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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARA CENTRO DE HUMANIDADES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS FRANCISCO JACSON MARTINS VIEIRA A(U)TOS MATUTOS DE ARIANO SUASSUNA E ARISTÓFANES: É POSSÍVEL? NÃO SEI. SÓ SEI QUE FOI ASSIM! FORTALEZA 2019

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARA CENTRO DE HUMANIDADES PROGRAMA DE … · 2019. 5. 22. · universidade federal do ceara centro de humanidades programa de pÓs-graduaÇÃo em letras

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Page 1: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARA CENTRO DE HUMANIDADES PROGRAMA DE … · 2019. 5. 22. · universidade federal do ceara centro de humanidades programa de pÓs-graduaÇÃo em letras

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARA

CENTRO DE HUMANIDADES PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM LETRAS

FRANCISCO JACSON MARTINS VIEIRA

A(U)TOS MATUTOS DE ARIANO SUASSUNA E ARISTOacuteFANES ndash Eacute POSSIacuteVEL

ndash NAtildeO SEI SOacute SEI QUE FOI ASSIM

FORTALEZA

2019

FRANCISCO JACSON MARTINS VIEIRA

A(U)TOS MATUTOS DE ARIANO SUASSUNA E ARISTOacuteFANES ndash Eacute POSSIacuteVEL

ndash NAtildeO SEI SOacute SEI QUE FOI ASSIM

Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo LetrasLiteratura da Universidade Federal do Cearaacute como requisito parcial agrave obtenccedilatildeo do Tiacutetulo de Doutor em LetrasLiteratura Aacuterea de concentraccedilatildeo Literatura Comparada Orientadora Profa Dra Ana Maria Ceacutesar Pompeu

FORTALEZA 2019

Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo Universidade Federal do Cearaacute

Biblioteca UniversitaacuteriaGerada automaticamente pelo moacutedulo Catalog mediante os dados fornecidos pelo(a) autor(a)

V715a Vieira Francisco Jacson Martins A(u)tos matutos de Ariano Suassuna e Aristoacutefanes eacute possiacutevel ndash natildeo sei soacute sei que foi assim FranciscoJacson Martins Vieira ndash 2019 124 f

Tese (doutorado) ndash Universidade Federal do Cearaacute Centro de Humanidades Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeoem Letras Fortaleza 2019 Orientaccedilatildeo Prof Dr Ana Maria Ceacutesar Pompeu

1 Teatro 2 A(u)to 3 A(u)tor 4 Popular 5 Duplo I Tiacutetulo CDD 400

A(U)TOS MATUTOS DE ARIANO SUASSUNA E ARISTOacuteFANES ndash Eacute POSSIacuteVEL ndash

NAtildeO SEI SOacute SEI QUE FOI ASSIM

Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo LetrasLiteratura da Universidade Federal do Cearaacute como requisito parcial agrave obtenccedilatildeo do Tiacutetulo de Doutor em LetrasLiteratura Aacuterea de concentraccedilatildeo Literatura Comparada Orientadora Profa Dra Ana Maria Ceacutesar Pompeu

Aprovada em ____________

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________ Professora Dra Ana Maria Ceacutesar Pompeu (Orientadora)

Universidade Federal do Cearaacute (UFC)

___________________________________________ Professora Dra Maria Inecircs Pinheiro Cardoso

Universidade Federal do Cearaacute ndash (UFC)

___________________________________________ Prof Dr Steacutelio Torquato Lima

Universidade Federal do Cearaacute ndash (UFC)

___________________________________________ Prof Dr Lauro Inaacutecio de Moura Filho

Instituto Federal de Educaccedilatildeo Ciecircncia e Tecnologia do Cearaacute ndash (IFCE)

___________________________________________ Prof Dr Francisco Wellington Rodrigues Lima

Instituto Federal de Educaccedilatildeo Ciecircncia e Tecnologia do Cearaacute ndash (IFCE)

DEDICATOacuteRIA

A Patriacutecia e Larissa Pelos inesqueciacuteveis momentos de profundo amor em famiacutelia pelo riso frouxo e desconcertado das horas de companheirismo A todos que um dia sonharam olhando para o ceacuteu e que hoje podem alcanccedilar as estrelas

AGRADECIMENTOS

Agradecer mexe com a memoacuteria e torna registrado o esquecimento Por natildeo ser

uma tarefa muito faacutecil eacute perigosa Natildeo pela dificuldade de lembrar mas pelo medo de deixar

de agradecer a algueacutem que mereccedila Eacute uma oportunidade uacutenica de demonstrar gratidatildeo por

tantos que tornaram este sonho uma realidade possiacutevel pela experiecircncia partilhada pela

dedicaccedilatildeo pelos conselhos ou simplesmente por terem sido ouvintes contadores de estoacuterias

e pacientes Como agradecer

Quem realiza um trabalho de pesquisa sabe o quatildeo solitaacuterias podem ser as

manhatildes tardes e noites de leituras e escritas Longos momentos onde o cursor e a tela satildeo as

uacutenicas testemunhas e companheiros Ao mesmo tempo em que eacute solitaacuterio eacute tambeacutem um

trabalho conjunto soacute me foi possiacutevel chegar ao fim de parte da jornada graccedilas ao esforccedilo de

tantos que vieram antes de mim Tantos outros que abriram e traccedilaram caminhos que depois

pude trilhar sozinho em romaria ou bebendo com Dioniso e com outros que bem antes

percorreram o sertatildeo e aportaram suas buscas na procura de mitos festejados e perpetuados

nos rituais cocircmico - religiosos presentes na literatura popular

O que apresento neste trabalho eacute fruto de uma pesquisa acompanhada de vaacuterios

olhares de muitas vivecircncias de viagens agraves feiras de conversas repletas de informaccedilotildees e

experiecircncias de sorrisos e de tristeza por ver na travessia um ponto de parada mesmo que

seja pelo instante do aprofundamento futuro

Mais que lembrar agradeccedilo a minha orientadora Professora Doutora Ana Maria

Ceacutesar Pompeu de forma bem especial Primeiro por ter ldquoapostadordquo em um projeto de

pesquisa com vaacuterias lacunas Segundo por ter sido uma orientadora no sentido mais amplo da

palavra atraveacutes de suas reflexotildees indicaccedilatildeo de bibliografias reuniotildees de orientaccedilatildeo e

conselhos foi possiacutevel que eu construiacutesse uma nova problemaacutetica do assunto e engendrasse a

pesquisa que agora apresento Terceiro pelo comprometimento acadecircmico em orientar-me

natildeo somente para a tarefa acadecircmica mas por me deixar aprender em suas palavras o sentido

das coisas quebrando a ilusatildeo sorrindo de forma contagiante orientando pela generosidade e

humildade para vida Foi um presente ouvi-la e aprender tambeacutem no silecircncio de suas reflexotildees

antes das orientaccedilotildees para que eu natildeo me perdesse durante a travessia atemporal

Tambeacutem agradeccedilo ao professor Steacutelio Torquato Lima do Departamento de

Literatura da UFC pela generosidade de pesquisador pelo comprometimento na indicaccedilatildeo de

novas fontes de pesquisas indispensaacuteveis agrave Dissertaccedilatildeo de Mestrado e que resultaram em

embriotildees da presente pesquisa de Doutorado me encorajando a ver nas entrelinhas de uma

literatura pujante dotada de vaacuterios significados oral ndash escrita ndash dupla

Ao professor Carlos Augusto Viana da Silva do Departamento de Estudos da

Liacutengua Inglesa suas Literaturas e Traduccedilatildeo da UFC pelo desafio que me levou a pensar a

literatura popular a partir da narrativa fiacutelmica que tatildeo bem impulsionou esta pesquisa

culminando com a anaacutelise do Auto da Compadecida de Ariano Suassuna em conjunto com

Acarnenses de Aristoacutefanes

Ao professor Roque Nascimento Albuquerque da Universidade de Integraccedilatildeo

Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB) que desde o iniacutecio acreditou na ideia

de pensar o cocircmico e o popular a partir de novas leituras desafiadoras e intrigantes

Ao professor Lauro Inaacutecio de Moura Filho meu agradecimento pela amizade por

ter dividido pesquisas sobre Aristoacutefanes e por fazer parte da minha Banca de Doutorado

Agrave professora Maria Inecircs Pinheiro Cardoso minha gratidatildeo pela presenccedila na minha

Banca de Doutorado e por seus valorosos estudos sobre a literatura do ldquobardo do sertatildeordquo

Ariano Suassuna em toda a sua magnitude popular

Ao professor Francisco Wellington Rodrigues Lima meu agradecimento pela

gentileza de fazer parte da minha Banca de Doutorado e por sua contribuiccedilatildeo agrave literatura

popular a partir de seus estudos sobre Gil Vicente e Ariano Suassuna

Para minha famiacutelia agradecimentos especiais Obrigado por terem me dado

oportunidade de chegar ateacute aqui por me ensinarem desde cedo a enfrentar os desafios de

frente com riso estampado no rosto

E por uacuteltimo obrigado as minhas maiores incentivadoras Com elas compreendi o

sentido de muitas coisas companheirismo afeto dedicaccedilatildeo amor Obrigado por entenderem

a importacircncia desta pesquisa na minha vida Sem vocecircs o caminho natildeo teria sido tatildeo animado

encantado e real Obrigado Patriacutecia e Larissa

Agrave FUNCAP e Agrave CAPES e ao CNPQ pelo apoio financeiro com a manutenccedilatildeo da

bolsa de auxiacutelio agrave pesquisa

Debaixo de minha mesa tem sempre um catildeo faminto -que me alimenta a tristeza Debaixo de minha cama tem sempre um fantasma vivo -que perturba quem me ama Debaixo de minha pele algueacutem me olha esquisito -pensando que eu sou ele Debaixo de minha escrita haacute sangue em lugar de tinta -e algueacutem calado que grita

(Affonso Romano de SantacuteAnna)

RESUMO

Por ser uma arte que permanece haacute tantos seacuteculos o teatro desperta curiosidade acerca de seus primoacuterdios existindo vaacuterias conjecturas e teorias sobre o surgimento da Comeacutedia Antiga como ambiente extremamente propiacutecio agrave formaccedilatildeo de duplos presente no mito e no culto do deus do teatro Dioniso no qual as vozes os gestos e as maacutescaras representam o duplo e satildeo sobrepostas como causa de equiacutevocos e componentes centrais das invectivas pessoais ou intrigas como observados em Acarnenses de Aristoacutefanes no Auto da Compadecida de Ariano Suassuna Entretanto haacute de se considerar de iniacutecio que alguns elementos responsaacuteveis pelo riso na obra de Aristoacutefanes tambeacutem encontra eco na literatura de Suassuna por apresentar uma tessitura textual atravessada pelas muacuteltiplas vozes de suas personagens constituindo-se em um fenocircmeno recorrente e natural que aponta para a tensatildeo de uma crise profunda denunciada pelo proacuteprio poeta em seus discursos A partir do estudo das correntes de alguns teoacutericos sobre o riso como Huizinga Pirandello Bergson e Vladimir Propp responderemos por meio da literatura comparada a alguns questionamentos como por exemplo qual a importacircncia da construccedilatildeo das personagens cocircmicas em Aristoacutefanes para a representaccedilatildeo do duplo poeacutetico e como essa criaccedilatildeo se reflete na obra de Ariano Suassuna sendo denunciadora das injusticcedilas a partir da cena cocircmica

Palabras-chave Teatro A(u)to A(u)tor Popular Duplo

RESUMEN Por ser un arte que permanece durante tantos siglos el teatro despierta curiosidad acerca de sus primordios existiendo varias conjeturas y teoriacuteas sobre el surgimiento de la Comedia Antigua como ambiente extremadamente propicio a la formacioacuten de dobles presente en el mito y en el culto del dios del teatro Dioniso en el que las voces los gestos y las maacutescaras representan el doble se superponen como causa de equiacutevocos y componentes centrales de las invectivas personales o intrigas como observados en Acarnienses de Aristoacutefanes en el Auto de la Compadecida de Ariano Suassuna Sin embargo hay que considerar de inicio que algunos elementos responsables de la risa en la obra de Aristoacutefanes tambieacuten encuentra eco en la literatura de Suassuna por presentar una tesitura textual atravesada por las muacuteltiples voces de sus personajes constituyeacutendose en un fenoacutemeno recurrente y natural que apunta para la tensioacuten de una crisis profunda denunciada por el propio poeta en sus discursos A partir del estudio de las corrientes de algunos teoacutericos sobre la risa como Huizinga Pirandello Bergson y Vladimir Propp responderemos por medio de la Literatura Comparada a algunos cuestionamientos como por ejemplo cuaacutel es la importancia de la construccioacuten de los personajes coacutemicos en Aristoacutefanes para la representacioacuten del doble poeacutetico y coacutemo esa creacioacuten se refleja en la obra de Ariano Suassuna siendo denunciadora de las injusticias a partir de la cena coacutemica

Palabras clave Teatro A(u)to A(u)tor Popular Doble

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO12

PRIMEIRO ATO18

1 O TEATRO UM DUPLO ARTIacuteSTICO ndash TRAGEacuteDIA E COMEacuteDIA19

11 A comeacutedia aristofacircnica28

12 Dioniso Matuto Justinoacutepolis um heroacutei embusteiro29

13 O (anti)heroacutei aristofacircnico32

14 Auto da Compadecida uma estoacuteria de outras estoacuterias34

15 Joatildeo Grilo um heroacutei popular e picaresco36

151 O (anti)heroacutei Suassuniano38

152 A tensatildeo tragicocircmica do (anti)heroacutei no Auto da Compadecida39

SEGUNDO ATO41

2 HUMOR E RISO ELEMENTOS INDISPENSAacuteVEIS Agrave CENA COcircMICA42

21 O riso seacuterio-cocircmico em Aristoacutefanes e Suassuna43

212 Riso e Comeacutedia43

213 Os elementos do risiacutevel no heroacutei suassuniano45

TERCEIRO ATO65

3 AS DUAS PECcedilAS ndash O POETA USA MAacuteSCARAS66

31 OS GESTOS ndash A vestimenta o corpo e o disfarce67

QUARTO ATO74

4 O AUTOR E SEUS OUTROS NA COMEacuteDIA E NO AUTO75

41 O par cocircmico na tradiccedilatildeo literaacuteria em Aristoacutefanes e em Ariano Suassuna76

QUINTO ATO84

5 O POETA VAI AO INFERNO85

51 Quem fala por quem86

511 Ao Hades e com riso frouxo97

52 O julgamento O riso a morte e o descanso do (in)justo105

521 Aqui eacute o inferno vocecirc pode brincar108

522 A Voz a esperteza e a malandragem do poeta Nem tudo que eacute vivo morre111

6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS117

REFEREcircNCIAS120

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INTRODUCcedilAtildeO Num vatildeo ficaacute cum raiva homes espectador Se eu sendo um mendigo na frente dos ateniense Teja em tempo de falaacute sobre a cidade fazendo uma comeacutedia Pois o que eacute justo a comeacutedia tambeacutem conhece E eu vou falaacute coisas terriacuteve mas justa Pois desta vez num vai me caluniaacute Cleacuteon que Estrangeiros tando aqui eu falo mal da cidade Eacute que tamo soacute eacute o concurso das Leneia E os estrangeiro num tatildeo aqui nem os imposto Chega nem os aliado vem das cidade Mas tamo soacute noacutes agora soacute os miacute debuiado (POMPEU Dioniso MatutoARISTOacuteFANES Acarnenses vv497-507)

A Literatura Popular vem sendo cada vez mais estudada e reconhecida no acircmbito

acadecircmico ressaltando seu espaccedilo regional pela criaccedilatildeo e construccedilatildeo de uma nova vertente

literaacuteria que dialoga com outras artes e culturas Assim torna-se importante destacar que esse

tipo de literatura constitui-se tambeacutem como uma das vertentes da histoacuteria cultural tendo em

vista que reuacutene diversos tipos de textos para pensar sua escrita linguagem e (re)leitura pela

apropriaccedilatildeo cultural vivenciada pelo puacuteblico e pelo poeta que ouviu viu e viveu o produto

exposto nos versos como nos assegura Chartier (1990 p 27)

Nesse contexto permeado de apropriaccedilotildees recriaccedilotildees e (in)certezas eacute que

estudaremos o riso cocircmico no auto e na comeacutedia como leitoresjurados do julgamento

paroacutedico atraveacutes da accedilatildeo cocircmica do poeta representado por seus duplos na comeacutedia

Acarnenses1 (425 aC) de Aristoacutefanes no Auto da Compadecida (1956) de Suassuna numa

aproximaccedilatildeo atemporal que se reflete na palavra aacutecida do a(u)tor na gargalhada solta e na

quebra da normalidade literaacuteria reveladora das diversas maacutescaras vozes ndash linguagem matuta

e os gestos elementos que estatildeo a serviccedilo do poeta cocircmico e de seus duplos como porta-

vozes do discurso social

Assim para estudo e anaacutelise dos duetos (duplos) cocircmicos cordelescos

fomentadores do imaginaacuterio e da construccedilatildeo de (anti) heroacuteis cocircmicos populares presentes na

tradiccedilatildeo popular nordestina bebemos de fontes escritas e tambeacutem de uma modalidade

narrativa ateacute pouco tempo desprezada esquecida dada ao puacuteblico quase sempre em papel

ruacutestico e com maacute qualidade da impressatildeo e escrita sem a preocupaccedilatildeo dos autores com a

ldquocorreccedilatildeordquo linguiacutestica a Literatura de Cordel

1 No corpus do nosso trabalho optamos por usar a traduccedilatildeo de Acarnenses de Aristoacutefanes para o cearensecircs da professora Ana Maria Ceacutesar Pompeu Dioniso matuto uma abordagem antropoloacutegica do cocircmico na traduccedilatildeo de Acarnenses de Aristoacutefanes para o cearensecircs

13

Tradicionalmente comum a este tipo de literatura foi a presenccedila marcante da

oralidade o fato de ser vendida em feiras e o tipo de consumidor em geral pessoas de baixo

niacutevel escolar cuja identificaccedilatildeo com os folhetos se estabelecia por meio de variadas

temaacuteticas incluindo o diaacutelogo com outras fontes literaacuterias como a Comeacutedia Grega outro

objeto deste estudo

Com isso a importacircncia do cordel pelo meio acadecircmico daacute-se pela produccedilatildeo de

intelectuais como Ariano Suassuna que transpotildee episoacutedios inteiros do verso popular para a

prosa ou vice-versa num imenso caldeiratildeo de ideias consciente da forccedila que essa modalidade

literaacuteria deteacutem na representaccedilatildeo do imaginaacuterio do povo solidificando sua maneira de pensar e

de reagir ante os fenocircmenos sociais

Essas reaccedilotildees aos diferentes contextos sociais motivadas pelas experiecircncias

escritas auditivas e visuais preteacuteritas atribuem um valor positivo agrave figura do (anti)heroacutei

cocircmico e ou agrave conversatildeo do matuto do ruacutestico e satildeo responsaacuteveis pela sua construccedilatildeo miacutetica

a partir do documento linguiacutestico do falar matuto heranccedila cultural cearense como

apresentado por Pompeu em seu Dioniso Matuto (2014) Entretanto temos de considerar que

Aristoacutefanes natildeo faz distinccedilatildeo entre linguagem matuta e citadina apenas de aspectos dialetais

das cidades natildeo aacuteticas como afirma Andreas Willi

A comeacutedia tambeacutem se diferencia da trageacutedia por apresentar todos os estrangeiros a falar em seus dialetos nativos Embora se costume considerar a reproduccedilatildeo dos outros dialetos como deformaccedilatildeo risiacutevel Aristoacutefanes natildeo exagera as caracteriacutesticas dialetais nem as personagens atenienses escarnecem delas de maneira que eacute provaacutevel que o efeito cocircmico nasccedila ali natildeo do exagero mas do realismo linguiacutestico que natildeo tem equivalente em outro gecircnero (WILLI 2003 p268)

Sobre essa afirmativa e tomando como ponto de partida o pensamento de

Bogatyrev (1977) em relaccedilatildeo agraves variaccedilotildees dialetais nota-se que pelas falas produzidas

o espectador percebe ao mesmo tempo o ator e a personagem presentes nos contextos

nordestino e grego resultado de uma simbiose entre ldquocriador e criaturardquo

O corpo do presente trabalho estaacute dividido em Cinco Atos assim denominada a

divisatildeo da Comeacutedia Antiga que na Greacutecia evolui em trecircs fases distintas considerando-se a

comeacutedia2 antiga a comeacutedia mediana e a comeacutedia nova Relativamente ao periacuteodo da comeacutedia

antiga Aristoacutefanes eacute o seu grande representante estruturando-a com as seguintes partes o

proacutelogo o paacuterodo que consiste na entrada do coro e nas suas intervenccedilotildees ou disputa entre 2 EDMONDS J M The Fragments of Attiacutec Comedy II Uiacuteacircdle Cotnedy Leiden Brill 2010

14

dois coros a paraacutebase isto eacute um interluacutedio coral que suspende parcialmente a ilusatildeo

dramaacutetica dirigindo-se diretamente ao auditoacuterio os episoacutedios ou seja as cenas dialogadas

pelas personagens e intercaladas por intervenccedilotildees do coro o ecircxodo concretizando-se no

desenlace final

A comeacutedia antiga caracteriza-se pelo tom de humor e de saacutetira com que se critica

assuntos da vida cotidiana aspectos poliacuteticos e sociais e figuras e instituiccedilotildees proeminentes

sendo a sua finalidade principal a diversatildeo para aleacutem do objetivo moralizante Emprega uma

linguagem luacutedica atraveacutes de jogos de palavras equiacutevocos ironia clichecircs e apresenta ainda

personagens de forma caricatural

Cabe ressaltar que na Introduccedilatildeo apresentamos uma panoracircmica histoacuterica acerca

da Comeacutedia Grega aristofacircnica ndash Acarnenses com direcionamento agrave comeacutedia suassuniana ndash

retratada no Auto da Compadecida Para tratar do Auto da Compadecida e da influecircncia que

sofreu da literatura de Gil Vicente decidimos optar pela apresentaccedilatildeo do Auto Vicentino visto

que O Auto da Compadecida constitui-se como uma peccedila teatral que resgata a comeacutedia

medieval e renascentista europeia bem como a comeacutedia popular nordestina Tal obra foi

elaborada a partir de vertentes distintas onde se encontram resquiacutecios de obras conhecidas e

consagradas mundialmente e tradiccedilatildeo popular impressa em folhetos

O caraacuteter cordelesco do Auto remonta agrave Idade Meacutedia que teve os uacuteltimos seacuteculos

tambeacutem conhecidos pelos historiadores como tempos embaralhados visto que levaram agraves

uacuteltimas consequecircncias uma visatildeo decadentista da vida O caraacuteter transitoacuterio do seacuteculo XV

tornou-se cada vez mais importante no desencadeamento da ideia de morte dentro da unidade

cristatilde fato que permeia as obras de Gil Vicente

O Auto da Barca do Inferno tambeacutem conhecido como Auto da Moralidade foi escrito em 1517 e representado ao rei Manuel I de Portugal e agrave rainha Lianor Eacute uma das mais significativas e famosas obras de Gil Vicente e que embora esteja na estrutura de uma trilogia Trilogia das Barcas que contempla tambeacutem o Auto da Barca do Purgatoacuterio e o Auto da Barca da Gloacuteria a peccedila conteacutem um uacutenico ato no qual eacute recorrente o uso da saacutetira do riso do ridiacuteculo e do achincalhe dotado de um tenso cunho didaacutetico

Jaacute no caso especiacutefico de Ariano Suassana o Auto da Compadecida se divide em

trecircs episoacutedios o primeiro intitulado o enterro do cachorro o segundo com o retorno do Major

Antocircnio Moraes junto com o Bispo e o terceiro episoacutedio compreendendo o julgamento dos

mortos Os atos satildeo entrecortados pela fala do palhaccedilo que representa o autor situando os

espectadores e antecedendo a mudanccedila de cenaacuterio Os personagens satildeo Joatildeo Grilo Chicoacute

major Antocircnio Moraes o padeiro e sua esposa o cangaceiro Severino de Aracajuacute e seu

15

ajudante Bispo Sacristatildeo Padre Joatildeo e Frade Encourado democircnio Manuel e a

Compadecida mas a peccedila gira em torno de Joatildeo Grilo que eacute quem arma situaccedilotildees

conflituosas e quem concentra o foco dramaacutetico

Eacute nesse contexto que a literatura de cordel se apresenta como um importante

veiacuteculo de expressatildeo habilitado agrave aproximaccedilatildeo do popular e do erudito como tambeacutem

ferramenta de articulaccedilatildeo da comunicaccedilatildeo do sertatildeo desprezado e inculto com as referecircncias

gregas de narraccedilatildeo observadas em Aristoacutefanes Para tanto nos valemos da anaacutelise das obras

referidas por gravitarem em torno da temaacutetica proposta e abordarem de forma direta a

linguagem matuta e a construccedilatildeo dos duplos cocircmicos tendo como foco a figura do matuto

