco de sermos repetitivos ao levantarmos discussões sobre o termo

“cultura”, algo já tão discutido nomeio acadêmico, lembramos que não há gente com cultura e

sem ela. Cada classe tem e exerce a sua, que o diverso condicionalismo histórico, social e

econômico explica. Não há uma baixa ou ínfima cultura e uma alta ou superior. Ainda aqui

persiste a falsa idéia de que só o ensino instrui, noção clássica e escolar de cultura. Esta é tudo

o que se aprende do nascer ao morrer, o conjunto das tradições sociais e este conceito

antropológico nos salva de errados juízos de valor.

Assim, o que está por definir vigorosamente é o que é próprio de uma e outra cultura, o

que pertence ao povo e o que não é dele, para além do que é comum e que são as constantes

do comportamento humano. A esse resultado havemos de chegar, quando em diversidade e

profundidade se conduzir a análise etnográfica. Sem essa informação de base não é possível

caracterizar minimamente cultura de classe e cultura nacional e nem em toda a sua extensão o

que é universal no homem. Diz-se literatura popular e subentende-se uma outra que não

precisa de adjetivo para se qualificar. E este contém, quer queiramos, quer não, um sentido

depreciativo. Popular é algo de inferior, de menos pensado, de menos profundo – e fecundo –,

além disso, cheira a povo, a pobre, e de tal modo que o adjetivo passa até a ter um sentido

metafórico e usado para assinalar a referida inferioridade. De uma idéia superficial, de pouca

valia, diz-se que é popular, independentemente de a produzir ou não o povo.

Hoje, quando se fala tanto em culturas híbridas (CANCLINI, 2002), não se pode mais

considerar um saber melhor do que outro, um saber erudito melhor do que um saber popular

ou vice-versa. A hibridação postulada nos meios sociais e/ou literários não abarca mais tal

constatação de elitização de uma cultura em detrimento de outra. A literatura, seja ela erudita

ou popular, é rica e ganha, a cada dia, mais força dentro dos estudos culturais. O mundo

encontra-se em total estado de subelevação e grandes, sem dúvida, são a aceleração e a

intensificação das misturas em nosso planeta. Há tensões e conflitos por toda parte, desde nos

pequenos grupos por questões raciais até entre nações, devido questões político-econômicas

das relações aí advindas. Além disso, há misturas por toda parte. Contudo, conforme nos

lembra Stuart Hall (1997),

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as sociedades atuais são caracterizadas pela ‘diferença’; elas são atravessadas por diferentes divisões e antagonismos sociais que produzem uma variedade de diferentes ‘posições de sujeito’ – isto é, de identidades – para os indivíduos (p. 18).

Essas múltiplas identidades, no entanto, não estão assentadas no sujeito como se fossem

camadas. Pelo contrário, elas interferem-se mutuamente, articulando-se, muitas vezes, de

modos conflitantes e contraditórios. Sob esse aspecto, os sujeitos podem se ver mobilizados

de diferentes modos, e em diferentes situações; podem, ainda, construir alianças ou disputas

pontuais ou mais amplas, duráveis ou provisórias. Evidentemente todos esses arranjos de

solidariedade e oposição estão imbricados em jogos de poder, em relações de poder, como nos

alerta Foucault (1991).

Na realidade, as identidades se misturam, se multiplicam e se fazem interagir tudo em

prol da cultura, de seu nascimento diário. Em outras palavras, vemos “as misturas” como um

fenômeno próprio de sociedades que se encontram efetivamente em constante vizinhança e

presença, onde, “a mistura de culturas cobre, pois, fenômenos díspares e situações

extremamente diversas que podem se inscrever tanto no caminho da globalização como em

margens menos estritamente vigiadas” (GRUZINSKI, 2001, p. 17).

Retomando uma expressão que usamos anteriormente para denominar a poesia de

Patativa do Assaré: “literatura épica”, trazemos o que Glissant (2005) conclui em seus estudos

sobre uma literatura dos mundos:

A nova literatura épica estabelecerá relação e não exclusão... essa literatura épica talvez faça economia da noção de ser, para surpreender-se com o imaginário do sendo, de todos os sendos possíveis do mundo, de todos os existentes possíveis do mundo. A questão do ser não se apresenta mais a partir da visão dessa solidão vantajosa à qual havia se reduzido o pensamento do universal. O universal transformou-se em diversidade, e esta o desordena (p.81).

Pelo exposto, uma literatura dos mundos se faz na diversidade, no encontro de universos

culturais, o qual a coloca num aparente “caos” desordenado. Para o crítico, o “caos-mundo”

significa o choque, o entrelaçamento, as repulsões, as atrações, as conivências, as oposições,

os conflitos entre as culturas dos povos na totalidade-mundo contemporânea, ou seja, “trata-se

da mistura cultural, que não se reduz simplesmente a um melting-pot, graças à qual a

totalidade-mundo hoje está realizada (GLISSANT, 2005, p.98).

Dentro desta diversidade, ressaltamos aquilo que Guiraud (1969, p.13) afirma sobre a

língua literária: “esta língua é a substância da literatura”. Para ele, “toda obra deve ser

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definida a partir e em função de sua linguagem”. Preti (1994, p.16), por sua vez, destaca que,

no campo específico da linguagem, “a língua literária, em função dos seus objetivos estéticos,

pode ser considerada uma variante em nível superior da língua escrita”, mas também, ressalta

Urbano (2000, p.129), “o é da língua popular, da língua culta etc., no sentido de ser uma certa

combinação de códigos auxiliares, superpostos ao código comum”. É uma língua que se

estabelece, por si só, independente se culta ou se popular, de um autor para leitores, sem

reciprocidades.

Isto posto, sendo a obra literária de ficção uma transposição da realidade, continua o

pesquisador: ela “recria no texto literário todas essas espécies ou modalidades lingüísticas,

porém, sob o aspecto abrangente da intenção artística e estética” (URBANO, 2000, p.129).

Assim, entre os espaços já explorados pelas fronteiras do popular e do erudito,

atentemos para a literatura do povo, cuja designação de “literatura popular” associa uma

entidade social que as mais das vezes não utiliza a escrita para representar a arte verbal. Na

verdade, o vocábulo literatura, no seu sentido próprio, não serve bem ao fenômeno a que se

aplica. Pela oralidade que o caracteriza é também chamado literatura oral, expressão que,

segundo Paul Zumthor, foi inventada em 1881 pelo folclorista francês Paul Sébillot20.

A literatura popular tem, pois, no rizoma da oralidade, sua transmissão nas culturas

orais, cuja língua falada teve aproveitamento, ao longo dos tempos, com maior ou menor

intensidade, em todas as épocas em muitas literaturas. Preti (2000, p.14) afirma que:

No Brasil, o momento decisivo da ascensão da língua oral à categoria de literária parece estar situado na vigência da prosa romântica. A partir daí, muitos romancistas e contistas, em graus diferentes e com maior ou menor fidelidade, transpuseram para o estilo literário elementos da língua falada.

Em Patativa, a oralidade se fez concomitante com sua vida na roça e nos versos ali

memorizados. Sua obra tem na oralidade a diversidade de uma poesia que se quer literatura

dos mundos, dado ao seu caráter essencialista e ao hibridismo nela contido, os quais traduzem

a linguagem do povo do interior, de um povo que gosta de ouvir suas próprias histórias,

histórias de vida, de gente que luta, sofre, ama e tem fé e esperança que as coisas, com o

tempo, mudem.

Nesta perspectiva, observamos que a memória é fator de relevo para que a oralidade em

Patativa se dê de forma a construir uma obra marcada pelo social. Tal característica da poesia

20 Ver também o texto do autor Introduction à la Poésie Orale, Paris, Éditions du Seuil, 1983.

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matuta será discutida no tópico a seguir como base para pressupostos dialógicos da obra

patativana com o “trauma” e o “testemunho”.

3.3 A memória patativana como recurso representativo do social

Em se tratando da poética de Patativa que se manifesta como “testemunho” e

“documento”, o passado tem forte influência no seu aspecto constitutivo, uma vez que ele traz

à tona a sua percepção da realidade, de modo redivivo. Assim, trataremos a partir de agora de

conceitos sobre a memória, enquanto recurso utilizado pelo poeta no aspecto constitutivo de

sua obra.

Para a pesquisa aqui desenvolvida, destacamos a teoria sobre a “memória coletiva”,

desenvolvida por Maurice Halbwachs (2006). Inicialmente, ressaltamos o termo “depoimento

da testemunha” que o autor invoca em seu estudo para dar relevo à memória e a coletividade,

cuja significação é bastante útil para nós, uma vez que, mais adiante, trataremos sobre o

caráter do “testemunho” na poesia de Patativa.

Halbwachs entende que o termo “depoimento da testemunha” só tem sentido em relação

a um grupo do qual esta pessoa – a testemunha – faz parte. Segundo ele, o depoimento

testemunhal pressupõe um evento real vivido outrora em comum (com outros) e depende do

contexto de referência no qual atualmente transitam o grupo e o indivíduo que o atesta. Como

ele mesmo menciona isto significa dizer que:

...o ‘eu’ e sua duração se localizam no ponto de encontro de duas séries diferentes e às vezes divergentes: a que se liga aos aspectos vivos e materiais da lembrança, a que reconstrói o que é apenas passado. O que seria desse ‘eu’, se não fizesse parte de uma ‘comunidade afetiva’ de um ‘meio efervescente’ – do que tenta se livrar no momento em que se lembra? (p. 12).

Para o crítico, é certo que a memória individual existe – ele não a menospreza –,

contudo, a mesma está enraizada em contextos distintos que a simultaneidade ou a

contingência aproxima por um momento. “A rememoração pessoal está situada na

encruzilhada das redes de solidariedades múltiplas em que estamos envolvidos” (2006, pp.12-

13). Ela encontra pontos de convergência nas contexturas produzidas pela convivência que se

desenvolve nos espaços coletivos. É talvez tal particularidade da memória que evidencie uma

das grandes diferenças entre a literatura erudita e a popular, já que esta última se caracteriza

pelo envolvimento das situações sugeridas pela coletividade, pela maioria, ao contrário da

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primeira, que encontra no individual – ou, na minoria – as reservas necessárias para se fazer

arte literária.

Assim, nada escapa à trama da existência social atual, uma vez que é destes diversos

elementos combinados que se pode chegar àquela forma da memória que chamamos

“lembrança”, traduzida em uma linguagem social, cuja consciência não é vazia ou solitária,

pelo contrário, ela perpassa por variação constante, conforme os contextos sociais e a

experiência coletiva histórica.

Isto posto, se continuamos com as proposições sugeridas por Halbwachs (2006, p.13), é

possível enfatizar que de todas as “interferências coletivas”, no que concerne à vida dos

grupos, a lembrança é como a fronteira e o limite, encontrando-se na intersecção de muitas

correntes do “pensamento coletivo”. É a lembrança que permite o passado se projetar na

realidade atual, de modo redivivo.

Prefaciando o livro de Halbwachs (2006, pp. 13-14), Jean Duvignaud21 traz de forma

clara a teoria do filósofo sobre a memória:

[...] em Halbwachs, situa-se uma notável distinção entre a ‘memória histórica’, de um lado, pressupondo a reconstrução dos dados fornecidos pelo presente da vida social e projetada sobre o passado reinventado, e por outro lado a ‘memória coletiva’, que magicamente compõe o passado. Entre essas duas direções da consciência coletiva e individual se desenvolvem as diversas formas de memória, que se alteram conforme as intenções por elas visadas.

É certo que nos últimos tempos nunca se falou tanto em memória e isto, sem dúvidas,

está acontecendo porque depois de um século marcado por tantas guerras e mudanças como o

século XX – a história da humanidade não presenciou tal acúmulo de transformações em um

mesmo espaço de tempo – tentamos, agora, estabelecer uma relação com o passado que

assume necessariamente um novo caráter. Não temos mais as grandes utopias a nos orientar e

fornecer um fim salvacionista e um sentido para a história. Nossa visão do ser humano foi

abalada após percebermos que não havia incompatibilidade alguma entre "alta cultura" e

"barbárie".

Com isso, também nossa crença sem limites na ciência foi posta em questão. Nessa

tentativa de se estabelecer uma nova ligação com o passado, de se reatar o elo com ele, surge

uma nova cultura da memória que se manifesta, exemplarmente, no processo de

"musealização" da cultura e nas novas modalidades de apropriação do espaço público. Este,

21 Prefaciador do livro A memória coletiva, de Maurice Halbwachs, São Paulo: Centauro, 2006. Jean Duvignaud é professor da Faculdade de Letras e Ciências Humanas de Orléans-Tours.

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torna-se um cenário que é utilizado na busca de uma compensação para a ausência de marcas

na cidade, onde somos cada vez mais seres sem rosto e identidade. Por outro lado, os choques

e catástrofes do século XX funcionam como um paradoxal construtor de memória e

esquecimento.

"Só o que não pára de doer permanece na memória", afirmou Nietzsche. Nada mais

verdadeiro em nossa época do que ver o paradigma da memória a toda hora pôr em questão o

conceito tradicional de historiografia (historicista e positivista, ou seja: que acreditava na

possibilidade de se contar/reproduzir o passado de uma forma “total” e "científica"). O

passado é visto agora do ponto de vista da “construção” da identidade em uma era marcada

pela desorientação e pelo fim de certezas que antes orientavam nossas vidas: basta pensarmos

no descrédito com relação aos políticos e à política tradicional; no esfacelamento de muitos

Estados nacionais – e surgimento de inúmeros outros, sob o signo das etnias (essas, por sua

vez, são construídas sob o signo da memória, mais do que da história).

A memória tem o poder de nos colocar na zona fronteiriça com a nossa própria busca

identitária, em especial, quando buscamos exaltar a nossa região, o nosso povo, o nosso

espaço de pertencimento. Sobre essa possibilidade da memória, Albuquerque Junior (1999,

p.79) destaca que a volta para “dentro de si” do Nordeste, para buscar a sua identidade, o seu

caráter, a sua alma, a sua verdade, dá-se à medida que o dispositivo da nacionalidade e a

formação discursiva nacional-popular colocam como necessidade o apagamento das

diferenças regionais e a sua “integração no nacional”.

Para este estudioso, uma região que se constrói tendo por base os atributos da memória

implica numa convivência entre a idéia de sobrevivência e a “vida vácuo”. Nisso, o passado

aparece em toda a sua alegria de redescoberta, para, num mesmo instante, provocar a

consciência triste do seu passar, daquilo que se foi e não volta mais, ou seja, do seu fim. Este

“vir para dentro” pressupõe fluxo e refluxo de lembranças que se permitem descobertas ao

mesmo tempo em que se permitem passado.

Além disso, a cultura é vista, cada vez mais, e com crescente ênfase, como uma

memória do coletivo: e a literatura tem um papel privilegiado dentro dessa visão da cultura

como memória. Para termos consciência disso não precisamos nem esmiuçar o fato de que a

autobiografia e o romance (assumidamente autobiográfico ou não, mas sempre, de alguma

forma, “biográfico”) constituem dois gêneros característicos da modernidade e da chamada

pós-modernidade.

A literatura e a escritura, de modo geral, estiveram, ato contínuo, intimamente ligadas

ao “registro” da memória, da memória individual. A escrita desde sempre foi um dispositivo

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de duração, que registra aquilo que a memória retém. Em Patativa, tal característica se fez

presente em toda a sua obra, como é possível verificar nos seguintes versos de Lamentos de

um nordestino:

Eu sou sertanejo das terras do Norte, Mas a negra sorte me fez arribar. Hoje vivo ausente, Sem ver minha gente, O meu sol ardente E o meu branco luar. Ai quem dera voltar Ai quem dera voltar Ao meu lar! Oh! Terra querida da minha amizade, A dor da saudade me faz soluçar. Há tempo não vejo O São João sertanejo Com o seu festejo De fogo no ar. [...]

