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1 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” FACULDADE DE HISTÓRIA, DIREITO E SERVIÇO SOCIAL JOÃO BOSCO DA NÓBREGA CUNHA BIOÉTICA E ANENCEFALIA: VIABILIDADE ÉTICA, JURÍDICA E MÉDICA DA ANTECIPAÇÃO DO PARTO DE FETOS ANENCÉFALOS FRANCA 2009

UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE … · ANTECIPAÇÃO DO PARTO DE FETOS ANENCÉFALOS FRANCA 2009 . 2 JOÃO BOSCO DA NÓBREGA CUNHA BIOÉTICA E ANENCEFALIA: VIABILIDADE

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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO”

FACULDADE DE HISTÓRIA, DIREITO E SERVIÇO SOCIAL

JOÃO BOSCO DA NÓBREGA CUNHA

BIOÉTICA E ANENCEFALIA: VIABILIDADE ÉTICA, JURÍDICA E MÉDICA DA ANTECIPAÇÃO DO PARTO DE FETOS ANENCÉFALOS

FRANCA 2009

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JOÃO BOSCO DA NÓBREGA CUNHA

BIOÉTICA E ANENCEFALIA: VIABILIDADE ÉTICA, JURÍDICA E MÉDICA DA ANTECIPAÇÃO DO PARTO DE FETOS ANENCÉFALOS

Dissertação apresentada à Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para obtenção do Título de Mestre em Direito. Área de Concentração: Direito Obrigacional Público e Privado. Orientador: Prof. Dr. João Bosco Penna.

FRANCA 2009

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JOÃO BOSCO DA NÓBREGA CUNHA

BIOÉTICA E ANENCEFALIA: VIABILIDADE ÉTICA, JURÍDICA E MÉDICA DA ANTECIPAÇÃO DO PARTO DE FETOS ANENCÉFALOS

Dissertação apresentada à Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, como pré-requisito para obtenção do Título de Mestre em Direito. Área de Concentração: Direito Obrigacional Público e Privado.

BANCA EXAMINADORA

Presidente: ____________________________________________________ Dr. João Bosco Penna, UNESP/Franca

1ª Examinadora: ____________________________________________________ Drª. Juliana Presotto Pereira Netto, UNESP/Franca 2ª Examinadora: ____________________________________________________ Drª. Flávia de Almeida Montingelli Zanferdini, FAAP/RP

Franca, ____ de ___________ de 2009.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço, especialmente, à minha esposa, Ana Carolina Aleixo Cascaldi Marcelino Gomes Cunha, por todo carinho, amor e força, que meu deu ao longo deste trabalho, e por toda a paciência que teve comigo, sempre, mesmo nos momentos difíceis.

Agradeço ao meu orientador, Prof. Dr. João Bosco Penna, por todo o apoio e consideração dispensados à minha pessoa, e, sobretudo, por ter acreditado no meu projeto de trabalho.

Agradeço, outrossim, ao meu pai, Sr. Ruy de Medeiros Cunha, por ter incondicionalmente me apoiado em todos os momentos de minha vida, e em todos os meus projetos, sempre acreditando na minha capacidade, e sempre torcendo pela minha realização.

Agradeço, ainda, à minha mãe, Srª. Maria Betânia da Nóbrega Cunha, por ter sempre contribuído para minha formação ética e moral.

Finalmente, agradeço à Profª. Drª. Flávia de Almeida Montingelli Zanferdini, pelos sábios conselhos, pela amizade e pela motivação de sempre, e agradeço ao Escritório Brasil Salomão e Matthes Advocacia, e a todos os seus membros, por todo apoio e motivação, e sobretudo, pelo suprimento de todos os meios necessários para tornar possível meu sonho de conclusão deste presente trabalho.

Não poderia ainda me esquecer de agradecer a todas as pessoas que contribuíram, direta ou indiretamente para a concretização deste trabalho, em especial aos participantes da pesquisa qualitativa realizada, que dedicaram valiosos minutos de seu tempo e de seus valores ao meu crescimento acadêmico.

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CUNHA, João Bosco da Nóbrega. Bioética e anencefalia: viabilidade ética, jurídica e médica da antecipação do parto de fetos anencéfalos. 2009. 206 f. Dissertação (Mestrado em Direito) - Faculdade de História, Direito e Serviço Social, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2009.

RESUMO O presente trabalho busca demonstrar a viabilidade ética, jurídica e médica do procedimento terapêutico consistente na antecipação do parto de fetos anencéfalos, se for desejo da gestante submeter-se a tal intervenção médica, de forma a garantir o exercício de seus mais básicos direitos constitucionais fundamentais. É cediço que a anencefalia é uma malformação congênita fatal que, uma vez verificada, implica, inevitavelmente, a inviabilidade de vida extra-uterina do feto por ela acometido. Apesar de ser cientificamente comprovada a inviabilidade de vida do feto anencéfalo, é forte o entendimento jurídico que enquadra a interrupção da gravidez de fetos acometidos por essa anomalia cerebral ao tipo penal do crime de abortamento, implicando responsabilidade penal à gestante e à equipe médica que realiza o procedimento. Embasado em premissas constitucionais, será demonstrado que a conduta em questão, atinente à antecipação do parto de feto anencefálico, por se consubstanciar na materialização de direitos constitucionais fundamentais da gestante, como direito à dignidade, à saúde e à autonomia (liberdade), não apenas não se constitui como crime de abortamento, como é o exercício regular de direitos da mulher, devendo prevalecer, no conflito de direitos de mesma hierarquia, sobre a “vida” do feto anencéfalo. A partir de conceitos médicos, bem como, da análise da legislação infraconstitucional existente, serão demonstrados os motivos pelos quais o direito à “vida” do feto anencéfalo deve ser relativizado no conflito com os direitos da gestante. Palavras-chave: anencefalia. início da vida. conflito de direitos. proporcionalidade.

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CUNHA, João Bosco da Nóbrega. Bioethics and anencephaly: ethical, juridical and medical viability of anencephalic fetus labor anticipation. 2009. 206 f. Dissertation (Master`s Degree in Law School) – Faculty of History, Law and Social Work, State University of São Paulo “Júlio de Mesquita Filho”, Franca, 2009.

ABSTRACT This present work tries to demonstrate ethical, juridical and medical viability of the medical procedure of anencephalic fetus labor anticipation, in case the expecting mother desires to submit herself to this medical intervention, to ensure the exercise of her most essential constitutional rights. Anencephaly is a lethal cephalic disorder that, if verified, inevitably implies the non viability of anencephalic fetus extra uterine life. In spite of the scientific validation of the impossibility of anencephalic fetus extra uterine life, it is strong the juridical understanding that frame pregnancy interruption of a fetus that carries this cephalic disorder as a crime of abortion, bringing criminal responsibility to the expecting mother and to the medical team who performs such procedure. Based in constitutional principles, this work is going to demonstrate that the issue of anencephalic fetus labor anticipation, because it is just the embodiment of constitutional rights, as the right to dignity, health and autonomy (freedom), not only it is not a crime, but it is the regular pursuit of pregnant law, which must prevail, in the conflict of rights of same hierarchy, over the anencephalic fetus “life”. From medical concepts, as well as, from the analysis of the existing legislation, this work demonstrates the reasons why the right to life of an anencephalic fetus must be relaxed to the conflict with the rights of the pregnant woman. Keywords: anencephaly. beginning of life. conflict of rights. proportionality.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 01 – Eletroencefalograma de pessoa normal.................................................78 Figura 02 – Eletroencefalograma de pessoa com morte encefálica..........................79 Figura 03 – Eletroencefalograma de indivíduo portador de microcefalia...................80 Figura 04 – Eletroencefalograma de feto anencéfalo................................................81

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LISTA DE TABELAS

Tabela 01 – Distribuição percentual da população residente, por religião – Brasil – 1991/2000 ..............................................................................133

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO ..........................................................................................................13 CAPÍTULO 1 ÉTICA, BIOÉTICA E DIREITOS FUNDAMENTAIS ...........................17 1.1 Ética Conceituação e evolução histórica ........................................................17

1.1.1 A Grécia Antiga ................................................................................................19

1.1.2 Os Estóicos ......................................................................................................21

1.1.3 A Idade Média ..................................................................................................21

1.1.4 A Era Moderna .................................................................................................23

1.2 Moral...................................................................................................................29 1.3 Costume como fonte do direito........................................................................34 1.4 Direitos fundamentais.......................................................................................37

1.5 Bioética ..............................................................................................................47 CAPÍTULO 2 DA CONCEITUAÇÃO DE “ABORTO” E “ANTECIPAÇÃO

TERAPÊUTICA DO PARTO DE FETOS ANENCEFÁLICOS” E DA DIFERENCIAÇÃO DESTES DOIS CONCEITOS ....................56 2.1 Conceituação jurídica e médica de “aborto” ..................................................56 2.2 Modalidades de abortamento...........................................................................60 2.3 Teorias do início da vida...................................................................................66 2.4 Conceituação de anencefalia ...........................................................................74

2.5 Anencefalia e vida humana ..............................................................................77 2.6 Da diferenciação de abortamento e antecipação do parto de fetos

anencéfalos ........................................................................................................82

CAPÍTULO 3 DA HIPÓTESE DE GRAVIDEZ DE FETOS ACOMETIDOS POR ANENCEFALIA: EMBATE DE DIREITOS FUNDAMENTAIS ..................................84 3.1 Constatação de anencefalia, riscos da gravidez de feto anencéfalo para a

gestante e viabilidade médica da interrupção da modalidade de gravidez

em análise...........................................................................................................84 3.2 Do conflito de direitos: “vida” do anencéfalo versus dignidade, saúde e

liberdade da gestante ........................................................................................91

10

3.2.1 Do direito à vida do feto acometido por anencefalia.........................................92

3.2.2 O princípio da dignidade humana e sua aplicação à gestante ........................94

3.2.3 Do direito à saúde da gestante.........................................................................98

3.2.4 Do direito de liberdade e autonomia da gestante...........................................100

3.3 Da resolução do conflito de direitos, na hipótese posta à análise, sob a

perspectiva ética e bioética ............................................................................101 3.4 Da resolução do conflito de direitos, na hipótese posta à análise, sob a

perspectiva jurídica .........................................................................................104 3.4.1 Da utilização dos costumes como instrumento de resolução do conflito de

direitos fundamentais .....................................................................................105

3.4.2 Da utilização do princípio da proporcionalidade para resolução do conflito de

direitos em análise .........................................................................................106

CAPÍTULO 4 CONFIRMAÇÃO DA VIABILIDADE ÉTICA E JURÍDICA DA ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO DE FETOS ANENCÉFALOS NO MEIO SOCIAL ..............................................111

4.1 Da importância da metodologia qualitativa para a presente dissertação ..112

4.2 Da pesquisa qualitativa realizada ..................................................................113

4.2.1 Da amostra social...........................................................................................113

4.2.2 Da forma da pesquisa ....................................................................................115

4.2.3 Dos resultados da pesquisa qualitativa ..........................................................116

4.2.3.1 Do início da vida..........................................................................................117

4.2.3.2 Resolução entre conflitos entre direitos de mesma hierarquia e resolução

entre o conflito da dignidade, autonomia e livre arbítrio da gestante e

gravidez de um feto anencéfalo...................................................................118

4.2.3.3 Contato direto com algum caso envolvendo gravidez de anencéfalo e ciência

acerca de alterações morfológicas e funcionais do feto anencefálico .........120

4.2.3.4 Existência de vida humana em caso de anencefalia ...................................121

4.2.3.5 Contato com a gestante que ajuizou o pedido de interrupção da gravidez de

feto anencéfalo e diferenciação entre antecipação do parto de feto

anencéfalo e abortamento...........................................................................122

4.2.3.6 Existência de viabilidade jurídica para antecipação do parto de fetos

acometidos por anencefalia.........................................................................124

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4.2.3.7 Paradigmas que levaram à conclusão da viabilidade jurídica da antecipação

do parto de fetos anencéfalos e bioética como um desses paradigmas .....125

4.2.3.8 Contato posterior com a gestante que requereu alvará judicial para

interromper a gravidez de feto anencéfalo ..................................................126

4.2.3.9 Considerações gerais sobre o assunto .......................................................126

4.2.4 Das conclusões dos resultados da pesquisa qualitativa analisados ..............126

CAPÍTULO 5 DA INCONSTITUCIONALIDADE DO ENQUADRAMENTO DA

INTERRUPÇÃO DA GESTAÇÃO DE FETOS ANENCÉFALOS COMO CRIME DE ABORTAMENTO E RESPONSABILIDADE PENAL DA GESTANTE E DA EQUIPE MÉDICA QUE REALIZA O PROCEDIMENTO MÉDICO, NOS CASOS DE ANTECIPAÇÃO DO PARTO DO FETO ANENCÉFALO ..................................................128

5.1 Do desenvolvimento do cristianismo no Brasil e sua implicação com a antecipação do parto de fetos anencéfalos...................................................130

5.2 Da impropriedade jurídica do enquadramento da antecipação do parto de feto anencéfalo como crime de abortamento ...............................................134

5.2.1 Da demonstração da impropriedade em questão pelo prisma da tipicidade ..135

5.2.2 Da demonstração da impropriedade em questão pelo prisma da

antijuridicidade... .............................................................................................139

5.2.2.1 Do estado de necessidade ..........................................................................142

5.2.2.2 Do exercício regular de direito.....................................................................145

5.3 Da inconstitucionalidade do enquadramento da interrupção da gestação de fetos anencéfalos como crime de abortamento............................................148

5.4 Da responsabilidade penal da gestante e da equipe médica que realiza o procedimento médico, nos casos de antecipação do parto do feto anencéfalo ........................................................................................................151

CAPÍTULO 6 MEDIDAS JUDICIAIS TOMADAS EM ÂMBITO NACIONAL PARA

PERMITIR A ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO DOS FETOS

ANENCEFÁLICOS E JURISPRUDÊNCIA CORRELATA...................153 6.1 A antecipação terapêutica do parto de anencéfalos no mundo – breve

panorama global ..............................................................................................153 6.2 A antecipação terapêutica do parto de anencéfalos no Brasil....................156

12

6.3 Jurisprudência pátria concernente à interrupção da gravidez de feto

anencéfalo ........................................................................................................163 6.4 Da viabilidade ética, médica e jurídica dos projetos de lei em trâmite

perante o Congresso Nacional, atinentes à antecipação terapêutica do parto de fetos anencéfalos ........................................................................167

CONCLUSÃO .........................................................................................................173 REFERÊNCIAS.......................................................................................................177 APÊNDICES ...........................................................................................................186 Apêndice A – Protocolo de Entrevista Semi-Estruturada..................................187 Apêndice B – Autorização para uso do teor de entrevista e declaração de

confidencialidade..........................................................................189 Apêndice C – Resumo da qualificação dos entrevistados ................................190

ANEXO ...................................................................................................................191 Anexo A – Lei n. 9.434, de 4 de fevereiro de 1997 ..............................................192 Anexo B – Resolução CFM n. 1.480/97................................................................199 Anexo C – Identificação do Hospital....................................................................201 Anexo D – Resolução CFM n. 1.752/04................................................................205

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INTRODUÇÃO

As questões atinentes à vida humana, sobretudo em razão da inexistência de

unanimidade científica e filosófica acerca da maior parte dos temas que compõem

este assunto, provocam fervorosos debates no meio social. A discussão que

circunda a possibilidade, ou não, de a mulher decidir, no exercício de seu livre

arbítrio, pela realização de “aborto”, por exemplo, sempre suscitou debates

ferrenhos, os quais são repletos de robustos e apaixonados argumentos por

qualquer dos ângulos que se analise o tema.

Considerando-se o atual estado de evolução social do povo brasileiro,

extremamente crítico e dinâmico para alguns assuntos, e ao mesmo tempo,

reacionário para outros, os embates de idéias inerentes às questões da vida humana

são assuntos rotineiros.

Porém, um determinado tópico dos assuntos da vida humana, por colocar em

confronto direto garantias fundamentais de indivíduos distintos, ganha relevo no

meio social: o abortamento de fetos portadores de deficiências graves. Essa

situação põe em colidência o direito à vida do feto e o direito à dignidade e

autonomia da mulher.

Neste caso, importante salientar que o feto deficiente, em grande parte das

vezes, apesar de não ser perfeito em todos os aspectos – físico ou neurológico –, é

um ser vivo. Há correntes do pensamento humano que defendem, nesta hipótese, a

prevalência do direito à vida do feto anormal, sob alegação de que a vida viável,

mesmo que incompleta, deve ser garantida, em detrimento dos demais direitos,

sobretudo pelo fato de o direito à vida ser a fonte e o meio de viabilização de todos

os demais direitos. Mas existem correntes do pensamento contrárias, que se

posicionam pela supremacia dos direitos à dignidade e à autonomia da gestante em

face do direito à vida do feto defeituoso, sob argumento de que a dignidade e a

liberdade são os fundamentos do Estado Democrático de Direito brasileiro.

Este é apenas um exemplo que demonstra o quão controversos e

apaixonantes são os debates atinentes às questões da vida humana. E essas

características inerentes às discussões que gravitam ao redor da vida despertaram o

14

interesse pelo objeto da presente dissertação de mestrado.

Mas o provimento jurisdicional cautelar concedido pelo Ministro Marco Aurélio

Mello, do Supremo Tribunal Federal, em 1º de julho de 2004, nos autos de uma ação

constitucional de Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, promovida

pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS), para o fim de

autorizar a interrupção da gestação nos casos em que for detectada anencefalia,

malformação congênita cerebral, popularmente conhecida por “ausência de

cérebro”, no feto, sem que tal conduta implique no cometimento de qualquer crime,

foi fundamental para determinar a escolha do tema.

A partir desta decisão judicial, e de toda a polêmica que a cercou, sobretudo

ante a ativa participação da Religião Católica na discussão gerada, é que nos

interamos do real embate de direitos que emerge da situação retratada na ação de

argüição de descumprimento de preceito fundamental acima referida: de um lado,

tem-se o direito à vida do feto anencéfalo, que invariavelmente está fadado à

inviabilidade de vida, conforme assentado na doutrina médica; e de outro lado temos

o direito à dignidade, à saúde e à autonomia da gestante.

A Igreja Católica, assim que a concessão do referido provimento jurisdicional

ganhou destaque no meio social brasileiro, encampou a defesa do direito à vida do

feto anencéfalo, sob a bandeira de defesa da vida, pois este é o posicionamento que

se adapta à doutrina cristã. Este entendimento, inclusive, ampara o enquadramento

da conduta consistente da interrupção da gravidez de anencéfalo no tipo penal do

crime de abortamento.

Por outro lado, diversos juristas e profissionais médicos posicionaram-se a

favor da prática da interrupção da gestação de feto anencéfalo, embasando-se em

algumas premissas, a saber: (i) a gravidez de um feto anencefálico representa

iminentes riscos à saúde da mulher; (ii) o anencéfalo não representa uma vida

viável, pois além de ser incapaz de desenvolver quaisquer atividades cerebrais

superiores, características da espécie humana, ele não consegue manter sua

funções vegetativas após o parto, nos poucos casos em que a falência de tais

funções não ocorrem ainda no ventre materno; (iii) a manutenção de uma vida

inviável, contra a vontade da gestante, é ofensa ao princípio da dignidade e ao

direito de autonomia da mulher.

Neste conflito de entendimentos, parece-nos mais razoável filiar-se àquele

que admite a prevalência dos direitos da gestante em detrimento do direito à vida do

15

feto anencéfalo, pois este último direito não pode ser entendido em sua ampla

acepção, já que é cientificamente comprovada a inviabilidade da vida do anencéfalo.

Em que pese a visível prevalência da corrente do pensamento que admite a

possibilidade de interrupção da gravidez de feto anencéfalo em relação à corrente

contrária, na nossa ótica, sobretudo em razão da desproporcionalidade dos direitos

em jogo neste caso, este não é o pensamento dominante em nosso meio social.

Inclusive, ilustrando a corrente de pensamento dominante acerca deste tema,

manifestamente contrária à possibilidade de interrupção da modalidade de gestação

em lume, é comum o enquadramento da conduta médica de antecipação do parto do

feto anencéfalo ao tipo penal do crime de aborto.

A partir deste quadro interpretativo do direito, sentimo-nos na obrigação de

demonstrar, do ponto de vista ético, médico e jurídico, a viabilidade do procedimento

de interrupção da gravidez de feto anencéfalo, a ser utilizado pela gestante

consciente e informada. Diz-se desta forma porque, se for desejo da mulher a

manutenção da gravidez do anencéfalo, ela não estará obrigada à interrupção da

prenhez, em observância do direito de liberdade de consciência e credo.

As viabilidades ética, médica e jurídica, concernentes à antecipação

terapêutica do parto de feto anencéfalo, a serem demonstradas ao longo dos

capítulos desta presente dissertação, nada mais são do que a concretização da

obrigação estatal de garantir aos cidadãos o pleno gozo de seus direitos

fundamentais.

Para consecução dos objetivos acima referidos ao longo deste presente

trabalho, lançar-se-á mão dos métodos histórico, indutivo, dedutivo e qualitativo.

Por meio do método histórico, pretende-se demonstrar a evolução dos

fundamentos éticos e morais que sustentam a opinião pública, bem como, delinear o

surgimento da bioética, ramo do conhecimento humano que irá fornecer valiosas

bases para fundamentação da viabilidade ética e jurídica da antecipação terapêutica

do parto de fetos anencéfalos. Ademais, com tal metodologia busca-se ilustrar o

aparecimento e as bases da corrente de pensamento que equivocadamente

equipara a antecipação do parto de fetos anencéfalos a crime de abortamento.

O método dedutivo, por meio da fixação das premissas constitucionais que

demonstrarão a prevalência dos direitos da gestante em relação ao direito à “vida”

do anencéfalo, será de suma importância para verificação da viabilidade ética e

jurídica da interrupção da gestação de fetos anencéfalos, bem como, para

16

apontamento da impropriedade jurídica do enquadramento do procedimento médico

em questão como crime de abortamento.

A análise dos instrumentos jurídicos pátrios atualmente existentes para

garantir à gestante a possibilidade de interrupção da gestação de fetos anencéfalos,

sem qualquer responsabilização penal, ao lado da análise dos precedentes

jurisprudenciais e projetos de lei constantes do último capítulo desta presente

dissertação de mestrado, apresentarão a incidência dos princípios e regras

constitucionais na práxis jurídica e legislativa, o que ressalta a importância do

método indutivo para obtenção das conclusões pretendidas com este presente

trabalho.

Finalmente, com a utilização do método qualitativo, consubstanciado em

entrevistas com profissionais ligados à aplicação do Direito, pretende-se corroborar

a argumentação desenvolvida ao longo desta dissertação, sobretudo no que pertine

à demonstração da viabilidade ética, médica e jurídica da antecipação do parto de

fetos anencéfalos, por meio da aplicação prática dos princípios constitucionais

invocados na experiência pessoal de cada entrevistado.

17

CAPÍTULO 1 ÉTICA, BIOÉTICA E DIREITOS FUNDAMENTAIS

1.1 Ética – Conceituação e evolução histórica

Ao longo de toda a evolução da raça humana foi sempre recorrente a

discussão acerca de quais os caminhos o ser humano deve seguir para manter um

nível aceitável de convivência harmônica com seus semelhantes. Esta discussão, no

entanto, teve sua complexidade variável, dependendo proporcionalmente do grau de

evolução das relações sociais existentes na comunidade em análise, em dado

período de tempo.

Tomando por base a premissa acima destacada, nas sociedades de relações

interpessoais mais desenvolvidas, com maior estratificação e hierarquização social,

as discussões sobre as diretrizes de uma vida social harmônica foram mais

desenvolvidas, ao passo que, nas sociedades mais rudimentares, esta referida

discussão tomou menores amplitudes.

Independentemente do grau de evolução social de qualquer das sociedades

já existentes, é cediço que há alguns sentimentos coletivos que não variam quando

se faz comparações entre elas, sobretudo no que diz respeito às diretrizes de vida

harmônica, podendo tais sentimentos serem concebidos com a base da ética. Fábio

Konder Comparato1, fazendo alusão a um conjunto de valores comuns, afirma que

No passado, com raras exceções, prevaleceu uma concepção reducionista, segundo a qual o elemento gerador da convivência social estaria, com exclusividade, nos valores ou ideais coletivos, no conjunto das instituições de poder, ou então nas condições materiais de subsistência dos grupos humanos.

Os ideais a serem perseguidos para consecução de uma vida social

harmônica variaram, como já mencionado, ao longo do tempo, e em razão do grau

de complexidade social do grupo humano analisado, mas sempre houve alguns

paradigmas imutáveis ao longo do tempo, que permitiram o estabelecimento das

diretrizes da convivência social.

Ao conjunto destes valores imutáveis pode-se dar a conceituação de “ética”. 1 COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo: Ed.

Letras, 2006. p.18.

18

Assim, a ética pode ser entendida como um conjunto de esforços, científicos ou

puramente filosóficos, sobre as condutas e costumes humanos, almejando a

realização de um bem comum, ou seja, buscando a convivência social harmônica.

Tradicionalmente, a ética é entendida como “[...] estudo ou reflexão, científica

ou filosófica, e eventualmente até teológica, sobre costumes ou sobre ações

humanas”2. Em termos práticos, a ética comum é uma espécie de busca geral de um

princípio absoluto de conduta moral, ou seja, a busca do bem.

Miguel Reale3, discorrendo acerca da ética, firmou o entendimento de que

“[...] normas éticas não envolvem apenas um juízo de valor sobre os

comportamentos humanos, mas culminam na escolha de uma diretriz considerada

obrigatória numa coletividade”.

A ética, por consubstanciar-se num conjunto de valores coletivos direcionados

à realização do bem comum de dado grupo humano, é atemporal, guiada por

princípios abstratos imutáveis. Rubem Cione4, lançando mão de base mais

filosóficas, define ética como sendo “[...] um princípio, um potencial dentro do

homem, aplicável, sem dúvida, a todas as atividades humanas, ajudando os homens

entre a encontrar um relacionamento adequado entre si”.

Assim, a ética tem sido, ao longo da história da humanidade, o padrão

universalmente aceito de conduta social a ser observada. Apesar de toda esta

vinculação da ética à busca filosófica do bem, tem esta sido, por vezes, utilizada

como verdadeiro instrumento de dominação social por alguns governantes, que na

busca do favorecimento de determinadas classes sociais, manipulam a “busca do

bem comum”, direcionando esta finalidade para consecução de seus interesses

individuais, em detrimento do verdadeiro bem coletivo5.

Em que pese o uso escuso que a ética pode ter, permitindo a dominação

social sob o pretexto da realização do bem comum, ao longo desta presente 2 VALLS, Álvaro L. M. O que é ética. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1992. p.7. 3 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p.33. 4 CIONE, Rubem. Ética geral: ética e programática rotária (doutrina social). Ribeirão Preto: Legis

Summa, [s.d.]. p.16. 5 Fábio Konder Comparato afirma que “O sistema ético em vigor na sociedade exerce sempre a

função de organizar ou ordenar a sociedade, em vista de uma finalidade geral. Não existe ordem social desvinculada de um objetivo último, pois é justamente em função dele que se pode dizer se o grupo humano é ordenado ou desordenado; se se está diante de uma reunião ocasional de pessoas ou de uma coletividade organizada. Ordem é um conceito relacional, subordinado à definição de uma finalidade. Essa verdade lógica elementar é, no presente, desconhecida pelos ideólogos da ordem por si mesma (law and order). O que se esconde, por trás dessa fórmula de propaganda, é obviamente o favorecimento de determinadas classes sociais ou corporações específicas, em detrimento do bem comum do povo.” COMPARATO, op. cit., p. 23.

19

dissertação utilizar-se-á apenas a ética em sua faceta ideal, filosoficamente

desenhada pelos diversos pensadores.

Como já mencionado, a ética é um ramo da filosofia, consistente num

conjunto de princípios gerais e abstratos, atemporais e universais, que tem por

escopo fornecer as diretrizes de uma vida social harmônica entre os membros da

sociedade, buscando sempre a consecução do bem comum e geral. Apesar de a

ética ser atemporal e universal, seus fundamentos variaram de sociedade para

sociedade, de acordo com o momento histórico e meio cultural de cada uma delas.

Uma demonstração histórica, gradativa, possibilita a visualização da

imutabilidade e universalidade da ética, bem como, ilustra a modificação dos

paradigmas ao longo da história da humanidade, de acordo com a escala evolutiva

de cada sociedade analisada.

Passaremos, agora, a uma singela análise da evolução dos fundamentos

éticos ao longo da história, restrita apenas ao mundo ocidental, tendo-se em vista

que foram os fundamentos éticos do ocidente que mais influenciaram a nossa atual

formulação do sistema ético-moral.

1.1.1 A Grécia Antiga

A Grécia Antiga é considerada o berço da ética, desde que visualizada como

um ramo autônomo da filosofia. Em momentos históricos anteriores também foram

verificados princípios de conduta humana superiores que almejavam o bem comum.

Estes princípios podem ser materializados pelos esforços sociais buscando a

organização em grupos e comunidades.

A ética, considerada como ciência autônoma, surgiu, como já referido, na

Grécia Antiga. Por este mesmo motivo, a própria etimologia da palavra vem do

grego, significando os termos originais êthos e ethos, respectivamente, “morada do

ser” ou “usos e costumes sociais”. Assim, verifica-se que desde a antiguidade, a

ética guarda verdadeira duplicidade semântica: ora significando a faceta subjetiva e

individual do ser, ora importando o caráter coletivo do indivíduo.

Dentre os pensadores gregos, Aristóteles debruçou-se sobre este tema,

propondo a divisão da ética sob dois enfoques: o individual (virtude) e o coletivo (lei),

20

que se interagiam entre si, continuamente. Para este pensador, a virtude (ética

individual) era adquirida pelo indivíduo com o tempo, do meio coletivo (ética coletiva,

costume), e o meio coletivo era influenciado, intensamente, pela virtude individual,

num procedimento de evolução constante, com forte interação entre a ética

individual e a ética social. Neste sentido, Fábio Konder Comparato6, citando

Aristóteles, ressalta que

A virtude moral sendo produto dos usos e costumes [...] não existe nos homens naturalmente, pois nada do que é natural se adquire pelo costume. Ora, tratando-se de uma faculdade prática, isto é, dirigida à ação, é necessário que os homens se exercitem na virtude para adquiri-la, como sucede com todas as outras faculdades desse gênero. [...] Como se vê, o raciocínio passa, insensivelmente, da vida individual à social, dos hábitos pessoais às leis, do êthos ao ethos, e vice-versa. Para o pensamento grego, de modo geral, não existe separação admissível entre a vida ética do cidadão e a organização ética da vida política, dado que a virtude nada mais é do que a lei interiorizada, e a lei, a virtude objetivada.

Aristóteles, embasado nesta dicotomia da ética, propôs, então, que o objetivo

da ética seria a felicidade, ou bem comum, cabendo à virtude alcançar a felicidade e

à lei a consecução de uma forma de organização política que assegure a felicidade

geral.

Platão, mestre de Aristóteles, e da mesma forma que este, acreditava ser o

objetivo da ética a consecução da felicidade geral, mas, indo além da virtude ou da

lei, afirmava que a felicidade apenas poderia ser obtida por meio da justiça, ou seja,

por meio da igualdade material entre todos os indivíduos de uma mesma sociedade.

Este pensador ainda frisava que a justiça era simbolizada pela união social. Platão7,

neste propósito, afirmava que Isto queria demonstrar que mesmo que os outros cidadãos devem ser encaminhados para a atividade para que nasceram, e só para ela, a fim de que cada um, cuidando do que lhe diz respeito, não seja múltiplo, mas uno, e deste modo, certamente, a cidade inteira crescerá na unidade, e não na multiplicidade.

Em que pese todo o esforço dos filósofos gregos na conformação da ética

como ramo autônomo da filosofia, percebe-se que o fundamento da ética grega era

intrinsecamente relacionado à individualidade.

6 COMPARATO, op. cit., p.96. 7 PLATÃO. A república. Traduzido por Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2006. Livro IV, 423

a-e. p.116.

21

1.1.2 Os Estóicos

Após o declínio da Grécia, sobretudo ao final da Guerra do Peloponeso, entre

Atenas e Esparta, a próxima evolução relevante da ética aconteceu no Império

Romano, com os estóicos.

Os estóicos lançavam as bases de seu pensamento não mais sobre os

conflitos internos do ser humano, como o faziam os gregos, mas sim, sobre a

natureza, a razão humana, considerada como a grande ordem universal. A razão

humana, que ordena dialeticamente as idéias, é capaz de estabelecer a estrutura do

mundo sensíveis, dirigindo, portanto, as ações sociais. Por tal motivo, a própria

razão humana passa a ser a base estrutural da ética romana.

A ética estóica, hegemônica durante o Império Romano, baseava-se em um

sistema de princípios decorrente da razão humana, que acabou lançando as bases

fundamentais dos direitos humanos. A ética estóica, que almejava o bem comum,

nos termos da universalidade ética, baseava-se em três princípios básicos: justiça,

prudência e razoabilidade.

Fábio Konder Comparato8 conseguiu instrumentalizar cada uma das bases do

sistema principiológico da ética estóica, como se observa do trecho abaixo

transcrito: Segundo Panécio, por exemplo, há uma correspondência essencial entre as virtudes cardeais e as tendências fundamentais da natureza humana. A justiça corresponde à tendência do indivíduo a viver em harmonia com a humanidade. A prudência, à tendência natural á descoberta da verdade e ao cumprimento dos deveres morais. Por sua vez, a virtude da moderação, ou razoabilidade, que ele denominava sophrossybe, está ligada à tendência natural de respeito à dignidade própria e à dos outros homens (aidôs), a qual conduz à beleza moral (kálon, que os romanos traduziram por decorum ou honestum), em oposição à seca utilidade. Na verdade, nada pode existir de útil na vida que não seja, ao mesmo tempo, justo e honesto.

1.1.3 A Idade Média

O próximo momento histórico relevante para análise da evolução da ética

trata-se da idade medieval, que se estende do momento posterior ao declínio do 8 COMPARATO, op. cit., p.117.

22

Império Romano (século VI d.C.) até o século XIV d.C. Neste período histórico,

verifica-se a superação do antropocentrismo do pensamento filosófico dominante,

sendo este substituído pelo teocentrismo, de cunho eminentemente transcendental.

Esta mudança de paradigma é facilmente explicável pela expansão do

cristianismo, iniciada no período de declínio do Império Romano, tendo como marco

o Édito de Milão de 313 d.C., ocasião em que o então Imperador de Roma,

Constantino, torna o cristianismo religião oficial do decadente império romano.

Ilustrando bem a mencionada transformação de paradigmas, Antônio

Raimundo dos Santos9 assevera que: O período da história ocidental designado como Idade Média, que compreende desde o século VI até o século XIV d.C., é claramente transcendentalista, isto é, as atividade desse período desenvolvem-se primordialmente em referência ao pólo transcendental, à relação Eu-transcendentais, concretizada pela orientação religiosa do cristianismo. O homem medieval nascia, crescia e morria de Deus, com Deus e para Deus. Tornado religião oficial do império romano pelo Edito de Milão (Imperador Constantino, 313 d.C.), o cristianismo estendeu-se por toda Europa, ocupando praticamente todos os espaços ocupados pelo império romano. Desenvolveu-se intelectualmente, superou crises internas e externas, manteve-se hegemônico até mais ou menos meados do século XIV. Nesse período, o homem olhou Deus (o Transcendental) como a grande atração. Ao olhar para si mesmo, enxergou-se essencialmente como filho de Deus e pecador a caminho do céu; os outros, como irmãos pecadores, também em peregrinação para o paraíso celestial; o mundo material como o “escabelo dos pés de Deus”, o lugar provisório onde o homem foi posto com a missão de redescobrir o Criador, “de onde viemos e para onde vamos”.

São Francisco de Assis10, um dos nomes mais importantes da filosofia no

período histórico da Idade Média, baseou seu fundamento da ética na igualdade

material entre todos os homens, em virtude de todos os membros da sociedade

serem, da mesma forma, filhos de Deus.

Inovando a filosofia da Idade Média, vem à cena, posteriormente à São

9 SANTOS, Antônio Raimundo dos. Ética: caminhos da realização humana. 4. ed. São Paulo: Ave-

Maria, 2004. p.75-76. 10 Demonstrando a base da filosofia fraternal de São Francisco de Assis, Fábio Konder Comparato

exalta a busca pela igualdade, ao afirma que “São Francisco levou a palavra evangélica, praticamente e não apenas em teoria, às últimas conseqüências. Para ele, nós, humanos, não somente somos todos filhos do mesmo Pai, mas partilhamos igualmente essa fraternidade divina com todas as criaturas de Deus, viventes ou não, e com o nosso próprio corpo, como elemento da natureza. As expressões ‘irmão corpo’ ou ‘irmã doença’, na boca do Pobre de Assis, não eram simples figura de retórica, mas expressões autênticas de um fortíssimo sentimento de fraternidade universal. Em um tempo de grandes exclusões sociais, como dizemos hoje, São Francisco fez questão de se unir, integralmente, a todos os rejeitados da ‘boa sociedade’, em especial àqueles que a imaginação popular sempre considerou como portadores de uma maldição divina, cuja freqüentação era, por isso mesmo, não só evitada, mas rigorosamente proibida: os leprosos.” COMPARATO, op. cit., p.135.

23

Francisco de Assis, São Tomás de Aquino, que tentou estabelecer como base da

ética os ensinamentos dos antigos gregos, sobretudo os de Aristóteles, como

paradigma para entendimento dos escritos sagrados cristãos. Assim, relegando o

transcendentalismo a um segundo plano, São Tomás de Aquino busca a razão

humana, escoimada na virtude interior, como diretriz para compreensão e

reprodução dos textos bíblicos. Esse é o fundamento da ética para este filósofo, que

ressalta ser o juízo ético um mero exercício intelectual, despido das emoções e

sentimentos religiosos, mas buscando sempre a compreensão dos ensinamentos

sagrados.

Em sua obra denominada Suma Teológica, São Tomás de Aquino afirmou

que para consecução do bem comum (ética), o homem deveria observar o sistema

de Leis, por meio de sua razão, materializada pelo livre arbítrio, cabendo unicamente

a este decidir se trilharia ou não o caminho da virtude. Este mesmo teólogo dividia o

sistema de leis em três classes: lei divina, lei natural e lei humana.

Segundo São Tomás de Aquino, a lei divina era universal, revelada aos

homens, sendo a mola-mestra de toda a comunidade do universo, de onde todas as

demais leis eram derivadas. A lei natural, por sua vez, seria a interpretação ou

compreensão, pelos homens, por meio do intelecto humano, das leis divinas, sendo

passível, portanto, de modificações ao longo do tempo. Finalmente, a lei humana

seria aquele conjunto de regras de comportamento criado pelos homens, para tornar

claros os ditames das leis divinas e naturais, servindo de modelo de conduta da

sociedade a ser perseguida para se alcançar o bem comum.

Em que pese todo o complexo raciocínio de São Tomás de Aquino, para ele o

fundamento de validade da ética seria a realização das leis dividas e sagradas pelos

homens, com o uso do livre arbítrio.

1.1.4 A Era Moderna

Superando a idade média, em meados do século XIV, o fundamento da ética

deixa de lado os valores individuais para tomar nuances mais políticas. Os

pensadores posteriores a tal período histórico passam a considerar como

instrumento viabilizador da busca do bem comum a organização política.

24

Como se verifica da própria conceituação da ética, mesmo após esta nova

modificação de paradigmas do pensamento humano, o objetivo da ética continua o

mesmo, qual seja, a busca do bem comum, da convivência harmônica entre os

membros da sociedade. O que mudou foram os fundamentos da ética, que

relegaram os valores individuais a um segundo plano. A partir deste momento

histórico, verifica-se uma grande imbricação entre a ética e a política, da mesma

forma em que houve uma confusão entre ética e religião no período da Idade Média.

Nicolau Maquiavel (1469-1527) pregava que a ética seria o conjunto de

valores e normas de conduta que tinha como fundamento de validade a estabilidade

interna da sociedade. Assim, independentemente dos meios utilizados para se

alcançar a estabilidade interna da sociedade e das conseqüências destes meios

para os membros da comunidade, seria ética uma conduta que buscasse a

manutenção da ordem política.

Thomas Hobbes (1588-1679), filósofo inglês, e autor do livro “O Leviatã”,

propõe que a felicidade humana depende, fundamentalmente, da segurança e paz

social, sendo a ordem política o elemento necessário para assegurar estes valores a

toda a sociedade. Em sua maior obra, já referida, este filósofo propôs que o homem

é essencialmente mau, movido por suas paixões e desejos, chegando a rotular o

“homem como o lobo do próprio homem”. Em razão desta natureza humana, seria

necessário que os homens se organizassem em sociedade, para que uma

autoridade superior, por meio do tolhimento da liberdade individual, pudesse frear,

com um sistema de regras e sanções, a natureza perversa de sua natureza interior.

Resumindo a condição humana perversa, Thomas Hobbes11 afirma que sem

uma autoridade superior que arrebate a maldade inerente ao homem, é impossível o

desenvolvimento de qualquer atividade coletiva, como se pode vislumbrar do trecho

abaixo destacado de sua obra intitulada Leviatã: Portanto tudo aquilo que é válido para um tempo de guerra, em que todo homem é inimigo de todo homem, o mesmo é válido também para o tempo durante o qual os homens vivem sem outra segurança senão a que lhes pode ser oferecida por sua própria força e sua própria invenção. Numa tal situação não há lugar para a indústria, pois seu fruto é incerto; consequentemente não há cultivo da terra, nem navegação, nem uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar; não há construções confortáveis, nem instrumentos para mover e remover as coisas que precisam de grande força; não há conhecimento da face da Terra, nem

11 HOBBES, Thomas. O Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil.

Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p.76.

25

cômputo do tempo, nem artes, nem letras; não há sociedade; e o que é pior do que tudo, um constante temor e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta.

No que concerne à ética, Hobbes ressaltou que a ausência de método para

formulação dos conceitos gerais de direito, eqüidade, lei e justiça, fez com que os

homens tomassem o costume como regra de suas ações. Assevera este filósofo,

todavia, que o fundamente da ética, acima referido, não seria capaz de atingir o bem

comum, pois as constantes mudanças dos costumes não seria suficiente para

garantir a segurança e paz social necessárias.

Desta forma, o fundamento da ética (bem comum) para Thomas Hobbes não

seria o costume, e sim, a segurança e paz social, ou seja, o fundamento da ética

transcende de uma visão individual para uma faceta político-coletiva, devendo as

regras de conduta serem estabelecidas por uma autoridade superior, em relação à

qual todos os homens obedecessem.

John Locke (1632-1704), outro filósofo inglês, tinha uma idéia geométrica

acerca da ética, acreditando que a moralidade das pessoas poderia ser

demonstrada, da mesma forma que as ciências matemáticas, consoante enfatizou

em sua obra denominada Ensaio sobre o entendimento humano. Este filósofo

propunha que a ética, ou seja, a conduta social dos homens para consecução da

felicidade era definida nas leis, dividindo-as, de forma semelhante a São Tomás de

Aquino, em três classes: leis divinas, civis e de opinião.

Locke afirmava, em pleno retorno ao jusnaturalismo, que as leis civis eram

advindas da própria comunidade, de forma a garantir-lhes os direitos inerentes à

condição humana, como vida, liberdade e propriedade, por exemplo, sempre

fazendo alusão aos caminhos decididos pela maioria dos membros da comunidade

como regras de conduta, cristalinizadas na lei civil na lei de opinião.

Segundo Locke, os homens são livres, iguais e independentes entre si, sendo

a organização política de uma sociedade um instrumento prático para garantir aos

particulares a possibilidade de exercitem suas individualidades: liberdade, vida e

propriedade. Locke, ao entender desta forma, conclui que o fim do Estado é

possibilitar a obtenção do bem comum, ou seja, da ética.

Exatamente neste sentido leciona Ricardo Luiz Alves12, como se verifica do

12 ALVES, Ricardo Luiz. A democracia e a liberdade: os alicerces do moderno Estado Democrático de

Direito. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 841, 22 out. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7440>. Acesso em: 15 jun. 2009.

26

trecho abaixo destacado: O "pai" do Liberalismo Clássico foi John Locke (1632-1704), cuja obra de Filosofia Política tem como núcleos centrais a tese de que os direitos inalienáveis do homem à vida, à liberdade e à propriedade constituem o cerne da sociedade civil e a necessidade de uma rigorosa separação entre os poderes laico e espiritual que resultem numa ampla tolerância religiosa e ideológica. Neste sentido, John Locke entende que a finalidade precípua da Política é a busca da felicidade e prosperidade de todos os cidadãos, as quais residem na paz, na harmonia e na segurança, tanto individual, quanto coletiva. Por outras palavras, John Locke defendia a idéia de que a utilidade última do Estado reside em preservar ou garantir a liberdade, a vida e a propriedade, concomitantemente à uma tolerância religiosa e ideológica. [...]

Já Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), filósofo suíço, afirmava que o

fundamento da ética, distanciando-se um pouco dos pensadores antecedentes da

mesma época, estaria na vontade geral e no imperativo categórico (lei geral e

aplicável a determinada sociedade).

Conforme o raciocínio deste filósofo suíço, demonstrado em sua maior obra,

“Do Contrato Social”, os homens, livres, com o aperfeiçoamento do instituto da

propriedade privada, começam a lutar entre si em disputas de riqueza e poder. De

modo a aplacar estas disputas, e garantir a subsistência da propriedade privada, os

homens abdicam de sua liberdade natural, por meio de um “contrato social”, no qual

em troca da liberdade inerente à condição humana, submetem-se a um poder

superior que representa a coletividade, que lhes garante a propriedade privada e

alguma liberdade, de ordem civil.

Explicitando todo este raciocínio de Rousseau13, cabe trazer a baila o trecho

abaixo destacado, extraído da obra “Do Contrato Social”, como se observa: Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual cada um, se unindo a todos, obedeça apenas, portanto, a si mesmo, e permaneça tão livre quanto antes. Este é o problema fundamental a que o Contrato Social dá a solução. As cláusulas desse contrato são de tal modo determinadas pela natureza do ato que a menor modificação as tornaria vãs e sem efeito, de modo que, ainda que jamais pudessem ter sido formalmente enunciadas, são as mesmas em todas as partes, tacitamente admitidas e reconhecidas, até que, tendo sido violado o pacto social, cada um recobre seus primeiros direitos e retome sua liberdade natural, perdendo a liberdade convencional à qual renuncia por aquela. Essas cláusulas se reduzem, quando bem compreendidas, a uma só, a saber: a alienação total de cada associado, com todos os seus direitos a toda a comunidade, pois, em primeiro lugar, cada um se doando

13 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social: discurso sobre a economia política. Traduzido

por Márcio Pugliese e Norberto de Paula Lima. 7. ed. São Paulo: Hemus, 1994. p.27.

27

inteiramente, a condição é igual para todos e, sendo assim, ninguém tem a intenção de torná-la onerosa aos demais.

Assim, para Rousseau, o contrato social permitiria com que os membros da

sociedade, em virtude da abdicação da liberdade plena individual, acatassem a

vontade geral, entendida esta como a supremacia do interesse público, em

detrimento dos interesses individuais. Logo, marcando um retorno aos ideais éticos

da antiguidade romana, Jean-Jacques Rousseau propõe como fundamento da ética

a vontade geral, sempre inclinada à busca do bem da coletividade, bem como, a

igualdade entre os homens.

Outro filósofo importante na escala evolutiva dos fundamentos da ética no

ocidente foi o alemão Immanuel Kant (1724-1804), considerado o último dos

grandes filósofos principialistas da era moderna. Para Kant, o fundamento da ética é

o dever, o imperativo, consubstanciado na representação da razão. E este filósofo

divide o dever em duas categorias: imperativo categórico e imperativo hipotético.

O imperativo hipotético seria o dever oriundo da necessidade prática da

realização de uma ação, ação esta que serviria de um meio para se atingir

determinada finalidade. Já o imperativo categórico seria o dever advindo de uma

ação que se impõe objetivamente, de forma independente de qualquer finalidade.

Fábio Konder Comparato14, citando o próprio Kant, traz uma interessante

diferenciação entre as duas espécies de imperativos formuladas por este filósofo

alemão, ao asseverar que

Os imperativos hipotéticos, por conseguinte, fazem parte da técnica, pois dizem respeito unicamente aos meios aptos à consecução de certos fins, sem que esses fins sejam necessariamente racionais e bons. “As prescrições que deve seguir o médico para curar totalmente o paciente, e as que deve seguir um assassino para envenenar letalmente sua vítima têm o mesmo valor, na medida que umas e outras lhes são úteis para realizarem de maneira cabal os seus desígnios.” Mas, ao lado desses imperativos hipotéticos, há aquele que, sem pôr como princípio e condição do agir a realização de determinada finalidade, impõe-se de forma imediata ao agente. É o imperativo categórico. “Ele concerne não à matéria da ação, nem tampouco ao seu resultado, mas à forma e ao princípio do qual ela resulta; e o que nela há de essencialmente bom consiste em sua maneira de ser, quaisquer que sejam as conseqüências (da ação).” O imperativo categórico é o supremo princípio da moralidade. Enquanto os imperativos hipotéticos são necessariamente condicionais – se quiseres tal resultado, deves agir de tal modo –, o imperativo categórico é incondicional e, portanto, válido em todos os tempos e em todos os lugares. Ele comanda não diretamente as ações humanas, mas as máximas ou representações subjetivas do dever, as quais nascem em todas as consciências. De onde

14 COMPARATO, op. cit., p.296.

28

ele assim se formula: “Age unicamente segundo a máxima pela qual tu podes querer, ao mesmo tempo, que ela se torne uma lei universal”.

Kant ainda propõe que para alcançar-se a ética, o homem, por meio de sua

razão e da vontade geral, considerada esta, assim como fez Rousseau, como a

supremacia do interesse coletivo, deve aplicar o imperativo categórico. Inclusive,

cabe salientar que este raciocínio de Immanuel Kant é a base do sistema moderno

dos direitos humanos.

Em sua obra Fundamentação da metafísica, dos costumes e outros escritos,

Kant materializa a ética na virtude, sendo certo que esta origina a vontade

moralmente boa. Esta última pode ser verificada pela análise de três postulados. O

primeiro postulado é que a virtude não consiste numa prática boa ou em seus

resultados, mas simplesmente na própria vontade do indivíduo; o segundo postulado

é que a ação praticada não tem seu valor atrelado à intenção de seu autor, mas

unicamente ao dever que impôs a ação; e o terceiro postulado é que o dever é a

necessidade de prática de uma ação por respeito à lei.

Kant15, mesmo que utopicamente, é categórico ao afirmar que a boa vontade,

materialização da virtude, ou seja, do fundamento da ética, é independente de seus

resultados, como se verifica do trecho abaixo colacionado:

A boa vontade não é boa pelo que promove ou realiza, pela aptidão para alcançar qualquer finalidade proposta, mas tão-somente pelo querer, isto é, em si mesma. E considerada em si mesma, deve ser avaliada em grau muito mais elevado do que tudo o que por meio dela puder ser alcançado em proveito de qualquer inclinação ou, se quiser, da soma de todas as inclinações.

Em que pese ser o raciocínio de Immanuel Kant extremamente utópico,

sobretudo ao propor a desvinculação das ações éticas de seus resultados ou de

suas finalidades, foi extremamente importante para modular as bases dos

fundamentos contemporâneos da ética, bem como, foi de relevância ímpar para

lançamento das bases dos direitos humanos contemporâneos.

Assim, diante deste breve esboço evolutivo, salientando-se que não foram

esgotados na presente análise todos os filósofos relevantes da história do mundo

ocidental, percebe-se que a ética manteve-se, ao longo do tempo, inalterada,

sobretudo em razão de se tratar de um conjunto de princípios e valores de conduta

15 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica, dos costumes e outros escritos. Traduzido

por Paolo E. Balboni. São Paulo: Martin Claret, 2002. p.22.

29

humana imutável, absoluto, abstrato e atemporal, sempre focada na busca do bem

comum.

O que se alternou com o passar do tempo foram apenas os fundamentos da

ética, que dependendo do momento histórico, do meio social, e dos interesses

dominantes da sociedade em jogo, transformaram-se, algumas vezes para manter o

status quo da sociedade, outras vezes para promover revoluções sociais. De toda

sorte, é relevante mencionar que os fundamentos éticos evoluíram ao lado de outro

ramo da filosofia, qual seja, a moral, o conjunto concreto de valores sociais que

acompanham a evolução de determinado grupo humano.

A evolução da ética, tratada neste tópico, é relevante para a presente

dissertação de mestrado porque irá permitir com que sejam delineadas as bases

filosóficas atinentes à possibilidade ética, médica e jurídica da prática de

antecipação do parto de fetos acometidos por anencefalia.

1.2 Moral

A ética é o gênero do qual a moral é uma espécie. A ética é entendida como a

busca do bem, ou da virtude, enquanto que a moral pode ser entendida como a ética

cristalinizada na consciência popular, por vezes até positivada na lei, sendo

admissível sua variação de acordo com o momento histórico e cultural no qual é

analisada. A Moral é uma regra materializada pelo costume social, cuja observância

independe, num primeiro momento, da cominação de qualquer sanção.

Para Antônio Raimundo dos Santos16, moral é O conjunto de hábitos e costumes, efetivamente vivenciados por um grupo humano. Nas culturas dos grupos humanos estão presentes hábitos e costumes considerados válidos, porque bons; bons, porque justos; justos, porque contribuem para realização dos indivíduos. Atos gerados conforme esses hábitos serão julgados morais ou moralmente bons. Por outro lado, há hábitos e costumes considerados inválidos, porque maus; maus, porque injustos; injustos, porque atrapalham ou impedem a realização dos indivíduos. Os atos gerados conforme esses hábitos serão julgados como imorais, ou moralmente maus. [...]

Interessante destacar que a conceituação de moral estabelecida pelo

16 SANTOS, op. cit., p.11.

30

doutrinador acima referido, por ser derivada dos hábitos e costumes de determinada

sociedade, vincula, claramente, a moral ao momento histórico, em patente

diferenciação da ética, que é universal e atemporal.

Além da mutabilidade da moral, em razão do meio cultural e do momento

histórico em que é analisada, outra característica da moral é sua não

obrigatoriedade. Explicitando melhor o assunto, Miguel Reale17, citando Immanuel

Kant, afirma que

A Moral é o mundo da conduta espontânea, do comportamento que encontra em si próprio a sua razão de existir. O ato moral implica a adesão do espírito ao conteúdo da regra. Só temos, na verdade, Moral autêntica quando o indivíduo, por um movimento espiritual espontâneo realiza o ato enunciado pela norma. Não é possível conceber-se o ato moral forçado, fruto da força ou da coação. Ninguém pode ser bom pela violência. Só é possível praticar o bem, no sentido próprio, quando ele nos atrai por aquilo que vale por si mesmo, e não pela interferência de terceiros, pela força que venha consagra Ética de Kant, pelo seu excessivo formalismo, pretendendo rigorosamente que se cumpra “o dever pelo dever”, não resta dúvida que ele vislumbrou uma verdade essencial quando pôs em evidência a espontaneidade do ato moral. A Moral, para realizar-se autenticamente, deve contar com a adesão dos obrigados. Quem pratica um ato, consciente da sua moralidade, já aderiu ao mandamento a que obedece. [...]