Em termos metodoloacutegicos nossa pesquisa se apoia em uma perspectiva

comparativista considerando o contiacutenuo uso da oralidade efetivado na Comeacutedia como voz

autorizada para a accedilatildeo contiacutenua do proacuteprio poetapersonagem Nesse contexto Segundo

Bakhtin o autor ldquoocupa uma posiccedilatildeo responsaacutevel no acontecimento do existir opera com

elementos desse acontecimento e por isso a sua obra eacute tambeacutem um momento desse

acontecimentordquo (BAKHTIN 2003 p176) Neste esteio Caetano Peixoto e Machado (2011)

nos afirmam que A posiccedilatildeo do autor-criador ou seja aquele que tem a funccedilatildeo esteacutetico-formal engendradora da obra natildeo estaacute dissociada do autor-pessoa isto eacute do escritor do artista A vida natildeo estaacute em dicotomia com a arte Elas se imbricam atraveacutes das vozes sociais e histoacutericas onde a dimensatildeo teoacuterica esteacutetica e eacutetica ndash o conhecimento os valores e o agir ndash convergem organizadas num sistema estiliacutestico harmonioso

Nas obras que constituem nossa pesquisa o autor e suas diversas vozes operam e

se estabelecem por meio de accedilotildees muacuteltiplas grotescas como forma de afastar-se do caraacuteter de

opressatildeo para a compreensatildeo e apreensatildeo de uma verdade pura muitas vezes advinda do

social e das situaccedilotildees de injusticcedila como defendida por DiceoacutepolisJustinoacutepolis em

Acarnenses e por Joatildeo Grilo no Auto da Compadecida

Eis que da multiplicidade das praacuteticas do discurso deriva-se o que se pode

reconhecer como uma tipicidade um modo totalmente particular de afirmaccedilatildeo do sujeito um

muacuteltiplo que ao mesmo tempo se torna iacutempar diferente dos demais na conduccedilatildeo do discurso

social Essa imagem e sua polifonia capazes de reunir habilidades estabelecedoras de um

valor cultural da literatura satildeo o que haacute de mais iacutentimo e intransferiacutevel nesse diaacutelogo proposto

entre as obras estudadas e seus autores por operarem um mecanismo narrativo simples e

divertido atraveacutes do diaacutelogo entre o discurso literaacuterio e o socioloacutegico

16

Retornando agrave divisatildeo do trabalho acentuamos que no PRIMEIRO ATO tratamos

de questotildees inerentes agrave origem e estrutura da Comeacutedia e do Auto ressaltando ainda a

importacircncia desses gecircneros como elementos presentes e ativos no processo de construccedilatildeo da

heranccedila cultural erudita mas de origem popular com foco no discurso permeado de vaacuterias

vozes indispensaacuteveis na formaccedilatildeo do poeta-personagem e de seus (anti)heroacuteis

No SEGUNDO ATO discorremos sobre os elementos da Comeacutedia aristofacircnica e

do Auto suassuniano a partir do Humor e do Humorismo Para tanto recorremos agrave expressatildeo

ldquoriso seacuterio-cocircmico como elemento moralizanterdquo tomando como base os estudos de Huizinga

Pirandello Bergson e Vladimir Propp entre outros estudiosos

No TERCEIRO ATO apresentamos um breve histoacuterico da comeacutedia como duplo

da trageacutedia e escrevemos sobre as maacutescaras vozes e gestos como elementos fundantes do

outro do poeta na cena cocircmica tanto em Aristoacutefanes quanto em Suassuna

No QUARTO ATO aprofundamos nossos estudos sobre o duplo na literatura

tomando como base trabalhos sobre a ocorrecircncia do duplo e seu estranhamento na literatura

Ainda no mesmo Ato fazemos uso dos estudos de Bakhtin sobre polifonia do duplo e a

polifonia do discurso social com o fim de relacionar o discurso social de Joatildeo Grilo e

Diceoacutepolis em defesa do coletivo ndash da polis ndash duplos do poeta e porta-vozes dos discursos

sociais jaacute popularizados na Literatura de Cordel suas influecircncias e os diaacutelogos possiacuteveis com

a Comeacutedia Grega

Por fim desenvolvemos ao longo do QUINTO ATO a anaacutelise comparativa da

formaccedilatildeo dos duplos e presenccedila das vaacuterias vozes constitutivas do enredo da comeacutedia

Acarnenses de Aristoacutefanes do texto traduzido do original grego de 425 a C da versatildeo

Dioniso matuto uma abordagem antropoloacutegica do cocircmico na traduccedilatildeo de Acarnenses de

Aristoacutefanes para o cearensecircs da versatildeo jaacute citada da peccedila produzida por Ana Maria Ceacutesar

Pompeu texto que tambeacutem nos serviraacute tambeacutem como paradigma da Comeacutedia Antiga do Auto

da Compadecida de Ariano Suassuna com vistas a demonstrar a importacircncia de se entender

a partir da oralidade linguagem matuta tatildeo presente na obra de Suassuna a finalidade do uso

das vozes do ldquooutrordquo para a construccedilatildeo significativa do proacuteprio poeta Ainda no Quinto Ato

estudamos o riso e do duplo poeacutetico pela inclusatildeo e estudo de Ratildes de Aristoacutefanes do Auto da

Barca do Inferno (1531) de Gil Vicente tendo como foco a cena do julgamento das almas

comum tambeacutem ao Auto da Compadecida ndash momento no qual a personagem se funde ao

poeta educador da cidade com suas preferecircncias e invectivas

Em Aristoacutefanes somos ouvintes das criacuteticas do proacuteprio poeta que em meio ao

caos propiciado pela guerra decide comprar sua paz Em Gil Vicente provamos da

17

moralidade cristatilde que de forma direta condena ou absolve os pecadores e falsos pregadores

E por uacuteltimo em Ariano Suassuna construtor de cenaacuterios (im)provaacuteveis nos quais ceacuteu e

inferno disputam os mortos por meio de uma seacuterie de accedilotildees cocircmicas onde a morte por vezes

perde seu caraacuteter traacutegico

18

PRIMEIRO ATO

19

1 O TEATRO UM DUPLO3 ARTIacuteSTICO ndash TRAGEacuteDIA E COMEacuteDIA

O teatro grego surgiu no contexto do culto religioso estando ligado

particularmente ao Deus Dioniso permanecendo ligado tambeacutem agrave religiatildeo A palavra teatro

segundo Pereira (2006 P24) tem sua origem no grego theacuteatron (έ) em que theacutea

(έ) quer dizer accedilatildeo de olhar de contemplar aspecto objeto de contemplaccedilatildeo espetaacuteculo

e em que o sufixo ndashtron (-) significa lsquoinstrumento dersquo e theacuteatron querer dizer

lsquomaacutequina de espetaacuteculosrsquo Theacutea e theacuteatron tecircm derivaccedilatildeo do verbo theaacuteomai (ά ou

ῶ) que significa ver contemplar considerar examinar ser espectador contemplar

pela inteligecircncia Entretanto o teatro teve em sua origem duas modalidades artiacutesticas

principais a trageacutedia e a comeacutedia

Pereira (2006) destaca que a palavra trageacutedia em grego (τραγῳδία) deriva de

tragos (τράγος) que significa bode puberdade os primeiros desejos do sentido lubricidade

(pois o bode simbolizava para os antigos pelas suas caracteriacutesticas o desejo sexual a

lubricidade) e de ode (ᾠή) que significa canto com acompanhamento de instrumentos

accedilatildeo de cantar

A palavra tragoidiacutea (τραγῳδία) de acordo com Fernandes (2006) significava em

grego ldquocanto do bode canto religioso com o qual se acompanhava o sacrifiacutecio de um bode nas

festas de Dioniso trageacutedia drama heroacuteico evento traacutegicordquo O tragoidoacutes (τραγῳδός) era

primordialmente aquele que danccedilava e cantava durante a imolaccedilatildeo de um bode nas festas de

Dioniso sendo que este termo significou tambeacutem em seguida lsquoaquele que danccedila e canta em

um coro traacutegico ator traacutegico membro do coro traacutegico poeta traacutegico Para alguns estudiosos o canto do bode era o canto dos companheiros de Dioniso em seus cortejos orgiaacuteticos dos saacutetiros os filhos de Sileno - que teria segundo uma tradiccedilatildeo sido um educador daquele deus (Sileno era famoso pela sua feiuacutera e sua sabedoria e suas formas eram em parte equinas) Poreacutem soacute muito tardiamente ndash a saber na eacutepoca heleniacutestica e romana da cultura grega - os saacutetiros foram representados como seres em que se misturavam formas humanas e formas caprinas tendo os membros inferiores ateacute mais ou menos a cintura em forma caprina e um chifre e feiccedilotildees que lembravam as feiccedilotildees caprinas No tempo aacuteureo das trageacutedias e mesmo pouco depois ndash a saber no seacuteculo V e IV a C - os saacutetiros apareciam como seres em que se misturavam as formas humanas com a equina tendo entatildeo os membros inferiores semelhantes agraves patas traseiras de um cavalo aleacutem de um rabo e orelhas de cavalo Esta hipoacutetese permaneceu poreacutem apoiada em passagens de textos do seacuteculo V (particularmente no fragmento 207 do Prometeu Pirceu de Eacutesquilo) em que saacutetiros satildeo chamados de bode natildeo pela sua forma mas

3 Nesta pesquisa trabalhamos com o conceito de Duplo estabelecido por Anna Beltrametti no artigo ldquoLe couple comique Des origines mythiques aux deacuterives philosophiques incluiacutedo na obra dirigida por Marie-Laurence Esclos Le rire des grecs anthropologie du rire en Gregravece ancienne (2000 p 215-226)

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hipoteticamente pela sua lasciacutevia ndash pois como jaacute dissemos o bode eacute caracterizado pela lubricidade (PEREIRA 2006 p7)

Outra hipoacutetese esta defendida por Lesky (1999) foi a de que o canto do bode era

o canto lamentoso da viacutetima sacrificada a Dioniso ndash que como vimos acima era um bode

Toda a trageacutedia se assemelha a um ritual de sacrifiacutecio No centro da orquestra no teatro

grego havia um altar a Dioniso (o thymeacutelendashθυμέλη) sugerindo que o destino traacutegico do heroacutei

e a representaccedilatildeo traacutegica eram como uma imolaccedilatildeo a Dioniso Na Greacutecia sobretudo nas

eacutepocas arcaicas eram praticados rituais de sacrifiacutecio dos chamados bodes expiatoacuterios (em

grego pharmakoacutesndashφαρμακός) em que um indiviacuteduo carregado de todas as impurezas da

comunidade era sacrificado

Em Atenas havia um ritual nas festas chamadas Targeacutelias4 dedicadas a Apolo e

Aacutertemis que remetia a este sacrifiacutecio Um homem e uma mulher eram surrados enquanto

eram conduzidos atraveacutes de toda a cidade Depois eram sacrificados fora das fronteiras da

cidade queimados e suas cinzas jogadas no mar Na eacutepoca claacutessica eram apenas jogados no

mar e depois expulsos para fora das fronteiras da cidade Eles eram chamados de pharmakoiacute5

bodes expiatoacuterios

O ritual de sacrifiacutecio era uma tradiccedilatildeo que existia em muitas outras civilizaccedilotildees

Nas Saacuteceas6 babilocircnicas por exemplo que satildeo mencionadas por Nietzsche em O nascimento

da trageacutedia um prisioneiro era sacrificado depois de ser nomeado rei da Babilocircnia por cinco

dias tempo em que tinha direito a desfrutar de todo o hareacutem do proacuteprio rei e de dar livre curso

a todos os seus apetites ateacute o momento de seu sacrifiacutecio Durante este tempo as orgias eram

celebradas em toda a cidade

Na Poeacutetica de Aristoacuteteles trageacutedia e comeacutedia assemelham-se quando satildeo

apresentadas como ldquomimesis7rdquo (1447a) e diferem porque autores cocircmicos ldquoimitamrdquo homens

4 Targeacutelia era um dos principais festivais atenienses realizados em honra a Apolo e Aacutertemis tal festival era celebrado no mecircs de Targeliatildeo (relativo ao periacuteodo de 15 de maio a 15 de junho) 5 Sacrificar (real ou simbolicamente) um bode expiatoacuterio para purificar a cidade era comum no mundo grego A pessoa sacrificada chamava-se pharmakoacutes Em Atenas o rito era parte das Targeacutelias festival em honra a Apolo Para ser pharmakoiacute as pessoas tinham que ser detentores de deficiecircncia fiacutesica e os considerados inuacuteteis 6 Festas que se celebravam na Peacutersia antiga e durante as quais os escravos mandavam nos amos 7 Como notado por GOLDEN Leon Aristotle on the Pleasure of Comedy In A O Rorty Essays on Aristotlersquos Poetics (1992 27) Do gr miacutemesis ldquoimitaccedilatildeordquo (imitatio em latim) designa a accedilatildeo ou faculdade de imitar coacutepia reproduccedilatildeo ou representaccedilatildeo da natureza o que constitui na filosofia aristoteacutelica o fundamento de 7Heroacutedoto foi o primeiro a utilizar o conceito e Aristoacutefanes em Tesmofoacuterias (411) jaacute o aplica O fenocircmeno natildeo eacute um exclusivo do processo artiacutestico pois toda atividade humana inclui procedimentos mimeacuteticos como a danccedila a aprendizagem de liacutenguas os rituais religiosos a praacutetica desportiva o domiacutenio das novas tecnologias etc Por esta razatildeo Aristoacuteteles defendia que era a miacutemesis que nos distinguia dos animais

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piores e os traacutegicos os ldquoimitamrdquo melhores do que satildeo na realidade (1448a) Sendo a mimesis

considerada pelo filoacutesofo como congecircnita agrave natureza humana ndash que com ela se compraz e

aprende ndash a poesia naturalmente tomou as formas da iacutendole particular dos poetas os de

acircnimo mais elevados mimetizavam accedilotildees nobres atraveacutes de hinos e encocircmios e os de mais

baixas inclinaccedilotildees compunham vitupeacuterios (1449a) Vinda agrave luz atraveacutes da poesia a mesma

distinccedilatildeo estendeu-se ao teatro dos ditirambos em honra a Dioniso originou-se a trageacutedia e

nos cantos faacutelicos ndash que tambeacutem evocavam o mesmo Deus ndash pode-se perceber as sementes da

comeacutedia

Na cena teatral segundo Aristoacuteteles (Poeacutetica 1448b) a comeacutedia apresentava o

que os homens tecircm de ridiacuteculo caracterizado como ldquodefeito torpeza anoacutedina e inocenterdquo a

maacutescara cocircmica era disforme mas natildeo possuiacutea expressatildeo de dor Por sua vez a trageacutedia aacutetica

mimetizava homens superiores em accedilotildees de caraacuteter elevado que suscitavam terror (phobos) e

compaixatildeo (eleas) e provocavam o prazer que eacute proacuteprio desses sentimentos

Sem desconsiderar que uma localizaccedilatildeo muito rigorosa das origens seria um erro

metodoloacutegico ressalto a origem comum da trageacutedia e da comeacutedia ndash nos coros dionisiacuteacos ndash

ainda que predominantemente a Filosofia demonstre muito menos apreccedilo por essa uacuteltima Se

a trageacutedia surgiu dos ditirambos a comeacutedia comeccedilou com os komoi uma espeacutecie de procissatildeo

jocosa das quais a mais famosa era realizada nas festas dionisiacuteacas para celebrar a fertilidade

da natureza atraveacutes de homenagens a reproduccedilotildees de falos descomunais ndash costume ainda vivo

em algumas regiotildees da Greacutecia e Japatildeo

Os comediantes (komoidoi) andavam de aldeia em aldeia por natildeo serem tolerados

na cidade registrou Aristoacuteteles (1448b) Oficialmente as representaccedilotildees cocircmicas tiveram

origem nas Dioniacutesias Urbanas (486aC) em Atenas mas cenas pintadas em vasos revelam

sua existecircncia bem antes da data oficial

ldquoA trageacutedia surgiu do coro traacutegicordquo Pode-se ler em O nascimento da trageacutedia

(NIETZSCHE 2007 p52) quando Nietzsche interpreta a origem da trageacutedia no coro dos

saacutetiros de um modo bastante especiacutefico tomando como arma a luta contra a ideia de

naturalismo na arte O coro mesmo eacute percebido ldquocomo uma muralha viva que a trageacutedia

estende agrave sua volta a fim de isolar-se do mundo real e de salvaguardar para si o seu chatildeo ideal

e a sua liberdade poeacuteticardquo (p54) E o faz preservando as semelhanccedilas com os antigos coros

satiacutericos gregos e sua erracircncia por terrenos mais elevados ldquomuito acima das sendas reais do

perambular dos mortaisrdquo (p54) O saacutetiro ndash ldquoser natural e fictiacuteciordquo ndash eacute percebido em relaccedilatildeo ao

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homem grego civilizado do mesmo modo que a muacutesica dionisiacuteaca em relaccedilatildeo agrave civilizaccedilatildeo O

coro satiacuterico suspende eleva e supera o grego civilizado da mesma forma como a claridade do

sol faz com as luzes das lacircmpadas escreve Nietzsche

Expressatildeo do proacuteprio desejo com sua erracircncia original o coro satiacuterico criava um

territoacuterio transcendente distanciado da realidade cotidiana natildeo apenas tolerado como

ldquoliberdade poeacuteticardquo e sim considerado pelo menos por Nietzsche a proacutepria ldquoessecircncia de toda

poesiardquo (p54) O mesmo filoacutesofo escreveu O ecircxtase do estado dionisiacuteaco com sua aniquilaccedilatildeo das usuais barreiras e limites da existecircncia conteacutem enquanto dura um elemento letaacutergico no qual imerge toda vivecircncia pessoal do passado Assim se separam um do outro atraveacutes desse abismo do esquecimento o mundo da realidade cotidiana e o da dionisiacuteaca (NIETZSCHE 2007 p55)

Devo advertir de iniacutecio que eacute difiacutecil dizer por que a partir de uma origem comum

ndash a experiecircncia dionisiacuteaca ndash o distanciamento arrebatador do mundo cotidiano prosaico gerou

expressotildees tatildeo diversas a ponto de constituiacuterem gecircneros ateacute hoje existentes como o cocircmico e

o traacutegico E segundo Nietzsche este uacuteltimo eacute com ajuda de Apolo a ldquodomesticaccedilatildeo artiacutestica

do horriacutevelrdquo enquanto o primeiro seria uma ldquodescarga da naacuteusea do absurdordquo (NIETZSCHE

2007 p56)

Ao longo da histoacuteria entretanto pode-se perceber que o entrelaccedilamento de ambos

no que ficou conhecido como ldquotragicocircmicordquo a ponto de tornar-se popular a ideia expressa

pelo ditado ldquoseria cocircmico se natildeo fosse traacutegicordquo Como tantos outros os termos originais

foram banalizados esvaziados de conteuacutedo tornados difusos

Se em sua origem o cocircmico era o outroduplo do traacutegico tambeacutem desde esses

tempos a saacutetira jaacute se fazia presente como companhia do texto cocircmico A chamada ldquoComeacutedia

Antigardquo (425-404 aC periacuteodo da produccedilatildeo de Aristoacutefanes que nos chegou) caracteriza-se

pela mordacidade caacuteustica na mimesis dos cidadatildeos proeminentes e das instituiccedilotildees dapolis8

seja pelos a(u)tores seja pela manifestaccedilatildeo das proacuteprias personagens que algumas vezes

representavam em cena o proacuteprio discurso revelador das injusticcedilas sociais tatildeo comuns na

Cidade

Nesse contexto o Duplo sempre foi um tema profundamente instigante da cultura

humana e sempre esteve essencialmente relacionado em vaacuterias aacutereas do conhecimento como

na Filosofia Psicologia Literatura e na Mitologia persistindo temporalmente como temaacutetica 8 Para a normatizaccedilatildeo de algumas palavras gregas em portuguecircs seguimos o Glossaacuterio elaborado pelo Laboratoacuterio de Estudos Sobre a Cidade Antiga Disponiacutevel em pdf no site wwwmaeuspbrlabeca aba glossaacuterio No caso de palavras jaacute dicionarizadas utilizamos a forma de acordo como que consta no Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa (2008)

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sempre revisitada e geradora de ambiguidades Na Antiguidade o Duplo era para a

sociedade a representaccedilatildeo ou o reflexo do idecircntico ou seja prevalecia a ideia de Duplo como

o homogecircneo manifestaccedilatildeo do igual

No entanto natildeo permaneceu dessa maneira tendo com o passar do tempo a partir

do seacuteculo XVIII se tornado heterogecircneo isto eacute o Duplo passa a representar o desigual ou em

outras palavras o oposto em Suassuna o arremedo cocircmico Este fato encontra comprovaccedilatildeo

quando procuramos as diferenccedilas existentes entre o traacutegico e o cocircmico tatildeo bem delineadas na

sociedade Greacutecia Claacutessica

Obscura como outros siacutembolos e projeccedilotildees coletivas a figura do duplo em

Acarnenses (Diceoacutepolis) e no Auto da Compadecida (Joatildeo Grilo) eacute cocircmica e criacutetica visto que

satildeo elementos que parodiam o serviccedilo divino cantando errado e fazendo sermotildees

moralizantes travestem-se usam maacutescaras passeiam com maestria nos mundos popular e

erudito representam coletivos pelo poder da gargalhada do riso seacuterio e da tolice formas mais

sutis para se levar ao conhecimento da audiecircncia o desdobramento da consciecircncia ao mesmo

tempo a do idiota e a do bufatildeo que a utiliza como maacutescara e a coloca em praacutetica na defesa do

cidadatildeo injusticcedilado

Cantando errado e fazendo sermotildees moralizantes os a(u)tores travestem-se de

heroacuteis cocircmicos satildeo porta-vozes da opiniatildeo de muitos se apoderam do grotesco usam

maacutescaras passeiam com maestria nos mundos popular e erudito representam coletivos pelo

poder da gargalhada do riso seacuterio e da tolice e encontram em seus outros as formas

mais(in)certas para criticar agravequeles que exploram a cidade e levar ao puacuteblico atraveacutes de

figuras idiotizadas os ensinamentos que ironicamente o poeta preocupado com o destino do

cidadatildeo executa diante de suas audiecircncia

Esta dualidade cocircmica estabelecida pelo poeta e seus duplos no espaccedilo cecircnico da

cidade eou do inframundo implica certa ambiguidade constitutiva na figura do heroacutei cocircmico

ou do juiz apresentado em Acarnenses no Auto da Compadecida e no Auto da Barca do

Inferno tendo em vista tambeacutem a accedilatildeo dos pares antagocircnicos estuacutepido e saacutebio grosseiro e

sutil escravo das pulsotildees e senhor de si mesmo menos e mais humano

Assim percebe-se que tanto no teatro aristofacircnico quanto no teatro popular de

Ariano Suassuna o autoconhecimento expresso pelas maacutescaras gestos e vozes cocircmicas

implica tambeacutem no conhecimento da condiccedilatildeo humana tatildeo bem levada a seacuterio pelos autores e

seus discursos criacuteticos sendo portanto uma nova forma de combinar velhos ingredientes

como o riso frouxo e a voz estridente educadora aacutecida da sociedade ateniense que encontra

espaccedilo semacircntico atraveacutes dos gestos e maacutescaras que se organizam em uma nova composiccedilatildeo

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natildeo soacute da cena teatral mas da inteligecircncia de autores que pensam a sociedade para aleacutem das

mazelas das injusticcedilas vivenciadas impostas pelo estado de guerra

Nesse ambiente muacuteltiplopolifocircnico observamos que a ldquovoz do poetardquo os gestos

e as maacutescaras satildeo fundantes da estrutura do discurso educativo e denunciador formado a

partir da presenccedila de vaacuterias vozes como a do proacuteprio poeta que tem sido um tema de grande

interesse para muitos estudiosos e para todos que se deparam com a problemaacutetica da

identificaccedilatildeo desta quando articulada agrave formaccedilatildeo dos duplos do poeta dentro da Comeacutedia

Antiga perceptiacutevel nas peccedilas Acarnenses de Aristoacutefanes no Auto da Compadecida de

Ariano Suassuna e no Auto da barca do Inferno de Gil Vicente

Por ser uma arte que permanece haacute tantos seacuteculos o teatro desperta curiosidade

acerca de seus primoacuterdios existindo vaacuterias conjecturas e teorias sobre o surgimento da

Comeacutedia Antiga como ambiente extremamente propiacutecio agrave formaccedilatildeo de duplos a partir de

uma seacuterie de elementos presente no mito e culto do deus do teatro Dioniso no qual as vozes

os gestos e as maacutescaras satildeo sobrepostas como causa de equiacutevocos e componentes centrais das

invectivas pessoais ou intrigas transformando-se em acessoacuterios fundamentais para o discurso

moralizante e para alcanccedilar o objetivo maior do a(u)tor a obtenccedilatildeo da paz em Acarnenses de

Aristoacutefanes e a absolviccedilatildeo no Auto da Compadecida de Ariano Suassuna ou na condenaccedilatildeo

das almas em virtude de suas faltas e pecados em vida como esclarece Nemeacutesio (1941) num

ritmo sacral na abordagem vicentina no Auto da Barca do Inferno

Eacute notaacutevel contudo observar que esses elementos frequentemente utilizados por