(ASSARÉ, 2003, pp.317-318)

A lembrança em Patativa, enquanto dispositivo pessoal, configura-se de forma bastante

similar à idéia de “memória coletiva” direcionada por Halbwachs (2006), apesar de o autor

exercê-la de modo bastante excessiva em suas posições. Pois, a relação que Patativa do

Assaré faz entre seu fazer poético e seu contexto social é denominada pelo sociólogo como

“quadros sociais da memória”. Estes quadros não “encenam” simplesmente uma pessoa ou

um local vazio, mas uma comunidade em socialização. Eles são utilizados por Patativa como

base fecunda para a apropriação estrutural dos seus poemas. O poeta pensava nos quadros,

via-os mentalmente, retinha-os na memória e os versava. Versos que, depois, constituíam-se

em escritura, como podemos observar em outros fragmentos do poema supracitado:

[...] Pra ver o meu casebre de palha de coco, Tapado a reboco que eu deixei lá E ouvir no terreiro Sobre o cajueiro Cantar prazenteiro O meu sabiá. [...] Santa Aparecida, Rainha Celeste, Me leva ao Nordeste, que eu quero escutar A vaca mugindo,

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Chocalho tinindo, Cachorro latindo E vaqueiro a boiar.

É possível pensar que existem na obra patativana vários indicadores reveladores do

papel que a família e a vida gregária da Serra de Santana tiveram para sua formação poética.

Daí, a utilização de Patativa dos quadros sociais da memória, os quais requerem

expressividade do coletivo. Na obra, estes indicadores de que falamos se firmam em temas e

personagens que eram utilizados pelo poeta a fim de fomentar o tipo de poesia que queria

desenvolver: preferencialmente regionalista – embora tenha atingido ares de global – com

profundo caráter essencialista.

Contudo, afirmar que a memória postulada na obra de Patativa se dá apenas em nível

“coletivo” é discricionário, uma vez que ele também precisa do individual. Por isso, faz-se

indispensável que recorramos ao discurso de Bergson (1990), o qual entende a existência de

uma reserva “individual” de memória que se perpetra de forma perceptível na obra do poeta.

Vejamos os seguintes versos do poema Minha Sodade, que exemplam essa particularidade

de sua poética:

[...] Se no mundo toda gente, O povo mau e o distinto, Cada um conta o que sente, Eu quero contá o que sinto Meu sofrimento é sem fim, Eu tenho dentro de mim Uma sodade arranchada, Tão grande, tão desmedida, Que não se pode sê medida, Nem pesada, nem jurgada. Sodade, esta aguda seta, Que é mãe da rescordação, Sabendo que eu sou poeta, Acho que meu coração Pra se arranchá dava jeito E foi entrando em meu peito Como broca em aruêra, Que vai furando, furando, Até que fica morando No miolo da madêra. [...]

(ASSARÉ, 2003, pp.332-333)

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Neste sentido, a memória que se faz interferir e ingerir na obra patativana coabita dentro

dessas duas possibilidades apresentadas (teorias de caráter contrário, mas que, neste caso, se

complementam): a memória vem tanto de sua relação social (possível de se provar

empiricamente em sua narrativa poética através dos “quadros sociais da memória) como vem

de sua reserva individual, subjetivo demais para se provar, mas que se constitui em sua obra

como um processo de reelaboração, somado às particularidades retidas na memória do sujeito,

da qual ele pode escolher ou excluir o que lhe convém. O que se depreende deste fato é que a

lembrança do passado vivido pode não ser idêntica ao que está sendo dito no presente, uma

vez que não somos os mesmos de outrora: nossa percepção sofreu alteração, bem como seus

determinantes, como idéias, juízos de valor, julgamentos da realidade, etc. Os diferentes

modos de ver e perceber o mundo e tudo o que o compõe são reelaborados conforme a reserva

memorial de cada pessoa, individualmente (HALBWACHS, 2006). Continuemos com outros

versos da poesia Minha Sodade:

[...] Com a mesma ingratidao Veio a sodade e, sem dó, Agarrou o meu coração, Se inrolou e deu um nó. E foi crescendo, crescendo, Cada vez mais se estendendo [...] No verdô da minha idade, Mode acalentá meu choro, Minha vovó de bondade Falava em grande tisôro: Era histora de reinado, Princesa e prinspe incantado, Com feitecêra e condão. Essas históra ingraçada Ta selada e carimbada Dentro do meu coração. Mas porém, eu sinto e vejo Que a grande sodade minha Não é só de histora e bêjo Da querida vovozinha, Demenhãzinha, bem cedo. Sodade de meus brinquedo! Meu badoque e meu bornó, O meu cavalo de pau, E a minha calça cotó.

De qualquer modo, lembrar-se, recordar-se, apropriar-se dos recursos da memória é uma

atividade dinâmica, que se aproxima da leitura de mundo de cada pessoa, a qual se constrói

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em Patativa a partir de sua oralidade, característica expressiva de uma obra marcada pelo

contexto de vida do autor: soube relacionar os versos cantados com seus momentos na roça,

com a natureza, com os mais velhos, com seus sonhos, com a vida, de um modo geral. São os

“quadros sociais da memória” descritos por Halbwachs e anteriormente já citados. Mesmo

estabelecendo conexões de trocas sociais, em Patativa, sua memória alcança uma

individualidade não desprezível na análise de sua obra. Pois, sua reserva pessoal de

lembranças é determinante para que os versos memorizados se constituam poesia. Destaca

Gilmar de Carvalho (2002, pp. 86-87), sobre a face constitutiva da obra patativana:

Patativa bodejava poesia. Dava um jeito de ficar longe dos outros agricultores para se concentrar melhor e assim brotava poesia, à medida que trabalhava a terra, na mais íntima integração entre natureza e cultura, aqui entendida como atitudes complementares e nunca como a oposição que se procurou estabelecer. Ele imaginava o poema como se fosse um quadro e depois ia constituindo verso a verso, guardando na memória privilegiada, acumulando como se fossem as camadas da terra. Seu trabalho com a palavra era braçal e ao mesmo tempo elas brotavam como as sementes da terra fértil que ele cultivou até os setenta anos (Grifo nosso).

O autor supracitado compõe sua análise sobre a mimese de Patativa, observando que

enquanto o poeta dava forma a essa produção escrita – embora tenha mesmo ficado fixada em

sua memória ímpar –, ele se exercitava por meio da viola. Este instrumento, em consonância

com o estudo de Carvalho (2002, p.87), talvez tenha sido o grande propositor do ritmo, da

agilidade, da capacidade incrível do poeta em esgrimir um verso, de trabalhar com as palavras

efusivamente como um malabarista e de construir um fio, uma teia que se tece à medida que o

poema é enunciado.

Além disso, podemos encontrar ambos os tipos de memória (coletiva e individual) no

poema Ingém de ferro, cujo tema focaliza um dos elementos constitutivos de sua relíquia

mnemônica. A memória de Patativa não é apenas o resultado de sua capacidade retentiva, ou

de sua capacidade de fazer fluir as imagens que foi acumulando em camadas ao longo do

tempo. Sua memória tem “função social” (BOSI, 1994): “é engajada, atuante, uma militante a

serviço de manter ‘viva’ sua história e a de seu povo” (FEITOSA, 2003). Consideremos estes

versos do poema:

Ingém de ferro, você Com seu amigo motô Sabe desenvorvê, È munto trabaiadô. Argúem já me disse até

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E afirmô que você Progressista em alto grau; Tem força e tem energia, Mas não tem a poesia Que tem um ingém de pau. O ingém de pau quando canta, Tudo lhe presta atenção, Parece que as coisa santa Chega em nosso coração. Mas você, ingém de ferro, Com este horroroso berro, É como que qué brigá, Com a sua grande afronta Você ta tomando conta De todos canaviá.

(ASSARÉ, 2004, pp.92-94)

O caráter social da poética patativana funciona como recurso representativo de um povo

que participa de eventos afins numa determinada comunidade. São coisas do passado vividas

em espaços coletivos que fortalecem o presente de forma rediviva. São situações contadas em

versos a partir da reserva individual – das lembranças pessoais – do poeta.

A memória entrelaça as experiências do passado com o presente de maneira tal que o

sujeito reencontra “em algum lugar do passado” coisas que lhe fazem falta no presente,

promovendo-lhe uma releitura do seu discurso atual e permitindo-lhe um “passar a limpo”,

como enfoca Ecléa Bosi (1994), das experiências vividas. Retomemos, pois, outros versos de

Ingém de ferro:

[...] Do bom tempo que se foi Faz mangofa, zomba, escarra. Foi quem espursou os boi Que puxava na manjarra. Tudo suberbo e sisudo, Quégoverná e mandá tudo, É só quem qué sê ingém. Você pode tê grandeza E pode fazê riqueza, Mas eu não lhe quero bem. Mode esta suberba sua Ninguém vê mais nas muage, Nas bela noite de lua, Aquela camaradage De todos trabaiadô. Um falando em seu amô Outro dizendo uma rima, Na mais doce brincadêra,

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Deitado na bagacêra, Tudo de papo pra cima. [...]

É, portanto, no próprio discurso literário do poeta que encontramos situações que

expressam a memória engajada e militante observada por Tadeu Feitosa. “Sua obra é o reflexo

dessa memória”. O crítico faz uma afirmação criteriosa sobre a memória de Patativa com a

qual concordamos por entender que por muito que se deva à memória coletiva, é o indivíduo

que recorda, tornando-a válida e criativamente individual. Estas são as palavras dele:

O que há são sinais comprováveis de que sua percepção foi muito orientada pelo seu contexto social e histórico e que, a despeito disso, sua memória individual retém marcas de uma experiência comum vivida só por ele, mas que pode vir a alimentar a memória de sua coletividade... Na obra de Patativa do Assaré a memória se manifesta sob vários aspectos, mas sempre emoldurada pela estética de sua criação poética. (FEITOSA, 2003, p. 106-107)

Foi utilizando-se de sua memória que Patativa conseguiu imprimir a fusão do

tradicional e do moderno, de forma que se entendessem amigavelmente em sua obra, a partir

dos materiais simbólicos de que dispunha em busca da formação identitária, tanto em nível

individual quanto em nível coletivo, de sua obra. Em uma de suas entrevistas com o poeta,

Tadeu Feitosa (2001), assim, transcreve sua fala:

Eu tenho uma farta bagagem retida na minha mente. Olha, dos seis livros que eu publiquei, se eu começar agora. Ah! Entra na noite, viu? Agora, eu já estou ficando diferente com aquilo que eu faço agora. Com poucos dias, eu quero esquecer, porque a idade permite, não é? Mas tudo que está para trás, não, não fugiu não. Eu tenho na minha mente. Porque eu fazia não era escrevendo. Todo meu poema eu só fiz foi assim, retido na memória. (p.40)

Era, realmente, uma mente prodigiosa, uma memória que sabia reter com precisão tudo

aquilo que lhe era útil e importante, seja positivo ou negativo. O processo de inclusão e/ou

exclusão das reservas miméticas em Patativa refletia todo o seu entendimento de vida em

sociedade, uma vez que só versava aquilo que queria, mesmo que tal peculiaridade fosse por

demais essencialista para leituras e ouvidos mais críticos.

Quando Halbwuachs (2006) conjetura sobre memória coletiva e memória individual, ele

traz sempre o termo “testemunho”, enquanto depoimento de quem participa, observa,

presencia. Por isso, a abordagem da expressão “depoimento da testemunha”, para ele, tem por

base referencial o entendimento de que é impossível conceber a questão da recordação e da

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localização das lembranças quando não se toma como ponto de identificação os contextos

sociais reais que servem de baliza a sua reconstrução, ou seja, à memória, enquanto registro.

Estes contextos sociais reais são os quadros sociais da memória, que, em Patativa,

transformavam-se em poesia. Cada verso, cada estrofe, cada poema era uma cena real

arremetida para a ficção de sua obra literária.

No próximo texto, trataremos de focar a relação “trauma e memória”, enquanto aspectos

constitutivos da elaboração de uma literatura que se quer “testemunho” através da base

poética de Patativa do Assaré.

3.4 Trauma e memória: a seca e a pobreza no sertão nordestino como temas de criação poética

Os quadros sociais da memória, em Patativa do Assaré, conduzem-nos a dois grandes

problemas sociais da região do Nordeste, vividos pelo coletivo interiorano e focalizados na

sua obra na forma de denúncia: a seca e a pobreza.

Ambos os elementos ora abordados são construtos específicos da aflição nordestina e

têm, na sua feição, a marca da falta de políticas administrativas, que distribuem mal seus

recursos econômicos e dirigem a vida do povo com base nas necessidades pessoais dos

governantes. A seca e a pobreza residem de forma presencial e existencial – à parte as rimas

carregadas de aforismos – no sertão do Nordeste.

3.4.1 O sertão imaginado por Patativa: percepção, criação e significação

Segundo Lima (1999, pp.22-23), o sertão surge no pensamento social brasileiro como

imagens de grande força simbólica, as quais representam os contrastes e, no limite, o

antagonismo de distintas formas de organização social e cultural. E é certo que uma das

possibilidades de analisar seu sentido consiste em abordá-las à luz do debate que se ocupa da

distinção entre: tradição e modernidade, temáticas substanciais que envolvem a fonte

patativana com relevo. Para ele, o caráter conservador, de resistência à mudança,

historicamente atribuído ao termo “sertão”, adquire, conforme as leituras realizadas,

conotação positiva ou negativa, aproximando-se de antinomias clássicas das sociedades

ocidentais: civilização e barbárie; culturas de folk e civilização ocidental; tradição e

modernidade; cultura e civilização. Em outras palavras, esse seria um lugar de contrastes.

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Neste sentido, pode-se afirmar que o sertão para uns é um espaço inóspito e, para

outros, é um lugar de especificidades marcantes, incluindo modo de falar, cultura, visões de

mundo, etc. Enfim, é um topos que congrega modos de vida, sentimentos, utopias, alegrias,

sofrimentos, posições diversificadas de vivências de cidadanias e práticas de identidades. A

literatura respalda o sertão e, de modo especial, a literatura popular. É interessante observar

como a realidade oferece subsídios ao plano simbólico no que concerne à compreensão de

uma identidade representativa de tudo aquilo que existe efetivamente e no centro do qual está

o ‘homem’ (NÓBREGA e SILVA, 2007. p.121).

De acordo com a discussão desenvolvida pelas autoras, lembramos que, neste estudo, o

sertão reflete, em noções espaciais e identitárias, todo o processo de elaboração da poética de

um homem simples que, utilizando-se de uma memória privilegiada e de um entendimento

ímpar sobre noções de alteridade, conduz o leitor de sua obra a quadros vivos de uma

realidade que afronta até os mais distantes sentimentos de solidariedade: a seca e a pobreza do

Nordeste brasileiro.

Quando nos permitimos fazer uma reflexão sobre a poesia de Patativa, observamos o

quanto ele usou do seu “sertão” para diagnosticar um tipo de lugar que, à primeira vista,

parece sem vida, um espaço em que muitos lutam e poucos saem vitoriosos. Ao mesmo

tempo, talvez, à segunda vista, um local que sugere muitas vitórias e poucos têm coragem de

lutar, uma vez que é mais fácil, em alguns momentos, apenas aceitar as situações surgidas,

sejam elas boas ou más, sem confrontá-las. É um lugar de contínua contradição. Em um de

seus muitos poemas, onde o sertão real é reinterpretado pela ficção, assim versa Patativa:

Se o poeta marinheiro Canta as belezas do mar, Como poeta roceiro Quero o meu sertão cantar Com respeito e com carinho. Meu abrigo, meu cantinho, Onde viveram meus pais. O mais puro amor dedico Ao meu sertão caro e rico De belezas naturais. [...] É diferente da praça A vida no meu sertão; Tem graça, tem muita graça Uma noite de São João. No clarão de uma fogueira, Tudo dança a noite inteira No mais alegre pagode,

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E um caboclo bronzeado Num tamborete sentado Tocando no pé do bode... [...] (ASSARÉ, 2006, O retrato do sertão, pp.27-29)

Muitos são os traumatismos22 por que passa o homem nordestino. E, invariavelmente,

todos permanecem carimbados em sua memória. Como todo e qualquer sentimento forte,

definido, a memória pode até omiti-los, promover certa indisponibilidade dos fatos ocorridos,

mas, em dado momento, o que está ou estava retido ali, aparece. Assim, sendo o sertão o

“lugar” do homem nordestino, este não consegue deixar de amá-lo, pelo contrário, falar do

sertão é um prazer, é um orgulho. Daí podermos afirmar, apesar de incorrermos no

essencialismo produzido por Patativa ao longo de sua obra, que o prazer e o orgulho

permeiam o coração solidário de Patativa sobre o sertão.