A espontaneidade que marca os deveres morais advém, sobretudo, da

inexistência de sanção em razão de sua inobservância. Mas esta referida

espontaneidade apenas subsiste enquanto a norma moral não estiver positivada no

ordenamento jurídico. Enquanto a regra moral não é incorporada ao Direito,

transmudando-se em lei, havendo coação para cumprimento de determinada

obrigação, mesmo que haja um mandamento jurisdicional para tanto, não há que se

falar em obrigação moral. Reale18, novamente ventilando o tema, ressalta que “[...] a

moral é incompatível com a violência, com a força, ou seja, com a coação, mesmo

quando a força se manifesta juridicamente organizada”.

Assim, diante das assertivas acima delineadas, fica claro que existe uma

grande diferença entre a moral e o Direito: a coercibilidade do Direito, inexistente no

que diz respeito à moral.

A diferenciação entre moral e direito foi efetivamente acentuada na época do

positivismo jurídico, século XIX, evidentemente influenciada pelo positivismo jurídico

kelseniano. Para Hans Kelsen, a ciência do direito apenas deveria ater-se ao que o

17 REALE, op. cit., p.44. 18 Ibid, p.46.

31

direito era, e não àquilo que o direito poderia ou deveria ser, sendo as especulações

acerca deste tema objeto de outras ciências humanas. A este respeito, Fábio Konder

Comparato19, relembrando as teorias de Kelsen, afirma que Compete à “ciência do direito”, segundo a concepção positivista, tão-só dizer o que o direito é, sem cuidar minimamente de dizer o que o direito deve ser. Em outras palavras, os juízos próprio de uma teoria “científica” do direito não são juízos de valor; são silogismos, ou então puros juízos de fato: tal norma é jurídica porque vem expressa numa proposição de dever-ser (gênero próximo), contendo a previsão de uma sanção coativa (diferença específica em relação às demais normas da ordem social); tal lei é válida porque foi editada pela autoridade competente, segundo o procedimento para tal fim previamente estabelecido. Cria-se, com isso, uma rígida separação entre direito moral. Contrariando a tradição multissecular de todas as civilizações, os positivistas considera, que o direito existe sem ligação com a justiça, e os juristas não têm que julgar a ordem jurídica de acordo com os grandes valores éticos, porque não é uma tarefa científica, e sim, política.

John Austin, jurista inglês do século XIX, professor da Universidade de

Londres, fez uma didática distinção entre moral e direito. Para ele, tanto a moral

quanto o direito seriam materializações do desejo humano, ambas com cargas de

comando, mas sendo o direito diverso da moral por ter uma coação legitimada pelo

poder dominante intrinsecamente ligada a seu comando, caso não observado.

Segundo este jurista, se uma expressão de desejo significasse uma ordem

para fazer ou deixar de fazer algo, e se o descumprimento deste desejo pudesse

ocasionar algum tipo de mal ao relutante, estar-se-ia diante de um comando. Mas

ele ainda assevera, fazendo alusão à diferenciação entre moral e direito, que os

comandos distinguiam-se uns dos outros não pela importância do desejo

manifestado, mas pelo poder de coação que tal comando possui em virtude de seu

descumprimento. Em sua obra The province of jurisprudence determined, John

Austin20 deixou clara tal diferenciação, como se colhe do trecho abaixo colacionado: If you express or intimate a wish that I shall do or forbear from some act, and if you will visit me with an evil in case I comply not with your wish, the expression or intimation of your wish is a command. A command is distinguished from other significations of desire, not by the style in which the desire is signified, but by the power and purpose of the party commanding to inflict an evil or pain in case the desire be disregarded.

Cumpre asseverar que tal doutrinador atribui a coerção do Direito ao fato

19 COMPARATO, op. cit., p.353. 20 AUSTIN, John. The province of jurisprudence determined. Coleção Cambridge texts in the

history political thought. Editado por Wilfrid E. Rumble. Cambridge University Press, 1995, p.21.

32

deste advir do poder político soberano. Norberto Bobbio21, fazendo alusão aos

estudos de John Austin, entende que O direito positivo é constituído pelos comandos emanados pelo soberano, numa sociedade politicamente independente. Soberano e sociedade política independente são dois conceitos estreitamente correlacionados; com a expressão “sociedade política independente” Austin realmente pretende indicar a entidade social comumente chamada de Estado: esta sociedade é dita política para indicar que é composta de um número relevante de pessoas sujeitas a um superior comum (razão pela qual se a distingue da sociedade familiar e das outras formas mais primitivas de agrupamentos sociais); e é dita independente para indicar que é autônoma e soberana, isto é, que não depende de outras entidades sociais. A sociedade política independente comporta no seu interior uma estruturação hierárquica, ou seja, a subordinação do conjunto dos seus membros a um soberano superior (que pode ser uma única pessoa ou um grupo de pessoas). [...] Quanto à moralidade positiva, esta se distingue do direito positivo precisamente porque é posta por um sujeito humano que não possui a qualidade de soberano para um outro ou para outros sujeitos humanos. Austin destaca, na vasta categoria da moralidade positiva, tipos de normas que são leis propriamente ditas visto que têm a estrutura do comando e outras normas que são leis impropriamente ditas porque não possuem caráter de comandos. Estas últimas são aquelas que hoje chamaríamos de normas de costume social (regras de honra, do galanteio, do jogo, da moda etc., que são postas pela opinião pública): não são comandos (e portanto não são leis) em sentido próprio, porque um comando, para sê-lo, deve provir de um superior bem individualizado, enquanto que a opinião pública é um fenômeno social que escapa de qualquer tentativa de individualização, isto é, de redução a uma pessoa ou a um grupo de pessoas determinadas.

Como se depreende dos trechos acima destacados, extraídos de obras

consagradas de nossa doutrina filosófica e jurídica, a moral, singelamente

denominada como o conjunto de costumes de boa convivência a ser observado por

determinada sociedade, em um dado momento histórico, difere do direito por não

conter elementos de coercibilidade em seus comandos.

Outros juristas, em que pesem terem obtido conclusões semelhantes às que

foram acima destacadas, conseguiram diferenciar a moral e o direito por outras

perspectivas, diversas do prisma da coação. Dalmo de Abreu Dallari, socorrendo-se

de outros doutrinadores, propôs que a diferenciação entre moral e direito partiria do

relacionamento entre os membros da sociedade, considerando-se as diversas

espécies de regras de comportamento humano.

Para este jurista, a moral seria unilateral, porque não teria o condão de

obrigar um membro da sociedade a observar seus preceitos, enquanto que o direto

seria bilateral, já que terceiras pessoas, por serem potencialmente atingíveis pelos

21 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. Traduzido por Márcio

Pugliesi, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 2006. p.106-107.

33

efeitos do descumprimento de uma regra jurídica, integrariam uma relação humana

na qual poderiam reagir para compelir o transgressor a observar a norma jurídica

violada ou a sofrer determinada sanção. Para tornar mais clara esta diferenciação,

nada melhor do que a transcrição de parte do pensamento de Dallari22: Fazendo uma síntese muito precisa das principais teorias que se referem ao problema e através das quais se chega à compreensão do papel do direito na sociedade, García Máynes indica a unilateralidade da moral e a bilateralidade do direito, como sendo o caráter distintivo de todas as regras de comportamento social. A unilateralidade da moral significa que suas normas, mesmo que reconhecidas por todos como desejáveis para a boa convivência, não estabelecem um relacionamento. Por este motivo, se alguém contraria um preceito moral geralmente aceito, não pode ser compelido a proceder de outra forma, mesmo que incorra no desagrado de todos. Se, em lugar disso, a norma ofendida foi uma norma jurídica, a conseqüência é diversa, precisamente por causa da bilateralidade: ou a própria vítima da ofensa à norma, ou um terceiro poderão reagir para obrigar o ofensor a cumprir a norma violada ou a sofrer uma punição. Isto porque a norma jurídica, sendo bilateral, pressupõe sempre uma relação de direitos e deveres, ligando dois ou mais indivíduos. Para García Máynes, quem conseguiu uma fórmula que resume admiravelmente essa distinção foi Leon Petrasisky, ao qualificar como imperativas as normas da moral, enquanto que as normas de direito são imperativo-atributivas, porque ambas impõe comportamentos, mas só as normas jurídicas atribuem ao prejudicado ou a terceiro a faculdade de exigir seu cumprimento ou a punição do ofensor.

Dalmo de Abreu Dallari ainda faz uma ressalva em relação à moral: esta é

diversa dos convencionalismos sociais, porque a moral necessariamente implica a

boa intenção do indivíduo, sendo instrumentalização da ética, enquanto que os

meros convencionalismos sociais independem do propósito da pessoa23.

Diante de toda a exposição aqui formulada acerca da ética e da moral, claro

ficou que ambas não possuem coercibilidade em seus comandos, ou seja, podem ou

não ser cumpridas pelos membros da sociedade, sendo passíveis, em caso de

descumprimento de seus preceitos, de reprimendas sociais, mas não

necessariamente de sanções legais. Apenas haveria sanções oriundas do poder

dominante caso as normas éticas e morais estivessem expressamente positivadas

no ordenamento jurídico vigente.

Mas qual é então a relevância da ética e da moral para o presente trabalho? 22 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado. 20. ed. São Paulo: Saraiva,

1998. p.29-30. 23 Dallari, acerca dos convencionalismos sociais, menciona que estes, a despeito da moral, não

possuem o elemento “atributividade”. Para ele, as convenções sociais “[...] não se confundem com as normas morais, uma vez que estas exigem interioridade, implicando retidão de intenção, um propósito bom, enquanto que os convencionalismos, embora sendo também unilaterais, só impõe exterioridade, não se importando com os bons ou maus propósitos do sujeito”. (MÁYNES, Eduardo Garcia, apud DALLARI, op. cit., p.30).

34

Como veremos no tópico seguintes, ambas, instrumentalizadas pelos costumes

sociais, são fontes do Direito, sendo imprescindíveis para demonstração da

viabilidade ética, jurídica e médica da antecipação do parto nos casos de fetos

acometidos por anencefalia.

1.3 Costume como fonte do direito

Fontes do direito podem ser entendidas como os processos ou instrumentos

pelos quais as regras jurídicas adquirem vigência, eficácia e aplicabilidade no meio

social. Miguel Reale24, conceituando “fonte do direito”, ressalta o seguinte: Por “fonte do direito” designamos os processos ou meios em virtude dos quais as regras jurídicas se positivam com legítima força obrigatória, isto é, com vigência e eficácia no contexto de uma estrutura normativa. O direito resulta de um complexo de fatores que a Filosofia e a Sociologia estudam, mas se manifesta, como ordenação vigente e eficaz, através de certas formas, diríamos mesmo de certas fôrmas, ou estruturas normativas, que são o processo legislativo, os usos e costumes jurídicos, a atividade jurisdicional e o ato negocial.

Os costumes são manifestações concretas, no seio da sociedade, da ética.

Mas são, sobretudo, expressões populares da moral, pois os costumes variam de

acordo com o momento histórico e com o meio cultural. Apesar de os costumes

determinarem comandos de conduta humana, eles não possuem a coercibilidade do

direito, como visto no tópico anterior. Orlando Gomes25 define costume como “[...]

uso geral constante e notório, observado na convicção de corresponder a uma

necessidade jurídica”.

Apesar de ausência de coercibilidade de seus comandos, os costumes estão

intimamente relacionados ao direito, seja em sua formação, seja em sua aplicação.

Nos países de direito consuetudinário, os costumes são a fonte imediata do

direito. Já nos países de direito romanístico, ou seja, onde a fonte imediata do direito

é a lei, os costumes funcionam como elementos de integração no caso de lacunas.

Mas a principal importância dos costumes nos países de tradição positivista-

romanística é justamente influenciar o processo de elaboração das leis, pois 24 REALE, op. cit., p.140. 25 GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 13. ed. Atualizada por Humberto Theodoro Júnior.

Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 42.

35

representam alguns sentimentos coletivos indissociáveis de uma dada sociedade.

A finalidade da lei é regulamentar as relações humanas, sejam estas

individuais ou transindividuais, bem como, garantir um mínimo grau de segurança

nestas mesmas relações. Nestes desideratos, verifica-se que existem diversas

forças sociais que acabam desencadeando o processo de elaboração das leis. E

como o fim da lei é adstrito às relações humanas, devem ser estas, por meio dos

costumes de data sociedade, que forneçam as diretrizes e matrizes para formação

do ordenamento jurídico.

Neste mesmo sentido, no que pertine ao processo de elaboração das leis,

Reale26 afirma que “[...] é indispensável, todavia, que haja correspondência cada vez

mais adequada e fiel entre os ideais e as exigências de Sociedade Civil e

ordenamento jurídico do Estado”.

Os costumes surgem na sociedade de maneira misteriosa, consubstanciando-

se em condutas que ao atingirem os desejos sociais gerais, passam a ser imitados

de forma irrestrita, até submeterem-se ao processo legislativo e serem convertidos

em lei. Tentando estabelecer a origem dos costumes, Miguel Reale27 ressalta que Os usos e costumes jurídicos aparecem na sociedade da forma mais imprevista; ninguém poderia predeterminar os processos reveladores dos usos e costumes. Ora é um ato consciente de um homem que, por atender a uma exigência social, passa a ser imitado e repetido, até transformar-se em um ato consciente no todo social; às vezes, é uma simples casualidade, que sugere uma solução no plano da conduta humana.

Os costumes que orientam a elaboração das leis encontram-se expressos no

próprio texto legal, sendo definidos como costumes secundum legis. Porém, como já

se encontram cristalinizados no texto legal, acabam perdendo sua noção de

costumes propriamente dito, passando a ser lei em sentido estrito. Orlando

Gomes28, acerca desta espécie de costume ressaltava que “[...] costume secundum

legis é o que se acha expressamente referido na lei”. E ainda continuava tal

doutrinador, asseverando que “[...] a remissão legal empresta-lhe, segundo alguns, o

caráter de verdadeira lei, pelo que deixaria de ser o costume propriamente dito”

Os costumes também podem ser fontes do direito quando se analisa o direito

pelo prisma da sentença judicial, da lei “inter-partes”, ao ser acatado, reconhecido ou

aplicado pelo juiz.

26 REALE, op. cit., p.154. 27 Ibidem, p.156. 28 GOMES, op. cit., p.44.

36

Os costumes ainda são tidos como fonte direito quando utilizados para suprir

as lacunas da lei em sua aplicação. Em primeiro lugar, importante, porém, deixar

claro o que vem a ser uma lacuna da lei.

Como é cediço, a lei é uma regra geral e abstrata, que busca reger as

relações humanas. Justamente por buscar ser aplicável ao máximo número possível

de relações, a lei é o mais geral e abstrata possível. Acontece que, diante da

evolução natural das relações sociais, as hipóteses regulamentadas pela lei acabam

não alcançando todas as hipóteses concretas e materiais da vida humana,

ocasionando o aparecimento de hiatos entre a lei e a vida social, aos quais se dá o

nome de lacunas.

Acerca das lacunas do direito, Sylvio Rodrigues29 entende que Por vezes, entretanto, o juiz não encontra na legislação escrita uma norma a aplicar ao caso concreto. Poderá ele recusar-se a decidir sob tal pretexto? Evidentemente não, sob pena de conturbar-se a ordem social. Compete ao Estado, através do Poder Judiciário, solucionar os conflitos entre particulares, e a tal mister não poderá fugir. Aliás, o Código Civil Francês dispõe que o juiz que se negar a julgar, sob pretexto de omissão de lei, pode ser processado como culpado por delito de denegação de justiça. Quando a lei é omissa sobre algum problema, ou sobre a solução de alguma relação jurídica, diz-se que há uma lacuna da lei. Esta é inevitável em qualquer ordenamento jurídico, porque o legislador, por mais sagaz que seja, não pode prever todos os casos capazes de aparecer nas relações entre os indivíduos. E, mesmo que antevisse todas as relações jurídica presentes, não teria o dom de prever casos que o progresso trará. Como poderia, por exemplo, o codificador francês imaginar, em 1804, os problemas jurídicos que o transporte ferroviário ou aéreo iriam trazer? Ou o codificador brasileiro de 1916 resolver questões advindas da descoberta da energia atômica ou da exploração do espaço interplanetário?

O artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil, lei que regulamenta não

apenas a aplicação da legislação civil, mas também de todo ordenamento jurídico

pátrio preconiza que “[...] quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo

com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.

Assim, no caso de lacunas da lei, o aplicador do direito está, pela legislação

brasileira, expressamente autorizado a se utilizar dos costumes como fonte do

direito no caso concreto. A esta espécie de costumes dá-se o nome de costume

praeter legem. Exatamente neste diapasão lecionou Orlando Gomes30, conforme se

infere do trecho abaixo colacionado, extraído de sua obra: Costume praeter legem é o que serve de complemento à lei, preenchendo

29 RODRIGUES, Silvio. Direito civil: parte geral. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p.22-23. 30 GOMES, op. cit., p.44.

37

suas lacunas. Manifesta-se, desse modo, o cunho subsidiário do costume, próprio das sociedades políticas organizadas no pressuposto de que compete ao Estado, mediante leis, revelar o Direito. O costume praeter legem é um dos expedientes a que deve recorrer o juiz para sentenciar quando a lei é omissa.

Como demonstrado, apesar de a ética e a moral não possuírem a necessária

coação que possui o Direito, por meio dos costumes, que as materializam e

instrumentalizam, acabam por servir de diretrizes e balizas no processo de

elaboração das leis, são utilizadas como paradigmas pelos juízes quando do

julgamento do caso concreto, bem como, são usados como elementos de

colmatação das lacunas do direito. Desta forma, estando delineadas as formas de

aplicação da ética e da moral ao direito positivado, serão estas utilizadas como

instrumentos viabilizadores da possibilidade ética, jurídica e médica da antecipação

do parto de fetos acometidos por anencefalia.

1.4 Direitos fundamentais

Os direitos fundamentais são conceituados como aqueles que buscam

garantir a observância das mais básicas necessidades do homem, advindas da

própria natureza humana, como por exemplo, a dignidade e a propriedade, dentro de

um determinado ordenamento jurídico.

Esta categoria de direitos é derivada diretamente dos “direitos do homem”

(direitos humanos), e por vezes utilizada como sinônimo desta última classificação,

mas como ela não se confunde. Os direitos humanos, por outro lado, seriam aqueles

que almejam a garantia das necessidades humanas básicas, e válidas em qualquer

momento histórico, e para todos os homens, não apenas dentro de determinado

ordenamento jurídico.

Ressaltando esta diferenciação José Joaquim Gomes Canotilho31 assevera

que As expressões <<direitos do homem>> e <<direitos fundamentais>> são frequentemente utilizadas como sinónimas. Segundo a sua origem e significado, poderíamos distingui-las da seguinte maneira: direitos do

31 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993.

p.517.

38

homem são direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos (dimensão jusnaturalista-universalista); direitos fundamentais são os direitos do homem, jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espacio-temporalmente. Os direitos do homem arrancariam da própria natureza humana e daí o seu caráter inviolável, intemporal e universal; os direitos fundamentais seriam os direitos objectivamente vigentes numa ordem jurídica concreta.

Da mesma forma que o doutrinador português acima referido, Fábio Konder

Comparato32 faz distinção entre os direitos humanos e os direitos fundamentais,

como se observa do trecho abaixo destacado: É aí que se põe a distinção, elaborada pela doutrina jurídica germânica, entre direitos humanos e direitos fundamentais (Grundrechte). Estes últimos são os direitos humanos reconhecidos como tal pelas autoridades às quais se atribui o poder político de editar normas, tanto no interior dos Estados quanto no plano internacional; são os direitos humanos positivados nas Constituições, nas leis, nos tratados internacionais.

Analisando-se as diferenciações acima colacionadas, fica claro que os direitos

fundamentais são derivados dos direitos humanos. Mas de onde são provenientes

os direitos humanos? Eles vêm da doutrina do direito natural.

O direito natural remonta à antiguidade, sendo anterior, inclusive, ao período

da Grécia antiga. Tal doutrina do direito é baseada na idéia da existência de um

conjunto de valores derivados dos mais íntimos princípios da natureza humana,

como ser individual ou coletivo, cujo exercício é condição necessária à efetiva vida

humana, sendo anteriores33 a qualquer espécie de organização político-social do

homem. Esses valores contidos no direito natural são permanentes e eternamente

válidos, independente de legislação, de convenção, da localidade ou qualquer outro

expediente imaginado pelo homem, permitindo uma existência digna a todos os

homens do planeta.

A fundamentação do direito natural variou ao longo da história da

humanidade: ora a origem do direito natural foi a força da natureza (cosmos), ora foi

a força divina, e em outras oportunidades foi a força da razão humana. Apesar desta

variabilidade de fundamentação do direito natural, suas premissas foram mantidas

ao longo do tempo, sempre buscando a garantia das condições viabilizadoras da

vida humana digna.

A doutrina do direito natural, em meados do século XVII, renovada pelos ares

32 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva,

1999. p.46. 33 J. J. Canotilho ressalta que “[...] os direitos naturais, como o nome indica, eram inerentes ao

indivíduo e anteriores a qualquer contrato social”. (CANOTILHO, op. cit., p.518)

39

antropocentristas da filosofia iluminista, passou a se preocupar de maneira mais

detida à garantia das condições dignas de vida do homem, tendo-se em vista não

apenas o fato de o homem ter se tornado o centro dos acontecimentos do mundo,

como também, tendo-se em vista o desenvolvimento do pensamento racionalista34

que começou a imperar no meio filosófico.

A preocupação do direito natural com as condições dignas de vida dos

homens intensificou-se especialmente após o início da Revolução Industrial,

fenômeno econômico-social ocorrido no continente Europeu, iniciado na Inglaterra,

durante o século XVIII. Com a Revolução Industrial, as condições de vida digna da

maior parte da comunidade européia, a nova classe trabalhadora, foram relegadas a

segundo plano, em razão de dois motivos: imensa reserva de mão de obra, o que,

pela “lei da demanda e procura”, contribuía para reduzir o valor dos salários; e foco

dos detentores dos meios de produção no lucro da atividade industrial, em

detrimento de qualquer reivindicação de melhores condições de trabalho.

Toda essa opressão à recente classe operária, no século XVIII, desencadeou

um movimento de matizes jusnaturalistas tendente a positivar, tornar expressas na

legislação escrita, as aspirações garantistas preconizadas pelo direito natural, de

modo que os Estados estivessem obrigados a observar os, agora definidos, direitos

humanos. Esses movimentos culminaram com as declarações de direitos dos

homens da Virgínia (1776) e da França (1789), primeiras manifestações formais de

direitos humanos propriamente ditos, já que a Carta Magna inglesa de 1215 tinha

caráter nitidamente aristocrata, apesar de ter significado, na época, notável avanço,

por significar o reconhecimento de direitos de classes não dominantes,

independentemente do consentimento do monarca.

As declarações de direitos humanos acima referidas podem ser entendidas

como o resultado de uma consciência coletiva voltada para a materialização da

dignidade humana, na busca das garantias individuais resguardadas pelo direito

natural. Nesta mesma inclinação, Comparato35 encontra outro fundamento para a

existência dos direitos humanos, além da organização estatal. Para este doutrinador 34 Acerca do racionalismo que impulsionou o direito natural do período iluminista, Dalmo de Abreu

Dallari afirma que “O jusnaturalismo do século XVII, que levou às Declarações de Direitos no século seguinte, já não se apoiava na crença em duas verdades, uma revelada e outra conquistada pela razão, como ocorria com os jusnaturalistas medievais. Assim, Hugo Grócio, um dos mais eminentes defensores do novo Direito Natural, sustentava que este poderia ser concebido mesmo que não houvesse Deus, procurando com isso afirmar o seu caráter puramente racional.” (DALLARI, op. cit., p.206).

35 COMPARATO, op. cit., p.47.

40

Esse fundamento, em última instancia, só pode ser a consciência ética coletiva, a convicção, longa e largamente estabelecida na comunidade, de que a dignidade da condição humana exige o respeito a certos bens ou valores em qualquer circunstancia, ainda que não reconhecidos no ordenamento estatal, ou em documentos normativos internacionais.

A declaração de direitos da Virgínia, em 1776, promulgada dias antes da

independência norte-americana, teve importância ímpar na afirmação histórica dos

direitos humanos por ter positivado os direitos naturais e por ter elevado esta

categoria de direitos a nível superior a todos os demais.

Já a declaração de direitos da Revolução Francesa, em 1789, teve imensa

relevância não apenas porque provocou uma completa transformação das estruturas

sócio-políticas, mas sobretudo por ter instaurado uma intensa modificação no

conjunto de relações de poder que compunham a estrutura do regime político da

época. Uma notável diferença36 entre a declaração americana e a francesa foi que

esta última, ao contrário da outra, buscou trazer a garantia dos direitos naturais não

apenas ao povo francês, mas a todos os povos do mundo. Acerca da universalidade

da declaração de direitos francesa, Dallari37 frisa que É fora de dúvida que essa Declaração, cuja influência na vida constitucional dos povos, não só do Ocidente como também do Oriente, ainda hoje é marcante, representou um considerável progresso na história da afirmação dos valores fundamentais da pessoa humana. Entretanto, como um produto do século XVIII, seu cunho é nitidamente individualista, subordinando a vida social ao indivíduo e atribuindo ao Estado a finalidade de conservação dos direitos individuais.

Este caráter geral e abstrato das fórmulas utilizadas na declaração de direitos

da Revolução Francesa, em que pese ser restrito ao âmbito individual do ser

humano, acabou influenciando soberbamente as cartas constitucionais modernas

espalhadas pelos países democráticos do mundo.

Outro relevante acontecimento concernente à afirmação dos direitos humanos

na história foi a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, aprovada em

10 de dezembro deste ano pela Assembléia Geral das Nações Unidas. As maiores

conquistas desta nova declaração de direitos humanos foram a cristalinização da

idéia de que todos os homens, independentemente de suas crenças, etnia, classe

36 Fábio Konder Comparato ainda ressaltou outro diferencial da declaração de direitos francesa. Para

este autor, a despeito dos demais movimentos jusnaturalistas anteriores, “[...] o espírito da Revolução Francesa era, muito mais, a supressão das desigualdades estamentais do que a consagração das liberdades individuais para todos”. (COMPARATO, op. cit., p.118)

37 DALLARI, op. cit., p.208.

41

social e cultura, são iguais entre si; e o reconhecimento da necessidade de

observância, pelos governos, do princípio da dignidade humana. Ademais, foi

estabelecida não apenas a liberdade política dos homens, mas também, a liberdade

individual. Outrossim, vários direitos sociais, como direito ao trabalho e à educação,

foram declarados neste documento.

Insta ressaltar que os direitos assegurados pela Declaração Universal dos

Direitos Humanos, por serem originados do direito natural, são independentes da

concessão ou do reconhecimento pelo poder dominante, pois existem

autonomamente a qualquer declaração de vontade ou formalidade.

Mas qual a relevância do desenvolvimento dos direitos humanos para o

presente estudo?

Os direitos humanos influenciaram diretamente a positivação dos direitos

fundamentais nos ordenamentos constitucionais de diversos países, dentre os quais

se encontra o Brasil. E estes direitos naturais positivados, por seu caráter cogente e

de aplicabilidade imediata, serão imprescindíveis para a demonstração da

viabilidade ética e jurídica da antecipação do parto de fetos anencefálicos, já que

esta possibilidade nada mais é do que o exercício dos direitos fundamentais da

gestante.

José Afonso da Silva38 define direitos fundamentais, já exprimindo a idéia de

que é obrigação do Estado garantir o seu exercício, como aqueles que Além de referir-se a princípios que resumem a concepção do mundo e informam a ideologia política de cada ordenamento jurídico, é reservada para designar, no nível do Direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas. No qualificativo fundamentais acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive; fundamentais do homem no sentido de que a todos, por igual, devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados. Do homem, não como macho da espécie, mas no sentido de pessoa humana. Direitos fundamentais do homem significa Direitos fundamentais da pessoa humana ou Direitos fundamentais.

Cumpre, ainda, ressaltar que a constitucionalização dos direitos humanos,

materializando-os nos direitos fundamentais, traz ao Estado a obrigação de garanti-

38 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 18 ed. São Paulo: Malheiros,

2000. p.182.

42

los aos cidadãos39. Comparato40, reconhecendo esta importância, chega à mesma

conclusão, como verificamos do trecho abaixo destacado, extraído de sua obra: O reconhecimento oficial de direitos humanos, pela autoridade política competente, dá muito mais segurança às relações sociais. Ele exerce, também, uma função pedagógica no seio da comunidade, no sentido de fazer prevalecer os grandes valores éticos, os quais, sem este reconhecimento oficial, tardariam a se impor na vida coletiva.

Insta salientar que existem algumas classificações dos direitos fundamentais.

Uma parcela razoável da doutrina constitucionalista divide os direitos fundamentais

de acordo com a sua função, a saber: (i) direitos de defesa, sendo estes os direitos

em relação aos quais o Estado possui dever de não interferência na auto-

determinação do indivíduo, ou seja, no exercício da própria garantia constitucional;

(ii) direitos a prestação (jurídica e material), em relação aos quais o Estado possui o

dever de propiciar, comissivamente, suporte jurídico ou institucional, para exercício

das garantias constitucionais; (iii) direitos de participação, sendo estes os direitos

orientados a garantir a participação dos indivíduos na vontade da nação (direitos

políticos).

Para a presente dissertação de mestrado, irão interessar mais detidamente os

direitos de defesa, como ver-se-á nos próximos capítulos.

Para José Joaquim Gomes Canotilho41, os direitos fundamentais de defesa Cumprem a função de direitos de defesa dos cidadãos sob uma dupla perspectiva: (1) constituem, num plano jurídico-objectivo, normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo fundamentalmente as ingerências destes na esfera jurídica individual; (2) implicam, num plano jurídico-subjectivo, o poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdade positiva) e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa).

No intento de se demonstrar a viabilidade ética e jurídica da antecipação do

39 Gilmar Ferreira Mendes, deixando clara a obrigação estatal de observar e garantir os direitos

fundamentais, equipara esta categoria de direitos não apenas a limitações da atividade estatal, mas também, e sobretudo, a parâmetros de organização do Estado, que devem orientar sua atuação. Este autor, corroborando a assertiva anterior afirma que “O fato de os direitos fundamentais estarem previstos na Constituição torna-os parâmetros de organização e de limitação dos poderes constituídos. A constitucionalização dos direitos fundamentais impedem que sejam considerados meras autolimitações dos poderes constituídos – dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário –, passíveis de serem alteradas ou suprimidas ao talante destes. Nenhum desses Poderes se confunde com o poder que consagra o direito fundamental, que lhes é superior. Os atos dos poderes constituídos devem conformidade aos direitos fundamentais e se expõe à invalidade se os desprezarem.” (MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p.245).

40 COMPARATO, op. cit., p.46. 41 CANOTILHO, op. cit., p.541.

43

parto de fetos acometidos por anencefalia, será necessário estabelecer uma gama

de direitos fundamentais em relação aos quais o Estado deve abster-se de interferir

na esfera de liberdade do indivíduo para garanti-los. E para tanto, a idéia dos direitos

de defesa deve estar bem delineada.

Tornando um pouco mais clara a noção de direitos de defesa, Gilmar Ferreira

Mendes42, em co-autoria com Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet

Branco, ressalta que Os direitos de defesa caracterizam-se por impor ao Estado um dever de abstenção, um dever de não-interferência, de não-intromissão no espaço de autodeterminação de indivíduo. Esses direitos objetivam a limitação da ação do Estado. Destinam-se a evitar ingerência do Estado sobre os bens protegidos (liberdade, propriedade...) e fundamentam pretensão de reparo pelas agressões eventualmente consumadas.

Em virtude dessas definições dos direitos fundamentais com função de

defesa, verifica-se que o exercício de alguns direitos humanos positivados em nível

constitucional depende, na verdade, não da atuação comissiva do Estado, mas sim,

da abstenção deste na prática de quaisquer medidas restritivas ou obstativas de tais

direitos-liberdades constitucionais. Exemplo43 desta modalidade de defesa é o direito

à dignidade, que não pode ser limitado pelo Estado, sequer por meio de legislação

regulamentadora.

Vital Moreira44, em obra conjunta com J. J. Canotilho, foram minuciosos ao

descrever os elementos intrínsecos aos direitos fundamentais de defesa, como se

colhe do trecho abaixo colacionado: Os elementos essenciais típicos da teoria liberal dos direitos fundamentais, intrinsecamente ligada à teoria liberal da sociedade e do Estado, são os seguintes: (a) os direitos fundamentais são direitos dos indivíduos perante o Estado, direitos de defesa do cidadão contra o Estado, pelo que este não

42 MENDES, op. cit., p.255-256. 43 Gilmar Ferreira Mendes e seus co-autores descreveram outros exemplos de direitos fundamentais

de defesa. Segundo estes doutrinadores, “Apontam-se, em doutrina, alguns desdobramentos relevantes dessa função de defesa dos direitos fundamentais. Os direitos de defesa vedam interferências estatais no âmbito de liberdade dos indivíduos e, sob este aspecto, constituem normas de competência negativa para os Poderes Públicos. O Estado está jungido a não estorvar o exercício da liberdade do indivíduo, quer material, quer juridicamente. Desse modo, ao estado veda-se criar censura prévia para manifestações artísticas, ou impedir a instituição de religiões, ou instituir pressupostos desmesurados para o exercício de uma profissão. Os direitos de defesa também protegem bens jurídicos contra ações do Estado que os afetem. Assim, em face do direito à vida, o Estado não pode assumir comportamentos que afetem a existência do ser humano. Em face do direito de privacidade, o Estado não pode divulgar certos dados pessoais dos seus cidadãos. O direito de defesa, nesse passo, ganha forma de direito à não-afetação dos bens protegidos.” (MENDES, op. cit., p.256)

44 MOREIRA, Vital; CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Fundamentos da constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 1991. p.101-102.

44

tem qualquer dever activo quanto à realização efectiva dos direitos fundamentais, que permanecem como assunto exclusivamente individual, privado; (b) os direitos fundamentais são direitos de liberdade individual, tendo por objecto um dever de omissão dos poderes públicos ante a esfera individual; (c) os direitos fundamentais revestem, concomitantemente, o carácter de normas de distribuição de competências entre o indivíduo e o Estado, distribuição esta favorável à ampliação do domínio da liberdade individual e à restrição da actividade estadual aos momentos de garantia da ordem necessária ao livre desenvolvimento da liberdade individual; (d) os direitos de liberdade apresentam-se como direitos pré-estaduais, definido um domínio de liberdade individual e social, na qual é vedada qualquer ingerência do Estado, pelo que a substância e o conteúdo dos direitos, bem como a sua utilização, ficam fora da competência regulamentar dos órgãos estaduais; (e) a liberdade garantida pelos direitos fundamentais é a liberdade em si e para sim expressão da própria autonomia individual, sendo inadmissível falar em liberdades individuais sujeitas a qualquer teleologia, a qualquer fim exterior (ex.: liberdade para prossecução da ordem democrática); (f) finalmente, na base de todas as liberdades estão o direito de propriedade privada e a liberdade de empresa, como pressupostos da autonomia e da independência dos indivíduos.

O Estado, dentro de sua obrigação constitucional de garantir aos cidadãos o

exercício de seus direitos fundamentais, deve, em relação aos direitos de defesa,

agir para que as liberdades de gozo de tais direitos não sofram interferências. A

obrigação estatal, em face de tais direitos, tem natureza negativo-positiva, pois ao

mesmo tempo em que o Estado deve abster-se de praticar quaisquer atos, materiais

ou jurídicos, que interfiram no exercícios destes direitos, deve o Estado agir

comissivamente para fazer com que as ingerências que afetem o gozo dos direitos

de defesa sejam paralisadas ou mesmo reparadas.

Gilmar Ferreira Mendes45, em relação à obrigação negativo-positiva acima

referida, entende que o próprio Estado deve viabilizar os remédios jurídicos para

evitar ingerências de seus próprios agentes ou instituições na fruição dos direitos de

defesa, bem como, afirma que as interferências praticadas devem ser anuladas.

Remetendo à Constituição Portuguesa, mas trazendo ensinamentos que são

amplamente aplicáveis à Constituição brasileira, Vital Moreira46 analisa a natureza

negativo-positiva da obrigação estatal de garantia dos direitos fundamentais, como

se colhe do trecho abaixo destacado: Os direitos fundamentais vinculam as entidades públicas, não apenas de forma <<negativa>> – impondo-lhes uma proibição de agressão ou

45 Segundo Gilmar F. Mendes, “A afronta de um direito de defesa deve encontrar remédio na ordem

jurídica, com vistas a compelir o Estado a se abster de praticar o ato incompatível com os direitos fundamentais ou a anular o que já praticou. O princípio da responsabilidade civil do Estado enseja que a ofensa ao direito fundamental suscite, igualmente, uma compensação pecuniária.” (MENDES, op. cit., p.257).

46 MOREIRA, op. cit., p.139.

45

ingerência na esfera do direito fundamental –, mas também de forma <<positiva>> – exigindo a criação e manutenção dos pressupostos de facto e de direito necessários à defesa ou satisfação do direito fundamental.

A importância dada aos dos direitos fundamentais, incluindo os de defesa, de

prestação e de participação, pelo legislador pátrio foi tão grande que,

topologicamente, estes foram definidos nos primeiros artigos da Constituição

Federal de 1988.

Outra característica fundamental dos direitos de defesa é a sua aplicabilidade

imediata, independentemente da existência de lei que regulamente a fruição desta

modalidade de Direito.

A aplicabilidade imediata é característica dos direitos fundamentais de

diversas constituições espalhadas pelo mundo. Esta marca específica dos direitos

fundamentais de defesa teve maior relevo na história da humanidade após o fim da

Segunda Guerra Mundial, tendo-se em vista que a ausência de aplicabilidade

imediata dos direitos fundamentais previstos na Constituição de Weimar permitiu

com que o regime totalitário nazista, iniciado na Alemanha em 1933, promovesse a

derrocada de seu substrato democrático garantista, e oprimisse diversas minorias

étnicas, como os judeus, por exemplo, em razão da dependência de atuação do

legislador infraconstitucional para sua aplicação.

No caso do Brasil, tal elemento inerente ao direito fundamental de defesa

encontra-se no artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal de 1988, onde o legislador

originário deixou expressamente determinado que “[...] as normas definidoras dos

direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.

Quando há referência a uma norma constitucional como sendo de

aplicabilidade imediata, quer-se dizer que o exercício do preceito ali previsto

independe de leis infraconstitucionais regulamentadoras ou instrumentalizadoras,

sendo exeqüível por si mesma. Normas de aplicabilidade imediata não são

enunciados programáticos, que demandam desenvolvimento ulterior por legislação

infraconstitucional, são comandos certos, definíveis e observáveis de pronto.

Corroborando tais assertiva, Michel Temer47 define normas constitucionais de

aplicabilidade imediata como sendo Aquelas de aplicabilidade imediata, direta, integral, independendo de legislação posterior para a sua inteira operatividade. Desse teor é a norma do art. 1º da Carta Constitucional: “A República Federativa do Brasil,

47 TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 1999. p.24.

46

formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos [...]”. Como a do art. 2º: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. São normas bastantes em si, que não necessitam de intermediação do legislador infraconstitucional.

Na mesma esteira, Gilmar Mendes48, no que pertine à disposição

constitucional brasileira acerca da aplicabilidade imediata das normas definidoras

dos direitos fundamentais de defesa ressalta que O significado essencial desta cláusula é ressaltar que as normas que definem direitos fundamentais são normas de caráter preceptivo, e não meramente programático. Explicita-se, além disso, que os direitos fundamentais se fundam na Constituição, e não na lei – com o que se deixa claro que é a lei que deve mover-se no âmbito dos direitos fundamentais, não o contrário. Os direitos fundamentais não são meramente normas matrizes de outras normas, mas são também, e sobretudo, normas diretamente reguladoras de relações jurídicas.

O que este autor, em conjunto com os demais co-autores, quis deixar claro é

que os direitos fundamentais de defesa são normas que podem regular de imediato

relações jurídicas, inclusive para o fim de compelir o Estado a garantir sua

observância, sendo possível, mas não imprescindível, a existência de leis

infraconstitucionais que os regulem. Segundo os mesmos doutrinadores, no entanto,

a legislação regulamentadora deve se direcionar à teleologia do direito fundamental

em jogo, sendo impossível prescreverem disposições em sentido contrário ao do

texto constitucional.

A aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais de defesa, segundo

Canotilho49, advém da própria autonomia que esta categoria de direitos confere aos

seus titulares, pois Em geral, as normas consagradoras de direitos, liberdades e garantias recortam, logo a nível constitucional, uma pretensão jurídica individual (direito subjectivo) a favor de determinados titulares com o correspondente dever jurídico por parte dos destinatários passivo. Este traço explica a insistência da doutrina na ideia de aplicabilidade directa destas normas (cfr., CRP, art. 18.º/1) e na ideia de determinabilidade constitucional – e não meramente legal – do conteúdo da referida pretensão subjectiva individual. Do mesmo modo, é esta articulação de determinabilidade constitucional e aplicabilidade directa que sjustifica uma outra nota caracterizadora. Dada a sua radicação subjectiva, os direitos, liberdades e garantias valem como direitos sef executing, independentemente da mediação concretizadora ou densificadora dos poderes público. As anteriores dimensões jurídico-constitucionais – aplicabilidade directa,

48 MENDES, op. cit., p.251. 49 CANOTILHO, op. cit., p.525-526.

47

determinabilidade constitucional do conteúdo, exeqüibilidade autónoma – apontam para uma específica estrutura e função dos direitos, liberdades e garantias. Trata-se de direitos cuja referência primária é a sua função de defesa, auto-impondo-se como “direitos negativos” directamente conformadores de um espaço subjectivo de distanciação e autonomia com o correspondente dever de abstenção ou proibição de agressão por parte dos destinatários passivos, públicos e privados. Nesta medida, ficam fora da categoria de direitos, liberdades e garantia, os direitos fundamentais que consistam, e na medida em que consistam exclusivamente, em prestação do Estado, por serem fundamentalmente constituidos a nível político-legislativo.

Diante de todo o apanhado realizado neste tópico acerca dos direitos

fundamentais, pode-se chegar a algumas conclusões a seu respeito: (i) são direitos

que emanam do jusnaturalismo e dos direitos humanos, como garantias inerentes ao

ser humano; (ii) é dever constitucional do Estado que os tenha em sua constituição

garantir, negativa ou positivamente, condições para seus exercícios pelos cidadãos;

(iii) os direitos fundamentais de garantia têm aplicabilidade imediata, independendo

de legislação infraconstitucional que os regulamente ou que forneça os meios

jurídicos e materiais para seus exercícios.

As conclusões acima demonstradas serão de fundamental importância para

estabelecer as premissas básicas nas quais será sustentada a possibilidade ético-

jurídica da antecipação dos partos de fetos acometidos por anencefalia antes do

termo normal da gravidez.

1.5 Bioética

Os avanços tecnológicos e os impactos destas inovações na vida cotidiana

trazem diversas alterações aos valores morais difundidos no meio social,

ocasionalmente impondo mudanças de paradigmas no juízo de valores coletivo.

Essa transformação de paradigmas faz com que a ética, ciência filosófica, possua

íntima relação com os progressos científicos, por vezes validando os resultados das

pesquisas, por vezes limitando o âmbito de extensão do trabalho do cientista.

O progresso científico, como é cediço, tem suas repercussões potencializadas

na sociedade quando se relaciona às ciências médicas, notadamente por se imiscuir

a conceitos ainda não completamente revelados pela ciência, eivados de

transcendentalismo, como vida e morte, por exemplo. Justamente por relacionar-se

a conceitos não demonstrados concretamente, repletos de significações metafísicas,

48

a ética possui o importante papel de direcionar as inovações tecnológicas, em

especial as afeitas à vida humana, para o bem comum, para a melhora da

convivência social, para a dignificação da pessoa.

Esta ética específica é conhecida como bioética. Remetendo à segunda

edição da Encyclopedia of bioethics, de 1.995, a jurista Maria Helena Diniz50 define

bioética como sendo “[...] o estudo sistemático das dimensões morais das ciências

da vida e do cuidado da saúde, utilizando uma variedade de metodologias éticas

num contexto multidisciplinar”.

Tomando como base a definição acima transcrita, seria a bioética uma

espécie de resposta da ética às novas situações carreadas pelas inovações

tecnológicas, sobretudo no campo da saúde; um conjunto de reflexões filosóficas e

morais sobre a vida em geral e sobre as práticas médicas, envolvendo, ainda, os

diversos ramos do conhecimento humano, como psicologia e genética, por exemplo.

Maria Helena Diniz51, em relação à bioética, ainda menciona que O imperativo científico-tecnológico vai progressivamente dando espaço ao imperativo ético, e, com isso, a bioética emerge como novo domínio da reflexão que considera o ser humano em sua dignidade e as condições éticas para uma vida humana digna, alertando a todos sobre as conseqüências nefastas de um avanço incontrolado da biotecnologia e sobre a necessidade de uma tomada de consciência dos desafios trazidos pelas ciências da vida. A bioética é personalista, por analisar o homem como pessoa ou como um “eu”, dando valor fundamental à vida e à dignidade humanas, não admitindo qualquer intervenção no corpo humano que não redunde no bem da pessoa, que sempre será um fim, nunca um meio para a obtenção de outras finalidades. Com a rapidez das revoluções operadas pelas ciências biomédicas e com o surgir das difíceis questões ético-jurídicas por elas suscitadas, o direito não poderia deixar de reagir diante dos riscos a que a espécie humana está sujeita, impondo limites à liberdade de pesquisa consagrada pelo art. 5º, IX, da Constituição Federal de 1988.

A autora cima referida, apesar de pontuar em toda sua obra a importância dos

avanços tecnológicos para o bem da humanidade, afirma que toda a liberdade de

pesquisa científica, a despeito de se constituir em direito fundamental de defesa,

deve ser limitada por outros direitos fundamentais, como a integridade física e

psíquica, a dignidade, a privacidade, direitos estes que podem ser atingidos de

maneira intensamente negativa pelo mau uso da liberdade de pesquisa científica. No

caso de conflito entre estes direitos fundamentais, Maria Helena Diniz propõe que

haja resolução deste embate por meio da dignidade humana, um dos pilares do

50 DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p.9. 51 Ibid, p.6.

49

Estado Democrático de Direito brasileiro, a fim de que a liberdade científica sofra as

restrições imprescindíveis para a preservação da vida humana.

O termo bioética foi utilizado pela primeira vez pelo oncologista e biólogo

norte americano Van Rensselder Potter, da Universidade de Wisconsin, Madison,

em sua obra Bioethics: bridge to the future, publicada em 1971. Na visão deste

autor, a bioética seria a “ciência da sobrevivência”, uma dimensão moral que

permitiria a melhora da qualidade de vida do homem por meio das ciências

biológicas, comungando a participação do homem com a evolução biológica, sempre

prezando pela harmonia universal (ética).

Maria Helena Diniz52, dentro da dimensão moral da questão, ainda menciona

que a bioética tem como paradigma de referência “[...] o valor supremo da pessoa

humana, de sua vida, dignidade e liberdade ou autonomia, dentro da linguagem dos

direitos humano [...]”.

A bioética, cumpre ressaltar, possui como seu centro de desenvolvimento a

pessoa, manifestando claro caráter antropocentrista, assim como grande parte dos

direitos fundamentais de defesa. Dando lastro ao protecionismo da bioética sobre o

homem, Heloísa Helena Barboza53 afirma que esta faceta da ética Em sua concepção alargada passou a designar os problemas éticos gerados pelos avanços nas ciências biológicas e médicas, problemas esses que atingiram seu auge no momento em que se começou a divulgar de modo amplo, certamente em proporção direta com o acelerado desenvolvimento dos meios de comunicação, o poder do homem interferir de forma eficaz nos processos de nascimento e morte, que até então apresentavam “momentos” ainda não “dominados”.

As conceituações de bioética trazidas até o momento convergiram em seus

termos, mas foram idênticas ao assinalar que a motivação desta faceta são as

inovações tecnológicas54.

52 DINIZ, op. cit., p.12. 53 BARBOZA, Heloisa Helena. Princípios do biodireito, In Novos temas de biodireito e bioética.

(Orgs. Heloísa Helena Barboza, Jussara M. L. de Meirelles, Vicente de Paulo Barretto). Rio de Janeiro: Renovar, 2003. [p. 49-81]. p.51.

54 Frisando a imprescindibilidade dos avanços tecnológicos para o desenvolvimento da bioética, Heloisa Helena Barboza assevera ser a bioética “[...] um setor da ‘ética aplicada’, movimento intelectual que surgiu nos Estados Unidos nas últimas décadas e que promove a reflexão filosófica sobre problemas morais, sociais e jurídicos propostos pelo desenvolvimento da civilização tecnológica contemporânea” (BARBOZA, op. cit., p.52). E esta autora ainda entende a multidisciplinariedade como a maior conquista desta faceta, ao mencionar o seu maior mérito: “[...] sistematizar (ou ao menos tentar) o tratamento de questões diversas, mas que devem guardar entre si, necessariamente, princípios e fins comuns. Já se assinalou que as ameaças que pendem sobre a vida no planeta Terra e especialmente sobre a espécie humana derivam do grau diferenciado de desenvolvimento entre as ciências da natureza e as da sociedade.” (Ibidem, p.53).

50

O médico chileno Miguel Kottow, professor de sociologia da Universidade do

Chile, reconhece a bioética como uma ética aplicada, que projeta suas reflexões

sobre vários campos sociais, sendo eminentemente uma ciência transdisciplinar,

tendo-se em vista sua permeabilidade com os âmbitos sociais e com as diversas

partes do saber humano. Essas conclusões podem ser extraídas do trecho abaixo

destacado, extraído de sua obra intitulada Introducción a la bioética, como se

observa: La interdisciplinariedad implicaría un aporte indispensable de ciertas disciplinas para conformar un todo – como ocurre en un programa espacial, por ejemplo –, lo cual no es el caso de la bioética, que se busca elementos en diversas fuentes o campos del saber donde encuentra algo útil. Por ende, la bioética es practicada por miembros de diversas profesiones, lo cual la hace multidisciplinaria sin que ese término denote más que la conjunción de una variedad de puntos de vista. […] Lo cual no es óbice para reconocer que la bioética incursiona en otras disciplinas y, más transcendente aún, intenta proyectar su reflexión hacia diversos campos sociales, en fidelidad con su vocación de ser una ética aplicada. Este flujo de interacción con otras disciplinas se caracteriza por el término transdisciplinariedad, atributo que define correctamente el caráter disciplinar de la bioética, además de su permeabilidad para interactuar con otros ámbitos sociales y del saber.55

Javier Sádaba56, autor espanhol, define bioética como “[…] el estudio

disciplinar de los problemas derivados de los avances biológicos con especial

atención a su dimensión moral”. A dimensão moral dos avanços tecnológicos, para

este autor espanhol, consiste no reconhecimento da dignidade dos homens,

devendo estes serem vistos como sujeitos de direitos individuais autônomos. Para

tanto, a bioética é a ciência humana que pode dar o suporte necessário ao

mencionado reconhecimento de direitos. Para Sádaba57, De todas las justificaciones morales creemos que, más ahora que nunca y ante los problemas que nos plantea la biotecnología en todas sus formas, es necesaria una ética exigente. Y una ética exigente no se limita a reconocer como principios aquellas convicciones que, a modo de evolución darwinista, se han impuesto y son aceptadas, al menos teóricamente, por todos o por casi todos. Tampoco se contentará con los que, siguiendo la tradición o atentos a lo que las ciencias económicas usan como modelo, piensan que una acción es buena o mala exclusivamente en función de las consecuencias que fluyen de tal acción. La ética que demanda la situación actual debe ser fuerte en el sentido de pedir, como cuestión básica, un reconocimiento de todos los individuos en cuanto que son sujetos de derechos. Y desde ahí respetar a cada uno precisamente por eso. Más aún, la tan maltratada idea de dignidad se basa en la consideración de cada uno de los individuos humanos como sujetos de derechos. Lo cual supone, a su

55 KOTTOW, Miguel H. Introducción a la bioética. 2. ed. Santiago: Mediterráneo, 2005. p.64-65. 56 SÁDABA, Javier. Principios de bioética laica. Barcelona: Gedisa, 2004. p.35. 57 Ibidem, p.51-52.

51

vez, que nadie es un objeto más, que no se le puede instrumentalizar como se instrumentaliza un útil o alga a mano. Esa ética establece relaciones internas entre todos los individuos. (…) La moral que defendemos, sin negar todo lo aceptable que existe en el uso de la pura racionalidad, insistirá una y otra vez en que el ser humano autónomo es, en sí mismo, un ser respetable y con derechos que nadie, con ningún golpe da magia, puede eliminar. Es ésta la ética que, en nuestros días, está capacitada para, sin negar nada de lo que contribuya al progreso, poner límites a aquellos excesos que vayan contra la dignidad humana; dignidad entendida como lo hemos visto y no como residuo religioso o simple comodín metafórico. La dignidad no es un trasunto metafísico, sino la realidad de un ser que debe ser respetado en sus derechos.

Para a presente dissertação de mestrado, a bioética fornecerá os princípios,

ao lado da ética clássica e da moral, que permitirão, no embate de direitos

constitucionais de mesma hierarquia, presentes na hipótese de antecipação do parto

de fetos anencéfalos, resolver58 o conflito de normas em questão, fazendo

prevalecer a dignidade humana, base do Estado Democrático de Direito brasileiro.

Mas que princípios são esses, da bioética? Este prisma da ética, em comento,

assim como todos os ramos do conhecimento humano, sustenta-se em princípios,

sendo certo que a doutrina que se debruça sobre o tema costuma destacar quatro

princípios basilares deste ramo do conhecimento, a saber: (i) princípio da autonomia;

(ii) princípio da beneficência; (iii) princípio da justiça; (iv) princípio da não-

maleficência, sendo este último princípio decorrência do princípio da beneficência.

Acerca dos princípios acima referidos, Heloisa Helena Barboza59 faz uma

interessante descrição de suas origens, remetendo o estabelecimento das bases da

bioética ao ano de 1978, como se verifica do trecho abaixo transcrito: O estabelecimento dos mencionados princípios da bioética decorreu da criação pelo Congresso dos Estados Unidos de uma Comissão Nacional encarregada de identificar os princípios éticos básicos que deveriam guiar a investigação em seres humanos pelas ciências do comportamento e pela biomedicina. Iniciados os trabalhos em 1974, quatro anos após publicou a referida Comissão o chamado Informe Belmont, contendo três princípios: a) o da autonomia ou do respeito às pessoas por suas opiniões e escolhas, segundo valores e crenças pessoais; b) o da beneficência que se traduz na obrigação de não causar dano e de extremar os benefícios e minimizar os riscos; c) o da justiça ou imparcialidade na distribuição dos riscos e dos benefícios, não podendo uma pessoa ser tratada de maneira distinta de outra, salvo haja entre ambas alguma diferença relevante. A estes três princípios Tom L. Beauchamp e James F. Childress acrescentaram outro,

58 O autor portenho José Juan García, todavia, parece atrelar o sucesso da resolução de conflitos de

direitos, com base na bioética, à profundidade das reflexões acerca dos problemas de valor, exercidas no seio da sociedade. Este autor afirma que “El éxito social de la bioética parece muy relacionado con la necesidad que la sociedad siente de reflexionar en profundidad sobre los problemas de valor” (GARCÍA, José Juan. Compendio de bioética. 1. ed. Buenos Aires: Libreria Córdoba, 2006. p.8).