Aristoacutefanes em suas peccedilas tambeacutem encontram eco na literatura popular de Suassuna Isso

decorre do fato de a obra do pernambucano tambeacutem apresentar uma tessitura textual

atravessada por muacuteltiplas vozes estas representadas pelas diferentes personagens Nesse

processo as obras dos dois autores evidenciam um fenocircmeno recorrente e natural marcado

pela tensatildeo de uma crise profunda denunciada pelos dramaturgos nos discursos de suas

personagens

Assim eacute pertinente que primeiro justifiquemos a escolha das obras citadas visto

que ambas trazem em seus enredos personagens que usam da autoridade conferida pelo poeta

para ressoar seus anseios e indignaccedilotildees atraveacutes do discurso Ao longo das peccedilas Aristoacutefanes e

Suassuna projetam seus duplos de forma que suas proacuteprias vozes possam ser ouvidas

indiretamente por traacutes de cada ato levando o puacuteblico a crer que ouve a voz direta do poeta

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quer atraveacutes do coro do palhaccedilo coreuta da paraacutebase9 ou em personagens protagonistas

como Diceoacutepolis ou Joatildeo Grilo

Atraveacutes dessas personagensautores a voz do dramaturgo eacute projetada pelo riso da

mangofa10 pelos gestos performaacuteticos pelo arremedo poeacutetico eou pelo outro travestido de

a(u)tor accedilotildees perfeitamente justificaacuteveis visto que o cocircmico tem afinidade com a cultura

popular porque utiliza fatos do dia a dia como mateacuteria na representaccedilatildeo de algo atraindo

consequentemente a atenccedilatildeo do leitor ou ouvinte para a obra A verdade eacute que a conduccedilatildeo

cocircmica e moralizante encontra espaccedilo feacutertil em ambas as obras traduzida pela accedilatildeo do poeta a

partir das vozes de seus duplos Diceoacutepolis e Joatildeo Grilo figuras conturbadas em franco

desacordo com a situaccedilatildeo promovida pelos legisladores em Atenas ou na pacata cidade de

Taperoaacute interior nordestino Esses protagonistas descobrem-se em atitude de perfeita

rebeldia conscientes das mudanccedilas advindas de suas atitudes e como heroacuteis cocircmicos satildeo

tambeacutem autores de uma saiacuteda que nem sempre pode ser compartilhada socialmente ou

compreendida

Neste contexto a construccedilatildeo do duplo representa um transbordamento do proacuteprio

poeta um arremedo despadronizado o outro do autor uma imitaccedilatildeo de algo que se pretende

por muitas vezes deter e que retorna fazendo pressatildeo no sentido contraacuterio denunciando as

injusticcedilas e desmandos autorizados pelo poeta com toda a sua pujanccedila Quem natildeo recorda das

figuras ceacutelebres de Diceoacutepolis o duplo cocircmico (matuto) de os Acarnenses (Aristoacutefanes) e de

Joatildeo Grilo e Chicoacute sendo uma espeacutecie de duplo pois representa de forma autorizada a

proacutepria voz do poeta com todas as suas anedotas e os ndash Natildeo sei soacute sei que foi assim ou de

algum outro matuto astuto de nossa tradiccedilatildeo cinematograacutefica ou teatral recriado na literatura

de cordel a partir da influecircncia ibeacuterica ou grega

Diante dessa apropriaccedilatildeo e recuperaccedilatildeo dos mecanismos narrativos da comeacutedia e

de seu caraacuteter atemporal torna-se importante salientar que a Comeacutedia Antiga aleacutem de

construir ldquomuacuteltiplos cocircmicosrdquo apresenta personagens natildeo universais como os que satildeo

caricaturas de pessoas que viveram em Atenas em um momento especiacutefico A obra de

Aristoacutefanes potildee em cena nomes de figuras eminentes da Greacutecia antiga como o de poliacuteticos

9 A paraacutebase eacute uma seccedilatildeo de natureza puramente coral da comeacutedia antiga Na Paraacutebase o coro avanccedilaria em direccedilatildeo aos espectadores e pronunciaria os versos olhando para eles O verbo parabaino aparece doze vezes nas peccedilas de Aristoacutefanes Nas suas demais menccedilotildees significa transgredir um juramento (As Aves vv 331 447 461 Lisiacutestrata vv 235 236 As Mulheres que Celebram as Tesmofoacuterias v 357 Assembleia de Mulheres v 1049) Em As Vespas v 1529 o sentido eacute o de avanccedilar danccedilando mas o contexto em que eacute empregado natildeo eacute parabaacutetico DUARTE Adriane da Silva O dono da voz e a voz do dono a paraacutebase na comeacutedia de Aristoacutefanes Satildeo Paulo Humanitas FFLCH USP 2000308 10 Debique escaacuternio mangaccedilatildeo mangoaccedila mangoccedila mofa zombaria mangofa

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(Cleatildeo e Lacircmaco) pensadores (Soacutecrates) e poetas (Euriacutepides e Eacutesquilo)

A referecircncia a essas personalidades bem como o diaacutelogo com a mitologia a

histoacuteria e o teatro natildeo constituiacutea um problema para a plateia de Aristoacutefanes No entanto para

noacutes leitores de outras geraccedilotildees a percepccedilatildeo de tais referecircncias natildeo eacute assim tatildeo simples ainda

que seja fundamental para a compreensatildeo da comeacutedia

Em Aristoacutefanes Diceoacutepolis que atua na comeacutedia como Joatildeo Grilo no Auto da

Compadecida representa muitos cidadatildeos pois ele eacute a ldquoCidade Justardquo espectador do teatro

participante da assembleia ator ou personagem de Euriacutepides vendedor na sua aacutegora Eacute nesta

interaccedilatildeo criaccedilatildeo e recriaccedilatildeo de discursos que estabelecemos contato com o maior

entendimento da histoacuteria da comicidade a fim de entender os recursos que o comedioacutegrafo

utilizou ao compor seus (duplos) personagens que permanecem por seacuteculos em nossa

tradiccedilatildeo

Vale ressaltar que tudo que acontece na cidade tambeacutem eacute do conhecimento do

poeta que no Auto da Compadecida evidenciado por sua proacutepria construccedilatildeo que obedeceu a

uma ideologia antiga do autor de unir o nacional ao popular para operar as mudanccedilas sociais ndash

em Taperoaacute ndash ou por que natildeo dizer em seu mundo real versejado por suas andanccedilas Para ele

a arte que realmente expressa o paiacutes e o povo brasileiro eacute popular ou baseada no popular uma

arte erudita baseada no popular e em tal concepccedilatildeo de arte estaria a gecircnese de seu teatro no

qual desejava expressar suas raiacutezes e seu povo negando assim os modelos de teatro europeu

como se percebe em sua seguinte fala Queria fazer um teatro que expressasse meu paiacutes e meu povo Aiacute me vi muito naturalmente diante do folheto de cordel essa expressatildeo extraordinaacuteria que o povo brasileiro criou e que eacute o uacutenico espaccedilo cultural onde o povo brasileiro se expressou sem intervenccedilotildees nem deformaccedilotildees que lhe viessem de cima ou de fora O folheto de cordel eacute um universo extraordinaacuterio (SUASSUNA 2001 p 04)

Composto pela recriaccedilatildeo criacutetica e por possuir um enredo que proporciona ao

leitorespectador o riso a reflexatildeo e a dor Auto da Compadecida eacute uma mistura de trageacutedia e

comeacutedia como nos afirma Geraldo da Costa Matos Auto da Compadecida eacute misto um duplo pois participa da estrutura traacutegica pela oposiccedilatildeo muito radical dos personagens a ponto de natildeo haver acordo entre eles e da cocircmica pelos incidentes e desenlace com a salvaccedilatildeo de todos graccedilas agrave intervenccedilatildeo da Compadecida permanecendo no inferno apenas os democircnios cuja situaccedilatildeo jaacute se encontra definida ao aparecerem ao palco (SUASSUNA 2005 p82)

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Na verdade apesar de estarem diluiacutedos em toda a peccedila os elementos traacutegicos e

cocircmicos se intercalam com predominacircncia ora de um ora de outro O cocircmico tem presenccedila

mais marcante em torno das accedilotildees do protagonista Joatildeo Grilo e de seu duplo Chicoacute que

enganam os eclesiaacutesticos (Primeiro Ato) o padeiro e a mulher (Segundo Ato) atraveacutes das

mentiras que criam com o objetivo de ganhar algum trocado ou simplesmente para vingar-se

de seus exploradores

As marcas do traacutegico se tornam mais salientes a partir da metade do segundo ato

com a entrada de Severino do Aracaju travestido de mendigo e do Cangaceiro Estes dois se

opotildeem aos demais personagens uma vez que entram em cena para roubar e acabam

provocando a morte de todos que estatildeo na igreja Na cena do julgamento a oposiccedilatildeo entre as

personagens torna-se ainda mais brusca pois se veem de um lado as figuras celestiais e de

outro as figuras demoniacuteacas natildeo havendo acordo entre elas

Eacute justamente nesse abrir e fechar de cortinas que o teatro aristofacircnicosuassuniano

nos proporciona enquanto espectadores uma visatildeo amplamente criacutetica das accedilotildees humanas

seja pelo desejo pessoal injuacuteria ou pela proacutepria paroacutedia que tatildeo bem se propotildee ao

convencimento do puacuteblico Assim concordamos com Brait (1985) ao referir agrave teoria

desenvolvida por Aristoacuteteles em sua poeacutetica sobre os dois pontos essenciais dos personagens

uma vez que o primeiro ponto define o personagem como reflexo da pessoa humana e o outro

concebe o personagem como construccedilatildeo baseada em leis particulares preacute-existentes no texto

Se quisermos saber alguma coisa a respeito de personagens teremos de encarar frente a frente agrave construccedilatildeo do texto social a maneira que o autor encontrou para dar forma agraves suas criaturas e aiacute pinccedilar a independecircncia a autonomia e a ldquovidardquo desses seres de ficccedilatildeo (BRAIT 1985 p11)

Pode-se observar que esses dois pontos se completam estabelecendo bases para a

criaccedilatildeo das personagens Diceoacutepolis e Joatildeo Grilo tanto em Acarnenses como no Auto da

Compadecida a partir do olhar atento do(s) autor(es) jaacute que eles sofrem pela aplicaccedilatildeo das

leis preacute-existentes tanto na sociedade real quanto na ficccedilatildeo sem perder o caraacuteter denunciador

e intencional proposto pelo criador intriacutenseco agraves suas criaturas

Portanto tanto em Acarnenses quanto no Auto da Compadecida o vieacutes cocircmico

utiliza a irreverecircncia para tratar e relatar as dificuldades as opiniotildees e as injusticcedilas da

sociedade de maneira direta e aberta e deste modo se contrapotildee agraves regras sociais que exigem

boas maneiras ou padratildeo que jamais seraacute alvo da comeacutedia

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A comeacutedia eacute o oposto da trageacutedia pois se traduz no uso do riso que faz

ultrapassar os limites da seriedade criando novas e criacuteticas hipoacuteteses e questionamentos sobre

a realidade denunciando os viacutecios erros morais e atitudes irregulares de indiviacuteduos de uma

classe aleacutem de servir para criticar a sociedade dos corrompidos dos inferiores de maneira

camuflada e irreverente Desta forma pode-se afirmar que a performance cocircmica da qual o

riso a maacutescara o gesto e a voz fazem parte constitui-se de forma implacaacutevel em Aristoacutefanes

e Suassuna como arma para a exposiccedilatildeo ao ridiacuteculo e a exposiccedilatildeo de algo ou algueacutem ao

ridiacuteculo natildeo seraacute bem visto perante as regras e as pessoas da sociedade como o proacuteprio

dramturga citando Moliegravere afirmava ldquoNatildeo existe tirania que resista a gargalhadas que lhe

deem trecircs voltas em tornordquo

11 A comeacutedia aristofacircnica

Castigat ridendo mores 11

Devo de iniacutecio chamar a atenccedilatildeo do empenhado leitor que com grande causa e

sem gabaccedilatildeo deve compreender as peripeacutecias dos (anti)heroacuteis que ora apresento entre o curto

espaccedilo de fechar e abrir as cortinas do teatro-mundo cabe uma especial referecircncia agraves obras

postas em anaacutelise ligadas pelo riso denunciativas em suas eacutepocas separadas

cronologicamente e atemporalmente aqui em completude

Desde a Antiguidade o riso e a comeacutedia tecircm servido para manifestar os viacutecios e

as fraquezas humanas Segundo a perspectiva de Aristoacuteteles na sua Poeacutetica a comeacutedia era a

via por onde passava o homem inferior ndash o nosso anti-heroacutei aquele que natildeo era digno de se

prestar agraves trageacutedias e ser chamado de heroacutei Provavelmente foi na Greacutecia que para noacutes a

representaccedilatildeo do homem inferior surgiu Desde entatildeo aquilo que provoca o riso tem sido no

mais das vezes o que eacute condenaacutevel e baixo na humanidade Em ambas as peccedilas o riso eacute a

arma cocircmica que castiga os costumes que estavam em desacordo com a moral e a partir

disso o riso passa a ser um fenocircmeno sobretudo social e humano e que ocorre somente em

circunstacircncias em que de alguma forma a sociedade vecirc-se ameaccedilada a ponto de criar

situaccedilotildees absurdas rupturas para expurgar os males que decorrem dessa situaccedilatildeo de

encurralamento de total exploraccedilatildeo como demonstradas nas peccedilas a seguir

11 Locuccedilatildeo latina que significa rindo castiga-se os costumes

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12 Dioniso Matuto Justinoacutepolis um heroacutei embusteiro

Ana Maria Ceacutesar Pompeu (2011) nos esclarece que Acarnenses eacute a primeira

comeacutedia que nos chegou de Aristoacutefanes encenada em 425 aC Ela traccedila um retrato

caricatural da cidade de Atenas num periacuteodo de crise das instituiccedilotildees democraacuteticas

relacionado diretamente com a guerra do Peloponeso (431 aC -404aC) Eacute a primeira

comeacutedia que conservamos do seu autor como tambeacutem da Comeacutedia Antiga e define-se como

uma peccedila de tema poliacutetico no sentido moderno inspirada na administraccedilatildeo e na experiecircncia

coletiva de uma Atenas que vive plenamente o seu periacuteodo democraacutetico

O tiacutetulo da peccedila refere-se aos habitantes do demos 12 de Acarnas ex-combatentes de

Maratona que tinham apoiado a guerra contra Esparta por as suas terras terem sido saqueadas

pelos guerreiros lacedemocircnios O caraacuteter didaacutetico do texto eacute expresso pelo proacuteprio autor nos

versos 500-501 (p92) ldquoPois o que eacute justo a comeacutedia tambeacutem cunhece Eu vou falaacute coisas

terrive mas justardquo Aleacutem do caraacuteter didaacutetico da comeacutedia aristofacircnica percebe-se tambeacutem a

presenccedila de nomes de alguns personagens que tecircm uma significaccedilatildeo alegoacuterica Diceoacutepolis o

personagem principal significa cidade justa Anfiacuteteo eacute um nome divino e de alguns poliacuteticos e

legisladores da eacutepoca

O autor de Acarnenses constroacutei a sua peccedila a partir de Atenas pintada em funccedilatildeo

do proacuteprio fluir histoacuterico assolada pela guerra O eixo central da comeacutedia eacute a relaccedilatildeo entre o

puacuteblico e o privado alimentada pela disputa entre belicistas e pacifistas quanto agrave guerra pelo

que a sua mensagem eacute poliacutetica sendo o povo ateniense representado como um bando de

loucos e a democracia como uma farsa

A peccedila comeccedila com DiceoacutepolisJustinoacutepolis um camponecircs forccedilado a migrar para

a cidade onde vive em condiccedilotildees precaacuterias e que aguarda a reuniatildeo da asssembleia onde o

tema da discussatildeo de um tratado de paz vai ser deliberado Vendo a praccedila vazia lamenta a

natildeo participaccedilatildeo do povo na reuniatildeo da assembleia ficando a decisatildeo entregue nas matildeos de

poliacuteticos profissionais que por regra eram demagogos revelando uma contradiccedilatildeo do sistema

democraacutetico os destinos da comunidade cujo governo pertence a todos (puacuteblico) fica afinal

entregue ao cuidado de poucos (privado) deixando a porta aberta a todo o arbiacutetrio e

venalidade

12 Na Greacutecia Antiga o demo (em grego δῆμος) era uma subdivisatildeo da Aacutetica regiatildeo da Greacutecia em torno de Atenas Os demos jaacute existiam como meras subdivisotildees de terra nas aacutereas rurais desde o seacuteculo VI aC

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Comeccedilada a assembleia Ambiacutedeus faz a proposta de paz mas eacute rechaccedilado com

ordem de prisatildeo DiceoacutepolisJustinoacutepolis tenta reverter a situaccedilatildeo mas sem sucesso dizendo

Oacute priacutetanes vocecircs tatildeo fazendo mal pra assembleia Arrastando o homem que queria fazecirc treacuteguas Pra noacutes e dependuraacute os escudo (ARISTOacuteFANES POMPEU 2014 p67)

Este breve momento em que apenas dois indiviacuteduos se manifestam a favor da

discussatildeo de um problema central no contexto ateniense agindo no interesse do bem comum

da cidade eacute logo apagado abafado pelo conselho que desviaraacute a sua atenccedilatildeo para os

embaixadores que chegam da Peacutersia

DiceoacutepolisJustinoacutepolis protagoniza a voz da razatildeo numa sociedade dominada por

loucos e safados que teimam em alimentar a guerra com Esparta como pretexto para

enriquecerem agrave sua custa ficando ele cada vez mais miseraacutevel e pobre Diceoacutepolis

desmascara em seguida a funccedilatildeo das missotildees diplomaacuteticas persas na figura de

Pseudaacutertabas 13 como fraudes pois vem prometer ouro com a conivecircncia dos embaixadores

atenienses como manobra de diversatildeo apenas

Com efeito a sua ostentaccedilatildeo agrave custa do dinheiro puacuteblico que contrasta com a

pobreza da maioria dos cidadatildeos desmente a veracidade da proposta que fazem por isso eacute

com palavras acerbas - ldquocus molesrdquo- que os incita a natildeo caiacuterem no logro Diceoacutepolis eacute entatildeo

silenciado a reuniatildeo eacute suspensa e iraacute fazer-se agrave porta fechada no Conselho (Pritaneu) Com

este estratagema o direito de todos participarem na tomada de decisatildeo eacute abolido confinando

a decisatildeo poliacutetica ao segredo dos gabinetes Compreendendo que a guerra natildeo lhe conveacutem

DiceoacutepolisJustinoacutepolis conclui uma paz privada com o inimigo libertando-se da loucura da

cidade Assim fugindo de uma ordem puacuteblica corrompida procura um espaccedilo em que possa

ser o senhor absoluto de si proacuteprio Os acarnenses ficam enfurecidos ao descobrirem que

Diceoacutepolis fez um acordo de paz com os lacedemocircnios apedrejando-o

Entatildeo ele tenta com palavras sensatas expor suas razotildees defender-se das

acusaccedilotildees que lhe satildeo movidas mas o seu direito de defesa eacute contestado com ameaccedilas de

ainda maior violecircncia por parte do coro dos Acarnenses

13 ldquopseucircdosrdquo ldquofalsordquo artaacutebe ldquomedida persardquo Falsidacircmetro in Traduccedilatildeo Matuta Cearense de Dyscolos o Enfezado de Menandro POMPEU e SANTOS Cultura e Traduccedilatildeo v 5 n 1 (2017) ISSN 2238-9059 Disponiacutevel em httpperiodicosufpbbrojs2indexphpct 2017

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ldquoCoro Quero eacute morrecirc seu ti iscutaacute Diceoacutepolis Num faccedila isso natildeo oacute Acaacuternicos Coro Tu vai morrecirc fica sabenrsquoagorardquo (ARISTOacuteFANES POMPEU 2014 p81-82)

A democracia encontra-se subvertida na sua essecircncia quando a violecircncia

imperante impede que o criteacuterio de resoluccedilatildeo dos conflitos seja resolvido com recurso agrave livre

discussatildeo em condiccedilotildees igualitaacuterias no espaccedilo puacuteblico Eacute o que estaacute acontecendo primeiro

na assembleia depois eacute-lhe negado o direito de defesa contra as acusaccedilotildees dirigidas a um

cidadatildeo finalmente eacute silenciado e suspenso a sua proposta de discussatildeo

DiceoacutepolisJustinoacutepolis eacute o proacuteprio Aristoacutefanes criador e criatura autorizado a

assumir o risco de morte proclama o que julga ser justo para a cidade e denuncia a retoacuterica

fraudulenta dos oradores que conquistam o povo com o sortileacutegio encantatoacuterio do seu

discurso Taquioia este tronco aqui E o home que vai falaacute eacute deste tamanhin Tenha cuidado natildeo num vocirc me armaacute de iscudo Vocirc falaacute em favocirc dos lacedemocircmios o qrsquoeu acho Mas tenho muito que temecircPois os modo Dos lavradocirc conheccedilo eu eles fica muito alegre Se pra eles e pra cidade fizeacute elogio algum Home inrolatildeo com justiccedila ou sem ela E aiacute num se datildeo conta que tatildeo seno eacute vindido E dos veacuteio tambeacutem conheccedilo as alma que Num bota a vista noutra coisa mas soacute em mordecirc cum voto Euzin aqui sei o que sofri nas matildeo de Cleatildeo Por causa da cumeacutedia do ano passado Pois teno me arrastado pro tribunal Ele me caluniava e cuspia mintiras contra mim Era uma cachoecircra e me banhava que quase Murri afogado na cusparada de insultos Agora intatildeo antes de falaacutedecircxeprimecircro Qacuteeu me vista como o mais miserave de tudin (ARISTOacuteFANES POMPEU 2014 p84)

Na parte final da peccedila o Coro modula a sua posiccedilatildeo ao final da intriga vindo a

reconhecer o serviccedilo que o poeta prestou agrave comunidade e que o tratado de paz eacute o mais justo

para a cidade pois restabeleceraacute o valor da democracia para as cidades desmascarando os

maus costumes e seus legisladores exploradores do povo

Vale ressasltar que o poeta usa uma histoacuteria cocircmica e simples como enredo a

proacutepria histoacuteria passa a ser um mero pretexto para o desenvolvimento cocircmico em Acarnenses

jaacute que a saacutetira eacute um elemento importante e porque natildeo moralizante nesse contexto

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Tatildeo bem quanto Aristoacutefanes Suassuna elaborou seus personagens seguindo um

esterioacutetipo social No enredo da comeacutedia aristofacircnica encontramos dois elementos (1) o (anti)

heroacutei (2) o esquema fantaacutesticomoralizante

13 O (anti)heroacutei Aristofacircnico

A figura do heroacutei tanto na literatura quanto fora dela eacute laureada com uma

tragicidade iminente o traacutegico que no contexto da mitologia eacute muito mais do que a

encarnaccedilatildeo da perda do sofrimento e das incertezas humanas no fim o traacutegico eacute o

eminentemente humano contra o divino a lembranccedila irrestrita da pequenez ceacutelere e irasciacutevel

da existecircncia humana

Jaacute a comeacutedia grega sobretudo a de Aristoacutefanes nos remete da forma mais

evoluiacuteda a uma concepccedilatildeo de existecircncia que prevecirc de forma profeacutetica que nem tudo o que eacute

humano ou divino deve ser levado muito a seacuterio pois no final tudo eacute poacute a vida um suspiro no

vazio das eras portanto natildeo se pode levar nada muito a seacuterio numa clara conotaccedilatildeo Dioniacutesia

O camponecircs ateniense como sujeito histoacuterico e tambeacutem como personagem do

teatro cocircmico de Aristoacutefanes foi figura central e essencial no decorrer do seacuteculo V a C

desde que sua posiccedilatildeo eacutetico-social permaneceu intacta frente aos sofrimentos beacutelicos de

Atenas pelo que tomou um caraacutecter de idealizaccedilatildeo tanto em sua posiccedilatildeo de cidadatildeo como nas

personificaccedilotildees da comeacutedia aristofaacutenica

O heroacutei de Aristoacutefanes natildeo eacute limitado ao desejo do puacuteblico somente de riso ou

excessos ele tem a grandeza de contradizer o estabelecido de conduzir o ouvinte a um

caminho de excesso que educam de entendimento proferido por um agente que carregado de

um heroiacutesmo simples jamais seraacute unilateral ou submisso E toda essa inquietaccedilatildeo que

provoca a presenccedila desse duplo para a Comeacutedia Antiga eacute uma ferramenta que constroacutei o

heroacutei cocircmico aristofacircnico segundo Whitman (1969 p 25) Essa unidade de autoconceito e autoafirmaccedilatildeo confere ao espiacuterito heroacuteico uma espeacutecie de pureza mas dificilmente eacute o que poderiacuteamos chamar de coerecircncia pois a qualquer momento o heroacutei pode desrespeitar todas as expectativas em deferecircncia aos misteacuterios particulares de sua proacutepria vontade Ele eacute pode-se dizer consistente consigo mesmo mas como ele cria a si mesmo agrave medida que age o resultado natildeo pode ser conhecido de antematildeo nem mesmo por si mesmo O heroiacutesmo eacute como se pode dizer dirigido pelo seu interior e embora as direccedilotildees possam diferir o princiacutepio vale as aparecircncias agraves vezes ao contraacuterio nenhuma abstraccedilatildeo jamais poderaacute controla o heroacutei em busca da totalidade E eacute precisamente isso que os heroacuteis de Aristoacutefanes satildeo 14