Consideramos, portanto, que o “trauma”, em se tratando de Patativa do Assaré, ecoa

como possibilidade de criação artística de uma poética marcada pela intensidade do

contraditório, evocado por um sertão visto e sentido subjetivamente, captado por sua natureza

de homem do mato. A criação literária do poeta se dá, neste sentido, sob representações

simbólicas constitutivas de saberes e práticas populares advindas da realidade sertaneja, ou

melhor de sua própria realidade.

Por isso, cantar o sertão não era apenas fácil, era necessário para Patativa. Ele poetiza o

sertão em toda a sua gama contraditória, como sendo um lugar que oscila desde realidades

que variam do mais puro embevecimento, face suas belezas naturais, até a dor da fome e da

miséria extrema, ambas advindas da pobreza que assombra o nordestino. Certamente, não é

difícil compreender a significação deste canto, sobretudo quando se é do sertão e se viveu na

zona rural, em contato com a natureza, partilhando crenças e esperanças, vivendo o drama das

secas e as necessidades decorrentes da pobreza (NÓBREGA e SILVA, 2007, p.121).

Para o poeta matuto, ser filho do sertão é uma sorte, usando as palavras de Patativa: é

uma fortuna herdeira do destino, do seu destino. Ele se vê, literalmente, elemento da paisagem

sertaneja. Os fragmentos a seguir retirados do poema O retrato do sertão enfatizam essa

posição, a qual não se permite dialogar com questionamentos divergentes do seu pensar. Na

versão patativana, o sertão é aquilo que o poeta quer que seja: o seu paraíso terreno. Daí a

22 A expressão traumatismo, que pode ser entendida também como lesão física ou perturbação mental, não é colocada aqui para intensificar o tom essencialista da obra de Patativa do Assaré, mas para discutir o tema em caráter de reflexão. Pois, situações como seca e pobreza, que acarretam lutas no sertão do Nordeste brasileiro, são problemáticas que sugerem um tipo de perturbação – trauma – de extensão, intensidade e gravidade sem precedentes para um povo estigmatizado socialmente.

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extensão da obra do poeta estar carregada de tons próprios, unilaterais, estando pouco aberta

para críticas negativas. Talvez também parta desse fato, a possibilidade de grande parte dos

críticos de sua poesia apenas fazerem-lhe ecos, sem contradizê-la, já que simplesmente

aceitam o ver e o sentir de Patativa, e nada mais:

Aqui, no mundo afastado, Acostumei-me a viver, Já nasci predestinado, Sabendo amar e sofrer. Neste meu sertão bravio, Nas belas tardes de estio, Da chapada ao tabuleiro, Eu louvo, adoro e bendigo O ladrar do cão amigo E o boiar do vaqueiro... Que prazer! Que grande gozo, Que bela e doce emoção, Ouvir o canto saudoso Do galo do meu sertão, Da risonha madrugada De uma noite enluarada! A gente sente um desejo, Um desejo de rezar E nesta prece jurar Que Jesus foi sertanejo. Meu sertão, meu doce ninho De tanta beleza rude, Eu conheço o teu carinho, Teu amor, tua virtude.

(ASSARÉ, 2006, pp.29-30)

O sertão imaginado por Patativa está simbolicamente preso a sua filosofia de vida, com

amarras próprias, como é possível que verifiquemos nos versos: Meu sertão, meu doce

ninho/De tanta beleza rude. Nestes versos, o autor afirma que, mesmo sendo seu doce ninho,

o sertão é também um lugar de beleza rude. E se é rude, a nosso ver, é agressivo, é mau, causa

aflição e trauma. Todavia, na mesma hora, ele se contradiz e remenda: Eu conheço o teu

carinho/Teu amor, tua virtude. Aqui, o poeta se esquece da rudez do lugar e diz que conhece

apenas seu carinho, amor e virtude. Ele vai e vem com o seu sentido de “sertão”. Contrariando

essa tendência de significação do termo, de acordo com estudos etimológicos, segundo Lima

(1999, p.57), a palavra sertão é oriunda de “desertão” e seu sentido se encontra, conforme

dicionários da língua portuguesa dos séculos XVIII e XIX, com dupla idéia: 1) a espacial de

interior; 2) e a social de deserto, região pouco povoada. Hoje, Ferreira (2002), em seu

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dicionário, traz um sentido, a priori, idêntido àquele: 1. Região agreste, distante das

povoações ou das terras cultivadas; 2. Terreno coberto de mato, longe do litoral; 3. Interior

pouco povoado.

Isto posto, tal sentido transcendia, de acordo com estudos sobre o termo realizados por

Maria Elisa S. Mader (1995) naqueles séculos, o de uma delimitação precisa. Ao discutir o

imaginário sobre sertão elaborado por viajantes, missionários e cronistas, bem como as

especificidades da colonização portuguesa, a autora analisa os sentidos que o termo foi

adquirindo nos diferentes textos da época. Para ela, mais do que em oposição a litoral, a

palavra sertão deve ser entendida em contraste com a idéia de região colonial – espaço

preenchido pelo colonizador – que o imaginário de seu sentido se constitui.

Sendo, portanto, um território vazio, de domínio desconhecido, cujo espaço ainda não

foi ocupado pela colonização, o sertão é o mundo da desordem, domínio da barbárie, da

selvageria, do diabo. Ao mesmo tempo, se conhecido, ele pode ser ordenado através da

ocupação e da colonização, deixando de ser sertão, uma terra de ninguém, para constituir-se

em região colonial (MADER, 1995, p.13).

A autora destaca que no século XIX, a definição mais corrente para sertão o identificava

como uma área despovoada do interior do Brasil. Todavia, existiam duas outras conotações

bastante sugestivas: uma, que se aproxima do seu significado atual, que associa o termo às

regiões semi-áridas do Nordeste brasileiro; e outra, também muito presente nos debates de

autores contemporâneos, que prioriza a atividade econômica e os padrões de sociabilidade,

cuja aproximação ressalta sertão à civilização do couro (LIMA, 1999, p.58).

O que se depreende destes sentidos do termo “sertão” é que dependendo do que se quer

falar da região, ele alcança sentidos novos e/ou mais antigos, não deixando de ser o que ele é,

tanto geográfica quanto historicamente falando. Para a nossa pesquisa, observamos que a

palavra tem em Patativa uma conotação figurada, simbolicamente empregadora de imagens e

sentimentos que vão além de sentidos de dicionário. Ou seja, o sertão de que Patativa fala é o

“seu sertão”, daí o poeta exagerar no essencialismo e carregar tendenciosamente uma obra já

tão discutida no meio literário de posicionamentos próprios, pessoais e unilaterais.

3.4.2 Sertão: um lugar de traumas?

O sertão cantado por Patativa é um lugar/paraíso, mas que não deixa de ter sofrimento,

fome, exclusão, dor, etc. É um sertão que estigmatiza o povo do Nordeste, apesar de, em

vários momentos de sua poética, apresentar um teor de denúncia, protesto, solidariedade,

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como “uma voz que clama no desertão” pelos excluídos e menos favorecidos, por um povo

que vive sob o emblema do trauma da seca e da pobreza.

Nos estudos sobre a “teoria do trauma” desenvolvidos por Werner Bohleber23 (2000), as

catástrofes do século passado e do início deste fizeram e fazem dos traumatismos das pessoas

e das suas conseqüências uma tarefa incontrolável para o desenvolvimento e para a técnica da

psicanálise, do conjunto de métodos que se destinam a investigar as experiências emocionais

passadas do homem e entender seu papel na sua atual vida mental (SELIGMANN-SILVA,

2005, p.63). Esta, hoje, é uma teoria que faz parte do mundo pós-moderno, uma vez que, mais

do que nunca, as pessoas vivem sob o signo do trauma, tudo o que gera conflito no homem

pós-moderno pode provocar um “trauma”, seja qual for o espaço social a que ele pertença.

Experiências catastróficas causam verdadeiros traumas no homem e tudo fica ali retido

em sua memória de forma a ser expulso a qualquer momento do seu universo de dor

particular. Neste limite, amor e sofrimento se digladiam e se completam na intencionalidade

de trazer à luz dos pressupostos da alteridade, o respeito ao sertão nordestino. Alegria e

tristeza se confundem e se permutam a fim de, no canto da patativa, eclodir o sentimento do

homem sertanejo do Nordeste brasileiro.

A força simbólica do sertão é constante, em qualquer situação. Lugar de tradições e costumes, é um receptáculo de culturas vividas, disseminadas no espaço geográfico e na experiência. Também as emoções, as esperanças, as utopias e as resignações estão no âmago da palavra sertão. ‘Se a palavra tem essa força ela se assenta principalmente no significado das experiências que historicamente têm consubstanciado e qualificado o espaço sertanejo’ (NÓBREGA e SILVA, 2007, p.123).

Na fonte patativana, o sertão é sinônimo de vida, a vida do próprio Patativa do Assaré.

Nela, “a palavra sertão tem um forte poder evocativo, o que posto no imaginário destaca

imagens, sentimentos, raciocínios, mágoas, alegrias” (NÓBREGA e SILVA, 2007, p.121).

Entendendo a contradição de amar o sertão e, ao mesmo tempo, encontrar nele o sentido da

própria existência, faz de Patativa o típico herói das novelas, das histórias em quadrinhos ou

dos contos de fadas: ama sua pátria, seu lugar, veste-se com as cores dele, não se conforma

com as injustiças nele contidas e luta em prol de um lugar melhor, que ofereça a seus

moradores o bem maior: uma vida digna de ser vivida. Continuemos analisando outros versos

23 Seligmann-Silva em O local da diferença (2005, p.65), destaca que no número de setembro/outubro da revista alemã de psicanálise Psyche, Werner Bohleber organizou um dossiê dedicado ao tema ‘Trauma, violência e memória coletiva’.

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do poema O retrato do sertão, os quais intensificam essa escolha do poeta e pincelam sua

cosmovisão sertaneja idealizando seu espaço social:

Cantei e sempre hei de cantar O que o meu coração sente, Para mais compartilhar Do sofrer de minha gente. Com as rimas de meu canto Quero enxugar o meu pranto, Vivendo na soledade Com esta gente querida, Modesta e destituída De orgulho, inveja e vaidade. Esta gente boa e forte Para enfrentar conseqüência, Que zomba da própria sorte Com dobrada paciência, Que trabalha e não se cansa, Porque a sua esperança É sempre a safra vindoura; O sonho do sertanejo, Seu castelo e seu desejo É sempre o inverno e a lavoura. Desta gente eu vivo perto, Sou sertanejo da gema O sertão é o livro aberto Onde lemos o poema Da mais rica inspiração. Vivo dentro do sertão E o sertão dentro de mim, Adoro suas belezas Que valem mais que as riquezas Dos reinados de Aladim.

(ASSARÉ, 2006, pp.31-32)

O trauma, enquanto catástrofe individual e coletiva para o sertanejo da região Nordeste,

tem na seca e na pobreza as agruras de uma vida de dificuldades marcada pelo amálgama das

ações sócio-políticas de nossos administradores, que muito prometem e pouco realizam. A

primeira, a seca, não apenas deprecia a paisagem do sertão, ela fica entranhada mês após mês,

dia após dia, na vida de cada pessoa e, por extensão, de cada família. A segunda, a pobreza,

não apenas estereotipa ou emblema a fome, ela exclui e impede que o homem nordestino se

veja igual aos demais brasileiros pertencentes a outras regiões do país. Mesmo porque, nos

versos: Com esta gente querida/Modesta e destituída, Patativa continua a estigmatizar o povo

do sertão nordestino. Percebe-se que na mesma medida em que ele quer provocar, denunciar,

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protestar anti as dificuldades sociais do nordestino, ele não deixa de adjetivá-lo com termos

pejorativos e mal-colocados. Há uma maneira de fazer poesia que vitimiza esse homem e o

descaracteriza socialmente.

Já nos versos: Vivo dentro do sertão/E o sertão dentro de mim/Adoro suas belezas/Que

valem mais que as riquezas/Dos reinados de Aladim, o poeta idealiza um sertão que só existe

em sua imaginação, o que, se bem analisado, acaba por contaminar sua obra, uma vez que as

imagens retidas nos versos transbordam de simbologias próprias. O sertão tornou-se para

Patativa o seu maior tema de inspiração e criação poética. Ao refletirmos sobre suas palavras,

vemos um sertão que parece não existir:

Ah! O sertão é... o sertão é a riqueza natural que nós temos... é o ponto melhor da vida, para quem sabe ver é o sertão, pois ali tudo o que a natureza cria, tudo que é belo, que é bom, que é puro, nós temos pelo sertão[...] o diamante antes de ser lapidado... porque o diamante só é alguma coisa depois dele ser lapidado. Aí é que ele vai brilhar[...] mas o sertão é puro, tão puro quanto o diamante antes de seu trabalho[...] (ASSARÉ, 2001, pp.21 e 25).

Há nesta fala do poeta um “sertão” idealizado similar àquele narrado por naturalistas e

românticos, cuja disponibilidade em enaltecer não apenas o espaço geográfico em si, mas o

próprio sertanejo, no intuito de expressar uma autêntica identidade nacional, uma vez que esse

homem é o mestiço do índio e do branco europeu. A subjetividade é uma constante nos versos

que traduzem o sertão imaginado por Patativa: Cantei e sempre hei de cantar/O que o meu

coração sente/O sonho do sertanejo/Seu castelo e seu desejo/O sertão é o livro aberto/Onde

lemos o poema/Da mais rica inspiração. Esta subjetividade, presente nos poetas naturalistas e

romancistas, são características que, por vezes, passam desapercebidas por críticos de sua

obra por estarem muito próximas dos sentimentos humanitários que conduzem toda a obra de

Patativa do Assaré. E, neste sentido, muitos tomam a crítica com palavras que simplesmente

intensificam o cantar do poeta, sem desmistificá-las ou desconstruí-las.

È um poeta inteligente que não deixou sua poética se perder em histórias de Trancoso,

pelo contrario, ele a usa em função daquilo que as pessoas esperam ouvir: o sentimento. Pois,

ouvir o sentimento é mais profundo do que apenas senti-lo. Esse sentimento narrado em

versos se mescla à força dos elementos naturais, à simbiose entre o homem sertanejo e a

natureza com seus segredos e sua quase impenetrabilidade num ato de fusão literária que vai

da oralidade à escritura.

Com base na leitura que o poeta faz do sertão, é perceptível que seu trauma em vida é o

próprio sertão. Muito mais do que um lugar-paraíso, o sertão representa para Patativa, nas

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entrelinhas dos poemas que trazem o tema, um lugar de traumas, pois daquilo que muito se

fala, impregnado está, seja de sentimentos bons ou maus. Em se tratando do poeta, observa-se

que boa parte do seu falar sobre o sertão está carregado de conotações que, volta e meia,

conduzem-no a idealizações acerca do lugar que, em dado momento, representa sua alegria, e

em outro momento sua dor. O sertão representa o que há de bom e o que há de mal no

imaginário do poeta, tornando-se, assim, seu apelo traumático em vida.

3.4.3 Aspectos da memória de um poeta prodigioso nas palavras

Seixas (2001, p. 51-53) enfatiza que a arte é a única forma da linguagem que consegue

operar a síntese entre instante e duração. E a arte literária de Patativa permite esse encontro

em sua obra: o instante em que ocorrem as cenas, os quadros reais em sua memória e a

duração que permite reproduzi-los em versos e trazê-los como voz de um tempo e de uma

comunidade. A autora destaca o que trazem os autores modernos: “Lembramos menos para

conhecer do que para agir”, ou seja, a memória é menos um entender o passado do que um

agir. Para ela, o teórico que vai sublinhar tal característica da memória é Bergson, que é

insistente a respeito dessa função da mimese e afirma que a mesma tem um destino prático,

onde ela realiza a síntese do passado e do presente visando o futuro, contrai os momentos

passados para deles ‘se servir’ e para que isso se manifeste em ações de seu interesse. A

memória exerceria aí, uma função ética, incidindo fortemente sobre as condutas dos

indivíduos e dos grupos sociais.

Em uma de suas muitas entrevistas a Patativa, Feitosa (2003, p. 116) sublinha que só

depois de muito tempo, ficou perceptível para ele que a memória do poeta tinha algo de muito

especial: Patativa recortava peças discursivas de fatos e/ou situações de sua vida, repetidas

vezes em ocasiões distintas, como que “peças-chaves” para reproduzi-los conforme sua

conveniência.