59 BARBOZA, op. cit., p.55.

52

em obra publicada em 1979: o princípio da “não-maleficência”, segundo o qual não se deve causar mal a outro e de diferencia assim do princípio da beneficência que envolve ações do tipo positivo: prevenir ou eliminar o dano e promover o bem, mas se trata de um bem de um contínuo, de modo que não há uma separação significante entre um e outro princípio.

Os princípios da bioética são diretrizes filosóficas e abstratas, fundamentadas

na ética e na moral humanas, com a finalidade de orientar as inovações

tecnológicas, ligadas às áreas da saúde humana e da vida, buscando não apenas o

bem comum e a realização da dignidade da pessoa, base do Estado Democrático de

Direito brasileiro, mas pretendendo ainda evitar a manipulação da tecnologia

biomédica em desfavor da sociedade. Por tais motivos, os princípios da bioética

serão de extrema relevância para chegar-se às conclusões desta presente

dissertação.

O primeiro dos princípios da bioética referidos pela doutrina dominante, qual

seja, o princípio da autonomia, prega que a vontade do paciente submetido a

qualquer espécie de procedimento médico seja observada pelo profissional da

saúde, havendo respeito às convicções morais e religiosas da pessoa, à dignidade

integral desta.

O paciente possui o direito de ser tratado dignamente, recebendo todas as

informações possíveis acerca dos tratamentos e terapias a que será submetido pelo

profissional, a fim de que possa decidir, autonomamente, se aceita ou recusa o

procedimento que lhe é oferecido. Hodiernamente, este princípio vem sendo

amplamente acatado pela prática médica, instrumentalizado pelos modernos “termos

de consentimento informado”, firmados pelos pacientes após o recebimento de todas

as informações sobre os benefícios e riscos dos procedimentos médicos. Este

princípio bioético é, na verdade, uma manifestação do direito fundamental de

autodeterminação.

Especificamente sobre o princípio da autonomia, Maria Helena Diniz60

assevera que tal princípio Requer que o profissional da saúde respeite a vontade do paciente, ou de seu representante, levando em conta, em certa medida, seus valores morais e crenças religiosas. Reconhece o domínio do paciente sobre sua própria vida (corpo e mente) e o respeito à sua intimidade, restringindo com isso, a intromissão alheia no mundo daquele que está sendo submetido a um tratamento. Considera o paciente capaz de autogovernar-se, ou seja, de fazer suas opções e agir sob orientação dessas deliberações tomadas, devendo, por tal razão, ser tratado com autonomia.

60 DINIZ, op. cit., p.14.

53

O segundo princípio bioético mencionado pela doutrina que estuda o tema é o

princípio da beneficência. Esta diretriz filosófica preconiza que os profissionais

médicos e biomédicos devem se esforçar para atingir o bem estar do paciente,

evitando de todas as formas possíveis o ocasionamento de quaisquer males,

baseado na tradição hipocrática de que o profissional deve lançar mão de todo o seu

conhecimento para buscar a cura ou o restabelecimento do enfermo, evitando-lhe

quaisquer males diversos dos trazidos pela própria enfermidade.

Frankena61, citado por Maria Helena Diniz, adverte que o princípio da

beneficência, todavia, [...] não aponta os meios de distribuição do bem e do mal, apenas pede que se promova aquele, evitando-se este. Se se manifestarem exigências conflitantes, o mais que se poderá fazer é aconselhar que se consiga a maior porção possível de bem em relação ao mal.

José Juan García62 afirma que o princípio da beneficência Responde al fin primario de la ciencia y el arte médicos. Hacer todo el bien al paciente. De eso se trata en este principio. Incluye su expresión minimalista: la no maleficencia, tan evidente para los antiguos y de tanto prestigio en la historia de la medicina. Incluye esa expresión, decíamos, pero la supera, porque no comporta sólo el abstenerse de cometer cualquier daño, sino que conlleva la idea fuerte, el imperativo, de hacer positivamente el bien e incluso prevenir el mal.

O terceiro princípio bioético apontado no Belmont Report é o da justiça, que

determina ser necessária imparcialidade na distribuição dos riscos e benefícios da

prática médica pelos profissionais da área, tratando-se as pessoas que se

encontram em mesma situação de forma igual, e por conseqüência, tratando-se os

desiguais na medida de suas desigualdades63.

Tratando este princípio por um prisma mais econômico, no qual o princípio de

justiça implicaria, ainda, uma adequada distribuição de investimentos, por parte do

Estado, na rede hospitalar, José Juan García64 ressalta que En el acto médico hay un tercer actor, la sociedad, en la que el médico y el

61 FRANKENA. Ética. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p.61-63 apud DINIZ, op. cit., p.15. 62 GARCÍA, op. cit., p.29. 63 Maria Helena Diniz afirma que o princípio da justiça é “[...] expressão da justiça distributiva, exige

uma relação equânime nos benefícios, riscos e encargos, propiciados pelos serviços de saúde ao paciente [...] Há propostas apresentadas pelo Belmont Report de como os benefícios e riscos devem ser distribuídos, tais como: a cada pessoa uma parte igual, conforme suas necessidades, de acordo com seu esforço individual, com base em sua contribuição à sociedade e de conformidade com seu mérito”. (DINIZ, op. cit., p.15-16).

64 GARCÍA, op. cit., p.31.

54

paciente se insertan. En ella, todos los sujetos merecen el mismo respeto y tienen derecho a reivindicar su derecho a la vida, a la salud y a la equidad en la distribución de los recursos sanitarios. El principio de justicia refiere entonces a la obligación de igualdad en los tratamientos y, en lo que respecta al Estado, a la equitativa distribución de recursos para la sanidad, los hospitales, la investigación, etc. No faltan las ocasiones en las que los dos principios enumerados han de encontrar un contrapeso en la responsabilidad social que le cabe al personal médico sanitario, como a los arquitectos de la salud pública. Los numerosos aspectos sociales y económicos que implican hoy la enfermedad y su tratamiento, y la colectivización de la asistencia médica, comportan nuevos problemas.

Finalmente, Tom L. Beauchamp e James F. Childress65, posteriormente ao

Belmont Report destacaram mais um princípio bioético, diretamente derivado do

princípio da beneficência, o princípio da não-maleficência, que seria uma derivação

do primeiro, carreando aos profissionais médicos a obrigação positiva permanente

de não acarretar danos intencionais aos pacientes.

Alguns autores que se concentram nos estudos da bioética apontam a

existência de outros princípios deste ramo da ética, sempre derivados dos primeiros

quatro princípios mencionados acima. José Juan García66, por exemplo, aponta a

existência de mais quatro outros princípios, a saber: (i) princípio do duplo efeito,

segundo o qual, na inevitabilidade de efeitos adversos ao paciente, advindos do

tratamento médico, deve haver uma proporção entre os efeitos bons e maus

resultantes do tratamento, de forma a justificar o mal produzindo, sendo

indispensável, ainda, a inexistência de outras formas para obtenção do efeito bom

desejado; (ii) princípio da totalidade, que preconiza que todas as partes do

organismo estão a serviço da integridade física da pessoa, sendo possível, portanto,

sacrificar-se em parte em favor do “todo”; (iii) princípio de defesa da vida humana,

segundo o qual a vida é um valor tão fundamental que sua defesa impede a

realização de qualquer experimento científico injustificado que a ponha em risco; (iv)

e princípio da confidencialidade, segundo o qual deve ser respeitada a vida privada

dos pacientes pelo profissional médico, sobretudo no que pertine às informações de

ordem pessoal.

Em suma, todos os princípios bioéticos, como demonstrado ao longo deste

tópico, buscam a consecução do bem do paciente submetido às ciências médicas e

biomédicas, sobretudo levando-se em consideração os avanços contínuos da

65 BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James F. Principles of biomedical ethics. Oxford

University, 1979, apud BARBOZA, op. cit., p.55. 66 GARCÍA, op. cit., p.32-34.

55

biotecnologia, ao mesmo tempo em que buscam limitar as pesquisas científicas

dissociadas da dignidade humana.

E estes princípios bioéticos, somados à ética e aos princípios morais vigentes,

dentro da conceituação das fontes do direito, virão trazer as respostas ao aparente

conflito de direitos entre a suposta vida de um feto anencéfalo e a dignidade e

integridade física da gestante que carrega um feto acometido por anencefalia, como

será demonstrado nos próximos capítulos desta presente dissertação de mestrado.

56

CAPÍTULO 2 DA CONCEITUAÇÃO DE “ABORTO” E “ANTECIPAÇÃO

TERAPÊUTICA DO PARTO DE FETOS ANENCEFÁLICOS” E DA DIFERENCIAÇÃO DESTES DOIS CONCEITOS

Este segundo capítulo irá versar sobre a conceituação de “aborto”, sobre a

conceituação da antecipação terapêutica do parto, e, ainda, acerca da diferenciação

destes dois conceitos, segundo não apenas a doutrina jurídica, mas também sob a

ótica da doutrina médica-legal.

A diferenciação entre o abortamento e a antecipação do parto de fetos

acometidos por anencefalia será imprescindível para a verificação da viabilidade

médica da possibilidade de adiantar o termo normal da gravidez dos fetos

acometidos por anencefalia. A partir desta primeira análise, ter-se-á dado o primeiro

passo para chegar-se à concreta aferição da viabilidade ética e jurídica da hipótese

de antecipação do parto de fetos anencéfalos e abortamento, iniciando-se, assim, o

fio-condutor que levará às conclusões da presente dissertação de mestrado.

2.1 Conceituação jurídica e médica de “aborto”

Após o momento em que a mulher fértil realiza o coito, existe a possibilidade

de ocorrência de cinco eventos distintos, a saber: (i) pode nada acontecer, na

hipótese em que o espermatozóide masculino não chega a fecundar o óvulo

feminino; (ii) pode ocorrer um abortamento, interrompendo a gestação, quando o

produto viável da concepção vem à morte por causas naturais (espontâneas) ou

ocasionadas pela ação humana (provocado); (iii) pode haver o nascimento de uma

criança, quando o produto da concepção deixa o útero materno, no termo final da

gravidez ou antecipadamente, resultando numa vida viável, com ou sem anomalias

físicas ou mentais; (iv) pode ser formada uma mola hidatiforme, quando o zigoto

formado pelo óvulo feminino e pelo espermatozóide masculino dá origem a um

conjunto celular disforme, que jamais se desenvolverá em vida humana, e que em

sua degeneração originará um processo tumoral; e (v) pode resultar um cório-

57

epitelioma, quando o produto da fecundação, geralmente uma mola hidatiforme,

origina um tumor maligno, com grande potencial invasivo e metastatizante.

Neste momento, será de interesse para o presente trabalho a análise do

abortamento.

Inicialmente, antes de se adentrar propriamente à conceituação de “aborto”,

necessário faz-se o esclarecimento de que o termo “aborto”, originário do latim

abortus, oriundo de oboriri (morrer, perecer), vem sendo largamente utilizado para

nominar qualquer espécie de procedimento, médico ou natural, que promova a

interrupção da gravidez antes de seu termo habitual. Aqui, neste momento, ainda é

interessante deixar claro que para designação da expressão popular conhecida por

“aborto”, lançar-se-á mão do termo técnico médico “abortamento”, tendo-se em vista

que aborto nada mais é que o produto do procedimento de abortamento.

Fazendo alusão ao esclarecimento semântico acima referido, Julio Fabbrini

Mirabete1 destaca a possibilidade de uso de ambos os termos, ao mencionar que Preferem alguns o termo abortamento para a designação do ato de abortar, uma vez que a palavra aborto se referiria apenas ao produto da interrupção da gravidez. Outros entendem que o termo legal – aborto – é melhor, quer porque está no gênio da língua dar preferência às formas contraídas, quer porque é o termo de uso corrente, tanto na linguagem popular como na erudita, quer, por fim, porque nas demais línguas neolatinas, com exceção do francês, diz-se aborto.

Antônio Ferreira de Almeida Junior2, fazendo à mesma distinção entre a

utilização dos dois termos utilizados para denominação do abortamento, mas

posicionando-se pelo uso de uma das formas, afirma que Ao traduzir, em 1865, a Medicina Legal de Sedillot, o médico português Lima Leitão, impressionado pelo “avortement” dos franceses, propôs que disséssemos “abortamento”. Seguiram-lhe a lição no Brasil, Souza Lima, Oscar Freire, Flamínio Fávero, etc. De nossa parte, preferimos dizer “abôrto”: 1º.) porque, segundo a opinião dos doutos, é excelente português, mesmo no sentido acima empregado; 2º.) porque é o têrmo da linguagem comum, popular e literária; 3º.) porque é expressão da lei; 4º.) porque, se em francês se diz “avortement”, nas demais línguas neolatinas se diz “abôrto”.

Apesar dos entendimentos em sentido contrário, inclusive mencionados nas

1 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal: parte especial . 17. ed. São Paulo: Atlas, 2001.

p.93. 2 ALMEIDA JUNIOR, Antônio Ferreira de. Lições de medicina legal. 7. ed. rev. São Paulo:

Companhia Editora Nacional, 1965. p.337.

58

citações anteriormente colacionadas, preferimo-nos filiar à corrente que define o

conceito em lume como “abortamento”, em razão de ser tal expressão mais técnica,

gramaticalmente mais adequada à idéia de “atos procedimentais”, inerente à

semântica do procedimento ora em comento3.

Consoante Genival Veloso de França4, uma das clássicas definições de

abortamento, na ótica médica, seria a definição dada por Tardieu, em que pese ser

esta conceituação falha em razão de ser restrita aos casos em que existe expulsão

do feto do corpo da gestante, como se observa do trecho abaixo destacado: A clássica definição de aborto é a de Tardieu, como sendo “a expulsão prematura e violentamente provocada do produto da concepção, independentemente de todas as circunstâncias de idade, viabilidade e mesmo de formação regular” Todavia, essa definição é falha porque situa apenas os casos de “expulsão do produto da concepção”, pois, sendo a mola hidatiforme considerada como tal, embora degenerado, não se pode considerar como aborto. Ainda mais quando se verifica que nem sempre há a expulsão do ovo.

França, em sua obra, colaciona a definição de abortamento dada por vários

outros autores, pois cada um deles traz sua conceituação de acordo com

diferenciais particulares e distintos. Dentre as diversas conceituações do

abortamento trazidas por França, é interessante citar a definição dada por Morisani,

pois esta se consubstancia numa delimitação eminentemente técnica do termo,

capaz de demonstrar a diferenciação que se pretende fazer ao longo da futura

dissertação de mestrado. Para Morisani5, abortamento seria “[...] a interrupção da

gravidez, seguida ou não da expulsão do feto, antes da época de sua maturidade”.

A partir de todas as definições que transcreve em sua obra, Genival Veloso

França6 consegue sumarizar os vários enfoques dados pelos autores referidos por

ele para chegar a uma definição médico-legal abrangente, como se colhe do trecho

abaixo transcrito, extraído de sua obra: O Direito ampara a vida humana desde a concepção. Com a formação do

3 No que se refere à utilização do termo médico abortamento, Genival Veloso França, dando a idéia

de procedimento à expressão lingüística, é enfático ao entender que “Nos documentos médico-legais, deve-se usar sempre o termo ‘aborto’. Para alguns estudiosos da língua, é termo mais correto; é terminologia mais coerente e é assim que se expressa a lei substantiva penal. Sabemos, no entanto, que, em Medicina Legal, não há aborto sem abortamento, pois o aborto espontâneo pertence ao estudo e à aplicação da Obstetrícia. Por outro lado, pode haver a tentativa de abortamento sem aborto.” (FRANÇA, Genival Veloso de. Medicina Legal. 4. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1995. p. 175.)

4 Ibidem, p.174-175. 5 MORISANI apud FRANÇA, op. cit., p.175. 6 FRANÇA, op. cit., p.174.

59

ovo, depois embrião e feto, começam a tutela, a proteção e as sanções da norma penal, pois daí em diante se reconhece no novo ser uma expectativa de personalidade a qual não poderia ser ignorada pela lei. Andou certo nosso legislador quando colocou o aborto entre os crimes contra a vida. Nosso código difere dos conceitos inglês e canadense, para os quais constitui delito a simples manobra uterina na tentativa de fazer abortar, sem preocupar-se com a presença ou não de uma gravidez. A destruição de uma vida intra-uterina até os instantes que precedem o parto constitui crime de aborto. Assim, aborto criminoso é a morte dolosa do ovo. Entende-se por ovo, em Medicina Legal, o produto normal da concepção até o momento do parto. Esse conceito, como é claro, difere de Obstetrícia, para a qual após o sétimo mês é considerado parto prematuro e que, antes desse período, classifica o aborto em ovular, embrionário e fetal. Parto prematuro é a expulsão do feto viável, antes do seu completo desenvolvimento. Em Medicina Legal, no tocante ao aborto, a idade do produto da concepção não tem interesse. [...]

Interessante destacar que, não apenas neste conceito de abortamento

formulado pelo próprio autor em destaque, mas em diversos outros conceitos citados

por ele a idéia de abortamento está intimamente relacionada à morte de uma vida

viável, antes do nascimento do produto da concepção.

Celso Delmanto7 define, singelamente, abortamento como sendo “[...] a

interrupção do processo de gravidez, com a morte do feto”.

Mirabete8, de forma mais minuciosa, conceitua o abortamento (na verdade,

este autor utiliza o termo “aborto”) como A interrupção da gravidez com a destruição do produto da concepção. É a morte do ovo (até três semanas de gestação), embrião (de três semanas a três meses) ou feto (após três meses), não implicando necessariamente sua expulsão. O produto da concepção pode ser dissolvido, reabsorvido pelo organismo da mulher ou até mumificado, ou pode a gestante morrer antes de sua expulsão. Não deixará de haver, no caso, o aborto.

Traço comum a todas as definições de abortamento colacionadas no presente

trabalho é a indispensável morte9 do produto da concepção, ocasionada pela

realização dos atos que compõe o procedimento em questão. Insta mencionar,

ainda, apesar de os autores citados não fazerem a ressalva de que, para ocorrência

7 DELMANTO, Celso et al. Código penal comentado. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p.268. 8 MIRABETE, op. cit., p.93. 9 Hélio Gomes, corroborando a idéia aqui defendida, de que a morte do feto é condição necessária

para enquadramento do abortamento, afirmava que “[...] abôrto criminoso é a interrupção ilícita da prenhez, com a morte do produto, haja ou não expulsão, qualquer que seja o seu estado evolutivo, desde a concepção até momentos antes do parto. A morte do feto é requisito indispensável. Provocado abôrto e nascido feto vivo, não terá havido abôrto, mas aceleração do parto. A expulsão não é indispensável. Via de regra, ela se verifica. Mas pode faltar. A mãe pode morrer em conseqüência da provocação do abôrto, sem que a expulsão se tenha dado.” (GOMES, Hélio. Medicina legal. 10. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1968. p.405-406).

60

do abortamento, a vida ceifada deve, necessariamente, ser viável, que a própria

menção da palavra vida traz inerente a noção de sua viabilidade, pois do contrário

não há que se cogitar da existência de vida.

Essa minúcia faz toda a diferença para demonstração do raciocínio que se

pretende fazer e dos objetivos que são pretendidos ao longo deste trabalho, pois a

antecipação terapêutica do parto dos fetos acometidos por anencefalia não implica,

ao contrário do abortamento, morte, natural ou induzida, do produto da concepção.

2.2 Modalidades de abortamento

O abortamento, dentro da legislação brasileira, é considerado crime contra a

vida, previsto no Código de Penal nos artigos 124 a 128. De forma geral, a doutrina

penalista o divide em algumas categorias, variáveis de acordo com a sua causa, a

saber: (i) espontâneo ou natural, (ii) acidental, ou (iii) provocado.

Em atenção à primeira classificação, o abortamento espontâneo ou natural é

aquele no qual a interrupção da gravidez, com a morte do feto, é ocasionada por

problemas de saúde da gestante, ou mesmo, por problemas de saúde do próprio

feto. Definindo esta classificação, Hélio Gomes10 assevera que “[...] o aborto pode

ser espontâneo ou provocado. O primeiro é conseqüência de estados patológicos da

mãe ou do feto, impeditivos de prosseguimento da gestação.[...]”.

Por ser o abortamento um crime tipicamente doloso, no qual a morte do

produto da concepção seja um resultado pretendido pelo agente, ou ao menos um

risco cujo resultado foi assumido pelo agente (preterdolo), o fato de a interrupção da

prenhez com a conseqüente morte do feto ser ocasionada por motivo de saúde,

alheio à vontade da gestante ou de terceiros, a modalidade espontânea não é uma

conduta punível criminalmente11. Neste exato sentido, Julio Fabbrini Mirabete12, em

atenção à classificação do abortamento espontâneo, ressalta inexistir crime de

“aborto” quando naturalmente o feto se mostrar inviável, ressaltando que

10 GOMES, op. cit., p.406. 11 Celso Delmanto, reforçando esse posicionamento quanto ao abortamento espontâneo, frisa que

“[...] é necessário que o feto esteja vivo (não configura o crime a gravidez extra-uterina ou a molar)”. (DELMANTO, op. cit., p.268).

12 MIRABETE, op. cit., p.94.

61

Não há crime na interrupção da gravidez extra-uterina (tubárica, ovárica etc.) ou molar (patológica). No primeiro caso, a gravidez não pode chegar ao termo e, no segundo, a mola, produto degenerado da fecundação do óvulo, não tem possibilidade de destino humano. Já se decidiu que não importa ter havido prática tipicamente abortiva se o laudo pericial concluiu que a gravidez não era viável por se tratar de uma concepção frustrada que gerou embrião degenerado, inapto para produzir uma nova vida (RT 397/101).

A segunda classificação das modalidades de abortamento, definida como

acidental, é aquela devida a qualquer evento que afete a gestante, provocando a

interrupção da gravidez com morte do feto, ocorrido independentemente da vontade

da gestante ou de terceiros, e sem que qualquer destes tenha assumido o risco de

eventualmente ocasionar tal resultado por meio de dada conduta, por força do

acaso, como nas hipóteses de queda, atropelamento acidental etc.

Esta classificação não é citada por grande parte dos autores, cabendo

salientar que Mirabete é um dos poucos doutrinadores que faz menção específica a

ela. Os demais autores incluem essa modalidade de abortamento dentro das

hipóteses de inexistência de antijuridicidade de conduta.

A terceira e última classificação do abortamento quanto à sua causa é a

provocada. Esta é, ainda, subdividida em (ii.a) criminoso e (ii.b) legal.

O abortamento provocado criminoso é a conduta ilícita de interrupção da

fluência habitual da gravidez, ocasionando, necessariamente, a morte do feto.

Interessante destacar, novamente, que para existência da figura do abortamento,

imprescindível a existência de um produto viável da concepção, com a real

possibilidade de desenvolvimento de vida propriamente dita, já que o elemento típico

da conduta é a ceifação da vida, equivalendo ao resultado morte.

Dentro desta subespécie de abortamento, o Código Penal pátrio prevê

diversas figuras antijurídicas, passíveis de punição. A primeira delas é o “auto-

aborto”, previsto na primeira parte do artigo 124, do Código Penal vigente. Tal

dispositivo legal prevê a sanção penal para a conduta consistente em “[...] provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque” (grifo nosso). O sujeito

ativo deste delito específico de “auto-aborto” é a própria gestante, que por conduta

própria, ocasiona a morte do produto de sua concepção, interrompendo sua

gestação.

A segunda figura prevista no artigo 124, do Código Penal brasileiro, é a do

abortamento consentido, segundo o qual, a gestante permite que terceira pessoa

62

provoque a morte do fato que carrega. Esta conduta criminosa é exclusivamente

imputável à gestante, simplesmente por permitir que seja realizado o abortamento. A

prática do aborto pela terceira pessoa, neste caso, faz incidir para tal agente a figura

do artigo 126, do Código Penal. Acerca do assunto, Mirabete13 ressalta que Na segunda parte do artigo, é disciplinado o aborto consentido, em que a agente é incriminada por “consentir que outrem lho provoque” (o aborto). No caso, a gestante não pratica o aborto em si mesma, mas consente que o agente o realize. Este, que provoca o aborto, responde pelo crime previsto no art. 126, em que se comina pena mais severa.

Já no artigo 125, do Código Penal brasileiro, a conduta criminosa incide sobre

o terceiro que diretamente provoca o abortamento na gestante, sem o

consentimento desta, ou seja, sem a permissão da gestante, sendo esta, também,

ao lado do feto cuja vida foi ceifada, vítima do crime.

Na hipótese de existir o consentimento da gestante, mas sendo esta menor

de 14 (quatorze) anos de idade; ou ainda se a gestante for comprovadamente

alienada ou débil mental; ou, finalmente, se o consentimento por parte da gestante

for obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência; as penalidades aplicadas ao

agente são equivalentes às do abortamento sem consentimento, a teor do § único,

do artigo 126, do Código Penal pátrio. Tal dispositivo, expressamente, prescreve que

será aplicada “[...] a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de 14

(quatorze) anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido

mediante fraude, grave ameaça ou violência”.

Sobre os motivos que levaram o legislador à equiparar esta modalidade de

abortamento ao “aborto” sem consentimento da gestante, Julio Fabbrini Mirabete14

explica que Presume-se não haver o consentimento da gestante, aplicando-se o dispositivo em estudo, quando a gestante “não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência” (art. 126, parágrafo único). A menor de 14 anos, presume-se, tem desenvolvimento mental incompleto, não podendo consentir validamente. Também não é válido o consentimento da alienada (que sofre de doença mental) e da débil mental (com desenvolvimento mental retardado).

13 MIRABETE, op. cit., p.96. 14 Ibid., p.97.

63

O já mencionado artigo 126, do Código Penal Brasileiro, traz a última

modalidade de abortamento provocado criminoso, consistindo no abortamento

praticado por terceira pessoa, com o consentimento (autorização, permissão)

expresso ou tácito da gestante. Neste caso, a conduta prescrita incide direta e

exclusivamente sobre a terceira pessoa, havendo penalidades diferentes entre a

conduta praticada por este e a conduta praticada pela gestante (artigo 124, segunda

parte, Código Penal).

Em relação ao necessário consentimento da gestante para a prática desta

figura penal, Heleno Cláudio Fragoso15 faz a advertência de que “[...] a passividade e

a tolerância da mulher equivalem ao consentimento tácito”. Por outro lado, a

revogação do consentimento dado pela gestante durante a execução do

abortamento, faz incidir a figura prevista no artigo 125, do referido Código Penal.

O abortamento provocado, como já mencionado, subdivide-se, ainda, em

abortamento legal, sendo certo que nesta espécie de conduta, por própria

disposição legal, não é punível criminalmente a prática do “aborto”16.

A primeira subespécie de abortamento legal no ordenamento jurídico pátrio é

o abortamento necessário, previsto no artigo 128, inciso I, do Código Penal de

1940. Segundo a prescrição legislativa, não é punido o abortamento, praticado por

médico, com a intenção exclusiva de salvar a vida da gestante, desde que inexista

outro modo de garantir-lhe a integridade física e moral.

15 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte especial. 3.ed., São Paulo: José

Bushatsky, 1976, v. 1, p.132 apud MIRABETE, op. cit., p.97. 16 Apesar de a legislação de vários países possuir hipóteses específicas de abortamento, para as

quais não existe qualquer penalização, a Igreja Católica, uma das religiões mais difundidas no mundo, em virtude de seus dogmas, repudia qualquer espécie de abortamento. Antônio Ferreira de Almeida Junior, discorrendo sobre o assunto, e demonstrando o posicionamento da Igreja Católica, deixou assentado que “A Igreja Católica proíbe formalmente a provocação de aborto, qual seja fôr o pretexto invocado. Dois argumentos servem-lhe de apoio: o quinto mandamento, ‘Não matarás’, e a concepção do pecado original. Sacrificar a criatura durante a vida pré-natal representa privá-la do batismo, e, pois, do Paraíso. Os juristas ofereceram à Igreja uma via de transigência – a legítima defesa, - (o ‘estado de necessidade’, ela não o reconhece). Pio XI, entretanto, recusou: ‘de maneira nenhuma (disse êle) existe aqui o direito de defesa até o sangue, contra o injusto agressor; pois quem chamará de injusto agressor a uma criatura inocente?’ Quem agora oferece nôvo caminho, são os médicos. Por que não batizar o feto no próprio ventre materno, mediante águas lustrais esterilizadas? É exato que bulas e decretais de vários papas (inclusive Clemente VIII, falecido em 1605) toleravam a provocação do abôrto precoce, pois admitiam, segundo Aristóteles, que o produto da concepção só adquire alma bem depois da fecundação: 40 dias depois, se masculino, 80 se feminino. Contudo, essa doutrina da ‘animação tardia’ foi posteriormente substituída pela da ‘animação imediata’: o nôvo ser recebe alma no momento mesmo da fecundação. A despeito da oposição católica, certas formas de abôrto conseguiram insinuar-se nos Códigos, tornando-se legais.” (ALMEIDA JUNIOR, op. cit., p.337-338).

64

Para o Professor Hélio Gomes17, o abortamento necessário [...] é aquele que se provoca para salvar a vida da gestante quando não houver outro recurso. Há circunstâncias que tornam incompatíveis o organismo materno e o fetal. São irremovíveis incompatibilidades biológicas: o organismo materno sofre com a gravidez, depaupera-se, enfraquece; a mulher corre risco de vida.

Genival Veloso de França18 fundamenta o abortamento necessários em

motivos éticos e bioéticos, consubstanciados na busca do bem da gestante e no

princípio da beneficência da paciente (no caso, a gestante). São exatamente estas

as conclusões que podemos chegar ao analisar o trecho abaixo colacionado,

extraído de sua obra, como se depreende: O aborto realizado pelo médico para salvar a vida da gestante, chamado terapêutico, encontra guarida no estado de necessidade, quando, para se salvar a vida da mãe, cujo valor é mais relevante, sacrifica-se a vida do filho. É uma forma de proteger um bem maior, consagrado pela fundamental importância sobre outras vidas. A solução jurídica encontrada no conflito desses dois bens é o sacrifício do bem menor. [...] O estado de necessidade de terceiro que outorga ao médico o direito de praticar o aborto terapêutico deve ser aludido quando: 1 – a mãe apresenta perigo vital; 2 – este perigo esteja sob a dependência direta da gravidez; 3 – a interrupção da gravidez faça cessar esse perigo para a vida da mãe; 4 – esse procedimento seja o único meio capaz de salvar a vida da gestante; 5 – sempre que possível, com a confirmação ou concordância de outros dois colegas.

Um requisito importante para a não configuração de crime de “aborto” para

este caso em análise é a sua prática por profissional médico, como bem ressaltado

no caput do artigo 128, do Código Penal brasileiro, ao dispor que “[...] não se pune o

aborto praticado por médico”. Alguns doutrinadores, como Celso Delmanto19,

flexibilizam esta restrição legal, entendendo que terceiras pessoas, que não são

médicas habilitadas, podem, dentro da excludente de ilicitude do estado de

necessidade.

A segunda subespécie do abortamento necessário é o chamado “aborto” 17 GOMES, op. cit., p.407. 18 FRANÇA, op. cit., p.176-177. 19 Delmanto, sobre a possibilidade de pessoas inabilitadas para a prática da medicina

desempenharem o abortamento provocado legal necessário, flexibiliza a letra da lei, entendendo, em relação ao artigo 128, do Código Penal, que “[...] em ambos os casos, o art. 128 do CP exige que o aborto seja praticado por médico. Entretanto, na hipótese do inciso I, quando urgente a necessidade de salvar a vida da gestante, na falta de médico outra pessoa não habilitada poderá fazer a intervenção, acobertada pela excludente do estado de necessidade (CP, arts. 23, I, e 24).” (DELMANTO, op. cit., p.269).

65

moral20, previsto em nosso ordenamento jurídico no inciso II, do artigo 128, do

Código Penal, a saber: “Não se pune o aborto praticado por médico: [...] II - se a

gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou,

quando incapaz, de seu representante legal.”

A motivação prática para o não enquadramento desta conduta como se

criminosa fosse é a sanidade psíquica da gestante, que pode se abalar

psicologicamente em intensos graus, por estar esperando um filho indesejado, fruto

de um crime de natureza monstruosa. No mesmo sentido, Hélio Gomes21 defendeu

que o “aborto” moral. É uma feliz inovação do Código Penal em vigor. A mulher, vítima de um estupro, pode engravidar. É uma gravidez acintosa, humilhante, produto de um crime monstruoso. Todo seu organismo, todo seu sentimento, tôda a sua alma se revoltam em se ver grávida de um bruto, que a violentou. Essa gravidez cria um verdadeiro estado de humilhação crônica, de indignação, de inconformismo, agravado ainda mais se o estuprador é de raça e côr diferentes das da vítima. A lei fêz bem em autorizar o abôrto nesses casos. Qual seria a solução para o desespêro de uma jovem engravidada por um bruto se não pudesse abortar legalmente? O abôrto criminoso, que seria a solução forçada para o problema insolúvel.

Como visto, as práticas do abortamento necessário e moral são permitidas

pela legislação penal, tendo-se em vista, sobretudo, que nas suas hipóteses de

ocorrência há riscos para direitos caros à pessoa da gestante. E, assim como nas

demais formas de abortamento, a ocorrência da morte do feto é elemento inerente

às modalidades de abortamento legal.

Existe, ainda, de interesse para o presente trabalho, outra forma de

abortamento: o “aborto” eugênico. Tal modalidade de interrupção da gravidez, não

prevista entre as hipóteses isentas de punição penal, é aquela executada quando se

constata que o produto da concepção sofre ou sofrerá de alterações morfológicas e

funcionais de grande monta, por carga genética dos pais. Basileu Garcia22, citado

20 França faz uma interessante explicação acerca do surgimento desta espécie de abortamento, em

nível mundial. Este autor menciona que “[...] a questão surgiu quando alguns países da Europa, ma Primeira Guerra Mundial, tiveram suas mulheres violentadas pelos invasores. Nasceu, então, um movimento patriótico de repercussão em todo o mundo contra essa maternidade imposta pela violência, pois não era justo que aquelas mulheres trouxessem no seu ventre um fruto de um ato indesejado, lembrado para sempre como uma ignomínia e uma crueldade. Assim, a partir de então, em quase todas as legislações do mundo, a lei permite que a mulher grávida, vítima dessa forma de conjunção carnal, aborte, pois não seria concebível admitir que uma pessoa humana tivesse um filho que não fosse gerado pelo seu consentimento e pelo seu amor.” (FRANÇA, op. cit., p.177).

21 GOMES, op. cit., p.407-408. 22 GARCIA, Basileu. Thalidomide e abortamento. Revista dos Tribunais, v. 324, v.7, p.9, apud

MIRABETE, op. cit., p.100.

66

por Mirabete, conceitua o abortamento eugênico como sendo aquele “[...] executado

ante a suspeita de que o filho virá ao mundo com anomalias graves, por herança dos

pais”.

Esta modalidade de abortamento, por implicar a morte de uma vida viável, por

mais que limitada, é, usualmente, repudiada pela sociedade, sendo apenas aceita

em determinados e poucos casos específicos. Destacando a possibilidade de

responsabilização penal para esta modalidade de abortamento, França23 assevera

que O critério chamado eugênico, que visa à intervenção em fetos defeituosos ou com possibilidades de o serem, não está isento de pena pelo nosso diploma legal. Ninguém poderia negar o direito de uma criança nascer saudável e perfeita. Todavia, isso não nos autoriza a retirar de seres deficientes o direito à vida. A vida de um deficiente necessita, antes de tudo, de proteção e amparo, e nunca de repressão. Ninguém é tão desprezível, inútil e insignificante que mereça a morte. As próprias leis que regem a genética humana ainda são vacilantes e ilusórias, não se prestando a uma precisão segura e definida sobre hereditariedade. Uma lei que autorize o aborto em tais circunstâncias seria extremamente perigosa onde as indicações se tornariam, no conceito de alguns, demasiadamente amplas, acabando-se por tornar a regra uma exceção e a exceção a regra.

O abortamento eugênico, assim como todas as demais formas deste

procedimento, implica a morte de uma vida viável. Pode-se suscitar, em defesa

desta espécie de “aborto”, que o feto anormal, após o nascimento, não teria uma

vida humana completa, em razão de suas deficiências e debilidades. Todavia, neste

caso, há um fato certo: mesmo anormal, este feto é uma vida viável.

Diante de todo este apanhada acerca das diversas modalidades de

abortamento existentes no ordenamento jurídico brasileiro, é possível estabelecer-se

um traço rígido e comum a todas as espécies: interrupção da gravidez com a

necessária morte do feto.

2.3 Teorias do início da vida

Para a adequada definição do segundo conceito proposto neste capítulo, qual

23 FRANÇA, op. cit., p.177.

67

seja, “antecipação terapêutica do parto de fetos anencefálicos”, necessário antes

fazer-se uma breve explanação acerca das mais relevantes teorias existentes

acerca do início da vida humana e de qual delas foi acolhida pelo legislador pátrio, já

que a contextualização do conceito de vida no ordenamento jurídico brasileiro terá

implicações de suma importância para a delimitação do conceito em questão.

Dentro do conhecimento científico médico, biológico e sociológico, existem

oito teorias de maior relevância que tentam definir o momento de início da vida, a

saber: (i) teoria da concepção; (ii) teoria da nidação; (iii) teoria embriológica; (iv)

teoria neurológica; (v), teoria ecológica; (vi) teoria fisiológica; (vii) teoria metabólica; e

(viii) teoria do nascimento com vida.

A primeira das teorias de início da vida acima indicadas, a teoria da

concepção, determina que o início da vida inicia-se com a formação do zigoto, após

o encontro do espermatozóide, gameta masculino, com o óvulo, gameta feminino,

definindo o indivíduo em todas as suas características genética pelo ADN (ácido

desoxirribonucléico), obtido com a fusão dos 23 (vinte e três) cromossomos

masculinos e 23 (vinte e três) cromossomos femininos, sendo as etapas

subseqüentes mero resultado da nutrição do indivíduos pelos nutrientes fornecidos

pela gestantes. É a teoria defendida pela Igreja Católica. Defendendo esta teoria,

Maria Helena Diniz24 ressalta que A ontogenia humana, isto é, o aparecimento de um novo ser humano, ocorre com a fusão dos gametas feminino e masculino, dando origem ao zigoto, com um código genético distinto do óculo e do espermatozóide. A fetologia e as modernas técnicas de medicina comprovam que a vida inicia-se no ato da concepção, ou seja, da fecundação do óvulo pelo espermatozóide, dentro ou fora do útero. A partir daí tudo é transformação morfológico-temporal, que passará pelo nascimento e alcançará a morte, sem que haja qualquer alteração do código genético, que é singular, tornando a vida humana irrepetível e, com isso, cada ser humano único.

A segunda das teorias aqui mencionadas, a teoria da nidação define como

início da vida humana o momento em que o embrião se fixa no útero materno, e a

partir daí, com o fornecimento de nutrientes e oxigênio a partir da gestante, começa

a se desenvolver de forma propriamente dita, demonstrando características

eminentemente humanas.

Discorrendo acerca da teoria da nidação, Roberto Dourado25 afirma que 24 DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p.25. 25 DOURADO, Roberto. Ensaio: quando começa a vida? Disponível em:

<http://recantodasletras.uol.com.br/ensaios/1347168>. Acesso em: 02 jul. 2009.

68

Nidação é o momento em que o embrião se fixa na parede do útero – único ambiente em que poderá se desenvolver. Isso ocorre a partir do 4º dia da fecundação. Segundo essa teoria é a partir desse momento que os movimentos celulares começam e dão origem aos órgãos. Essa teoria justifica a pílula do dia seguinte e a posição dos pesquisadores de células-tronco em embriões congelados.

Já a teoria embriológica, prega que o início da vida humana começa em torno

do 14º dia de gestação, quando o embrião não mais se divide, adquirindo sua

própria individualidade. Antes de tal período, o embrião ainda pode se dividir, e dar

origem a outros indivíduos, sendo a existência dos irmãos gêmeos uma confirmação

da possibilidade desta divisão celular.

A teoria neurológica utiliza a definição de morte, que nada mais é do que a

antítese de vida, para determinar o início da vida humana. Em sendo a morte a

cessação das ondas cerebrais (eletroencefalográficas) – ou a ausência de atividade

metabólica cerebral ou a ausência de perfusão sanguínea cerebral –, então vida, a

contrario sensu, é o início dessa atividade, o que ocorreria somente após a 8ª

semana de gestação. Definindo tal teoria, e inclusive socorrendo-se de base legal

para tanto, Clarissa Ribeiro Schinestsck26 afirma que Teoria Neurológica: Sustenta que a vida humana começa com o surgimento do cérebro, a partir da oitava semana. Seus defensores fazem uma analogia com o momento em que a Lei de transplantes de órgãos (art. 3º, da Lei n. 9.434/97) diz que deve ser reconhecida a morte de um ser humano, qual seja: quando se verifica a morte encefálica.

Em sentido diferente, a teoria da viabilidade (ou ecológica) determina que a

vida humana começa quando o feto pode viver, em tese, fora do útero materno,

sendo certo que para tanto, é preciso que os pulmões estejam prontos, o que ocorre

por volta da 25ª semana de gestação.

Para a teoria da maturidade, também denominada teoria fisiológica, a vida

humana se inicia a partir do momento em que estão formados os sistemas

respiratório e circulatório, sendo possível ao feto ser independente do corpo

materno.

A teoria metabólica, um pouco mais transcendental, dispõe que o início da

26 SCHINESTSCK, Clarissa Ribeiro. As pesquisas com células-tronco embrionárias: o direito à vida

digna ou o direito à dignidade do embrião in vitro? Revista Eletrônica da Faculdade de Direito da PUC-SP, São Paulo, v. 1, 2008. Disponível em:

<http://revistas.pucsp.br/index.php/red/article/view/522/513>. Acesso em: 02 jul. 2009.

69

vida humana é de difícil determinação, pois, sendo a vida um processo contínuo,

não faz sentido a discussão acerca de seu termo inicial. Para esta teoria, a

concepção, ou seja, o encontro dos gametas masculino e feminino, são apenas

parte da cadeia vital.

A última das teorias indicadas, a teoria do nascimento com vida, inclina-se ao

entendimento de que a vida humana apenas seria iniciada após a constatação, por

método médico seguro, de que após a retirada do feto do ventre da mulher houve

atividade respiratória.

Mas qual destas é a teoria de início da vida adotada pelo ordenamento

jurídico pátrio?

Alguns estudiosos do tema, em razão da inexistência de prescrição legal

específica, apontaram a teoria do nascimento com vida como sendo a adotada no

Brasil, sobretudo em razão da redação do artigo 2º do Código Civil vigente, Lei

Federal n. 10.406, de 10.01.2002. Tal dispositivo legal prescreve que “[...] a

personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a

salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Utilizando-se uma interpretação

conjunta do dispositivo legal acima mencionado ao § 2º, do artigo 53, da Lei dos

Registros Públicos, Lei Federal n. 6.015, de 31.12.1973, que prescreve ser

considerada viva a criança ao respirar27, estaria definido o início da vida no

ordenamento jurídico nacional

Todavia, este não parece ser o entendimento mais adequado, tendo-se em

vista que o artigo 2º do Código Civil vigente, a despeito de determinar o início da

vida humana no sistema jurídico brasileiro, parece apenas determinar o início da

personalidade civil, ou seja, da capacidade de ser titular, ativa ou passivamente, de

relações jurídicas. Ao mesmo tempo, o § 2º, do artigo 53, da Lei dos Registros

Públicos, ao mencionar a respiração como termo inicial, parece apenas referir-se ao

nascimento civil, para fins registrais, e não à vida propriamente dita.

27 Art. 53. No caso de ter a criança nascido morta ou no de ter morrido na ocasião do parto, será, não

obstante, feito o assento com os elementos que couberem e com remissão ao do óbito. (Renumerado do art. 54, com nova redação, pela Lei n. 6.216, de 1975). § 1º No caso de ter a criança nascido morta, será o registro feito no livro "C Auxiliar", com os elementos que couberem. (Incluído pela Lei n. 6.216, de 1975).

§ 2º No caso de a criança morrer na ocasião do parto, tendo, entretanto, respirado, serão feitos os dois assentos, o de nascimento e o de óbito, com os elementos cabíveis e com remissões recíprocas. (Incluído pela Lei n. 6.216, de 1975).

70

Carlos Roberto Gonçalves28, entendendo que estes dispositivos legais acima

mencionados são efetivamente apenas relativos ao início da personalidade civil, e

não ao início da vida propriamente dita, afirma que A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida (CC, art. 2º) – o que se constata pela respiração. Antigamente, utilizava-se a técnica denominada “docimasia hidrostática de Galeno”, extraindo-se os pulmões do que morreu durante o parto e colocando-os em um recipiente com água. Se não afundassem, era porque tinham inflado com a respiração, concluindo-se que o recém nascido vivera. Hoje, a Medicina tem recursos mais modernos e eficazes para fazer tal constatação. De acordo com o art. 53, § 2º, da Lei dos Registros Públicos, se a pessoa respirou, viveu. Não se exige o corte do cordão umbilical, nem que seja viável (que tenha aptidão vital), nem que tenha forma humana. Nascendo vivo, ainda que morra em seguida, o novo ente chegou a ser pessoa, adquiriu direitos, e com sua morte os transmitiu.

Outros juristas apóiam-se na segunda parte do artigo 2º, do Código Civil de

2002, que resguarda os direitos do nascituro desde sua concepção, para afirmar que

a teoria de início da vida adotada no Brasil é a da concepção. Neste sentido, Maria

Helena Diniz29 manifesta-se no sentido de que “[...] a vida humana é amparada

juridicamente desde o momento da fecundação natural ou artificial do óvulo pelo

espermatozóide (CC, art. 2º, Lei n. 11.105/2005, arts. 6º, III, [...])”.

Em que pese esta fundada argumentação, entendemos que a menção feita

pelo diploma civilista à concepção, como termo inicial de proteção de direitos, é

meramente atinente ao prazo inicial para o qual deve retroagir a esfera de interesses

da criança após a realização da condição de seu nascimento com vida (nascimento

civil, nos termos da Lei dos Registros Públicos)30.

Já que não há em nosso ordenamento jurídico pátrio um dispositivo que

expressamente defina quando se dá o início da vida, a qual das teorias existentes

devemos nos apegar? Na realidade, o sistema jurídico brasileiro possui disposição

legal acerca do início da vida, mas esta apenas é obtida a contrario sensu da

definição legal da antítese da própria vida.

Existe definição legal do momento da morte no Brasil. Por conseqüência, o

início da vida humana é o momento diametralmente oposto ao do início da morte, já

que ambos os termos são antagônicos.

28 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2003. p.48. 29 DINIZ, op. cit., p. 21. 30 Socorrendo-nos novamente de Carlos Roberto Gonçalves, temos que “[...] o referido artigo ressalva

os direitos do nascituro, desde a concepção. Nascendo com vida, a sua existência, no tocante aos seus interesses, retroage ao momento de sua concepção. Os direitos assegurados ao nascituro encontram-se em estado potencial, sob condição suspensiva.” (GONÇALVES, op. cit., p. 48).

71

No ordenamento jurídico pátrio, a Lei Federal n. 9.434, de 04 de fevereiro de

1997, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano

para fins de transplante e tratamento, dentre outras providências, define em seu

artigo 3º, caput, o que vem a ser a morte, ao definir que A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina. (grifos nossos).

Assim, em nosso ordenamento pátrio, a morte juridicamente definida é a

morte encefálica, constatada por dois médicos não participantes das equipes de

remoção e transplantes de órgãos, dentro dos critérios clínicos definidos pelo

Conselho Federal de Medicina, por resolução administrativa.

Carolina Alves de Souza Lima31 corrobora a linha de raciocínio aqui

defendida, de que o conceito de morte encefálica advém da Lei Federal n. 9.434/97,

como se infere do trecho abaixo destacado, extraído de sua obra: Atualmente, a comunidade científica mundial aceita a constatação da morte encefálica como morte humana. Entretanto, o que vem gerando importante polêmica nas ciências médicas é que os critérios para diagnosticar-se a morte encefálica nem sempre são os mesmos. Não há unanimidade entre estudiosos e pesquisadores na área das ciências médicas, quanto ao modo de averiguar-se a morte encefálica. Apesar dessas divergências, segundo Getúlio Daré Rabello: “É de larga aceitação atual o conceito de que a confirmação da morte encefálica deve se basear em três princípios fundamentais: irreversibilidade do estado de coma, ausência de reflexos do tronco encefálico e ausência de atividade cerebral cortical”. [...] No âmbito jurídico, o conceito de morte advém das ciências médicas. A comprovação do momento da morte é fundamental, no âmbito jurídico, para estabelecer as conseqüências jurídicas desse fato e preservar, conseqüentemente, a segurança nas relações jurídicas. A morte gera a extinção da personalidade jurídica e, a partir daí, há inúmeras conseqüências jurídicas. A Lei 9.434/97, de 04.02.1997, dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento. [...] Segundo a referida lei, cabe ao Conselho Federal de Medicina definir, por meio de resolução, os critérios clínicos e tecnológicos para diagnosticar a morte encefálica. O Conselho Federal de Medicina editou a Resolução 1.480/97 e estabeleceu quais são os critérios para diagnosticar a morte encefálica, que, segundo essa resolução, dá-se com a parada total e irreversível das funções encefálicas [...].

O Conselho Federal de Medicina, preenchendo a lacuna legal conferida pelo

artigo 3º, caput, da Lei Federal n. 9.434/97, por meio da Resolução n° 1.480, de 08

31 Carolina Alves de Souza. Aborto e anencefalia: direitos fundamentais em colisão. Curitiba: Juruá,

2009. p. 81-82.

72

de agosto de 1.997, dispõe especificamente acerca dos critérios clínicos de

definição de morte encefálica, embasada na premissa, aceita pela pacificamente

pela comunidade científica mundial, de que a parada total e irreversível das funções

encefálicas equivale à morte, conforme destacado no preâmbulo desta norma

médica.

Conforme o artigo 3º desta Resolução do Conselho Federal de Medicina, a

“[...] morte encefálica deverá ser conseqüência de processo irreversível e de causa

conhecida”, devendo ser observados, no entanto, os seguintes parâmetros clínicos

para sua constatação, conforme se infere da redação do artigo 4º desta mesma

resolução: “[...] coma aperceptivo com ausência de atividade motora supra-espinal e

apnéia” e que tenham uma das conseqüências do previstas no artigo 6º.

Há ainda necessidade de serem realizados dois exames clínicos para

constatação dos parâmetros clínicos definidos no artigo 4º, acima referido, dentro de

determinados intervalos de tempo, variáveis de acordo com a idade do indivíduo

objeto da constatação, como se observa da redação do artigo 5º deste mesmo

diploma normativo: Art. 5º. Os intervalos mínimos entre as duas avaliações clínicas necessárias para a caracterização da morte encefálica serão definidos por faixa etária, conforme abaixo especificado: a) de 7 dias a 2 meses incompletos - 48 horas b) de 2 meses a 1 ano incompleto - 24 horas c) de 1 ano a 2 anos incompletos - 12 horas d) acima de 2 anos - 6 horas

Finalmente, conforme já mencionado alhures, o artigo 6º da Resolução n.

1.480, de 08 de agosto de 1997, do Conselho Federal de Medicina, há o

estabelecimento das demais condições que necessariamente devem ser observadas

pelos exames complementares para a real constatação da morte encefálica. Tal

dispositivo normativo prescreve que:

Art. 6º. Os exames complementares a serem observados para constatação de morte encefálica deverão demonstrar de forma inequívoca: a) ausência de atividade elétrica cerebral ou, b) ausência de atividade metabólica cerebral ou, c) ausência de perfusão sangüínea cerebral.

Acerca da morte encefálica, envolvendo toda a padronização médica trazida

ao ordenamento jurídico pela Resolução n. 1.480/97, do Conselho Federal de

Medicina, Maria Helena Diniz32 leciona que

32 DINIZ, op. cit., p. 297-298.

73

Como se vê não é tarefa fácil diagnosticar a morte encefálica ou neurológica, que vem a ser a abolição total e definitiva das atividades do encéfalo, de que dependem, fundamentalmente, todas as demais funções orgânicas. Com a morte das células do sistema nervoso central, das funções vitais, a única que pode permanecer é o batimento cardíaco, porque o coração tem um sistema de controle independente daquele. Será imprescindível sua constatação, mediante critérios científicos-técnicos rigorosos, por médicos especializados e do mais elevado sentido ético. [...] [...] a Resolução n. 1480/97 do nosso Conselho Federal de Medicina, ao declarar que a parada total e irreversível das funções encefálicas equivale à morte, conforme já estabelecido pela comunidade científica mundial, aponta os seguintes critérios para sua configuração: a) clínicos: coma aperceptivo com arretividade inespecífica, dolorosa e vegetativa, de causa definida, ausência de reflexo corneano, oculoencefálico, oculovestibular e vômito e positividade do teste de apnéia, excluindo desses critérios os casos de intoxicação metabólica, por droga ou hipotermia; b) complementares: ausência das atividades bioelétrica ou metabólica cerebrais ou perfusão encefálica.

Segundo esta autora, além das demais condições clínicas determinadas pela

Resolução n. 1.480/97, do Conselho Federal de Medicina, é imprescindível, para a

constatação da morte encefálica a cessação da propagação das ondas

eletroencefalográficas.

Desta forma, ante toda a capitulação legal que circunda a definição de morte

no ordenamento pátrio, é possível, a contrario sensu, concluir que o início da vida

humana no ordenamento jurídico pátrio se dá com o início das ondas

eletroencefalográficas (atividade elétrica cerebral) após a formação do sistema

nervoso superior, por volta da oitava semana de gravidez. Assim, o ordenamento

jurídico pátrio escolheu, como paradigma para definição do início da vida humana, a

teoria neurológica.

E como verificar o início das ondas eletroencefalográficas, de forma geral? É

possível determinar-se a persistência das ondas elétricas cerebrais por meio do

eletroencefalograma, procedimento médico comumente denominado EEG.

Paulo Cesar Ragazzo33 descreve a maneira com o eletroencefalograma

funciona, constatando a presença de ondas elétricas cerebrais. Segundo este

neurologista, A atividade elétrica espontânea do cérebro foi observada, de maneira experimental, primeiramente por Caton em 1875 (apud). O eletroencefalograma (doravante referido como EEG) humano foi demonstrado inequivocamente por Hans Berger, em 1929 (apud). O EEG compreende oscilações de potencial elétrico que ocorrem continuamente entre regiões amostradas no escalpo, por pares de eletrodos acoplados a

33 RAGAZZO, Paulo Cesar. Eletroencefalografia: conceitos básicos in Epilepsia. (Edit.

GUERREIRO, Carlos A. M. et al). São Paulo: Lemos Editorial, 2000. [p. 75-80]. p.75.