14 14This unity of self-conception and self-assertion gives to the heroic spirit a kind of purity but hardly what we would call consistency for at any moment the hero may flout all expectation in deference to the private

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Aristoacutefanes como ningueacutem conferiu ao seu (anti)heroacutei a figura simples de um

homem rural idealmente eacutetico e poliacutetico que a polis ateniense precisava para se reconstruir e

se transformar Essa percepccedilatildeo do camponecircs em Aristoacutefanes daacute uma indicaccedilatildeo dos eventos

tanto do cidadatildeo quanto da cidade e daacute ao leitor uma leitura histoacuterica diferente dos eventos

que Atenas sofreu durante a Guerra do Peloponeso

O (anti)heroacutei aristofacircnico como DiceoacutepolisJustinoacutepolis eacute tipificadamente matuto

que se angustia diante de alguma caracteriacutestica perturbadora da sociedade contemporacircnea por

exemplo o prolongamento da guerra os poliacuteticos corruptos que dominam a ecclesia a

loucura das demos atenienses Incapaz de convencer os outros de sua loucura o heroacutei sai por

conta proacutepria colocando em praacutetica algum tipo de esquema fantaacutestico que pretende acertar as

coisas

Diceoacutepolis reconhece as consequecircncias que prejudicaram a cidade e que tambeacutem

foram percebidas por Aristoacutefanes que com sua poesia sua repercussatildeo e sinceridade

colocou em cena o Cidadatildeo-espectador viacutetima direta da decadecircncia e que teraacute discernimento

sobre as decisotildees dos estrategistas e governadores com os atos de guerra

Segundo Fisher (1993 p33) o (anti)heroacutei de Acarnenses tem sua accedilatildeo construiacuteda

nos vaacuterios lugares apresentados na peccedila o que levou Aristoacutefanes a estabelecer relaccedilatildeo com as

vaacuterias personalidades assumidas por DiceoacutepolisJustinoacutepolis dentre as quais ele cita a de

espectador de festivais dramaacuteticos e a de lavrador

Revelado para o puacuteblico Justinoacutepolis que vive vaacuterios outros papeacuteis representa o

justo da cidade ou o cidadatildeo justo Direto e conhecedor dos truques que o levariam a

convencer a assembleia apresenta-se a Euriacutepides pela proacutepria voz dizendo seu nome e o

demos a que pertence Mermo assim Pois num vocirc mimbora vocirc eacute bater na porta Euriacutepides Euripidizin Me ouve se alguma vez tu ocircviu um home Justinoacutepolis de Colides te chama eu (ARISTOacuteFANES POMPEU 2014 p86)

Entretanto rapidamente o espectador toma conhecimento da intenccedilatildeo de

Justinoacutepolis que eacute se transformar em outra pessoa Para isso ele pede ao tragedioacutegrafo um mysteries of his own will He is one might say consistent with himself but since he creates himself as he goes the result cannot be foreknown even perhaps by himself Heroism is one might say inner-directed and though the directions may differ the principle holds appearances sometimes to the contrary no abstraction ever controls the hero in quest of wholeness And that is precisely what Aristophanes heroe sare (Traduccedilatildeo nossa)

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trapo (= κιον) usado por atores que interpretam mendigos em suas trageacutedias pois ele vai fazer

um discurso ldquoPois tenho que falaacute pro coro um leriado grande Ele traz a morte sacuteeufalaacute malrdquo

(vv 426-427) E para convencer Diceoacutepolis acredita que ldquoEacute que tenho que achaacute que socirc um

ismoleu hojerdquo (vv440)

Portanto o espectador percebe que Justinoacutepolis se transforma em Teacutelefo

incorporando a personalidade de Teacutelefo mesmo que essa incorporaccedilatildeo seja planejada e usada

como arma argumentativa Assim como Teacutelefo Justinoacutepolis eacute o homem do convencimento

mesmo que para convencer ele pareccedila deixar de ser ele mesmo

Em Acarnenses o enredo eacute costurado pelas artimanhas do (anti)heroacutei quando faz

uma paz privada com os espartanos para que ele possa desfrutar das becircnccedilatildeos da paz que foram

perdidas com o iniacutecio da guerra

14 Auto da Compadecida Uma estoacuteria de outras estoacuterias

Os instrumentos culturais mais relevantes no enredo satildeo as crenccedilas e a literatura

de cordel da realidade regional brasileira mais precisamente da realidade regional nordestina

A narrativa do Auto da Compadecida eacute fundamentada em romances e narraccedilotildees populares

Composta de elementos que expotildeem a cultura popular do homem do Nordeste Ariano

Suassuna aborda assuntos universais atraveacutes de figuras populares que mostram integramente

a figura do povo nordestino um povo oprimido tanto por aspectos climaacuteticos quanto sociais

O autor faz ainda uso do humor e da criacutetica ao falar sobre a realidade do homem nordestino

O Auto da Compadecida (1955) de Ariano Suassuna eacute uma peccedila teatral em

forma de auto (gecircnero da literatura que trabalha com elementos cocircmicos e tem intenccedilatildeo

moralizadora) Eacute um drama nordestino apresentado em trecircs atos Esta antologia reuacutene trecircs

folhetos dos quais Ariano Suassuna tirou os motivos e peripeacutecias de seu Auto da

Compadecida Embora o autor paraibano tenha se utilizado de muitos temas populares em sua

peccedila estes poemas satildeo as fontes principais como nos assegura Tavares (2004 p191)

Disse um criacutetico

Como foi que o senhor teve aquela ideacuteia do gato que defeca dinheiro Ariano respondeu Eu achei num folheto de cordel O criacutetico E a histoacuteria da bexiga de sangue e da musiquinha que ressuscita a pessoa Ariano lsquoTirei de outro folhetorsquo O outro E o cachorro que morre e deixa dinheiro para fazer o enterro Ariano lsquoAquilo

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ali eacute do folheto tambeacutem rsquo O sujeito impacientou-se e disseAgora danou-se mesmo Entatildeo o que foi que o senhor escreveu E Ariano lsquoOacute xente Escrevi foi a peccedilarsquo

De acordo com Braulio Tavares (TAVARES 2004 p 104) ldquoAriano escolheu o

folheto como a ceacutelula-matildee de uma nova maneira de fazer arte de enxergar o Nordeste de

enxergar o mundo e de recriar suas formasrdquo A utilizaccedilatildeo desse tipo de reescrita a partir de

textos populares compreende uma escrita mais aproximada do povo do Romanceiro

Nordestino transmitido oralmente eou atraveacutes dos folhetos de cordel

A grande importacircncia do folheto no meu entender eacute que o folheto eacute o uacutenico espaccedilo em que o povo brasileiro se expressou sem influecircncias e sem deformaccedilotildees que lhe viessem de cima de fora Aqui ele se expressou como ele eacute Aqui natildeo imitou a Franccedila natildeo imitou a Inglaterra nem os Estados Unidos O povo brasileiro aqui se expressou como ele eacute Entatildeo essa eacute a grande liccedilatildeo do folheto em feira (SUASSUNA apud TAVARES 2007 p 26)

Segundo Vassalo (1993) a obra se divide em trecircs episoacutedios e os folhetos

utilizados na construccedilatildeo arquitetocircnica da obra estatildeo distribuiacutedos de forma arquitetocircnica

O primeiro ato se baseia em O enterro do cachorro fragmento do folheto O dinheiro de Leandro Gomes de Barros o segundo na Histoacuteria do cavalo que defecava dinheiro do mesmo artista o terceiro amalgama O castigo da soberba de Anselmo Vieira de Souza e A peleja da Alma de Silvino Pirauaacute Lima ambos retomados pelo entremez de Suassuna O castigo da soberba Proveacutem ainda do romanceiro a cantiga de Canaacuterio Pardo utilizada como invocaccedilatildeo de Joatildeo Grilo a Maria o nome Compadecida e a estrofe com que o Palhaccedilo encerra o espetaacuteculo pedindo dinheiro satildeo tomados ao folheto O castigo da soberba(VASSALO In CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA 2000 p 156)

Liacutegia Vassalo aproxima no ensaio citado o teatro de Suassuna ao o teatro

medieval cabe ressaltar que mais adiante nos ocuparemos no ATO V do teatro de Gil

Vicente quando vamos tratar do julgamento das almas no inferno alegoacuterico em diaacutelogo

alinhado entre o autor portuguecircs e Ariano Suassuna

Sobre o auto de Suassuna vale ressaltar que conteacutem elementos do cordel

brasileiro e estaacute inserido no gecircnero da comeacutedia aproximando-se dos traccedilos do barroco

catoacutelico brasileiro O autor faz uso de uma linguagem que privilegia o regionalismo atraveacutes da

caracterizaccedilatildeo das particularidades do falar do homem do sertatildeo Nordeste

A peccedila foi escrita em 1955 e encenada pela primeira vez em 1956 Anos mais

tarde foi adaptada para a televisatildeo e para o cinema em 1999 e 2000 respectivamente

Na peccedila Ariano Suassuna trata de maneira leve e com humor do drama vivido

pelo povo nordestino acuado pela seca atormentado pelo medo da fome e em constante luta

contra a miseacuteria Traccedila o perfil dos sertanejos nordestinos que estatildeo submetidos agrave opressatildeo e

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subjugados por famiacutelias de poderosos coroneacuteis donos de terra Nesse contexto o personagem

de Joatildeo Grilo representa o povo oprimido que tenta sobreviver no sertatildeo utilizando a uacutenica

arma do pobre a palavra - astuacutecia

Fica evidente o cunho de saacutetira moralizante da peccedila atraveacutes das caracteriacutesticas de

seus personagens Assim como em Acarnenses de Aristoacutefanes figuras como padeiro e a

mulher que satildeo avarentos que deixam passar necessidade o empregado enquanto cuidam

demasiadamente de um cachorro de estimaccedilatildeo o padre e o bispo gananciosos que utilizam

da autoridade religiosa enquanto legisladores da Igreja para enriquecerem satildeo levados ao

conhecimento do puacuteblico

De forma bem cocircmica e sem as convenccedilotildees que soacute a comeacutedia sabe quebrar todos

estes satildeo condenados ao purgatoacuterio e passam a depender da ajuda astuciosa do roceiro Joatildeo

Grilo poeta travestido e da Compadecida na defesa do coletivo Na obra O riso Henri

Bergson (1987 p 19-21) salienta que o cocircmico eacute um fenocircmeno exclusivamente humano e

que este se dirige agrave inteligecircncia agrave denuacutencia

A partir dessa observaccedilatildeo Suassuna coloca o leitorespectador em contato com

seu outro o anti-heroacutei duplamente qualificado a defesa de seus algozes o arremedo cocircmico

resultado de uma apariccedilatildeo para a qual o proacuteprio autor emprestou seu discurso social No Auto

da Compadecida a dupla Joatildeo Grilo e Chicoacute em certa medida satildeo uma uacutenica personagem

ou seja uma personagem dupla Joatildeo Grilo eacute a representaccedilatildeo do intelecto o mentor de todas

as artimanhas eacute o autor presente na ausecircncia discursiva que por vezes permeia o texto

somente pelos gestos

Enquanto Chicoacute o duplo de Joatildeo Grilo eacute a forccedila fiacutesica o corpo ao mesmo tempo

bobo e bufatildeo o cuacutemplice perfeito o outro de Joatildeo ambos comparados agrave dupla Bom de Laacutebia

e Tudo Azul (na traduccedilatildeo de Adriane Duarte 2000) de As Aves de Aristoacutefanes e por que natildeo

dizer do proacuteprio poeta que acontece sem iniacutecio meio ou fim porque tudo que eacute justo tambeacutem

eacute de interesse da cidade e do poeta e da Comeacutedia como disse Diceoacutepolis no seu discurso em

Acarnenses Por quecirc Natildeo sei como diria Chicoacute Soacute sei que foi assim 15 Joatildeo Grilo um heroacutei popular e picaresco

O romance picaresco que segundo o proacuteprio Ariano Suassuna sempre o

influenciara surgiu na Espanha e infestou toda a Europa abrange um conjunto de textos

narrativos publicados na maioria dos casos entre 1552 e 1646 Eacute um gecircnero que reuacutene obras

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que refletem uma visatildeo irocircnica e pessimista do homem e uma perspectiva ceacutetica em relaccedilatildeo agrave

sociedade espanhola de sua eacutepoca

Segundo Gonzaacutelez (1994) todas as obras desse periacuteodo constituem o reflexo da

tensatildeo provocada pelo confronto entre o indiviacuteduo e uma sociedade extremamente opressora

Portanto para tornar mais clara a origem da picaresca eacute mister considerar o contexto

histoacuterico-poliacutetico-social em virtude de uma das maiores novidades apresentadas pelo gecircnero

a forte vinculaccedilatildeo da ficccedilatildeo com a histoacuteria

O estudo das circunstacircncias que rodeavam os autores deste gecircnero conduz

naturalmente a uma reflexatildeo sobre a sociedade barroca espanhola e portuguesa com atenccedilatildeo

aos autores Calderoacuten de La Barca (1600-1681) e Gil Vicente (1465-1536) Gonzaacutelez (1994 p

21) apresenta uma sociedade na qual predominam as injusticcedilas Apenas uma minoria - uma

nobreza de sangue corrupto e um clero igualmente decadente - teria acesso ao poder e a bens

materiais Sob essas circunstacircncias o povo ignorante supersticioso e fruto de abusos vivia

na miseacuteria

O romance picaresco surge pois como uma saacutetira mordaz que atinge todo o

sistema poliacutetico econocircmico social e moral Constituiacuteram uma rica fonte de material

romanesco situaccedilotildees iacutempares tais como a expulsatildeo dos mouros de Castela e de Leatildeo e a

questatildeo dos cristatildeos-novos considerados estrangeiros no seu proacuteprio paiacutes Os ataques contra

os viacutecios que infestavam a corte espanhola tecircm tambeacutem como alvo ldquoa honrardquo externa e social

ditada pelo poder do dinheiro Ironicamente o piacutecaro eacute o protoacutetipo do homem sem honra

enfim o entretenimento perfeito para os meandros das classes privilegiadas

A apariccedilatildeo da contestadora imagem do piacutecaro em princiacutepio reverte a imagem do

heroacutei das novelas de cavalaria - tem-se uma inversatildeo do modelo heroacuteico que passa a ser anti-

heroacuteico Gonzaacutelez (1994 p 56) assinala que o piacutecaro

Saindo de estratos baixos revela um aspecto pungente o da luta pela vida Solto no mundo tem de resolver por si mesmo os problemas o que o leva a tornar-se frequentemente ladratildeo Estando sempre exposto ao pior escapa das situaccedilotildees difiacuteceis por seu engenho e astuacutecia

Configura-se assim na novela picaresca um traccedilo permanente em Acarnenses e

no Auto da Compadecida a subversatildeo do (anti)heroacutei idealizado Entretanto cabe-nos aqui

salientar que haacute uma diferenccedila uma vez que na picaresca o piacutencaro natildeo tem qualquer projeto

social ao contraacuterio de Justinoacutepolis e Joatildeo Grilo

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151 O (anti)heroacutei Suassuniano

Joatildeo Grilo nasceu da cultura popular atraveacutes do produto oral e segundo o proacuteprio

Ariano Suassuna foi produto de vaacuterios produtos do que viu ouviu e leu nos folhetos de

cordel Nas palavras de Abreu (1999) a literatura de folhetos nordestinos eacute uma das

expressotildees mais brasileiras usual na regiatildeo Nordeste e em regiotildees que acomodam os

migrantes de origem nordestina

Com as grandes navegaccedilotildees atracaram no Brasil trovadores e artistas populares

que expuseram em seus pertences culturais as origens dessa literatura Eacute uma literatura aacutegil

que alcanccedila as mais diversas temaacuteticas com objetivos variados com ampla divulgaccedilatildeo e

anuecircncia social tanto em meios populares quanto nas academias

O folheto eacute um canal popular de cooperaccedilatildeo na vida do paiacutes que concede a naccedilatildeo

discutir a realidade expressar suas exigecircncias e anseios Conforme Zumthor (2000) embora

sejam impressos os folhetos designam-se por sua tradiccedilatildeo oral seus vestiacutegios de oralidade e

pela razatildeo de serem produzidos para serem proferidos lidos ou declamados cantados em voz

alta para um enorme nuacutemero de indiviacuteduos mesmo o iletrado os ignorantes aspectos comuns

agraves culturas que priorizam a oralidade

Foi num folheto de gracejo que Ariano Suassuna encontrou o personagem-

siacutembolo de sua dramaturgia As Proezas de Joatildeo Grilo (ver trecho abaixo) histoacuteria escrita em

1932 por Joatildeo Ferreira de Lima trazia como protagonista o ceacutelebre amarelinho oriundo dos

contos populares portugueses que no processo de aculturaccedilatildeo ganhou caracteriacutesticas

idecircnticas agraves de outro famoso espertalhatildeo de origem ibeacuterica Pedro Malazarte como se pode

perceber no cordel de Joatildeo Martins de Athayde (1951)

As Proezas de Joatildeo Grilo

Joatildeo Grilo foi um cristatildeo que nasceu antes do dia criou-se sem formosura mas tinha sabedoria e morreu depois da hora pelas artes que fazia

E nasceu de sete meses chorou no bucho da matildee quando ela pegou um gato ele gritou natildeo me arranhe natildeo jogue neste animal que talvez vocecirc natildeo ganhe Na noite que Joatildeo nasceu

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houve um eclipse na lua e detonou um vulcatildeo que ainda continua naquela noite correu um lobisome na rua Poreacutem Joatildeo Grilo criou-se pequeno magro e sambudo as pernas tortas e finas e boca grande e beiccediludo no siacutetio onde morava dava notiacutecia de tudo Joatildeo perdeu o seu pai com sete anos de idade morava perto de um rio Ia pescar toda tarde um dia fez uma cena que admirou a cidade (ATHAYDE 1951 p35)

Assim o heroacutei cordelesco forjado por Suassuna representado por Joatildeo Grilo eacute

tambeacutem um produto social e nesses termos eacute o piacutecaro descrito por Kothe (2000) como a

personagem com caracteriacutesticas daquilo que hoje se chama malandragem beira o traacutegico e se

assume como um eacutepico agraves avessas Como piacutecaro de Kothe Joatildeo Grilo no Auto da

Compadecida e Diceoacutepolis em Acarnenses satildeo de extraccedilatildeo social baixa e se comportam de

modo pouco elevado mas se elevam literariamente e contam ateacute mesmo com a complacecircncia

e a simpatia do leitor As duas personagens representam o modo pelo qual a classe baixa

consegue entrar no picadeiro da literatura

152 A tensatildeo tragicocircmica do (anti)heroacutei no Auto da Compadecida

Segundo Deserto (1995) a trageacutedia e a comeacutedia mantecircm entre si uma relaccedilatildeo de

alguma ambiguidade em que proximidade e afastamento parecem jogar em simultacircneo

importante papel Podemos evocar como representaccedilatildeo simboacutelica desta relaccedilatildeo a imagem

que o tempo veio a tornar quase emblema do proacuteprio teatro das duas maacutescaras a traacutegica e a

cocircmica denunciantes do sofrimento e do riso

O leitor atento percebe que a comeacutedia causada pelos quiprocoacutes 15e pelas confusotildees

no Auto da Compadecida natildeo representa a cura da trageacutedia vivenciada por Joatildeo Grilo nem a

15 Quid pro quo eacute uma expressatildeo latina que significa tomar uma coisa por outra Faz referecircncia no uso do portuguecircs e de todas as liacutenguas latinas a uma confusatildeo ou engano Tem origem medieval tendo sido usada na sua origem para se referir a um engano no uso de termos latinos num texto Tambeacutem pode significar isso por aquilo

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mera atenuaccedilatildeo futura de seus efeitos Joatildeo Grilo o heroacutei da peccedila eacute um misto de uma tensatildeo

que se identifica com o heroacutei cordelesco e desta forma natildeo estaacute atrelado somente aos

aspectos da proeza e da glorificaccedilatildeo uma vez que estaacute associado agrave ideia da fraqueza na

constituiccedilatildeo dos valores humano

Assim Joatildeo Grilo natildeo estaacute contemplado pela trajetoacuteria do heroacutei prodigioso e

honrado pois se orienta pela bandeira da transgressatildeo Joatildeo Grilo eacute a expressatildeo desesperada

do homem que luta contra todas as adversidades mas natildeo consegue evitar a desgraccedila que

vive numa sociedade abalizada pela constante oposiccedilatildeo de duas forccedilas o bem e o mau A

convergecircncia e accedilatildeo dessas forccedilas satildeo responsaacuteveis pela falecircncia do heroacutei fazendo com que

ele mergulhe no territoacuterio escorregadio dos valores

Aristoacuteteles em sua Arte Poeacutetica (2005) conceitua a trageacutedia como a imitaccedilatildeo de

pessoas superiores em accedilatildeo a comeacutedia como a imitaccedilatildeo de pessoas inferiores em accedilatildeo e o

drama como a representaccedilatildeo das pessoas em accedilatildeo Por pessoas superiores entendemos os

heroacuteis que estatildeo entre o humano e o divino possuindo algo de sobrenatural

Ariano Suassuna em sua Iniciaccedilatildeo agrave esteacutetica (2007c) reflete sobre os conceitos

de trageacutedia comeacutedia e drama pensados por Aristoacuteteles ressaltando que outras categorias

fazem parte da trageacutedia como o Belo e ateacute mesmo o Cocircmico Na leitura que faz da Poeacutetica o

escritor percebe o heroacutei como algueacutem dotado de uma alma grande mas natildeo pura Tal ldquoalma

granderdquo eacute percebida mais pelas accedilotildees do que pelas palavras em consonacircncia com o

pensamento aristoteacutelico e no caso de Joatildeo Grilo essa impureza reside em sua proacutepria

personalidade desenhada pela presenccedila de falhas cocircmicas tais como a ambiccedilatildeo a trapaccedila a

alcovitagem a avareza a inveja a vinganccedila e a usura

41

SEGUNDO ATO

42

2 HUMOR E O RISO ELEMENTOS INDISPENSAacuteVEIS Agrave CENA COcircMICA

ldquoEacute melhor escrever sobre risos do que sobre laacutegrimas pois o riso eacute o apanaacutegio do homemrdquo (Franccedilois Rabelais)

Para muitos antropoacutelogos o riso foi um fator coadjuvante agrave adaptaccedilatildeo da espeacutecie

sendo um ato instintivo e portador de equiliacutebrio frente a situaccedilotildees extremas de abatimento e

que dele depende a sobrevivecircncia da espeacutecie Vladimir Propp (1992) apresenta seis tipos de

riso e alerta para a existecircncia de outros Embora se debruccedilando basicamente sobre o que

chama de riso de zombaria por compreender que ldquoeacute o mais frequenterdquo sendo o ldquotipo

principal de riso humanordquo o teoacuterico atenta para o riso bom o riso maldoso ou ciacutenico o riso

alegre o riso ritual e o riso imoderado Antes de prosseguir nos cabe ressaltar que natildeo nos

ocuparemos das definiccedilotildees de Propp mas do riso como elemento indispensaacutevel agrave cena cocircmica

e de seus reflexos na Comeacutedia e no Auto

Rir eacute o melhor remeacutedio Por essa afirmativa percebemos o poder do riso na vida

da Humanidade Entretanto o humor e o riso satildeo fenocircmenos que ainda natildeo foram elucidados

completamente mas as coisas engraccediladas podem nos dizer muito do que eacute humano visto que

o homem eacute o uacutenico animal que ri

O cocircmico estaacute presente em situaccedilotildees reais de nossas vidasuma vez que todos noacutes

rimos sempre para qualquer situaccedilatildeo que nos leva quase incompreensiacuteveis para o riso

despertando nosso humor Haacute de se considerar que o riso eacute uma parte fundamental dos efeitos

produzidos pelo humor no ser humano e suas muacuteltiplas formas de expressatildeo vatildeo dizer

respeito ao grau de afetaccedilatildeo ou natildeo que tenha causado tal situaccedilatildeo real ou artiacutestica que

apresenta momentos cocircmicos

Em Histoacuteria do riso e do escaacuternio Minois (2003) esquematiza a histoacuteria do riso em

trecircs momentos o divino o diaboacutelico e o humano Os gregos antigos definiriam o riso a

partir de suas noccedilotildees de divindade

Rir eacute participar da recriaccedilatildeo do mundo nas festas dionisiacuteacas nas saturnais acompanhadas de ritos de inversatildeo simulando um retorno perioacutedico ao caos primitivo necessaacuterio agrave confirmaccedilatildeo e agrave estabilidade das normas sociais poliacuteticas e culturais Nas relaccedilotildees sociais o riso eacute vivido como elemento de coesatildeo e de forccedila diante do inimigo como o mostram os risos homeacutericos ou espartanos ele eacute tambeacutem um freio ao despotismo com as bufonarias rituais dos desfiles triunfais em Roma ou as saacutetiras poliacuteticas em Aristoacutefanes eacute por fim um instrumento de conhecimento que desmascara o erro e a mentira como no caso da ironia socraacutetica das zombarias dos ciacutenicos da derrisatildeo dos viacutecios em Plauto ou Terecircncio (MINOIS 2003 p 630)