Em sua obra, o poeta matuto não se distancia da tradição literária sobre a seca, ele a

enfoca como o grande causador da pobreza do homem nordestino, mas sem, contudo, culpar a

Deus, uma vez que era muito cheio de esperança para dar ao Divino essa responsabilidade. As

políticas públicas, para Patativa, sim, era o grande vilão da pouca sorte do povo nordestino no

entendimento do poeta. Seus quadros sociais sobre a seca são imagéticos. São permeados por

imagens fortes e tocantes, regada não por água, mas por suor e muitas lágrimas. Água ali era

um verdadeiro milagre. Na realidade, a relação da seca não aparece em momento algum

dissociada daqueles que tiram proveito dela. “Patrão e governo povoam o imaginário narrado

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como atores de uma situação vivida e aproxima a narrativa poética da história do Nordeste

brasileiro” (FEITOSA, 2003, p.226).

O crítico nos indica em seus estudos que a herança de todo um discurso preferencial

permeado pelo tema da seca, é traduzido a partir das narrativas orais dos nordestinos dos

tempos remotos, que vão passando de geração em geração, permitindo, assim, que seus filhos

e netos construam suas próprias visões sobre a seca (FEITOSA, 2003, p.227-228). Segundo

ele, a seca enquanto fonte de inspiração para Patativa, conduz-nos às seguintes reflexões:

1) é realista quando se propõe a informar sobre o quadro de estiagens, assumindo,

portanto, um caráter informativo, de notícia que se veicula para o público;

2) é imagética quando intenciona avivar seus ícones constitutivos; e,

3) é criativa quando estereotipa e mostra-se hiperbólica a fim de chamar a atenção das

pessoas que vêem a seca como uma doença, cuja contaminação acontece com um simples

olhar. Ser pobre e, ainda por cima, sertanejo, para muitos, sempre foi uma doença contagiosa.

Em 1915, ano que transforma a seca nordestina num ícone para o imaginário popular e para a literatura regional, os jornais cariocas começaram com unanimidade a defesa da emigração dos sertanejos – especialmente dos cearenses – para outras regiões. Jornais paulistas defendem a emigração nordestina. No entanto, esse apoio não livra o nordestino nem seus anfitriões dos estereótipos que confrontarão os agora constituídos sujeitos de uma história da seca: ‘os flagelados’, eternos oprimidos e devedores em relação anos povos do sul e sudeste: dominadores e responsáveis pelos destinos daqueles, cuja história tem mostrado uma relação conflituosa entre nordestinos deserdados e os povos que os ‘acolhe’, principalmente pela discriminação étnica presente nessas relações de ‘solidariedade’. (idem, p.228)

É, nesse caso, em defesa destes flagelados, bem como daqueles que permaneceram nas

regiões sertanejas do Nordeste, que Patativa inicia uma luta de denúncias e protestos sem,

entretanto, impedir que o canto da ave deixasse de ser um som com melodia. A estética, por

nenhum momento, abandonou sua criação poética. Seus poemas, mesmo em tom de denúncia

social ou protesto contra a exclusão e com carregado tom essencialista não foram atados de se

constituírem belos e ricos em forma e conteúdo.

Assim, entre os recursos desenvolvidos com base na carga produzida pela coletividade e

pelo individual de uma memória que era utilizada para versejar o povo nordestino e, por

extensão, a região sertaneja, toda a disponibilidade do poeta foi amplamente aceita no espaço

literário.

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No próximo capítulo, trataremos de discutir o testemunho na literatura de Patativa do

Assaré tendo por referência os conceitos abordados neste capítulo que se encerra, uma vez

que essa possibilidade da literatura se reproduz a partir da memória e do trauma, conceitos

substantivos para sua caracterização.

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CAPÍTULO 4

O TESTEMUNHO: a realidade estilizada pela literatura ficcional de Patativa do Assaré

a medida em que se busca mostrar vertentes de uma obra que tem,

comumente, em suas análises críticas uma positividade que sombreia os

versos poéticos, saturada de vitimização e concordância com o pensar do poeta, sentimos a

necessidade de observar outros veios do caráter literário de Patativa do Assaré, cujos focos

superam aquilo que já foi discutido de sua obra. Assim, nossa abordagem, a partir de agora,

será sobre seu caráter testemunhal.

4.1 Literatura e testemunho: faces de uma poética social

Controvertida para alguns, mas explicável para outros, trazemos, portanto, como uma

das maiores possibilidades de interesse legítimo nesta pesquisa, a literatura de testemunho24,

um tipo de escritura que sugere, no limiar da arte literária, memória e engajamento. Destarte,

nossa principal finalidade reside sumariamente em destacar o teor testemunhal que caracteriza

a obra de Patativa do Assaré, enquanto mais um veio distintivo do processo de criação do seu

fazer poético.

Utilizando-se da mimese de uma vida inteira dedicada à família, à agricultura, à roça, ao

povo nordestino, ao canto de viola, aos versos poéticos, Patativa tornou-se um dos mais

potentes nomes da literatura popular brasileira. Sua literatura impregnada pelo apelo da

alteridade, da cidadania, da inclusão – embora com alta impregnação do tom de vitimização –,

ressalta o aspecto social de seu povo em tom de denúncia e protesto sem, contudo, esquecer o

aspecto esteta de sua poética. Comprovemos essa fala inicial nos seguintes versos de ABC do

Nordeste flagelado que se encontram aqui registrados:

A – Ai, como é duro viver

24 “Recentemente os jurados de um concurso latino-americano patrocinado pela Casa de las Américas de Havana, adotaram a expressão literatura de testemunho para qualificar um tipo de escrita que desde os anos 70 não cessa de crescer. A escolha do termo obedeceu à necessidade de acolher um alto número de originais que se situavam na intersecção de memórias e engajamento. Nem pura ficção, nem pura historiografia; testemunho.” (Alfredo Bosi, 2002, p.221)

NNNN

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nos estados do Nordeste quando o nosso Pai Celeste não manda a nuvem chover. É bem triste a gente ver Findar o mês de janeiro depois findar fevereiro e março também passar sem o inverno começar no Nordeste brasileiro. B – Berra o gado impaciente reclamando o verde pasto desfigurado e arrasto com o olhar de penitente; o fazendeiro, descrente, um jeito não pode dar, o sol ardente a queimar e o vento forte soprando, a gente fica pensando que o mundo vai se acabar. (ASSARÉ, 2004, pp. 308-310)

Os versos que compõem esse poema fazem parte do caráter peculiar de uma memória

privilegiada, característica relevante para o processo constitutivo do testemunho através da

literatura. A memória, segundo Diehl (2002, p. 120), transcende seu significado enquanto

fonte de informação para o conhecimento histórico. O crítico entende que ela é a expressão do

próprio pensamento histórico. Não queremos, todavia, tratar a memória de Patativa como a de

um historiador – memoralista –, mas como a de um sertanejo que se utilizou do caráter

singular de sua memória para tornar as experiências vividas em poesia.

Lembramos que memória e experiência são argumentativamente relacionais no processo

de elaboração da obra do poeta cearense. Entretanto, faz-se importante ressaltar que o termo

experiência é aqui levantado como “sociabilidade comunitária” – conceito típico de sociedade

pós-moderna –, uma interpretação concedida por Walter Benjamim (1980). Essa sociabilidade

comunitária advém do processo da memória coletiva ressaltada por Halbwachs (2006), que se

faz presente na fonte patativana e, ao mesmo tempo, é enfatizada pelo uso de uma memória de

reserva individual (BERGSON, 1990), a qual processa e assimila aquilo que é útil para o

poeta, através de suas escolhas. Com isso, percebe-se que memória coletiva e memória

individual não se contradizem em Patativa, elas se complementam com base no social.

Continuemos observando outros fragmentos do poema ABC do Nordeste flagelado

(ASSARÉ, 2004, pp. 308-310), os quais continuam a enfatizar essa fusão dos tipos de

memória na fonte patativana:

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I – Ilusão, prazer, amor, a gente sente fugir, tudo parece carpir tristeza, saudade e dor. [...] J – Já falei sobre a desgraça dos animais do Nordeste; com a seca vem a peste e a vida fica sem graça. Preciso dizer agora o povo como é que fica [...] L – Lamenta desconsolado o coitado camponês porque tanto esforço fez, mas não lucrou seu roçado. Num banco velho, sentado, olhando o filho inocente e a mulher bem paciente, cozinha lá no fogão o derradeiro feijão que ele guardou pra semente. Q – Quem quer ver sofrimento, quando há seca no sertão, procura uma construção e entra no fornecimento. Pois, dentro dele o alimento que o pobre tem a comer, a barriga pode encher, porém falta a substância, e com esta circunstância, começa o povo a morrer.

O poeta versa daquilo que toda uma coletividade testemunha, mas que precisa de sua

individualidade para se fazer anunciar. O sentimento é coletivo quando Patativa diz que no

sertão tudo que é Ilusão, prazer, amor/A gente sente fugir,/Tudo parece carpir/Tristeza,

saudade e dor, todavia, quando destaca: Já falei sobre a desgraça, verificamos que se

precisou de uma voz para falar. Esta voz era a de Patativa do Assaré no sertão nordestino.

Todavia, o que contamina o tom dessa voz é a vitimização nela contida, que pinta o homem

nordestino em quadros de tristeza, dor, fome, choro, sofrimento. Como se este fosse o único

retrato possível a ser pintado desse homem...

Essa insistência na poesia patativana não é questionada por nenhum de seus críticos,

como já observamos anteriormente, pelo contrário, há uma concordância geral das narrações

desenvolvidas por Patativa, como se sua fala fosse tão perfeita, quanto imperfeita é a vida no

sertão, exceto, por sua verdade contraditória: o homem sertanejo é um “sofredor” que vive

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num “paraíso”. Pois, ele não deixa de modelar o nordestino como um injustiçado, cuja

“terrinha” é a melhor do mundo, um perfeito paraíso terrestre.

Neste sentido, se utilizamos a expressão sociabilidade comunitária de Benjamim,

verificamos que a mesma permite o nascimento da tradição, fato que admite a ocorrência da

fusão do coletivo com o individual, e que dá origem ao fundo anímico comum, cuja

capacidade de transmissão é potencialmente forte para as futuras gerações (DIEHL, p. 122).

Essa capacidade foi tão marcante em Patativa que muitos coetâneos seus se espelharam em

seu fazer poético e deram continuidade ao canto do violeiro e, por conseguinte, à poesia

matuta.

4.1.1 O testemunho de um poeta matuto cearense

Prefaciando Aqui tem coisa, livro de poemas de Patativa, Raimundo Cavalcante (1995)

desenvolve o estudo “Testemunho poético de um tempo”, cuja abordagem sobre a obra nos

proporciona uma dimensão parcial do caráter testemunhal proposto pelo poeta. Ao mesmo

tempo, tal característica nos permite explorar exatamente aquilo que buscamos analisar em

nosso estudo: a “literatura de testemunho”.

Este tipo de literatura, na versão postulada por Seligmann-Silva (2005), remete-nos a

um horizonte admissível na poesia do poeta cearense:

O testemunho não deve ser confundido nem com o gênero autobiográfico nem com a historiografia – ele apresenta uma outra voz, um ‘canto (ou lamento) paralelo’, que se junta à disciplina histórica no seu trabalho de colher os traços do passado... A literatura do testemunho apresenta um modo totalmente diverso de se relacionar com o passado (em oposição à história – grifo meu). A sua tese central afirma a necessidade de se partir de um determinado presente para a elaboração do testemunho (2005, p.79).

Com efeito, sendo a literatura de testemunho um gênero – nem autobiografia nem

historiografia25 –, conforme propôs Seligmann-Silva (2005), que pode ser construída com

roupagens e envolturas diferentes, destacamos o termo literário, neste estudo, não o

confundindo com o testemunho, enquanto ato que pode ser encontrado em vários gêneros,

mas sua existência sendo compreendida “no contexto da contra-história, da denúncia e da

busca pela justiça”, entre outras categorias, como destaca Penna (2003).

25 A historiografia abordada vislumbra o conceito proposto por Antônio Astor Dihel em seu texto “Cultura historiográfica: Memória, identidade e representação”, Bauru/SP: EDUSC, 2002, p.124.

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Seligmann-Silva (2003, p.373) enfatiza que dois pontos cruciais dessa discussão devem

ser bastante esclarecidos:

(a) A literatura de testemunho é mais do que um gênero: é uma face da literatura que vem à tona na nossa época de catástrofes e faz com que toda a história da literatura – após 200 anos de auto-referência – seja revista a partir do questionamento da sua relação e do seu compromisso com o ‘real’. (b) Em segundo lugar, esse ‘real’ não deve ser confundido com a ‘realidade’ tal como ela era pensada e pressuposta pelo romance realista e naturalista: o ‘real’ que nos interessa aqui deve ser compreendido como a chave freudiana do trauma, de um evento que justamente resiste à representação.

Em Patativa, vários são os eventos “traumáticos” enraizados no solo nordestino e que

sugerem a resistência do povo: a seca, a falta de reforma agrária, a fome. Sua poética não tem

por objetivo representar esse “real” destacado por Seligmann-Silva, mas dar forma e conteúdo

a ele, passando a transmutá-lo. O autor teoriza que a tensão que habita a literatura na sua

relação dupla com o “real”, seja de afirmação ou de negação, também é encontrada no

coração do testemunho. Pois, segundo ele, a literatura e o testemunho só existem no espaço

entre as palavras e as “coisas” (2003, p.374). Literatura e testemunho, portanto, habitam num

ponto intersticial entre a ficção e a realidade, justamente aquilo que Patativa buscou promover

em sua obra: a estilização da realidade pela ficção literária.

Encontramos na poesia do poeta – que tão bem soube narrar a vida de seus conterrâneos

com a propriedade de quem participou do sofrimento dos nordestinos em momentos

catastróficos – elementos que corroboram para o foco dessa tendência: a fome, a sede, o

desemprego, o abandono, a falta de terra para trabalhar, a exclusão, bem como outros

problemas de caráter social, todos provenientes da seca, das intempéries naturais e das

desatenções governamentais. João Camillo Penna ainda afirma “a verdade e a utilidade são,

portanto, fundamentais na concepção de testimonio26”.

Os versos do poema O ABC do Nordeste flagelado contam, na cosmovisão do poeta, a

história de dor e sofrimento – o flagelo – do povo nordestino. Neles, Patativa constrói não

apenas a história do seu povo, mas a sua própria história, como uma contra-história. Ele não

foi simplesmente uma voz testemunhal de um tempo ou de uma situação, mas um personagem

real dessa história forjada no amálgama das políticas administrativas de nosso país.

Considerando a necessidade de rigor na atividade da crítica literária, cabe, em primeiro

lugar, reconhecer e avaliar no âmbito estritamente teórico a existência de duas grandes

26 Expressão também usada em castelhano para expressar seu caráter documental.

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concepções de “literatura de testemunho” bem como o fato de que elas não dialogam entre si

até o momento. Uma delas se desenvolve no âmbito dos estudos sobre a literatura latino-

americana; outra, é dominante no campo da reflexão sobre a shoah, termo amplamente

utilizado para substituir a palavra holocausto. Ambas entendem ser a mimesis a natureza da

literatura. No entanto, estas concepções desenvolvem indagações bastante diversas sobre as

possibilidades de a palavra representar a realidade, formulando, no limite, hipóteses

antagônicas de interpretação da produção literária que tem sido designada pelo conceito de

testemunho (SELIGMANN-SILVA, 2005).

Entretanto, ambas as tendências servem apenas como suporte teórico, uma vez que

entendemos sua concepção baseada na possibilidade em que se apresenta como sendo mais

um gênero possível de nossa literatura, tal qual trata Alfredo Bosi. O testemunho, para o

crítico, “quer-se idôneo, quer-se verídico, aspira a certo grau de objetividade”, encontrando-se

numa zona fronteiriça bastante delicada, uma vez que pode ser assim interpretado:

ora fazer a mimese das coisas e atos apresentando-os tais como aconteceram, e construindo, para tanto, um ponto de vista confiável ao suposto leitor médio; ora exprimir determinados estados de alma ou juízos de valor que se associam, na mente do autor, às situações evocadas (BOSI, 2002, p 222).