74

sistemas amplificadores diferenciais, e registrados por oscilógrafos com sistemas inscritores a tinta, ou mais recentemente em sistemas computacionais, em que, após a digitalização dos sinais analógicos representados pelos sinais EEG convencionais, estes são armazenados, analisados e apresentados em monitores (EEG digital).

Em que pese não haver na Resolução n. 1.480/97, do Conselho Federal de

Medicina, qualquer especificação acerca da constatação de morte encefálica em

fetos que ainda se encontram no útero materno, as modernas técnicas médicas

permitem esta constatação, como por exemplo a técnica de análise espectral de

freqüências.

2.4 Conceituação de anencefalia

Segundo a doutrina médica dominante34 Anencefalia é definida como a má-formação fetal congênita por defeito do fechamento do tubo neural durante a gestação, de modo que o feto não apresenta os hemisférios cerebrais e o córtex, havendo apenas resíduo do tronco encefálico.

A anencefalia35, portanto, é uma má formação congênita, que tem como

conseqüência a não formação completa do sistema nervoso, havendo apenas a

formação inicial do tubo neural, sem o seu completo desenvolvimento.

Erasmo Barbante Casella36, de forma semelhante, define anencefalia como

sendo [...] a ausência congênita da maior porção do cérebro, do crânio e do couro cabeludo, determinada durante a fase de neurolução, no primeiro mês da gestação. Observa-se na porção superior da calota craniana um tecido fibroso hemorrágico, coberto por uma fina membrana contínua com a pele, estando praticamente ausentes os hemisférios cerebrais, o trato piramidal, o cerebelo e as meninges. Esta malformação apresenta uma incidência de

34 BEHRMAN, Richard E.; KLIEGMAN, Robert M.; JENSON, Hal B. Tratado de Pediatria. 16. ed. Rio

de Janeiro: Guanabara Koogan, 2002. p. 1777. 35 Acerca da anencefalia, Carolina Alves de Souza Lima aduz ser uma malformação do encéfalo,

chegando a esta conclusão por meio de uma gradação de conceitos. Segundo esta autora, “O encéfalo é ‘parte do sistema nervoso central, contida na cavidade do crânio, e que abrange o cérebro, o cerebelo, a protuberância e o bulbo raquiano’. Devido à complexidade de seu desenvolvimento embriológico, não é incomum seu desenvolvimento anormal na espécie humana. As malformações do sistema nervoso central – centro propulsor e coordenador de todas as manifestações vitais, quais sejam, as intelectivas, as sensitivas e as vegetativas – geram inúmeras doenças. A anencefalia configura uma das malformações do encéfalo.” (LIMA, op. cit., p. 75).

36 CASELLA, Erasmo Barbante. Morte encefálica e neonatos como doadores de órgãos. Disponível em: <http://www.pediatriasaopaulo.usp.br/upload/pdf/596.pdf>. Acesso em: 10 jul. 2009.

75

0,3-1 caso para cada 1.000 nascidos vivos; destes, 95% evoluem para óbito na primeira semana de vida e o restante dos casos em 2-3 semanas.

Jorge de Rezende37 define anencefalia como sendo Uma anomalia do sistema nervoso central que se caracteriza, genericamente, pela ausência da abóboda craniana, massa encefálica reduzida a vestígios da substancia cerebral. Geralmente, as glândulas supra-renais têm, também, pequeno volume, ou são rudimentares.

A partir das conceituações aqui alinhavadas, conclui-se que a anencefalia é

uma má formação cerebral devida, diretamente, ao não fechamento do tubo neural

do feto, de modo que este, quando acometido por anencefalia, não apresenta os

hemisférios cerebrais e o córtex, havendo apenas resíduo do tronco encefálico.

Desta forma, o feto anencefálico, ante a impossibilidade morfo-fisiológica

retromencionada, não possui todas as funções superiores do sistema nervoso

central – responsável pela consciência, cognição, vida relacional, comunicação,

afetividade e emotividade. Restam, pois, apenas algumas funções inferiores que

controlam parcialmente a respiração, as funções vasomotoras e a medula espinhal.

Carolina Alves de Souza Lima38, corroborando a assertiva de que o

anencéfalo é incapaz de desenvolver atividades cerebrais cognitivas, afirma que O anencéfalo carece de grande parte do sistema nervoso central. No entanto, por preservar o tronco encefálico, ou parte dele, mantém as funções vitais, tais como o sistema respiratório e o cardíaco. É também capaz de reagir a estímulos, de manter a temperatura corporal e de realizar os movimentos de sugação e de deglutição. No entanto, as reações são exclusivamente reflexas e, assim, típicas do estado vegetativo. A malformação o incapacita para as funções relacionadas à consciência e à capacidade de percepção, de cognição, de comunicação, de afetividade e de emotividade. Ele não apresenta qualquer grau de consciência, e, por isso, jamais compartilhará da experiência humana. [...]

Em relação à anencefalia, desta forma, infere-se que a atividade cerebral

desenvolvida pelo feto anencefálico é restrita a poucas funções vitais básica, como

respiração e batimentos cardíacos, sendo que, assim, não se pode falar em função

cerebral propriamente dita, com desenvolvimento de cognição, raciocínio e

emoções.

A anencefalia, como é cediço, é provavelmente causada pela ausência ou

insuficiência de ácido fólico durante a gravidez. Outros autores, porém, apontam

outros fatores como causa da anencefalia. Neste diapasão, Carolina Alves de Souza

37 REZENDE, Jorge de. Obstetrícia. 8. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1998. p.1073. 38 LIMA, op. cit., p.76-77.

76

Lima39 afirma que Segundo estudos epidemiológicos, a malformação está relacionada a vários fatores de natureza genética e/ou ambiental, tais como localização geográfica, sexo, etnia, raça, época do ano, classe social e histórico familiar. Trata-se de doença relativamente comum, mas que vem decaindo nas últimas décadas de cinco para dois a cada 10 mil nascidos vivos. É mais freqüente no sexo feminino, sendo a proporção de duas a quatro vezes.

Ainda é importante mencionar que existem variações entre os graus de

anencefalia, sendo certo que apenas a anencefalia propriamente dita, na qual não

ocorre o fechamento do tubo neural e nem a formação dos hemisférios cerebrais e

córtex, é que se adapta efetivamente à definição desta má formação congênita.

José Luiz Dias Gherpelli40, acentuando a existência de graus diversos de má

formação congênita na anencefalia, afirma que A anencefalia resulta de uma falha no fechamento da porção anterior (cranial) do tubo neural. Assim, nos casos mais graves o defeito estende-se desde o nível da lâmina termal (local onde ocorre o fechamento do neuroporo anterior) até o forame magno (local onde se inicia o processo de fechamento da porção cranial do tubo neural). A malformação implica a ausência do desenvolvimento dos ossos do crânio, o que dá à criança fáceis aberrante característica.

Neste mesmo sentido, Luiz Flávio Gomes41, citando matéria jornalística

relativamente recente, aponta a existência de diversos graus de anencefalia, como é

possível vislumbrar do trecho abaixo destacado, extraído de texto de sua autoria, no

qual faz menção ao caso da “anencéfala” incompleta Marcela de Jesus, de

Patrocínio Paulista, Estado de São Paulo, que chegou a resistir um ano e oito meses

após o nascimento: No caso Marcela (que sobreviveu por um ano e oito meses), chegou-se à conclusão de que não se tratava de uma verdadeira anencefalia (neste sentido: Heverton Petterson, Thomaz Gollop, Jorge Andalaft Neto etc. – Folha de São Paulo, p. C5, de 29.08.2008). Logo o caso Marcela não pode ser invocado como um “milagre divino” que falaria “por si só” contra o aborto anencefálico. A merocrania (caso Marcela) não se confunde com a anencefalia.

No caso da “anencéfala” incompleta Marcela de Jesus, a má formação

congênita verificada foi a merocrania, defeito cerebral menos grave do que a

anencefalia, pois implica o desenvolvimento de algumas partes dos hemisférios 39 LIMA, op. cit., p.77. 40 GHERPELLI, José Luiz Dias, apud LIMA, op. cit., p. 77. 41 GOMES, Luiz Flávio. Aborto anencefálico: direito não é religião. Juris Síntese, São Paulo, n. 75,

jan./fev. 2009. (CD ROM)

77

cerebrais, sendo encontrado resquício do cérebro no feto. O desenvolvimento de

algumas partes dos hemisférios cerebrais é que explicou a resistência de Marcela de

Jesus à falência completa de suas funções vegetativas.

Diante das informações colacionadas neste tópico, verifica-se que a

anencefalia impede o desenvolvimento das mais básicas condições de vida humana,

sendo fatal em 100% (cem por cento) dos casos em que é diagnosticada,

justamente por importar na ausência do desenvolvimento de partes do sistema

nervoso, essenciais para permitir a continuidade da vida extra-uterina. Cumpre

ressaltar, apenas a título de argumentação, que as funções básicas vitais do feto

anencéfalo cessam bem antes da proximidade do termo de uma gestação normal.

2.5 Anencefalia e vida humana

Uma questão importante para o desenvolvimento das conclusões da presente

dissertação é a verificação de existência de vida humana no feto anencéfalo. Para

tanto, é deveras importante ter em mente que o início da vida no ordenamento

jurídico pátrio se dá com o início das ondas cerebrais, verificado por

eletroencefalograma.

Inicialmente, devido à impossibilidade comprovada de o anencéfalo vir a

desenvolver qualquer atividade cerebral superior, como inteligência, memória,

comunicação, emoções, relacionamentos afetivos, é possível descartar a existência

de vida humana nesta hipótese. Outrossim, a morte da maior parte dos anencéfalos

ainda dentro do útero materno, e a morte da parte remanescente pouco tempo após

o parto, são elementos que corroboram esta ilação. Mas clinicamente é possível

demonstrar a inexistência de vida destes fetos, o que se realizará na seqüência.

Apenas a título de esclarecimentos, importante a demonstração de um

eletroencefalograma de uma pessoa normal. Como se verifica da figura 0142 abaixo

colacionada, as ondas encefalográficas de uma pessoa normal são facilmente 42 Figura 01 – eletroencefalograma de pessoa normal, extraída de apresentação elaborada pelo Prof.

Dr. Thomaz Rafael Gollop, membro da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC, apresentada em audiência pública ocorrida nos autos da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 54, em trâmite perante o Supremo Trib.Federal. (GOLLOP, Thomaz Rafael. Anencefalia. Disponível em: <www.ccr.org.br/uploads/noticias/Thomaz_Gollop_anencefalia.pps >. Acesso em: 12 jul. 2009.)

78

verificadas no exame eletroencefalográfico, no qual se verificam diversos vales e

picos nos gráficos, ocasionado pela existência de ondas elétricas no cérebro da

pessoa, representativas da vida encefálica.

Figura 01

Já o eletroencefalograma de uma pessoa com morte encefálica possui as

linhas gráficas praticamente planas, representando a ausência de atividade de

ondas elétricas cerebrais. Como já mencionado alhures, a morte encefálica, ou seja,

o conceito diametralmente oposto ao conceito de vida em nosso ordenamento

jurídico brasileiro, nos termos da Lei Federal n. 9.434, de 04 de fevereiro de 1997,

complementada pela Resolução n. 1.480, de 08 de agosto de 1997, do Conselho

Federal de Medicina, dá-se com a ausência de atividade elétrica cerebral.

Corroborando estas ilações, a figura 0243 abaixo destacada trata-se de um

eletroencefalograma de pessoa com morte cerebral, na qual não se verifica a

variação gráfica existente no mesmo exame de uma pessoa normal, como se colhe:

43 Figura 02 – eletroencefalograma de pessoa com morte encefálica, extraída de apresentação

elaborada pelo Prof. Dr. Thomaz Rafael Gollop, membro da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC, apresentada em audiência pública ocorrida nos autos da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 54, em trâmite perante o Supremo Trib.Federal. (GOLLOP, Thomaz Rafael, op. cit. Acesso em: 12 jul. 2009.)

79

Figura 02

No que pertine às malformações do sistema nervoso, não necessariamente

verificamos a morte encefálica de seu portador. Os indivíduos portadores de

microcefalia, má formação cerebral, devida a diversos fatores, na qual se verifica o

tamanho diminuto do cérebro do seu portador, seja em virtude do não

desenvolvimento da caixa craniana, seja pelo não desenvolvimento adequado do

próprio cérebro, por exemplo, possuem propagação de ondas eletroencefalográficas,

verificáveis por meio do exame de eletroencefalograma. Mesmo ante as deficiências

mentais e as baixas voltagens das ondas cerebrais nos casos de indivíduos

microcéfalos, as ondas encefalográficas existem, sendo possível afirmar-se que

existe vida nesta hipótese, de acordo com as premissas legais que foram

estabelecidas nos tópicos anteriores.

Frederic A. Gibbs e Erna L. Gibbs, analisando a eletroencefalografia dos

microcéfalos, constatam a existência de eletricidade cerebral em tais indivíduos,

apesar de constatarem as baixas voltagens das ondas encefalográficas. Para tanto,

demonstram graficamente sua conclusão, por meio do encefalograma44 abaixo

colacionado, extraído de sua obra conjunta, como se observa:

44 Figura 03 – encefalograma de indivíduo portador de microcefalia (GIBBS, Frederic A.; GIBBS, Erna

L. Atlas of electroencephalography: neurological and psychiatric disorders. V.3. Massachusetts: Addison-Wesley Publishing Company, 1964. p. 433).

80

Figura 03

Apesar de ser bem diverso do encefalograma de pessoas com morte

encefálica, Frederic A. Gibbs e Erna L. Gibbs45 relacionam a baixa voltagem elétrica

do cérebro dos indivíduos portadores de microcefalia à insuficiência do

funcionamento dos elementos corticais do cérebros, como se observa do trecho

abaixo destacado, extraído de sua obra conjunta: The outstanding abnormalities in patients with microcephaly are low voltage activity in both awake and asleep states and also sleep patterns which are poorly developed, disorganized, or absent (Plates 283-287). The low voltage activity in both the walking and sleeping state is probably due to insufficiency of functional cortical elements, and the disorganized sleep patterns are possibly due in part at least to cortical deficiencies, but they are probably most closely related to defective functioning of subcortical centers.

Os fetos portadores de anencefalia, por outro lado, possuem

eletroencefalograma quase linear, muito semelhante ao de indivíduos com morte

encefálica, como se vislumbra da figura 0446 abaixo destacada:

45 GIBBS, Frederic A.; GIBBS, Erna L., op. cit., p. 427. 46 Figura 04 – eletroencefalograma de feto anencáfalo, extraída de apresentação elaborada pelo Prof.

Dr. Thomaz Rafael Gollop, membro da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC, apresentada em audiência pública ocorrida nos autos da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 54, em trâmite perante o Supremo Trib.Federal. (GOLLOP, op. cit. Acesso em: 12 jul. 2009.)

81

Figura 04

Diante dos gráficos delineados pelo eletroencefalograma acima colacionado,

verifica-se que a situação elétrica-cerebral dos fetos anencefálicos é idêntica à dos

indivíduos com morte encefálica, em razão da inexistência de picos e vales na

representação gráfica das ondas eletroencefalográficas.

Desta forma, é possível admitir, com supedâneo na Lei Federal n. 9.434, de

04 de fevereiro de 1997, complementada pela Resolução n. 1.480, de 08 de agosto

de 1997, do Conselho Federal de Medicina, que o feto portador de anencefalia não

possui vida humana, ante a inexistência de ondas elétricas cerebrais.

Corroborando este entendimento, o Conselho Federal de Medicina Para este

fim, editou a resolução n° 1.752, de 08 de setembro de 2004, permitindo aos

médicos, desde que com autorização formal prévia dos pais, a faculdade de realizar

o transplante de órgãos dos fetos anencefálicos, sem necessidade de comprovação

de morte encefálica, desnecessária diante da inviabilidade inequívoca da vida extra-

uterina destes fetos. Conforme esta resolução, o anencéfalo não possui vida, o que

fica bem claro na parte introdutória desta norma, a saber: [...] CONSIDERANDO que os anencéfalos são natimortos cerebrais (por não possuírem os hemisférios cerebrais) que têm parada cardiorrespiratória ainda durante as primeiras horas pós-parto, quando muitos órgãos e tecidos podem ter sofrido franca hipoxemia, tornando-os inviáveis para transplantes; CONSIDERANDO que para os anencéfalos, por sua inviabilidade vital em decorrência da ausência de cérebro, são inaplicáveis e desnecessários os critérios de morte encefálica; [...] (grifos nossos).

82

Em razão de todos os argumentos aqui delineados, pode-se chegar à

conclusão de que o anencéfalo, por ser desprovido de ondas elétricas cerebrais, não

chega a ter vida humana, nos termos do quanto definido no ordenamento pátrio

brasileiro.

2.6 Da diferenciação de abortamento e antecipação do parto de fetos anencéfalos

Como definido em tópicos anteriores, o abortamento implica,

necessariamente, a morte de um feto viável, ou seja, a cessação de uma vida, por

meio da interrupção da gravidez. Por outro lado, a antecipação do parto de um feto

acometido por anencefalia não implica a realização de um abortamento, pois neste

caso não existe vida viável a ser interrompida, de acordo com os critérios e

premissas traçados no tópico anterior.

Assim, a antecipação do parto de feto anencéfalo não traz as conseqüências

penais imputáveis aos agentes que cometem qualquer das espécies criminosas do

abortamento, justamente por serem conceitos totalmente diferentes.

Luiz Regis Prado47, acentuado esta diferenciação de conceitos, ressalta que

nos casos de anencefalia, Em situações como essa, o feto não pode ser considerado tecnicamente vivo, o que significa que não existe vida humana intrauterina a ser tutelada [...] Em outros termos: é justamente a inexistência de vida o que permite fundamentar a falta de dolo ou culpa, bem como a conseqüente falta de um resultado típico.

Exatamente da mesma forma entende Paulo César Busato48, como se colhe

do trecho abaixo transcrito, extraído de sua obra: Não havendo vida, na hipótese, tal qual ela pode ser entendida, sendo tal fato atestado por pareceres clínicos, realizada a conduta interruptiva da gestação, não é possível que o sujeito logre atingir o bem jurídico protegido em questão, com o que, cuida-se de fato materialmente atípico. Não é possível caracterizar-se o aborto, porque este é um dispositivo jurídico que se inscreve no capítulo dos delitos dolosos contra a vida. A vida é um bem jurídico protegido pelo aborto. Se onde há cessação da atividade cerebral não há vida, não há objeto jurídico. Não havendo objeto não há proteção

47 PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,

v.2, 2006, p.123-124, apud LIMA, op. cit., p.86-87. 48 BUSATO, Paulo César. Tipicidade material, aborto e anencefalia. Revista dos Tribunais, São

Paulo, ano 94, v.836, p.386, jun. 2005.

83

jurídica justificada. Como tal, não pode existir responsabilidade penal. Deduz-se, pois, que a expulsão do ventre de feto anencéfalo é um indiferente penal.

Alberto Silva Franco, corroborando o entendimento dos demais autores aqui

citados, ressalta inexistir vida intra-uterina nos casos de anencefalia49, razão pela

qual a antecipação do parto dos fetos anencefálicos é evento totalmente

dissonamente do abortamento, seja de que espécie for.

Anelise Tessaro50, endossando a diferenciação que aqui é levada a cabo,

socorre-se da definição de morte encefálica para demonstrar a sua tese de

viabilidade de antecipação do parto de fetos anencéfalos. Para esta autora, [...] referindo-se aos casos de fetos portadores de anencefalia, acrania ou em que o encéfalo não se formou, e fazendo um paralelo com a Lei 9.434/97 (que dispõe sobre a retirada de órgãos, tecidos e partes do corpo para fins de transplante e tratamento), conclui-se que estes fetos estão juridicamente mortos, uma vez que o conceito de morte encefálica corresponde ao diagnóstico de morte. Se este dado autoriza a interrupção do emprego de recursos para o suporte de funções vegetativas e permite a retirada de órgãos e tecidos do doador, por que não autorizar a interrupção da gestação, uma vez que é a própria gestante, maior interessada neste procedimento, quem suposta e garante as funções vitais do feto.

Diante de todas estas ilações, ficou demonstrado que a antecipação do parto

de fetos anencéfalos é evento totalmente diverso do abortamento, sobretudo pelo

fato de inexistir vida humana, nos termos do ordenamento jurídico pátrio, nos casos

de anecefalia completa (propriamente dita). Esta diferenciação é crucial para

demonstração da viabilidade médica, jurídica e ética da antecipação do parto dos

fetos anencéfalos, o que será levado a cabo no próximo capítulo.

49 Alberto Silva Franco, acerca da anencefalia, é categórico ao ressaltar que “embora em ambos os

casos – aborto e anencefalia – se possa cogitar de interrupção do processo gestacional, é induvidoso que faltam à anencefalia os elementos que denunciam o tipo de aborto, sobretudo, o reconhecimento prévio da existência de vida humana intra-uterina. Trata-se, portanto, de caso de pura atipia.” (FRANCO, Alberto Silva. Anencefalia: breves considerações médicas, bioéticas, jurídicas e jurídico-penais. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 94, v.833, p. 416, mar. 2005).

50 TESSARO, Anelise. Aborto seletivo. 2.ed. Curitiba: Juruá, 2008. p.113, apud LIMA, op. cit., p.88.

84

CAPÍTULO 3 DA HIPÓTESE DE GRAVIDEZ DE FETOS ACOMETIDOS POR

ANENCEFALIA: EMBATE DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

A gravidez de fetos acometidos por anencefalia é um tema, pelo que se pôde

visualizar do panorama médico e jurídico desta modalidade de malformação cerebral

congênita, tratado no capítulo anterior, que levanta fervorosos debates acerca do

aparente conflito entre o direito à vida do feto anencéfalo e os direitos fundamentais

da gestante que o gerou.

Em que pese este aparente conflito de direitos fundamentais, os quais serão

esmiuçados na seqüência, o ordenamento jurídico pátrio, avalizado pela ética, pela

bioética, pela moral e pelos costumes, possui a resposta para este imbróglio.

3.1 Constatação de anencefalia, riscos da gravidez de feto anencéfalo para a

gestante e viabilidade médica da interrupção da modalidade de gravidez em análise

A detecção da anencefalia é comumente realizada em exames pré-natais. A

espécie de exame geralmente mais utilizada para constatação médica de anomalias

resultantes de má-formação fetal é a ecografia, procedimento médico

ultrassonográfico capaz de visualizar a caixa craniana do feto e constatar a

anencefalia com falibilidade praticamente nula, sobretudo em virtude dos avanços

tecnológicos dos exames de ultrassonografia, que possuem resolução de imagem

cada vez mais apuradas.

Walter Pinto Junior e Bernardo Bieguelman1 repisam a acurácia dos

modernos exames de ultrassonografia para detecção dos casos de anencefalia, ao

defenderem que

1 PINTO JUNIOR, Walter; BIEGUELMAN, Bernardo. Genética e medicina fetal. In MUSTACCHI,

Sergio Peres Zan (org.). Genética baseada em evidencias: síndromes e herança. São Paulo: Cid, 2000, p.525, apud LIMA, Carolina Alves de Souza. Aborto e anencefalia: direitos fundamentais em colisão. Curitiba: Juruá, 2009. p.93.

85

O avanço técnico dos aparelhos de ultrassonografia fornece hoje uma resolução extremamente refinada para o diagnóstico de anomalias fetais. Esta resolução permite que as medidas anatômicas fetais sejam determinadas a cada semana de gestação e, conseqüentemente, que se estime a idade fetal e se pesquise a presença de todas as estruturas anatômicas. Qualquer desarmonia de crescimento de órgãos, regiões fetais ou mesmo atraso no seu desenvolvimento é facilmente visualizado. As malformações fetais passaram a ter os seus sinais específicos e, em menos de uma década a ultrassonografia ficou minuciosa e passou a demandar do médico que a executa uma sistemática extremamente rigorosa. [...] Exames ultrassonográficos bem feitos são capazes de diagnosticar grande parte das malformações e, por esse motivo, não é de se estranhar que os programas de monitorização de malformações congênitas devam assinalar nos próximos anos decréscimo acentuado de nascimento de fetos com malformações múltiplas. Isto porque é a ultrassonografia que mais diagnostica malformações congênitas. [...]

A precisão dos exames de ultrassonografia, dentre os quais figura a

ecografia, chega a índices surpreendentes hoje em dia, podendo ser descartada2 a

hipótese de falha na detecção da anencefalia.

No capítulo anterior, referimo-nos a Erasmo Barbante Casella3 para chegar à

conclusão acerca do grau de fatalidade da anencefalia: em 100% (cem por cento)

dos casos nos quais é constatada, ocorre a falência múltipla dos órgãos de função

vegetativa4 do seu portador. De acordo com este mesmo neurologista, dos 35%5

(sessenta e cinco por cento) dos anencéfalos cuja gravidez chega a termo, 95%

(noventa e cinco por cento) deste universo de indivíduos têm fim de sua vida

vegetativa ainda na primeira semana, enquanto que os 5% (cinco por cento)

restantes tem falência múltipla dos órgãos vegetativos nas segunda ou terceira

semanas após o parto.

Apesar de toda evolução científica e tecnológica relacionada às ciências

médias, que permitem a constatação do diagnóstico de anencefalia no feto logo no

2 Corroborando esta ilação, especificamente no que pertine à malformação congênita em análise,

Carolina Alves de Souza Lima ressalta que “A anencefalia pode ser diagnosticada no início da gestação, por meio dos exames pré-natais, particularmente pelos exames de ultrassonografia. Caso não diagnosticada no início da gestação, ou caso haja alguma dúvida quanto ao diagnóstico, este pode ser feito com absoluta certeza, entre o período da vigésima semana à vigésima segunda semana, por meio dos atuais aparelhos de ultrassonografia. Por isso, o argumento de que poderia haver erro de diagnóstico é muito pouco provável, diante dos avanços na área da medicina fetal.” (LIMA, op. cit., p.93.).

3 CASELLA, Erasmo Barbante. Morte encefálica e neonatos como doadores de órgãos. Disponível em: <http://www.pediatriasaopaulo.usp.br/upload/pdf/596.pdf>. Acesso em: 10 jul. 2009.

4 Em relação ao anencéfalo, necessário lembrar que, de acordo com as conclusões do segundo capítulo, não há que se falar em vida propriamente dita, nos termos do ordenamento jurídico pátrio, em razão da inexistência de ondas cerebrais verificáveis por eletroencefalograma. Apenas existem funções vegetativas que inevitavelmente irão cessar.

5 De acordo com Débora Diniz e Diaulas Costa Ribeiro, 65% (sessenta e cinco por cento) dos fetos anencefálicos cessam suas funções vegetativas ainda no período intra-uterino (DINIZ, Débora; RIBEIRO, Diaulas Costa. Aborto por anomalia fetal. Brasília: Letras Livres, 2003. p.102).

86

período inicial da gravidez, com absoluta certeza, em razão dos defeitos morfolófico-

funcionais do portador desta malformação congênita, não há nada que a medicina

possa fazer para reverter a inviabilidade deste ser. E este quadro, na análise médica

realizada no capítulo anterior, ficou muito bem delineado, sobretudo em razão do

não fechamento do tubo neural nos casos de anencefalia completa.

Corroborando esta ilação, Carolina Alves de Souza Lima6, em sua obra,

chega à conclusão de que uma vez detectada a anencefalia no feto, não há

absolutamente nada que se possa fazer para modificar o inevitável perecimento do

feto, como se depreende da leitura do trecho abaixo colacionado: No entanto, apesar de todos os avanços da ciência médica e da tecnologia a ela relacionada, ainda não há recursos médicos para reverter determinados quadros clínicos, como nos casos da anencefalia. Nestes, a medicina não possui nenhum procedimento ou tratamento que possa reverter tal situação.

Apesar de inexistir qualquer procedimento médico que possa alterar ou

reverter um quadro de anencefalia, há muito o que se possa fazer em benefício da

mulher que gerou o feto com esta anomalia, sobretudo tendo-se em vista que esta

modalidade de gravidez traz sérios riscos à gestante.

A permanência do feto anencéfalo no interior do corpo da gestante é

potencialmente perigosa para o quadro clínico da mulher, podendo representar

danos à saúde da gestante, caracterizados por risco de diabetes, de aumento do

líquido amniótico, de aumento do risco de embolia, de aclâmpsia e de rotura uterina7,

dentre outros, além de possível risco de morte, por complicações diversas durante o

parto, ou mesmo, durante os procedimentos médicos de retirada do feto

anteriormente ao parto, quando a cessação das funções vegetativas se dá ainda na

fase intra-uterina.

Os aludidos potenciais riscos que a prenhez de feto anencéfalo representa à

gestante estão cristalinizados na exposição de motivos da Resolução n. 348, de 10

de março de 2005, do Conselho Nacional de Saúde, que manifesta formalmente o

apoio deste órgão ao direito da gestante em exercer sua faculdade de manter ou

interromper a gravidez por meio da antecipação terapêutica do parto, em caso de

gravidez de fetos anencefálicos, conforme se colhe do trecho abaixo transcrito:

6 LIMA, op. cit., p.93. 7 Exposição de motivos da Resolução do Conselho Nacional de Saúde n° 348, de 10 de março de

2005, publicada no Diário Oficial da União, caderno do Poder Executivo, Brasília, DF, em 10 de fevereiro de 2006, p.64.

87

Considerando que a anencefalia provoca ao longo da gestação riscos à gestante caracterizados por diabetes, doença hipertensiva da gestação, aumento do líquido amniótico (hidrâmnio) e aumento de risco de embolia. E ainda, devido à falta de ossos cranianos, a dilatação da cérvice uterina é prejudicada, tornando o parto difícil e com complicações. A grande incidência de apresentações fetais anômalas pode acarretar rotura uterina, hemorragias no pós-parto, atonia uterina, dentre outros riscos, além de causar transtornos de natureza psíquica à gestante e seus familiares; [...]

Diante do trecho destacado da norma em comento, verifica-se que na

hipótese de gravidez de um feto acometido por anencefalia temos, de um lado, o

direito à “vida” do anencéfalo (na verdade, uma “pseudo-vida”, já que nos termos do

ordenamento jurídico pátrio, não existe vida propriamente dita, quando se está

diante de um caso de anencefalia), e de outro lado, os direitos fundamentais da

gestante, ameaçados pelos riscos de uma prenhez anormal.

A ocorrência destes riscos não é certa, mas a possibilidade de algum, ou

alguns deles, acontecerem existe, e não pode ser desprezada. Neste sentido, o

Conselho Regional de Medicina do Distrito Federal, em resposta à consulta pública8

formulada acerca dos riscos de continuidade de gravidez de feto anencefálico, já se

manifestou, entendendo que Esta situação (a de gravidez de feto anencéfalo) leva comumente à toxemia gravídica, principal causa de mortalidade materna, síndrome que permite tratamento, mas para a qual não há preservação. O risco de ‘deslocamento prematuro de placenta normalmente inserida’ é alto e acarreta, por vezes, a gravíssima condição de síndrome de coagulação intravascular disseminada, de alta mortalidade. A presença de polidrâmnio é causa também de atonia uterina, com graves hemorragias pós parto, que também levam ao aumento de risco de mortalidade materna. Entendemos que, por estes motivos, caracteriza-se o risco materno, aceito pela legislação brasileira como motivo para a interrupção de gestação.

No mesmo sentido, várias9 outras entidades ligadas à saúde já se

manifestaram quanto aos riscos que uma gravidez de feto anencefálico representam

à integridade física da gestante.

8 BRASIL, Conselho Regional de Medicina do Distrito Federal, Consulta n. 0055/97, relator

Conselheiro Pedro Pablo de Magalhães Chancel, Brasília, 28 jul. 1997, apud LOPES, Silvia Regina Pontes. Vida, anencefalia fetal e argumentação judicial: fundamentos para a legitimidade discursiva da ADPF n. 54-8/DF. 2007, 225 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito na Universidade de Brasília – UnB, Brasília, 2007. p.153.

9 Por exemplo, o Conselho Federal de Medicina, corroborando os riscos que a gravidez de um feto anencéfalo representa à gestante, já firmou o entendimento de que “Toda gestação normal pode cursar com repercussões para a saúde materna, embora a freqüência e gravidade destas repercussões seja pequena. Em gestação com feto anencéfalo, pode nada ocorrer em termos de complicações, mas sempre haverá riscos de sua ocorrência. [...] Assim, a continuidade da gestação torna-se um risco desnecessário e haverá indicação de interrupção, mesmo que o risco não seja iminente.” (BRASIL, Conselho Federal de Medicina, apud LOPES, op. cit., p.153).

88

Não é possível se olvidar, ainda, de que a integridade psíquica da mulher é

um componente, de extrema relevância, de seu quadro de saúde. A existência de

gravidez de um feto anencéfalo, acerca do qual se tem certeza de sua inviabilidade,

é fato que pode causar abalos psíquicos graves à gestante, e tais danos

psicológicos podem ser ainda potencializados e se mulher manifestar desejo de

interromper a prenhez e não for capaz de levar a cabo seu intento.

É claro, por outro lado, que a continuidade da gravidez de um feto

anencefálico pode não trazer conseqüências danosas, no campo psicológico, à

gestante, caso seus motivos íntimos e crenças pessoais, como religião, por

exemplo, a levem a decidir desta maneira.

Para a análise que fazemos aqui, até mesmo a fim de embasar os objetivos

do presente trabalho, iremos nos ater à hipótese das gestantes que têm o desejo de

interromper a gravidez de seus fetos anencéfalos, em razão da inviabilidade de sua

vida.

Para o universo de gestantes em análise, restritas às que têm o desejo de

interromper a gravidez do feto anencéfalo, pode-se, com tranqüilidade, afirmar que a

manutenção de uma gravidez desta natureza até o seu termo habitual é verdadeira

tortura psicológica para a mulher. As perturbações emocionais advindas da prenhez

de anencéfalo, além de causar danos psicológicos muitas vezes irreversíveis,

podem impactar negativamente sobre a mulher no que concerne à sua vida

relacional, seja esta profissional, pessoal ou familiar.

Fortalecendo estas assertivas, Carolina Alves de Souza Lima10 faz uma

interessante análise dos riscos psíquicos que a gravidez de um feto anencéfalo pode

representar à mulher, ao afirmar que As expectativas sociais e familiares diante da gestação e da maternidade são sempre de muita alegria e satisfação, uma vez que estão ligadas à vida e ao nascimento de uma criança. Não há espaço social, e muitas vezes familiar, para sentimentos como tristeza, angústia, frustração e culpa. A notícia do diagnóstico de anomalia fetal legal – e a anencefalia é uma dessas malformações – desencadeia na gestante e também na família a vivência de emoções intensas e específicas.

Gláucia Rosana Guerra Benute, psicóloga da Divisão de Psicologia e da

Clínica Obstétrica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da

Universidade de São Paulo, citada pela autora referida anteriormente, consegue

10 LIMA, op. cit., p.109.

89

delinear, de forma mais contundente ainda, os abalos psíquicos sofridos pela mulher

grávida de um feto anencéfalo, como se colhe do trecho abaixo transcrito, extraído

de estudo11 de sua autoria: O convívio social pode tornar-se uma realidade dolorosa para a gestante, pois a sociedade não está preparada para acolher a mulher nesse período tão delicado de sua vida. Compartilhar os problemas, as dificuldades vividas e o sofrimento são posturas difíceis para a gestante e, em geral, não aceitas socialmente. A mulher pode sentir-se em dúvida quanto a expor os reais problemas ou mantê-los em segredo. Muitas vezes, ela opta por isolar-se e fugir do contato social. Tais experiências, quando intensas, podem favorecer o aparecimento da depressão.

A gravidez de feto anencéfalo, portanto, implica intenso sofrimento metal à

mulher12, conforme foi possível verificar da literatura especializada consultada.

Diante dos riscos físicos que a gravidez de feto anencéfalo pode ocasionar à

gestante, e diante dos prejuízos psíquicos que esta modalidade de prenhez pode

gerar à mulher que manifesta o desejo de interromper a gravidez, representando

verdadeira tortura, física e mental, à mãe, do ponto de vista médico, a indicação é

pela interrupção da gravidez do feto anencéfalo.

Assim, verificamos que no embate entre os direitos aqui mencionados,

estando de um lado a “pseudo-vida” do feto anencéfalo, que não possui atividade

cerebral e jamais irá desenvolver qualquer atividade cerebral relativa à cognição e à

emoção, e de outro, a integridade física e psíquica da mulher, ambas potencialmente

ameaçadas pela gravidez de feto com a malformação congênita em lume, existe a

viabilidade médica da interrupção da gestação de anencéfalo.

A interrupção da gravidez no caso de fetos anencefálicos, do ponto de vista

médico, sempre voltado ao bem da vida, é verdadeiro tratamento terapêutico à

gestante, pois evita possíveis prejuízos a sua saúde, sem qualquer implicação para

o feto, que de qualquer forma, está fadado à inviabilidade da vida, tanto intra-uterina

quanto extra-uterina. Por tal motivo, passemos, doravante, a denominar a

interrupção da gravidez do feto anencefálico de antecipação terapêutica do parto.

Do ponto de vista psicológico, avaliando a saúde mental, a antecipação do

parto do feto anencéfalo também assume a feição de tratamento terapêutico à

11 BENUTE, Gláucia Rosana Guerra. Do diagnóstico de malformação fetal letal à interrupção da

gravidez: psicodiagnóstico e intervenção. Tese (Doutorado em Obstetrícia) – Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – USP, São Paulo, 2005, página 103, apud LIMA, op. cit., p.109.

12 Aqui é importante repisar que o universo de gestante em análise é restrito àquelas que manifestam desejo de interromper a gravidez após ciência do diagnóstico médico de anencefalia fetal.

90

gestante. Neste sentido, é relevante mencionar que a maior parte das gestantes que

decidem pela interrupção da gravidez, por meio da obtenção da necessária

autorização judicial, conforme estudos estatísticos específicos, não se mostraram

arrependidas, e não tiveram mudanças em seu relacionamento matrimonial,

revelando que as alterações psíquicas nestes caso foram pequenas.

Exemplificativamente, cabe ressaltar o estudo estatístico13 realizado por

Gláucia Rosana Guerra Benute, Roseli Mieko Yamamoto Nomura, Mara Cristina

Souza de Lucia e Marcelo Zugaib, envolvendo pacientes gestantes, atendidas na

Clínica Obstétrica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da

Universidade de São Paulo, que receberam o diagnóstico de malformação fetal letal,

no período de janeiro de 2001 a dezembro de 2003.

Segundo este estudo, no período mencionado, 81 (oitenta e uma) pacientes

pesquisadas, todas com gravidez de feto com malformação letal, ajuizaram pedido

judicial para interrupção da gravidez. Destas, apenas 35 (trinta e cinco) retornaram

para participação em pesquisa semidirigida, e puderam, assim, colaborar com os

objetivos do estudo em referência. Deste universo de 35 (trinta e cinco) gestantes,

25 (vinte e cinco) geraram fetos anencefálicos.

Segundo os resultados do estudo em questão, 91,4% (noventa e um por

cento e quatro décimos) das pacientes que participaram da pesquisa adotariam

novamente o procedimento de interrupção da gestação em caso de nova gravidez

com malformação fetal letal. Outrossim, cabe ressaltar que do mesmo universo de

pacientes pesquisadas, 62,9% (sessenta e dois por cento e nove décimos) das

entrevistadas afirmaram que após a intervenção médica não tiveram qualquer

alteração no relacionamento conjugal, enquanto que 28,6% (vinte e oito por cento e

seis décimos) das pacientes afirmaram que seu relacionamento conjugal melhorou

após a interrupção da gravidez.

Estes são elementos estatísticos que comprovam que a submissão da

gestante à interrupção da gravidez em caso de malformações fetais letais, como a

anencefalia, por exemplo, tem como conseqüência a manutenção do equilíbrio

psíquico da mulher.

13 BENUTE, Gláucia Rosana Guerra et al. Interrupção da gestação após o diagnóstico de

malformação fetal letal: aspectos emocionais. Revista Bras. de Ginecologia e Obstetrícia. Rio de Janeiro, n. 28, p. 10-17, 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/%0D/rbgo/v28n1/29588.pdf>. Acesso em: 16 jul. 2009.

91

A partir dos resultados obtidos pelo estudo acima referido, verifica-se que do

ponto de vista psíquico, emocional, a interrupção da gravidez dos fetos

anencefálicos consubstanciou-se em uma maneira de garantir a integridade mental

da mulher, ou ao menos, foi a forma de minorar todo o sofrimento psicológico sofrido

diante do diagnóstico da malformação congênita em questão.

Caso ocorressem alterações psíquicas com a submissão das gestantes aos

procedimentos médicos interruptivos da gestação, estas não teriam,

majoritariamente, manifestado a intenção de realizar novamente o procedimento em

caso de nova gravidez anormal, e tampouco teriam conseguido manter estável o

relacionamento conjugal com seus parceiros.

Assim, verificamos, em atenção aos dados médicos e psicológicos

analisados, que a antecipação terapêutica do parto de anencéfalos possui plena

viabilidade médica, sendo inclusive recomendável para que a gestante tenha

reduzidos os potenciais riscos a sua saúde que representa a gravidez de um feto

anencéfalo.

3.2 Do conflito de direitos: “vida” do anencéfalo versus dignidade, saúde e liberdade da gestante

Verificada a viabilidade médica da antecipação terapêutica do parto dos

anencéfalos, resta-nos estabelecer se existe viabilidade ética e jurídica desta

hipótese. Antes de passarmos à verificação da viabilidade da antecipação do parto

dos fetos acometidos por anencefalia sobre estes dois novos enfoques, necessário,

num primeiro momento, estabelecermos os direitos que se encontram em conflito

nesta hipótese.

Quando se questiona acerca da possibilidade de antecipar-se o parto de um

anencéfalo, logo emerge o conflito de direitos que será enfrentado: temos, por um

prisma, o direito à “vida” do feto acometido pela malformação congênita em questão,

e por outra faceta, o direito à dignidade, à saúde e à liberdade da gestante que

pretende interromper sua gravidez.

Assim, para tentar chegar a alguma conclusão sobre a resolução deste

aparente conflito de direitos, de forma a propiciar a análise da viabilidade ética e

92

jurídica da antecipação do parto dos fetos acometidos por anencefalia, procedermos

à análise individualizada dos direitos em conflito.

3.2.1 Do direito à vida do feto acometido por anencefalia

O direito mais importante de que pode gozar qualquer pessoa, em qualquer

país do mundo que seja, é o direito à vida, pois é a partir de seu efetivo exercício

que emergirão todos os outros direitos possíveis e imaginários, bem como, a

faculdade de o indivíduo poder exercê-los.

Em nosso país, a Constituição Federal confere especial proteção ao direito à

vida, garantindo no caput14 de seu artigo 5º, a inviolabilidade deste direito. O direito à

vida, no corpo de nossa Constituição Pátria, deve ser entendido em sua

ambivalência: deve ser entendido como direito de defesa, já que ao Estado compete

não intervir na esfera particular, permitindo o livre exercício e gozo da vida pelo

particular; e deve, ainda, ser entendido como direito de prestação, já que cabe ao

Estado, da mesma forma, garantir os meios jurídicos e materiais para que o

indivíduo possa gozar de uma vida digna.

Exatamente neste sentido entende Alexandre de Moraes15, ao afirma que [...] O direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que se constitui em pré-requisito à existência de todos os demais direitos. A Constituição Federal proclama, portanto, o direito à vida, cabendo ao Estado assegurá-lo em sua dupla acepção, sendo a primeira relacionada ao direito de continuar vivo e a segunda de se ter vida digna quanto à subsistência.

Da forma semelhante, Carolina Alves de Souza Lima16 define o direito à vida.

Mas esta autora, analisando a Constituição Federal, faz uma observação perspicaz

no que se refere à proteção conferida pela Carta Magna à vida, como se observa do

trecho abaixo destacado:

14 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos

brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] (grifos nossos).

15 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2002. p.63-64. 16 LIMA, op. cit., p.35.

93

O bem jurídico dos seres humanos por excelência é a vida. Somente a partir da existência da vida é que o indivíduo passa a ser titular de todos os outros direitos, uma vez que a vida é a fonte primária para a titularidade de direitos. De nada adiantaria a Lei Maior tutelar os outros direitos fundamentais, se não erigisse a vida humana nesse rol de proteção. [...] Ao consagrar o direito à vida, a Constituição não faz distinção entre a vida intra e extra-uterina, e não atribui valor maior à vida extra-uterina em relação à vida intra-uterina, como o faz a legislação infraconstitucional, em particular a legislação penal.

Tendo-se em vista pura e simplesmente o direito à vida, ainda mais colocado

da forma como a Constituição Federal brasileira o faz, elevando-o a um grau hierárquico intangível pelos demais direitos, seria possível argumentar-se que, em conflito com outros direitos fundamentais da gestante, que não possuem a

relevância que a vida tem, o direito à vida do anencéfalo prevaleceria, ainda mais sob a perspectiva de que eventuais riscos à saúde materna poderiam ser prevenidos ou posteriormente reparados ou minorados pelas ciências médicas.

Mas no caso do feto acometido por anencefalia, o direito à vida deve ser valorado com reservas, deve ser relativizado em conflito com os direitos fundamentais maternos. Faz-se essa ressalva de acordo com o que foi demonstrado

no segundo capítulo deste presente trabalho, pois, nos termos das conclusões obtidas em tal tópico, o anencéfalo não possui vida nos termos do que prevê o ordenamento jurídico pátrio, tendo-se em vista que não há atividade elétrica

cerebral, não há ondas eletroencefalográficas. Tendo-se em vista que a vida só começa com a propagação das ondas elétricas cerebrais, aferíveis por eletroencefalograma, de acordo com o raciocínio

demonstrado capítulo anterior, e tomando-se em consideração que o anencéfalo não emite estas correntes elétrica, consoante se infere da figura 03 desta presente dissertação, não há que se falar em vida diante de um feto acometido por

anencefalia. Outrossim, em razão da ausência de desenvolvimento completo do sistema nervoso, o anencéfalo é morfologicamente impossibilitado de desempenhar as

funções cerebrais superiores, como cognição, memória, comunicação, emotividade e tantas outras que caracterizam a espécie humana, e a diferenciam das demais espécies animais. O anencéfalo apenas possui breve vida vegetativa, extremamente

dependente do corpo materno. Logo, por esta outra faceta de análise da malformação em tela, impossível cogitar-se em vida humana propriamente dita. Em razão destas peculiaridades da anencefalia, que redundam na ausência

94

de vida, nos termos do ordenamento jurídico pátrio, pode-se afirmar que a vida do

anencéfalo, na realidade, é uma pseudo-vida, pois apenas existe no âmbito vegetativo17, e na dependência do organismo materno para sua curta manutenção. Assim, o direito à “vida” do anencéfalo não deve, apenas em razão da

prevalência deste direito em relação aos demais direitos, sobrepor-se aos direitos fundamentais da gestante quando em conflito direto com estes. Deve, sim, ser analisado e valorado com reservas, em razão da própria inexistência de vida.

3.2.2 O princípio da dignidade humana e sua aplicação à gestante

A dignidade humana é uma das bases do estado democrático de direito brasileiro. E esta condição está explicitamente definida no artigo 1º da Constituição

Federal pátria, como se observa da redação deste dispositivo constitucional, abaixo transcrito:

Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. (grifos nossos)

A elevação deste direito como base do Estado brasileiro é o grande marco

ético do Direito pátrio, pois é condição inerente à garantia da dignidade humana o

fornecimento, pelo Estado, dos meios materiais e jurídicos para concretização da

existência do ser humano. A dignidade, princípio constitucional diretamente derivado

da ética, impõe ao Direito a finalidade de servir18 ao homem, entendendo este como

17 Nos termos do que foi defendido no segundo capítulo desta dissertação, a teoria de início da vida

humana, no ordenamento jurídico brasileiro é a teoria neurológica. A mera função vegetativa de um organismo não é suficiente para delimitação do início da vida.

18 Corroborando a ilação de que este princípio constitucional impõe ao Estado a função de garantir o bem (lato sensu) do indivíduo, considerando este como fim da atividade estatal, Alexandre de Moraes afirma que a dignidade da pessoa humana “[...] concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. Esse fundamento afasta a idéia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual. A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo o estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.” (MORAES, op. cit., p.50).

95

objetivo finalístico da sociedade. Mais do que um direito constitucional dos

indivíduos, a dignidade da pessoa tem sido entendida como princípio constitucional.

Jorge Miranda19, constitucionalista português, fazendo um paralelo entre a Lei

Maior lusitana e brasileira, aponta a importância da dignidade humana como

fundamento de um estado democrático de direito ao mencionar que A constituição confere uma unidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema de direitos fundamentais. E ela repousa na dignidade da pessoa humana, proclamada no art. 1º, ou seja, na concepção que faz da pessoa fundamento e fim da sociedade e do Estado.

Carolina A. S. Lima20, invocando lições de José Afonso da Silva, ressalta a

relevância da constitucionalização da dignidade humana para a humanização do

Estado brasileiro. Segundo esta autora, O art. 1º, ao eleger a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado brasileiro, revela o fundamento e a essência do próprio Direito, que é servir ao homem para que ele tenha uma vida digna. O princípio da dignidade da pessoa humana foi erigido ao patamar de princípio constitucional fundamental expresso, por força desse artigo. Já a dignidade da pessoa humana configura valor supremo, uma vez que é atributo de todo ser humano, independentemente das diferenças de sexo, idade, raça, religião, classe social, opção política ou filosófica, nacionalidade etc. Referido dispositivo demonstra que o constituinte de 1988 reconheceu expressa e categoricamente que o Estado brasileiro existe em função da pessoa humana, e não o contrário, uma vez que o ser humano constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal.

O princípio da dignidade humana é a materialização da ética no ordenamento

jurídico pátrio, na medida funciona como limite mínimo dos direitos fundamentais

que devem ser assegurados às pessoas, não admitindo, por outro lado, limitações

ao exercício dos direitos garantidos. Este princípio busca, portanto, o bem do

cidadão perante seu sistema jurídico pátrio.

No entanto, em que pese a relevância da dignidade como fundamento do

Estado brasileiro, a doutrina constitucionalista diverge no que diz respeito à condição

de princípio absoluto da dignidade humana. Robert Alexy21, constitucionalista

espanhol, colocou em dúvida o absolutismo da dignidade humana ao defender que,

na verdade, esse valor seria relativo, pois comportaria dois prismas: o de princípio e

o de regra. A relatividade da dignidade humana adviria de sua faceta de regra, pois

19 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 2000, t. IV. p.180. 20 LIMA, op. cit., p.23. 21 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madri: Centro de Estudios

Constitucionales, 1993.

96

apenas seria possível aferir-se sua prevalência sobre as demais regras, na análise

do caso concreto, no qual conflitaria com outras regras, sendo possível que outra

prevalecesse sobre ela. Gilmar Ferreira Mendes, por outro lado, defende a tese do absolutismo do

princípio da dignidade humana, asseverando que a única hipótese de limitação da

dignidade humana é quando esta entra em conflito com o mesmo valor de outros

indivíduos. Neste sentido, este autor22 ressalta que, Por isso, acreditamos que diante desse “instigante e tormentoso problema” – é assim que ele o qualifica – saiu-se melhor o arguto Ingo Sarlet, ao dizer que sendo todas as pessoas iguais em dignidade (embora não se portem de modo totalmente digno) e existindo, portanto, um dever de respeito recíproco (de cada pessoa) da dignidade alheia (para além do dever de respeito e proteção do Poder Público e da sociedade), poder-se-á imaginar a hipótese de um conflito direto entre as dignidades de pessoas diversas, impondo – também nesses casos – o estabelecimento de uma concordância prática (ou harmonização), que necessariamente implica a hierarquização ou a ponderação dos bens em rota conflitiva, neste caso, do mesmo bem (dignidade) concretamente atribuído a dois ou mais titulares. Numa palavra, se bem entendemos, a dignidade da pessoa humana, porque sobreposta a todos do bens, valores ou princípios constitucionais, em nenhuma hipótese é suscetível de confrontar-se com eles, mas tão-somente consigo mesma, naqueles casos-limite em que dois ou mais indivíduos – ontologicamente dotados de igual dignidade – entrem em conflitos capazes de causar lesões mútuas a esse valor supremo.

O princípio da dignidade da pessoa preconiza que os indivíduos devem ter

suas individualidades respeitadas, devem ter suas autonomias respeitadas, não

apenas pelos demais membros da sociedade, como também pelo Estado. Esse

princípio estabelece que o indivíduo é não o meio, mas a finalidade da atividade

estatal, sendo condição indispensável ao estado democrático de Direito que a tem

como fundamento o respeito à autonomia da pessoa. Corroborando esta ilação,

Fábio Konder Comparato23 ressalta que a dignidade da pessoa “[...] resulta também

do fato de que, pela sua vontade racional, só a pessoa vive em condições de

autonomia, isto é, como ser capaz de guiar-se pelas leis que ele próprio edita”.

A dignidade da pessoa humana implica ao Estado e à sociedade, como um

todo, o respeito à individualidade de cada um, a fim de possibilitar com que cada

pessoa possa gozar de seus direitos fundamentais sem interferências alheias, pois a

22 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso

de direito constitucional. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p.152. 23 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva,

1999. p.20.

97

realização plena de cada indivíduo é a mais pura finalidade do Estado.

Na hipótese da gravidez de feto anencéfalo, a gestante tem a possibilidade

de, em sua individualidade e autonomia, tomar a decisão que melhor lhe aprouver,

desde que não proibida pelo direito positivado, para evitar maiores danos ao

exercício de seus outros direitos. A partir do momento em que se verifica que a

gestação de um feto anencéfalo representa um potencial risco à saúde física e

mental da mulher, como aqui já demonstrado, à liberdade e autonomia, com base no

princípio da dignidade humana, a gestante tem a faculdade de decidir pela

interrupção da gestação.

Como a finalidade do Estado, tendo-se em mente o princípio da dignidade

humana, é a realização do indivíduo, obtida por meio do gozo de seus direitos

fundamentais, cabe ao ente estatal garantir os meios jurídicos e materiais para

exercício de tais direitos. No caso da mulher grávida de um feto portador de

anencefalia, a observância do princípio da dignidade humana pelo Estado se dá com

a existência de instrumentos jurídicos que garantam à gestante a possibilidade de

antecipar o parto do feto com a malformação em análise, ou com a não interferência

do Estado, de qualquer modo, na decisão da mulher de proceder à interrupção da

gestação do feto com esta anomalia.

Carolina A. S. Lima24, entendendo que o princípio da dignidade humana

compele o Estado a garantir a fruição dos direitos fundamentais pelo indivíduo,

reafirma que O respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana é um dos parâmetros para aferir a legitimidade substancial de determinada ordem jurídica. No Estado Democrático de Direito, o respeito e a proteção da dignidade da pessoa humana são metas permanentes. Referido princípio constitucional protege o ser humano, para que ele seja sempre concebido como um fim em si mesmo. O respeito ao princípio está diretamente relacionado à tutela dos direitos fundamentais. Se estes não forem reconhecidos e minimamente assegurados, não há real respeito à dignidade da pessoa humana, podendo esta deixar de ser sujeito de direitos e passar a ser mero objeto de arbítrio e injustiças. A concretização dos direitos fundamentais é a concretização da própria dignidade da pessoa humana. Em cada direito fundamental faz-se presente um conteúdo ou, ao menos, alguma projeção da dignidade da pessoa. O não-reconhecimento dos direitos fundamentais à pessoa humana representa a negação da própria dignidade. Por isso, o princípio da dignidade da pessoa humana expressa um valor informador de toda a ordem jurídica.