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Sobre o riso como capacidade para criar o mundo a nossa volta Aristoacuteteles nos

transmite que somente uma democracia poderia tolerar a franqueza das velhas comeacutedias na

democracia o riso se caracteriza por sua forccedila criacutetica e sua accedilatildeo democratizadora Consoante

ao pensamento de Minois o riso busca se livrar do mundo cheio de injusticcedila e substituiacute-lo por

um mundo melhor Cria uma nova realidade que desloca a outra que natildeo pode mais ser

mantida porque perdeu seu significado O riso eacute entatildeo uma libertaccedilatildeo

Apesar de ter sido relegado na Antiguidade o riso continua a desempenhar um

papel de grande importacircncia na vida social O verdadeiro riso ambivalente e universal natildeo

exclui o seacuterio mas o purifica e o completa Purifica-o do dogmatismo da unilateralidade da

esclerose do fanatismo e do espiacuterito categoacuterico do medo e da intimidaccedilatildeo do didatismo do

engenho e das ilusotildees da fixaccedilatildeo sinistra em um uacutenico niacutevel e da exaustatildeo

21 O riso seacuterio-cocircmico em Aristoacutefanes e Suassuna

212 Riso e Comeacutedia

A Comeacutedia e o Auto satildeo gecircneros cujo sucesso eacute medido pela qualidade do humor

promovido pelas personagens em confronto com suas vivecircncias Humor eacute indispensaacutevel para

a arte cocircmica principalmente porque eacute altamente eficaz para convencer em grande parte pois

atrai a atenccedilatildeo e permite a possibilidade de persuasatildeo da plateia

O riso eacute uma reaccedilatildeo puramente fisioloacutegica que pode ser desencadeada por gatilhos

fiacutesicos e natildeo fiacutesicos e eacute observada em humanos desde a infacircncia Em termos de efeitos

somaacuteticos tem sido sugerido que o riso proporciona aliacutevio do estresse e reduz o desconforto e

ou dor liberando endorfinas produtoras de euforia encefalinas dopamina e adrenalina

todos contribuem para a sauacutede mental e fiacutesica geral Como resultado de suas propriedades

terapecircuticas o riso tem sido usado no contra-condicionamento das reaccedilotildees da raiva bem

como na dessensibilizaccedilatildeo sistemaacutetica ao medo

De acordo com Bakhtin (1999) o elo entre o seacuterio e o cocircmico jaacute existia desde os

primoacuterdios da humanidade na vida social Atraveacutes de investigaccedilotildees do folclore de povos

primitivos observou que os rituais seacuterios coadunavam com os rituais que parodiavam os

mitos os acontecimentos e os heroacuteis que as comunidades cultuavam

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A praacutetica do elogio e do escarnecimento fazia parte das cerimocircnias oficiais das

comunidades antigas Entretanto o seacuterio e o cocircmico passaram a ser dicotomizados com o

surgimento do regime de classes e de Estado Com a divisatildeo de classes iniciou-se um

processo que demarca a diferenccedila de direitos entre os indiviacuteduos na sociedade

Determinadas formas cocircmicas deixam de ser autorizadas soacute podendo ser

executadas em determinadas situaccedilotildees A partir daiacute se consubstanciou uma cultura oficial

delimitando as condiccedilotildees de realizaccedilatildeo do riso O espaccedilo da subversatildeo da gargalhada da

chacota tende a restringir-se aos momentos festivos A divisatildeo do riso e do seacuterio da cultura

popular e da cultura erudita comeccedilou a se intensificar fazendo com que a comicidade fosse

vista como uma expressatildeo menor inclusive no campo da cultura letrada

Segundo Huizinga no livro Homo Ludens (1938) o riso encontra nas situaccedilotildees

diaacuterias o seu proacuteprio espaccedilo as suas proacuteprias regras e o seu proacuteprio tempo e deve ser estudado

como fenocircmeno cultural uma vez que ele estaacute ligado agrave produccedilatildeo de situaccedilotildees que satildeo

proacuteprias do riso O autor nos convida a uma reflexatildeo sobre o poder que reside exatamente no

ato do riso De certo modo o riso segundo Huizinga pode ser visto como um tipo moderado

de ldquoloucurardquo tendo em vista que se realiza por meio de fatos cocircmicos que tambeacutem podem ser

entendidos como uma espeacutecie de ldquoloucurardquo porque neles corta-se o nexo do comum do tempo

do cotidiano

O elemento luacutedico tende a provocar o riso que por sua vez eacute um elemento da vida cotidiana estaacute sempre presente nas relaccedilotildees sociais seja para exprimir uma simpatia para desdramatizar uma situaccedilatildeo ou para exprimir a felicidade O risiacutevel eacute proacuteximo ao cocircmico ao jogo agraves brincadeiras agraves piadas ao luacutedico etc O cocircmico pode ser estudado com as formas as atitudes os gestos e os movimentos do corpo humano tambeacutem pode ser estudado pelo cocircmico de caraacuteter ou atraveacutes da fala do cocircmico de situaccedilotildees de palavras (HUIZINGA 1938 p54)

Para Pirandello o riso pode ser uma accedilatildeo subversiva e o proacuteprio autor assegura

que haacute ambivalecircncias na conceituaccedilatildeo do riso e do fenocircmeno cocircmico na tradiccedilatildeo ocidental

pois O riso pode ser compreendido como experiecircncia do natildeo-seacuterio a inversatildeo cocircmica pode revelar uma gravidade antes oculta certos contrastes inexprimiacuteveis pelo discurso mais cordato uma seriedade que o proacuteprio discurso seacuterio camufla O caraacuteter subversivo e anaacuterquico do riso Em diversos momentos o riso implica numa adesatildeo agrave ordem social estabelecida O riso eacute plural e encontra funccedilatildeo como corretivo social natildeo se restringindo a uma funccedilatildeo normativa tatildeo precisa visto que ele pode acometer um indiviacuteduo isoladamente pode prescindir da sociedade O riso guarda consigo o paradoxo da proacutepria accedilatildeo humana (PIRANDELLO 1957 p294)

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Para Bergson (1987) o riso aleacutem de ser um fenocircmeno social eacute um fenocircmeno

psiacutequico O sujeito ri de situaccedilotildees constrangedoras com as quais natildeo se envolve afetivamente

O cocircmico eacute provocado pela observaccedilatildeo das falhas humanas em uma perspectiva corretiva

diante dos olhos do observador Assim o cocircmico estaacute ligado agrave capacidade de explicitar e

identificar o ridiacuteculo humano manifestado no exagero caricaturado na representaccedilatildeo da

transgressatildeo social na encenaccedilatildeo de gestos automaacuteticos e na exploraccedilatildeo de clichecircs

desgastados

De acordo com Propp (1992) os caracteres cocircmicos natildeo existem por si soacute eles

tecircm relaccedilatildeo com as atividades do homem no mundo social Assumindo a mesma perspectiva

Bergson (1987) afirma que o riso eacute sempre grupal sendo determinado por um conjunto de

atitudes discriminadas e colocadas como engraccediladas perante uma comunidade

A identificaccedilatildeo daquilo que eacute engraccedilado ou humoriacutestico aponta para o

reconhecimento de gestos sociais que rompem com conduta ideal Esse desvio expresso no

comportamento fiacutesico ou moral dos seres sociais compotildee a trama das narrativas que satildeo

contadas com irreverecircncia e bom humor

213 Os elementos do risiacutevel no heroacutei suassuniano

Tenho duas armas para lutar contra o desespero a tristeza e ateacute a morte o riso a cavalo e o galope do sonho Eacute com isso que enfrento essa dura e fascinante tarefa de viver (ARIANO SUASSUNA)

Como jaacute visto estudos comprovam que o conceito claacutessico de heroacutei se origina na

Literatura Grega O termo designa um indiviacuteduo notabilizado por feitos extraordinaacuterios No

entanto com o passar do tempo essas figuras quase divinas jaacute natildeo correspondiam

adequadamente agrave vontade coletiva O heroacutei claacutessico foi sendo substituiacutedo pelo ldquoheroacutei

problemaacuteticordquo personagem cuja existecircncia e valores situam-no perante questotildees sobre as

quais natildeo eacute capaz de expressar consciecircncia clara e rigorosa

A construccedilatildeo desse novo enfoque da imagem do heroacutei eacute uma ideia atribuiacuteda aos

tempos modernos e a sua representatividade evidencia-se sobretudo no gecircnero romance

Contudo como mensageiro de uma criacutetica mordaz e bem-humorada da maacute sorte enfrentada

pelo nordestino em sua difiacutecil missatildeo pela sobrevivecircncia Ariano Suassuna na obra Auto da

Compadecida nos apresenta um heroacutei que ao inveacutes do nobre heroacutei claacutessico repleto de viacutecios

e defeitos

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Joatildeo Grilo eacute uma personagem que povoa o imaginaacuterio folcloacuterico brasileiro

sobretudo na regiatildeo Nordeste assumindo todas as caracteriacutesticas de um anti-heroacutei pois eacute

pequeno fraco franzino amarelo e desnutrido ou seja natildeo possui os atributos esteacuteticos e o

porte de um verdadeiro heroacutei cavalheiresco e romacircntico Joatildeo Joatildeo Joatildeo Morreu Ai meu Deus morreu o pobre de Joatildeo Grilo Tatildeo amarelo tatildeo safado e morrer assim Que eacute que eu faccedilo no mundo sem Joatildeo Joatildeo Joatildeo Natildeo tem mais jeito Joatildeo morreu Acabou-se o Grilo mais inteligente do mundo (SUASSUNA 2005 p 63)

Mas Joatildeo Grilo eacute infinitamente astuto e sua esperteza eacute tamanha que suplanta o

seu porte miuacutedo convertendo sua fragilidade em forccedila Com suas artimanhas ele se agiganta

Graccedilas as suas traquinagens enfrenta e afronta todas as instituiccedilotildees que se pretendem

poderosas e ditam as normas preceitos usos e costumes sociais de seu tempo e de seu

ambiente

Essa figura paradoxal assumida por Joatildeo Grilo o coloca como um anti-heroacutei que

faz do medo a sua arma da astuacutecia o seu escudo que vivendo num mundo hostil perseguido

escorraccedilado agraves voltas com a adversidade acaba sempre driblando o infortuacutenio com uma dose

exagerada de humor que aliaacutes eacute marca do enfrentamento do povo nordestino com as

adversidades sociais

Em Suassuna o termo humor estaacute relacionado agrave disposiccedilatildeo que o indiviacuteduo tem

para rir ou fazer sorrir Propp (1992) considera a priori que o riso eacute uma caracteriacutestica

pertinente do homem e somente a ele eacute dada a capacidade de rir o sorriso para o autor estaacute

ligado a outra esfera da razatildeo humana natildeo vinculada ao escaacuternio ou a derrisatildeo mas

compreende uma disposiccedilatildeo benevolente para com o interlocutor

Ainda nesse esteio para Aristoacuteteles a comicidade com efeito eacute um defeito e uma

feiuacutera sem dor nem destruiccedilatildeo Assim podemos pensar no Auto da Compadecida o riso

como decorrecircncia de uma penalidade um desajuste da conduta de Joatildeo Grilo que nos

surpreende nos atos com um comportamento inesperado

Para Bergson (1987) o riso natildeo eacute apenas uma reprimenda social mas vem de um

desajuste entre a natureza primeira do homem (que eacute mutaacutevel) e uma espeacutecie de rigidez e

mecanizaccedilatildeo Essa rigidez se manifestaria tanto no niacutevel fiacutesico como no caraacuteter ou seja no

acircmbito moral e psicoloacutegico caracteriacutesticas exploradas no personagem Joatildeo Grilo O risiacutevel e

o cocircmico seriam uma forma de desfazer a rigidez evidenciaacute-la corrigi-la

Para Suassuna (2008) o riso eacute como uma espeacutecie de puniccedilatildeo que a sociedade

confere a algo que a ameaccedila diz em seu livro Iniciaccedilatildeo agrave Esteacutetica Desta forma o risiacutevel estaacute

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na inadequaccedilatildeo do comportamento humano fiacutesicopsicoloacutegico uma vez que excede agrave

normalidade sem causas traacutegicas Suassuna no Auto da Compadecida nos deixa claro que ali

o cocircmico surge como um alerta sobre algo que natildeo estaacute funcionando bem nas sociedades

sendo tambeacutem um instrumento revelador dos problemas da sociedade como um todo

No contexto de tensatildeo do Auto eacute que encontramos Joatildeo Grilo um anti-heroacutei

oprimido e no plano da eacutetica eacute um legiacutetimo malandro que usa desse artifiacutecio como uma

forma autecircntica de sobrevivecircncia e de luta frente agraves adversidades sobretudo agravequelas impostas

pelos que detecircm o poder

A malandragem portanto no seu entender natildeo constitui um problema ou pecado

grave pois natildeo eacute utilizada para engrandecimento proacuteprio ou para ascensatildeo econocircmica mas

sim para a promoccedilatildeo da justiccedila social Sobre isto lecircem-se os seguintes versos do cordelista

Paulo Nunes Batista Grilo pra tudo no mundo Tinha uma definiccedilatildeo A sua filosofia Sempre lhe dava razatildeo Pois seguia este ditado Que diz ndash ldquoEstaacute perdoado Ladratildeo que rouba ladratildeordquo Vivendo embora do crime Joatildeo Grilo era caridoso Auxiliava a pobreza Soacute furtava o poderoso Roubava sempre dos nobres Matava a fome dos pobres Mostrando ser generoso (BATISTA 1958 p 28)

Ariano Suassuna como ningueacutem mergulhou na foacutermula do riso que sempre

esteve presente na Antiguidade e ligado aos deuses tendo um significado divino Presente nas

festas esse riso natildeo possuiacutea o sentido de diversatildeo como se conhece hoje ldquoAntes ele

correspondia aos preparativos de sacrifiacutecios e tinha uma relaccedilatildeo congruente com a morte O

riso e a morte fazem boa misturardquo (MINOIS 2003 p 29)

No campo do riso a comeacutedia gregandash da qual nos ocuparemos posteriormente ndash

surge como uma arte secundaacuteria cuja funccedilatildeo era descontrair os espectadores afinal era

apresentada nos intervalos das grandes peccedilas Procurava mostrar o homem rebaixado lidando

com figuras inferiores tanto no sentido moral quanto no acircmbito social Tendo como desiacutegnio

exagerar os defeitos humanos a comeacutedia explorava o ridiacuteculo

Nesse campo ao apresentar o Auto da Compadecida por meio dos contadores de

histoacuteria Chicoacute Joatildeo Grilo e do palhaccedilo o proacuteprio Suassuna admite a influecircncia da Comeacutedia

Antiga do Repente do Cordel dentre outros

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Eacute verdade que devo muito ao teatro grego (e a Homero e a Aristoacuteteles) ao latino ao italiano renascentista ao elisabetano ao francecircs barroco e sobretudo ao ibeacuterico Eacute verdade que devo ainda mais aos ensaiacutestas brasileiros que pesquisaram e publicaram as obras assim como salientaram a importacircncia do Romanceiro Popular do Nordeste principalmente a Joseacute de Alencar Siacutelvio Romero Leonardo Mota Rodrigues de Carvalho Euclides da Cunha Gustavo Barroso e mais modernamente Luiacutes Cacircmara Cascudo e Teacuteo Brandatildeo Mas a influecircncia decisiva mesmo em mim eacute a do proacuteprio Romanceiro Popular Nordestino com o qual tive estreito contato desde a minha infacircncia de menino criado no sertatildeo do Cariri da Paraiacuteba (SUASSUNA 2007 p 30)

O riso no Auto da Compadecida encontra suporte na carnavalizaccedilatildeo ideia

concebida por Mikhail Bakhtin (1993 p 7) que consiste na ldquosegunda vida do povo baseada

no princiacutepio do risordquo princiacutepio este que abole as relaccedilotildees hieraacuterquicas quando desloca os

sujeitos e subverte a ordem social estabelecida De acordo com Bakhtin O riso e a visatildeo de carnavalesca do mundo que estatildeo na base do grotesco destroem a seriedade unilateral e as pretensotildees de significaccedilatildeo incondicional e intemporal e liberam a consciecircncia o pensamento e a imaginaccedilatildeo humana que ficam assim disponiacuteveis pra o desenvolvimento de novas possibilidades Daiacute que uma certa carnavalizaccedilatildeo da consciecircncia precede e prepara sempre as grandes transformaccedilotildees mesmo no domiacutenio cientiacutefico (MIKHAIL BAKHTIN1993 p43)

No Primeiro Ato do Auto da Compadecida haacute o cruzamento da histoacuteria narrada

por Suassuna com a Literatura de Cordel precisamente com o Testamento do cachorro

publicado no folheto intitulado ldquoDinheirordquo escrito por Leandro Gomes de Barros (1909) fato

que desperta na plateia o riso frouxo natildeo simplesmente pelos causos propostos por Chicoacute e

Joatildeo Grilo mas pelo niacutevel de linguagem explorado e pelas artimanhas da dupla para

conseguir o intento de benzer a cachorra antes de enterraacute-la JOAtildeO GRILO Padre Joatildeo Padre Joatildeo PADRE aparecendo na igreja Que haacute Que gritaria eacute essa CHICOacute Mandaram avisar para o senhor natildeo sair porque vem uma pessoa aqui trazer um cachorro que estaacute se ultimando para o senhor benzer PADRE Para eu benzer CHICOacute Sim PADRE com desprezo Um cachorro CHICOacute Sim PADRE Que maluquice Que besteira JOAtildeO GRILO Cansei de dizer a ele que o senhor benzia Benze porque benze vim com ele PADRE Natildeo benzo de jeito nenhum

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CHICOacute Mas padre natildeo vejo nada de mal em se benzer o bicho JOAtildeO GRILO No dia em que chegou o motor novo do major Antocircnio Morais o senhor natildeo o benzeu PADRE Motor eacute diferente eacute uma coisa que todo mundo benze Cachorro eacute que eu nunca ouvi falar CHICOacute Eu acho cachorro uma coisa muito melhor do que motor PADRE Eacute mas quem vai ficar engraccedilado sou eu benzendo o cachorro Benzer motor eacute faacutecil todo mundo faz isso mas benzer cachorro (SUASSUNA 2005 p 21-23)

Tanto na visatildeo Suassuniana quanta na bakhtiniana a visatildeo carnavalesca de mundo

produz formas de linguagem que acabam com qualquer registro formal vocabular ou

dificuldade de aproximaccedilatildeo entre sujeitos enunciadores Dessa forma foi produzida uma

linguagem carnavalesca de muitos recursos tiacutepica da qual encontramos exemplos em vaacuterias

cenas do Auto da Compadecida como no enterro da cachorra um dos folhetos utilizados na

composiccedilatildeo da obra no Primeiro Ato quando o Palhaccedilo adverte ao puacuteblico sobre a histoacuteria

que se desenvolveria com a discussatildeo entre Joatildeo Grilo e Chicoacute para ver se o padre benzeria ou

natildeo o cachorro da mulher do padeiro

Por essa apropriaccedilatildeo da literatura popular percebemos que haacute um cruzamento da

histoacuteria de Suassuna com o cordel escrito por Leandro Gomes de Barros (1865 ndash 1918) ndash O

Testamento do cachorro publicado no folheto intitulado ldquoDinheirordquo que recebeu de Ariano o

seguinte comentaacuterio Quando publiquei o Auto da Compadecida Raimundo Magalhatildees Juacutenior em erudito e arguto artigo chamou atenccedilatildeo para o fato de que essa histoacuteria que eu julgava anocircnima e puramente nordestina jaacute fora usada numa versatildeo parecida por Le Sage no Gil Blaacutes de Santillana Punha ele em duacutevida a autoria popular da nossa versatildeo coisa em que se enganava como se vecirc porque como agora se sabe ela eacute de Leandro Gomes de Barros [] Por outro lado depois o Auto da Compadecida foi traduzido e encenado na Europa os professores Jean Girodon e Enrique Martiacutenez Loacutepez ndash um francecircs o outro espanhol ndash mostraram que a histoacuteria eacute muito mais antiga do que Le Sage vem do norte da Aacutefrica tendo passado agrave Peniacutensula Ibeacuterica com os aacuterabes e sendo muito comum nos fabulaacuterios e novelas picarescas ibeacutericasassim como na Franccedila por Ruteboeuf (SUASSUNA apud SANTIAGO 2007 p260)

Foi no cordel ldquoO Dinheiro ou O Testamento do Cachorrordquo escrito por Leandro

Gomes de Barros (1865 ndash 1918) com a narraccedilatildeo da histoacuteria do cachorro e de seu testamento

que Ariano Suassuna encontrou ideia e material como o proacuteprio afirmava para tambeacutem

escrever suas histoacuterias no Auto da Compadecida

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Eu vi narrar um fato Que fiquei admirado Um sertanejo me disse Que nesse seacuteculo passado Viu enterrar um cachorro Com honras de um potentado Um inglecircs tinha um cachorro De uma grande estimaccedilatildeo Morreu o dito cachorro E o inglecircs disse entatildeo Mim enterra esse cachorro Inda que gaste um milhatildeo Foi ao vigaacuterio e lhe disse Morreu cachorra de mim E urubu no Brasil Natildeo poderaacute dar-lhe fim - Cachorro deixou dinheiro Perguntou o vigaacuterio assim - Mim quer enterrar cachorro Disse o vigaacuterio Oh Inglecircs Vocecirc pensa que isto aqui Eacute o paiacutes de vocecircs Disse o inglecircs Oh Cachorro Gasta tudo esta vez Ele antes de morrer Um testamento aprontou Soacute quatro contos de reacuteis Para o vigaacuterio deixou Antes do inglecircs findar O vigaacuterio suspirou - Coitado Disse o vigaacuterio De que morreu esse pobre Que animal inteligente Que sentimento tatildeo nobre Antes de partir do mundo Fez-me presente do cobre Leve-o para o cemiteacuterio Que vou o encomendar Isto eacute traga o dinheiro Antes dele se enterrar Estes sufraacutegios fiados Eacute factiacutevel natildeo salvar E laacute chegou o cachorro O dinheiro foi na frente Teve momento o enterro Missa de corpo presente Ladainha e seu rancho Melhor do que certa gente

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Mandaram dar parte ao bispo Que o vigaacuterio tinha feito O enterro do cachorro Que natildeo era de direito O bispo aiacute falou muito Mostrou-se mal satisfeito Mandou chamar o vigaacuterio Pronto o vigaacuterio chegou As ordens sua excelecircncia O bispo lhe perguntou Entatildeo que cachorro foi Que seu vigaacuterio enterrou Foi um cachorro importante Animal de inteligecircncia Ele antes de morrer Deixou agrave vossa excelecircncia Dois contos de reacuteis em ouro Se errei tenha paciecircncia Natildeo foi erro sr Vigaacuterio Vocecirc eacute um bom pastor Desculpe eu incomodaacute-lo A culpa eacute do portador Um cachorro como este Jaacute vecirc que eacute merecedor (BARROS 2005 p 5)

Como fonte da recriaccedilatildeo tambeacutem operada na cena do Auto da Compadecida o

testamento do cachorro foi estudado como recurso para o riso visto que pelo uso do Latim

comum nas pregaccedilotildees dos padres por ocasiatildeo da despedida das almas e que equipara o

ldquobichinhordquo a um ser humano o poeta brinca com o puacuteblico e faz uma criacutetica agrave ganacircncia dos

legisladores episcopais JOAtildeO GRILO Estou dizendo que se eacute desse jeito vai ser difiacutecil cumprir o testamento do cachorro na parte do dinheiro que ele deixou para o padre e para o sacristatildeo SACRISTAtildeO Que eacute isso Cachorro com testamento JOAtildeO GRILO Esse era um cachorro inteligente Antes de morrer olhava para a torre da igreja toda vez que o sino batia Nesses uacuteltimos tempos jaacute doente pra morrer botava uns olhos bem compridos prrsquoos lados daqui latindo na maior tristeza Ateacute que meu patratildeo entendeu com a minha patroa eacute claro que ele queria ser abenccediloado pelo padre e morrer como cristatildeo Mas nem assim ele sossegou Foi preciso que o patratildeo prometesse que vinha encomendar a becircnccedilatildeo e que no caso dele morrer teria um enterro em latim Que em