É neste contexto enfocado por Bosi que podemos dizer que a obra do poeta cearense é

literatura de testemunho, já que se coloca como um gênero literário que apresenta a realidade

através da ficção no plano pessoal de suas próprias experiências coletivas e individuais. Na

fonte patativana, lemos as lutas dos nordestinos em uma narrativa poética muito rica,

permeada por discussões e juízos sobre as ideologias da vida de seu povo e de sua região.

A marca da solidariedade – um dentre tantos os juízos de valor que o poeta cultiva –

percebida em sua poesia é existencial, para não dizer estritamente corporal. Pois, ele sente,

fala e canta a “sua” verdade essencialista, traduzindo com criatividade, para os outros, o que

via na natureza, na vida social e no mundo inteiro; ou seja, segundo Bosi (2002, p.221), esse

tipo de literatura não é pura ficção, nem pura historiografia, apenas testemunho.

Para Camillo Penna (2003, pp.297-346), é possível desenvolvermos certas categorias

mais ou menos constantes dentro da teoria do testimonio. Estas categorias, que serão

discutidas a seguir de acordo com os posicionamentos do autor, fazem-se presentes na poesia

de Patativa e estão idealizadas conforme suas possibilidades de interpretação para o

testemunho na literatura. Muitas são as poesias da fonte patativana que tratam dessas

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particularidades do testimonio. Contudo, continuaremos exemplificando-as com os versos do

poema O ABC do Nordeste flagelado. Penna assim categoriza esta teoria:

1) a idéia do testimonio compreendida como uma modalidade de contra-história, cuja

possibilidade advém do tom de protesto, de denúncia, de alteridade, de justiça comum. Esta

idéia se coloca na perspectiva de contestação à história, numa oposição às narrativas dos fatos

e acontecimentos sociais dos povos que ofuscam a realidade e a pintam em tons pastéis,

tirando do foco o que verdadeiramente interessa.

Em se tratando de Patativa, a literatura é usada em benefício coletivo, como protesto,

denúncia, através de sua inconformidade com a falta de políticas públicas dos governantes

frente às necessidades dos povos do interior do Nordeste: abastecimento de água, reforma

agrária, direitos como aposentadorias e vínculos empregatícios justos, etc. Daí o

desenvolvimento de uma poética voltada para a alteridade, para a justiça comum:

R – Raquítica, pálida e doente fica a pobre criatura e a boca da sepultura vai engolindo o inocente Meu Jesus! Meu Pai Clemente, que da humanidade é dono, desça de seu alto trono, da sua corte celeste e venha ver seu Nordeste como ele está no abandono.

2) a idéia de que o testimonio representa a vida não de uma pessoa (em particular), mas

sim de alguém “exemplar”, que tem no seu arquétipo o reflexo de outrem: uma pessoa que faz

parte da comunidade. Esta categoria traz a possibilidade do debate sobre o “homem

fronteiro27”, um homem que se coloca na linha intersticial do encontro com outras pessoas,

mas que se destaca por suas atitudes próprias em detrimento das demais. Aqui, o individual se

sobrepõe ao coletivo no sentido de que o homem que se “destaca” faz parte da comunidade, e,

mesmo assim, serve de exemplo para os demais. O seu testemunho é o testimonio dos outros

homens.

Patativa se destaca entre os seus coetâneos por ver o sertão – mesmo que, muitas vezes,

seja uma visão particularizada, de vitimização, e com a qual não compartilhamos por trançar 27 Em seu estudo Um sertão chamado Brasil, Nísia Trindade Lima coloca a expressão assim, com base em Sérgio Buarque de Holanda (1957): “A palavra que indicava mobilidade e deslocamento de território, para os primeiros, chegou a ser usada no Brasil, com referência a pessoas. Os homens eram ‘fronteiros’, vivendo o encontro de hábitos, de etnias, de linguagens, em suma, de culturas. Daí que a sua figura mais representativa, esse homem fronteiro, visto especialmente como o produto do encontro do português com o indígena, seja identificada em diferentes textos com a figura do sertanejo” (1999, p.43).

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estigmas na história do povo nordestino – e falar sobre ele, contar, narrar, aquilo que acontece

na sua comunidade. Não colocamos em destaque os personagens imaginados e/ou reais do

poeta, mas suas próprias experiências e as de sua comunidade, que servem de exemplo e são

contadas em seus versos:

U – Um é ver,outro é contar quem for reparar de perto aquele mundo deserto, dá vontade de chorar. Ali só fica a teimar o juazeiro copado, o resto é tudo pelado da chapada ao tabuleiro onde o famoso vaqueiro cantava tangendo o gado.

3) a acentuada visão de seu valor jurídico/histórico, caracteristicamente documental,

memorial. Esta idéia mostra o alcance valorativo daquilo que está sendo contado: se a

narrativa é tão importante para um povo, ela precisa ser documentada, mesmo que seja através

da literatura, que estiliza a realidade pela ficção.

FIGURA 2 Original para ilustração, reproduzido à página 109,

do livro "Digo e não peço segredo", de Patativa do Assaré28.

Hoje, todo o acervo da poética de Patativa e de sua trajetória em vida, de homem e

poeta, encontra-se resguardado no Memorial Patativa do Assaré, uma Casa de Cultura

institucionalizada no município do Assaré/CE em sua homenagem. Neste sentido, podemos

dizer que se sua poesia alcançou valor jurídico/histórico para o seu povo, sendo até

28 Imagem externa do Memorial Patativa do Assaré, localizado no Assaré/CE.

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documentada através de um Memorial, é porque ela realmente se caracteriza como

“documento” das histórias do homem nordestino do Ceará.

É neste Memorial, uma construção do século XVIII, inaugurada em 1999, onde estão

expostos os livros do poeta, além de roupas, óculos e outros objetos de sua antiga residência.

Ali também estão registradas as homenagens feitas por universidades, onde são expostas,

assim como vídeos e cordéis que tratam da vida e obra do artista. O espaço serve também de

sede para o projeto “Aqui tem coisa”, cujo objetivo é levar alunos de escolas públicas a

desenvolverem trabalhos manuais, tendo como temáticas de criação a poesia de Patativa. É

um lugar de documentação, não apenas da vida e obra do poeta, mas de sua gente, de sua

região. Assim, para comprovar a disponibilidade documental de sua obra, trazemos os versos

finais de O ABC do Nordeste flagelado, que simbolicamente é apenas uma representação do

que a ficção pode fazer com a realidade a partir da cosmovisão do poeta:

Z – Zangado contra o sertão dardeja o sol inclemente cada dia mais ardente tostando a face do chão. E, mostrando compaixão lá do infinito estrelado, pura, limpa, sem pecado de noite a lua derrama um banho de luz no drama do Nordeste flagelado.

4) a questão do “mediador do testemunho”, que complexifica a “voz” testemunhal,

aquele que anuncia em forma de intercessão pela vida do outro. A voz do mediador exerce a

função de abranger ou encerrar situações cotidianas, boas ou más, vivenciadas pelo povo. Ao

mesmo tempo, é uma voz intercessora que atende sinteticamente aos dispositivos

anteriormente citados do testemunho: modalidade da contra-história; representação da vida de

alguém exemplar que vive em comunidade; valor documental. Patativa se coloca, bem como a

fala de grande parte da crítica de sua obra, como um “salvador da pátria”, o herói do sertão

que intercede pela vida de um povo “sofrido”, “flagelado”. É uma vitimização tal que a voz

do mediador se torna também o canal de onde fluem os estigmas que geralmente estereotipam

o povo do Nordeste. Acompanhemos outros versos do poema analisado:

T – Tudo sofre e não resiste este fardo tão pesado, no Nordeste flagelado em tudo a tristeza existe.

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Mas a tristeza mais triste que faz tudo entristecer, é a mãe chorosa, a gemer, lágrimas dos olhos correndo, vendo o seu filho dizendo: mamãe, eu quero morrer!

Penna (2003, pp.308-312) destaca que, na realidade, o que importa não é simplesmente

as abordagens categóricas do testimonio, mas a verdade do sujeito testemunhal compreendido

como sujeito coletivo. Pois, em geral, ele narra a construção das subjetividades coletivas

sendo sujeito representativo de sua comunidade. Para o crítico, o que está em jogo quando se

fala em testemunho é a sua função representativa na literatura, levada a cabo tradicionalmente

pelo poeta – o intelectual – concebido como porta-voz do povo (comunidade), e a estruturação

de um novo conceito de representação ligado ao estabelecimento de identidades político-

ideológicas. E é nesse ponto que chegamos a um dos pontos altos de nossas reflexões: a

poesia patativana se caracteriza com alto teor testemunhal no limite em que coloca a verdade

do poeta, enquanto sujeito coletivo, enquanto seu representante real.

De A a Z na obra de Patativa, o testemunho é categorizado pelo testimonio da vida de

seu povo, de sua região, de seu tempo. O ABC do Nordeste flagelado é um poema que

funciona, nessa perspectiva, como testemunha real – com base na sua verdade – do que se

passa no sertão do Nordeste brasileiro por refletir uma época e/ou uma situação que presencia

o horror de se viver numa região de seca e miséria, praticamente “esquecida” pelos grupos

sócio-políticos que representam o país.

Patativa do Assaré soube traduzir, como nenhum outro poeta da literatura popular

brasileira – mas respeitando a todos, bem como sua obra e contribuição artística –, os

sentimentos do povo sertanejo em som e cores, assim como ele os pintava. Tal peculiaridade o

consagrou como ícone maior de uma voz – a voz do homem sertanejo – que, antes sem eco,

tornou-se marca registrada da vida e luta de “minorias” representativas da sociedade: pobres e

matutos. A poética de Patativa constitui, portanto, o relato de uma vida em versos: são

fragmentos da vida no sertão. Ele estilizou a realidade através da arte literária.

Nos próximos tópicos, continuaremos a explorar questões que envolvem a literatura de

testemunho: escritura documental, trauma, memória, quadros reais, cenas reais, fragmentos,

pois, elas nos fornecerão os elementos que precisamos para sua compreensão.

4.1.2 Do oral à escritura, uma poesia documental

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Rebuscando quadros imagéticos da poesia de Patativa, observamos que o autor trouxe

para a sua obra – originalmente oral – o retrato de uma região devastada pelo flagelo

interlocutório da seca, da falta de água no Nordeste e de seu abandono total pelos políticos e

autoridades governamentais. São quadros de miséria e dor, são quadros “catastróficos”,

subumanos. Ficção e realidade aí se confraternizam a fim de eternizar momentos históricos de

nosso povo, de um “Nordeste flagelado”. É sob essa perspectiva que a memória oral de

Patativa se tornou escritura poética. Sua oralidade o tornou violeiro e o consagrou poeta. Era

um homem de caráter erudito que se permitiu “popular” para poetizar documentalmente o

povo de sua terra.

É possível vislumbrar, ao longo da obra, o caráter da memória patativana e a literatura

de testemunho tão bem representado nos versos do poeta. Ele conseguiu imortalizar em sua

vasta obra um forte apelo pelos menos favorecidos, testemunhando e servindo como

interlocutor de situações forjadas por uma sociedade que sabe separar, mas não sabe unir; que

globaliza, mas não socializa.

Utilizando algumas poesias da obra Cante lá que eu canto cá, propomos uma releitura

da memória ali empregada por Patativa, assim como interpreta Halbwachs (2006) e que já

destacamos no capítulo anterior. Segundo o sociólogo, na maioria das vezes, lembrar não é

reviver, mas refazer, reconstruir, repensar com imagens e idéias atuais, as experiências

vividas, onde a lembrança se dá a partir de uma imagem construída pelos materiais que estão,

agora, à disposição, no conjunto de representações que povoam a consciência atual.

Além da memória, que caracteriza parte de sua obra, percebe-se, pois, um forte teor

testemunhal, de caráter, diríamos até, documental. O poema A morte de Nanã, que tem por

cenário o sertão de 1932, época marcada pela fome e pela miséria, reflete com precisão tal

congruência de sua obra com o testemunho. Neste poema, a figura de Nanã fomenta a insígnia

da grande maioria das crianças da região vitimadas pela seca e pelas políticas salvacionistas

da chamada “indústria da seca”, que morre de inanição por falta de alimentação.

Os versos que introduzem o poema contextualizam a situação social do narrador e de

seus contemporâneos no ambiente vivido. Marcadores que podemos elencar como a pobreza,

a dependência financeira e o sofrimento imperam na região da seca: o sertão do Nordeste.

Apenas uma alegria, a “filha” Nanã, prefigura uma espécie de antídoto de uma situação social

adversa.

Em 1932, a estratégia do governo era patrocinar a retirada dos nordestinos para a

Amazônia, onde a maioria dos retirantes sofreria na viagem e no destino rigores e privações

maiores. No cenário descrito, o Ceará, havia os maiores “campos de concentração” do

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Nordeste, espaço mantido pelos órgãos financiadores da seca na tentativa de impedir o

crescente êxodo para as cidades maiores. A poesia aí opera como antídoto e como mediação

para as adversidades sofridas, onde saídas simbólicas são apresentadas, como destaca Feitosa

(2003):

a) a felicidade paterna mediando a extrema pobreza vivida;

b) o canto dos pássaros mediando a dor irreparável da perda da “filha”;

c) a certeza da vida eterna de Nanã no paraíso mediando a dor paterna.

Além disso, essa poesia também funciona como testemunha “real” do que ali se passou,

como fonte de informação e contestação a partir do retrato de uma época que presencia a

subtração humana e a luta de pais de família para alimentar seus filhos, num contexto

marcado pela escassez absoluta do que comer e do que beber, e pela total inércia dos

governantes na busca por soluções compatíveis com a necessidade do homem nordestino.

Eu vou contá uma históra Que eu não sei como comece Proquê meu coração chora A dô do meu peito cresce Omenta o meu sofrimento E fico uvindo o lamento De minha arma dilurida Pois é bem triste a sentença De quem perdeu na isistença O que mais amou na vida. [...] Dentro da minha pobreza Eu tinha grande riqueza: Era uma querida fia Porém morreu muito nova Foi sacodida na cova Com seis ano e doze dia [...] Mas, neste mundo de Cristo, Pobre não pode gozá. Eu, quando me lembro disto, Dá vontade de chorá. Quando há seca no sertão, Ao pobre farta feijão, Farinha, mio e arrôis. Foi isso que aconteceu: A minha fia morreu Na seca de trinta e dois. Vendo que não tinha inverno, O meu patrão, um tirano, Sem temê Deus, nem o inferno, Me dexou no desengano, Sem nada mais me arranjá. Teve que se alimentá

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Minha querida Nanã, No mais penoso matrato, Comendo caça do mato E goma de mucunã. (ASSARÉ, 2004, p.38)

Contudo, enfocar o tema mais catastrófico vivido por parte do povo brasileiro não foi

característica única de Patativa, que era sertanejo e falava do sertão. Em outras áreas da

literatura, também vemos essa preocupação sobre o tema. Albuquerque Jr. (1999) ao falar dos

quadros pictóricos que se destacam nas décadas de trinta e quarenta, refere-se diretamente a

Portinari que voltou sua obra para o sol do interior nordestino e para os dramas existenciais

(de caracteres sociais) daquele povo. Em seu quadro “Retirantes”, de 1944, o pintor foi

exímio na arte de também denunciar o sofrimento desse povo morto-vivo pela seca. Mais uma

vez, a arte estiliza a realidade tendo como escopo sua anunciação testemunhal. Para

Albuquerque Jr., esses quadros pictóricos funcionavam como construtos de representação da

realidade de uma região devastada pela seca. Daí a discussão do crítico, na sua invenção do

Nordeste, trazer à tona a arte como refletora do real.

FIGURA 3 Original para ilustração, reproduzido à página 19,

do livro "Perfil de Euclydes e Outros Perfis", de Gilberto Freyre29.