24 LIMA, op. cit., p.129.

98

Desta forma, fica claro que a gravidez de um feto anencefálico, com esteio do

princípio da dignidade da pessoa, faz nascer à gestante a faculdade de interromper

a referida gravidez, antecipando terapeuticamente o parto do feto malformado, de

forma com que seja possível à mulher gozar todos os seus direitos fundamentais,

sem qualquer interferência do Estado.

3.2.3 Do direito à saúde da gestante

A Constituição Federal, em seus artigos 6º e 19625, preconiza como direito da

pessoa o direito à saúde. Este direito, conforme reconhecido pelo artigo 2º26, da Lei

Federal 8.080, de 19 de setembro de 1990, que dispõe sobre as condições para a

promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos

serviços correspondentes, dentre outras providências, trata-se de direito

fundamental da pessoa.

O direito à saúde é um direito fundamental ambivalente, constituindo-se como

direito de defesa, o que veda ao Estado ingerir na esfera particular para limitar tal

direito, e como direito de prestação, competindo ao Estado fornecer os meios

jurídicos e materiais para fruição de tal direito.

A saúde, hodiernamente, é entendida numa ampla definição, englobando não

apenas a ausência de doença, mas a garantia da higidez de todas as integridades

da pessoa, físico-funcionais – nestas compreendidas a familiar e social. Neste

sentido, Carolina A. S. Lima27 ressalta que A definição atual de saúde, pelas ciências médicas e pela psicologia, é ampla e abrangente, porque elas entendem que o ser humano deve ser compreendido na sua dimensão holística, ou seja, em sua totalidade. Seguindo essa visão contemporânea, a Organização Mundial de Saúde conceitua saúde como o completo bem-estar físico, psíquico e social. De acordo com essa organização, a saúde é concebida de forma abrangente e

25 Art. 6o São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a

previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.(Redação dada pela Emenda Constitucional n. 26, de 2000) Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

26 Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.

27 LIMA, op. cit., p.108.

99

sua constatação depende da análise de vários aspectos do bem-estar do ser humano, não se limitando à ausência de doença.

Em que pese o direito à saúde estar incluído no capítulo dos direitos sociais,

na Constituição Federal, é direito fundamental da pessoa, topicamente localizado em

tal capítulo para o fim de reduzir a desigualdade de sua fruição entre as diversas

classes da sociedade. A este respeito, Gilmar Ferreira Mendes28 entende que Distintivamente dos direitos civis e políticos, que tinham por objeto e/ou finalidade preservar determinados bens ou valores reputados naturais, inalienáveis e universais – como a vida, a liberdade e a propriedade –, e, como titulares sujeitos racionais, abstratamente declarados livres e iguais perante a lei, uma presunção de que a realidade histórica prontamente demonstrou ser inconsistente, diversamente dos abstratos direitos de primeira geração, os direitos ditos sociais são concebidos como instrumentos destinados á efetiva redução e/ou supressão de desigualdades, segundo a regra de que se deve tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade.

A partir de tais entendimentos, verificamos que é deve do Estado fornecer os

meios para que a pessoa possa garantir sua saúde, bem como, é dever do Estado

não submeter as pessoas a tratamentos degradantes, que possam macular sua

saúde, tanto no que se refere à faceta física, como no que se refere à faceta

psíquica.

Quando nos deparamos com a hipótese de gravidez de feto anencéfalo,

podemos com toda a certeza afirmar que esta modalidade de prenhez representa

diversos riscos à saúde da gestante, como já demonstrado em tópico anterior. Como

já referido, a gravidez de feto anencéfalo significa iminentes riscos à saúde física da

gestante, ao mesmo tempo em que implica prováveis danos à psique da mulher, que

ficará submetida a intenso sofrimento caso deseje se ver livre da gravidez de um

feto que inevitavelmente estará fadado à inviabilidade.

Partindo desta análise, há de se ter em mente que o Estado precisa intervir,

fornecendo os meios materiais para garantia da saúde da gestante, ao mesmo

tempo em que deve evitar qualquer interferência nas decisões da mulher atinentes à

manutenção de sua higidez física e mental.

Assim, é inevitável chegar à conclusão de que a gravidez de feto anencéfalo

representa grave e iminente lesão ao direito à saúde da gestante.

28 MENDES, op. cit., p.712.

100

3.2.4 Do direito de liberdade e autonomia da gestante

A Constituição Federal brasileira, ao estabelecer, em seu artigo 5º, inciso II,

que “[...] ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em

virtude de lei”, consagra o direito à liberdade privada, vinculado à autonomia

individual, determinando que os cidadãos apenas precisam vergar sua vontade às

obrigações legais, ao mesmo tempo em que estabelece que as proibições de

conduta devem necessariamente estar delimitadas por lei. Este é o princípio

constitucional da legalidade, que ao estabelecer parâmetros e limitações à conduta

dos particulares, acaba sendo, ainda, o corolário da liberdade individual no

ordenamento jurídico pátrio.

Acerca do direito de liberdade insculpido no artigo 5º, inciso II, da Lei Maior,

Carolina A. S. Lima29 ressalta que Tal dispositivo cuida do princípio da legalidade, segundo o qual não sendo a conduta obrigatória ou proibida pelo ordenamento jurídico, necessariamente é conduta permitida para os particulares. Todos têm direito a liberdade de fazer e de não fazer o que bem entender, salvo quando a ordem jurídica determinar o contrário. No entanto, o ato normativo que obriga ou proíbe há de ser legítimo e, por isso, deve respeitar os princípios traçados na Constituição referentes aos fundamentos do Estado Democrático de Direito.

José Afonso da Silva30, da mesma forma, afirma que o inciso II, do artigo 5º,

da Constituição Federal É um dos mais importantes do direito constitucional brasileiro, porque, além de conter a previsão de liberdade de ação (liberdade-base das demais) confere fundamento jurídico às liberdades individuais e correlaciona liberdade e legalidade. Dele se extrai a idéia de que a liberdade, em qualquer de suas formas, só pode sofrer restrições por normas jurídicas preceptivas (que impõe uma abstenção), provenientes do poder Legislativo e elaboradas segundo o procedimento estabelecido na Constituição. Quer dizer: a liberdade só pode ser condicionada por um sistema de legalidade legítima.

Desta forma, o indivíduo apenas está obrigado a, ou proibido de, realizar

determinadas condutas se existir lei válida e vigente determinando das respectivas

29 LIMA, op. cit., p.120. 30 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 30. ed. São Paulo: Malheiros,

2008. p.239.

101

formas, sendo esta uma forma de controlar as arbitrariedades31 do Estado.

Na hipótese da gravidez de fetos anencéfalos, a decisão da gestante pela

interrupção terapêutica do parto nada mais é do que o exercício regular de seu

direito de liberdade, pois, nesse caso, não existe lei que proíba tal conduta.

Conforme será melhor demonstrado no 5º capítulo desta dissertação de

mestrado, a interrupção terapêutica do parto dos fetos acometidos por anencefalia

não sofre qualquer restrição legal, sobretudo pelo fato de inexistir vedação legal para

exercício deste procedimento médico. Já foi demonstrado que a interrupção da

gravidez de feto anencéfalo não equivale ao abortamento, porque não existe morte

induzida do produto da concepção, sobretudo porque este jamais manifestou vida

propriamente dita.

Inexistindo previsão penal específica para a antecipação terapêutica do parto

de anencéfalos, não há que se falar em proibição para o exercício de tal conduta.

Desta forma verificamos que, na hipótese de a mulher desejar a interrupção da

gravidez de feto anencéfalo, a manutenção desta prenhez é manifesta ofensa ao

seu direito de liberdade e autonomia individual.

3.3 Da resolução do conflito de direitos, na hipótese posta à análise, sob a perspectiva ética e bioética

Diante da demonstração realizada no tópico anterior, restou claro, na hipótese

de gravidez de feto anencéfalo, em relação à qual a gestante manifeste o desejo de

interromper a prenhez, que configura-se o conflito entre: de um lado, o direito à

“vida” do feto anencéfalo, e de outro lado, o direito à dignidade, saúde e liberdade da

gestante.

31 Alexandre de Moraes, acerca do princípio da legalidade, corolário da liberdade individual,

mencionar ser este um limitador do arbítrio estatal. Segundo este autor, “O art. 5º, II, da Constituição Federal, preceitua que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Tal princípio visa combater o poder arbitrário do Estado. Só por meio das espécies normativas devidamente elaboradas conforme as regras de processo legislativo constitucional, podem-se criar obrigações para o indivíduo, pois são expressão da vontade geral. Com o primado soberano da lei, cessa o privilégio da vontade caprichosa do detentor do poder em benefício da lei. Conforme salientam Celso Bastos e Ives Gandra, no fundo, portanto, o princípio da legalidade mais se aproxima de uma garantia constitucional do que de um direito individual, já que ele não tutela, especificamente, um bem da vida, mas assegura ao particular a prerrogativa de repelir as injunções que lhe sejam impostas por uma outra via que não seja a da lei [...]” (MORAES, op. cit., p.69).

102

E como resolver este embate de direitos? Pelo menos sob o prisma da ética,

parece não haver grandes dificuldades na resolução da questão.

Recuperando a idéia, defendida no primeiro capítulo desta dissertação de

mestrado, de que a ética é um conjunto de valores coletivos, atemporais e

universais, que fornece as diretrizes de uma vida social harmônica entre os

membros da sociedade, buscando sempre a consecução do bem comum e geral

direcionados, neste embate de direitos, deve ser analisada a possibilidade de

consecução do bem aos dois pólos do embate em lume.

O primeiro dos lados a ser analisado neste embate é o do feto anencéfalo. A

prevalência do direito à vida do feto, em detrimento dos direitos à dignidade, saúde e

liberdade da mulher, resultará em um bem concreto ao anencefálico? A resposta a

esta pergunta deve ser dada analisando, portanto, a espera do termo habitual da

gravidez de tal feto.

Como já mencionado no capítulo segundo, considerando-se a conceituação

de vida extraída do ordenamento jurídico pátrio, não se pode falar de vida em

relação ao anencéfalo, sobretudo porque este feto não possui ondas elétricas

cerebrais – eletroencefalográficas – que permitam afirmar a existência de vida. Por

outro lado, após o nascimento deste feto, na hipótese de as funções vegetativas

persistirem após o parto, não será possível a este “indivíduo” desenvolver qualquer

das atividades inerentes à condição humana, que possibilitam a diferenciação do

homem dos demais animais na escala evolutiva, como cognição, comunicação ou

afeto, por exemplo.

Assim, a espera pelo nascimento do anencéfalo, na hipótese de persistência

das funções vegetativas após o parto, não trará qualquer benefício real ao feto, já

que este jamais conseguirá manifestar qualquer sinal de vida, ou de exercício das

prerrogativas concernentes à condição humana.

E pela perspectiva da gestante? A prevalência de seus direitos à dignidade,

saúde e liberdade, em face do direito à vida do anencéfalo, irá trazer-lhe algum

benefício?

Cremos que sim, pois a supremacia dos direitos da gestante sobre o direito à

vida do anencéfalo, que ocorrerá no momento da antecipação terapêutica do parto,

irá evitar diversos males, de ordem física e psíquica, à saúde da mulher, bem como,

irá materializar o exercício de sua dignidade e autonomia, enquanto ser humano.

Desta forma, parece que, do ponto de vista ético, apenas haverá a garantia de

103

algum bem ao titular de direito envolvido neste embate no caso de prevalência dos

direitos da mulher sobre o direito à vida do anencéfalo.

Para tornar este quadro ainda mais evidente, cabe ainda realizar a análise do

presente conflito de direitos à luz da bioética, ramo da ética, e de seus princípios.

Inicialmente, importante retomar a definição de bioética, podendo esta ser entendida

como a resposta da ética às novas situações carreadas pelas inovações

tecnológicas, sobretudo no campo da saúde.

Do ponto de vista bioético, a prevalência do direito à vida do anencéfalo num

embate com os direitos da gestante é um absurdo, sobretudo se atentarmos para o

fato de que todo o desenvolvimento desta ética aplicada é circunscrito ao homem,

dada sua natureza antropocêntrica, e no caso dos anencéfalos, jamais será possível

falar de vida humana a ser defendida.

Agora, analisando-se bioeticamente a colisão de direitos sob o prisma da

prevalência dos direitos da mulher sobre o direito à vida do feto, observar-se-á que

os princípios da bioética serão capazes de solucionar a questão, em favor da

gestante.

Tomando-se por base o princípio bioético da autonomia, o qual preconiza que

o profissional médico deve observar a vontade do paciente, considerando sua

dignidade, convicções pessoais e crenças religiosas, verificamos que apenas será

possível o respeito à autonomia e liberdade da gestante, se esta se manifestar

favoravelmente pela interrupção da gravidez do feto com anencefalia. Isso porque,

se acaso respeitada uma suposta vontade do feto pela permanência de suas

funções vegetativas – sendo esta vontade uma dedução lógica do direito à vida –, os

esforços dos profissionais médicos envolvidos no caso jamais se reverterão num

benefício ao feto, pois este jamais poderá desenvolver sua consciência ou desejos,

jamais poderá desenvolver qualquer atividade característica da espécie humana.

Assim, pelo princípio da autonomia, devem prevalecer os direitos da gestante,

em detrimento do direito à vida do feto.

Lançando mão dos princípios bioéticos da beneficência e da não-

maleficência, para analisar o embate de direitos, princípios estes baseados na

tradição hipocrática de que o profissional médico deve lançar mão de todo o seu

conhecimento para buscar a cura ou o restabelecimento do “enfermo”, evitando-lhe

quaisquer males diversos dos trazidos pela própria enfermidade, verifica-se que

devem prevalecer, no caso, os direitos da gestante, já que os esforços médicos,

104

consubstanciados na interrupção da gestação do feto anencéfalo, irão evitar danos à

integridade física e mental da mulher, enquanto não há absolutamente nada que a

medicina ou as demais ciências médicas possam fazer para reverter a inevitável

falência completa do feto anencéfalo.

Como já demonstrado ao longo deste presente capítulo, a interrupção da

gravidez do anencéfalo irá evitar potenciais e iminentes riscos à integridade física e

mental da mulher, pois esta não ficará sujeitas às negativas conseqüências da

continuidade da gravidez do feto malformado, e tampouco, irá sofrer as nefastas

derivações psicológicas que a gravidez de um feto completamente inviável

representam.

Finalmente, analisando o embate de direitos com supedâneo no princípio

bioético da justiça, que determina imparcialidade na distribuição dos riscos e

benefícios da prática médica pelos profissionais da área, fica clarividente a

prevalência dos direitos da gestante, em detrimento do direito à vida do anencéfalo,

já que existem medidas que podem ser tomadas pelo médico para garantir a

dignidade e saúde da mulher, enquanto não existe qualquer procedimento ou terapia

que possa reverter o quadro de falência completa do anencéfalo. Ademais, a

permanência do feto anencéfalo no ventre materno representa severos riscos à

saúde da mulher, sendo imperiosa a conclusão de que a medida a ser tomada é a

antecipação terapêutica do feto acometido por esta malformação letal.

Desta forma, diante da demonstração aqui alinhavada, pode-se concluir que

existe viabilidade ética e bioética para amparar a possibilidade de antecipação do

parto de fetos anencéfalos, já que o único bem possível a ser realizado é em favor

da gestante, enquanto que, em relação ao feto mal formado, não há qualquer ato de

benevolência que possa alterar seu quadro de ausência de vida e inevitável

perecimento das funções vegetativas.

3.4 Da resolução do conflito de direitos, na hipótese posta à análise, sob a perspectiva jurídica

Já demonstrada a viabilidade ética da possibilidade de antecipar-se,

terapeuticamente, o parto dos fetos anencéfalos, fica pendente a análise jurídica dos

105

direitos conflitantes, neste caso. Como resolver, então, do ponto de vista jurídico, o

conflito entre o direito à vida do anencéfalo e os direitos à dignidade, saúde e

autonomia da gestante?

Buscar-se-á a resolução jurídica deste conflito de direitos fundamentais por

duas óticas diferentes, as quais serão demonstradas na seqüencia.

3.4.1 Da utilização dos costumes como instrumento de resolução do conflito de

direitos fundamentais

Quando se verifica a possibilidade jurídica de se interromper a gravidez de um

feto anencefálico, inicialmente deve verificar-se se existe alguma proibição legal, de

ordem criminal, pertinente à realização desta conduta.

Num primeiro momento, poder-se-ia cogitar de que esta conduta incidiria na

perpetração do crime de “aborto”. Acontece que, como foi verificado no capítulo

segundo desta dissertação, estas duas condutas são relevantemente diversas, pois

o abortamento implica, necessariamente, a morte do produto da concepção. Já no

que concerne à antecipação do parto do feto anencéfalo, não há que se falar em

morte do produto da concepção, especialmente pelo fato de este jamais ter

manifestado vida propriamente dita.

Essa ressalva feita neste momento, relativa ao não enquadramento da

interrupção da gestação do feto anencéfalo como abortamento, será melhor tratada

no quinto capítulo, e apenas é trazida neste momento por técnica de argumentação.

Repisando-se o fato de a interrupção da gravidez, neste caso, não se tratar

de crime de abortamento, e de que não existe qualquer outra norma, constitucional

ou infraconstitucional, que salvaguarde a vida do feto anencéfalo, ou que autorize à

grávida proceder à pronta retirada do feto acometido pela referida malformação letal,

não há uma norma específica que permita a resolução jurídica deste embate de

direitos. Mas como resolver este conflito, inexistindo norma jurídica que permita a

imediata decisão?

Uma possibilidade de resolver-se esta questão é recorrer-se aos costumes,

como demonstrado no primeiro capítulo desta dissertação. O artigo 4º, da Lei de

Introdução ao Código Civil, lei que regulamenta não apenas a aplicação da

106

legislação civil, mas também de todo ordenamento jurídico pátrio dispõe que “[...]

quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os

costumes e os princípios gerais de direito”.

A analogia não seria adequadamente aplicável para a resolução do presente

embate de direitos, pois as regras jurídicas dos casos mais semelhantes à hipótese

aqui tratada são as que dizem respeito ao crime de abortamento, e, como já

exaustivamente demonstrado, o “aborto” é conduta totalmente diversa da

interrupção – ou antecipação – da gravidez de fetos anencéfalos.

Os costumes, por outro lado, fornecem justa medida para tentar solucionar o

conflito entre direitos aqui em voga. Não apenas em razão de haver permissão legal

para tanto, mas em razão de os costumes serem a expressão popular da moral,

faceta, em determinada sociedade e em dado momento histórico, da ética.

Interessante ressaltar que, atualmente, em nível global, vive-se um momento

de moralização e retorno à ética nas relações sociais, tendo-se em vistas os

recentes escândalos de corrupção da política mundial, tendo-se em vista os graves

problemas ambientais que assolam o planeta, atentando-se para a exposição na

mídia mundial da negação dos direitos humanos, dentre vários outros motivos.

Obviamente, este movimento global influencia a todas as pessoas, e também

aos aplicadores do Direito pátrio, que lançarão mão dos princípios de conduta moral

e ética para selecionar os costumes que serão utilizados para colmatar as lacunas

da lei.

Tendo-se em vista as premissas estabelecidas no capítulo primeiro desta

presente dissertação, os costumes são diretamente derivados da moral, que por sua

vez, é oriunda da ética. Assim, os costumes, embasados na viabilidade ética, e

bioética, estampada no tópico anterior deste trabalho, são elementos que,

juridicamente, permitem afirmar a viabilidade jurídica da antecipação terapêutica do

parto dos fetos anencefálicos.

3.4.2 Da utilização do princípio da proporcionalidade para resolução do conflito de

direitos em análise

Outra ótica jurídica para verificação da viabilidade da antecipação do parto de

107

fetos acometidos por anencefalia, no embate entre o direito do anencéfalo à vida, e

os direitos da gestante à dignidade, saúde e autonomia, é o estabelecimento de

hierarquia entre os direitos fundamentais, para verificação, no caso concreto, de qual

deles deve prevalecer.

Avalizando este método de resolução de conflito de direitos fundamentais,

Gilmar Ferreira Mendes32 assevera que É possível que uma das fórmulas alvitradas para a solução de eventual conflito passe pela tentativa de estabelecimento de uma hierarquia entre direitos individuais. Embora não se possa negar que a unidade da Constituição não repugna a identificação de normas de diferentes pesos numa determinada ordem constitucional, é certo que a fixação de rigorosa hierarquia entre diferentes direitos individuais acabaria por desnaturá-los por completo, desfigurando, também, a Constituição como complexo normativo unitário e harmônico. Uma valoração hierárquica diferenciada de direitos individuais somente é admissível em casos especialíssimos. Assim, afirma-se no Direito alemão, que o postulado da dignidade humana (Grundsatz der Menschenwürde) integra os princípios fundamentais da ordem constitucional (tragende Konstitutionprinzipien) que balizam todas as demais disposições constitucionais (LF, arts. 1º, I, e 79, III). A garantia de eternidade contida no art. 79, III, confere-lhe posição especial em face de outros preceitos constitucionais. Da mesma forma, tem-se como inquestionável que o direito à vida tem precedência sobre os demais direitos individuais, uma vez que é pressuposto para o exercício de outros direitos.

No presente caso, diante da inexistência de regras específicas, além da

utilização dos costumes, para resolução jurídica do conflito de direitos fundamentais

postos à análise, estar-se diante de uma hipótese especial que, a despeito da

doutrina constitucional tradicional, permite a hierarquização dos direitos

fundamentais para verificação de qual deles deve prevalecer, como ressaltado por

Gilmar F. Mendes no trecho acima destacado.

Avalizando a metodologia de estabelecimento de valores entre os direitos

colidentes para verificação do direito prevalente, José Joaquim Gomes Canotilho33

propõe que [...] as regras de direito constitucional de conflitos devem construir-se com base na harmonização de direitos, e no caso de isso ser necessário, na prevalência (ou relação de prevalência) de um direito ou bem em relação ao outro (D1 P D2). Todavia, uma eventual relação de prevalência só em face das circunstâncias concretas se poderá determinar, pois só nestas condições é legítimo dizer que um direito tem mais peso do que outro (D1 P D2)C, pu seja, um direito (D1) prefere (P) outro (D2) em face das circunstâncias do caso (C).

32 MENDES, op. cit., p.343-344. 33 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed., Coimbra: Almedina, 1993.

p.646-647.

108

Note-se que este juízo de ponderação e esta valoração de prevalência tanto podem efectuar-se logo a nível legislativo (exemplo: o legislador exclui a ilicitude da interrupção da gravidez em caso de violação) como no momento da elaboração de uma norma de decisão para o caso concreto (exemplo: o juiz adia a discussão de julgamento perante as informações médicas da iminência de enfarte na pessoa do acusado).

Quando se exerce a valoração dos direitos fundamentais em conflito,

mediante atribuição de maior peso ao direito prevalente, deve-se ter em vista que o

direito a ser limitado apenas o será se inexistir forma de garantir o exercício do

direito de maior peso.

Mas com base em que deve ser realizada a verificação de prevalência do

direito de maior peso? Com base no princípio máximo constitucional da

proporcionalidade.

Apesar de o princípio da proporcionalidade não estar expresso na

Constituição Federal brasileira, ele é conseqüência direta dos fundamentos do

Estado Democrático de Direito, como por exemplo, do princípio da dignidade da

pessoa, pois é o princípio da justa medida, e isso é decorrência da humanização

constitucional do Estado.

Segundo Flávia de Almeida Montingelli Zanferdini34, “[...] a proporcionalidade

encerra conceito jurídico indeterminado, razão pela qual apresenta acentuada

capacidade expansiva e de assimilar novas realidades sociais”, traduzindo a idéia de

liberdade e limitação. A proporcionalidade35, portanto, pode ser definida como a

equalização de conflitos de mesma natureza.

No caso em análise, o princípio da proporcionalidade irá permitir com que se

verifique, dentre dos direitos colidentes em questão – o “direito à vida” do

anencéfalo, por um lado, e os direitos à dignidade, saúde e autonomia da gestante,

por outro – qual deles devem prevalecer, após a valoração de hierarquia entre eles.

34 ZANFERDINI, Flávia de Almeida Montingelli. Tendência universal de sumarização do processo

civil e a busca da tutela de urgência proporcional. 2007, 310 f. Tese (Doutorado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, São Paulo, 2007. p.230.

35 Carolina A. S. Lima, acerca do princípio da proporcionalidade, afirma que ele “está dentre aqueles princípios mais fáceis de compreender do que de definir. A expressão proporcionalidade tem o sentido literal de equilíbrio e de relação harmônica entre duas grandezas. O princípio, no âmbito jurídico, visa a aferir a constitucionalidade das medidas restritivas de direitos fundamentais. Por meio da sua aplicação, o intérprete avalia a correlação entre os fins visados e os meios empregados nos atos do Poder Público, nas situações de conflitos de direitos fundamentais. [...] as limitações e as restrições aos direitos fundamentais devem ser adequadas, necessárias e proporcionais (em sentido estrito), ou seja, de acordo com o que preceitua o referido princípio. Por isso, o princípio protege os indivíduos das intervenções estatais desnecessárias ou excessivas por parte do Poder Público.” (LIMA, op. cit., p.152-153).

109

A proporcionalidade, para verificação do direito prevalente, neste caso, é [...] a orientação deontológica de se buscar o meio mais idôneo, mais eqüitativo e menos excessivo nas variadas formulações do Direito, seja na via da legislação ou positivação das normas jurídicas, da administração pública dos interesse sociais, da aplicação judicial dos comandos normativos e, ainda, no campo das relações privadas, a fim de que o reconhecimento ou o sacrifício de um bem da vida não vá além do necessário ou, ao menos, do justo e aceitável em face de outro bem da vida ou de interesses contrapostos. A idéia (ou o ideário) da proporcionalidade persegue, assim, a justa e equânime distribuição de ônus e encargos, e também de bônus e vantagens, nos incontáveis contextos de disputas litígios e concorrências intersubjetivas.36

O princípio da proporcionalidade irá nos permitir, com base nas vantagens e

desvantagens do direito prevalente, verificar qual dos “lados da moeda” implicará em

menor37 prejuízo à sociedade, já que estamos nos referindo a embates de direitos

fundamentais.

No embate aqui analisado, fica claro que prevalecem os direitos fundamentais

à dignidade, saúde e autonomia da gestante em detrimento do direito à “vida” do

anencéfalo, pois numa escala de ponderação e atribuição de peso, verifica-se que

os direitos da mulher poderão ser exercidos e irão permitir a continuidade de sua

existência digna, ao passo que o direito à vida, se hipoteticamente garantido ao feto

anencéfalo, jamais poderá ser exercido, pois tal malformação letal não permite o

desenvolvimento de qualquer resquício de vida em tal feto.

Logo, a ponderação de peso entre os direitos colidentes pende, amplamente,

em favor dos direitos da gestante, já que a prevalência destes significará menor

prejuízo à sociedade do que a prevalência do direito à vida do anencéfalo, já que na

primeira hipótese, uma vida é garantida e dignificada, enquanto que na segunda

hipótese, a manutenção da gravidez do feto até seu termo habitual apenas irá

prolongar o sofrimento físico e mental da mãe, em nada contribuindo para o bem da

sociedade, já que inexiste vida.

O princípio da proporcionalidade, portanto, afasta “[...] o conflito das normas

36 CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. O devido processo legal e os princípios da razoabilidade e

da proporcionalidade. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.199-200. 37 Flávia de A. M. Zanferdini, com esteio nos escólios de Canotilho, referindo-se à natureza finalística

do princípio da proporcionalidade, ressalta que “O princípio da proporcionalidade em sentido estrito, afirma Canotilho, pode ser entendido como princípio da justa medida. Meios e fins são colocados em equação mediante um juízo de ponderação, com o objetivo de avaliar se o meio utilizado é ou não desproporcional em relação ao fim. Cuida-se, portanto, de questão de ‘medida’ para se alcançar um fim. Pesar as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim. [...]” (ZANFERDINI, op. cit., p. 234).

110

de igual hierarquia, buscando uma interpretação que resulte no menos prejuízo

possível”38.

Não se pode, ainda, perder de vista o fato de que uma hipotética prevalência

do direito à vida do anencéfalo, em relação ao qual jamais se poderá cogitar da

existência de vida viável, redundará em nefastos prejuízos à gestante, esta sim, uma

vida viável e plenamente exercitável.

Diante de toda a demonstração aqui alinhavada, verifica-se que, pelo prisma

jurídica da proporcionalidade, é plenamente viável a antecipação terapêutica do

parto dos fetos anencéfalos, tendo-se em vista que o direito à vida destes, por

jamais poder ser exercido, deve ser flexibilizado, fazendo prevalecer, neste embate,

os direitos fundamentais da gestante (dignidade, saúde e autonomia).

Com base no princípio da proporcionalidade, somado aos costumes como

elemento integralizador do direito, é possível afirmar-se a viabilidade jurídica da

interrupção da gestação de fetos anencéfalos, se esta for a vontade inequívoca e

manifestada da gestante.

38 ZANFERDINI, op. cit., p.232.

111

CAPÍTULO 4 CONFIRMAÇÃO DA VIABILIDADE ÉTICA E JURÍDICA DA

ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO DE FETOS ANENCÉFALOS NO MEIO SOCIAL

Buscando a confirmação das conclusões alcançadas no capítulo anterior,

concernentes à viabilidade ética e jurídica da antecipação terapêutica do parto de

feto anencéfalo, procuramos, no meio social, eco para os resultados encontrados. E

a forma encontrada para tanto foi a utilização do método de pesquisa qualitativa,

materializado por entrevistas gravadas em meio eletrônico e posteriormente

fielmente degravadas.

Inicialmente, pretendíamos utilizar a pesquisa qualitativa por meio de

entrevistas com mulheres que tivessem tido gravidez de feto acometido por

anencefalia, e que tivessem ou não realizado a interrupção da gravidez, de forma a

obter uma análise psicológica da viabilidade da antecipação terapêutica do parto de

anencéfalos pela perspectiva da própria mulher que experimentou os sofrimentos

ocasionados por tal evento.

Mas, diante das dificuldades práticas na consecução do estudo inicialmente

proposto, as pretendidas entrevistas com mulheres cuja gravidez envolveu fetos

anencefálicos não ocorreram. E este fato tem uma explicação muito simples: além

de todo o constrangimento que relembrar uma gravidez tão dificultosa representaria

às potenciais entrevistadas, sendo este um motivo ético que obstaria a consecução

das entrevistas, o acesso aos processos judiciais em que foram, ou não, concedidos

alvarás para antecipação do parto – o que possibilitaria a localização das

pretendidas entrevistadas –, é extremamente difícil, já que os autos correm em

segredo de Justiça, e a maior parte deles está arquivado há anos.

Estas duas dificuldades acima apontadas quase culminaram com a não

realização da pretendida pesquisa qualitativa. Mas, diante da importância que esta

metodologia pode representar para a confirmação dos resultados obtidos até então,

atinentes especificamente à viabilidade ética e jurídica da antecipação terapêutica

do parto de fetos anencéfalos, preferimos dar continuidade à pesquisa qualitativa e

procedemos à realização de entrevistas com os “atores” que potencialmente

poderiam participar de processos judiciais envolvendo a gravidez de anencéfalos.

Assim, nossa maior preocupação com a pesquisa inicialmente pretendida, qual seja,

112

não acarretar implicações à privacidade das mulheres que se submeteram a

procedimentos de interrupção de gravidez, estava garantida.

4.1 Da importância da metodologia qualitativa para a presente dissertação

É cediço que existem dois métodos muito eficazes de pesquisa social: a

metodologia quantitativa e a metodologia qualitativa.

A pesquisa quantitativa analisa objetivamente um grupo considerável de

indivíduos imaginados como representativos de uma dada coletividade, por meio de

questionários padrão, com questões de resposta afirmativa ou negativa.

Já a pesquisa qualitativa analisa de forma mais detida um pequeno número

de pessoas, que podem ser considerados como indicativos da opinião coletiva em

razão de suas posições sociais de formadores de opinião. A este respeito, João

Bosco Penna1, referenciando-se a Michelat, ressalta que [...] se na pesquisa Quantitativa a amostra é constituída de indivíduos considerados como representativos da população total, na Qualitativa, um pequeno número de pessoas é entrevistado, considerado como representativos de deterem a imagem da cultura, possibilitando a generalização dos conceitos teóricos que se quer testar, segundo MICHELAT.

Assim, preocupados não apenas com os dados estatísticos e matemáticos,

ambos frios, de uma pesquisa, mas com a obtenção de motivações éticas e morais

que circundam o tema desta presente dissertação de mestrado, preferimos lançar

mão apenas da metodologia qualitativa.

Em razão de os questionamentos acerca da viabilidade ética e jurídica da

antecipação terapêutica do parto de anencéfalos ser um tema de intensa matiz

subjetiva, a pesquisa quantitativa não nos traria resultados satisfatórios, em virtude,

sobretudo, da impossibilidade de aprofundamento subjetivo das respostas dos

entrevistados.

Corroborando esta assertiva, Minayo2 assevera que

1 PENNA, João Bosco. Lesões corporais: caracterização clínica e médico legal. Leme: Editora de

Direito Ltda., 1996. p.235. 2 MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: metodologia de pesquisa social (qualitativa)

em saúde. 1989, 366 f. Tese (Doutorado em Saúde Pública) – Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 1989, apud PENNA, op. cit., p.237.

113

A distância que se estabelece na prática deixa às margens relevâncias e dados que não podem ser contidos em números, e, de outro lado, às vezes, contempla apenas os significados objetivos, omitindo a realidade objetiva. [...] Qualquer pesquisa social que pretenda um aprofundamento maior da realidade não pode ficar restrita ao referencial apenas qualitativo. [...] Quando se trata de aprender sistemas de valores, de normas de representação de determinado grupo social, ou quando se trata de compreender relações, o questionário se revela insuficiente.

Desta forma, elegemos a pesquisa qualitativa como sendo a mais adequada

para confirmar os resultados obtidos no capítulo terceiro, que apontaram para a

viabilidade ética e jurídica da interrupção da gravidez de fetos anencéfalos.

4.2 Da pesquisa qualitativa realizada

Para realização da pesquisa qualitativa em questão, foram entrevistados

apenas aplicadores do direito, que atuam em áreas profissionais com potencial

contato com casos de gravidez de feto anencéfalo. Assim, todos os entrevistados

têm ou tiveram contato com a área criminal do direito.

A partir deste universo restrito de entrevistados, foi possível confirmar as

conclusões alcançadas no capítulo anterior, atinentes à viabilidade ética e jurídica da

antecipação terapêutica do feto anencéfalo, tendo-se em vista que todos os

entrevistados são graduados em Direito, e atuam nesta área do conhecimento

humano.

Inicialmente, foram selecionados 08 (oito) aplicadores do direito a serem

entrevistados, mas 02 (dois) deles acabaram não participando das entrevistas, um

deles por motivos éticos, e outro por impossibilidade de conciliação de horários com

o entrevistador.

4.2.1 Da amostra social

A qualificação3 dos entrevistados pode ser expressa da seguinte forma:

3 Cf. apêndice C (resumo da qualificação dos entrevistados).

114

a) Quanto ao gênero:

- Masculino: 02 – 33,33%

- Feminino: 04 – 66,66%

b) Quanto à idade:

Variou de um mínimo de 29 (vinte e nove) anos a um máximo de 53 (cinqüenta e

três) anos, sendo a idade média dos entrevistados de 38 (trinta e oito) anos.

c) Quanto ao estado civil:

- solteiro: 03 – 50%

- casado: 02 – 33,33%

- divorciado: 01 – 16,66%,

Sendo que dos entrevistados casados, os cônjuges atuam profissionalmente na área

jurídica.

d) Quanto à prole:

Dos seis entrevistados, 03 (três) deles, o que equivale a 50% (cinqüenta por cento)

da amostra, não tinham filhos.

e) Quanto à religião:

- cristão (protestantes e evangélicos): 02 (33,33%)

- católico apostólico romano: 02 (33,33%)

- espírita: 02 (33,33%)

f) Quanto à área de atuação profissional:

- Juiz de Direito: 03 (50%)

- Advogado Criminal: 02 (33,33%)

- Promotor de Justiça: 01 (16,66%)

g) Quanto à instituição de ensino de graduação:

- Mackenzie (Universidade Presbiteriana Mackenzie) – 01 (16,66%)

- USP (Universidade de São Paulo) – 01 (16,66%)

- UNIP (Universidade Paulista) – 01 (16,66%)

- PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) – 01 (16,66%)

115

- UNAERP (Universidade de Ribeirão Preto) – 01 (16,66%)

- FDF (Faculdade de Direito de Franca – 01 (16,66%)

h) Quanto ao ano de graduação:

- 1982: 01 (16,66%)

- 1984: 01 (16,66%)

- 1985: 01 (16,66%)

- 2002: 03 (50%)

i) Quanto à instituição de ensino de pós-graduação:

Dos 06 (seis) entrevistados, 05 (cinco) deles, o que equivale a 83,33% da amostra,

possui pós-graduação em direito, nas seguintes instituições de ensino:

- UNESP (Universidade Estadual Paulista): 02 (33,33%)

- Universidade de Franca e Centro Universitário Barão de Mauá: 01 (16,66%)

- FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado): 01 (16,66%)

- FDF (Faculdade de Direito de Franca): 01(16,66%)

j) Quanto ao desempenho da atividade de docência:

Dos entrevistados, 03 (três) deles, o que equivale à 50% (cinqüenta por cento) da

amostra analisada, desempenham atividade de docência, sendo que o tempo de

desempenho desta atividade variou de um mínimo de 10 (dez) anos a um máximo

de 24 (vinte e quatro) anos.

k) Quanto à experiência em técnicas de psicologia:

Do universo de indivíduos entrevistados, nenhum deles tem experiência em técnicas

de psicologia, as quais poderiam ser consideradas na análise do resultado da

presente pesquisa qualitativa.

4.2.2 Da forma da pesquisa

A pesquisa qualitativa realizada por meio de entrevistas utilizou-se de um

protocolo de pesquisa semi-estruturada, estando o modelo utilizado acostado como

116

apêndice da presente dissertação de mestrado.

Na parte inicial do protocolo de pesquisa constaram campos objetivos, para

colheita de dados de qualificação dos entrevistados, sempre com a preocupação de

preservar sua identidade. Inclusive, cada entrevistado assinou um termo de

autorização4 para uso do teor da entrevista neste presente trabalho, que ainda

contém uma observação expressa quanto à necessidade, por parte do entrevistador,

de manutenção de sigilo acerca dos dados de identificação de cada um dos

entrevistados.

Na segunda parte do protocolo encontram-se as perguntas abertas

respondidas por cada um dos entrevistados. Cada uma das perguntas foi formulada

da forma mais aberta possível, de forma a permitir a livre resposta, sem qualquer

forma de indução, por parte dos entrevistados.

As entrevistas, realizadas nos meses de junho e julho de 2009, foram colhidas

por meio de gravador eletrônico, mediante consentimento do entrevistado, e foram

fielmente transcritas. A entrevista mais breve teve duração de 04’ (quatro minutos),

enquanto que a mais longa teve a duração de 17’ (dezessete minutos), sendo o

tempo médio das entrevistas realizadas de 10’30’’ (dez minutos e trinta segundos).

Por meio das entrevistas realizadas, será possível confirmar, ou não, as

conclusões obtidas no capítulo terceiro quanto à viabilidade ética e jurídica da

antecipação terapêutica do parto de fetos anencéfalos. Apenas fica excluída da

pretensa confirmação a viabilidade médica do procedimento em questão, tendo-se

em vista que os entrevistados tratam-se de aplicadores do Direito, sem

conhecimentos profundos de medicina.

4.2.3 Dos resultados da pesquisa qualitativa

Para uma melhor análise dos resultados da pesquisa qualitativa realizada,

analisaremos, um a um, os itens questionados na parte do protocolo de entrevista

semi estruturada que contém as perguntas abertas.

4 Cf. apêndice.

117

4.2.3.1 Do início da vida

Quando questionados acerca de quando se dá o início da vida humana, 50%

(cinqüenta por cento) dos entrevistados responderam que o início da vida se dá no

momento da concepção, ou seja, da fecundação do óvulo com o espermatozóide.

Admitindo o início da vida como sendo a propagação das ondas encefálicas

manifestaram-se 33,33% (trinta e três por cento e trinta e três centésimos) dos

entrevistados, enquanto que 16,66% (dezesseis por cento e sessenta e seis

centésimos) entenderam que o início da vida se dá com o nascimento.

Em que pese não ter representado a maioria das manifestações, os

entrevistados que admitiram o que o início da vida se dá com a propagação das

ondas cerebrais foram dos poucos exemplos da amostra que deram uma

fundamentação jurídica para sua opinião, como se colhe dos trechos abaixo

selecionados de suas entrevistas: Nós temos que enxergar agora a vida sob duas óticas no ponto de vista. A ótica jurídica pela qual a vida em contraposição ao que seria morte, estabelecida pela lei de transplantes e doação de órgão, seria quando há batimentos cardíacos, uma vez que essa lei citada prevê como a morte, a morte encefálica registrada por médico [...] (entrevistado n. 01) A vida com o nascimento, nascimento com ondas cerebrais capacidade de desenvolver as atividades habituais e a vida pra mim é o oposto de morte, é o desenvolvimento de suas capacidades, existência de ondas cerebrais, contrário de morte. (entrevistado n. 06)

Dos entrevistados que admitiram que a vida humana se inicia com a

concepção, apenas um deles trouxe uma visão embasada juridicamente, mas

mesmo assim, asseverou que não possuía conhecimento técnico (médico) suficiente

para emitir uma opinião sólida sobre tal questão, como se verifica do trecho abaixo

colacionado, extraído de sua entrevista: A princípio, juridicamente, o que a gente poderia dizer é que a vida começaria no momento da concepção. Isso pelo menos é o que vem regrado aí no nosso ordenamento jurídico, mais especificamente no código civil. Cientificamente em termos médicos acredito que exista outro posicionamento, mas eu não tenho conhecimento profundo a respeito deles pra poder eventualmente emitir alguma opinião então me parece que a consideração que eu poderia fazer seria essa, de que a vida inicia no momento da concepção. Ao menos a proteção jurídica a esse bem se inicia nesse momento. (entrevistado nº 04 – grifos nossos)

Os demais entrevistados que entenderam que a vida humana se inicia com a

118

concepção se manifestaram nos seguintes termos: A vida começa na concepção exatamente no momento que o espermatozóide penetra o óvulo, porém eu tenho uma concepção de vida talvez um pouco diferente do normal. O fato de ser espírita me mostra uma possibilidade de você ter uma concepção que haja um espírito participando, portanto há uma vida não só orgânica, como a vida espiritual, [...] (entrevistado n. 02) Entrevistador: Para a Senhora quando começa a vida e o que vem a ser essa? Entrevistado: Em minha opinião, a vida tem início com a concepção, e o que vem ser essa vida, em minha opinião, ela se materializa ainda logicamente dentro do ventre da mãe, com batimentos cardíacos as funções, enfim desde a concepção eu acho que tem vida. (entrevistado n. 05)

Finalmente, o entrevistado que entendeu que o início da vida humana se dá

com o nascimento, expressou-se da seguinte forma:

Entrevistado: A vida, no meu ponto de vista, começa com o nascimento, na medida em que, segundo as teorias médicas de fecundação, levando-se em conta essa questão da fecundação, o nascimento com vida é primordial para que haja a necessidade de direitos e deveres desses indivíduos. Talvez não seja a postura que algumas pessoas têm, mas realmente é a minha opinião. (entrevistado n. 03)

Diante dos resultados obtidos em relação à questão em comento, foi possível

observar, como ressaltado ao longo do trabalho, que as questões atinentes à vida

humana estão muito imiscuídas, ainda, com dogmas religiosos. Apesar disso, o

percentual de entrevistados que, com uma visão mais técnica acerca do assunto,

corroboraram as conclusões deste trabalho5, foi maior do que o esperado.

4.2.3.2 Resolução entre conflitos entre direitos de mesma hierarquia e resolução

entre o conflito da dignidade, autonomia e livre arbítrio da gestante e

gravidez de um feto anencéfalo

No que pertine à primeira parte deste tópico, 83,33% (oitenta e três por cento

e trinta e três centésimos) dos entrevistados respondeu que o conflito entre direitos

de mesma hierarquia deve ser resolvido por meio do princípio da proporcionalidade

– alguns dos entrevistados se referiram a este princípio como bom senso –, sendo

esta a mesma que uma das conclusões deste presente trabalho. 5 Cf. capítulo segundo deste presente trabalho.

119

A respeito desta primeira parte deste tópico, relevante se mostra a transcrição

do posicionamento de três dos entrevistados, a saber: Bom, é eu tenho pra mim sempre que, a solução de conflitos de interesses ou de direitos deve estar sempre pautada pelo bom senso. No bom senso primeiro porque pra que você possa fazer essa aferição inicialmente você teria que analisar caso por caso, verificando as nuance, as situações específicas de cada um deles; e segundo partindo de uma visão de garantir a liberdade de escolha do cidadão. Até pela crença, pela minha crença religiosa, eu acredito muito que devemos sempre garantir a liberdade das pessoas. Logicamente que essas pessoas, cada ser humano, ao praticar ou realizar uma determinada conduta sempre vai estar sujeito a uma conseqüência que eventualmente aquele ato possa lhe trazer. Então me parece que forma melhor de solução desses embates entre os direitos da mesma hierarquia seria a verificação caso a caso e priorizando de certa forma a liberdade de escolha do individuo. [...] (entrevistado n. 04) Primeiro, eu acho que quando você tem direitos considerados fundamentais como o direito à vida, direito a autonomia, direito à privacidade, enfim, até ao livre arbítrio, você seguir seu próprio destino; você deve utilizar o critério da proporcionalidade: quer dizer no embates de diversos direitos ver aquele que tenha maior envergadura e optar por ele. (entrevistado n. 02) Entrevistador: Como o senhor sugere que sejam resolvidos os embates entre direitos de mesma hierarquia? E como o senhor sugere que seja resolvido conflito entre a dignidade e autonomia e livre arbítrio da gestante e a gravidez de um eventual feto anencéfalo? Entrevistado: Pelo princípio da proporcionalidade, os dois, tanto os de mesma hierarquia como dignidade e autonomia e a gravidez do feto anencéfalo. (entrevistado n. 06)

No que concerne à segunda parte da questão, acerca da forma de resolução

entre o conflito de direitos que emerge de uma gravidez de anencéfalo, estando de

um lado o direito à dignidade, autonomia e livre arbítrio da gestante, e de outro, o

direito à “vida” do anencéfalo, 66,66% (sessenta e seis por cento, e sessenta e seis

centésimos) dos entrevistados afirmou que deveria prevalecer os direitos da

gestante, pois do outro lado do conflito se encontra uma vida viável. Já 33,33%

(trinta e três por cento e trinta e três centésimos) dos entrevistados afirmou que o

embate entre direitos em questão apenas poderia ser resolvido no caso concreto,

como fez o entrevistado n. 01: Entrevistador: Como a senhora sugere que sejam resolvidos os embates entre direitos de mesma hierarquia? E como o senhora sugere que seja resolvido conflito entre a dignidade e autonomia e livre arbítrio da gestante e a gravidez de um eventual feto anencéfalo? Entrevistado: Justamente por serem direitos de mesma hierarquia eu acredito que os embates no caso seriam resolvidos somente diante de um caso concreto não tem como você predispor a respeito desses embates – Entrevistador: e em relação à segunda parte da questão? – Da mesma forma eu acredito que somente no caso concreto daria para resolver. (entrevistado n. 01)

120

Representando o entendimento aqui dominante, quanto à segunda parte

deste tópico, de bom alvitre a transcrição das palavras de dois dos entrevistados

acerca da forma de resolução do conflito de direitos proposto, como se observa: Com bom senso, exatamente. Com uma boa conversa, com bom senso, você consegue chegar uma conclusão a respeito desse assunto. Mas, se isso não for suficiente, que prevaleça a dignidade, aí eu já te respondo a segunda parte da questão: que eu acho que deve prevalecer a dignidade da gestante nesse momento, porque ela está sujeita a levar diante uma gestação que ela já sabe que não será frutífera. (entrevistado n. 03 – grifo nosso) [...] em minha opinião isso é algo que tem que ser resolvido pela própria mãe. O conflito que se tem é com ela própria, eu entendo que deve ser envolvido, principalmente aqui que você fala hierarquia, dignidade, autonomia, livre arbítrio, esse conflito é ela passando com ela própria. (entrevistado n. 05)

Assim, corroborando a tese, aqui defendida, de que o conflito entre os direitos

à dignidade, à saúde e à autonomia da gestante, e o direito à “vida” do anencéfalo,

dever ser resolvido à luz do princípio da proporcionalidade, manifestou-se a maior

parte dos entrevistados.

4.2.3.3 Contato direto com algum caso envolvendo gravidez de anencéfalo e ciência

acerca de alterações morfológicas e funcionais do feto anencefálico

Apenas um dos entrevistados, que representa 16,66% (dezesseis por cento e

sessenta e seis centésimos), teve contato direto com um caso que envolvesse

gravidez de feto anencéfalo, sendo que todos os demais responderam que apenas

tiveram contato com casos de anencefalia por meio dos meios de comunicação.

Do universo de pessoas entrevistadas, apenas duas delas – 33,33% (trinta e

três por cento e trinta e três centésimos) da amostra – afirmaram ter conhecimento

de que o feto anencefálico possui alterações morfológicas e funcionais. O restante,

66,66% (sessenta e seis por cento e sessenta e seis centésimos), disse

desconhecer eventuais alterações morfológicas e funcionais dos anencéfalos.

121

4.2.3.4 Existência de vida humana em caso de anencefalia

No que diz respeito à existência de vida ante um caso de anencefalia, 50%

(cinqüenta por cento) dos entrevistados afirmaram que ante a definição jurídica de

vida – diametralmente oposta à conceituação de morte –, não há que se cogitar de

vida humana em hipótese de anencefalia.

Representando este entendimento, vale a transcrição da fala de três dos

entrevistados: Entrevistador: Pela expertise, pela experiência da Senhora, pode-se falar em vida ante a um caso de anencefalia? Entrevistado: Como eu disse em relação à primeira questão, juridicamente, não. [...] (entrevistado n. 01) Entrevistado: Me parece que essa resposta está muito vinculada sob o aspecto, o prisma, pelo qual se analisa essa questão. A princípio, se o ser está mantendo algumas funções vitais, aparentemente, isso significa que o ser está vivo. Mas se a gente analisar o conceito de vida de uma forma mais ampla, “né”, e talvez seja essa a visão que ordenamento jurídico, mais especificamente, faz ou tenha, sobre definição do que é vida, me parece que um indivíduo que tem apenas algumas funções vitais em funcionamento, sem que tenha condição de desenvolver intelecto, enfim, de se organizar enquanto individuo, me parece que não caracterizaria. (entrevistado n. 04) Entrevistador: Pela expertise, pela experiência da Senhora, pode-se falar em vida ante a um caso de anencefalia? Entrevistado: Acredito que não, eu acho que é o contrario, a morte pra mim é a anencefálica, então o anencéfalo como não tem cérebro não teria vida. (entrevistado n. 06)

Dois dos entrevistados, 33,33% (trinta e três por cento e trinta e três

centésimos) da amostra em análise, afirmaram que, em relação ao anencéfalo, não

existe uma vida completa, como se observa das palavras de um dos diálogos: Entrevistador: Pela expertise, pela experiência da Senhora, pode-se falar em vida ante a um caso de anencefalia? Entrevistado: Como eu disse, é tecnicamente postura médica, eu não saberia te precisar. Mas numa opinião pessoal minha, eu posso falar em vida sim, a partir do momento que a pessoa realmente nasce, mas com serias limitações. É mais ou menos um indivíduo que nasce com um comprometimento de seu organismo muito sério, mas em minha opinião nasce com vida sim, porém, com uma limitação de tamanha monta, que é inviável sua existência nas próximas horas, meses. Entrevistador: Então, diante dessa, resposta a gente poderia, na visão da senhora, classificar essa vida do anencéfalo, as poucas horas que ele consegue sobreviver no caso de vida extra-uterina, como “pseudo-vida”? Entrevistado: Sim, porque da mesma forma que eu coloco a ausência de dignidade da mãe que leva uma gestação, nessas circunstancias, é uma “pseudo-vida” sim, a pessoa não tem, a criança que nasce numa situação

122

nesse sentido não consegue desenvolver, enfim, acaba sendo uma situação bem complicada de lidar. (entrevistado n. 03)

Mesmo ante este outro entendimento sobre o assunto, ainda seria possível

sustentar a viabilidade ética e jurídica da antecipação terapêutica do parto de

anencéfalos, pois no conflito de direitos da gestante e do feto, estariam em jogo

direitos fundamentais plenos da gestante, e um direito incompleto do feto, que

deveria ser relativizado neste confronto.

Ainda sobre este mesmo tópico, apenas um dos entrevistados (de n. 01),

ressaltou haver vida, sem qualquer restrição, em caso de anencefalia. Todavia, há

de ser ressaltado que, na opinião deste entrevistado, a resposta foi fundamentada

na religião espírita, como se verifica de suas palavras:

É necessário, às vezes, que o espírito tenha uma experiência momentânea na carne. A próxima evolução do espírito pode exigir que ele viva apenas alguns meses no útero da mãe; então, essa visão que eu tenho, sob o ponto de vista espírito, facilita a visão da questão da anencefalia. [...] (entrevistado n. 02)

4.2.3.5 Contato com a gestante que ajuizou o pedido de interrupção da gravidez de

feto anencéfalo e diferenciação entre antecipação do parto de feto

anencéfalo e abortamento

No que pertine à primeira parte deste tópico, o único entrevistado que teve

contato direto com caso de anencefalia, teve apenas breve permanência com a

gestante, não tendo sido possível verificar o estado psicológico da gestante.