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troca do enterro acrescentaria no testamento dele dez contos de reacuteis para o padre e trecircs para o sacristatildeo SACRISTAtildeO Que animal inteligente Que sentimento nobre E o testamento Onde estaacute [] SACRISTAtildeO Mas eu natildeo disse que fica tudo por minha conta PADRE Por sua conta como se o vigaacuterio sou eu SACRISTAtildeO O vigaacuterio eacute o senhor mas quem sabe quanto vale o testamento sou eu PADRE Hein O testamento SACRISTAtildeO Sim o testamento PADRE Mas que testamento eacute esse SACRISTAtildeO O testamento do cachorro PADRE E ele deixou testamento PADEIRO Soacute para o vigaacuterio deixou dez contos PADRE Que cachorro inteligente Que sentimento notaacutevel JOAtildeO GRILO E um cachorro desse ser comido pelos urubus Eacute a maior das injusticcedilas PADRE Comido ele De jeito nenhum Um cachorro desse natildeo pode ser comido pelos urubus PADRE Mas que jeito pode-se dar nisso Estou com tanto medo do bispo E tenho medo de cometer um sacrileacutegio SACRISTAtildeO Que eacute isso Natildeo se trata de nenhum sacrileacutegio Vamos enterrar uma pessoa altamente estimaacutevel nobre e generosa satisfazendo ao mesmo tempo duas outras pessoas altamente estimaacuteveis nobres e sobretudo generosas Natildeo vejo mal nenhum nisso [] SACRISTAtildeO Se eacute assim vamos ao enterro Como se chamava o cachorro MULHER Xareacuteu SACRISTAcircO Xareacuteu Absolve Domine animas omnium fidelium defunctorum abomni vinculi delictorum TODOS Ameacutem (SUASSUNA 2005 p 48 - 55)

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Diante dessa quebra estabelecida por Ariano Suassuna ao propor no Auto da

Compadecida o enterro do cachorro da mulher do padeiro em mais uma das malandragens de

Joatildeo Grilo cabe aqui uma referecircncia e um entrecruzamento de cenas pois na peccedila As Vespas

de Aristoacutefanes que foi apresentada pela primeira vez em 422 aC no contexto da Guerra do

Peloponeso haacute uma humanizaccedilatildeo de dois catildees que satildeo acusados de roubar comida e por isso

seratildeo julgados

Na peccedila as atitudes de Diceoacutepolis devem ser entendidas como a reaccedilatildeo de um

Aristoacutefanes que procura satirizar o mau funcionamento das instituiccedilotildees democraacuteticas

centrando-se sobretudo nos tribunais A criacutetica seraacute trabalhada a partir de Filocleacuteon filho de

Bdelicleacuteon um velho juiz que encontra nas atividades juriacutedicas sua fonte de rendimento

Recriando-se em cena um tribunal domeacutestico o que chama a atenccedilatildeo do leitor eacute o

julgamento de um catildeo acusado de roubo por outro catildeo ndash poreacutem representativos de dois

poliacuteticos da eacutepoca ndash que a peccedila manifesta a cada cena pela corrupccedilatildeo que domina as

instituiccedilotildees juriacutedicas atenienses

A comeacutedia inicia com um diaacutelogo entre Soacutesias e Xacircntias escravos de Filocleacuteon

que foram orientados a vigiar o velho juiz natildeo deixando que ele vaacute para o Tribunal Pelos

dois personagens o poeta explica aos espectadores a ldquodoenccedilardquo que ataca Filocleacuteon Afirma

Xantias Vocecircs estatildeo perdendo tempo nenhum de vocecircs vai esclarecer o caso Se vocecircs estatildeo ansiosos por saber faccedilam silecircncio vou dizer qual eacute mesmo a doenccedila de meu senhor eacute a paixatildeo pelos tribunais A paixatildeo dele eacute julgar ele fica desesperado se natildeo consegue ocupar o primeiro banco dos juiacutezes Agrave noite ele natildeo goza um instante de sono Se por acaso fecha os olhos seu proacuteprio espiacuterito fica olhando para a clepsidra A paixatildeo dele pelo voto no tribunal eacute tatildeo grande que faz ele acordar apertando trecircs de seus dedos como se oferecesse incenso aos deuses no dia da lua novaQuando ele vecirc escrito nos muros ldquoDemo encantador filho de Pirilampordquoescreve ao lado ldquoEncantadora urna de votosrdquo Se seu galo cantava durante a noite ele dizia que algum acusado sem duacutevida usava essa humilde ave para fazecirc-lo acordar mais tarde do que era necessaacuterio Logo depois do jantar ele pedia as sandaacutelias corria para o tribunal em plena noite e adormecia laacute colado a uma coluna como uma ostra agrave concha Sua severidade o levava a traccedilar sobre as plaquetas do voto a linhada condenaccedilatildeo e ficava com os dedos cheios de cera Com receio de natildeo teraacute pedrinha para o voto ele tinha no jardim de sua casa um canteiro de pedrinhas que renovava sem parar Esta era a sua loucura E as censuras deixavam o coroa excitadiacutessimoTambeacutem fechamos o ferrolho da porta principal para impedi-lo de sair pois esta ldquodoenccedilardquo deixava o filho desesperado No comeccedilo este usa a doccedilura lhe pede para natildeo ficar todo o tempo com o manto de sair e permanecer em casa Depois daacute um banho no pai e purifica ele mas tudo isto eacute inuacutetil Ele sujeita o pai aos exerciacutecios sagrados dos Coribantes opai foge com o tambor e corre para o tribunal querendo julgar Diante do fracasso dessas tentativas ele leva o paia Aacuteigina para se deitar de noite no templo de Ascleacutepio mas quando amanhece o dia laacute estaacute o velho no recinto reservado aos juiacutezes no tribunalFazemos o possiacutevel para impedi-lo de sair mas ele escapa pelas calhas e pelos canos de aacuteguas das chuvas onde aparecia um buraco noacutes tapaacutevamos e fechaacutevamos imediatamente todas as saiacutedas mas ele punha paus nos muros e saltava de um lado para o outro como se fosse um gato Afinal pusemos redes fechando todo o acesso ao jardim e ficaacutevamos de guarda O

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velho se chama Filoclecircon nenhum nome ficaria melhor nele O nome do filho dele eacute Bdeliclecircon ele faz tudo para dominar o gecircnio fogoso do pai (ARISTOacuteFANES As Vespas p38-41 ndash KURY 2004)

A cena ganha dinacircmica com o filho do velho Juiz assustado com a presenccedila dos

outros magistrados vestidos de vespas em sua casa

BDELICLEcircON Deus nosso senhor Vocecirc que preside a entrada de minha casa receba estes novos sacrifiacutecios que lhe oferecemos pela primeira vez em favor de meu pai Adoce o humor aacutespero e austero dele Deixe cair sobre o coraccedilatildeo dele algumas gotas de mel para que de hoje em diante ele seja clemente para com os homens mais benevolente para com o acusado que com o acusador enfim seja sensiacutevel agraves preces dirigidas a vocecirc Tire do caraacuteter dele todo o fel e todas as folhas de urtiga CORO Unidos de todo o coraccedilatildeo aos sentimentos que vocecirc expressou juntamos nossos votos aos seus neste cargo que vocecirc exerce de fato vocecirc se torna querido por todos noacutes depois que vimos vocecirc mais zeloso para com o povo que qualquer dos juiacutezes mais novos que vocecirc

Um criado traz dois personagens disfarccedilados de CACHORROS um dos disfarces reproduz as feiccedilotildees de Laques e o outro as de Cleacuteon

BDELICLEcircON Se algum juiz estaacute laacute fora que se apresse a entrar uma vez iniciadas as falas ningueacutem mais poderaacute entrar FILOCLEcircON Quem eacute este acusado A que pena ele estaacute sujeito XANTIAS Como se fosse o promotor Ouccedilam agora a acusaccedilatildeo ldquoO cachorro da vila de Cidateneacuteia acusa Labes da vila de Aixone de haver contra toda a justiccedila devorado sozinho um queijo da Siciacuteliardquo Que sua pena seja a de usar uma coleira bem apertada FILOCLEcircON Ou entatildeo uma morte de catildeo se ele for condenado BDELICLEcircON Aqui estaacute Labes o outro acusado FILOCLEcircON Ah Bandido Ele tem mesmo a pinta de

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um ladratildeo e se orgulha de me tapear rangendo os dentes Onde estaacute o queixoso o cachorro de Cidateneacuteia 1ordm CACHORRO Au Au BDELICLEcircON Aqui estaacute ele FILOCLEcircON Este eacute um outro Labes bom latidor e lambedor de panelas SOSIAS Como se fosse o arauto Silecircncio Todos sentados Vocecirc objeto da acusaccedilatildeo suba agrave tribuna FILOCLEcircON Durante a fala dele vou me servir de sopa e engoli-la rapidamente XANTIAS Como promotor Senhores juiacutezes Os senhores vatildeo ouvir minha acusaccedilatildeo contra este reacuteu Ele cometeu em relaccedilatildeo agrave cidade e agrave frota de Atenas um atentado indecoroso Ele se esgueirou para um canto depois de roubar um enorme queijo da Siciacutelia aproveitando-se das trevas FILOCLEcircON O roubo dele estaacute suficientemente comprovado o patife acaba de deixar cair no chatildeo um naco de queijo extremamente malcheiroso XANTIAS Pedi a ele que me deixasse provar um pedaccedilo do queijo mas ele natildeo me atendeu Quem vai querer ajudar vocecircs se seu cachorro fiel natildeo deixou nem um pouquinho para mim FILOCLEcircON Ele natildeo lhe deu nada mesmo XANTIAS Nadinha nem a mim nem a seu companheiro FILOCLEcircON Aiacute estaacute um trapalhatildeo que vai ferver mais que estas lentilhas BDELICLEcircON Em nome dos deuses meu pai natildeo profira a sentenccedila antes de ter ouvido as duas partes FILOCLEcircON Mas a coisa estaacute clara meu caro ela fala por si mesma BDELICLEcircON Mas preste atenccedilatildeo para natildeo absolver o acusado este cachorro eacute o mais guloso e o mais egoiacutesta que jaacute vi ele lambe num piscar de olhos todos os cantos de umahellip cidade e devora tudo FILOCLEcircON E natildeo tenho dinheiro nem para mandar

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consertar meu vasohellip 2ordm CACHORRO Entatildeo castigue o acusado uma uacutenica cozinha natildeo pode encher a barriga de dois ladrotildees Tomara que eu natildeo tenha latido no vazio e em vatildeo senatildeo nunca mais vou latir FILOCLEcircON Quanta falta de vergonha Aiacute estaacute um grande trapaceiro Que pensa vocecirc dele meu galo Para mim ele diz ldquosimrdquo Guarda do tribunal Onde estaacute vocecirc Que algueacutem me decirc um penico SOSIAS Fingindo ser o guarda do tribunal Pegue vocecirc mesmo o penico estou ocupado fazendo a citaccedilatildeo das testemunhas Apresentem-se as testemunhas de acusaccedilatildeo a Laques Um prato um pilatildeo uma focircrma de queijo uma grelha uma panela e outros utensiacutelios de cozinha Vocecirc ainda estaacute mijando Ainda natildeo acabou FILOCLEcircON Apontando para o acusado Ainda natildeo mas penso que aquele ali vai fazer coisa pior hoje ele vai se borrar BDELICLEcircON Dirigindo-se ao CACHORRO acusador Entatildeo vocecirc seraacute sempre tatildeo severo e intrataacutevel para com o acusado Por que esta ferocidade FILOCLEcircON Dirigindo-se ao acusado Suba agrave tribuna e defenda-se Por que este silecircncio Fale SOSIAS Com certeza ele nada tem a dizer BDELICLEcircON Vocecirc se engana acontece com ele o que aconteceu haacute muito tempo com Tuciacutedides quando acusou Peacutericles a surpresa da acusaccedilatildeo paralisou completamente as mandiacutebulas de Peacutericles Afaste-se vou assumir a sua defesa Eacute uma tarefa difiacutecil senhores juiacutezes defender um cachorro que eacute alvo de acusaccedilotildees extremamente odiosas poreacutem de qualquer maneira falarei Este cachorro eacute valente e caccedila lobos FILOCLEcircON Ele eacute um ladratildeo e um conspirador BDELICLEcircON Natildeo por Zeus Natildeo haacute um cachorro melhor no mundo Ele seria capaz de cuidar de um grande rebanho de carneiros

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FILOCLEcircON Que importa tudo isto se ele comeu o queijo BDELICLEcircON Que importa Ele luta para defender vocecirc guarda sua casa e aleacutem disto tem outras qualidades Se ele rouba uma coisinha vocecirc deve perdoaacute-lo Reconheccedilo que ele natildeo eacute um grande tocador de ciacutetara FILOCLEcircON Eu gostaria de que ele nem soubesse ler ele natildeo faria a apologia de seu crime BDELICLEcircON Ouccedila minhas testemunhas juiz imparcial Aproxime-se facatildeozinho e fale em voz alta entatildeo vocecirc que estava incumbido dos pagamentos responda com clareza vocecirc natildeo cortou as partes que deveriam ser distribuiacutedas aos soldados FILOCLEcircON Como vou suportar a ideacuteia de ter absolvido um acusado Que seraacute de mim Deuses veneraacuteveis Me perdoem Fiz isso tudo sem querer este natildeo eacute o meu haacutebito (ARISTOacuteFANES As Vespas p153-173 ndash KURY 2004)

Essa visatildeo criacutetica e carnavalesca de mundo que se opotildee ao mau serviccedilo das

instituiccedilotildees produzida nas cenas tanto da peccedila As Vespas quanto a partir dos folhetos de

cordel traz em si uma ideia de inacabamento de quebra imperfeiccedilatildeo e uma forma de

expressatildeo ambivalente por isso ela eacute dinacircmica e mutaacutevel

As formas e siacutembolos irreverentes da linguagem carnavalesca caracterizam-se

principalmente pela coerecircncia sequencial das coisas ldquoao avessordquo e pelas diversas formas de

paroacutedias degradaccedilotildees e atitudes burlescas instrumento que tanto permeiam Acarnenses o

auto de Suassuna e o auto de Gil Vicente do qual trataremos no Quinto Ato

Sobre a ideia de quebra na cena teatral Bakhtin (2002) alerta que a ideia

carnavalesca de que ele trata natildeo estaacute relacionada ao carnaval dos ldquotempos modernosrdquo mas a

uma cosmovisatildeo milenar e universalmente popular Segundo o autor a cultura do carnaval

compreende quatro grandes categorias que envolvemos festejos carnavalescos as obras

cocircmicas representadas nas praccedilas puacuteblicas os insultos os juramentos os folguedos populares

entre outros

Assim o rito do carnaval na perspectiva de Bakhtin eacute constituiacutedo pela vitoacuteria de

uma forma de libertaccedilatildeo momentacircnea da verdade predominante e do estatuto soacutecio-poliacutetico-

econocircmico vigente Desta forma eacute possiacutevel propor a carnavalizaccedilatildeo como dispositivo

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presente no texto que compotildee a nossa pesquisa E para isso relacionaremos carnavalizaccedilatildeo e

polifonia ideias propostas por Mikhail Bakhtin para designar um modo diferente de narrar

Na concepccedilatildeo do autor segundo Gomes (2014) o termo ldquopolifoniardquo natildeo pode ser

relacionado agrave realidade heterogecircnea da linguagem quando vista pelo acircngulo da pluralidade

das ldquoliacutenguassociaisrdquo e por isso natildeo deve ser confundido com os termos ldquoheteroglossiardquo ou

ldquoplurivocidaderdquo sendo a Polifonia para Bakhtin um universo no qual todas as vozes e

consciecircncias satildeo imisciacuteveis e equivalentes ou seja plenas de valor mantendo com outras

vozes do discurso uma relaccedilatildeo de plena igualdade realizaacuteveis para se contrapor ao

estabelecido De acordo com Bakhtin

A multiplicidade de vozes e consciecircncias independentes e imisciacuteveis e a autecircntica polifonia de vozes plenivalentes constituem de fato a peculiaridade fundamental dos romances de Dostoievski [] eacute precisamente a multiplicidade de consciecircncias equipolentes e seus mundos que aqui combinam numa unidade de acontecimento mantendo sua imiscibilidade (MIKHAIL BAKHTIN 2002 p4)

Dessa forma eacute importante ressaltar que os discursos que circulam na sociedade

tecircm pesos poliacuteticos diferenciados em funccedilatildeo dos jogos de poder e do proacuteprio jogo luacutedico

social defendido por Huizinga (1999) Portanto essas ldquovozesrdquo possiacuteveis de serem percebidas

as ironias os textos polifocircnicos aparecem em oposiccedilatildeo agraves vozes que tentam passar

despercebidas nos textos monofocircnicos produzindo um ldquoefeito de apagamentordquo em um

esforccedilo contiacutenuo de impor determinados discursos como centro das relaccedilotildees de poder E

nesse campo movediccedilo tanto Aristoacutefanes quanto Ariano Suassuna encontram espaccedilos para

confrontarem as falas das instituiccedilotildees e seus legisladores seja em Atenas ou Taperoaacute

Segundo Rodrigues (2010) a polifonia e a monofonia satildeo efeitos de sentido cuja

existecircncia eacute possiacutevel em virtude dos procedimentos discursivos Assim tomando como

premissa a afirmativa da autora entendemos que a multiplicidade de vozes autorais diluiacutedas

entre as personagens consolidadas em seus discursos bem como a carnavalizaccedilatildeo dos

personagens do Auto da Compadecida provoca o riso que subverte os poderes atraveacutes de

diversas estrateacutegias como as reproduccedilotildees moralizantes dos diaacutelogos que autorizam o uso da

moral e potencializam as cenas cocircmicas

Ainda de acordo com Rodrigues (2002 p 42)

As relaccedilotildees dialoacutegicas [] satildeo um fenocircmeno universal que penetra [] tudo o que tem sentido e importacircnciardquo Dessa forma o dialogismo eacute a de um princiacutepio constitutivo da linguagem natildeo sendo esse ldquodiaacutelogordquo necessariamente um ponto de

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convergecircncia mas sim um espaccedilo de lutas entre os sujeitos do discurso pois ldquoonde comeccedila a consciecircncia comeccedila o diaacutelogo

Assim a alteridade define o sujeito pois o outro eacute fundamental para a sua

constituiccedilatildeo A relaccedilatildeo existente entre os sujeitos e a alteridade propotildee um jogo de imagens

que interfere na produccedilatildeo dos discursos das identidades e consequentemente dos sujeitos O

dialogismo tem como sua forma maacutexima agrave polifonia

Elemento das cenas cocircmicas as falas segundo Rodrigues (2010 p 62) natildeo estatildeo apenas justapostas como se fossem peccedilas de um brinquedo de montar encontram-se em um estado de interaccedilatildeo e de embate ldquotensordquo e contiacutenuo como os dentes de uma engrenagem proporcionando jogos linguiacutesticos e discursivos provocados pelo desenvolvimento de uma situaccedilatildeo de qui pro quoacute no Auto da Compadecida em funccedilatildeo de um plano de Joatildeo Grilo deixam o Padre Joatildeo em maus lenccediloacuteis com o Major Antocircnio Moraes enquanto o Padre fala sobre benzer a cachorra o Major fala sobre seu filho que estaacute doente e vai para o Recife tratando-se aiacute de uma confusatildeo no plano da realizaccedilatildeo e entendimento da linguagem engenhosamente construiacuteda por Joatildeo Grilo

PADRE Eacute o que vivo dizendo do jeito que as coisas vatildeo eacute o fim do mundo Mas que coisa o trouxe aqui Jaacute sei natildeo diga o bichinho estaacute doente natildeo eacute ANTOcircNIO MORAES Eacute jaacute sabia PADRE Jaacute aqui tudo se espalha num instante Jaacute estaacute fedendo ANTOcircNIO MORAES Fedendo Quem PADRE O bichinho ANTOcircNIO MORAES Natildeo Que eacute que o senhor quer dizer PADRE Nada desculpe eacute um modo de falar ANTOcircNIO MORAES Pois o senhor anda com uns modos de falar muito esquisitos PADRE Peccedilo que desculpe um pobre padre sem muita instruccedilatildeo Qual eacute a doenccedila Rabugem ANTOcircNIO MORAES Rabugem PADRE Sim jaacute vi um morrer disso em poucos dias Comeccedilou pelo rabo e espalhou-se pelo resto do corpo ANTOcircNIO MORAES Pelo rabo PADRE Desculpe desculpe eu devia ter dito ldquopela caudardquo Deve-se respeito aos enfermos mesmo que sejam os de mais baixa qualidade ANTOcircNIO MORAES Baixa qualidade Padre Joatildeo veja com quem estaacute falando A Igreja eacute uma coisa respeitaacutevel como garantia da sociedade mas tudo tem limite PADRE

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Mas o que foi que eu disse ANTOcircNIO MORAES Baixa qualidade Meu nome todo eacute Antocircnio Noronha de Brito Moraes e esse Noronha de Brito veio do Conde dos Arcos ouviu Gente que veio nas caravelas ouviu PADRE Ah bem e na certa os antepassados do bichinho tambeacutem vieram nas caravelas natildeo eacute isso ANTOcircNIO MORAES Claro Se meus antepassados vieram eacute claro que os dele vieram tambeacutem Que o senhor que insinuar Que a matildee dele procedeu mal PADRE Mas uma cachorra ANTOcircNIO MORAES O quecirc PADRE Uma cachorra ANTOcircNIO MORAES Repita PADRE Natildeo vejo nada de mal em repetir natildeo eacute uma cachorra mesmo ANTOcircNIO MORAES Padre eu natildeo mato o senhor agora mesmo porque o senhor eacute padre e estaacute louco [] (SUASSUNA 2005 p 32 -34)

Ainda sobre as falas a mesma autora nos relembra que o proacuteprio Suassuna teceu

comentaacuterio sobre a existecircncia do caraacuteter polifocircnico instaurador do riso no Auto da

Compadecida Como observado pelo proacuteprio Suassuna o Auto da Compadecida trouxe o riso instaurado atraveacutes das polissemias e por meio da ldquofalhardquo nada linguagem O riso eacute provocado na cena descrita anteriormente em funccedilatildeo de as reacuteplicas dos diaacutelogos estarem situadas em contextos distintos causando um desacordo entre as falas dos personagens dessa forma a interaccedilatildeo verbal aconteceu de forma equivocada para os interlocutores para o Padre Joatildeo era a cachorra (animal) do Major que estava doente para Antocircnio Moraes sua mulher estava sendo ofendida pelo padre Portanto o ldquoencaixerdquo das falas faz o qui pro quoacute funcionar proporcionando efeitos de sentido diferentes para cada sujeito da cena enunciativa (RODRIGUES 2010 p 6)

Outra estrateacutegia importante para a compreensatildeo do discurso como revelador do social

encontra-se nas palavras de Bakhtin (2003 p48) ao afirmar que o discurso se efetiva pela

praacutetica contextualizada entre emissor e receptor fato recorrente no Auto da Compadecida e

em Acarnenses visto que em ambas as peccedilas a intenccedilatildeo do autor de colocar para o

leitorouvinte seus objetivos eacute muito clara e social

O diaacutelogo eacute um processo de relacionamento reciacuteproco entre as pessoas que satildeo coautores do que acontece no diaacutelogo Desta forma aqueles que participam do diaacutelogo tecircm uma compreensatildeo ativa e antecipatoacuteria do que foi dito e ouvido Portanto tudo o que eacute dito sempre tem um projeto e eacute sempre incompleto pois o entendimento estaacute ancorado em uma accedilatildeo social conjunta Assim trabalhar com essa

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condiccedilatildeo dialoacutegica constitutiva do ser humano e seu potencial transformador afeta nossa compreensatildeo e as praacuteticas que dialogam como recurso fundamental em sua accedilatildeo e reflexatildeo Dado o exposto eacute possiacutevel entender como as praacuteticas dialoacutegicas generativa preservam troca dialoacutegica a singularidade de cada reuniatildeo a construccedilatildeo coordenada de significado emoccedilatildeo e presenccedila dos participantes priorizando como um dos seus objetivos e tarefa a criaccedilatildeo contextualizada de novas possibilidades discursivas 16

Rodrigues (2010) reforccedila que no jogo das desconstruccedilotildees promovidas pela

linguagem no texto de Ariano Suassuna atraveacutes dos causos que o autor engenhosamente

(des)constroacutei nas reflexotildees das personagens sobretudo de Chicoacute produzem a comicidade e

estabelecem o sentido do dito que estaacute a serviccedilo do social

Dessa forma as fronteiras da liacutengua e os seus lugares de transgressotildees podem assim ser observados atraveacutes de uma situaccedilatildeo de qui pro quoacute Ao estabelecer o deslizamento de sentidos como regra o qui pro quoacute coloca em cena a comicidade Nos jogos com a liacutengua esses niacuteveisquando acionados podem sofrer uma espeacutecie de mutaccedilatildeo por causa dos deslocamentos e descentramentos que tecircm como consequecircncia o riso (RODRIGUES 2010 p 7)

No Auto da Compadecida o caraacuteter polifocircnico eacute dinacircmico e se instaura tambeacutem

atraveacutes do entrecruzamento das artimanhas do Joatildeo Grilo e de Chicoacute fato concretizado por

exemplo pelo uso do latim na cena do enterro aqui jaacute citada o que forccedila de forma jaacute

esperada a participaccedilatildeo do puacuteblico visto que o caraacuteter religioso estaacute ligado agrave

cena(SUASSUNA 2005 p 48-55)