29 Imagem da obra “Retirantes”, de Cândido Portinari, pintada em 1944.

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“Retirantes” é um quadro que vai de encontro com a personagem Nanã do poema

patativano, pintada no quadro imagético da mente do poeta, em especial no que se refere ao

apelo da seca, a qual não apenas trucida os corpos dos indivíduos flagelados, mas tira-lhes a

vida, consumindo-as lenta e progressivamente, como assim narram os versos destacados: Teve

que se alimentá/Minha querida Nanã,/No mais penoso matrato,/Comendo caça do mato/E

goma de mucunã./E com as braba comida,/Aquela pobre inocente/Foi mudando a sua

vida,/Foi ficando diferente/Bem poco se alimentava/E inquanto a sua gordura/No corpo

diminuía,/No meu coração crescia/A minha grande tortura/E quando vêi o rompê/Da linda e

risonha orora,/Fartava bem pocas hora/Pra minha Nanã morrê... Neles, Patativa buscou ser

fiel ao que estava vendo, testemunhando, tanto quanto Portinari, mesmo não sendo

participante presencial da seca. O pintor buscou ser fiel na sua arte ao retratar os retirantes da

seca na tentativa de denunciar o flagelo nordestino. Patativa, por sua vez, estava ali presente

na região castigada pela seca, era uma testemunha “real”, por isso falava com a precisão de

quem participava efetivamente do sofrimento daquele povo flagelado.

Não é mérito nosso, todavia, entrar numa análise semiótica das imagens apresentadas no

quadro, mas refletir sobre sua finalidade testemunhal, enquanto arte que estiliza o real para

deixá-lo mais comovente. No caso de Portinari, ao adotar a preocupação com as condições

sociais do país, seu olhar se desloca do interior de São Paulo para o Nordeste, indo buscar nos

romancistas nordestinos, da década de trinta, imagens que melhor pudessem expressar os

dramas sociais do país. Ao interpretarmos suas figuras, vemos que as formas físicas

arredondadas cedem lugar a membros duros e ossudos. A desolação e a aridez tomam lugar

do fruto e da seiva. Os retirantes secos, enrugados, esqueléticos, que a pele mal cobre, fazem a

poesia de seus quadros virarem cólera, protesto, dor e miséria (ALBUQUERQUE JR., 1999,

p. 249). Para compreendermos a disponibilidade de Patativa em apresentar o drama vivido por

seus coetâneos, continuemos refletindo sobre os versos do poema A morte de Nanã:

E com as braba comida, Aquela pobre inocente Foi mudando a sua vida, Foi ficando diferente. Não sirria nem brincava, Bem poco se alimentava E inquanto a sua gordura No corpo diminuía, No meu coração crescia A minha grande tortura [...] E, numa noite de agosto,

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Noite escura e sem lua, Eu vi crescê meu desgosto, Eu vi crescê meu pená. Naquela noite, a criança Se achava sem esperança E quando vêi o rompê Da linda e risonha orora, Fartava bem pocas hora Pra minha Nanã morrê...

(ASSARÉ, 2004, p.38)

Em entrevista, Feitosa (2003) descreve o que declarou Patativa sobre esse poema e o

momento vivido por ele quando da sua criação, bem como as conseqüências do que ali

presenciava. Segundo o autor, essas entrevistas são fragmentos constitutivos de uma história

de vida, a vida do poeta, que tão bem soube confrontar realidade e ficção em função dos

menos favorecidos, de sua gente, que, como declara Albuquerque Jr. (1999), uma “gente que

só tem as próprias vidas e de seus filhos para oferecer, a oferenda esquelética e trágica”,

habitante de uma “região composta de quadros de horror que suscitam pena, solidariedade e

até revolta, mas também causam repulsa, medo, estranhamento e preconceito”.

Naquele ano, a seca maior que o Ceará sofreu foi no ano de 1932. Naquele tempo foi uma miséria, viu? E nem esse governo protegia ninguém. Iam tudo era para o Maranhão, ou se valiam de comidas brabas viu? E então, eu vendo aquilo, eu criei aquele poema, retratando Nanã, a menina que morreu por inanição. Eu substituindo o pai dela. Quem vê assim, pensa que eu era pai dela, não é? Mas não, eu criei na minha mente, por causa daquele sofrimento daquele tempo. Tantas crianças não morreram! Tantas Nanãs não morreram! Não é? (ASSARÉ, 2003, p. 224).

Patativa trata da seca como história de vida. Para ele, a memória da seca é um devir.

Não há “um divisor de águas” que a inaugure, senão as muitas ocorrências ao longo de uma

vida experimentada juntamente com seus coetâneos de todo o Ceará. Assim como os liames

que constituem a memória e o esquecimento numa só experiência, também a seca tem seu

termo binário de flagelo: as cheias, espécie de secas verdes, tão devastadoras quanto aquelas

institucionalizadas pelo poder público, como se observa no poema Seca d’água, texto

encomendado a Patativa para ser musicado e vendido em favor das vítimas das cheias no

Nordeste, em 1985:

É triste pata o Nordeste O que a Natureza fez Mandou 5 anos de seca Uma chuva em cada mês

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E agora, em 85 Mandou tudo de uma vez. A sorte do nordestino É mesmo de fazer dó Seca sem chuva é ruim Mas seca d’água é pior.

Na verdade, do processo de escolha e de exclusão – pois, sua memória se caracterizava

por ser seletiva – de que é constituída a mimesis, seja ela de caráter coletivo ou individual,

Patativa selecionou aquilo que pôde fazer de sua poesia matuta, uma poesia social com alto

teor testemunhal por permitir-lhe a possibilidade de estilização do real pela arte.

Quando identificamos o local da memória e da literatura de testemunho na obra

patativana, verificamos que ambas se tornam características que buscam o lugar de uma

poesia centrada na defesa de certas minorias, onde o testemunho nela presente é testimonio da

vida de um povo, de uma região, de um tempo em que certos “momentos” da história

vitimaram pessoas: a seca do Nordeste.

Refletir sobre a obra de Patativa significa, a partir de um olhar crítico criterioso, e à luz

dos falares de alguns autores, identificá-la como um diário vivo da trajetória do autor,

enquanto homem, e de seu cotidiano, que funcionou como laboratório de experiências vividas

e foi palco-cenário de eventos que têm ilustrado a saga do povo nordestino.

4.2 Fragmentos da vida no sertão: do canto à poesia, da cena ao testemunho

Do canto à poesia, do som essencial da pequena ave a uma poesia rica em expressão e

legitimidade, temos em Patativa um cantador de viola que se fez poeta de uma obra

reconhecida pela crítica como singular. Com base nos estudos biográficos de Gilmar de

Carvalho (2002), Cláudio Portella (2006), Cláudio Andrade (2003) e Tadeu Feitosa (2002-

2003), e uma leitura analítica da obra do poeta, é possível entender o trânsito sem fronteiras

entre o canto do violeiro, entoado na Serra de Santana nas noites festivas e enluaradas do

Sertão, e os versos transcritos em poesia que encontram vários caminhos para dialogar com a

diversidade cultural.

Da cena ao testemunho, do fato real – do sentir do povo – ao relato de vidas através de

uma literatura de caráter testemunhal, onde os versos poéticos se transformam no suporte

artístico propício para testemunhar o passado e o presente contemporizado na obra do poeta.

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Utilizando-se dos estudos apontados por Seligmann-Silva (2003-2005), encontramos a

referência necessária a fim de teorizar a pesquisa aqui proposta.

4.2.1 Fragmentos da vida no sertão ou cenas da vida real?

Estilhaços, pedaços, fragmentos... Como entender o conjunto – o todo – da poética de

Patativa, enquanto ficção, se seus versos traduzem cenas reais do sertão nordestino? Um

sertão fragmentado pela dor, fome, sofrimento e exclusão. Um sertão despedaçado pelas

práticas sócio-políticas do abandono. Um sertão estilhaçado pela seca... Onde iniciaria o

drama da vida real do homem sertanejo e onde terminaria o gênero ficcional da literatura

popular construída pelo poeta matuto?

Para Baumann (1998), a pós-modernidade trouxe toda a fragmentação – insegurança e

prisão – do homem moderno, em seu pensar, sentir e fazer. A totalidade outrora entendida

como imutável deste homem se chocou com a fragmentação da vida social contemporânea,

que permeada por uma incerteza, incontrolável e assustadora, configurou-se na sintese de uma

identidade mal-resolvida, líquida, longe de ser “verdadeiramente sólida e duradoura”, longe

de estar ancorada e adequadamente em suspensão a deriva. O autor continua:

Enquanto é uma necessidade intensamente sentida e uma atividade eloqüentemente encorajada por todos os meios de comunicação cultural autorizados a própria pessoa fazer uma identidade, ter uma identidade solidamente fundamentada e resistente a interoscilações, tê-la ‘pela vida’, revela mais uma desvantagem do que uma qualidade para aquelas pessoas que não controlam suficientemente circunstâncias do seu itinerário de vida; um fardo que dificulta o movimento, um lastro que elas devem jogar fora para permanecer à tona (p. 38).

Baumann (1998) entende que este traço do homem de hoje é universal e vai afetar as

diferentes pessoas em diferentes graus trazendo conseqüências de significação variável para

as procuras de suas vidas. Em meio a estas conjecturas, Patativa reivindica através de seus

poemas que o homem sertanejo, o qual se encontra sob a perspectiva de tantas práticas de

exclusão, busque significados para a sua vida.

Por isso, utilizar-se de sua poética em prol deste povo, permitiu a Patativa assumir uma

postura de vida ética e filosófica com fins sociais amplamente aceitos pelos estudos culturais.

Segundo Barbosa (1998, p.27), “se a palavra tem essa força ela se assenta principalmente no

significado das experiências que historicamente têm consubstanciado e qualificado o espaço

sertanejo”.

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Para Barroso (1956), nesta mesma perspectiva, “não há palavra mais vinculada à

História do Brasil, sobretudo do Nordeste, que ‘sertão’, consolidada intimamente com a

literatura, a música, o cinema e outras expressões artísticas e manifestações culturais”. É uma

palavra que traduz, historicamente, de acordo com Lima (1999), de início, a polaridade

sertão/litoral, revolvendo o fundo de uma polêmica entre liberais e românticos, já constituída

no âmbito do pensamento social do Império; mais tarde, apresenta-se associada à permanência

de uma cultura folk ou rústica em meio à modernização mercantil do país, cujos impasses

decorrentes dessa associação nos remontam à dicotomia atraso e moderno. O sertão, de sua

oralidade à sua escritura, foi cantado de todos os modos por Patativa. No poema Eu e o

sertão, ele foi especialmente enfático em seu pensar sobre o sertão:

Sertão, argúem te canto, Eu sempre tenho cantado E ainda cantando tô, Pruquê, meu torrão amado, Munto te prezo, te quero E vejo qui os teus mistero Ninguém sabe decifrá. A tua beleza é tanta, Qui o poeta canta, canta, E inda fica o qui cantá... Sertão, minha terra amada, De bom e sadio crima, Que me deu de mão bejada Um mundo cheio de rima. O teu só é tão ardente, Que treme a vista da gente Nas parede de reboco, Mas tem milagre e tem virtude, Que dá corage, saúde E alegria aos teu caboco. (ASSARÉ, 2004, p.21-22)

Neves (2003, p.153), por sua vez, afirma que o sertão pode ser definido como interior,

região agreste, lugar recôndito que se interpõe dialeticamente com o litoral. É um espaço

geográfico que estabelece uma alteridade espacial do colonizado em contraposição ao

território do poder e do padrão cultural, mas que traduz, segundo o entendimento do autor,

força imagética, de sentimentos e de sentidos, manifestada em diversas formas de expressão

artística. Em seu discurso, Neves traduz o espaço sertanejo do Nordeste brasileiro assim como

Patativa o (re)conhece: um espaço de imagens, cenas, sentimentos e sentidos (fragmentos da

vida no sertão) captados metaforicamente em sua poesia – forma de expressão artística que

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concretizou sua obra. Isto posto, é importante que lembremos que a arte literária torna a

realidade e suas particularidades mais comoventes.

Considerando que as diversidades culturais são formas de resistência na medida em que

são e estão sendo vivenciadas com conveniência, destacamos que o sertanejo, na sua

identidade de migrante, cuja condição é de desenraizado, busca não abrir mão de suas origens

e, por isso mesmo, luta astuta e bravamente a fim de ser aceito nos espaços sociais gerais. Nos

versos do poema Vaca Estrela e Boi Fubá, podemos observar isso:

Eu sou fio do Nordeste, Não nego o meu natura Mas uma seca medonha Me tanjeu de lá pra cá, Lá eu tinha meu gadinho Não é bom nem imaginá, Minha bela Vaca Estrela E o meu lindo Boi Fubá, Quando era de tardizinha Eu começava a aboiá. Ê ê ê ê Vaca Estrela Ô ô ô ô Boi Fubá. Aquela seca medonha Fez tudo se trapaiá; Não nasceu capim no campo Para o gado sustentá O sertão esturricou, Fez os açude secá, Morreu minha Vaca Estrela, Se acabou meu Boi Fubá, Perdi tudo quanto tinha Nunca mais pude aboiá. Ê ê ê ê Vaca Estrela Ô ô ô ô Boi Fubá.

(ASSARÉ, 2004, pp.323-324)

Sobre este sair e entrar dicotômico do homem sertanejo, Burity (2002 p.148) destaca

que “ocorre um processo duplo que vai falar das ilusões dos emigrantes do sofrimento e o

imigrante que atravessa a fronteira do estabelecido e do desconhecido”. Os migrantes são

quase sempre submetidos a processo de exclusão e a situação diaspórica desenvolve neles

uma visão crítica da realidade. Deles, pode-se afirmar o que Said (2006, p.20) diz, quando

fala de resistência, aplicada aos palestinos: ‘Eles têm plena consciência das dificuldades que

enfrentam como uma minoria oprimida e estão começando a lutar em termos de direitos civis

e cidadania’ (NÓBREGA e SILVA, 2007, pp.128-129). Essa característica se registra nos

fragmentos do poema Nordestino, sim, Nordestinado, não (ASSARÉ, 2005, p.40):

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Mas não é o Pai Celeste Que faz sair do Nordeste Legiões de retirantes, Os grandes martírios seus Não é permissão de Deus, É culpa dos governantes Já sabemos muito bem De onde nasce e de onde vem A raiz do grande do mal, Vem da situação crítica Desigualdade política Econômica e social.

Patativa do Assaré, explicitamente, expõe uma realidade contundente, através de uma

poética matuta, alicerçada na cultura popular, que aponta caminhos e perpassa fronteiras, num

mesmo espaço temporal, que procura conformar a própria existência, como vítima das

circunstâncias existenciais. Daí a necessidade do poeta de justificar não apenas sua formação

popular, mas também sua identidade sertaneja que, no mesmo instante que não nega sua

existência no sertão, (re)conhece-o e se conforma numa “resistência” peculiar de sua natureza

pessoal com o ambiente natural (NÓBREGA e SILVA, 2007, pp.128-129). É dessa

particularidade que se destaca o tom de subjetivação da obra.

Lembramos que Bosi (2002) identifica a resistência como um conceito que vem da ética

e não da estética, e, embora Patativa não dissocie, em sua obra, o tom ético do tom esteta, tal

peculiaridade se faz mister para seu fazer poético, uma vez que seu conceito de vida, sua

própria vida, foi o laboratório maior de sua obra, que se construiu a partir de cenas reais.

Franco (2003 p.352), por sua vez,compreende que a arte pode ser considerada, reafirmando o

que foi destacado antes, uma forma de resistência e compreende uma dimensão ética,

enquanto manifestação de indignação radical diante do horror. Nestes versos do poema O

retrato do sertão, Patativa reflete isso: Sou sertanejo e conheço/Meu sertão em carne e

osso,/Trabalho muito e padeço/Com a canga no pescoço,/E trago no pensamento/Meu irmão

no sofrimento/Que, no duro padecer,/Levando o peso da cruz,/É quem trabalha e

produz/Para a cidade comer (ASSARÉ, 2004, p.33). Aqui, ele retrata, como um fotógrafo

profissional ou um pintor que capta a imagem, em cores e profundidade, o “seu sertão”.

4.2.2 Do canto à poesia

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O canto de Patativa é a concretude da manifestação oral de seu fazer poético. Andrade

(2003, p.21) destaca que desde os inícios paradoxais de sua trajetória literária, o poeta matuto

construiu sua obra tendo por caráter principal uma natureza singular mergulhada em batalhas

sociais, passando pela vigência dos códigos da oralidade, a disputa representada pela tensão

pós-moderna incutida nos desafios advindos dos problemas existenciais de um povo marcado

pelo sofrimento e o amor pela natureza, pelo telúrico, até chegar a questões que contemplam

os valores éticos, cidadãos, e as estratégias de convencimento e luta pela palavra, toda esta

variedade de elementos vai surgindo de um exame atento desta poesia rica e abstrusa.