Já no que se refere à segunda parte deste tópico, que versa acerca da

diferenciação entre antecipação do parto de anencéfalos e abortamento

propriamente dito, 66,66% (sessenta e seis por cento e sessenta e seis centésimos)

dos entrevistados entenderam que há diferença entre estes dois conceitos, partindo

da premissa de que, para o abortamento, é necessário que exista uma vida a ser

interrompida, o que não se verifica no caso de anencefalia. Neste sentido, vale

destacar: Entrevistador: Na ótica da Senhora existe diferenciação entre a antecipação do parto de um anencéfalo e o abortamento propriamente dito? Entrevistado: Sim, juridicamente sim, porque caso de aborto nós estaríamos

123

lidando com vida, pois há impulsos cerebrais, encefálicos; ao passo que na anencefalia, não haveria esses impulsos cerebrais e seria considerada ausência de vida. (entrevistado n. 01) Entrevistado: É, da mesma forma, “né”, me parece que a resposta depende muito do enfoque pelo qual se olha à questão, “né”. Se considerarmos que o indivíduo portador dessa moléstia tem vida, logicamente que não seria uma simples interrupção da gestação, mas sim, um caso de aborto. E, caso contrário, chegando à conclusão de que o indivíduo não tem esse “dom” da vida, “né”, logicamente que a resposta seria contraria. A princípio, eu, assim, impressão pessoal minha, que não é medica, mas jurídica, na minha ótica realmente a pessoa que, o individuo, o ser que é dotado dessa ou acometido dessa moléstia não poderia ser caracterizado como um ser com vida, e sob essa ótica, “né”, me parece que seria um caso de antecipação de parto, e não de aborto. [...] Seriam conceitos distintos, logicamente. No meu modo de ver sim, dependendo da ótica que se tem em relação à situação do feto. (entrevistado n. 04) Entrevistador: [...] Na ótica da Senhora existe diferenciação entre a antecipação do parto de um anencéfalo e o abortamento propriamente dito? Entrevistado: Então como eu acho que o anencéfalo não tem vida, acho que na verdade é antecipação do parto. Entrevistador: Então são conceitos diferentes os dois? Entrevistado: Isso conceitos diferentes: um seria aborto, outro, interrupção da “vida”. (entrevistado n. 06)

Interessante mencionar que uma das entrevistadas que havia mencionado

que a “vida” de um anencéfalo é uma vida humana, mesmo que incompleta, acabou

admitindo a diferenciação entre tais conceitos.

Os outros dois entrevistados, 33,33% (trinta e três por cento e trinta e três

centésimos) da amostra sob análise, que haviam se manifestado pela existência de

vida humana na hipótese de anencefalia, afirmaram que antecipação do parto de

fetos anencéfalo e abortamento são conceitos sinônimos, como se depreende da

transcrição da entrevista de um dos representantes da amostra: Entrevistador: [...] Na ótica do Senhor existe diferenciação entre a antecipação do parto de um anencéfalo e o abortamento propriamente dito? Entrevistado: Sobre certos aspectos eu acho que não. E eu penso, assim como eu venho falando, que o abortamento, ele ocorre por várias razões. Nós temos as questões, vamos pensar no que é permitido, a lei permite o abortamento no caso do de estupro etc., então o abortamento: o que é que é? É a interrupção duma gravidez porque a mãe foi estuprada e está legalmente autorizada a impedir que a criança, que a gravidez chegue até o parto que é um filho indesejado por razões que até a própria legislação compreende. No caso dos anencéfalos não é uma gravidez indesejada. Em regra é uma gravidez desejada, porém o resultado da gravidez é indesejado. Você quer um filho normal como todo mundo, mas infelizmente vem um filho anencéfalo, são situações diferentes que levariam ou a interrupção da gravidez do anencéfalo ou abortamento. (entrevistado n. 02)

Desta forma, a análise da resposta da maioria dos entrevistados coincidiu

com as demonstrações realizadas no capítulo segundo, de que antecipação do parto

124

de anencéfalos, por não implicar induzimento de morte do produto da concepção,

não se trata de abortamento, que demanda, necessariamente, a morte do feto a parti

dos procedimentos abortivos.

4.2.3.6 Existência de viabilidade jurídica para antecipação do parto de fetos

acometidos por anencefalia

Todos os entrevistados – 100% (cem por cento) da amostra – manifestaram-

se favoravelmente pela viabilidade jurídica da interrupção da gravidez de fetos

anencéfalos. A maior parte destes, 66,66% (sessenta e seis por cento e sessenta e

seis centésimos) fundamentou seu entendimento na impossibilidade de vida extra-

uterina do feto anencéfalo, como se verifica dos exemplos abaixo colacionados: Entrevistador: Para a Senhora existe viabilidade jurídica para antecipação do parto dos fetos acometidos com anencefalia? Entrevistado: É da mesma forma que eu disse anteriormente sim eu acredito que sim que há existe uma viabilidade jurídica para antecipação, justamente por se tratar de um caso que nem haveria vida em princípio. (entrevistado n. 01) Entrevistador: Para a Senhora existe viabilidade jurídica para antecipação do parto dos fetos acometidos com anencefalia? Entrevistado: Sim hoje, agora essa questão é uma questão jurídica e da mesma forma que existe um posicionamento divergente a respeito, por exemplo, de aborto em caso de estupro na minha concepção também poderia haver um previsão de antecipação do parto, abortamento de anencéfalo. (entrevistado n. 03) Entrevistador: Para a Senhora existe viabilidade jurídica para antecipação do parto dos fetos acometidos com anencefalia? Entrevistado: Para mim sim, eu entendo que existe. (entrevistado n. 06)

Um dos entrevistados frisou, no entanto, que a viabilidade jurídica apenas

ocorre quando existem riscos comprovados à saúde da gestante, como se verifica

de sua fala: Entrevistador: Para o Senhor existe viabilidade jurídica para antecipação do parto dos fetos acometidos com anencefalia? Entrevistado: Eu acho que sim se houver risco para mãe senão penso que não, só o fato de uma mãe estar esperando um filho anencéfalo não é suficiente para garantir a ela o direito de interromper a vida. (entrevistado n. 02)

Outro entrevistado disse, ainda, que a viabilidade jurídica de realização deste

125

procedimento apenas se dá após a obtenção de alvará judicial permitindo a conduta,

sob pena de enquadramento da prática como crime de abortamento. Exatamente

isso que se depreende de suas palavras, como se observa: Entrevistador: Para a Senhora existe viabilidade jurídica para antecipação do parto dos fetos acometidos com anencefalia? Entrevistado: Conforme eu disse no inicio essa decisão parte da mãe se ela quer tomar essa decisão não vejo por que ela não se dirigir ao poder judiciário. Entrevistador: Então por uma prevalência dos direitos fundamentais dela a senhora entende que ai mora a viabilidade jurídica dessa hipótese? Entrevistada: Agora a gente está indo para um outro campo. Juridicamente, é crime. Agora, há viabilidade de a mãe antecipar isso. Por isso que eu acho que, no caso, ela, mãe, gestante, ela quer fazer, ela que se dirija ao poder judiciário. (entrevistado n. 05)

A maioria, portanto, admitiu a viabilidade jurídica da antecipação do parto de

fetos anencéfalos com base no exercício dos direitos fundamentais da gestante,

independentemente do risco de morte ou à saúde da gestante, e

independentemente da obtenção de autorização judicial.

Todavia, os entendimento diversos, que apenas admitem a viabilidade jurídica

de realização deste procedimento médico sob algumas condições, são

representativos de entendimentos jurídicos existentes, que serão melhor tratados

nos próximos dois capítulos.

4.2.3.7 Paradigmas que levaram à conclusão da viabilidade jurídica da antecipação

do parto de fetos anencéfalos e bioética como um desses paradigmas

Todos os entrevistados, 100% (cem por cento) da amostra, ressaltaram que a

viabilidade jurídica mencionada por eles, independentemente das ressalvas que

alguns deles colocaram à referida viabilidade, foi derivada da análise dos direitos

fundamentais constitucionais, sendo que alguns fizeram novas citações ao princípio

da proporcionalidade. Também houve menções expressas aos direitos à dignidade e

à autonomia da gestante.

Um dos entrevistados, 16,66% (dezesseis por cento e sessenta e seis

centésimos), interessantemente, fez menção expressa à conceituação de morte

como paradigma utilizado para conclusão da viabilidade jurídica da interrupção da

126

gravidez de feto anencéfalo, como se colhe da transcrição de sua entrevista: Uns dos paradigmas é a questão da morte, o que seria morte e o que seria vida pra mim, por isso eu acho que seria viável e seria até um fato atípico. (entrevistado n. 06)

Apenas dois dos entrevistados, 33,33% (trinta e três por cento e trinta e três

centésimos) da amostra, ressaltaram que a biótica foi um dois paradigmas utilizados,

ao passo que 66,66 % (sessenta e seis por cento e sessenta e seis centésimos)

mencionaram que a bioética apenas teria relevância para detecções da anomalia.

4.2.3.8 Contato posterior com a gestante que requereu alvará judicial para

interromper a gravidez de feto anencéfalo

Como já mencionado, apenas um dos entrevistados teve contato direto com

um caso de gravidez de anencéfalo. E tal entrevistado (de n. 02) mencionou que não

houve qualquer contato posterior com a requerente da medida judicial.

4.2.3.9 Considerações gerais sobre o assunto

Dos entrevistados, 83,33% (oitenta e três por cento e trinta e três centésimos)

da amostra fizeram considerações gerais sobre o assunto objeto da entrevista, mas

em todos os casos, com exceção de um, foram feitas apenas remissões às

respostas já fornecidas. Inclusive, algumas das considerações gerais dadas pelos

entrevistados foram utilizadas para complementar algumas das manifestações

transcritas.

4.2.4 Das conclusões dos resultados da pesquisa qualitativa analisados

A partir de todos os resultados analisados, foi possível concluir que a maior

parte dos entrevistados, considerando-se cada tópico isoladamente, concordou com

as conclusões alcançadas no capítulo terceiro.

127

Assim, do ponto de vista social, é possível admitir que, ao menos a

comunidade jurídica, que possui conhecimento geral sobre o tema objeto desta

presente dissertação de mestrado, avalizou a viabilidade ética e jurídica da

antecipação do parto de fetos acometidos por anencefalia, tendo sido esta, portanto,

a relevância da metodologia qualitativa para este trabalho.

Insta salientar que a pesquisa qualitativa realizada não buscou esgotar o

tema, sobretudo em razão de o conhecimento humano constituir um processo

infindável, em contínua construção, mas simplesmente consubstanciou-se numa

tentativa de, no presente momento histórico e de evolução cultural, comprovar as

conclusões obtidas ao longo deste presente trabalho.

128

CAPÍTULO 5 DA INCONSTITUCIONALIDADE DO ENQUADRAMENTO DA

INTERRUPÇÃO DA GESTAÇÃO DE FETOS ANENCÉFALOS COMO CRIME DE ABORTAMENTO E RESPONSABILIDADE PENAL DA GESTANTE E DA EQUIPE MÉDICA QUE REALIZA O PROCEDIMENTO MÉDICO, NOS CASOS DE ANTECIPAÇÃO DO

PARTO DO FETO ANENCÉFALO

Um eventual procedimento de antecipação terapêutica do parto de feto

anencéfalo, realizado por equipe médica sem autorização judicial específica,

motivado pelo desejo da gestante de interromper a gravidez do feto inviável, irá

implicar, provavelmente, o cometimento do crime de abortamento, pois esta é a

interpretação majoritária de nossas Cortes Pátrias, tendo-se em vista a redação dos

artigos 124 a 128, do Código Penal brasileiro.

Neste diapasão, Luiz Flávio Gomes1, apesar de se referir à interrupção da

gravidez de feto anencefálico como abortamento, enfatiza que De cada 10.000 nascimentos no Brasil, oito são anencefálicos. Muitas gestantes e sua família, assim como alguns médicos, mesmo correndo risco de serem processados, praticam o aborto anencefálico. Literalmente há crime. Vive-se uma situação de insegurança jurídica muito aflitiva. A exceção somente acontece quando o Judiciário, em cada caso concreto, concede autorização para o ato de abortamento.

Apesar da intensa diferenciação realizada no segundo capítulo, entre os

conceitos de abortamento e da interrupção de gravidez do feto anencéfalo, na qual

ficou patente que a antecipação do parto de anencéfalos não se consubstancia em

“aborto”, por não implicar em indução da morte do produto da concepção, os

Tribunais brasileiros ainda não modificaram seu entendimento acerca do assunto.

Essa interpretação equivocada, ao que parece, é alicerçada na imensa

influência que o cristianismo possui sobre a sociedade brasileira. A moral cristã,

dissociada dos modernos princípios da bioética, arraigada há longa data na

sociedade brasileira, mostra-se como o maior empecilho para a legalização da

prática médica em questão, sem riscos de seu enquadramento como se crime de

abortamento fosse.

1 GOMES, Luiz Flávio. Aborto anencefálico: exclusão da tipicidade – material (I). Juris Síntese, São

Paulo, n. 63, jan./fev. 2007. (CD ROM)

129

Em que pese ser o Brasil um país teoricamente laico, já que, nos termos do

artigo 1º, caput, da Constituição Federal de 1988, o país se trata de um Estado

Democrático de Direito, não adotando2 qualquer religião oficial, o preâmbulo3 da

Carta Magna, apesar de não ser admitido como parte integrante do texto

constitucional por grande parte da doutrina constitucionalista, preconiza ser a própria

Constituição promulgada sob a proteção de Deus, consubstanciando-se este num

sinal claro da influência da religião cristã, dominante, sobre a sociedade brasileira,

inclusive sobre as searas legislativa e judiciária.

Como já referido no capítulo segundo, Antônio Ferreira de Almeida Junior4,

demonstrando o posicionamento da Igreja Católica, o mesmo de todas as religiões

cristãs – massivamente dominantes do Brasil –, afirma que o repúdio religioso ao

abortamento decorre de dois argumentos: (i) que tal prática seria ofensiva ao

mandamento de Deus que impede que um homem mate outro; (ii) que tal prática

impediria a salvação da alma do feto, pois privaria este indivíduo da redenção de

seus pecados por meio do batismo. Outrossim, a prática da interrupção da gravidez

do feto anencéfalo, na visão cristã, seria um atentado contra a vida, pois para esta

religião, a vida humana se inicia no momento da fecundação5.

Ainda que não seja objetivo do presente trabalho discutir a legitimidade dos

dogmas religiosos cristãos que conflitam frontalmente com a viabilidade médica,

ética/bioética e jurídica da antecipação do parto de fetos anencéfalos, mostra-se

importante compreender, para posteriormente rechaçar, a influência cristã sobre

este tema. Assim, passaremos à análise, ainda que perfunctória, do

desenvolvimento do cristianismo no Brasil.

2 O artigo 5º, inciso VI, da Carta Magna, ao prescrever que “[...] é inviolável a liberdade de

consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”, deixa clara a inexistência de religião oficial adotada pela República Federativa do Brasil.

3 O preâmbulo da Constituição Federal tem a seguinte redação: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.” (grifos nossos).

4 ALMEIDA JUNIOR, Antônio Ferreira de. Lições de medicina legal. 7. ed. rev. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1965. p.337.

5 Cf. SCHINESTSCK, Clarissa Ribeiro. As pesquisas com células-tronco embrionárias: o direito à vida digna ou o direito à dignidade do embrião in vitro? Revista Eletrônica da Faculdade de Direito da PUC-SP, São Paulo, v. 1, 2008. Disponível em:

<http://revistas.pucsp.br/index.php/red/article/view/522/513>. Acesso em: 02 jul. 2009.

130

5.1 Do desenvolvimento do cristianismo no Brasil e sua implicação com a

antecipação do parto de fetos anencéfalos

O cristianismo ganhou relevância no final do império romano (século VI d.C.),

sob a tônica da igualdade entre os homens. O início da expansão do cristianismo

deu-se no período de declínio do Império Romano, tendo como marco o Édito de

Milão de 313 d.C., ocasião em que o então Imperador de Roma, Constantino, tornou

o cristianismo religião oficial do decadente império romano. José Geraldo Vinci de

Moraes6 declina os motivos pelos quais o imperador romano Constantino

reconheceu oficialmente o cristianismo, asseverando que as motivações para tanto

foram mais políticas do que filosóficas, como se colhe do trecho abaixo transcrito,

extraído de sua obra: Durante o século III, como já foi dito, a crise política e econômica proporcionou a divulgações de muitas religiões, mas foi o cristianismo que mais se disseminou entre ricos e pobres. A sucessão de Diocleciano desencadeou uma guerra entre os militares, e o general Constantino saiu vitorioso, com grande apoio dos cristãos. Em 313, pelo Édito de Milão, ele concedeu liberdade de culto aos cristãos, reconheceu oficialmente a religião, e colocou fim às perseguições. Dessa forma, Constantino obteve o apoio dos cristãos para reorganizar o Império.

O dogma de isonomia entre os homens, pregado pelo cristianismo, é

apontado como uma das causas que implicou a ruína do escravagismo – base

econômico-social do império de Roma –, ao lado o encarecimento do próprio

escravo (mercadoria), dos imensos gastos expendidos com a manutenção da força

militar do Império, e das constantes invasões bárbaras. Com o cristianismo, os

escravos convertidos não mais passaram e ser tidos como objetos, mas como

pessoas, em condições de igualdade filosófica em relação aos cidadãos romanos.

O fato de o cristianismo ter sido elevado à classe de religião oficial de Roma,

por força do Édito de Milão, fez com que esta religião se espalhasse por várias

regiões da Europa Ocidental, sobretudo nos locais ocupados pelos romanos. Desta

forma, mesmo após o desaparecimento do Império Romano, o cristianismo já havia

se difundido por grande parte da Europa.

No período histórico da idade média, a Igreja Católica se consolida como pólo 6 MORAES, José Geraldo Vinci de. Caminhos das civilizações: história integrada – geral e Brasil.

São Paulo: Atual, 1998. p.80.

131

de influência científica e social no mundo Ocidental, fixando suas bases filosóficas

na igualdade e amor entre o homem e seu próximo, nos moldes das bases

filosóficas estabelecidas pelos pensamentos de São Francisco de Assis e São

Tomás de Aquino, ressaltadas no capítulo primeiro desta presente dissertação. A

Igreja Católica, na idade média, não apenas detinha grandes poderes econômicos e

políticos, mas também detinha o poder do conhecimento neste período histórico,

influenciando fortemente a formação cultural do homem da idade média.

Corroborando esta assertiva, José Geraldo Vinci de Moraes7 afirma que A Igreja Católica teve papel preponderante na formação do feudalismo; além de grande proprietária de terras, estruturou a visão de mundo do homem medieval. Na realidade, foi a instituição que sobreviveu às inúmeras mudanças ocorridas na Europa desde o século V e, ao promover a evangelização dos bárbaros, concretizou a síntese entre o mundo romano e o mundo bárbaro. Tal fato a tornou herdeira da cultura clássica, pois no universo medieval a Igreja Católica monopolizava o conhecimento. Sem dúvida alguma, sua estrutura fortemente hierarquizada colaborou para que ultrapassasse todas as crises, concentrando o saber e o poder.

A disseminação do cristianismo, sobretudo por intermédio da Igreja Católica,

continuou por toda Europa. Embora tenha havido algumas dissidências na doutrina

cristã, que deram origem a outras religiões, dissonantes da religião católica

apostólica romana, conhecidas por religiões católicas protestantes, especialmente

na Inglaterra e na Alemanha, o cristianismo atingiu maciçamente os países da

Península Ibérica, quais sejam, Portugal e Espanha.

Em virtude da participação efetiva que a Igreja Católica teve na expulsão8 dos

muçulmanos da Península Ibérica, ao fornecer a ideologia necessária –

enfrentamentos dos “infiéis” árabes – para motivar a expulsão dos mouros, o

cristianismo se arraigou fortemente em Portugal e na Espanha.

Ante este esboço histórico, fica demonstrada a raiz da influência do

cristianismo sobre a sociedade brasileira, já que a colonização de nosso país foi

inicialmente levada a cabo por Portugal, país de acentuada influência cristã, como

ressaltado acima.

Após 1549, ocasião em que o então rei de Portugal D. João III nomeia Tomé

de Souza como governador-geral da colônia brasileira, houve recomendação, por 7 MORAES, op. cit., p.112. 8 José Geraldo V. de Moraes, apontando o grau de penetração do Cristianismo na Península Ibérica,

ressalta que “A unificação política da península Ibérica ocorreu através da Guerra de Reconquista, ou seja, dos movimentos militares contra o domínio dos árabes muçulmanos. Portanto, a religião católica foi um elemento político importante no processo de centralização política da Espanha e de Portugal.” (MORAES, op. cit., p.123).

132

parte de Portugal, de que os indígenas brasileiros fossem convertidos à fé cristã.

Para tanto, acompanharam Tomé de Souza em sua chegada ao Brasil seis jesuítas,

chefiados pelo Padre Manuel da Nóbrega.

Os jesuítas, que logo se multiplicaram no Brasil, ficaram incumbidos não

apenas da tarefa de conversão dos índios, mas também do encargo da educação,

atividade em que, obviamente, utilizavam a doutrina cristã. Desta forma, o

cristianismo, no Brasil, imiscuiu-se na educação. A. Souto Maior9, em sua obra,

descreveu a atuação dos jesuítas na educação brasileira, ao mencionar que D. João III havia recomendado a Tomé de Souza a conversão dos indígenas à fé cristã. Assim, com o nosso primeiro governador, haviam chegado também ao Brasil seis jesuítas chefiados pelo Padre Manuel da Nóbrega. Identificaram-se, pois, inicialmente, os jesuítas com a política colonizadora portuguêsa. A Bahia e São Vicente viram nascer as primeiras escolas do Brasil. A ação religiosa dos jesuítas era, contudo, tão ampla como a educativa; com missas batismos e conversões deram à colônia a marca indelével de sua formação católica. [...] O ensino jesuíta dividia-se em duas espécies de escolas: as escolas de alfabetização e os colégios. Nas escolas, os padres reuniam os índios pequenos e os filhos dos colonos. Transmitiam-lhe um mínimo de instrução. Nos colégios traduziam-se Ovídio, César, Cícero e Sêneca e se formavam muitos dos administradores da Colônia; [...]

Conforme esta demonstração, verifica-se que desde a época da colonização

portuguesa no Brasil, o cristianismo criou fortes raízes na cultura e educação

brasileiras. Mesmo com a tentativa de expulsão10 dos jesuítas de todos os domínios

portugueses por Marquês de Pombal, em 1759, na tentativa de modernizar a cultura

e educação de Portugal e seus domínios, a cultura cristã estava tão difundida na

sociedade e na educação que sua influência perdurou, e perdura até os dias atuais.

Como já mencionado alhures, apesar de o Brasil ser um país laico, nos

termos das disposições constitucionais de 1988, que asseveram ser a República

Federativa do Brasil um Estado Democrático de Direito, no qual existe liberdade de

credo e consciência, em razão da colonização portuguesa, que inseriu o cristianismo

9 MAIOR, Souto A. História do Brasil. 6. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968, p.166. 10 Consoante Gilberto Cotrim e Mário Parisi, no Brasil, mesmo com as reformas político-sociais

promovidas por Marquês de Pombal, com a intenção de transformar Portugal (incluindo aí suas colônias) numa metrópole capitalista, a exemplo da Inglaterra, “[...] a estrutura cultural, mantida pelos padres jesuítas ao longo de dois séculos, estava muito bem solidificada, resistindo aos atos e decretos do Marquês de Pombal. Na melhor das hipóteses, Pombal impediu que esta estrutura se alastrasse ainda mais, conseguindo destruí-la em parte. Mas com os escombros de coisas velhas, ele não podia montar uma estrutura nova. Assim, o panorama educacional brasileiro permaneceu, em termos gerais, sem alterações significativas até 1808, com a chegada de D. João ao Brasil.” (COTRIM, Gilberto Vieira; PARISI, Mário. Fundamentos da educação: história e filosofia da educação. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 1985. p.265).

133

na cultura e educação pátrias, é possível afirmar que o país é eminentemente

cristão.

A influência do cristianismo no Brasil é tão grande que, no último

recenseamento demográfico, ocorrido em 2000, as religiões cristãs – católica

apostólica romana e evangélicas – atingiram quase 90% (noventa por cento) da

população brasileira, conforme se infere da tabela11 abaixo colacionada: Tabela 01

Distribuição percentual da população residente, por religião – Brasil – 1991/2000 Religiões 1991 (%) 2000 (%)

Católica apostólica romana 83,0 73,6 Evangélicas 9,0 15,4

Espíritas 1,1 1,3 Umbanda e Candomblé 0,4 0,3

Outras religiosidades 1,4 1,8

Sem religião 4,7 7,4

As bases filosóficas do cristianismo são eminentemente sustentadas no amor

ao próximo e na igualdade entre os homens, e são sempre conservadoras e avessas

às inovações sociais, sobretudo em razão de a doutrina cristã ser erigida sobre

dogmas – verdades absolutas. Em virtude de tais características, práticas polêmicas

no meio social sempre foram repudiadas pelo cristianismo. E este fenômeno é

observado em relação ao abortamento, o que inclui as permissibilidades legais, e em

relação à antecipação do parto dos anencéfalos, já que este suposto poder de vida e

morte sobre o produto da concepção, é diametralmente oposto aos princípios da

doutrina cristã.

Em razão da grande penetração do catolicismo na sociedade brasileira, que

também atinge os membros do Poder Judiciário, está explicada a resistência que a

interrupção da gestação dos fetos anencéfalos enfrenta atualmente, mesmo não se

consubstanciando tal prática médica numa forma de indução de morte do produto da

concepção. Desta forma, é possível afirmar que, majoritariamente, a antecipação do

parto de fetos anencéfalos vem sendo equiparada ao crime de “aborto” apesar de

não se dispor de dados estatísticos específicos sobre este assunto.

11 BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatística – IBGE. Censo demográfico 2000. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/7a12/conhecer_brasil/default.php?id_tema_menu=2&id_tema_submenu5>. Acesso em: 21 jul. 2009.

134

5.2 Da impropriedade jurídica do enquadramento da antecipação do parto de

feto anencéfalo como crime de abortamento

A nosso ver, o entendimento jurídico majoritário de que a antecipação do

parto de feto anencéfalo, sem autorização judicial para tanto, implica em

cometimento do crime abortamento está equivocado. Para chegar a esta conclusão,

necessário, primeiramente, analisar os requisitos genéricos do crime.

Crime, como é cediço, é a ação humana típica, antijurídica e culpável. Desta

feita, são requisitos do crime a tipicidade, a antijuridicidade e a culpabilidade. Neste

exato sentido, Magalhães Noronha12 entendia que A ação humana, para ser criminosa, há de corresponder objetivamente à conduta descrita pela lei, contrariando a ordem jurídica e incorrendo seu autor no juízo de censura ou reprovação social. Considera-se, então, o delito como a ação típica, antijurídica e culpável. Ele não existe sem uma ação (compreendendo também a omissão), a qual se deve ajustar à figura descrita na lei, opor-se ao direito e ser atribuível ao indivíduo a título de culpa lato sensu (dolo ou culpa).

Em que pese esta conceituação clássica, diversos autores de Direito Penal

excluem a culpabilidade como elemento ou aspecto do crime. Julio Fabbrini

Mirabete13, por exemplo, afirma que apenas “[...] são requisitos genéricos do crime a

tipicidade e a antijuridicidade”, excluindo a culpabilidade, portanto.

A exclusão da culpabilidade como característica do crime é defendida pela

teoria finalista da ação. Para os defensores desta corrente jurídica, a culpabilidade –

relação entre o elemento volitivo do agente e o resultado do fato típico,

censurabilidade ou reprovabilidade – seria condição de existência da própria ação

típica. Mirabete14, defensor desta corrente, citando Hans Welzel ressalta que, em

relação à culpabilidade como elemento do crime Com o advento da teoria da ação finalista, de Welzel, porém, passou-se a discutir a validade dessa colocação. A ação, como afirmam os finalistas, não pode ser desligada do fim do agente, sob pena de se fraturar a realidade do fato concreto. O fim da conduta, elemento intencional da ação, é inseparável da própria ação. O dolo, por exemplo, é a consciência do que se quer e a vontade de realizar o tipo; se ele não existe, ou seja, se a ação

12 NORONHA, Edgard Magalhães. Direito penal. Rev. e atual. Por Adalberto José Q. T. de Camargo

Amanha. 33. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p.97. 13 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal: parte geral. 6. ed. rev. e ampl. São Paulo:

Atlas, 1992, p.95. 14 Ibidem, p.188.

135

não for dolosa, não há fato típico doloso. O que se elimina com a exclusão do dolo é a própria existência do fato típico e não a mera culpabilidade pelo fato que o sujeito praticou. Assim, o dolo e a culpa não podem ser elementos da culpabilidade; colocando-os como fazendo parte desta, está-se fracionando a estrutura natural da ação.

No entanto, para a demonstração que se pretende fazer quanto à

impropriedade jurídica do enquadramento da interrupção da gravidez de feto

anencéfalo como crime de “aborto”, é irrelevante a discussão acerca da condição da

culpabilidade como elemento ou não do crime. O que nos importa, neste momento, é

analisar apenas os elementos tipicidade e a antijuridicidade.

5.2.1 Da demonstração da impropriedade em questão pelo prisma da tipicidade

Como já mencionado, um dos elementos do crime é a tipicidade. Esta pode

ser singelamente definida como o enquadramento da conduta humana praticada aos

exatos termos – tipo penal – previstos na norma geral e abstrata contida na lei penal.

Magalhães Noronha15 em relação à tipicidade, afirma que Para ser crime, é mister ser típica a ação, isto é, deve a atuação do sujeito ativo do delito ter tipicidade. Atuar tipicamente é agir de acordo com o tipo. Este é a descrição da conduta humana feita pela lei e correspondente ao crime. Na sua integralidade, compõe-se do núcleo, designado por um verbo (matar, subtrair, seduzir etc.); de referencias ao sujeito ativo, isto é, condições ou qualidades que se devem encontrar no agente (militar, funcionário público, pai, médico etc.), ao sujeito passivo (Estado, mãe, filho menor etc.), ao objeto material (coisa móvel, documento, selo etc.), que freqüentemente se confunde com o sujeito passivo, v. g., no homicídio, em que o homem é o sujeito passivo e objeto material; referências não raras encontramos, ainda, ao tempo, lugar, ocasião e meios empregados.

Corroborando a idéia aqui defendida quanto à definição de tipicidade16,

Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli17 diferenciam os conceitos de

“tipo” e “tipicidade”, especialmente sob o enfoque da conduta humana. A este

15 NORONHA, op. cit., p.99. 16 Definindo a tipicidade penal, Francisco de Assis Toledo ressalta que “Temos, pois, de um lado,

uma conduta da vida real; de outro, o tipo legal de crime, constante da lei penal. A tipicidade formal consiste na correspondência que possa existir entre a primeira e a segunda. Sem essa correspondência não haverá tipicidade. Um fato da vida real será, portanto, típico na medida em que apresentar características essenciais coincidentes com as de algum tipo legal de crime. Será, ao contrário, atípico se não se ajustar a nenhum dos tipos legais existentes.” (TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 125).

17 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p.422-423.

136

respeito, afirmam que Não se deve confundir o tipo com a tipicidade. O tipo é a fórmula que pertence à lei, enquanto a tipicidade pertence à conduta. A tipicidade é a característica que tem uma conduta em razão de estar adequada a um tipo penal, ou seja, individualizada como proibida por um tipo penal. “Tipo” é a fórmula legal que diz “matar alguém” (está no CP); tipicidade é a característica de adequação ao tipo que possui a conduta de um sujeito “A” que dispara cinco tiros contra “B”, causando-lhe morte (está na realidade). A conduta de “A”, por apresentar a característica de tipicidade, dizemos que é uma conduta “típica”. a) Típica é a conduta que apresenta a característica específica de tipicidade (atípica, a que não apresenta); b) tipicidade é a adequação da conduta a um tipo; c) tipo é a fórmula legal que permite averiguar a tipicidade da conduta. O juiz comprova a tipicidade comparando a conduta particular e concreta com a individualização típica, para ver se se adequa ou não a ela. Este processo mental é o juízo de tipicidade que o juiz deve realizar. (grifo nosso)

Diante dessas conceituações de tipicidade, possível, a contrario sensu, tirar

uma conclusão lógica, que será importante para a demonstração da impropriedade

jurídica de enquadramento da prática médica da interrupção da gravidez como crime

de aborto, pela perspectiva da tipicidade: uma conduta humana que não se

enquadre hermeticamente ao tipo descrito na norma penal, não se configura como

crime, por lhe estar ausente a necessária condição de tipicidade.

Julio Fabbrini Mirabete, em consonância com Magalhães Noronha, ainda

ressalta que, para haver a tipicidade do crime, necessário não apenas a verificação

dos elementos objetivos do tipo (conduta, resultado, relação de causalidade e

descrição na lei), mas também, a verificação dos elementos normativos

(antijuridicidade) e dos elementos subjetivos. Este autor18 defende que [...] a tipicidade é a correspondência exata, a adequação perfeita entre o fato natural, concreto, e a descrição contida na lei. Como o tipo penal é composto não só de elementos objetivos, mas também de elementos normativos e subjetivos, é indispensável para a existência da tipicidade que não só o fato, objetivamente considerado, mas também a sua antijuridicidade e os elementos subjetivos se subsumam a ele. Há tipicidade no homicídio se o agente pratica a conduta de “matar alguém” (elementos objetivos), mas só há violação de segredo profissional se a revelação ocorrer “sem justa causa” (elemento normativo), e somente haverá rapto se o arrebatamento da mulher for praticado “para fim libidinoso” (elemento subjetivo). Só existe fato típico quando o fato natural estiver também preenchido pelo tipo subjetivo. Reconhece-se na doutrina moderna que o tipo penal tem duas funções. A primeira é a de garantia, já que aperfeiçoa e sustenta o princípio da legalidade do crime (item 2.1.1). A segunda é a de indicar a antijuridicidade do fato à sua contrariedade ao ordenamento jurídico. A tipicidade é o indício da antijuridicidade do fato. Praticado um fato típico, presume-se também a sua antijuridicidade, presunção que somente cessa diante da existência de uma coisa que a exclua. [...]

18 MIRABETE, op. cit., p.110-111.

137

E qual a relevância da tipicidade para a demonstração da impropriedade

jurídica que se pretende fazer? É que analisando-se o tipo penal do crime de

abortamento, em todas as modalidades previstas no Código Penal brasileiro,

verifica-se que a conduta consistente na antecipação do parto de feto anencéfalo

não possui tipicidade, ou seja, não está prevista na lei penal, não se

consubstanciando, portanto, em crime.

O tipo penal do abortamento, em todas as suas modalidades preconizadas no

Código Penal, nos artigos 124 a 128, é provocar (ocasionar) o “aborto”, seja tal

conduta praticada pela gestante, seja tal conduta praticada por terceiro, com ou sem

consentimento daquela.

O termo “aborto”, ou como preferimos, abortamento, não está previsto na lei

penal, ou em qualquer outra legislação pátria. Desta forma, necessário, para a

adequada delimitação do crime, socorrer-se da doutrina jurídica e da doutrina

médico-legal para definição do termo. E como foi verificado, exaustivamente no

capítulo segundo19 desta presente dissertação de mestrado, o conceito de

abortamento está indissociavelmente ligado ao induzimento à morte do produto da

concepção em razão da interrupção da gestação, valendo repisar que para

verificação do evento morte, necessária a viabilidade do produto da concepção.

Assim, o tipo do crime de abortamento é a provocação da morte do produto

da concepção com a interrupção da gravidez da gestante.

No segundo capítulo20 deste trabalho também ficou demonstrado, por meio do

raciocínio analógico realizado, que o início da vida humana, no ordenamento jurídico

pátrio, dá-se com o início da propagação das ondas elétricas cerebrais, bem como,

que a anencefalia, por ser uma malformação fetal congênita que implica na ausência

dos hemisférios cerebrais e córtex, impede a propagação de ondas eletroencefálicas

em seu portador, por deficiência morfológica. A partir destas duas assertivas, é

possível concluir-se que o feto anencéfalo não tem vida, na acepção jurídica de

nosso ordenamento pátrio.

Ademais, adentrando-se num aspecto mais filosófico, é possível afirmar, por

outro prisma, que o anencéfalo não possui vida humana porque jamais poderá

desenvolver quaisquer atividades cerebrais superiores, como cognição,

19 Cf. item 2.1 deste presente trabalho. 20 Cf. itens 2.4 e 2.5 deste presente trabalho.

138

comunicação, afetividade, dentre outras. O anencéfalo apenas desempenha poucas

atividades neuro-vegetativas, sendo extremamente dependente do organismo da

gestante. Por este motivo, e como já verificado no segundo capítulo, fatalmente o

anencéfalo21 terá vida extra-uterina curta. Logo, por este outro aspecto, de cunho

mais filosófico do que jurídico, chega-se novamente à conclusão de que não é

possível cogitar-se de vida humana em caso de anencefalia.

Diante destas digressões, verifica-se que a conduta consistente na prática

médica da antecipação terapêutica do parto de feto acometido por anencefalia não

possui a tipicidade do abortamento, já que, neste caso, não existe vida viável a ser

interrompida, pois o anencéfalo trata-se de um ser encefalicamente morto, nos

termos do ordenamento jurídico pátrio vigente. Assim, a interrupção da gravidez de

feto anencéfalo é fato atípico.

Cezar Roberto Bitencourt22, endossando o entendimento acima delineado,

ressalta que Na hipótese da anencefalia, embora a gravidez esteja em curso, o feto não está vivo, e sua morte não decorre de manobras abortivas. Diante dessa constatação, na nossa ótica, essa interrupção de gravidez revela-se absolutamente atípica e, portanto, sequer pode ser tachada como aborto, criminoso ou não.

Da mesma forma entende Luiz Flávio Gomes23, ao defender a ausência de

tipicidade da interrupção da gestação de feto anencéfalo, como se colhe do trecho

abaixo destacado: O aborto anencefálico elimina a dimensão material-normativa do tipo (ou seja: a tipicidade material) porque a morte, nesse caso, não é arbitrária, não é desarrazoada. Não há que se falar em resultado jurídico desvalioso nessa situação. [...] Pode-se afirmar tudo em relação ao aborto anencefálico, menos que seja um caso de morte arbitrária. Ao contrário, antecipa-se a morte do feto (cuja vida, aliás, está cientificamente inviabilizada), mas isso é feito em respeito a outros interesses sumariamente relevantes (saúde da mãe, sobretudo psicológica, dignidade, liberdade etc.). Não se trata, portanto, de uma morte arbitrária. O fato é atípico justamente porque o resultado jurídico (a lesão) não é desarrazoado (desarrazoada). Basta compreender que o “provocar o aborto” do art. 124 significa “provocar arbitrariamente o aborto” para se concluir pela atipicidade (material) da conduta. Esse, em suma é o

21 Aqui referimo-nos à anencefalia completa (verdadeira), já que em casos de anencefalias

incompletas, como merocrania, por exemplo, verificou-se relativa sobrevida do feto após o parto (cf. GOMES, Luiz Flávio. Aborto anencefálico: direito não é religião. Juris Síntese, São Paulo, n. 75, jan./fev. 2009). (CD ROM)

22 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial – dos crimes contra a pessoa. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p.145.

23 GOMES, Luiz Flávio. Aborto anencefálico: exclusão da tipicidade – material (II). Juris Síntese, São Paulo, n. 63, jan./fev. 2007. (CD ROM)

139

fundamento da atipicidade do aborto anencefálico.

No capítulo segundo ainda foram elencados mais alguns entendimentos24

jurídicos que concluem pela atipicidade25 da antecipação terapêutica do parto de

fetos anencefálicos.

Diante de toda a argumentação ventilada neste tópico, em razão de a

antecipação terapêutica do parto de feto anencéfalo ser conduta claramente atípica,

está demonstrada a impropriedade jurídica do enquadramento da interrupção da

gestação de feto anencéfalo como crime de abortamento.

5.2.2 Da demonstração da impropriedade em questão pelo prisma da antijuridicidade

Outro elemento do crime, de relevância para demonstração da impropriedade

jurídica de enquadramento da antecipação terapêutica do parto de anencéfalo como

se crime de abortamento fosse, é a antijuridicidade.

Antijuridicidade pode ser entendida como a relação de contrariedade entre

determinada conduta humana e o ordenamento jurídico. Julio Fabbrini Mirabete26

define antijuridicidade como “[...] a contradição entre uma conduta e o ordenamento

jurídico”. Acerca deste elemento do crime, Mirabete27 ainda afirma que [...] O fato típico, até prova em contrário, é um fato que, ajustando-se ao tipo penal, é antijurídico. Existem, entretanto, na lei penal ou no ordenamento jurídico em geral, causas que excluem a antijuridicidade do fato típico. Por esta razão, diz-se que a tipicidade é o indício de antijuridicidade, que será excluída se houver uma causa que elimine a sua ilicitude. “Matar alguém” voluntariamente é um fato típico, mas não será antijurídico, por exemplo, se

24 Cf. item 2.6 do presente trabalho. 25 Dílio Procópio Drummond de Alvarenga, professor aposentado de Direito Penal da Universidade

Federal de Juiz de Fora (MG), fazendo um raciocínio semelhante ao levado a cabo nesta presente dissertação de mestrado, defende, acerca da atipicidade da interrupção da gestação de feto anencéfalo que, “[...] à luz da legislação brasileira, o feto anencefálico é um morto cerebral que, se chegar a termo, só está à espera do nascimento para morrer clinicamente. A gravidez, então, pode ser interrompida sem os constrangimentos da ameaça penal. Por sinal, diga-se que os órgãos do produto da intervenção podem, sem nenhum impedimento, ser aproveitados para fins de transplante ou tratamento. Dogmaticamente, a razão da impunibilidade do aborto do feto anencefálico - que é um morto cerebral, prende-se à ausência de tipicidade, fundada em três causas: falta de objeto jurídico, falta de sujeito passivo próprio e falta de objeto material.” (ALVARENGA, Dílio Procópio Drummond de. Anencefalia e aborto . Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 324, 27 maio 2004. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5167>. Acesso em: 10 jul. 2009.).

26 MIRABETE, op. cit., p.165. 27 Ibidem, p.165.

140

o autor do fato agiu em legítima defesa. Nessa hipótese não haverá crime. A antijuridicidade, como elemento na análise conceitual do crime, assume, portanto, o significado de “ausência de causas excludentes de ilicitude”. A antijuridicidade é um juízo de desvalor que recai sobre a conduta típica, no sentido de que assim o considera o ordenamento jurídico.

Antijuridicidade28, portanto, é a potencialidade que dada conduta humana

possui de ofender ou contrariar os termos da lei penal.

Alguns autores entendem a antijuridicidade sob duplo aspecto: formal

(oposição da conduta à própria lei) e material29 (contrariedade aos bens protegidos

pela lei penal).

Em que pese a existência desta corrente doutrinária, preferimo-nos filiar à

corrente doutrinária que admite a antijuridicidade una, já que a lesão da conduta

humana ao bem jurídico protegido pela lei, nada mais é do que a ofensa à própria

norma jurídica que protege o bem lesado. Endossando esta ilação, e referindo-se à

corrente doutrinária penalista que admite a divisão da antijuridicidade em aspectos

formal e material, Francisco de Assis Toledo30 faz a ressalva de que Há, porém, outra corrente de pensamento que considera a distinção anteriormente examinada perfeitamente dispensável. E, a nosso ver, com razão. Um comportamento humana que se penha em relação de antagonismo com a ordem jurídica não pode deixar de lesar ou de expor a perigo de lesão os bens jurídicos tutelados por essa mesma ordem jurídica. Isso leva à conclusão de que a ilicitude só pode ser uma só, ou seja, aquele que se quer denominar “material”. Pensar-se em uma ilicitude puramente formal (desobediência à norma) e em outra material (lesão ao bem jurídico tutelado por essa mesma norma)

28 Desenvolvendo um raciocínio de exclusão para conceituar antijuridicidade, Eugênio R. Zaffaroni e

José H. Pierangeli defendem que “[...] a antijuridicidade surge da antinormatividade (tipicidade penal) e da falta de adequação a um tipo permissivo, ou seja, da circunstância de que a conduta antinormativa não esteja amparada por uma causa de justificação. A tipicidade penal implica a contrariedade com a ordem normativa, mas não implica a antijuridicidade (a contrariedade com a ordem jurídica), porque pode haver uma causa de justificação (um preceito permissivo) que ampare a conduta.” (ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, op. cit., p.437).

29 Francisco de Assis Toledo, citando a doutrina de Hans-Heinrich Jescheck, acerca da antijuridicidade material, afirma que seu conceito não se esgota na relação de conflito entre conduta e norma. Para este autor, que se refere à antijuridicidade como ilicitude, por entender ser termo mais técnico, “A ilicitude, assim entendida como relação de contrariedade entre o fato e a norma jurídica, tem sido qualificada de conceito puramente formal. Por isso certos autores, a partir de von Liszt, ao lado da denominada ilicitude (ou antijuridicidade) formal, se esforçam em desenvolver outro conceito mais enriquecido, ou seja, o de ilicitude material. Modernamente, Jescheck, para quem a ilicitude não se esgota na relação existente entre a ação e a norma, afirma que a ilicitude material leva igualmente em consideração a lesão ao bem jurídico protegido pela norma respectiva. E disso extrai o autor citado o que reputa de ‘relevante sentido prático’ a saber: a) a ilicitude material seria ponto de referência para a criação de tipos legais e sua aplicação no caso concreto, para a graduação do injusto e sua influência na dosimetria da pena, finalmente, para a interpretação teleológica dos tipos; b) conseqüência da ilicitude material seria a possibilidade de admissão de causas supralegais de justificação, com base no princípio da ponderação de bens.” (TOLEDO, op. cit., p.161-162).

30 Ibidem, páginas 162-163.

141

só teria sentido se a primeira subsistisse sem a segunda. Embora não se possa negar, conforme observa Jiménez de Asúa, essa possibilidade no plano do dualismo entre direito natural e direito positivo, o certo é que o conceito de ilicitude, ainda que não se confunda com a mera inobservância de um certo preceito legal – o que seria anacrônico positivismo jurídico – não pode deixar de ser considerado dentro dos limites de um determinado ordenamento jurídico. Correta, pois, a afirmação de Bettiol de que a contraposição dos conceitos em exame – antijuridicidade formal e material – não tem razão de ser mantida viva, “porque só é antijurídico aquele fato que possa ser reputado lesivo a um bem jurídico. Fora disso, a antijuridicidade não existe”.

A antijuridicidade, como elemento do crime, independe da verificação das

condições inerentes ao sujeito ativo da conduta; deve ser valorada objetivamente,

pelo aspecto conflituoso da conduta com a norma jurídica. Esse é o entendimento de

Magalhães Noronha31, como se colhe do trecho abaixo transcrito, extraído de sua

obra: A antijuridicidade representa um juízo de valor em relação ao fato lesivo do bem jurídico. E sua apreciação é puramente objetiva, não dependendo de condições próprias do autor do fato: tanto é ilícito o homicídio cometido por um homem normal como por um alienado. Em ambos os casos há antijuridicidade; a diferença é que no último não existe agente culpável e, conseqüentemente, punição. Mas a consideração que se faz das condições psíquicas do autor do fato, para se aferir a culpabilidade, é estranha à ilicitude. Noutras palavras, sintetiza Aníbal Bruno: “A vontade com que o sujeito atua, ineficaz para formar o núcleo da culpabilidade, é válida para constituir a ação ilícita.

E qual a importância da antijuridicidade para o presente estudo? A relevância

deste elemento do crime é justamente a exclusão da antijuridicidade. O próprio

ordenamento pátrio possui diversos dispositivos de natureza penal que permitem,

em ocasiões excepcionais, a realização da conduta criminosa, a despeito do

enquadramento da ação ou omissão ao tipo legal.

Sobre o assunto, Julio Fabbrini Mirabete32 ressalta que

O direito prevê causas que excluem a antijuridicidade do fato típico (causas excludentes da criminalidade, causas excludentes da antijuridicidade, causas justificativas, causas excludentes da ilicitude, eximentes ou descriminantes). São normas permissivas, também chamadas tipos permissivos, que excluem a antijuridicidade por permitirem a prática de um fato típico. [...] Para a maioria dos doutrinadores, presentes no fato os elementos objetivos constantes da norma permissiva, deixa ele de ser antijurídico, não se indagando do conteúdo subjetivo que levou o agente a praticá-lo. [...] O autor, para praticar fato típico que não seja antijurídico, deve agir no conhecimento da situação de fato justificante e com fundamento em uma autorização que lhe é conferida através disso, ou seja, querer atuar juridicamente.

31 NORONHA, op. cit., p.102. 32 MIRABETE, op. cit., p.167-168.

142

Diante das palavras acima referidas, conclui-se que, mesmo que praticada

uma conduta típica, havendo o direito definido alguma causa de exclusão de

ilicitude, a ação ou omissão humana passa a não ser antijurídica, não se

consubstanciando, portanto, num crime, por ausência de elemento essencial.

O direito penal pátrio contém algumas causas excludentes de ilicitude – ou

antijuridicidade. Algumas dessas eximentes apenas se adaptam a crimes

específicos, como no caso do abortamento, no qual o artigo 128, do Código Penal

exclui a ilicitude do “aborto” praticado por medido (i) para salvar a vida da gestante,

ou do aborto praticado por médicos, com o consentimento da gestante ou do seu

representante legal (se menor de idade a mulher), (ii) quando a gravidez é resultado

de estupro. Outras descriminantes são gerais, e servem para todos os tipos penais.

As excludentes de ilicitude geral estão previstas no artigo 23, do Código

Penal, e, segundo este referido diploma legal, não há crime quando o sujeito ativo

pratica a conduta típica: (i) em estado de necessidade; (ii) em legítima defesa; e (iii)

em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.

A demonstração da impropriedade jurídica do enquadramento da antecipação

terapêutica do parto de feto anencéfalo como crime de aborto, sob o aspectos da

antijuridicidade, irá demandar a absurda hipótese de admitirmos que tal prática

médica se enquadra no tipo penal do abortamento. Mas faremos isso apenas a título

de argumentação, a fim de comprovar que, mesmo na hipótese de tipificação da

interrupção da gestação de anencéfalo como crime de aborto, o que já foi repudiado

no tópico anterior, não existe crime.

Pelo prisma da antijuridicidade, a impropriedade jurídica em questão decorre

da existência de duas excludentes de ilicitude aplicáveis à conduta da antecipação

terapêutica do parto de anencéfalos, a saber: a conduta é derivada de estado de

necessidade da gestante e a conduta trata-se de mero exercício de direitos

fundamentais.

5.2.2.1 Do estado de necessidade

Está em o estado de necessidade “[...] a pessoa que, para salvar um bem

143

jurídico seu ou alheio, exposto a perigo atual ou iminente, sacrifica o de outrem”33.

O próprio Código Penal, em seu artigo 24, define o que vem a ser o estado de

necessidade, como se observa de sua redação: Art. 24 - Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se. (Redação dada pela Lei n. 7.209, de 11.7.1984)

A partir desta definição legal, é possível admitir que, para configuração do

estado de necessidade, devem estar preenchidos cinco requisitos, a saber: (i) perigo

de lesão a um bem jurídico; (ii) inevitabilidade da lesão ao bem de outrem; (iii)

conflito entre bens reconhecidos e protegidos pela ordem jurídica; (iv)

balanceamento dos bens e deveres em conflito; e (v) elemento subjetivo do agente.

Em relação ao primeiro requisito – perigo de lesão a um bem jurídico –, para

sua configuração, é preciso que haja direito protegido pelo ordenamento jurídico,

próprio ou alheio, em perigo atual e iminente, e necessariamente, não pode este

potencial risco ter sido ocasionado pelo sujeito ativo, que pratica o ato típico. Neste

sentido, Francisco de Assis Toledo34 afirma que “[...] esse perigo deve ser atual e

não pode ter sido voluntariamente provocado pelo agente do fato necessário. Há

que resultar de caso fortuito ou força maior.”.

No que pertine ao segundo requisito, qual seja, inevitabilidade da lesão ao

bem de outrem, para o seu reconhecimento, necessário que no conflito de bens

protegidos, o resguardo do bem defendido necessariamente depende do sacrifício

do bem lesado. Zaffaroni e Pierangeli35, discorrendo acerca deste segundo requisito

do estado de necessidade, dizem que ele apenas se verifica, efetivamente, quando O perigo não possa ser evitado por outro modo, o que constitui um requisito indispensável da necessidade. Se o perigo puder ser evitado por outro modo menos lesivo, naturalmente que não existirá necessidade e, conseqüentemente, também não haverá estado de necessidade.

Para enquadramento do terceiro requisito, conflito entre bens reconhecidos e

protegidos pela ordem jurídica, necessário que o bem defendido, o qual irá

prevalecer em face do bem lesado, seja legítimo e relevante.

Já no que tange ao balanceamento dos bens e deveres em conflito, o quarto

33 NORONHA, op. cit., p.188. 34 TOLEDO, op. cit., p.183. 35 ZAFFARONI, op. cit., p.564.

144

requisito do estado de necessidade, indispensável que o bem sacrificado seja de

igual ou menor conteúdo valorativo que o bem prevalente, analisando-se o peso dos

direitos e bens em conflito conforme uma escala de proporcionalidade e

razoabilidade. Acerca deste assunto, Magalhães Noronha36 afirma que Invoca-se aqui a importância do bem ameaçado em relação ao que se sacrifica. É mister sejam confrontados. Claro é que a comparação não há de ser rigorosa, não se olvidando o lado subjetivo que se apresenta na aferição do valor dos bens. [...] Todavia, os bens jurídicos oferecem uma graduação, há uma escala valorativa e, conseqüentemente, não se pode deixar de, no caso concreto, avaliá-los objetivamente, embora não se olvidando a situação, o estado de ânimo da pessoa. [...]

O último requisito, o elemento subjetivo do agente, pressupõe que o sujeito

que tenha cometido a conduta típica o tenha feito com a manifesta intenção de

salvaguardar o bem defendido. Para configuração do último requisito essencial do

estado de necessidade, Mirabete37 frisa que, “[...] como em todas as causas

excludentes da criminalidade, exige-se no estado de necessidade o elemento

subjetivo, ou seja, que o sujeito aja com a vontade de preservar o bem jurídico [...]”.

Diante da demonstração dos requisitos do estado de necessidade, verifica-se

que, na hipótese de ser a prática da interrupção da gestação de feto anencefálico

enquadrada como abortamento, o que apenas se admite para possibilitar a

demonstração do raciocínio em construção, como já mencionado, há a exclusão da

antijuridicidade da ação humana.

O perigo de lesão a bem jurídico está presente se for considerado que a

gravidez de feto anencéfalo representa iminentes e graves perigos à integridade

física e mental da gestante, conforme demonstrado no capítulo terceiro38.

A inevitabilidade da lesão ao bem de outrem fica configurada, na hipótese em

questão, pois a garantia dos direitos fundamentais da gestante à sua dignidade,

integridade física e autonomia, dependem, necessariamente, do “sacrifício da vida” –

na verdade, “pseudo-vida”, como já ressaltado – do feto portador de anencefalia.

O terceiro requisito do estado de necessidade, qual seja, o conflito entre bens

reconhecidos e protegidos pela ordem jurídica, está preenchido na hipótese de

antecipação do parto dos anencéfalos, pois os direitos da gestante, prevalentes no

caso, são legítimos e relevantes, sobretudo por se tratarem de direitos 36 NORONHA, op. cit., p.191. 37 MIRABETE, op. cit., p.171. 38 Cf. item 3.1 deste presente trabalho.

145

constitucionais fundamentais.

No que diz respeito ao quarto requisito do estado de necessidade, os direitos

defendidos – dignidade, saúde e autonomia da gestante – são mais relevantes,

numa valoração de pesos entre os direitos em conflito, com base numa escala de

proporcionalidade e razoabilidade, do que o direito à “vida” do anencéfalo, já que no

caso do anencéfalo, jamais de pode cogitar da existência de vida, seja à luz do

ordenamento pátrio, seja à luz da filosofia. Importante esclarecer que a prevalência

dos direitos da gestante sobre o direito do feto anencefálico foi exaustivamente

demonstrada no capítulo terceiro do presente trabalho39.