Pela apropriaccedilatildeo discursiva e pela sobreposiccedilatildeo de cenas cocircmicas (re)criadas pelo

posicionamento das personagens no Auto da Compadecida tem-se o reforccedilo de que o riso o

humor e a ironia tecircm sido grandes recursos na literatura de grandes autores que despertam na

audiecircncia no instante do abrir de cortinas a gargalhada assim como Ariano Suassuna que

usa do riso como ritual de escapismo e ou como criacutetica moralizante Leacutelia Parreira (2006 p

45) argumenta que a obra irocircnica eacute a siacutentese de noccedilotildees antiteacuteticas accedilatildeo e natildeo contemplaccedilatildeo

16 El diaacutelogo es un proceso de relacioacuten reciacuteproca entre personas quienes son coautores de aquello que sucede en el diaacutelogo De esta manera quienes participan en el diaacutelogo tienen una comprensioacuten activa y anticipatoria de lo dicho y lo escuchado Por ello todo lo que se dice tiene siempre un proyecto y siempre es incompleto ya que la comprensioacuten estaacute anclada en una accioacuten social conjunta Asiacute trabajar con esta condicioacuten dialoacutegica constitutiva del ser humano y su potencial transformativo incide en nuestra comprensioacuten y en las praacutecticas que tienen al diaacutelogo como recurso fundamental en su accioacuten y reflexioacuten A partir de lo anterior es posible entender como las praacutecticas dialoacutegicas generativas preservan el intercambio dialoacutegico la singularidad de cada encuentro la construccioacuten coordinada de significados la emocionalidad y la presencia encarnada de los participantes jerarquizando como uno de sus objetivos y tareas la creacioacuten contextuada de nuevas posibilidades (Traduccedilatildeo nossa)

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passiva alianccedila entre objetividade e subjetividade mistura do seacuterio e da brincadeira o sonho

e a realidade o sublime e o pateacutetico o real e o aparente

As accedilotildees de Ariano Suassuna em toda a trama do Auto nos revelam que eacute

justamente por meio da ironia que o homem ri de si mesmo de suas crenccedilas e ingenuidades

indicando o que existe de representaccedilatildeo e de fingimento nos sistemas e ideologias

Em Aristoacutefanes comeccedilaremos identificando os recursos cocircmicos que tecircm o

objetivo de desvalorizar Lacircmaco traduzido por Batalhatildeo efetivamente aos olhos do puacuteblico e

passaremos para a anaacutelise de seu valor estrateacutegico A cena em que o personagem aparece pela

primeira vez estaacute localizada apoacutes o confronto entre o heroacutei cocircmico Diceoacutepolis e o coro

camponecircs de Acarnes O coro persegue Diceoacutepolis para apedrejaacute-lo por ter realizado uma

treacutegua particular com os Peloponeacutesios

Diceopolis vestido com o disfarce de Teacutelefo que Euriacutepides lhe emprestou tenta

persuadir o coro com suas razotildees mas soacute consegue convencer uma parte dele O semicoro que

ainda se opotildee agrave paz privada do heroacutei pede entatildeo ajuda a Batalhatildeo e ele aparece pela primeira

vez em cena apelando ao seu chamado (vv 557-574)

COREUTA 1 Eacute verdade seu safado mundiccedila Tal coisa tu ismoleuse atreve a dizecirc pra noacutes E se teve um sicofanta22 tu ainda fala mal dele COREUTA 2 Por Poseidon as coisas que ele taacute dizeno Satildeo tudo justa e ninhuma delas eacute falsa COREUTA 1 Por elas ser justa era preciso ele taacute dizeno Mas ele num vai ficaacuterino por se atrevecirc a falaacute assim COREUTA 2 Eh tu vai correcirc pra donde Ficrsquo aiacute Se tu batecirc Neste home tu vai eacute vuaacute pelo ar bem ligerin COREUTA 1 Eh Bataiatildeo tu que solta faiacutesca pelos oacutei Vem me ajudaacute tu do penacho da Goacutergona aparece Eh Bataiatildeo oacute amigo oacute camarada E se tem aiacute um taxiarcaocirc general ocirc Defensor dos muro vem me ajudaacute Depressa pois tocirc metade dominado BATALHAtildeO De onde vem o grito de guerra que ouvi Aonde devo levar socorro Aonde devo lanccedilar o tumulto Quem despertou a Goacutergona do armaacuterio

Neste momento a linguagem de LacircmacoBatalhatildeo eacute caracterizada por seu tom

eacutepico O termo gritar tem na Iliacuteada em geral o sentido de um grito de guerra Da mesma

forma o kydoimoacutes (tumulto guerrero) eacute tambeacutem de origem homeacuterica O uso do leacutexico eacutepico

aqui eacute paroacutedico porque a cena se desenrola fora de um contexto de batalha e aleacutem disso o

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inimigo eacute um homem uacutenico e inofensivo o camponecircs DiceoacutepolisJustinoacutepolis A paroacutedia

eacutepica eacute entatildeo o primeiro recurso cocircmico usado para ridicularizar a LacircmacoBatalhatildeo

Em geral a paroacutedia costuma ter alvos intertextuais o modelo parodiado Mas

neste caso a paroacutedia eacutepica tem como alvo principal natildeo o intertexto homeacuterico mas o caraacuteter

partidaacuterio da guerra Aristoacutefanes usa um recurso tradicional da literatura cocircmica mas usa-a de

uma forma diferente natildeo mais para zombar do intertexto parodiado mas para servir a saacutetira

contra o seu alvo central A primeira cena apresenta outra seacuterie de recursos cocircmicos que tecircm a

funccedilatildeo de degradar o alvo aos olhos do puacuteblico A resposta de Justinoacutepolis a Batalhatildeo eacute na

verdade zombadora JUSTINOacutePOLIS

Oacute Bataiatildeo heroacutei dos penacho e das tropardquo(v 575)

A rima interna entre loacutephon 17 e loacutechon 18 gera um efeito zombeteiro humoriacutestico

que tambeacutem reduz o ridiacuteculo agrave denominaccedilatildeo eacutepica de heroacutei Este verso combina entatildeo

como recursos cocircmicos paroacutedia eacutepica e humor verbal atraveacutes da rima O efeito humoriacutestico

da rima eacute reforccedilado aleacutem disso pela aliteraccedilatildeo do lambda que liga o nome do personagem

aos dois termos rimados Por outro lado esse verso inaugura o motivo cocircmico do ridiacuteculo das

armas do personagem que se repetiraacute sempre nas cenas protagonizadas por Lacircmaco que eacute a

personificaccedilatildeo da batalha

A recepccedilatildeo de Diceoacutepolis revela o papel que o heroacutei cocircmico vai desempenhar em

relaccedilatildeo a Lacircmaco em todas as cenas em que se enfrentam seu papel seraacute o do zombador o

satirista Essa funccedilatildeo estaacute relacionada em si mesma agrave posiccedilatildeo do enunciador-autor e agrave proacutepria

atividade do autor o ridiacuteculo Ou seja Lacircmaco natildeo eacute apenas zombado no texto - por exemplo

por meio dos recursos paroacutedicos que acabamos de mencionar que satildeo colocados na boca do

mesmo Lacircmaco - mas eacute tambeacutem daquela zombaria que se reforccedila pela zombaria do proacuteprio

caraacuteter de Diceoacutepolis A degradaccedilatildeo cocircmica de Lacircmaco eacute entatildeo produzida a partir da instacircncia

17 Normalmente os capacetes eram enfeitados com phaacuteloi ldquopenachosrdquo feitos de caudas de cavalos hippoacutekomoikoacuterytheslamproicircsiphaacuteloisi- ldquocapacetes guarnecidos de cauda equumlina com brilhantes penachosrdquo(Il XIII 132) e koacuterythosphaacutelonhippodaseiacutees- ldquocapacete de penacho equumlinordquo (Il IV 459) O vocaacutebulo loacutephos tambeacutem eacute utilizado como ldquopenachordquo loacutephonhippiokhaiacutetenndash ldquopenacho com crina de cavalordquo (Il VI 469) Merece destaque o penacho da koacuterys do capacete de Aquiles que era koacuterytha kryacuteseonloacutephonndash ldquocapacete com penacho douradordquo (Il XVIII 611-2)Aleacutem da koacuterys existe um outro tipo de capacete a kyneacutee Odisseu tinha uma kyneacutee que eacute um capacete formado por pele de catildeo ou couro qualquer (Il X 257 261) A parte exterior do capacete de Odisseu tinha ldquoos dentes reluzentes de um javali com presas brancas dispostos em grande nuacutemero com arte e habilidaderdquo (Il X 261-5) Este tipo de capacete que Meriacuteone deu ao rei de Iacutetaca eacute mencionado uma uacutenica vez em HomeroIn Os equipamentos beacutelicos dos heroacuteis homeacutericos Prof Me Luciene de Lima Oliveira- wwwe-publicacoesuerj2012 18 Tropa armada

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enunciativa - os recursos cocircmicos usados pelo proacuteprio autor - e eacute duplicada da instacircncia

interna para a accedilatildeo dramaacutetica por meio do escaacuternio do personagem do heroacutei cocircmico

Diceoacutepolis eacute um alter ego do autor uma voz autorizada um duplo do proacuteprio

Aristoacutefanes um satiacuterico que ridiculariza dentro da cena o alvo cocircmico central da obra

ridiacuteculo das armas do guerreiro inaugurado no verso 575 com a referecircncia agrave tropa eacute retomado

em toda essa cena e mais tarde nas cenas posteriores protagonizadas por Diceoacutepolis e

Lacircmaco (vv 575-585) JUSTINOacutePOLIS Oacute Bataiatildeo heroacutei dos penacho e das tropa CORO Oacute Bataiatildeo acredita que este home faz eacute tempo Que insulta a nossa cidade todinha BATALHAtildeO Tal coisa tu mendigo te atreves a dizer JUSTINOacutePOLIS Oacute Bataiatildeo oacute heroacutei me perdoe Se seno ismoleu disse alguma bestecircra BATALHAtildeO E o que foi que tu disseste de noacutes Natildeo vais falar JUSTINOacutePOLIS Nem sei mais o que foi Tocirc eacute arripiadin de medo das arma Mas por favocirc afasta de mim esta marmota BATALHAtildeO Pronto JUSTINOacutePOLIS Virrsquo ela de costa pra mim BATALHAtildeO Estaacute virada JUSTINOacutePOLIS Vaiacute me daacute a pena do teu elmo BATALHAtildeO Toma a pluma JUSTINOacutePOLIS Segura a minha cabeccedila Que eu vocirc inguiaacute Tenho eacute nojo desses penacho aiacute

A verdade eacute que seja na comeacutedia aristofacircnica ou no auto suassuniano a estrutura

das cenas revela a construccedilatildeo estrateacutegica que ambos os autores utilizam para criticar e

moralizar atraveacutes de piadas ridicularizaccedilotildees polifonias discursivas e ironias que satildeo

facilmente recebidas e aceitas pelo puacuteblico que diante dos gestos e vozes das personagens

conseguem ser partiacutecipes da ideia gerando empatia e cumplicidade cocircmicas imediatas

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TERCEIRO ATO

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3 AS DUAS PECcedilAS ndash O POETA USA MAacuteSCARAS

Eacute fato que associado aos tempos aacuteureos do teatro grego da Eacutepoca Claacutessica estaacute

sem duacutevida o uso da maacutescara Vaacuterias tecircm sido as razotildees apontadas para justificar este fato

tais como a necessidade de melhorar a projeccedilatildeo vocal a possibilidade de facultar aos

espectadores uma visualizaccedilatildeo mais eficaz das personagens ou a exigecircncia do recurso a um

adereccedilo imprescindiacutevel num teatro onde natildeo representavam mulheres

O termo grego prosopon 19 segundo Castiajo (2012) significa lsquofacersquo ou lsquomaacutescararsquo

designava este indispensaacutevel adereccedilo confeccionado com fino linho estucado que era

composto por uma peruca de cabelo natural que podia ser curto ou comprido e de vaacuterias

cores e por um rosto que se ajustava agrave cabeccedila do ator e que possuiacutea apenas uma abertura

para os olhos e outra para a boca bastante alargadas para facilitar a visibilidade da audiecircncia

e para obviamente permitir as condiccedilotildees necessaacuterias ao desempenho do ator a visatildeo e a

emissatildeo vocal Eacute preciso lembrar aqui que como siacutembolo do teatro tatildeo conhecido a maacutescara

era um recurso usado para ampliar a voz do inteacuterprete especialmente na declamaccedilatildeo e ateacute

hoje usamos o termo ldquovoz na maacutescarardquo que corresponde ao aspecto da ressonacircncia superior

o elemento que amplifica a voz fator de grande importacircncia no trabalho do ator capaz de

impulsionar sua voz sem esforccedilo ou com um miacutenimo esforccedilo e ser ouvido plenamente por

todos os ouvintes presentes na plateia

Alguns estudiosos como Pickard-Cambridge (1953) defendem que as primeiras

maacutescaras usadas durante a Idade MeacutediaEacutepoca Claacutessica se caracterizavam por serem bem

mais individualizadas e a falta de expressividade que as feiccedilotildees da maacutescara assumiam

durante a encenaccedilatildeo despertava no entanto no puacuteblico significados muacuteltiplos quando o seu

uso era conjugado com os elementos que constituem o schemandash a postura e os movimentos ndash

a voz humana dos quais nos ocuparemos mais a frente mas que contribuiacuteam de forma

contundente para transmitir agrave audiecircncia sobretudo emoccedilotildees e estados de espiacuterito vividos pelas

personagens que o uso da maacutescara natildeo permitia que transparecessem

Ainda de acordo com Castiajo (2012) essas maacutescaras eram tiacutepicas da comeacutedia

chamadas de maacutescaras-retrato e atraveacutes delas cuja existecircncia eacute atestada pela tradiccedilatildeo

recorria-se a traccedilos comuns das figuras puacuteblicas para se efetivar as representaccedilotildees no espaccedilo

cecircnico

19 Marshall (1999 188) defende que o fato de etimologicamente o termo grego significar tanto lsquofacersquo como lsquomaacutescararsquo eacute um exemplo claro de como estes dois conceitos se imiscuiacuteam no pensamento grego In CASTIAJO Isabel O Teatro Grego em Contexto de Representaccedilatildeo IUCV Portugal Coimbra 2012

67

De qualquer forma e apesar deste caraacuteter impessoal das maacutescaras e da distacircncia que separava atores e espectadores o sexo e a idade dos atores mascarados poderiam ser identificados pelo puacuteblico pois as maacutescaras brancas eram postas em cena para representar uma personagem feminina para uma masculina uma escura Em relaccedilatildeo agrave idade era possiacutevel distinguir trecircs geraccedilotildees diferentes jovens adultos e velhos Assim da combinaccedilatildeo destas duas variaacuteveis resultaram seis tipos convencionais de maacutescaras diferentes usadas tanto na trageacutedia como na comeacutedia a de homem velho (geron) cuja face era escura a barba e os cabelos brancos e com a particularidade de possivelmente ser calvo a de homem maduro (aner)[] (CASTIAJO 2012p8)

Certo eacute que parece legiacutetimo concordar com Marshall (1999) quando afirma que o

uso da maacutescara resulta mais do fato de o espaccedilo de performance ser apropriado para isso do

que da ideia de ser essencial representar mascarado para se transmitir a moral discursiva eou

a consciecircncia de um outro fato que sugere que o motivo subliminar que estaacute na base do uso

da maacutescara nos tempos mais remotos do teatro prende-se a um assunto seacuterio deixar para

traacutes o deus no santuaacuterio o outro ldquoeurdquo criado em sua honra para que este natildeo fosse transposto

para a sociedade real

Em Acarnenses a paroacutedia reveste o rosto da personagem a partir do Teacutelefo traacutegico

de Euriacutepides que em cena estaacute a serviccedilo do cocircmico mascarado como outro perfeito para a

realizaccedilatildeo de um objetivo maior a obtenccedilatildeo da paz

Em Suassuna a ldquoGrande Vozrdquo que inicia a peccedila eacute um Palhaccedilo ndash um mascarado ndash

que de forma carnavalesca apresenta agrave audiecircncia desde os elementos cecircnicos aos

personagens adiantando que o trabalho que seraacute posto em cena se trata de um julgamento

para o exerciacutecio e restabelecimento da moralidade e que ali os proacuteprios espectadores se

reconheceratildeo nos vaacuterios outros duplos que se disfarccedilaratildeo para alcanccedilar o objetivo do autor

que eacute moralizar pelo riso

31 Os gestos a vestimenta o corpo e o disfarce

A comeacutedia pautava-se por uma maior liberdade nas marcaccedilotildees cecircnicas nos

movimentos e nos gestos e por uma maior verossimilhanccedila com a realidade e segundo Pickard-

Cambridge (1953) embora houvesse tambeacutem alguns gestos tiacutepicos ndash como o gesto chamado de

ldquogansordquo executado atraveacutes das matildeos e que simulava o bico de um ganso usado para indicar que

estavam a ser proferidas palavras sem sentido Era tambeacutem comum assistir-se nas comeacutedias a

gestos praticados na trageacutedia mas sob a forma de paroacutedia

68

Apesar da quase inexistecircncia de indicaccedilotildees textuais do autor eacute possiacutevel

reconstruir a movimentaccedilatildeo cecircnica dos atores a partir de indicaccedilotildees dadas pelos proacuteprios de

referecircncias presentes em escoacutelios 20 das representaccedilotildees dos vasos e ainda levando em conta

uma forma de arte muito semelhante a oratoacuteria seguida do gesto por exemplo falar com

determinado tipo de pose colocando a matildeo por baixo da tuacutenica ndash como era tiacutepico da oratoacuteria e

como se pode visualizar em vasos gregos de representaccedilotildees teatrais ndash ou executar movimentos

circulares ndash situaccedilatildeo que se depreende ter acontecido natildeo soacute no contexto teatral como tambeacutem

na realidade dos tribunais

Sob o vieacutes da representaccedilatildeo cecircnica e da importacircncia de seus elementos para criar a

rede de significados junto ao puacuteblico Mate (2011) afirma sobre o gesto-gestual e o

gestualizaacutevel

Importante agrave execuccedilatildeo das cenas o gestual passa pelo corpo do ator que na condiccedilatildeo de ser social irradia complexa e muacuteltipla gama simboloacutegica Levando o puacuteblico a promover uma relaccedilatildeo fundamentada no jogo de decifraccedilatildeo de siacutembolos tanto enigmaacuteticos (mais difiacuteceis de serem traduzidos) e de alegorias (siacutembolos facilmente traduziacuteveis) A troca entre ambos (atores e puacuteblico) ocorre quando o texto que intermedia essa relaccedilatildeo na condiccedilatildeo de um ldquotecido simboacutelicordquo transforma-se em gesto Na condiccedilatildeo de uma fratura do cotidiano o espetaacuteculo que acontece no tempo e no espaccedilo compreende um grande arcabouccedilo de gestualizaccedilatildeo esteacutetico-social

De qualquer forma fosse qual fosse a natureza dos gestos estes necessitavam de

ser executados em grande escala de forma a serem perceptiacuteveis pelos espectadores mais

distantes e por isso eacute expectaacutevel na opiniatildeo de DrsquoArnott (1989) que eles tivessem mais um

cariz funcional do que legitimidade teatral ateacute porque eram resultado de um sem nuacutemero de

convenccedilotildees Em Acarnenses por exemplo a movimentaccedilatildeo acentuada pela dificuldade

estrateacutegica do mendigo resulta natildeo soacute no princiacutepio da pena junto a alguns espectadores e

acusadores como tambeacutem reforccedila na proacutepria audiecircncia a identificaccedilatildeo com a dor do

apresentado

No Auto da Compadecida apoacutes um toque de clarim o Palhaccedilo figura tiacutepica das

apresentaccedilotildees circenses entra e como ocorre durante todo o espetaacuteculo conduz com ajuda do

gestual a encenaccedilatildeo desempenhando a funccedilatildeo de narrador educador dos espectadores pois

20 Para a normatizaccedilatildeo de algumas palavras gregas jaacute dicionarizadas utilizamos a forma de acordo como que consta no Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa (2008) Escoacutelio (gr σχόλιον scholion comentaacuterio interpretaccedilatildeo) satildeo notas gramaticais ou de criacutetica aos autores antigos

69

no lugar do autor anuncia o caraacuteter moralizador e religioso da peccedila na qual haacute um combate

ao mundanismo visto pelo autor como uma praga de sua igreja Suassuna por considerar-se

digno de falar sobre tal tema deixa-se ser representado por um palhaccedilo para indicar que sabe

mais do que ningueacutem e por acreditar que o povo sofre e tem direito agrave defesa justa

Outro aspecto que deve ser observado durante boa parte da peccedila satildeo as matildeos

retraiacutedas de Joatildeo Grilo as incontaacuteveis viradas de cabeccedila e as baixadas de olhos revelam natildeo

tatildeo somente sua falta de posicionamento social visiacuteveis nos mais variados e longiacutenquos

lugares do sertatildeo brasileiro como abrem para o leitor-espectador a compreensatildeo do que seria

um instante uacutenico no qual o Grilo planeja minuciosamente sua estrateacutegia de convencimento

da audiecircncia e de seus acusadores e defensores

O leitor atento logo percebe que seja na comeacutedia aristofacircnica ou no auto de

Suassuna o gesto corresponde a uma determinada atitude do corpo (que incorpora as

determinaccedilotildees histoacuterico-sociais em seu sentido estrito e restrito) que no teatro efetiva-se por

meio de siacutembolos sonoros e duplamente gestuais intenccedilatildeo por meio da qual a palavra se

projeta traduzida gestualmente

Quem natildeo codificou os gestos propostos pelos olhos e cabeccedila de Chicoacute ao

procurar no bolso cigarro para contar agrave audiecircncia seus causos que ganham vida no

imaginaacuterio popular Eacute neste universo miacutemico que convidamos o leitor a beber e entender

como nos garante Stanford (1983) que estes gestos convencionais para traduzir a intenccedilatildeo do

autor executados pelos personagens dotados de sensaccedilotildees e por vezes reveladores de

estrateacutegias moralizantes satildeo atemporais e indispensaacuteveis agrave tessitura da obra para a

compreensatildeo dos que assistem e chegam a vivenciar o encenado

Segundo Jameson (1999) o gestus ao dividir a apreensatildeo do espectador provoca

um conjunto de reflexotildees Vecirc-se algo que ao expressar variadas e contraditoacuterias conotaccedilotildees

induz ao cotejamento agrave contraposiccedilatildeo de leituras O espectador afasta-se do que vecirc para

aproximar-se da vida que vive e a partir daiacute voltar agrave obra Em movimento dialeacutetico pode-se

ver aleacutem do aparentemente apreensiacutevel

[] gestus eacute o operador de um efeito de estranhamento no sentido proacuteprio e em particular que o estranhamento deriva da superposiccedilatildeo de cada um destes significados sobre os demais mostrando-nos por exemplo como um movimento involuntaacuterio de matildeo poderia em certas circunstacircncias [] contar como um fatiacutedico ato histoacuterico com consequumlecircncias seacuterias e irreversiacuteveis [] eacute uma superposiccedilatildeo e um estranhamento que natildeo apenas nos faz entender o elemento narrativo especiacutefico a uma luz nova e transformadora mas tambeacutem muda nossas ideias sobre o que eacute um simples gesto fiacutesico e sobre o que ao mesmo tempo conta como um acontecimento histoacuterico (JAMESON 1999 p110)

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Responsaacutevel tambeacutem pelo convencimento da audiecircncia e como defende

Pickard-Cambridge (1953) o vestuaacuterio estava a serviccedilo dos gestos desempenhando um

importante papel (se natildeo o mesmo) na determinaccedilatildeo pelo puacuteblico do estatuto social

representado pelas personagens cujas caracteriacutesticas podiam facilmente ser expressas atraveacutes

das cores texturas e designs No entanto eacute impossiacutevel determinar com exatidatildeo os figurinos

usados pelos atores nos primeiros tempos do teatro Este fato encontra comprovaccedilatildeo quando

nos lembramos do Teacutelefo de Acarnenses ou do ldquomendigordquo encenado por Severino para entrar

na cidade sem ser denunciado e que em ambos os casos o vestuaacuterio se caracteriza por uma

maior simplicidade e uma maior aproximaccedilatildeo agrave mendicacircncia

Em Acarnenses no momento em que eacute ameaccedilado pelos indignados habitantes de

Acarnas que constituem o Coro Diceoacutepolis necessita de um discurso forte o suficiente para

convencer aqueles homens das boas razotildees das suas treacuteguas privadas Nada como procurar

Euriacutepides e solicitar-lhe os andrajos que tatildeo bem serviram agrave eloquecircncia de Teacutelefo (vv 393-

479) E diante de uma longa lista de personagens andrajosas Diceoacutepolis encontra o seu