Ao lermos uma poesia da fonte patativana, parece que ao fundo da leitura realizada, as

palavras que saem de nossa boca são acompanhadas por um ritmo cadente, um som de

instrumento musical que soa aos nossos ouvidos e dá a sonoridade e o ritmo precisos,

emitidos pelos cantadores de viola das regiões interioranas.

Na construção da poética sertaneja – ou matuta – de Patativa, observamos dois

momentos fecundos: o primeiro, tendo por suporte da arte a música, o oral, poemas falados e

cantados, que se torna marca fundamental da obra e caracteriza a importância da oralidade; o

segundo, que tem por suporte a poesia, a escrita em versos, a qual autoriza o poeta matuto a

expandir o seu canto e a identificá-lo como aspecto constitutivo da literatura popular do

Nordeste brasileiro.

Destarte, inicialmente, Patativa canta o sertão para, depois, transcrevê-lo em poemas

versados com a mais rigorosa expressividade e espontaneidade típica do homem simples e

humilde do mato. De qualquer maneira, o suporte poesia sobrepôs o suporte música, como o

próprio Patativa ressalta: “Eu tocava só uma coisinha, pouquinha, na viola, só pra dar uma

entoação e tal e os outros cantadores também...” (ASSARÉ, 2001, p.47). Assim ele traduz seu

instrumento no poema Minha viola:

Minha viola querida, Certa vez, na minha vida, De alma triste e dolorida Resolvi te abandonar. Porém, sem as notas bels De tuas cordas singelas, Vi meu fardo de mazelas Cada vez mais aumentar. Vaguei sem achar encosto, Correu-me o pranto no rosto, O pesadelo, o desgosto, E outros martírios sem fim Me faziam, com surpresa,

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Ingratidão, aspereza, E o fantasma da tristeza Chorava junto de mim. Voltei desapercebido, Sem ilusão, sem sentido, Humilhado e arrependido, Para te pedir perdão, Pois tu és a jóia santa Que me prende, que me encanta E aplaca a dor que quebranta O trovador o sertão.

(ASSARÉ, 2004, p.66)

Citados por Tatit (1997, p.87), A. J. Greimas e J. Courtés questionam: se a música dita

erudita é uma linguagem artificial e construída, o que dizer do canto popular que, possuindo

os mesmos princípios basilares de organização semiótica, parece, todavia, natural? Para Tatit

(1997), a canção popular é produzida na intersecção da música com a língua natural, o que

implica em nossa lembrança de que assim fez Patativa, canto (música) e poesia (língua

natural) se intercruzam na obra do poeta matuto de forma constitutiva. Amparando-se de leis

musicais para sua estabilização sonora, a canção não pode, de outra maneira, abstrair-se do

modo de produção da linguagem oral – marca registrada do canto-poético de Patativa, a

oralidade. Daí, ressalta o autor, a sensação de que um pouco de cada nova obra já existia no

imaginário do povo, senão como mensagem final ao menos como maneira de dizer.

4.2.3 Da cena ao testemunho

Sem dúvidas, é do aspecto oral da fonte patativana que iniciamos a abordagem aqui

desenvolvida. Pois, o uso sistemático do testemunho oral possibilita à história oral esclarecer

trajetórias individuais, eventos ou processos que às vezes não têm como ser entendidos ou

elucidados de outra forma. Na verdade, são analfabetos, rebeldes, crianças, miseráveis,

prisioneiros, loucos que tematizam essas histórias. São histórias de movimentos sociais

populares, de lutas cotidianas encobertas ou esquecidas, de versões menosprezadas,

protagonizadas por minorias excluídas da sociedade (AMADO e FERREIRA, 2001, p.XIV).

Ao falar sobre suas poesias, neste caso, destacamos “A triste partida”, poema-canção

que se tornou hino do retirante nordestino, Patativa afirma em entrevista a Tadeu Feitosa

(2001):

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Pois olhe, aquilo ali, eu não vi ninguém não. Eu criei na minha mente, porque na década de 50, a vida era aquela. O próprio motorista não sabia que dia chegaria em São Paulo, nem sequer haviam boas estradas daqui pra São Paulo, viu? Então, aqueles flagelados, procurava a vida lá pelo sul. Aí eu criei ‘A Triste Partida’, retratei na minha mente aquela família fazendo as experiências do SERTANEJO e dando tudo negativo, negativo (ASSARÉ, 2001, p.47).

Patativa imaginava as cenas, colocava-as em sua mente e transpunha ali no poço de sua

mimese, os versos da poesia. Sua memória, rica e especial, atribuía imagem figurativa da cena

e a transformava em poesia. Todavia, muito mais do que quadros sociais de um sertão visto e

sentido, Patativa possuía quadros imagéticos do – seu – sertão e, utilizando-se desta

possibilidade da memória, alcançou o caráter documental, através do testemunho de uma

época e de um povo.

A obra de Patativa tem em seu escopo, toda a ambivalência do homem sertanejo e do

homem poeta, cujo homem sertanejo testemunhou a vida do povo do sertão, e cujo homem

poeta documentou em versos essa mesma vida. Há uma literalidade ipis litteris entre os dois

homens que se confraternizam em Patativa: o sertanejo e o poeta. O sertanejo deu voz ao

poeta, que não silenciou ante as injustiças vividas pelo povo sertanejo. Utilizando-se quase

sempre de metáforas, Patativa cantou poeticamente a vida no sertão, permitindo, assim, que

sua poesia se tornasse uma literatura de forte preceito testemunhal. Em A triste partida,

poema musicado de Patativa, observamos essa característica:

Setembro passou, com oitubro e novembro Já tamo em dezembro. Meu Deus, que é de nós? Assim fala o pobre do seco Nordeste, Com medo da peste, Da fome feroz... Agora pensando segui ôtra tria, Chamando a famia Começa a dizê: Eu vendo meu burro, meu jegue e o cavalo, Nós vamo a São Palo Vivê ou morrê. Em riba do carro se junta a famia; Chegou o triste dia, Já vai viajá. A seca terrive, que tudo devora, Lhe borá pra fora Da terra natá.

(ASSARÉ, pp.89-90)

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Patativa, como nenhum outro poeta da literatura popular brasileira, conseguiu captar o

sentimento do povo nordestino, utilizando-se de metáforas, para documentar sua existência.

Seligmann-Silva (2006, p.209) afirma que a literatura testemunhal pode conciliar a

desproporção entre imaginação, ato e, ainda, evento, sobretudo se pensarmos este último

dentro da categoria da experiência traumática. Para Bresciani (2006, p.96), as metáforas

constituem um terreno fecundo onde produz, a partir dos textos, uma imagem poderosa que

tende a provocar sentimentos de ansiedade, fascínio e medo, bem como uma representação

apaziguadora, captada pela palavra e pela classificação. O autor destaca, em outras palavras:

[...] se num primeiro momento essa figura de linguagem produz um impacto na imaginação suscitando emoções, ela traz, nesse mesmo movimento, para o domínio da razão um fenômeno antes inscrito no quadro dos fenômenos naturais. No ‘processo metafórico’ dá-se portanto a aproximação pela semelhança de dois campos semânticos diferentes, possibilitando fixar o parentesco entre idéias diversas, mas sobretudo desvelando uma organização subjacente ao fenômeno em questão (BRESCIANI, 2006, pp. 96-97).

A estiagem produz, no nordestino do sertão, a certeza de que o tempo de luta será longo

e, talvez, deixe muitas cicatrizes. São cenas de horror e sofrimento que, a priori, têm na seca,

uma eterna ameaça, e se configura para o sertanejo como traumática. Com a seca, as folhas

caem. Com exceção do juazeiro e da oiticica. Algumas plantas resistem. A verdadeira

caatinga fica verde: os facheiros, o xique-xique, o mandacaru, os cardeiros. Tudo fica seco:

rios, fontes, nascentes. Aos poucos, a comida começa acabar. Rapidamente, a fome começa a

chegar. A chuva é a salvação. O sertanejo vive a orar pedindo chuvas (ARAÚJO, 2000).

Parece um caos sem fim, ou melhor, que se finda com ela: a chuva.

Muitas são as poesias patativanas, nascidas a partir de uma memória que retinha fatos,

situações e cenas, quadros imagéticos, que foram transmutadas do real para reproduzi-lo e

reinterpretá-lo. Contudo, para concluir momentaneamente nossa discussão, trazemos de forma

representativa a poesia Dois quadros, como símbolo da reflexão ora apresentada e que traduz

a alegria e a tristeza do homem sertanejo, sentimentos binários – e arbitrários – que

caracterizam o sertão em toda a sua gama contraditória:

Na seca inclemente do nosso Nordeste, O sol é mais quente e o céu mais azul E o povo se achando sem pão e sem veste, Viaja à procura das terras do Sul. Da nuvem no espaço, não há um farrapo, Se acaba a esperança da gente roceira,

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Na mesma lagoa da festa do sapo, Agita-se o vento levando a poeira... Porém, quando, tudo é riso e festa, O campo e a floresta prometem fartura, Escutam-se as notas agudas e graves Do canto das aves louvando a natura. Alegre esvoaça e gargalha o jacu, Apita o nambu e geme a juriti E a brisa farfalha por entre as verduras, Beijando os primores do meu cariri.

(ASSARÉ, 2004, pp.55)

Essa contradição também permeia a obra do poeta, que admite ser o homem sertanejo

um homem sofrido e injustiçado que vive num ambiente revelado por ele como sendo um

paraíso. Este seria, portanto, um lugar de alegrias e tristezas, um lugar de sentimentos

essenciais. E Patativa assim resulta sua poética: numa obra essencialista em todas as suas

nuances. Nos versos do poema supracitado, encontramos quadros que encenam e sintetizam

situações características do sertão nordestino, cenas antíteses: de um lado a seca, de outro, a

chuva. Ambas as cenas simbolizam viveres e saberes do sertão. Assim, de sua memória

processual entre o individual e o coletivo, o poeta matuto Patativa do Assaré escolheu aquilo

que pôde fazer de sua poética, uma poesia com meandros sociais de alto teor testemunhal.

Talvez seja desse sentimento contraditório que envolve o discurso do poeta que

podemos encontrar a resposta para o elemento “trauma” em sua obra, enquanto caminho

constitutivo para a sua criação literária. Em Patativa, esse elemento se configura de forma a

perturbar o paraíso terrestre que ele pinta no seu sertão imaginado: Na seca inclemente do

nosso Nordeste,/O sol é mais quente e o céu mais azul. Pois, o que é traumático no sertão, não

é o lugar em si, mas as conseqüências que a vivência num lugar fragmentado pela estiagem

causam ao homem: aflição, dor, tristeza. Agruras sem fim...

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

tentativa de reinterpretação da poética de Patativa do Assaré, neste trabalho,

embora inacabada e com caráter exploratório, resultou de um esforço

reflexivo na busca de parâmetros novos ou ajustados às críticas literárias mais recentes sobre

a vida e obra do poeta. Nossa ênfase situou-se numa análise sócio-geográfica da criação

poética de Patativa, particularmente sobre a construção de sua identidade cultural, o seu

projeto ético-cidadão – e suas respectivas representações sociais –, bem como no entorno

testemunhal de sua poesia. Com isso, a fonte patativana deixou de ser abordada sob a ótica

pura e simplesmente biográfica, com destaque para dados sobre o poeta que já foram

exaustivamente adotados em estudos anteriores.

Aclamado pela crítica, Patativa do Assaré é, hoje, referência nacional de uma literatura

que estiliza o real pela arte. Sua aceitação é incontestável, pois trata de uma poética que

retrata o Nordeste brasileiro, embora sob as amarras de seu próprio entendimento. Sua figura

postula dizeres e saberes de um povo estigmatizado pelas agruras da seca e suas

conseqüências. Ele é, pois, um representante da literatura regionalista que se destaca como

paradigma a ser seguido.

Sua obra é muito mais do que uma caricatura do sertão ou do povo nordestino. É o

próprio sertão simbolizado à luz de sua filosofia pessoal, e é a própria voz do povo nordestino

testemunhada em versos. A poética patativana suscita a retomada do discurso regionalista,

não apenas na sua face lingüística, esteticamente falando, mas, sobretudo, por sua substância

ético-social, a qual garante todas as possibilidades já discutidas neste estudo, ao longo de seu

desenvolvimento.

Sob vários aspectos, em especial os biográficos, Patativa teve sua obra esmiuçada,

compartimentada por diversos críticos, os quais sempre viram, em sua poética, uma forma de

expressão legítima da cultura popular do Nordeste, sem qualquer atitude de contestação de

seu discurso. Contudo, não podemos deixar de ressaltar que essa expressão foi divulgada pelo

poeta de forma pessimista, uma vez que se detém particularmente na face deteriorada da

região, mesmo afirmando nos versos poéticos, vezes sem conta, que o sertão nordestino é um

paraíso. Há de se reconhecer, na obra, que o autor observa ser no período da estiagem que a

face depressiva do Nordeste aparece. Pois, quando chove, quando a boa chuva chega, tudo

muda, tudo se transforma.

AAAA

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Todavia, é o discurso primeiro, aquele que deprecia a nossa região, que chega, às

demais regiões brasileiras, como um retrato pintado. E esse retrato, com a mesma rapidez que

a fome mata, prolifera-se exibindo aquilo que todos já dizem conhecer: a região Nordeste é o

espaço geográfico brasileiro mais pobre e feio do país, cujos problemas sócio-econômicos são

desestruturais. E, assim, de centro cultural, o Nordeste passa a ser visto como espaço

periférico, um espaço estigmatizado social e economicamente. Seu brilho, por assim dizer,

passa a ser ofuscado por um estado que foi tradicionalmente forjado na memória social do

povo brasileiro.

Gilberto Freyre (1943), crítico defensor do regionalismo, procura fundamentar sua

posição, com base em critérios de natureza simbólica, na afirmação de que uma região pode

ser politicamente menos favorecida do que outra num mesmo território nacional. Mas, vital e

culturalmente, esta mesma região pode se apresentar mais significativa do que uma nação,

sendo muito mais fundamental por simbolizar-se como condição de vida e como meio de

expressão ou de criação humana.

Já Andrade (2000) observa que a dominação simbólica, a que a região Nordeste está

submetida, tem prejudicado a continuidade de uma produção intelectual original,

independente do que se desenvolvia anteriormente, algumas décadas atrás. Pois, os discursos

produzidos pela crítica do centro dominante persistem em formular a idéia de que o Nordeste

brasileiro é uma região tradicionalmente inculta e desacreditada.

A estigmatização imposta à região nordestina, bem como aos seus elementos

constitutivos, tem influenciado negativamente que artistas como Patativa do Assaré alcancem

o reconhecimento merecido, uma vez que não fazem parte do centro intelectual da erudição

recomendada para a Arte, como assim muitos interpretam. Desse aporte reflexivo, surge o

próprio discurso do poeta que, na tentativa de desfazer a imagem de um sertão feio, acentua-a

ainda mais, pintando um sertão de acordo com seus próprios traumas. Ao falar de um sertão-

paraíso que se ressente com a seca, com a falta de políticas públicas positivas e

comprometidas com o povo, Patativa estabelece conexões discursivas contraditórias em sua

obra, uma vez que busca enaltecer sua região usando um discurso que camufla

ressentimentos, perturbações, desilusões, sua dor pessoal. Tal discurso é o sentir do homem

sertanejo, que não tem voz, mas encontra em Patativa seu reflexo, aquele que testemunha a

vida no sertão pessoalmente e pode representar a todos, já que é uma figura de destaque da

comunidade.

Há, porém, um rastreamento de interpretação de sua obra que não a argumenta. Dessa

particularidade unânime adquirida pela consagração da crítica de sua obra, observamos o

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quanto visões críticas tendem a persistir e sombrear opiniões próprias, sem que se

estabeleçam discursos díspares que a conduzam a outros caminhos, senão os próprios abertos

pelo poeta. Numa primeira leitura da obra, sob qualquer atitude contrária, Patativa alcança

empatias que emergem do respeito e da admiração por uma postura, que no seu interior,

reflete simbolicamente o mundo intuído pelo sertanejo. Para nós nordestinos, os versos

poéticos soam como nossa própria voz, cuja fala versada expressa um desejo pessoal de

enaltecer a pátria querida: o Nordeste. Daí, vários críticos tê-lo como “o salvador da pátria”,

da nação nordestina.