Por derradeiro, a prática médica da interrupção da gestação de feto

anencéfalo preenche o último requisito da eximente do estado de necessidade, pois

a gestante, ao manifestar o desejo de interromper a gravidez, bem como, a equipe

médica que realiza tal prática, ao antecipar o parto do anencéfalo, expressamente

manifestam o ânimo de preservar os direitos à dignidade, saúde e autonomia da

grávida.

Desta feita, configurada a causa excludente de ilicitude de estado de

necessidade, não há que se admitir que a interrupção da gestação de fetos

anencéfalos consubstancie-se em crime de abortamento, por exclusão de

antijuridicidade.

5.2.2.2 Do exercício regular de direito

Para demonstrar a impropriedade jurídica do enquadramento da antecipação

terapêutica do parto de fetos acometidos por anencefalia como crime de

abortamento, cabe ainda recorrer-se à segunda causa excludente de antijuridicidade

invocada: o exercício regular de direito.

Alexander Graf zu Dohna40 afirmava que “[...] uma ação juridicamente

permitida não pode ser, ao mesmo tempo, proibida pelo direito. Ou, em outras

palavras, o exercício de um direito nunca é antijurídico.”

Assim, verifica-se que determinada conduta, prescrita em lei e exercida nos

39 Cf. itens 3.2, 3.3 e 3.4 do presente trabalho. 40 DOHNA, Alexander Graf zu, apud TOLEDO, op. cit., p.213.

146

termos estabelecidos, se vier a incidir num tipo penal, não se materializa em crime,

em razão da excludente de ilicitude. Isso porque permissão legal específica e crime

são conceitos diametralmente opostos.

Todavia, em que pese haver a ressalva de ilicitude na conduta típica praticada

em exercício regular de direito, o direito invocado deve ser exercido nos próprios

limites da lei, sob pena de cometimento de excesso de direito, e exclusão da causa

eximente.

Corroborando esta assertiva acerca do exercício regular de direito, Julio

Fabbrini Mirabete41 afirma que “[...] é necessário que se obedeça às condições

objetivas do direito, que é limitado e, fora dos limites traçados na lei, haverá abuso

de direito, excesso. Responde o agente se não exercitar regularmente o Direito.”

No mesmo sentido, Francisco de Assis Toledo42 entende que Exercício “regular” é o que se contém nos limites impostos pelo fim econômico ou social do direito em causa, pela boa fé e pelos costumes. O exercício de um direito, com o intuito de prejudicar caracteriza o seu irregular exercício, ou seja, o abuso de direito, se o dano ocorre. Nessa hipótese, bem como naquelas em que o agente excede os limites objetivos de seu próprio direito, fica excluída a causa de justificação.

Como já referido no capítulo terceiro desta presente dissertação de mestrado,

a interrupção da gestação de fetos anencéfalos é exercício dos direitos

constitucionais fundamentais à dignidade, à saúde e à autonomia da gestante. Por

meio do exercício destas garantias, a mulher é respeitada em sua individualidade

pela sociedade e pelo Estado, ela evita danos à sua integridade física e repele

abalos gigantescos à sua integridade moral, bem como, ela pratica sua liberdade

individual.

Por outro lado, a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos, materializando

o exercício dos direitos fundamentais acima referidos, por implicar apenas na

antecipação de um evento inevitável, qual seja, a falência das funções vegetativas

do anencéfalo, já que não há morte do produto da concepção – pois este já é um

natimorto –, como defendido ao longo de todo este trabalho, não implica excesso de

direito.

Mesmo não havendo lei permitindo expressamente a prática médica

consistente na antecipação terapêutica do parto de fetos acometidos por

anencefalia, a realização de tal conduta é puro exercício dos direitos fundamentais à 41 MIRABETE, op. cit., p.182. 42 TOLEDO, op. cit., p.213.

147

dignidade, saúde e autonomia da gestante, que independem de regulamentação43,

sendo imediatamente aplicáveis, a teor do que prescreve o parágrafo 1º, do artigo 5º

da Constituição Federal, como se observa de sua redação: § 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

Desta forma, admitindo-se a hipótese de que a interrupção do parto de

anencéfalo enquadra-se44 no tipo penal do abortamento, tal prática médica, por

implicar exercício regular de direito da gestante, frise-se, sem excessos, não se

consubstancia em crime, por incidência de excludente de antijuridicidade.

Carolina A. S. Lima45, neste mesmo sentido, afirma que A permissão do aborto nos casos de anencefalia, desde que haja o consentimento da gestante, enquadra-se em uma hipótese de exercício regular de direito, causa excludente da ilicitude, conforme o inc. III do art. 23 do Código Penal. A fundamentação do exercício regular de direito está nos princípios de interpretação constitucional dos direitos fundamentais, em especial no princípio da proporcionalidade, como exposto neste capítulo.

Ante a demonstração realizada neste tópico, configurada a causa excludente

de ilicitude de exercício regular de direito, não há que se admitir que a antecipação

terapêutica do parto de fetos anencéfalos consubstancie-se em crime de

abortamento, por exclusão de antijuridicidade.

Logo, seja pelo prisma do estado de necessidade, seja pelo aspecto do

exercício regular de direito, em razão de a interrupção da gestação de feto

anencéfalo não ser conduta antijurídica, está novamente demonstrada a

impropriedade jurídica do enquadramento da interrupção da gestação de feto

anencéfalo como crime de abortamento.

43 Cf. item 1.4 do presente trabalho. 44 Repita-se, aqui, que esta hipótese apenas é utilizada a título de argumentação, para demonstrar a

impropriedade jurídica do enquadramento da antecipação do parto de anencéfalo como crime de abortamento pela ótica da antijuridicidade, pois foi robustamente repudiada no item 5.2.1 do presente trabalho.

45 LIMA, Carolina Alves de Souza. Aborto e anencefalia: direitos fundamentais em colisão. 1. ed. Curitiba: Juruá, 2009. p.164-165.

148

5.3 Da inconstitucionalidade do enquadramento da interrupção da gestação de

fetos anencéfalos como crime de abortamento

No tópico anterior, item 5.2 do presente trabalho, ficou demonstrado que a

prática médica da antecipação terapêutica do parto de fetos anencéfalos não se

consubstancia em crime de abortamento, já que, em razão da inexistência de

induzimento de morte do produto da concepção pela utilização deste procedimento

médico, inexiste a tipicidade penal.

Outrossim, na absurda hipótese de se enquadrar a prática da interrupção da

gravidez do feto anencéfalo no tipo penal do abortamento, o que apenas a título de

argumentação, também foi constatado que inexiste crime, em razão da exclusão da

antijuridicidade da conduta, seja por estado de necessidade, seja por exercício

regular de direito.

Por estes dois prismas analisados, no âmbito do Código Penal, chegou-se à

conclusão de que o enquadramento da conduta consistente na interrupção da

gestação de feto acometido por anencefalia como crime de abortamento é

verdadeira impropriedade jurídica. E, analisando-se a mesma questão sob a ótica

constitucional, chega à exata mesma conclusão: de que a antecipação terapêutica

do parto de fetos anencéfalos não constitui crime, como demonstrado na seqüência.

O artigo 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal de 1988, estabelece,

dentro da categoria dos direitos fundamentais – auto-aplicáveis, portanto – o

princípio da legalidade no processo penal, como se observa de sua redação: Art. 5º. [...] XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal; [...]

Segundo este direito fundamental de ordem penal, não existe crime sem que

haja uma lei válida – submetida ao devido processo legislativo constitucional – e

posterior à conduta que a defina como figura típica.

Francisco de Assis Toledo46, entendendo que tal direito se constitui numa

especial limitação da atividade estatal, em observância à obrigação de não

interferência estatal nas liberdades individuais, afirma que

46 TOLEDO, op. cit., p.21-22.

149

O princípio da legalidade, segundo o qual nenhum fato pode ser considerado crime e nenhuma pena pode ser aplicada, sem que antes desse mesmo fato tenha sido instituídos por lei o tipo delitivo e a pena respectiva, constitui uma real limitação ao pode estatal de interferir na esfera das liberdades individuais. [...] o princípio da legalidade costuma ser enunciado por meio da expressão latina nullum crimen, nulla poena sine lege, esta última construída por Feuerbach, no começo do século XIX. Significa, em outras palavras, que a elaboração das normas incriminadoras e das respectivas sanções constitui matéria reservada ou função exclusiva da lei. [...] Funda-se na idéia de que há direitos inerentes à pessoa humana que não são nem precisam ser outorgados pelo Estado. Sendo assim, e como não se pode negar ao Estado o poder de estabelecer certas limitações ou proibições, o que não estiver proibido está permitido (permittitur quod non prohibetur). Daí a necessidade de editarem-se proibições casuísticas, na esfera penal, o que, segundo o princípio em exame, compete exclusivamente à lei.

Deste princípio constitucional da legalidade em matéria penal, decorre a

impossibilidade de utilização da analogia, como meio interpretativo, para

enquadramento de uma conduta semelhante a um determinado tipo penal.

Corroborando este entendimento, Julio Fabbrini Mirabete47, acerca da legalidade, diz

que “[...] exige o princípio ora em estudo que a lei defina abstratamente um fato, ou

seja, uma conduta determinada de modo que se possa reconhecer qual o

comportamento considerado como ilícito”. E, concluindo seu raciocínio acerca do

artigo 5º, inciso XXXIX, da Carta Magna, este mesmo autor ressalta que “[...] em

razão do princípio da legalidade é vedado o uso da analogia para punir alguém por

um fato não previsto em lei, por este ser semelhante a outro por ela definido”48.

Como verificado no tópico anterior, a antecipação do parto de feto anencéfalo

não se consubstancia em crime de abortamento, por não haver a adequada

tipicidade entre a conduta analisada, e o tipo penal descrito na lei. Sequer, na

interrupção da gestação de anencéfalo, verifica-se o evento morte do produto da

concepção, pois nesse caso jamais existiu vida. Desta forma, por inexistir a

tipificação da conduta aqui referida em lei penal, é inconstitucional o seu

enquadramento como crime de “aborto”, por ofensa ao princípio da legalidade.

Como já referido, nem mesmo por analogia seria possível o referido

47 MIRABETE, op. cit., p.56. 48 Ibidem, p.56.

150

enquadramento, pois a prévia descrição legal da conduta deve ser específica49, de

modo a propiciar ao cidadão o prévio conhecimento das proibições destacadas no

ordenamento jurídico pátrio, como forma de aplicação dos princípios constitucionais

da liberdade individual e da segurança jurídica.

Defendendo a tese de que os crimes devem estar especificamente

capitulados na lei, sob pena de ofensa do princípio da legalidade penal, Gilmar

Ferreira Mendes50, sob a ótica constitucionalista, aponta que A reserva legal penal contempla, igualmente, o princípio da determinabilidade ou precisão do tipo pela (lex stricta), O indivíduo há de ter condições de saber o que é proibido ou permitido. Embora não se possa impedir a utilização de conceitos jurídicos indeterminados ou cláusula gerais, é certo que o seu uso não deve acarretar a não determinabilidade objetiva das conditas proibidas. [...] Nesse sentido, há de se considerar, igualmente, a proibição da analogia in malam partem, ou seja, a adoção da analogia para tipificar uma conduta como crime e agravar o seu tratamento penal. A despeito do caráter polissêmico da linguagem, não parece haver dúvida de que não pode o intérprete agravar a responsabilidade do agente “fora do quadro de significações possíveis das palavras”.

A partir do escólio supramencionado, verifica-se que a tipificação do

abortamento deve ser restrita aos casos em que ela se enquadre, não sendo

possível, por força da Constituição Federal, enquadrar uma conduta totalmente

dissonante nesse tipo penal, com base numa interpretação analógica, apenas por

existir um feto que após o parto exprime as características da morte. Quando o tipo

penal se refere a “aborto”, indispensável que se verifique o ocasionamento da morte

do produto da concepção após o procedimento abortivo, o que efetivamente não

acontece nos casos de interrupção da gravidez de feto anencéfalo, como

exaustivamente demonstrado ao longo deste presente trabalho.

A partir da argumentação aqui tecida, conclui-se que, pela ótica

constitucional, que a antecipação terapêutica do parto de fetos anencéfalos não se

consubstancia em crime, tendo-se em vista que inexiste, no ordenamento jurídico 49 Magalhães Noronha repisa, como forma de observância do princípio da legalidade penal, a

necessidade de existência de prévia capitulação criminal das condutas, razão pela qual seria vedada a utilização da analogia na interpretação da conduta analisada à luz dos tipos penais. Assim, sobre o princípio da legalidade penal, este autor, citando José Frederico Marques, aponta que “tem significado político e jurídico: no primeiro caso, é garantia constitucional dos direitos do homem, e, no segundo, fixa o conteúdo das normas incriminadoras, não permitindo que o ilícito penal seja estabelecido genericamente, sem definição prévia da conduta punível e determinação da sanctio juris aplicável.” (MARQUES, José Frederico. Curso de direito penal. p.132-133, apud NORONHA, op. cit., p.70).

50 MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008. p.592.

151

brasileiro, figura penal em que se enquadre tal conduta. Ademais, inviável a

utilização da interpretação analógica para utilização do tipo penal do abortamento,

pois a Constituição Federal, teleologicamente, ao buscar a não interferência estatal

nas liberdades individuais, veda tal expediente.

Assim, conclui-se que o enquadramento da interrupção da gestação de feto

anencéfalo como crime de abortamento é inconstitucional, pois patentemente fero o

princípio da legalidade penal, insculpido do artigo 5º, inciso XXXIX, da Lei Maior.

5.4 Da responsabilidade penal da gestante e da equipe médica que realiza o procedimento médico, nos casos de antecipação do parto do feto anencéfalo

Para desenvolvimento deste presente tópico, partiremos da hipótese mais

comumente verificada em nossa realidade social, pertinente ao tema deste presente

trabalho: equipe médica, constatando inequivocamente a anencefalia do feto,

realiza, em virtude do desejo da gestante, procedimento médico de antecipação do

parto.

A hipótese em questão, se realizada sem a necessária autorização legal para

tanto, provavelmente irá incidir no enquadramento da prática de aborto, trazendo

conseqüências tanto para a gestante quanto para a equipe médica. Partindo da

premissa de que tal prática médica vem sendo equiparada – equivocadamente, em

nossa opinião – ao crime de abortamento, e partindo também da premissa de que a

prática de crime acarreta a responsabilização penal do seu agente, tanto a gestante

quanto o médico estão, atualmente, sujeitos à responsabilização penal com a prática

médica da interrupção terapêutica do parto de fetos anencéfalos.

Neste caso, segundo a interpretação jurídica dominante, a gestante estará

sujeitas à penalidade insculpida no artigo 124, do Código Penal, por permitir que

outrem – equipe médica – provoque em si “aborto”.

Todavia, recorrendo-se às conclusões do item 5.2.1, verifica-se que não há

crime nesta hipótese, posto que a interrupção da gestação de feto anencéfalo possui

tipicidade, posto que não se enquadra hermeticamente ao tipo penal do

abortamento.

152

Por outro aspecto, verifica-se que a antecipação terapêutica do parto de feto

anencéfalo nada mais é do que conduta exercida em estado de necessidade pela

gestante, ante os iminentes riscos que a continuidade de uma gestação desta

modalidade podem lhe ocasionar, bem como, tal conduta consubstancia-se em

regular exercício de seus direitos à dignidade, à saúde e à autonomia, o que, nos

termos das conclusões do item 5.2.2 deste presente trabalho, resulta na exclusão da

ilicitude da conduta e, conseqüentemente, na inexistência de crime.

Portanto, verificando-se que inexiste conduta criminosa, no que pertine à

gestante, não há que se falar na responsabilização penal desta pela manifestação

do desejo de interromper a gravidez de feto anencefálico.

No que concerne à equipe médica que realiza o procedimento de antecipação

terapêutica do parto de feto anencéfalo, sem a necessária autorização judicial, e

motivada pelo desejo da gestante, considerando-se o entendimento hoje dominante

no meio jurídico, haverá a responsabilização penal desta, por enquadramento do

tipo penal previsto no artigo 126, do Código de Processo Penal.

Ocorre que, admitindo-se que não haverá a tipificação penal do abortamento

cometido por terceiros, como já ressaltado no item 5.2.1, e que a equipe médica

estará agindo dentro dos princípios bioéticos da autonomia do paciente, da

beneficência e da não-maleficência, dentro de seu dever legal de empregar sua

técnica em prol do bem da paciente, fica totalmente excluída a hipótese criminal de

abortamento.

Assim, verificamos que a prática médica da antecipação terapêutica do parto

de feto anencéfalo, motivada por desejo da mãe, mesmo sem a autorização judicial

permitindo a realização do procedimento em questão, não acarreta a

responsabilização penal da gestante, ou da equipe médica envolvida, a despeito do

entendimento jurídico dominante.

153

CAPÍTULO 6 MEDIDAS JUDICIAIS TOMADAS EM ÂMBITO NACIONAL PARA

PERMITIR A ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO DOS FETOS ANENCEFÁLICOS E JURISPRUDÊNCIA CORRELATA

Em que pese a interrupção da gestação dos fetos anencéfalos poder significar

o cometimento de crime de abortamento, conforme o atual e equivocado

entendimento jurídico dominante, nos termos do que fora apontado no capítulo

anterior, existem instrumentos jurídicos que permitem a realização da prática médica

em questão sem que tal conduta implique qualquer ilícito. Neste capítulo trataremos

de tais instrumentos.

6.1 A antecipação terapêutica do parto de anencéfalos no mundo – breve panorama global

Diversos países espalhados pelo mundo permitem a realização da prática

médica de antecipação terapêutica do parto de fetos anencéfalos. Alguns deles

possuem legislação específica sobre o assunto, mas a maior parte dos países que

admitem tal prática o fazem de forma genérica, dentro da permissão de interrupção

da gravidez por anomalia fetal incompatível com a vida.

Maíra Costa Fernandes afirma que cerca de 78 (setenta e oito) países do

mundo permitem, em seus ordenamentos jurídicos, a realização da interrupção da

gravidez em casos de anomalias fetais graves, como a anencefalia. Esta autora1

ainda afirma que este número de países pode aumentar se for considerada não

apenas o que está positivado na legislação destes países, mas se for analisada a

interpretação jurídica dominante, como se observa do trecho abaixo transcrito: Setenta e oito países permitem expressamente a interrupção da gravidez em caso de patologia fetal. Esse número pode ser ainda bem maior se considerarmos países como a Argentina, que não obstante não possuir autorização expressa em sua legislação, decidiu, recentemente, pela possibilidade de a gestante antecipar o parto de feto com anencefalia; Fiji,

1 FERNANDES, Maíra Costa. Interrupção da gravidez de feto anencefálico: uma análise

constitucional. Disponível em: <http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=887>. Acesso em: 24 mai. 2009.

154

cuja interpretação legal geralmente permite a interrupção nesses casos, sob a indicação de saúde mental; Guiné-Bissau, onde a lei portuguesa da época da colonização ainda não foi revogada, mas não é aplicada e o aborto é amplamente tolerado; Haiti, onde a interpretação oficial geralmente permite o aborto por anomalia fetal; Japão, onde a legislação não autoriza especificamente a prática da interrupção da gravidez em caso de patologia fetal, mas permite a prática de aborto por razões socioeconômicas, motivo pelo qual se presume que saúde mental e patologia fetal sejam também acobertadas por esses fundamentos; México, onde embora a lei do Distrito Federal proíba tal prática, alguns estados permitem o abortamento por patologia fetal, já que a legislação sobre aborto é regulada na esfera estadual; Nepal, onde as regras do Conselho Médico de 1976 permitem a prática de aborto, se houver possibilidade de a criança vir a sofrer de deformidade física; e, ainda, Togo, cuja interpretação oficial geralmente permite a interrupção da gravidez por anomalia fetal.

Iwasso2, embasado em estudo realizado em 1994, envolvendo 41 (quarenta e

um) países, frisou que “[..] 90% dos países desenvolvidos e 20% daqueles em

desenvolvimento permitiam interrupção de gestação em casos de anencefalia [...]”.

Dentre os países que permitem a antecipação terapêutica do parto de fetos

anencéfalos, grande parte deles encontra-se na Europa. A Alemanha, por exemplo,

permite a interrupção da gravidez de fetos que apresentem severas lesões

hereditárias. Claus Roxin, em participação na Conferência de encerramento do

Congresso de Direito Penal em homenagem ao Professor Claus Roxin, realizado

nos dias 06 e 07 de março de 2002, no Rio de Janeiro (RJ), com organização do

Site Mundo Jurídico, Centro Acadêmico Cândido de Oliveira (CACO) e Grupo de

Estudos da Faculdade Nacional de Direito (UFRJ), apontou o posicionamento

destacado da lei alemã, como se infere do trecho abaixo destacado, extraído do

texto3 formulado a partir da participação de Claus Roxin no retromencionado

congresso: O Direito Alemão, contrariamente ao brasileiro, permite o aborto de fetos que apresentem severas lesões hereditárias (§ 218 a I, II, StGB). Leva ele em conta a sobrecarga anímica e física que uma criança deficiente pode representar para a mãe, renunciando a exigir da vítima um tal sacrifício através do Direito Penal. E creio isto correto. Por um lado, aquela que se decide a dar à luz e criar uma criança que sofra de severa deficiência realiza um elevado valor ético, merecendo admiração. Mas isto deve ocorrer voluntária, e não coativamente. O Direito não pode exigir o heroísmo e tem de se contentar com o “mínimo ético”. Se isto estiver certo, tem de ser igualmente permitido deixar de implantar um embrião com severas lesões hereditárias. Afinal, seria insensato que se tivesse de implantar na mãe um embrião que depois vem a ser abortado, o que só acarretaria encargos desnecessários para ela.

2 IWASSO, 2004, apud GOLLOP, Thomaz Rafael. Anencefalia. Disponível em:

<www.ccr.org.br/uploads/noticias/Thomaz_Gollop_anencefalia.pps >. Acesso em: 12 jul. 2009. 3 ROXIN, Claus. A proteção da vida humana através do direito penal. Disponível em:

<http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=134>. Acesso em: 24 mar. 2009.

155

Thomaz Rafael Gollop, membro da Sociedade Brasileira para o Progresso da

Ciência (SBPC), em material apresentado durante audiência pública ocorrida no mês

de agosto de 2008 nos autos da Argüição de Descumprimento de Preceito

Fundamental (ADPF) n. 54, em trâmite perante o Supremo Tribunal Federal,

destacou diversos países nos quais é permitida a antecipação do parto de fetos

anencéfalos, sendo a maior parte destes, países desenvolvidos. Segundo Gollop4,

“A interrupção é permitida na Europa, Canadá, China, Cuba, Japão, Índia, Estados

Unidos, Rússia, Israel, Leste Europeu e na maioria dos Países da Ásia. Permitida no

Irã desde 2004 e também em Portugal, Espanha e Itália.”

Nos Estados Unidos da América, a interrupção de gravidez de feto

anencéfalo, apesar de permitida por lei, não é muito realizada e, tampouco, existe

número considerável de profissionais que desempenham especificamente este

procedimento médico. Tais dados estatísticos são decorrentes, provavelmente, pela

baixa incidência desta malformação fetal neste país. Corroborando esta assertiva,

Jefferson Adams5 afirma que Aborting a fetus with anencephaly is legal, but very few doctors perform late-term abortions, partly due to the controversy, and partly due to the rarity of the condition. One reason so few doctors specialize in this procedure is that only about one out of 150,000 to 200,000 babies born in the United States each year suffers from anencephaly.

Em janeiro de 2001, a Corte Suprema de Justiça Argentina autorizou a

antecipação do parto de um feto anencéfalo, firmando jurisprudência no país

portenho sobre o assunto. No rastro deste precedente jurisprudencial, em 2003, foi

promulgada a Lei nº 1.044 na cidade de Buenos Aires, permitindo a interrupção da

gravidez de fetos anencéfalos. Esta referida lei buscou resguardar os direitos das

mulheres grávidas de fetos portadores de má-formação irreversível e incurável, com

prognóstico de morte intra-útero, ou depois de poucas horas depois do nascimento.

Alguns países, como o Brasil, por exemplo, não vedam em seu ordenamento

jurídico, textualmente, a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos. Todavia,

neste grupo de países não existe entendimento jurídico pacífico quanto à

possibilidade de realização deste procedimento médico.

4 GOLLOP, op. cit. Disponível em: <www.ccr.org.br/uploads/noticias/Thomaz_Gollop_anencefalia.pps

>. Acesso em: 12 jul. 2009. 5 ADAMS, Jefferson. Anencephaly: what did Dr. George Tiller do? Disponível em:

<http://www.examiner.com/x-8543-SF-Health-News-Examiner~y2009m6d2-Anencephaly-What-did-Dr-George-Tiller-do>. Acesso em: 24 mai. 2009.

156

Finalmente, existe um grupo de países nos quais a antecipação do parto de

fetos anencéfalos é expressamente proibida. Este último grupo, formado por um

número considerável de países, representa sociedades grandemente influenciadas

por algum tipo de religião, como por exemplo, os países de religião muçulmana.

Exemplificando os países que formam este grupo, Gollop6 destaca que a

interrupção da gestação de fetos acometidos por anencefalia “[...] é proibida na

Irlanda, Malta, América do Sul (exceto Brasil, Uruguai), África (exceto na África do

Sul) e na maioria dos Países Islâmicos”.

6.2 A antecipação terapêutica do parto de anencéfalos no Brasil

No Brasil, como já mencionado no capítulo anterior, a realização da

interrupção da gestação de feto anencéfalo pode implicar o cometimento de crime

de abortamento pela gestante e pela equipe médica que realizou o procedimento,

tendo-se em vista o entendimento jurídico dominante no país.

O único meio jurídico existente para eximir, completamente, a

responsabilização pela da gestante e da equipe médica, atualmente, no caso de

prática do procedimento médico de antecipação terapêutica do parto de feto

anencéfalo, é a obtenção de alvará judicial permitindo a realização do referido

procedimento médico terapêutico.

Esta via judicial deve ser dirigida ao Juízo responsável pelo julgamento dos

crimes dolosos contra a vida – nas comarcas de vara única, deve o pedido judicial

deve ser dirigido diretamente ao juiz de direito, e nas comarcas onde existe mais de

uma vara, o pedido deve ser direcionado ao juiz de direito responsável pela vara

especializada do Júri – e deve conter os fundamentos de fato e de direito que

demonstram a inviabilidade da vida do feto anencéfalo, bem como, que demonstram

os perigos que referida modalidade de gestação representam à integridade física e

mental da mulher grávida.

No Brasil, segundo Thomaz Rafael Gollop7, de 1989 a 2008, cerca de 5.000

(cinco mil) alvarás judiciais foram concedidos para autorizar a interrupção da

6 GOLLOP, op. cit. Disponível em:<www.ccr.org.br/uploads/noticias/Thomaz_Gollop_anencefalia.pps

>. Acesso em: 12 jul. 2009. 7 Ibidem.

157

gestação de fetos anencéfalos.

O jornal O Estado de São Paulo8, por outro lado, embasado em dados

estatísticos extraídos de estudo realizado pelo Programa de Apoio a Projetos em

Sexualidade e Saúde Reprodutiva (Prosare), ligado ao Centro Brasileiro de Análise e

Planejamento (Cebrap), indica que, entre 2001 e 2006, foram protocolados 46

pedidos de aborto anencefálico no Brasil: 54% deferidos, contra 35% indeferidos

(alguns casos ficaram prejudicados ante a falência das funções vegetativas do feto

ainda no útero materno).

De qualquer forma, apesar da divergência dos dados estatísticos,

considerando-se que a anencefalia trata-se de uma malformação congênita

relativamente comum9, com ocorrência próxima a 05 (cinco) casos para cada 10.000

(dez mil) nascimentos, verifica-se que as hipóteses nas quais foram requeridos os

alvarás judiciais para interrupção da gravidez representam um universo bem

pequeno em relação ao total de casos de ocorrência da malformação em questão.

Pode-se indicar que o pequeno número de solicitações de alvarás judiciais

para interrupção da gestação de fetos anencéfalos no Brasil deve-se, entre outros

motivos, (i) ao constrangimento enfrentado pela mãe para realização do pedido, pois

a grávida comumente não quer revelar à sociedade o sofrimento que está

atravessando em sua gestação; (ii) ao grande risco de o pedido judicial ser

indeferido, o que contribuiria para majorar o já imenso sofrimento da gestante; (iIi)

aos custos elevados que representa a contratação de um advogado para

ajuizamento do pedido; (iv) ao pequeno número de defensores públicos que

possam, gratuitamente, promover judicialmente o pedido em nome da gestante.

Desta forma, o Direito carece de instrumentos que possam permitir, com

maior eficácia, a garantia estatal da obrigação de fornecer os meios necessários de

observância dos direitos à dignidade, à saúde e à autonomia da gestante, no caso

de gravidez de fetos acometidos por anencefalia.

8 ABORTO de anencéfalos é liberado em 54% dos casos. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 01 set.

2008. Caderno A. p.16. 9 Acerca da recorrência da anencefalia, Carolina A. S. Lima, citando José Luiz Dias Gherpelli, ressalta

que “trata-se de doença relativamente comum, mas que vem decaindo nas últimas décadas de cinco para dois a cada 10.000 nascidos vivos”. (GHERPELLI, José Luiz Dias, apud LIMA, Carolina Alves de Souza. Aborto e anencefalia: direitos fundamentais em colisão. 1. ed. Curitiba: Juruá, 2008. p.77). Luiz Flávio Gomes, apresentando dados ligeiramente diferentes, indica que “[...] de cada 10.000 nascimentos no Brasil, 8 são anencéfalos” (GOMES, Luiz Flávio. Aborto anencefálico: direito não é religião. Juris Síntese, São Paulo, n. 75, jan./fev. 2009.).

158

Para tentar solucionar esta problemática, a Confederação Nacional dos

Trabalhadores na Saúde – CNTS, com apoio técnico e institucional da ANIS –

Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, promoveu, em 17 de junho de

2004, Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) perante o

Supremo Tribunal Federal, na qual foi buscado a possibilidade de a gestante de

decidir pela antecipação terapêutica do parto na hipótese de feto anencefálico, com

base em seus direitos à dignidade, à saúde e à autonomia.

Como é cediço, a argüição de descumprimento de preceito fundamental é

uma medida de controle de constitucionalidade, prevista no artigo 102, § 1º, da Carta

Magna, com a finalidade de evitar ou reparar lesão a preceito fundamental,

resultante de ato do Poder Público, sendo admissível tal medida, ainda, quando

houver controvérsia constitucional acerca da interpretação de lei ou ato normativo

federal, estadual ou municipal, que esteja malferindo preceitos fundamentais. É

regulamentada pela Lei Federal n. 9.882, de 03 de dezembro de 1999.

Gilmar Ferreira Mendes10, acerca das finalidades da argüição de

descumprimento de preceito fundamental, asseverando ser tal medida claro

instrumento de controle de constitucionalidade concentrado, afirma que Como típico instrumento do modelo concentrado de controle de constitucionalidade, a ADPF tanto pode dar ensejo à impugnação ou questionamento direto de lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, como pode acarretar uma provocação a partir de situações concretas, que levem à impugnação de lei ou ato normativo. No primeiro caso, tem-se um tipo de controle concentrado em caráter principal, opera-se de forma direta e imediata em relação à lei ou ao ato normativo. No segundo, questiona-se a legitimidade da lei tendo em vista a sua aplicação em uma dada situação concreta (caráter incidental). Aqui a instauração do controle de legitimidade da norma da ADPF repercutirá diretamente sobre os casos submetidos à jurisdição ordinária, uma vez que a questão prejudicial a ser dirimida nesses processos será elevada à apreciação do Supremo Tribunal.

Uma dos objetos possíveis desta medida, conforme a legislação que

regulamenta a ação de argüição de descumprimento de preceito fundamental, é

justamente a controvérsia constitucional acerca de determinada interpretação

conferida por algum ou mais Tribunais à lei, seja esta federal, estadual ou municipal,

sendo a própria interpretação inconstitucional entendida como o ato do Poder

10 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso

de direito constitucional. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p.1149.

159

Público que lesa preceito – ou direito – fundamental11.

Na argüição de descumprimento de preceito fundamental12 promovida pela

Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), registrada perante o

Supremo Tribunal Federal sob o n. 54, foi indicado como ato do Poder Público

causador de lesões aos direitos fundamentais da gestante a interpretação conferida

pelos Tribunais pátrios aos artigos 124, 126, caput, e 128, incisos I e II, todos do

Código Penal brasileiro, que equivocadamente entendem haver crime de

abortamento na hipótese de realização do procedimento médico de antecipação do

parto de feto acometido por anencefalia.

Como pedidos cautelares, foram requeridos: (i) a suspensão de todos os

processos judiciais que versassem acerca da imputação do crime de abortamento à

gestante e à equipe médica que participou do procedimento de antecipação

terapêutica do parto de fetos anencéfalos, bem como, a suspensão dos efeitos das

decisões judiciais que decidiram pela aplicação das penalidades do crime de

abortamento, previsto nos artigos 124 e 126, ambos do Código Penal, à gestante e à

equipe médica que atuou nos casos em referência; (ii) o reconhecimento do direito

da gestante de se submeter ao procedimento médico de interrupção de gravidez,

nos casos em que indubitavelmente for constatada a malformação cerebral

anencefálica no feto.

Como pedido principal da argüição de descumprimento de preceito

fundamental foi requerida a declaração de inconstitucionalidade, com efeito erga

omnes13 e vinculante, da interpretação dos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II,

todos do Código Penal, que impeça a promoção do procedimento de antecipação do

parto de fetos anencéfalos, reconhecendo-se, por conseqüência, o direito da

gestante de submeter-se ao procedimento de interrupção da gestação de fetos 11 Gilmar Mendes, explicitando que a interpretação inconstitucional conferida por Tribunal ou

Tribunais a texto de lei equivale ao ato do Poder Público a ser evitado ou reparado, ressalta que “Pode ocorrer lesão a preceito fundamental fundada em simples interpretação judicial do texto constitucional. Nesses casos a controvérsia não tem por base a legitimidade ou não de uma lei ou de um ato normativo, mas se assenta simplesmente na legitimidade ou não de uma dada interpretação constitucional. [...] Não parece haver dúvida de que, diante dos termos amplos do art. 1º da Lei n. 9.882/99, essa hipótese poderá ser objeto de argüição de descumprimento de preceito fundamental – lesão a preceito fundamental resultante de ato do Poder Público –, até porque se cuida de uma situação trivial no âmbito de controle de constitucionalidade. Assim, o ato judicial de interpretação direta de um preceito fundamental poderá conter uma violação da norma constitucional. [...]”. (MENDES, op. cit., p.1162-1163.).

12 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54 (ADPF/67.115), rel. Min. Marco Aurélio de Mello, Brasília, argüente Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS).

13 Oponível a terceiros, mesmo que não sejam partes do processo.

160

anencéfalos independentemente da obtenção de alvará judicial e de quaisquer

outras autorizações estatais.

O relator da medida constitucional, Ministro Marco Aurélio Mendes de Faria

Mello, em 1º de julho de 2004, deferiu o pedido cautelar pleiteado, nos seguintes

termos: [...] O poder de cautela é ínsito à jurisdição, no que esta é colocada ao alcance de todos, para afastar lesão a direito ou ameaça de lesão, o que, ante a organicidade do Direito, a demora no desfecho final dos processos pressupõe atuação imediata. Há, sim, de formalizar-se medida acauteladora e esta não pode ficar limitada a mera suspensão de todo e qualquer procedimento judicial hoje existente. Há de viabilizar, embora de modo precário e efêmero, a concretude maior da Carta da República, presentes os valores em foco. Daí o acolhimento do pleito formulado para, diante da relevância do pedido e do risco de manter-se com plena eficácia o ambiente de desencontros em pronunciamentos judiciais até aqui notados, ter-se não só o sobrestamento dos processos e decisões não transitadas em julgado, como também o reconhecimento do direito constitucional da gestante de submeter-se à operação terapêutica de parto de fetos anencefálicos, a partir de laudo médico atestando a deformidade, a anomalia que atingiu o feto. É como decido na espécie.14

Desta feita, referido Ministro concedeu o provimento cautelar liminar pleiteado

pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde para o fim de autorizar a

interrupção da gestação nos casos em que for detectada anencefalia do feto,

independentemente da obtenção de alvará judicial ou de qualquer outra espécie de

permissão estatal, sem que isso implicasse no cometimento do crime de

abortamento para a gestante ou para a equipe médica que realizasse o

procedimento, bem como, para o fim de determinar, ainda, a paralisação dos

processos judiciais que versassem sobre esta matéria, como por exemplo, ações

penais que responsabilizassem a gestante e os profissionais da medicina por crime

de abortamento nos casos que envolvessem a antecipação do parto de fetos com tal

malformação congênita.

Posteriormente, em sessão Plenária do Supremo Tribunal Federal, designada

para verificar-se o cabimento da medida interposta, bem como, a manutenção de

medida cautelar concedida anteriormente, chegou-se a três conclusões: (i) a

argüição de descumprimento de preceito fundamental seria a medida cabível para

dirimir a controvérsia acerca da interpretação dos referidos artigos do Código Penal; 14 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54

(ADPF/67.115), rel. Min. Marco Aurélio de Mello, Brasília, argüente Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS), j. 01 jul. 2004. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?tipoConsulta=PROC&numeroProcesso=54&siglaClasse=ADPF>. Acesso em: 24 mai. 2009.

161

(ii) a medida liminar deveria, em sua primeira parte, ser mantida, continuando

suspensos os processos criminais de responsabilização penal da gestante e da

equipe médica por crime de abortamento na hipótese de interrupção de gravidez de

feto anencéfalo; (iii) em sua segunda parte, por importar em satisfação do objeto

principal da medida promovida, por maioria de votos foi revogada a segunda parte

da medida cautelar concedida, sendo cassada a possibilidade de a gestante

submeter-se a procedimento de antecipação terapêutica do parto de feto anencéfalo

independentemente de autorização judicial ou qualquer outra permissão estatal.

As conclusões acima referidas estão espelhadas na ementa de tal

julgamento, como se colhe do trecho abaixo colacionado: ADPF - ADEQUAÇÃO - INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ - FETO ANENCÉFALO - POLÍTICA JUDICIÁRIA - MACROPROCESSO. Tanto quanto possível, há de ser dada seqüência a processo objetivo, chegando-se, de imediato, a pronunciamento do Supremo Tribunal Federal. Em jogo valores consagrados na Lei Fundamental - como o são os da dignidade da pessoa humana, da saúde, da liberdade e autonomia da manifestação da vontade e da legalidade -, considerados a interrupção da gravidez de feto anencéfalo e os enfoques diversificados sobre a configuração do crime de aborto, adequada surge a argüição de descumprimento de preceito fundamental. ADPF - LIMINAR - ANENCEFALIA - INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ - GLOSA PENAL - PROCESSOS EM CURSO - SUSPENSÃO. Pendente de julgamento a argüição de descumprimento de preceito fundamental, processos criminais em curso, em face da interrupção da gravidez no caso de anencefalia, devem ficar suspensos até o crivo final do Supremo Tribunal Federal. ADPF - LIMINAR - ANENCEFALIA - INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ - GLOSA PENAL - AFASTAMENTO - MITIGAÇÃO. Na dicção da ilustrada maioria, entendimento em relação ao qual guardo reserva, não prevalece, em argüição de descumprimento de preceito fundamental, liminar no sentido de afastar a glosa penal relativamente àqueles que venham a participar da interrupção da gravidez no caso de anencefalia.15

No ano de 2008, e com fundamento no artigo 6º, § 1º, da Lei Federal n. 9.882,

de 03 de dezembro de 199916, foi determinada a realização de 03 (três) audiências

públicas, nas quais seriam ouvidos profissionais com experiência e autoridade nas

questões técnicas atinentes à anencefalia, realizadas entre os meses de agosto e

setembro deste referido ano.

15 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54

(ADPF/67.115), rel. Min. Marco Aurélio de Mello, Brasília, argüente Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS), j. 27 abr. 2005. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?tipoConsulta=PROC&numeroProcesso=54&siglaClasse=ADPF>. Acesso em: 24 mai. 2009.

16 § 1o Se entender necessário, poderá o relator ouvir as partes nos processos que ensejaram a argüição, requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, ou ainda, fixar data para declarações, em audiência pública, de pessoas com experiência e autoridade na matéria.

162

Realizadas as mencionadas audiências públicas, aguarda-se, para breve, o

pronunciamento final do Supremo Tribunal Federal acerca da possibilidade, ou não,

de submissão da gestante ao procedimento médico de antecipação terapêutica do

parto de fetos anencéfalos, independentemente da obtenção de alvará judicial ou

outras autorizações, e sem qualquer implicação penal.

Em entrevista à Revista Veja, o Ministro Marco Aurélio Mello, após ser

questionado acerca do motivo pelo qual trouxe a questão da interrupção da

gestação de anencéfalos à tona em audiências públicas, mesmo após revogação

parcial do provimento cautelar por ele deferido, ressaltou as recentes mudanças de

posicionamento do Supremo Tribunal Federal, acreditando na procedência da

argüição de descumprimento de preceito fundamental ajuizada, como se colhe do

trecho abaixo colacionado17: Em 2004, o plenário do STF derrubou uma liminar concedida pelo senhor que autorizava a interrupção da gestação de anencéfalos. Por que o senhor decidiu trazer o assunto à tona novamente? Tomei como base o resultado da recente votação na corte do uso de células-tronco embrionárias em pesquisas científicas. Se esse debate tivesse ocorrido em 2004, muito provavelmente o resultado não teria sido o mesmo. Embora a decisão a favor do uso de células-tronco tenha sido apertadíssima (6 votos contra 5), representou uma abertura do Supremo. Por isso, acredito que agora a Casa aprovará a interrupção da gestação de anencéfalos. Desta vez, a votação será menos apertada do que foi no caso das células-tronco. Diria que teremos um 7 a 4 ou um 8 a 3. E, depois que o Supremo bater o martelo, não adiantará recorrer ao Santo Padre.

Assim, eventual julgamento de procedência da presente ação irá significar, no

Brasil, o reconhecimento da viabilidade ética, jurídica e médica da possibilidade de

antecipação do parto de fetos anencéfalos, sendo tal decisão oponível a todos,

mesmo que não participantes do processo, e com efeito de vincular todas as demais

cortes pátrias. Desta forma, estará o Estado brasileiro obrigado à observar e garantir

o direito fundamental à dignidade, à saúde e à autonomia da gestante que carrega

um feto anencéfalo, o que não tem ocorrido em grande parte de nossos Tribunais.

Espera-se, pois, que uma medida judicial de forte repercussão, como a

argüição de descumprimento de preceito fundamental aqui referida, traga à

sociedade, com base na ética e na bioética, resultados práticos positivos, tornando-

se verdadeiro instrumento de transformação social.

17 LOPES, Adriana Dias. Pelo fim da hipocrisia. Veja, São Paulo, n. 2076, p. 74-75, 03 set. 2008.

163

6.3 Jurisprudência pátria concernente à interrupção da gravidez de feto

anencéfalo

Inicialmente, consignamos que se mostra despicienda a análise da

jurisprudência pátria relativa ao enquadramento da conduta consistente na

submissão da gestante à antecipação terapêutica do parto ao tipo penal do crime de

abortamento, pois se houvesse grandes questionamentos acerca da prevalência do

entendimento que defende a equiparação da conduta médica em referência ao crime

de abortamento, desnecessário revelar-se-ía o ajuizamento da argüição de

descumprimento de preceito fundamental mencionada no tópico anterior.

Outrossim, ante a iminência do julgamento que decidirá a possibilidade, ou

não, da realização do procedimento médico de interrupção da gestação de fetos

anencéfalos, independentemente da obtenção de alvará judicial ou outras

autorizações, e sem qualquer implicação penal, aparenta ser irrelevante o cotejo

analítico dos julgados que decidiram pela concessão ou indeferimento dos alvarás

judiciais requeridos para acobertar licitamente a prática médica em questão. Por

este motivo, faremos apenas um breve apanhado de julgados que exemplificam os

dois entendimentos existentes acerca do objeto deste presente trabalho, até mesmo

porque no tópico anterior ficou demonstrada a paridade, entre os anos de 2001 a

2006, dos julgados decididos em ambos os sentidos.

É grande a diversidade de julgados existentes negando à gestante e ao seu

marido o direito de interromper a gravidez de feto anencéfalo, sempre sob o

argumento de que o direito à “vida” do anencéfalo, supostamente superior a todos os

demais direitos invocados, prevalece sobre os direitos à dignidade e saúde da

gestante, e sobre o direito à autonomia dos genitores. Outro argumento utilizado

para negar-se o pedido de interrupção da gravidez é a equivocada18 equiparação da

antecipação terapêutica do parto de anencéfalo ao abortamento, sendo certo que

seria imprescindível, para concessão do pedido, a inequívoca demonstração de risco

à saúde da gestante, não podendo este ser presumido. Como exemplo destes

entendimentos, temos os seguintes julgados, obtidos junto às cortes pátrias:

18 Cf. capítulo segundo deste presente trabalho.

164

AUTORIZAÇÃO JUDICIAL DE ABORTO – FETO ANENCÉFALO – INVIABILIDADE – Embora constatada a anencefalia ou microcefalia do feto, inviável a autorização do aborto ante a garantia constitucional da vida humana no período de gestação.19 HABEAS CORPUS – ABORTO EUGÊNICO – AUTORIZAÇÃO PARA INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA – INOCORRÊNCIA – PRECEDENTES DO STF E DO STJ – AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL PARA A CONCESSÃO DA ORDEM – 1) segundo precedentes da suprema corte e do STJ, é perfeitamente comportável o pedido de autorização para interrupção da gravidez através do mandamus, tendo-se em vista a real ameaça de constrição à liberdade ambulatorial da paciente, caso venha a se efetivar o ato sem autorização judicial. 2) autorizar a prematura retirada do feto sem que isso se revele imprescindível para salvar a vida da gestante, é permitir a prática de ilícito penal, já que não há previsão de aborto eugênico em nosso ordenamento jurídico. 3) à míngua de expressa previsão legal a amparar a pretensão da impetrante, mostra-se incomportável a concessão da tutela jurisdicional invocada. 4) pedido conhecido, porém negada a ordem.20

Um caso emblemático, que externa o entendimento da impossibilidade de

interrupção da gravidez de feto anencéfalo, é a hipótese cuja ementa é colacionada

abaixo. Segundo tal julgado, há equiparação da antecipação do parto de feto

anencefálico ao crime de abortamento, sendo certo que por tal razão, inexistiria no

artigo 128, do Código Penal, causa excludente de ilicitude que amparasse o pedido

de interrupção da gestação, sendo este, por tais razões, negados, como se observa

do teor de referida ementa: HABEAS CORPUS – DEFESA DO NASCITURO – AUTORIZAÇÃO PARA ABORTO EUGÊNICO – IDONEIDADE DO WRIT – “Habeas Corpus. Penal. Pedido de autorização para a prática de aborto. Nascituro acometido de anencefalia. Indeferimento. Apelação. Decisão liminar da relatora ratificada pelo colegiado deferindo o pedido. Inexistência de previsão legal. Idoneidade do writ para a defesa do nascituro. 1. A eventual ocorrência de abortamento fora das hipóteses previstas no Código Penal acarreta a aplicação de pena corpórea máxima, irreparável, razão pela qual não há se falar em impropriedade da via eleita, já que, como é cediço, o writ se presta justamente a defender o direito de ir e vir, o que, evidentemente, inclui o direito à preservação da vida do nascituro. 2. Mesmo tendo a instância de origem se manifestado, formalmente, apenas acerca da decisão liminar, na realidade, tendo em conta o caráter inteiramente satisfativo da decisão, sem qualquer possibilidade de retrocessão de seus efeitos, o que se tem é um exaurimento definitivo do mérito. Afinal, a sentença de morte ao nascituro, caso fosse levada a cabo, não deixaria nada mais a ser analisado por aquele ou este Tribunal. 3. A legislação penal e a própria Constituição Federal, como é sabido e consabido, tutelam a vida como bem maior a ser preservado. As hipóteses em que se admite atentar contra ela estão elencadas de modo restrito, inadmitindo-se interpretação extensiva, tampouco analogia in malam partem. Há de prevalecer, nesse caso, o princípio da reserva legal. 4. O Legislador eximiu-se de incluir no rol das

19 BRASIL, Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia. Apelação Crim. n. 100.012.2005.002759-1,

Rel. Des. Ivanira Feitosa Borges, Câmara Criminal, Porto Velho, julg. 07.12.2005. 20 BRASIL, Tribunal de Justiça do Estado de Goiás. Habeas Corpus n. 30426-5/217 (200704451667),

Rel. Des. Paulo Teles, Goiânia, julg. 29.11.2007.

165

hipóteses autorizativas do aborto, previstas no art. 128 do Código Penal, o caso descrito nos presentes autos. O máximo que podem fazer os defensores da conduta proposta é lamentar a omissão, mas nunca exigir do Magistrado, intérprete da Lei, que se lhe acrescente mais uma hipótese que fora excluída de forma propositada pelo Legislador. 5. Ordem concedida para reformar a decisão proferida pelo Tribunal a quo, desautorizando o aborto; outrossim, pelas peculiaridades do caso, para considerar prejudicada a apelação interposta, porquanto houve, efetivamente, manifestação exaustiva e definitiva da Corte Estadual acerca do mérito por ocasião do julgamento do agravo regimental.”.21

Por outro lado, verifica-se a existência de vários julgados que demonstram

entendimento favorável à antecipação do parto de fetos anencéfalos. Grande parte

deles está sustentado na prevalência dos direitos fundamentais da gestante em

relação ao direito à “pseudo-vida” do feto anencéfalo. Há, inclusive, julgados que

admitem a mesma interpretação constitucional em outros casos de malformação

fetal letal. Neste sentido, colaciona-se as ementas abaixo transcritas: APELAÇÃO CRIMINAL – AUTORIZAÇÃO JUDICIAL – GRAVIDEZ – INTERRUPÇÃO – MÁ-FORMAÇÃO CONGÊNITA – ANENCEFALIA – COMPROVAÇÃO – PROVIMENTO DO APELO – UNANIMIDADE – Diagnosticada a ausência de calota craniana ou acrania fetal, com previsão de óbito intra-uterino ou no período neonatal, deve-se garantir à gestante o direito constitucional de submeter-se à operação terapêutica para interrupção da gravidez, a despeito de tal hipótese não se achar prevista dentre as causas autorizadoras do aborto, dispostas no art. 128 do Código Penal. Impõe-se a observância da decisão liminar com efeito vinculante, proferida pelo Ministro do STF, Marco Aurélio de Mello, em sede de Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54 MC/DF, autorizando a operação terapêutica de parto de fetos anencefálicos.22 ABORTO – EUGÊNICO – AUTORIZAÇÃO – ADMISSIBILIDADE – IMPOSSIBILIDADE DE VIDA EXTRA-UTERINA – Detecção de cardiopatia grave e má formação de diversos órgãos – Deformidade absoluta e irreversível – Interrupção da gravidez que vem a evitar tanto o risco de vida da mãe quanto o seu sofrimento em saber que daria à luz a um natimorto – Segurança concedida.23

Há alguns outros julgados que sustentam a possibilidade de interromper-se a

gravidez de feto anencefálico com escopo numa interpretação extensiva dos incisos

I e II, do artigo 128, do Código Penal. Segundo o julgado abaixo transcrito, havendo

risco para a gestante, decorrente da gravidez, está amparada, com espeque no

inciso I, do retromencionado dispositivo legal, a antecipação do parto, como se

colhe:

21 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus n. 32.159/RJ, Rel. Min. Laurita Vaz, 5ª

Turma, Brasília, julg. 22.03.2004. 22 BRASIL, Tribunal de Justiça do Estado do Acre. Apelação Criminal n. 2004.001375-5, Rel. Des.

Arquilau Melo, Rio Branco, DJAC 21.10.2004, p.04. 23 BRASIL, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Mandado de Segurança n. 418.592.3/4-00,

Rel. Des. Barbosa Moreira, 5ª Câm. Criminal, São Paulo, DJSP 13.08.2006, p.36.

166

Diante do pedido de autorização para aborto, instruída com laudos médicos e psicológicos favoráveis, evidenciando o risco á saúde da gestante, mormente a psicológica, pois comprovado que o feto é portador de anencefalia (ausência de cérebro), autoriza-se a interrupção da gravidez.24

O outro julgado que se escora na interpretação extensiva do artigo 128, do

Código Penal, demonstra o entendimento de que, se o inciso II, do precitado

dispositivo penal, exclui a antijuridicidade do crime de abortamento na hipótese de

gravidez decorrente de crime de estupro, mesmo sendo uma vida viável, da mesma

forma deve amparar a interrupção da gravidez de feto anencéfalo, que possui

comprovadamente diagnóstico de inviabilidade, como se observa de sua ementa: Se o Código Penal Brasileiro permite a interrupção da gravidez para expulsão antecipada do feto mesmo naqueles casos em que esse feto tenha conformação viável e apresente perspectiva de vida extra-uterina saudável (art. 128, incisos I e II, CP), não se iria sustentar que, numa situação aflitiva e dolorosa, em presença de feto anencefálico, o rigor empedernido da lei penal devesse impedir que a mulher pudesse, por sua espontânea vontade (tanto quanto no caso de gestação decorrente de estupro), obter a interrupção de uma gravidez que, embora desejada um dia, depois (graças ao avanço da Medicina) se comprovou ser totalmente inviável.25

Finalmente, espelhando a jurisprudência pátria que circunda o tema objeto

desta presente dissertação de mestrado, não raro se observa a perda superveniente

do objeto do recurso criminal, do Habeas Corpus ou do mandado de segurança,

interposto para permitir a antecipação terapêutica do parto de anencéfalos em razão

da falência das funções vegetativas do feto malformado. Tal perda superveniente do

objeto do remédio processual é devida à demora na tramitação dos recursos

judiciais, que acabam frustrando os anseios da gestante, e ainda, ampliando seu

sofrimento físico e moral. Neste sentido: HABEAS CORPUS – ABORTO – INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – FETO ANENCÉFALO – PARTO – PERDA DO OBJETO – 1. Constatada a realização do parto pela chegada a termo da gravidez, perde seu objeto o presente writ que visava o deferimento de autorização para realizar o procedimento abortivo, por ser o feto anencéfalo. 2. Writ julgado prejudicado.26

24 BRASIL, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Mandado de Segurança n. 329.564.3/3-00,

Rel. Des. David Haddad, 1ª Câm. Criminal, São Paulo, julg. 20.11.2000. 25 BRASIL, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Mandado de Segurança n. 498.281.3/0,

impetrante: Denise Aparecida Pisreira Toyama e seu marido, impetrado: MM. Juiz de Direito da 2ª Vara de Indaiatuba, Rel. Des. Pires Neto, 2ª Câm. Criminal, São Paulo, j. 08.08.2005.

26 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus n. 54.317/SP (200600299193), Rel. Min. Laurita Vaz, 5ª Turma, Brasília, DJU 19.06.2006, p.167.

167

Este foi, pois, um breve apanhado da situação jurisprudencial que circunda a

questão concernente à antecipação terapêutica do parto de fetos anencéfalos, que

demonstra a existência de forte controvérsia quando à viabilidade de realização de

tal prática médica. Este quadro demonstra, ainda, a premência pelo julgamento da

Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54, em trâmite perante o

Supremo Tribunal Federal, de forma que seja conferida segurança jurídica à

gestante que carrega feto anencéfalo e que deseja interromper tal gravidez em

exercício de seus direitos fundamentais à dignidade, à saúde e à autonomia.

6.4 Da viabilidade ética, médica e jurídica dos projetos de lei em trâmite perante o Congresso Nacional, atinentes à antecipação terapêutica do

parto de fetos anencéfalos

Existem alguns projetos de lei, concernentes à interrupção da gravidez de feto

anencéfalo, tramitando perante as casas legislativas – Câmara dos Deputados e

Senado. Alguns deles corroboram as conclusões alcançadas ao longo dos capítulos

deste presente dissertação de mestrado, e outros, nem tanto.

Passaremos, então, à breve análise de alguns dos projetos de lei mais

relevantes, atinentes ao objeto deste presente trabalho.

O projeto de lei n. 1174/1191, de autoria do então Deputado Federal Eduardo

Jorge, filiado à época ao Partido dos Trabalhadores (PT), eleito pelo Estado de São

Paulo, com sustentáculo no direito da gestante à garantia de sua saúde física,

mental e social, propunha a alteração do artigo 128, do Código Penal, com

acréscimo de um inciso. Tal acréscimo permitiria o abortamento, com supedâneo na

exclusão da antijuridicidade da conduta, de fetos com enfermidades graves.

O redação do artigo 128, do Código Penal, de acordo com este projeto de lei,

passaria a ter a seguinte redação: Art. 128. Não se pune o aborto praticado por médico: I – se a gravidez determinar perigo para a vida ou a saúde física ou psíquica da gestante; II – se for constatada no nascituro enfermidade grave e hereditária ou se alguma moléstia ou intoxicação ou acidente sofrido pela gestante

168

comprometer a saúde do nascituro; III – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.27

Inicialmente, cumpre asseverar que a nova possibilidade de exclusão de

ilicitude trazida por este projeto de lei, estampada no inciso II do texto legal proposto,

não diferencia a espécie de enfermidade grave que acomete o feto, o que daria azo

à prática do aborto eugênico. Na hipótese de utilização da nova possibilidade trazida

por este projeto de lei, poderia haver o ocasionamento de morte de uma vida viável,

o que não se coaduna com o exercício do direito à vida. A possibilidade aberta por

este projeto de lei, difere da interrupção da gravidez de anencéfalo, pois neste último

caso, há certeza quanto à inexistência e inviabilidade de vida.

Desta, não se vislumbra a viabilidade ética e jurídica do Projeto de Lei n.

1.174/1991, apesar de sua motivação ser digna de elogios. No entanto, este projeto

de lei encontra-se arquivado, desde 05 de dezembro de 2007, em razão de existirem

outros projetos de lei tratando sobre assuntos semelhante, com tramitação mais

avançada.

O segundo projeto de lei em análise é o de n. 660/2007, de autoria da

Deputada Federal Cida Diogo, filiada ao Partido dos Trabalhadores, eleita pelo

Estado do Rio de Janeiro. Tal projeto, apensado ao já mencionado PL n.

1.174/1991, embasado nos direitos à dignidade, à saúde, e à autonomia da

gestante, propunha a exclusão de ilicitude da prática médica da antecipação

terapêutica do parto de feto anencéfalo, equiparando, portanto, tal conduta ao crime

de abortamento.

Na justificativa de tal propositura legal, foi asseverado que não era intenção

da proposta a submissão de todas as grávidas em mesma situação ao procedimento

médico terapêutico, mas apenas a submissão daquelas que assim o desejassem. A

intenção deste projeto de lei, portanto, seria a exclusão antijuridicidade da conduta

em referência, por meio do acréscimo de um novo inciso ao artigo 128, do Código

Penal, a saber:

27 BRASIL, Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 1.174, de 01 ago. 1991. Disponível em:

<http://imagem.camara.gov.br/dc_20.asp?selCodColecaoCsv=D&Datain=2/8/1991&txpagina=12357&altura=700&largura=800>. Acesso em: 03 mai. 2009.

169

Art. 128 ............................................................... Aborto Terapêutico III – Houver evidência clínica embasada por técnica de diagnóstico complementar de que o nascituro apresenta grave e incurável anomalia, que implique na impossibilidade de vida extra uterina.28

Tal projeto de lei, apesar de possuir viabilidade ética, médica e jurídica, nos

termos das conclusões obtidas nos capítulos segundo e terceiro desta presente

monografia, tem como impropriedade a equiparação da interrupção da gravidez de

feto anencéfalo ao procedimento de abortamento. Da mesma forma que aconteceu

com o PL n. 1.174/1991, este PL n. 660/2007 foi arquivado.

Já o projeto de lei n. 4403/2004, de autoria da então Deputada Federal pelo

Estado do Rio de Janeiro Jandira Feghali, filiada ao Partido Comunista do Brasil

(PCdoB), em conjunto com outros deputados, encontra-se tramitando, e, embasado

nos direitos fundamentais da gestante, sobretudo no direito à integridade psíquica da

mulher, inicialmente propunha a possibilidade de realização de abortamento em

casos de evidência de grave e incurável anomalia fetal que implicassem

impossibilidade de vida extra-uterina, por meio da inclusão de novo inciso ao artigo

128, do Código Penal.

Após análise da Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos

Deputados, o texto foi aprovado, mas com emenda proposta pelo relator de tal

comissão, passando tal projeto de lei a prever a inclusão do seguinte inciso ao

referido artigo do Código Penal: Art. 128............................................................... Aborto Terapêutico III – quando há evidência clínica embasada em técnica de diagnóstico complementar de que o nascituro apresenta anencefalia e o aborto é precedido de consentimento da gestante.29

Desta forma, após a emenda aprovada, o projeto de lei em lume passou a ser

restrito à hipótese de antecipação do parto de feto anencéfalo. Atualmente, esta

propositura legal aguarda encaminhamento à Comissão de Constituição e Justiça da

Câmara dos Deputados.

28 BRASIL, Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 660, de 04 abr. 2007. Disponível em:

<http://www.camara.gov.br/sileg/integras/449057.pdf>. Acesso em: 03 mai. 2009. 29 BRASIL, Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 4403, de 10 nov. 2004. Disponível em:

<http://www.camara.gov.br/sileg/integras/305900.pdf>. Acesso em: 03 mai. 2009.

170

A redação de tal propositura legal, em razão da exclusão da antijuridicidade

da conduta de interrupção da gestação desta espécie de feto, possui viabilidade

ética, jurídica e médica, pois conjuga a proteção à saúde da gestante aos direitos à

dignidade e autonomia desta. Mas novamente peca por equiparar a conduta médica

em questão ao procedimento de abortamento, o que, como já foi demonstrado no

segundo capítulo30 deste presente trabalho, não procede.

O projeto de lei n. 4.834/2005, de autoria dos Deputados Luciana Genro e Dr.

Pinotti, em suma, possui a mesma motivação do PL n. 4.403/2004, e possui

redação31 praticamente idêntica, propondo a possibilidade de interrupção da

gravidez de feto anencéfalo por meio da exclusão de antijuridicidade da conduta,

acarretando a inclusão de novo inciso ao artigo 128, do Código Penal.

O projeto de lei n. 227/2004, de autoria do Senador Mozarildo Cavalcanti, é

praticamente idêntico aos dois anteriormente analisados, inclusive em sua

redação32, e, apesar de reunir a mesma viabilidade ética, médica e jurídica, incide na

mesma falha: ao prever causa de exclusão de ilicitude para a conduta, equipara a

interrupção de gravidez de feto anencéfalo ao procedimento do abortamento.

O último projeto de lei a ser analisado, na contramão da tendência verificada

nos demais projetos propostos, não busca viabilizar a prática do procedimento

médico de antecipação terapêutico do parto de feto anencéfalo, mas pretende

expressamente criminalizar tal conduta, por meio da alteração dos artigos 124 a 128,

do Código Penal.

Trata-se do projeto de lei n. 1.459/2003, de autoria do então Deputado

Federal eleito pelo Estado de Pernambuco Severino Cavalcanti, filiado ao Partido

Progressista (PP), fundido por força do substitutivo aprovado pela Comissão de

Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados, ao projeto de lei n.

5.166/2005, de autoria do Deputado Federal Hidekazu Takayama eleito pelo Estado

do Paraná, na época filiado ao Partido do Movimento Democrático Brasileiro

(PMDB).

Este último projeto de lei, que aguarda análise da Comissão de Constituição e

Justiça da Câmara dos Deputados, sob alegação de defesa da “vida” do feto

30 Cf. item 2.6 deste presente trabalho. 31 BRASIL, Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 4834, de 01 mar. 2005. Disponível em:

<http://www.camara.gov.br/sileg/integras/277708.pdf>. Acesso em: 03 mai. 2009. 32 BRASIL, Senado Federal. Projeto de Lei n. 227, de 11 ago. 2004. Disponível em:

<http://www.senado.gov.br/sf/atividade/Materia/getPDF.asp?t=38128>. Acesso em: 03 mai. 2009.

171

anencéfalo, propõe alterações nos artigos 124 a 128, do Código Penal, para

criminalizar expressamente a conduta de antecipação terapêutica do parto de feto

anencéfalo, equiparando-a, inclusive em termos de penalização, ao crime de

abortamento, como se colhe de sua redação: ABORTO OU ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DE PARTO ANENCEFÁLICO OU INVIÁVEL PROVOCADO PELA GESTANTE OU COM SEU CONSENTIMENTO. Art. 124 Provocar a gestante aborto ou antecipação terapêutica de parto de feto anencefálico ou inviável em si mesmo ou consentir que outrem lhe provoque. Pena - reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos. Parágrafo único. Seu crime é culposo: detenção de 1 (um) a(3) três anos. ABORTO OU ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DE PARTO DE FETO ANENCEFÁLICO OU INVIÁVEL PROVOCADO POR TERCEIRO. Art. 125 Provocar aborto ou antecipação terapêutica de parto de feto anencefálico ou inviável, sem o consentimento da gestante. Pena: reclusão de 3 (três) a 10 (dez) anos. Parágrafo único. Se o crime é culposo: detenção de 1 (um) a 3 (três) anos. Art. 126 Provocar aborto ou antecipação terapêutica de parto de feto anencefálico ou inviável com o consentimento da gestante: Pena: reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos. Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de 14 (quatorze) anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência. FORMA QUALIFICADA Art. 127 As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em conseqüência do aborto ou da antecipação terapêutica de parto de feto anencefálico ou inviável ou dos meios empregados para provocá-la, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave, sem prejuízo das penas correspondentes à violência; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte. Art. 128 Não se pune o aborto ou a antecipação terapêutica do feto anencefálico ou inviável praticado por médico. ABORTO OU ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DE PARTO DE FETO ANENCEFÁLICO OU INVIÁVEL NECESSÁRIA. I – se não há outro meio de salvar a gestante; ABORTO OU ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DE PARTO DE FETO ANENCEFÁTICO OU INVIÁVEL NO CASO DE CRIMES CONTRA OS COSTUMES. II – se a gravidez resulta de qualquer dos crimes contra os costumes definidos nos Capítulos I e II, do Título VI da Parte Especial do Código Penal e aborto ou a antecipação terapêutica de parto de feto anencefálico ou inviável é precedida de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.33

Verifica-se que este último projeto de lei, ao criminalizar a conduta consistente

na interrupção da gestação de feto anencéfalo, obriga a gestante a aguardar o termo 33 BRASIL, Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 1.459, de 09 jul. 2003. Disponível em:

<http://www.camara.gov.br/sileg/integras/559342.pdf>. Acesso em: 03 mai. 2009.

172

habitual da gravidez, carregando, mesmo contra sua vontade, o feto inviável, o que,

além de significar patente ofensa aos direitos fundamentais à dignidade e à

autonomia da gestante, implica iminentes riscos às integridades física e psíquica.

Desta feita, não há a mínima viabilidade ética, médica e jurídica em tal projeto de lei.

Diante da análise dos projetos de lei aqui referidos, verifica-se a tendência

legislativa, com algumas exceções, de viabilizar, juridicamente, a prática médica da

antecipação terapêutica do parto de fetos anencéfalos. Todavia, esta tendência

esbarra na falha de equiparar o referido procedimento médico à prática do

abortamento, pois ao excluir a antijuridicidade da conduta, os projetos de lei

admitem o seu enquadramento ao tipo penal do abortamento.

Estes projetos de lei, ao menos, são indicativos de que a sociedade quer que

a realidade legislativa se adapte à realidade social. Mas a situação legislativa

apenas se mostraria ideal se, ao invés de os projetos de lei preverem a mera

exclusão de ilicitude da conduta, eles permitissem e regulamentassem a prática da

antecipação terapêutica do parto de fetos anencéfalos como concretização dos

direitos fundamentais da gestante à dignidade, à saúde e à autonomia.

173

CONCLUSÃO

A partir de todas as premissas lançadas ao longo deste presente trabalho, é

possível concluir-se pela viabilidade ética, médica e jurídica da antecipação

terapêutica do parto de feto acometido por anencefalia.

A demonstração da viabilidade, nos três prismas propostos, da interrupção da

gestação de feto anencéfalo, por vontade da mulher, é integralmente estabelecida a

partir da diferenciação traçada entre o abortamento e a antecipação do parto de

anencéfalo, distinção essa apenas possível mediante a análise da determinação do

momento do início da vida humana no ordenamento jurídico pátrio.

Como demonstrado anteriormente, o ordenamento jurídico brasileiro não

traçou com exatidão o momento de início da vida humana, a despeito de

respeitáveis entendimentos em sentido contrário. Desta forma, e considerando-se

que a Lei Federal n. 9.434/97, complementada pela Resolução n. 1.480/97, do

Conselho Federal de Medicina (CFM), define o momento da morte humana a partir

da constatação de inexistência de propagação de ondas eletroencefalográficas, o

início da vida humana deve ser, portanto, aquele diametralmente oposto ao

momento da morte, ou seja, o instante em que se inicia a propagação das ondas

elétricas cerebrais. Logo, vislumbra-se que o ordenamento jurídico pátrio adotou a

teoria neurológica do início da vida.

Em razão de a anencefalia ser uma malformação fetal congênita que implica a

inexistência dos dois hemisférios cerebrais e a ausência do córtex, por defeito no

fechamento do tubo neural, no exame encefalográfico do anencéfalo não é possível

a captação de propagação de ondas cerebrais, sendo o resultado de tal constatação

médica idêntico ao resultado do mesmo exame, realizado em pessoa com morte

encefálica. Este raciocínio permite chegar-se à proposição de que não existe vida,

ao menos à luz do ordenamento legal pátrio, na hipótese de feto acometido por

anencefalia.

Esta ilação, concernente à inexistência de vida ante a constatação da

anencefalia1, permite uma completa diferenciação entre a prática médica da

antecipação do parto de anencéfalo e o abortamento, já que nesta segunda

1 Importante repisar que quando referimo-nos à anencefalia, estamos admitindo apenas a forma

completa da malformação.

174

hipótese, necessariamente, deve haver a morte do produto da concepção,

ocasionada pela realização dos atos que compõe o procedimento em questão.

A inexistência de vida2 humana na hipótese de anencefalia, portanto, é a

premissa maior que possibilitará concluir pela viabilidade médica, ética e jurídica da

antecipação do parto de feto anencéfalo.

Foram mencionados os potenciais riscos à saúde física, psíquica e social da

gestante que advêm da manutenção da gestação de feto anencéfalo, sobretudo

quando é desejo da gestante a interrupção da gravidez ante a total impossibilidade

de vida do produto da concepção. Assim, do ponto de vista médico, está

demonstrada a viabilidade da interrupção da gravidez do feto anencefálico, já que a

medicina, por meio da antecipação do parto, pode buscar a garantia da integridade

física e mental da gestante, enquanto não há nada que tal ciência humana possa

fazer para reverter o quadro de inviabilidade de vida humana do feto anencefálico.

Do ponto de vista ético, analisando-se a gestação do feto acometido por

anencefalia à luz da ética tradicional e à luz da bioética e seus princípios, conclui-se

que existe viabilidade para amparar a possibilidade de antecipação do parto de fetos

anencéfalos, já que o único bem possível a ser realizado é em favor da gestante,

enquanto que, em relação ao feto mal formado, não há qualquer ato de

benevolência que possa alterar seu quadro de ausência de vida e inevitável

perecimento das funções vegetativas.

Finalmente, pela perspectiva jurídica, foi demonstrado que o aparente conflito

existente entre o direito à “vida”3 do feto anencéfalo e os diretos à dignidade, à

saúde e à autonomia da gestante, quando a mulher decide realizar a interrupção da

gravidez, é resolvido pela utilização dos costumes – materialização da ética e da

moral – e pela aplicação do princípio máximo da proporcionalidade.

Insta salientar que a viabilidade ética e jurídica da antecipação do parto de

fetos anencéfalos foi confirmada pelos resultados da pesquisa qualitativa

desenvolvida, cabendo salientar que, por meio de tal metodologia da pesquisa

científica, não se buscou esgotar o tema, mas simplesmente respaldar as

conclusões obtidas no presente trabalho, de acordo com o atual grau de

2 A acepção do termo “vida” aqui utilizado é aquele decorrente da interpretação sistemática de todo o

ordenamento jurídico pátrio. 3 Aqui utilizamos o termo vida entre aspas em razão de não se poder falar em vida humana

propriamente dita na hipótese de anencefalia, consoante foi demonstrado no capítulo segundo deste presente trabalho.

175

desenvolvimento cultural da sociedade e com o presente momento histórico.

Neste caso, o direito à “vida” do anencéfalo, ante a impossibilidade de seu

exercício, mesmo que parcialmente, sucumbe ante os direitos fundamentais da

gestante, pois estes podem ser plena e efetivamente exercidos. Neste embate de

direitos deve ser verificado qual dos lados do conflito deve prevalecer para causar os

menores prejuízos possíveis. Desta forma, demonstrada, também, a viabilidade

jurídica da antecipação do parto de fetos anencéfalos, em razão da prevalência, no

caso, dos direitos da gestante.

Outrossim, ante a análise da interrupção da gestação de feto anencéfalo à luz

do direito penal, concluiu-se pela impossibilidade do enquadramento de tal prática

médica como crime de abortamento, seja pela inexistência de previsão legal, seja

por ausência de tipicidade, já que na hipótese de interrupção da gravidez não existe

o evento morte do produto da concepção, elemento indispensável para

enquadramento da conduta no tipo penal do “aborto”. Tal assertiva corrobora a

viabilidade jurídica da antecipação terapêutica do parto de feto anencéfalo.

Ainda no que concerne à análise penal da questão, admitindo-se a absurda

hipótese de enquadramento da conduta de interrupção da gravidez de feto

anencéfalo no tipo penal do crime de abortamento, o que apenas se faz a título de

argumentação, mesmo assim não há que se cogitar do cometimento de crime com a

realização deste procedimento médico, pois no caso incidem duas causas de

exclusão de ilicitude: estado de necessidade da gestante e exercício regular de

direito da gestante.

A partir da demonstração da viabilidade ética, médica e jurídica da

antecipação terapêutica do parto de fetos acometidos por anencefalia, podendo tal

conduta ser entendida como materialização dos direitos fundamentais da gestante,

surge ao Estado a obrigação de garantir a prática de tal conduta. E é de se

mencionar que concordamos expressamente com este posicionamento.

Inicialmente, a obrigação estatal de garantir os direitos fundamentais da

gestante, por meio da permissão da prática da interrupção da gravidez de feto

anencéfalo, se este for seu desejo, poderia ser efetivada por meio da ausência de

intervenções estatais no livre arbítrio da mulher. A permissibilidade, por parte do

Estado, da prática da antecipação terapêutica do parto de feto anencéfalo, seria,

então, a garantia dos direitos fundamentais de defesa da gestante, que se dá com a

ausência de ingerência estatal nas liberdades individuais.

176

Porém, considerando-se que no Brasil a prática do procedimento médico

acima mencionado vem sendo equivocadamente entendida como crime de

abortamento, sobretudo em razão da imensa influencia do cristianismo sobre a

sociedade brasileira, representando forte ingerência estatal nas liberdades

individuais da gestante, verifica-se ser impossível a garantia dos direitos

fundamentais de defesa da mulher.

Ante este quadro, passa a ser obrigação do Estado garantir estes direitos

positivamente, ou seja, por meio de prestações concretas, já que se tornou

impossível garantir estes direitos por meio da abstenção estatal. Desta forma, o

Estado deve fornecer os meios jurídicos e materiais para efetivo exercício dos

direitos fundamentais à dignidade, à saúde e à autonomia da gestante,

consubstanciados, no caso, pela possibilidade de interrupção da gestação de feto

anencéfalo.

Tal prestação estatal positiva está na iminência de acontecer, pois o provável

julgamento de procedência da ação de Argüição de Descumprimento de Preceito

Fundamental n. 54, em trâmite perante o Supremo Tribunal Federal, irá significar a

possibilidade de antecipação terapêutica do parto de fetos anencéfalos, se for este o

desejo da mulher, independentemente da obtenção de autorização judicial ou de

qualquer outra espécie de permissão estatal.

Finalmente, cumpre asseverar que a demonstração da viabilidade ética,

médica e jurídica da antecipação terapêutica do parto de fetos anencéfalos não

significa, necessariamente, que todas as gestantes que carregam um feto

anencéfalo estão obrigadas a interromper sua gravidez. Caso a gestante, por

motivos pessoais, de crença e de consciência, deseje manter a gestação do

anencéfalo até o seu termo habitual, por incidência dos mesmos direitos à dignidade

e à autonomia, ela está autorizada pela Constituição Federal a proceder desta

maneira.

177

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ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

ZANFERDINI, Flávia de Almeida Montingelli. Tendência universal de sumarização do processo civil e a busca da tutela de urgência proporcional. 2007, 310 f. Tese (Doutorado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, São Paulo, 2007.

186

APÊNDICES

187

Apêndice A - PROTOCOLO DE ENTREVISTA SEMI-ESTRUTURADA

1. QUALIFICAÇÃO DO ENTREVISTADO Nº ____

Data: ___/___/_____

Sexo: Masculino ( ) Feminino ( )

Idade: __________

Estado civil: __________ Profissão do cônjuge: _______________________

Nº de filhos: __________, sendo ____ homens e ____ mulheres

Orientação religiosa: __________________________________________________

Área de atuação profissional: ____________________________________________

Ano de graduação universitária / Instituição de ensino: ________________________

Pós-graduação: SIM ( ) NÃO ( )

Espécie de pós-graduação: _____________________________________________

Instituição de ensino de pós-graduação: ___________________________________

Atuação em atividades de docência: NÃO ( ) SIM ( ), há ____ anos

O Sr.(a) possui alguma experiência em técnicas de psicologia?

__________________________________________________________________

___________________________________________________________________

___________________________________________________________________

__________________________________________________________________

___________________________________________________________________

___________________________________________________________________

188

2. PERGUNTAS ABERTAS:

2.1) Para o Sr.(a), quando começa a vida e o que vem a ser esta? (as várias

teorias, aplicação do Direito)

2.2) Como o Sr. (a) sugere que sejam resolvidos os embates entre direitos de mesma hierarquia? Como o Sr.(a) sugere que seja resolvido o conflito entre a dignidade, autonomia e livre arbítrio da gestante e a gravidez de um feto anencefálo?

2.3) O Sr. (a) já teve contato, já viu, algum caso envolvendo fetos acometidos por anencefalia? Estes fetos são acompanhados de outras alterações morfológicas e funcionais?

2.4) Pela expertise do Sr.(a), pode-se falar em vida, diante de um caso de anencefalia?

2.5) Em caso de resposta positiva ao item nº 03, houve algum contato direto com a gestante que requereu o alvará judicial para antecipar o parto, anteriormente à concessão, ou não, da medida? Na ótica do Sr.(a), existe diferenciação entre antecipação do parto de anencefálo e abortamento?

2.6) Para o Sr.(a), existe viabilidade jurídica para antecipação do parto dos fetos acometidos por anencefalia?

2.7) Em caso de resposta positiva quando da análise da viabilidade jurídica mencionada no item anterior, que espécies de paradigmas o Sr.(a) utilizou para chegar a tal conclusão? A bioética, ramo da ética que leva em consideração os avanços tecnológicos e suas aplicações às ciências da vida, é um desses paradigmas?

2.8) No caso judicial relatado no item nº 03, houve algum contato posterior com a requerente da medida?

2.9) Considerações gerais sobre o assunto objeto da presente entrevista.

189

Apêndice B - AUTORIZAÇÃO PARA USO DO TEOR DE ENTREVISTA

E DECLARAÇÃO DE CONFIDENCIALIDADE (entrevistado nº ___)

Eu, _______________________________________________, ________________

(nacionalidade), ____________ (estado civil), _____________________ (profissão),

portador (a) do RG nº ____________ e do CPF nº _______________________,

expressamente AUTORIZO que JOÃO BOSCO DA NÓBREGA CUNHA, brasileiro,

casado, advogado, portador do RG nº 1.816.262-DF e do CPF nº 288.738.898-32,

estudante de pós-graduação strito sensu (mestrado) em Direito, devidamente

matriculado perante a Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho –

UNESP, Faculdade de História, Direito e Serviço Social de Franca, sob o nº 73.711,

utilize o teor da entrevista realizada com a minha pessoa na data de ___/___/_____

em sua dissertação de mestrado intitulada “Bioética e anencefalia: viabilidade ética,

jurídica e médica da antecipação do parto de fetos anencéfalos”, comprometendo-se

este último a manter inteiro e estrito sigilo acerca de minha identidade, sob pena de

incorrer nas responsabilidades éticas, civis e criminais preconizadas pela legislação

brasileira vigente.

_____________________________ ______________________________ JOÃO BOSCO N. CUNHA

190

Apêndice C

191

ANEXOS

192

Anexo A - LEI Nº 9.434, DE 4 DE FEVEREIRO DE 1997.

Presidência da República Casa Civil Subchefia para Assuntos Jurídicos LEI Nº 9.434, DE 4 DE FEVEREIRO DE 1997.

LEI Nº 9.434, DE 4 DE FEVEREIRO DE 1997.

Regulamento

Mensagem de veto

Dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento e dá outras providências.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

CAPÍTULO I

DAS DISPOSIÇÕES GERAIS

Art. 1º A disposição gratuita de tecidos, órgãos e partes do corpo humano, em vida ou post mortem, para fins de transplante e tratamento, é permitida na forma desta Lei.

Parágrafo único. Para os efeitos desta Lei, não estão compreendidos entre os tecidos a que se refere este artigo o sangue, o esperma e o óvulo.

Art. 2º A realização de transplante ou enxertos de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano só poderá ser realizada por estabelecimento de saúde, público ou privado, e por equipes médico-cirúrgicas de remoção e transplante previamente autorizados pelo órgão de gestão nacional do Sistema Único de Saúde.

Parágrafo único. A realização de transplantes ou enxertos de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano só poderá ser autorizada após a realização, no doador, de todos os testes de triagem para diagnóstico de infecção e infestação exigidos para a triagem de sangue para doação, segundo dispõem a Lei n.º 7.649, de 25 de janeiro de 1988, e regulamentos do Poder Executivo.

"Parágrafo único. A realização de transplantes ou enxertos de tecidos, órgãos e partes do corpo humano só poderá ser autorizada após a realização, no doador, de todos os testes de triagem para diagnóstico de infecção e infestação exigidos em normas regulamentares expedidas pelo Ministério da Saúde. (Redação dada pela Lei nº 10.211, de 23.3.2001)

CAPÍTULO II

DA DISPOSIÇÃO POST MORTEM DE TECIDOS, ÓRGÃOS E PARTES DO CORPO HUMANO PARA FINS DE TRANSPLANTE.

Art. 3º A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina.

193

§ 1º Os prontuários médicos, contendo os resultados ou os laudos dos exames referentes aos diagnósticos de morte encefálica e cópias dos documentos de que tratam os arts. 2º, parágrafo único; 4º e seus parágrafos; 5º; 7º; 9º, §§ 2º, 4º, 6º e 8º, e 10, quando couber, e detalhando os atos cirúrgicos relativos aos transplantes e enxertos, serão mantidos nos arquivos das instituições referidas no art. 2º por um período mínimo de cinco anos.

§ 2º Às instituições referidas no art. 2º enviarão anualmente um relatório contendo os nomes dos pacientes receptores ao órgão gestor estadual do Sistema único de Saúde.

§ 3º Será admitida a presença de médico de confiança da família do falecido no ato da comprovação e atestação da morte encefálica.

Art. 4º Salvo manifestação de vontade em contrário, nos termos desta Lei, presume-se autorizada a doação de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano, para finalidade de transplantes ou terapêutica post mortem.

Art. 4o A retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo de pessoas falecidas para transplantes ou outra finalidade terapêutica, dependerá da autorização do cônjuge ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive, firmada em documento subscrito por duas testemunhas presentes à verificação da morte. (Redação dada pela Lei nº 10.211, de 23.3.2001)

Parágrafo único. (VETADO) (Incluído pela Lei nº 10.211, de 23.3.2001)

§ 1º A expressão “não-doador de órgãos e tecidos” deverá ser gravada, de forma indelével e inviolável, na Carteira de Identidade Civil e na Carteira Nacional de Habilitação da pessoa que optar por essa condição.(Revogado pela Lei nº 10.211, de 23.3.2001) § 2º A gravação de que trata este artigo será obrigatória em todo o território nacional a todos os órgãos de identificação civil e departamentos de trânsito, decorridos trinta dias da publicação desta Lei.(Revogado pela Lei nº 10.211, de 23.3.2001) § 3º O portador de Carteira de Identidade Civil ou de Carteira Nacional de Habilitação emitidas até a data a que se refere o parágrafo anterior poderá manifestar sua vontade de não doar tecidos, órgãos ou partes do corpo após a morte, comparecendo ao órgão oficial de identificação civil ou departamento de trânsito e procedendo à gravação da expressão “não-doador de órgãos e tecidos”.(Revogado pela Lei nº 10.211, de 23.3.2001) § 4º A manifestação de vontade feita na Carteira de Identidade Civil ou na Carteira Nacional de Habilitação poderá ser reformulada a qualquer momento, registrando-se, no documento, a nova declaração de vontade.(Revogado pela Lei nº 10.211, de 23.3.2001) § 5º No caso de dois ou mais documentos legalmente válidos com opções diferentes, quanto à condição de doador ou não, do morto, prevalecerá aquele cuja emissão for mais recente.(Revogado pela Lei nº 10.211, de 23.3.2001)

Art. 5º A remoção post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo de pessoa juridicamente incapaz poderá ser feita desde que permitida expressamente por ambos os pais, ou por seus responsáveis legais.

Art. 6º É vedada a remoção post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo de pessoas não identificadas.

Art. 7º (VETADO)

Parágrafo único. No caso de morte sem assistência médica, de óbito em decorrência de causa mal definida ou de outras situações nas quais houver indicação de verificação da causa médica da morte, a remoção de tecidos, órgãos ou partes de cadáver para fins de transplante ou terapêutica somente poderá ser realizada após a autorização do patologista do serviço de verificação de óbito responsável pela investigação e citada em relatório de necrópsia.

194

Art. 8º Após a retirada de partes do corpo, o cadáver será condignamente recomposto e entregue aos parentes do morto ou seus responsáveis legais para sepultamento.

Art. 8o Após a retirada de tecidos, órgãos e partes, o cadáver será imediatamente necropsiado, se verificada a hipótese do parágrafo único do art. 7o, e, em qualquer caso, condignamente recomposto para ser entregue, em seguida, aos parentes do morto ou seus responsáveis legais para sepultamento. (Redação dada pela Lei nº 10.211, de 23.3.2001)

CAPÍTULO III

DA DISPOSIÇÃO DE TECIDOS, ÓRGÃOS E PARTES DO CORPO HUMANO VIVO PARA FINS DE TRANSPLANTE OU TRATAMENTO

Art. 9º É permitida à pessoa juridicamente capaz dispor gratuitamente de tecidos, órgãos ou partes do próprio corpo vivo para fim de transplante ou terapêuticos.

Art. 9o É permitida à pessoa juridicamente capaz dispor gratuitamente de tecidos, órgãos e partes do próprio corpo vivo, para fins terapêuticos ou para transplantes em cônjuge ou parentes consangüíneos até o quarto grau, inclusive, na forma do § 4o deste artigo, ou em qualquer outra pessoa, mediante autorização judicial, dispensada esta em relação à medula óssea. (Redação dada pela Lei nº 10.211, de 23.3.2001)

§ 1º (VETADO)

§ 2º (VETADO)

§ 3º Só é permitida a doação referida neste artigo quando se tratar de órgãos duplos, de partes de órgãos, tecidos ou partes do corpo cuja retirada não impeça o organismo do doador de continuar vivendo sem risco para a sua integridade e não represente grave comprometimento de suas aptidões vitais e saúde mental e não cause mutilação ou deformação inaceitável, e corresponda a uma necessidade terapêutica comprovadamente indispensável à pessoa receptora.

§ 4º O doador deverá autorizar, preferencialmente por escrito e diante de testemunhas, especificamente o tecido, órgão ou parte do corpo objeto da retirada.

§ 5º A doação poderá ser revogada pelo doador ou pelos responsáveis legais a qualquer momento antes de sua concretização.

§ 6º O indivíduo juridicamente incapaz, com compatibilidade imunológica comprovada, poderá fazer doação nos casos de transplante de medula óssea, desde que haja consentimento de ambos os pais ou seus responsáveis legais e autorização judicial e o ato não oferecer risco para a sua saúde.

§ 7º É vedado à gestante dispor de tecidos, órgãos ou partes de seu corpo vivo, exceto quando se tratar de doação de tecido para ser utilizado em transplante de medula óssea e o ato não oferecer risco à sua saúde ou ao feto.

§ 8º O auto-transplante depende apenas do consentimento do próprio indivíduo, registrado em seu prontuário médico ou, se ele for juridicamente incapaz, de um de seus pais ou responsáveis legais.

Art. 9o-A É garantido a toda mulher o acesso a informações sobre as possibilidades e os benefícios da doação voluntária de sangue do cordão umbilical e placentário durante o período de consultas pré-natais e no momento da realização do parto. (Incluído pela Lei nº 11.633, de 2007).

CAPITULO IV

DAS DISPOSIÇÕES COMPLEMENTARES

195

Art. 10. O transplante ou enxerto só se fará com o consentimento expresso do receptor, após aconselhamento sobre a excepcionalidade e os riscos do procedimento.

Art. 10. O transplante ou enxerto só se fará com o consentimento expresso do receptor, assim inscrito em lista única de espera, após aconselhamento sobre a excepcionalidade e os riscos do procedimento. (Redação dada pela Lei nº 10.211, de 23.3.2001)

§ 1o Nos casos em que o receptor seja juridicamente incapaz ou cujas condições de saúde impeçam ou comprometam a manifestação válida da sua vontade, o consentimento de que trata este artigo será dado por um de seus pais ou responsáveis legais. (Parágrafo incluído pela Lei nº 10.211, de 23.3.2001)

§ 2o A inscrição em lista única de espera não confere ao pretenso receptor ou à sua família direito subjetivo a indenização, se o transplante não se realizar em decorrência de alteração do estado de órgãos, tecidos e partes, que lhe seriam destinados, provocado por acidente ou incidente em seu transporte. (Parágrafo incluído pela Lei nº 10.211, de 23.3.2001)

Parágrafo único. Nos casos em que o receptor seja juridicamente incapaz ou cujas condições de saúde impeçam ou comprometam a manifestação válida de sua vontade, o consentimento de que trata este artigo será dado por um de seus pais ou responsáveis legais.

Art. 11. É proibida a veiculação, através de qualquer meio de comunicação social de anúncio que configure:

a) publicidade de estabelecimentos autorizados a realizar transplantes e enxertos, relativa a estas atividades;

b) apelo público no sentido da doação de tecido, órgão ou parte do corpo humano para pessoa determinada identificada ou não, ressalvado o disposto no parágrafo único;

c) apelo público para a arrecadação de fundos para o financiamento de transplante ou enxerto em beneficio de particulares.

Parágrafo único. Os órgãos de gestão nacional, regional e local do Sistema único de Saúde realizarão periodicamente, através dos meios adequados de comunicação social, campanhas de esclarecimento público dos benefícios esperados a partir da vigência desta Lei e de estímulo à doação de órgãos.

Art. 12. (VETADO)

Art. 13. É obrigatório, para todos os estabelecimentos de saúde notificar, às centrais de notificação, captação e distribuição de órgãos da unidade federada onde ocorrer, o diagnóstico de morte encefálica feito em pacientes por eles atendidos.

Parágrafo único. Após a notificação prevista no caput deste artigo, os estabelecimentos de saúde não autorizados a retirar tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverão permitir a imediata remoção do paciente ou franquear suas instalações e fornecer o apoio operacional necessário às equipes médico-cirúrgicas de remoção e transplante, hipótese em que serão ressarcidos na forma da lei. (Incluído pela Lei nº 11.521, de 2007)

CAPÍTULO V

DAS SANÇÕES PENAIS E ADMIMSTRATIVAS

SEÇÃO I

Dos Crimes

196

Art. 14. Remover tecidos, órgãos ou partes do corpo de pessoa ou cadáver, em desacordo com as disposições desta Lei:

Pena - reclusão, de dois a seis anos, e multa, de 100 a 360 dias-multa.

§ 1.º Se o crime é cometido mediante paga ou promessa de recompensa ou por outro motivo torpe:

Pena - reclusão, de três a oito anos, e multa, de 100 a 150 dias-multa.

§ 2.º Se o crime é praticado em pessoa viva, e resulta para o ofendido:

I - incapacidade para as ocupações habituais, por mais de trinta dias;

II - perigo de vida;

III - debilidade permanente de membro, sentido ou função;

IV - aceleração de parto:

Pena - reclusão, de três a dez anos, e multa, de 100 a 200 dias-multa

§ 3.º Se o crime é praticado em pessoa viva e resulta para o ofendido:

I - Incapacidade para o trabalho;

II - Enfermidade incurável ;

III - perda ou inutilização de membro, sentido ou função;

IV - deformidade permanente;

V - aborto:

Pena - reclusão, de quatro a doze anos, e multa, de 150 a 300 dias-multa.

§ 4.º Se o crime é praticado em pessoa viva e resulta morte:

Pena - reclusão, de oito a vinte anos, e multa de 200 a 360 dias-multa.

Art. 15. Comprar ou vender tecidos, órgãos ou partes do corpo humano:

Pena - reclusão, de três a oito anos, e multa, de 200 a 360 dias-multa.

Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem promove, intermedeia, facilita ou aufere qualquer vantagem com a transação.

Art. 16. Realizar transplante ou enxerto utilizando tecidos, órgãos ou partes do corpo humano de que se tem ciência terem sido obtidos em desacordo com os dispositivos desta Lei:

Pena - reclusão, de um a seis anos, e multa, de 150 a 300 dias-multa.

Art. 17 Recolher, transportar, guardar ou distribuir partes do corpo humano de que se tem ciência terem sido obtidos em desacordo com os dispositivos desta Lei:

197

Pena - reclusão, de seis meses a dois anos, e multa, de 100 a 250 dias-multa.

Art. 18. Realizar transplante ou enxerto em desacordo com o disposto no art. 10 desta Lei e seu parágrafo único:

Pena - detenção, de seis meses a dois anos.

Art. 19. Deixar de recompor cadáver, devolvendo-lhe aspecto condigno, para sepultamento ou deixar de entregar ou retardar sua entrega aos familiares ou interessados:

Pena - detenção, de seis meses a dois anos.

Art. 20. Publicar anúncio ou apelo público em desacordo com o disposto no art. 11:

Pena - multa, de 100 a 200 dias-multa.

Seção II

Das Sanções Administrativas

Art. 21. No caso dos crimes previstos nos arts. 14, 15, 16 e 17, o estabelecimento de saúde e as equipes médico-cirúrgicas envolvidas poderão ser desautorizadas temporária ou permanentemente pelas autoridades competentes.

§ 1.º Se a instituição é particular, a autoridade competente poderá multá-la em 200 a 360 dias-multa e, em caso de reincidência, poderá ter suas atividades suspensas temporária ou definitivamente, sem direito a qualquer indenização ou compensação por investimentos realizados.

§ 2.º Se a instituição é particular, é proibida de estabelecer contratos ou convênios com entidades públicas, bem como se beneficiar de créditos oriundos de instituições governamentais ou daquelas em que o Estado é acionista, pelo prazo de cinco anos.

Art. 22. As instituições que deixarem de manter em arquivo relatórios dos transplantes realizados, conforme o disposto no art. 3.º § 1.º, ou que não enviarem os relatórios mencionados no art. 3.º, § 2.º ao órgão de gestão estadual do Sistema único de Saúde, estão sujeitas a multa, de 100 a 200 dias-multa.

§ 1.º Incorre na mesma pena o estabelecimento de saúde que deixar de fazer as notificações previstas no art. 13.

§ 1o Incorre na mesma pena o estabelecimento de saúde que deixar de fazer as notificações previstas no art. 13 desta Lei ou proibir, dificultar ou atrasar as hipóteses definidas em seu parágrafo único. (Redação dada pela Lei nº 11.521, de 2007)

§ 2.º Em caso de reincidência, além de multa, o órgão de gestão estadual do Sistema Único de Saúde poderá determinar a desautorização temporária ou permanente da instituição.

Art. 23. Sujeita-se às penas do art. 59 da Lei n.º 4.117, de 27 de agosto de 1962, a empresa de comunicação social que veicular anúncio em desacordo com o disposto no art. 11.

CAPÍTULO VI

DAS DISPOSIÇÕES FINAIS

Art. 24. (VETADO)

198

Art. 25. Revogam-se as disposições em contrário, particularmente a Lei n.º 8.489, de 18 de novembro de 1992, e Decreto n.º 879, de 22 de julho de 1993.

Brasília,4 de fevereiro de 1997; 176.º da Independência e 109.º da República.

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO Nelson A. Jobim Carlos César de Albuquerque

199

Anexo B - RESOLUÇÃO CFM nº 1.480/97 O Conselho Federal de Medicina, no uso das atribuições conferidas pela Lei nº 3.268, de 30 de setembro de 1957, regulamentada pelo Decreto nº 44.045, de 19 de julho de 1958 e, CONSIDERANDO que a Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, que dispõe sobre a retirada de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento, determina em seu artigo 3º que compete ao Conselho Federal de Medicina definir os critérios para diagnóstico de morte encefálica; CONSIDERANDO que a parada total e irreversível das funções encefálicas equivale à morte, conforme critérios já bem estabelecidos pela comunidade científica mundial; CONSIDERANDO o ônus psicológico e material causado pelo prolongamento do uso de recursos extraordinários para o suporte de funções vegetativas em pacientes com parada total e irreversível da atividade encefálica; CONSIDERANDO a necessidade de judiciosa indicação para interrupção do emprego desses recursos; CONSIDERANDO a necessidade da adoção de critérios para constatar, de modo indiscutível, a ocorrência de morte; CONSIDERANDO que ainda não há consenso sobre a aplicabilidade desses critérios em crianças menores de 7 dias e prematuros, RESOLVE: Art. 1º. A morte encefálica será caracterizada através da realização de exames clínicos e complementares durante intervalos de tempo variáveis, próprios para determinadas faixas etárias. Art. 2º. Os dados clínicos e complementares observados quando da caracterização da morte encefálica deverão ser registrados no "termo de declaração de morte encefálica" anexo a esta Resolução. Parágrafo único. As instituições hospitalares poderão fazer acréscimos ao presente termo, que deverão ser aprovados pelos Conselhos Regionais de Medicina da sua jurisdição, sendo vedada a supressão de qualquer de seus itens. Art. 3º. A morte encefálica deverá ser conseqüência de processo irreversível e de causa conhecida. Art. 4º. Os parâmetros clínicos a serem observados para constatação de morte encefálica são: coma aperceptivo com ausência de atividade motora supra-espinal e apnéia. Art. 5º. Os intervalos mínimos entre as duas avaliações clínicas necessárias para a caracterização da morte encefálica serão definidos por faixa etária, conforme abaixo especificado: a) de 7 dias a 2 meses incompletos -48 horas b) de 2 meses a 1 ano incompleto -24 horas

200

c) de 1 ano a 2 anos incompletos -12 horas d) acima de 2 anos -6 horas Art. 6º. Os exames complementares a serem observados para constatação de morte encefálica deverão demonstrar de forma inequívoca: a) ausência de atividade elétrica cerebral ou, b) ausência de atividade metabólica cerebral ou, c) ausência de perfusão sangüínea cerebral. Art. 7º. Os exames complementares serão utilizados por faixa etária, conforme abaixo especificado: a) acima de 2 anos -um dos exames citados no Art. 6º, alíneas "a", "b" e "c"; b) de 1 a 2 anos incompletos: um dos exames citados no Art. 6º , alíneas "a", "b" e "c". Quando optar-se por eletroencefalograma, serão necessários 2 exames com intervalo de 12 horas entre um e outro; c) de 2 meses a 1 ano incompleto -2 eletroencefalogramas com intervalo de 24 horas entre um e outro; d) de 7 dias a 2 meses incompletos -2 eletroencefalogramas com intervalo de 48 horas entre um e outro. Art. 8º. O Termo de Declaração de Morte Encefálica, devidamente preenchido e assinado, e os exames complementares utilizados para diagnóstico da morte encefálica deverão ser arquivados no próprio prontuário do paciente. Art. 9º. Constatada e documentada a morte encefálica, deverá o Diretor-Clínico da instituição hospitalar, ou quem for delegado, comunicar tal fato aos responsáveis legais do paciente, se houver, e à Central de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos a que estiver vinculada a unidade hospitalar onde o mesmo se encontrava internado. Art. 10. Esta Resolução entrará em vigor na data de sua publicação e revoga a Resolução. CFM nº 1.346/91. Brasília-DF, 08 de agosto de 1997. WALDIR PAIVA MESQUITA Presidente ANTÔNIO HENRIQUE PEDROSA NETO Secretário-Geral Publicada no D.O.U. de 21.08.97 Página 18.227

201

Anexo C - IDENTIFICAÇÃO DO HOSPITAL TERMO DE DECLARAÇÃO DE MORTE ENCEFÁLICA (Res. CFM nº 1.480 de 08/08/97) NOME:______________________________________________________________

PAI:________________________________________________________________

MÃE:_______________________________________________________________

IDADE:______ANOS______MESES_____DIAS

DATA DE NASCIMENTO____/____/____

SEXO: M F RAÇA: A B N Registro Hospitalar:___________________

A. CAUSA DO COMA

A.1 -Causa do Coma:

A.2. Causas do coma que devem ser excluídas durante o exame

a) Hipotermia ( ) SIM ( ) NÃO

b) Uso de drogas depressoras do sistema nervoso central ( ) SIM ( ) NÃO

Se a resposta for sim a qualquer um dos itens, interrompe-se o protocolo

B. EXAME NEUROLÓGICO -Atenção: verificar o intervalo mínimo exigível entre as

avaliações clínicas, constantes da tabela abaixo:

IDADE INTERVALO

7 dias a 2 meses incompletos 48 horas

2 meses a 1 ano incompleto 24 horas

1 ano a 2 anos incompletos 12 horas

Acima de 2 anos 6 horas

(Ao efetuar o exame, assinalar uma das duas opções SIM/NÃO. obrigatoriamente,

para

todos os itens abaixo)

Elementos do exame neurológico Resultados

1º exame 2º exame

Coma aperceptivo ( )SIM ( )NÃO ( )SIM ( )NÃO

202

Pupilas fixas e arreativas ( )SIM ( )NÃO ( )SIM ( )NÃO Ausência de reflexo córneo-palpebral ( )SIM ( )NÃO ( )SIM ( )NÃO

Ausência de reflexos oculocefálicos ( )SIM ( )NÃO ( )SIM ( )NÃO

Ausência de respostas às provas calóricas ( )SIM ( )NÃO ( )SIM ( )NÃO

Ausência de reflexo de tosse ( )SIM ( )NÃO ( )SIM ( )NÃO

Apnéia ( )SIM ( )NÃO ( )SIM ( )NÃO

C. ASSINATURAS DOS EXAMES CLÍNICOS -(Os exames devem ser realizados por

profissionais diferentes, que não poderão ser integrantes da equipe de remoção e

transplante.

1 -PRIMEIRO EXAME

DATA:____/____/____HORA:____:____

NOME DO MÉDICO:________________

CRM:____________FONE:___________

END.:____________________________

ASSINATURA:_____________________

2 -SEGUNDO EXAME

DATA:____/____/____HORA:_____:____

NOME DO MÉDICO:_________________

CRM:_____________FONE:___________

END.:_____________________________

ASSINATURA: _____________________

D. EXAME COMPLEMENTAR -Indicar o exame realizado e anexar laudo com

identificação do médico responsável.

1. Angiografia Cerebral 2. Cintilografia Radioisotópica 3. Doppler Transcraniano 4.

Monitorização da pressão intra-craniana 5. Tomografia computadorizada com

xenônio 6. Tomografia por emissão de foton único 7. EEG 8. Tomografia por

emissão de positróns 9. Extração Cerebral de oxigênio 10. outros (citar)

E. OBSERVAÇÕES

1 -Interessa, para o diagnóstico de morte encefálica, exclusivamente a arreatividade

supraespinal. Consequentemente, não afasta este diagnóstico a presença de sinais

de reatividade infraespinal (atividade reflexa medular) tais como: reflexos

osteotendinosos ("reflexos profundos"), cutâneo-abdominais, cutâneo-plantar em

flexão ou extensão, cremastérico superficial ou profundo, ereção peniana reflexa,

arrepio, reflexos flexores de retirada dos membros inferiores ou superiores, reflexo

tônico cervical.

203

2 -Prova calórica

2.1 -Certificar-se de que não há obstrução do canal auditivo por cerumem ou

qualquer outra condição que dificulte ou impeça a correta realização do exame.

2.2 -Usar 50 ml de líquido (soro fisiológico, água, etc) próximo de 0 grau Celsius em

cada ouvido.

2.3 -Manter a cabeça elevada em 30 (trinta) graus durante a prova.

2.4 -Constatar a ausência de movimentos oculares.

3 -Teste da apnéia

No doente em coma, o nível sensorial de estímulo para desencadear a respiração é

alto, necessitando-se da pCO2 de até 55 mmHg, fenômeno que pode determinar um

tempo de vários minutos entre a desconexão do respirador e o aparecimento dos

movimentos respiratórios, caso a região ponto-bulbar ainda esteja íntegra. A prova

da apnéia é realizada de acordo com o seguinte protocolo:

3.1 -Ventilar o paciente com 02 de 100% por 10 minutos.

3.2 -Desconectar o ventilador.

3.3 -Instalar catéter traqueal de oxigênio com fluxo de 6 litros por minuto.

3.4 -Observar se aparecem movimentos respiratórios por 10 minutos ou até quando

o pCO2 atingir 55 mmHg.

4 -Exame complementar. Este exame clínico deve estar acompanhado de um exame

complementar que demonstre inequivocadamente a ausência de circulação

sangüínea intracraniana ou atividade elétrica cerebral, ou atividade metabólica

cerebral. Observar o disposto abaixo (itens 5 e 6) com relação ao tipo de exame e

faixa etária.

5 -Em pacientes com dois anos ou mais -1 exame complementar entre os abaixo

mencionados:

5.1 -Atividade circulatória cerebral: angiografia, cintilografia radioisotópica, doppler

transcraniano, monitorização da pressão intracraniana, tomografia computadorizada

com xenônio, SPECT.

5.2 -Atividade elétrica: eletroencefalograma.

5.3 -Atividade metabólica: PET, extração cerebral de oxigênio.

6 -Para pacientes abaixo de 02 anos:

6.1 -De 1 ano a 2 anos incompletos: o tipo de exame é facultativo. No caso de

eletroencefalograma são necessários 2 registros com intervalo mínimo de 12 horas.

6.2 -De 2 meses a 1 ano incompleto: dois eletroencefalogramas com intervalo de 24

204

horas.

6.3 -De 7 dias a 2 meses de idade (incompletos): dois eletroencefalogramas com

intervalo de 48 h.

7 -Uma vez constatada a morte encefálica, cópia deste termo de declaração deve

obrigatoriamente ser enviada ao órgão controlador estadual (Lei 9.434/97, Art. 13).

205

Anexo D - RESOLUÇÃO CFM Nº 1.752/04 Autorização ética do uso de órgãos e/ou tecidos de anencéfalos para transplante, mediante autorização prévia dos pais. O Conselho Federal de Medicina, no uso das atribuições que lhe confere a Lei n° 3.268, de 30 de setembro de 1957, regulamentada pelo Decreto nº 44.045, de 19 de julho de 1958, e CONSIDERANDO que os anencéfalos são natimortos cerebrais (por não possuírem os hemisférios cerebrais) que têm parada cardiorrespiratória ainda durante as primeiras horas pós-parto, quando muitos órgãos e tecidos podem ter sofrido franca hipoxemia, tornando-os inviáveis para transplantes; CONSIDERANDO que para os anencéfalos, por sua inviabilidade vital em decorrência da ausência de cérebro, são inaplicáveis e desnecessários os critérios de morte encefálica; CONSIDERANDO que os anencéfalos podem dispor de órgãos e tecidos viáveis para transplantes, principalmente em crianças; CONSIDERANDO que as crianças devem preferencialmente receber órgãos com dimensões compatíveis; CONSIDERANDO que a Resolução CFM nº 1.480/97, em seu artigo 3º, cita que a morte encefálica deverá ser conseqüência de processo irreversível e de causa conhecida, sendo o anencéfalo o resultado de um processo irreversível, de causa conhecida e sem qualquer possibilidade de sobrevida, por não possuir a parte vital do cérebro; CONSIDERANDO que os pais demonstram o mais elevado sentimento de solidariedade quando, ao invés de solicitar uma antecipação terapêutica do parto, optam por gestar um ente que sabem que jamais viverá, doando seus órgãos e tecidos possíveis de serem transplantados; CONSIDERANDO o Parecer CFM nº 24/03, aprovado na sessão plenária de 9 de maio de 2003; CONSIDERANDO o Fórum Nacional sobre Anencefalia e Doação de Órgãos, realizado em 16 de junho de 2004 na sede do CFM; CONSIDERANDO as várias contribuições recebidas de instituições éticas, científicas e legais; CONSIDERANDO a decisão do Plenário do Conselho Federal de Medicina, em 8 de setembro de 2004, RESOLVE:

206

Art. 1º Uma vez autorizado formalmente pelos pais, o médico poderá realizar o transplante de órgãos e/ou tecidos do anencéfalo, após o seu nascimento. Art. 2º A vontade dos pais deve ser manifestada formalmente, no mínimo 15 dias antes da data provável do nascimento. Art. 3º Revogam-se as disposições em contrário. Art. 4º Esta resolução entrará em vigor na data de sua publicação. Brasília-DF, 8 de setembro de 2004. EDSON DE OLIVEIRA ANDRADE RUBENS DOS SANTOS SILVA Presidente Secretário-Geral