Não queremos entrar no mérito de discutir, momentaneamente, o homem que foi

Patativa ou a extensão que tem sua obra para a literatura regional, pois, não temos esse direito,

embora reconheçamos que é preciso desfazer juízos de valor que só aceitam com profunda

simpatia seu discurso, mas não se apercebem de outros pontos discutíveis de sua poética.

Contudo, nossa preocupação, mais do que expor inquietações advindas da problematização

sugerida pela pesquisa em si, centrou-se na busca de dialogar com “novos olhares” acerca da

poesia patativana.

Não dispondo da verdade, procuramos não produzir um texto mensurável de

negatividade, embora reconheçamos que nossa abordagem impetra possibilidades que diferem

da crítica desenvolvida desta obra, mesmo que conjugue com a necessidade que se teve de

lançar mão do discurso dos pesquisadores da obra de Patativa, sendo com eles e, às vezes,

contra eles em suas interpretações da obra. Queremos ressaltar, todavia, que não foi objetivo

nosso, em tempo algum, aprofundar essa discussão, já que a consideramos apropriada para

futuros estudos.

Sob esta perspectiva, apesar de também concedermos, a nós mesmos, o privilégio

pessoal da grande empatia que temos pela fonte patativana, mesmo não sombreando tudo o

que o poeta fez com sua poiesis – como os demais estudiosos se propuseram fazer –,

verificamos que sua poesia é sui generis, uma vez que adota a propriedade de

impermeabilidades artístico-literárias consistentes e próprias. Na realidade, é impossível,

enquanto pesquisadores da literatura popular, não se envolver com a obra de Patativa do

Assaré: admirá-la e reconhecer sua relevância cultural também faz parte desta análise. O olhar

do pesquisador, não obstante, sobre os elementos essenciais do estudo, não foi amenizado por

essa empatia, pelo contrário, serviu de suporte para evitar imprecações errôneas ou inferiores.

Faremos, a partir de agora, uma incursão pelos objetivos a que sentimos necessidade de

propor, no intuito de responder ao que concluímos com nossos estudos. Estes, pela sua

estrutura exploratória, margeiam uma análise, a priori, respaldada pelo “novo”, por caminhos

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que ainda não haviam sido discutidos sobre a fonte patativana, dialogando com o tempo e o

espaço diferentes dos demais críticos da obra. A leitura que realizamos de Patativa alcança

temáticas que hoje são reflexões para os estudos culturais e as ciências sociais, o que nos

permite confrontá-la com discursos contemporâneos.

No primeiro momento, procuramos através da utilização de pontos biográficos de sua

vida e poiesis, designar o espaço geográfico a que pertenceu Patativa do Assaré e que

originou o berço de sua poética: o Nordeste brasileiro, um lugar, para ele, pintado nas cores de

sua cosmovisão em todos os sentidos físicos e naturais. Do elemento região, partimos para sua

compreensão de “sertão” com vistas para o interior – o mato –, local fecundo de sua obra.

Buscamos não apenas conceituar o vocábulo, embasados por estudos afins sobre o termo,

mas, sobretudo, expor o seu significado tendo por referência os versos poéticos dedicados ao

sertão, cantados pelo poeta. Desta discussão, originou-se a reflexão sobre a denominação

apropriada que se concede ao tipo de poesia desenvolvida por Patativa, uma poesia que tem

seu rizoma no termo “matuto”, o qual foi trazido para nossos estudos a fim de suscitar

discussões sócio-geográficas pertinentes à problematização que visam justificar essa

modalidade poética. Sob a referência de Candido (2001), procuramos conhecer quem é o

homem matuto/caipira e, com base na sua vivência interiorana, identificar que influências o

local apresenta para a criação literária do poeta, a qual não se fez particularmente poesia de

cordel, mas uma modalidade que encontrou nos recursos técnico-editoriais uma elaboração

mais arrojada: o livro.

Assim, dentro da literatura popular, podemos afirmar que a poesia de Patativa tem um

gênero específico: ela é “matuta”, e essa característica se explica na análise sócio-geográfica

desenvolvida, que vai ressaltar a comunidade a que pertence o poeta e a região,

geograficamente falando, em que habita. O tom de pertencimento é, na verdade, tônica de

relevo na obra: o poeta não desagrega os versos poéticos de sua vida comum no sertão

nordestino. Por isso, tanto prioriza em sua alocução os elementos discursivos: homem, sertão,

seca, fome, reforma agrária, justiça, lealdade, agricultura, amizade, política/o.

É desse tom de pertencimento que impregna a obra, que partimos para o segundo ponto

de discussão: as conquistas sociais do poeta-homem, onde identidade e cidadania, produtos de

seu projeto ético-pessoal são construtos subjacentes à obra. Este estudo apresenta os conceitos

de cidadania, identidade e ética numa interpretação pós-moderna à luz dos versos patativanos,

tendo por referência o uso de teóricos e estudiosos destas áreas. O que daí se observa é que

Patativa construiu uma identidade cultural arraigada por princípios éticos e cidadãos próprios,

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que se apercebem de forma valorativa na sua criação poética. São versos que traduzem o viver

e o sentir do povo nordestino.

Da diversidade cultural, sediada no espaço interiorano da região sertaneja, à diversidade

cultural de regiões longínquas, nasce um Patativa híbrido, mesclado por dicotomias que o

constituem: tradicional/moderno; erudito/popular; oralidade/escritura, cujas possibilidades

evocam um poeta que usava sua “visão de mundo” para fazer poesia. Sua vida, enquanto

homem, está ligada direta e puramente à sua poiesis. Assim, destacamos que sua subjetivação

encontra reflexos nas temáticas abordadas por Patativa, o que o essencializa, bem como a seu

discurso, pois, a rigor, a criação poética dele é essencialista em todas as suas flexões.

No terceiro momento, aferimos nossas abordagens ao caráter híbrido da poesia

patativana tendo por base o contexto enunciado pela memória oral que o caracteriza, também

chamada em nossa pesquisa de memória acústica. Sua oralidade é destaque porque ela

funciona, em concordância com outros elementos constitutivos, como ponte para produzir

poesia, uma poesia da “terra”. É dessa oralidade, concretizada na voz do poeta-violeiro, que

nasce o Patativa da escritura, o poeta-escritor. Além disso, para dar sustentação ao que se

propõe nesta discussão, utilizamos o termo “trauma”, explicando-o e ressignificando-o como

possibilidade criativa de sua arte, uma vez que o trazemos a fim de justificar tendências na sua

poética que o conduzem a contradições e idealizações próprias do homem interiorano, o qual

se apresenta como mediador da natureza e da cultura. Dessa relação íntima entre esse homem

e o meio surge uma condição que, freqüentemente, é qualificada como telúrica: uma condição

do ser nordestino, que busca uma relação de densa ligação com a terra, a qual não se

configura apenas como um discurso poético individualizado, mas essência da sensibilidade da

alma nordestina.

Há de se ressaltar que o “sertão” de Patativa é também seu trauma, pois na medida em

que ele o considera seu lugar-paraíso é também seu lugar-dor, cuja seca ou chuva conduz a

alegrias ou tristezas no sertão nordestino. Esse sertão é lugar de tensões permanentes diante

dos contrastes, das desigualdades e dos problemas que acompanham o debate sobre a pós-

modernidade na sociedade brasileira. Lembramos que nossa preocupação aqui não se deteve

em reunir conceitos da psicologia para explicar o trauma em Patativa, mas na observação

proveniente de nosso senso comum, pois, não era de interesse nosso fornecer explicações

psicológicas sobre o trauma, mas apenas compreendê-lo com uma lesão e/ou perturbação que

acomete uma pessoa que tem uma visão de mundo profundamente arraigada em princípios

próprios, nos quais acredita e torna-os filosofia de vida.

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É dos conceitos de memória e trauma que adentramos no quarto ponto de nossa

discussão: a literatura de testemunho. Esta característica na obra de Patativa foi observada

com base em discussões que tratam do teor testemunhal de uma obra que não se quer

biográfica ou historiográfica, mas que se faz “documental”, não como documento ou

documentário, mas enquanto registro da realidade, uma realidade estilizada pela literatura,

que, no seu papel simbólico, transmuta fatos reais em imagens fictícias, mas sem prejuízo

para o real ou para a arte. O real não deixa de ser reinterpretado e divulgado – não importa se

através de situações boas ou más –, ao mesmo tempo em que a arte permanece produzindo

magia e estilo.

Os versos estilizados por Patativa transformam a realidade, sem deixar de mensurá-la,

uma vez que seu testemunho é observável e presencial, e sugere participação nos eventos. Ao

estilizar o real, o poeta torna-o comovente, uma vez que se utiliza de uma linguagem superior

e especial: a literatura. As guerras que o povo nordestino enfrenta e as batalhas que necessita

vencer diariamente estão biunivocamente ligadas ao que se entende como fusão processual de

sua vida e sua lida. Há um interesse genuíno em Patativa de mostrar ao mundo o que se passa

na região Nordeste, com seus coetâneos. Tal fato talvez seja proveniente da tentativa de

Patativa em desmistificar estereótipos do povo e da região Nordeste. No entanto, o que se

procede daí é que em vez de desmistificar tais estigmas, Patativa intensificou ainda mais

paradigmas que conduzem o nordestino a se ver como um homem injustiçado, pobre,

excluído, miserável, sofrido, um homem sem perspectivas, a não ser esperar a chuva –

misericórdia divina – ou políticas públicas comprometidas com o todo e não com uma parte

minoria – misericórdia humana. Desta característica, o tom de vitimização se pronuncia com

força pela voz testemunhal.

Embasados por tais reflexões conclusivas, destacamos que, talvez, nenhum crítico

jamais – entendemos que esse “jamais” é muito tempo, mas não o retiramos, persistimos nele

– afirme que Patativa não foi o que ele representa hoje para a cultura popular do Nordeste.

Entretanto, certamente, muitos, como nós, buscarão uma reinterpretação de sua obra no

intuito de não desconstruí-la – pois, que direito nos assiste para tal? –, mas desmistificar

paradigmas até então inquestionáveis. A exposição dessas idéias ou elementos ainda apresenta

uma composição que sugere continuidade, por isso, deixamos algumas possíveis aberturas

para outras possibilidades deste estudo, o qual não quer a concretização de verdades nossas,

mas discussões que transcendam aquelas já propostas pela crítica:

1. Desmistificar o essencialismo demasiado contido na obra patativana.

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Subjetivação, idealização ou essencialismo... Seja qual for o nome que se dê a uma

singularidade que, de certa forma, “contamina” a obra de Patativa, encontra-se

tendenciosamente como fator marcante, o que lhe concede esse caráter de “essência” nos

elementos que lhe são caros: sertão, seca, fome, reforma agrária, justiça, política, entre outros.

2. Desconstruir o tom de vitimização nos versos que compõem sua poética.

Vítima. Esse é o sujeito que Patativa parece substantivar ao mesmo tempo em que

adjetiva o povo nordestino. Em seus versos, raras são as vezes que ele afirma ser o nordestino

um homem forte, livre de estereótipos. Pelo contrário esse homem é sempre pintado nas cores

do sofrimento e da exclusão.

3. Identificar o rizoma que corroborou no desenvolvimento de uma obra que, em

detrimento de qualquer análise que a sombreie, também proporcionou estigmas ao povo e à

região nordestina.

Se possível, é preciso questionar os estudiosos da obra patativana que, em suas críticas,

repetem o discurso do próprio poeta. Não há momentos de diálogo, há muita repetição da

proposta poética de Patativa, como se tudo de que falasse não passasse de verdades

inquestionáveis.

Estas são, portanto, fendas que fornecem subsídios para novas pesquisas, uma vez que

suscitam riqueza de elementos suscetíveis a possíveis reflexões da fonte patativana. Por hora,

o que podemos dizer, à guisa de conclusão, é que a obra de Patativa do Assaré apresenta, na

sua criação artístico-literária, forte predominância de elementos sócio-geográficos para se

constituir “matuta”, modalidade/gênero da poesia popular que nos remete à possibilidade de

uma produção que goza de aparatos técnico-editoriais que a privilegiam em detrimento, por

exemplo, da poesia de cordel.

Destarte, interpretar a poesia de Antônio Gonçalves da Silva, o Patativa, sob essa

perspectiva, conduziu-nos à literatura de testemunho, ponto marcante de nossa pesquisa, uma

vez que enveredou por trilhas interpretativas sobre a estilização da realidade pela arte, tendo

por base seu alto teor testemunhal. Tais caminhos encontrados permitiram uma pesquisa que

nos satisfez em seus resultados alcançados, cujos elementos descobertos apenas contribuíram

para que solidifiquemos nosso desejo de continuar usufruindo da literatura popular do

Nordeste, como objeto de nossos estudos, utilizando-nos, sobretudo, das referências teóricas

desenvolvidas pelos Estudos Culturais e pelas Ciências Sociais.

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GLOSSÁRIO*

Assaré: Município do Ceará localizado no interior do Estado, na região do Cariri. Espaço

sócio-geográfico importante na vida do poeta que referencia e caracteriza o gênero de sua

obra.

Cidadania: Conceito utilizado pelo poeta como um valor refletor das conquistas sociais

alcançadas por sua sobra. Através deste tema, Patativa demonstra seu desejo de tornar o

homem sertanejo, do interior cearense, um cidadão respeitado em todos os ambientes sócio-

culturais.

Ética: Outro conceito valorativo e bastante arraigado na obra patativana. Para o poeta matuto,

a ética é um instrumento pessoal que se caracteriza por uma postura individual que tende a

alcançar todo um coletivo comunitário.

Justiça: Valor moral utilizado por Patativa a fim de garantir direitos para os menos

favorecidos, ou seja, para aquelas pessoas que não podem se defender de determinados

poderes ditatoriais emanados por uma parte ínfima da sociedade. É um tema que na sua voz se

traduz como filosofia de vida.

Liberdade: Na obra de Antônio Gonçalves da Silva, o conceito de liberdade se confunde com

seu epíteto: Patativa. O poeta se sente livre para transitar em dicotomias que o postulam

enquanto mito da literatura brasileira: oral/escrito, popular/erudito, tradicional/moderno.

Como diria Gilmar de Carvalho, “é um pássaro liberto” que vozeria liberdade para o homem

sertanejo em busca de sua cidadania.

Matuto: Sujeito designado por Patativa como sendo um homem do interior, marginalizado

pela sociedade abrangente, mas, ao mesmo tempo, forte e lutador.

Natura: Nome dado à natureza pelo poeta e bastante utilizado em seus versos como forma de

destacar as plantas e os animais, bem como os elementos não-vivos (água, pedras, etc.) que a

compõem.

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Reforma Agrária: Na voz de Patativa, a reforma agrária é um dos produtos de alcance do seu

canto de justiça e protesto social: é um direito do homem da “terra”.

Seca: O tema tem tanta relevância para o poeta quanto seu lado dicotômico: a chuva. Pois,

para ele, ambos os temas reproduzem o que há de bom e o que há de mau no sertão e que,

conseqüentemente, caracteriza-o.

Serra de Santana: Município do Assaré/CE, onde Patativa nasceu e morou durante muito

tempo. Lugar considerado paradisíaco pelo poeta em suas narrativas.

Sertão: É um espaço sócio-geográfico que tem na obra de Patativa fonte de inspiração, a

nosso ver, traumática. O sertão tem alta representatividade na fonte patativana é o lugar-

paraíso e o lugar-dor, na mesma medida. Além disso, o sertão é o lócus origem de uma

poética literalmente sertaneja.

Sertanejo: Para Patativa, é uma identidade que representa muito mais do que uma

característica de quem é ou vive no sertão. É o sinônimo, enquanto característica pessoal, de

um homem forte, que ama o sertão e luta diariamente para sobreviver neste espaço inóspito.

* Principais palavras-temas utilizadas por Patativa do Assaré nas poesias destacadas nesta Pesquisa, cujas representações semânticas são conceitos do próprio poeta.

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