Teacutelefo Disfarce perfeito Eacute evidente aqui a noccedilatildeo de que a personagem dramaacutetica natildeo eacute

apenas um conjunto de palavras proferido agrave sombra de um nome mas eacute uma entidade sujeita a

uma construccedilatildeo que decorre das proacuteprias regras e exigecircncias do drama enquanto espetaacuteculo Acarnenses traz o enredo de acordo com a necessidade de defesa colocando o protagonista em maus lenccediloacuteis por ter feito treacuteguas com o inimigo espartano Teacutelefo era mesmo a personagem que melhor se encaixava como disfarce para a defesa do poeta e do protagonista O Teacutelefo de Aristoacutefanes quebra a ilusatildeo dramaacutetica e o paacutethos de que a trageacutedia depende pois enquanto o Teacutelefo de Euriacutepides natildeo se disfarccedila no palco mas parece entrar disfarccedilado de acordo com Foley (1996 135-7) o espectador de Aristoacutefanes vecirc Diceoacutepolis vestir os trapos de Teacutelefo e comeccedilar a se comportar como um mendigo jaacute na cena de aquisiccedilatildeo dos acessoacuterios do disfarce pelo exagero do detalhe e da atuaccedilatildeo de Diceoacutepolis torna-se demasiadamente realiacutestico e natildeo traacutegico Tambeacutem por expor o mecanismo do ekkyacuteklema (408) no momento em que Diceoacutepolis chama Euriacutepides para fora de casa pode sugerir que a comeacutedia desmascara o gecircnero seacuterio mostrando os bastidores do teatro traacutegico mas acrescentando o mesmo mecanismo a sua proacutepria ilusatildeo cocircmica Se o disfarce era para causar compaixatildeo aos acarnenses como ele poderaacute funcionar sem o paacutethos traacutegico (POMPEU 2004 p 83-98)

A escolha de Diceoacutepolis nos assegura que aliado aos gestos o disfarce traduz-se

na melhor estrateacutegia para convencer seus algozes

JUSTINOacutePOLIS Tu compotildee de peacute pra riba Podenotaacute de peacutes no chatildeo por isso tu compotildee os manco Mas por que tu taacute vestido cumrsquosmulambo da trageacutedia Rocircpas de daacute doacute Por isso tu compotildee os ismoleu Mas te imploro pelos teus joeio Euriacutepides Daacute pra mim um mulambo daquela peccedila antiga

71

Pois tenho que falaacute pro coro umleriado grande Ela traz a morte srsquoeufalaacute mal (vv 410-417)

Elemento indispensaacutevel aos planos do heroacutei camponecircs o disfarce se constituiraacute

como mateacuteria prima da accedilatildeo do protagonista ameaccedilado pelo coro Na cena transcrita a seguir

o proacuteprio Diceoacutepolis revela a importacircncia da indumentaacuteria do mendigo para que o torne mais

digno de pena e possa reforccedilar sua estrateacutegia de convencer o coro

EURIacutePIDES Quais trapos Acaso aqueles com que aqui Eneu O coitado do velho concorria JUSTINOacutePOLIS De Eneu natildeo era era de ocirctro mais miserave EURIacutePIDES Os de Fecircnix o ceguinho JUSTINOacutePOLIS Natildeo de Fecircnix natildeo Havia ocirctro mais miserave que Fecircnix EURIacutePIDES Que mantos esfarrapados o homem me pede Seraacute que falas dos de Filoctetes o mendigo JUSTINOacutePOLIS Dele natildeo de um muito muito mais ismoleu EURIacutePIDES Acaso queres os mantos sujos Que Belerofonte tinha este coxo aqui JUSTINOacutePOLIS Natildeo era Belerofonte Mas tambeacutem o tipo era Mancoismoleuquexudo bom de laacutebia EURIacutePIDES Sei quem eacute o homem o miacutesioTeacutelefo JUSTINOacutePOLIS Eacute isso Teacutelefo Dele me daacute eu te suplico os mulambo EURIacutePIDES Oacute rapaz daacute-lhe os trapos do Teacutelefo Estatildeo por cima dos trapos do Tiestes No meio dos de Ino Aqui tens toma laacute (vv 416-434)

Com base nos estudos de Mate (2011) sobre o gestual percebemos a intensidade

causada por este elemento da cena cocircmica durante todo o Auto da Compadecida nas atitudes

de Joatildeo Grilo no balanccedilar do corpo desconsertado nas matildeos que evidenciam a ansiedade de

vinganccedilas contra seus patrotildees ndash o padeiro e a mulher ndash nas viradas de ombro e cabeccedilas tatildeo

comuns na cena social dos longiacutenquos lugares do Nordeste 21 brasileiro Com isso puacuteblico e

personagem se reconhecem na compreensatildeo do que seria um momento para aleacutem do riso do

luacutedico mas plenamente do social que ali ganha vida e ao mesmo tempo se finda nas accedilotildees e

histoacuterias contadas recuperadas da tradiccedilatildeo oral

21 ALBUQUERQUE JUacuteNIOR Durval Muniz de A invenccedilatildeo do Nordeste e outras artes p 66

72

Eacute este o Nordeste universal de Ariano Suassuna lugar de profunda mistura onde o

profano e o sagrado se completam pelos recortes natildeo somente geograacuteficos mas humanos e

imagiacutesticos que servem de ferramentas para autores que voltam suas literaturas para falar da

condiccedilatildeo humana de sobreviver numa regiatildeo tatildeo contraditoacuteria nas incontaacuteveis Taperoaacute que

pulam dos livros e telas e se misturam agrave nossa realidade de forma tatildeo atualizada e recorrente

O Nordeste natildeo eacute um fato inerte na natureza Natildeo estaacute dado desde sempre Os recortes geograacuteficos as regiotildees satildeo fatos humanos satildeo pedaccedilos de histoacuteria magma de enfrentamentos que se cristalizaram satildeo ilusoacuterios ancoradouros da lava da luta social que um dia veio agrave tona e escorreu sobre este territoacuterio O Nordeste eacute uma espacialidade fundada historicamente originada por uma tradiccedilatildeo de pensamento uma imagiacutestica e textos que lhe deram realidade e presenccedila (ALBUQUERQUE2011 p63)

Portanto eacute nessa fonte muacuteltipla de (in)certezas que cortam o universo miacutemico que

Aristoacutefanes e Suassuna nos convidam a entender e deles beber como nos garante Stanford

(1983 85-87) que os gestos convencionais que abrem espaccedilo para a leitura social do autor

estatildeo perfeitamente ligados ao seu contexto fato que desperta no leitorouvinte a mesma teia

de sentidos e sensaccedilotildees vivenciadas pelo autor em seu jogo de enganar para ganhar como

acontece durante o julgamento de Diceoacutepolis pela assembleia em Acarnenses e com Joatildeo

Grilo e os demais no Auto da Compadecida considerandoeacute claroa troca simboacutelica de

conhecimento sobre o encenado que compreende natildeo soacute oral como tambeacutem o gestualizaacutevel

(in)visiacutevel

Assim como as maacutescaras e os gestos o vestuaacuterio constitui-se como um importante

papel (se natildeo mesmo o mais importante) na determinaccedilatildeo pelo puacuteblico do estatuto social

representado pelas personagens cujas caracteriacutesticas podiam facilmente ser expressas atraveacutes

das cores texturas e designs

Se haacute juiacutezes disfarccedilados de vespas um Teacutelefo aristofacircnico indumentado para o

convencimento dos juiacutezes da assembleia que veem Diceoacutepolis como real e ao mesmo tempo o

ilusoacuterio travestido de mendigo para ganhar natildeo perdatildeo de seus algozes mas apenas justificar

seus benefiacutecios Assim devemos pontuar a emergecircncia literaacuteria de Ariano Suassuna ao

colocar seu Teacutelefo em Taperoaacute quando para natildeo ser reconhecido Severino entra na cidade e

em nosso imaginaacuterio vestido tambeacutem de mendigo Em ambos os casos o poeta representou

seu projeto de enganar o mundo em cena pelo puacuteblico que assiste ao espetaacuteculo preso agrave cena

seguinte que alimentaraacute ao seu imaginaacuterio em consonacircncia com o dito pelo poeta romano

Petrocircnio (c 27-66 AD) Mundus vult decipi ergo decipiatur (O mundo quer ser enganado

portanto que seja enganado)

73

Mesmo sendo impossiacutevel determinar com exatidatildeo os figurinos usados pelos

atores nos primeiros tempos do teatro haacute registros que asseguram que figurinos traacutegicos se

baseavam no manto com que Dioniso era frequentemente representado e no que concerne agrave

comeacutedia o vestuaacuterio tiacutepico usado caracterizava-se pela carga grotescamente acentuada

visiacutevel quer na forma como o corpo aparecia enchumaccedilado quer no uso de uma tuacutenica ndash

chiton ndash justa e curta o suficiente para exibir o falo -phallos

O certo eacute que a vestimenta o corpo e o disfarce existem para o Teatro de uma

forma indissociaacutevel se reconstroem a cada cena e em unidade criam e recriam expectativas e

realidades na audiecircncia que assiste agrave peccedila e a vivencia

74

QUARTO ATO

75

4 O AUTOR E SEUS OUTROS NA COMEacuteDIA E NO AUTO

No Quarto Ato tanto em Acarnenses como no Auto da Compadecida

ressaltamos que a figura controversa do poeta esteve pautada pela multiplicidade apresentada

nas accedilotildees cecircnicas das personagens reforccedilando uma atitude dupla polifocircnica e multifacetada

A verdade eacute que a figura do duplo sempre foi e tem sido desde a Antiguidade

insistentemente tematizada sob a inspiraccedilatildeo da literatura aristofacircnica e mais precisamente nos

seacuteculos XVI e XX nos autos de Gil Vicente e de Ariano Suassuna lugar onde encontrou um

terreno feacutertil e vigoroso por ser o ldquoduplordquo revestido por uma aura de misteacuterio e ao esmo

tempo de moralidade No palco do (in)certo que nos revela o teatro analisamos o tema em

duas obras Acarnenses de Aristoacutefanes ndash versatildeo matuta de Ana Maria Ceacutesar Pompeu ndash e no

Auto da Compadecida de Ariano Suassuna tendo por meta ressaltar a partir da accedilatildeo cecircnica a

presenccedila do poeta e de seu discurso moralizante em defesa da cidade

Como tema relacionado agraves vaacuterias vivecircncias humanas o duplo persiste como

temaacutetica sempre pungente e revisitada A ideia do duplo tem estado presente na literatura

desde a Antiguidade retornando na contemporaneidade com ecos da tradiccedilatildeo claacutessica uma

vez que a humanidade vive cercada de elementos relacionados agrave duplicidade e que remetem a

questotildees acentuadamente marcantes como por exemplo o caraacuteter existencial ligado ao ser

masculinofeminino homemanimal espiacuteritocorpo vidamorte ou aos miacutesticos deusdiabo

anjodemocircnio ceacuteuinferno entre outros Desse modo eacute sabido que a praacutetica e a vivecircncia

dessas dualidades desde os primoacuterdios da civilizaccedilatildeo tem conduzido o homem se

(re)conhecer e debater-se sobre a anguacutestia e as dores do duplo

Segundo Mello (2000) a ideia de duplicidade do Eu eacute um conceito antigo e no

que se refere agrave literatura esse tema desperta algumas questotildees inquietantes capazes de nos

levar a reflexotildees sobre - Quem somos - o que a anguacutestia representa senatildeo a falta ndash ou o que

seremos depois da morte Um exemplo praacutetico da temaacutetica do duplo estaacute presente em

narrativas literaacuterias como Metamorfose de Kafka Noite na Taverna de Aacutelvares de Azevedo

O homem duplicado de Joseacute Saramago Don Quixote de La Mancha de Cervantes ou no

conto ldquoO espelhordquo de Machado de Assis e de forma mais especiacutefica em Acarnenses de

Aristoacutefanes e no Auto da Compadecida de Ariano Suassuna

Sob o vieacutes do duplo na literatura Mello ainda afirma que a noccedilatildeo da outra metade

do sujeito expressa para a literatura um novo pensar sobre a identidade pois o indiviacuteduo pode

reconhecer-se como o proacuteprio do que se trata atraveacutes de representaccedilotildees metafoacutericas assim o

desdobramento do eu adquire vocaccedilatildeo especial na literatura

76

A literatura tem uma vocaccedilatildeo especial para tematizar o duplo jaacute que no ato de criar o autor se desdobra em narrador e atraveacutes de seus heroacuteis libera partes aprisionadas em si mesmo que estatildeo sob a maacutescara de um Eu particular fixo no molde da personalidade (MELLO 2000 p 123)

Para uma maior aproximaccedilatildeo com o tragicocircmico no contexto cecircnico do duplo

retornamos ao teatro que na Greacutecia Antiga surgiu a partir de manifestaccedilotildees a Dioniso deus

do vinho da vegetaccedilatildeo do ecircxtase e das metamorfoses Pouco a pouco os rituais dionisiacuteacos

foram se modificando e se transformando em trageacutedias e comeacutedias Entretanto as diferenccedilas

entre o traacutegico e o cocircmico nunca foram tatildeo bem delineadas

Todavia cabe salientar que o Duplo sempre foi um tema profundamente

instigante da cultura humana e sempre esteve essencialmente relacionado vaacuterias aacutereas do

conhecimento como na Filosofia Psicologia Literatura e na Mitologia atuando como

geradora de ambiguidades Na Antiguidade o Duplo era para a sociedade a representaccedilatildeo ou

o reflexo do idecircntico ou seja prevalecia a ideia de Duplo como o homogecircneo manifestaccedilatildeo

do igual

No entanto natildeo permaneceu dessa maneira tendo com o passar do tempo a

partir do seacuteculo XVIII se tornado heterogecircneo isto eacute o Duplo passa a representar o desigual

ou em outras palavras o oposto em Suassuna o arremedo cocircmico Este fato encontra

comprovaccedilatildeo quando procuramos as diferenccedilas existentes entre o traacutegico e o cocircmico tatildeo bem

delineadas na sociedade Greacutecia Claacutessica

41 O par cocircmico na tradiccedilatildeo literaacuteria em Aristoacutefanes e Ariano Suassuna

Nossa pesquisa parte da hipoacutetese especiacutefica de que a dimensatildeo do duplo como o

outro do poeta em Aristoacutefanes e Ariano Suassuna estaacute estruturada a partir da loacutegica binaacuteria do

par cocircmico um par composto pelas intenccedilotildees das personagem e pelas manobras exercidas

pelo poeta para dizer por traacutes das cortinas o que deve ser de conhecimento de todos

Portanto nos propomos enquanto espectadores traccedilar a partir da comeacutedia e do auto diferentes

gecircneros literaacuterio o estudo do par cocircmico de forma a analisar a constituiccedilatildeo dos outros

poeacuteticos em cada uma das obras do corpus selecionado

Neste esteio haacute de se considerar um estudo significativo sobre o assunto

mencionado no trabalho de Beltrametti (2000) que analisa as caracteriacutesticas dos pares

cocircmicos em Aristoacutefanes nos diaacutelogos platocircnicos e no dramaturgo latino Plauto A autora

define em termos gerais a dupla cocircmica como 1) uma unidade dramaacutetica de dois elementos

77

inseparaacuteveis 2) um pivocirc estrutural 3) um noacute semacircntico que liga linhas mais importantes de

senttido

Da caracterizaccedilatildeo proposta por de Beltrametti redefinimos o par cocircmico

aristofacircnico e suassuniano como um esquema binaacuterio composto de dois poacutelos opostos e

complementares o zombador e o zombado o palhaccedilo e o tolo que compotildeem o noacute semacircntico

da accedilatildeo cecircnica que nas obras que compotildeem o corpus deste trabalho estatildeo ao nosso ver a

serviccedilo da voz autoral

Em primeiro lugar como fio de uma produccedilatildeo anterior reconhecemos os

antecedentes literaacuterios do par cocircmico aristofacircnico na Odisseia de Homero quando encontra o

seu modelo mais relevante no binocircmio de Ulisses e do Ciclope no Canto IX Em segundo

lugar traccedilamos a presenccedila da dupla cocircmica suassuniana no auto influenciado pela produccedilatildeo

grega e pela literatura de Gil Vicente de cuja obra nos ocuparemos no V Ato

Entretanto cabe ressaltar que o objetivo central desta parte do nosso estudo eacute

explorar os traccedilos distintivos da dupla cocircmica nesses diferentes gecircneros tendo como base o

duplo poeacutetico e a maneira pela qual os comedioacutegrafos manipulam as accedilotildees das personagens

para construir a interpretaccedilatildeo do puacuteblico

A comeacutedia Acarnenses a primeira do corpus aristofacircnico conservado coloca em

cena a polecircmica poliacutetica entre uma posiccedilatildeo de guerra que desejava a continuidade da guerra

contra Esparta e a posiccedilatildeo contraacuteria que era impulsionada pelo sentimento de paz defendida a

partir do discurso do heroacutei cocircmico Diceoacutepolis

De maneira estrateacutegica Aristoacutefanes age na peccedila de forma a esclarecer para a

audiecircncia sobre os efeitos negativos para a cidade caso a guerra natildeo tenha um fim fato que se

comprova nos estudos de Zumbrunnen (2004) ao analisar a dimensatildeo poliacutetica e persuasiva da

peccedila categorizando-a em uma linha usual as intenccedilotildees seacuterias para aconselhar e influenciar o

puacuteblico em favor do fim da guerra

Em nossa opiniatildeo e seguindo MacDowell (1995) as comeacutedias de Aristoacutefanes

tinham que ser claras e de faacutecil entretenimento para os atenienses comuns atitude que se

justifica pela posiccedilatildeo contraacuteria do proacuteprio autor em relaccedilatildeo agrave guerra estreitada e assegurada

pelo discurso poliacutetico pronunciado na assembleia

Partimos da hipoacutetese especiacutefica de que o par cocircmico na comeacutedia aristofacircnica

constitui um dos seus principais recursos de persuasatildeo cocircmica uma vez que estaacute associado agraves

expectativas do olhar do puacuteblico na interaccedilatildeo cecircnica ndash que tambeacutem se constitui como apartir

do trabalho proposto pelo autor Isso significa que o esquema binaacuterio defendido por

Beltrametti jaacute referido nesta pesquisa funciona por si soacute como uma interpretaccedilatildeo chave para

78

o puacuteblico os telespectadores podem antecipar que o duplo autoral - Diceoacutepolis - seraacute o

condutor central atacado e ridicularizado ndash zombador e acusador ao mesmo tempo no plano

interno da accedilatildeo dramaacutetica

Eacute importante ressaltar no entanto que tanto a comeacutedia de Aristoacutefanes como no

auto de Ariano Suassuna natildeo apresentam personagens idealizados nem absolutamente

indiferentem ao ridiacuteculo ao bobo ou ao piacutecaro As figuras do heroacutei Diceogravepolis e a do bobo

Joatildeo Grilo natildeo satildeo exceccedilotildees

Obscura como outros siacutembolos e projeccedilotildees coletivas a figura do duplo de

Diceoacutepolis em Acarnenses e de Joatildeo Grilo no Auto da Compadecida eacute cocircmica e criacutetica visto

que satildeo elementos que parodiam o serviccedilo divino cantando errado e fazendo sermotildees

moralizantes travestindo-se usando maacutescaras e passeando com maestria nos mundos popular

e erudito representando coletivos pelo poder da gargalhada do riso seacuterio e da tolice formas

mais sutis para se levar ao conhecimento da audiecircncia o desdobramento da consciecircncia ao

mesmo tempo a do idiota e a do bufatildeo que a utiliza como maacutescara e a coloca em praacutetica na

defesa do cidadatildeo injusticcedilado

Klein (1998) assegura que a dualidade implica certa ambiguidade constitutiva

na figura do heroacutei cocircmico e de seu discurso premissa apresentada em Acarnenses e por

extensatildeo aplicada por noacutes no Auto da Compadecida Em ambas as peccedilas o duplo poeacutetico eacute

estuacutepido e saacutebio grosseiro e sutil escravo das pulsotildees e senhor de si mesmo menos e mais

humano como nos afirma Pompeu (2004) ao citar Beltrametti quando a autora escreve que

no teatro de Aristoacutefanes haacute dinacircmicas de pares que satildeo mais complexas

Ela conclui que o teatro de Aristoacutefanes tem seus duplos que satildeo ldquoesses outros si mesmos que tecircm por funccedilatildeo instaurar uma tensatildeo com o si dos protagonistas das comeacutedias fazendo com que as perspectivas se entrelacem tatildeo estreitamente que acabem por se perderrdquo Beltrametti entende ser o par cocircmico ldquo1 Unidade dramaacutetica de dois elementos indissociaacuteveis 2 Princiacutepio e ao mesmo tempo base estrutural 3 Noacute semacircntico onde se ligam as mais importantes linhas do sentidordquo (POMPEU p12)

Assim percebe-se que tanto no teatro aristofacircnico quanto no teatro popular de

Ariano Suassuna o conhecimento eacute expresso natildeo somente pelas maacutescaras e gestos como

tambeacutem pelas vozes cocircmicas que conduzem a plateia ao conhecimento da condiccedilatildeo humana

tatildeo bem levada a seacuterio pelos autores em seus discursos criacuteticos sendo portanto uma nova

forma de combinar velhos ingredientes como o riso frouxo e estridente educador aacutecido da

sociedade que encontra espaccedilo semacircntico atraveacutes dos outros do poeta que se organizam em

uma nova composiccedilatildeo natildeo soacute marcada pela cena teatral mas pela inteligecircncia de um autor

79

que pensa a sociedade para aleacutem das mazelas das injusticcedilas vivenciadas impostas pelo estado

de guerra ou pela exploraccedilatildeo das instituiccedilotildees sociais

Neste ambiente duplicadopolifocircnico observamos que a atitude educadora do

poeta bem como as accedilotildees das personagens que satildeo formadoras da estrutura do discurso

moralizador e porque natildeo dizer denunciador formado a partir da presenccedila de vaacuterias vozes

como a do proacuteprio poeta Haacute de se pontuar pel afirmativa acima que este fato se deve porque

as ldquovozes autoraisrdquo tecircm sido um tema de grande interesse para muitos estudiosos e para todos

que se deparam com a problemaacutetica da identificaccedilatildeo desta quando articulada agrave formaccedilatildeo dos

duplos dentro da Comeacutedia Antiga ou no Auto

Como o Proacuteprio Ariano Suassuna bem jaacute colocou para a construccedilatildeo do Auto da

Compadecida recorreu a uma tradiccedilatildeo cocircmica bastante viva que eacute a literatura oral e popular

do Nordeste dando-lhe novas formas para preservar a autenticidade Condutor de uma seacuterie

de armaccedilotildees ao personagem Joatildeo Grilo o autor conferiu a tarefa de explorar os efeitos

cocircmicos das cenas A presenccedila de Chicoacute o duplo de Joatildeo Grilo tem a mesma importacircncia

para o desenrolar dos atos visto ser ele o mentor das histoacuterias sem peacute nem cabeccedila que

divertem o puacuteblico a ponto de tambeacutem participar da criaccedilatildeo de comicidade

Para Joatildeo Grilo por estrateacutegia do autor coube uma verdadeira consciecircncia de sua

posiccedilatildeo social e a Chicoacute personagem simploacuterio coube toda inocecircncia e imaginaccedilatildeo

JOAtildeO GRILO Vocecirc eacute tatildeo sem confianccedila CHICOacute Eu sem confianccedila Que eacute isso Joatildeo estaacute me desconhecendo Juro como ele vem Quer benzer o cachorro da mulher para ver se o bicho natildeo morre A dificuldade natildeo eacute ele vir eacute o padre benzer O bispo estaacute aiacute e tenho certeza de que o Padre Joatildeo natildeo vai querer benzer o cachorro JOAtildeO GRILO Natildeo vai benzer Por quecirc Que eacute que um cachorro tem de mais CHICOacute Bom eu digo assim porque sei como esse povo eacute cheio de coisas mas natildeo eacute nada de mais Eu mesmo jaacute tive um cavalo bento JOAtildeO GRILO Que eacute isso Chico Jaacute estou ficando por aqui com suas histoacuterias Eacute sempre uma coisa toda esquisita Quando se pede uma explicaccedilatildeo vem sempre com ldquonatildeo sei soacute sei que foi assimrdquo CHICOacute Mas se eu tive mesmo o cavalo meu filho o que eacute que eu vou fazer Vou mentir dizer que natildeo tive JOAtildeO GRILO Vocecirc vem com uma histoacuteria dessas e depois se queixa porque o povo diz que vocecirc eacute sem confianccedila CHICOacute Eu sem confianccedila Antocircnio Martinho estaacute para dar as provas do que eu digo JOAtildeO GRILO Antocircnio Martinho Faz trecircs anos que ele morreu

80

CHICOacute Mas era vivo quando eu tive o bicho JOAtildeO GRILO Quando vocecirc teve o bicho E foi vocecirc quem pariu o cavalo Chico CHICOacute Eu natildeo Mas do jeito que as coisas vatildeo natildeo me admiro mais de nada No mecircs passado uma mulher teve um na serra do Araripe para os lados do Cearaacute JOAtildeO GRILO Isso eacute coisa de seca Acaba nisso essa fome ningueacutem pode ter menino e haja cavalo no mundo A comida eacute mais barata e eacute coisa que se pode vender Mas seu cavalo como foi CHICOacute Foi uma velha que me vendeu barato porque ia se mudar mas recomendou todo cuidado porque o cavalo era bento E soacute podia ser mesmo porque cavalo bom como aquele eu nunca tinha visto Uma vez corremos atraacutes de uma garrota das seis da manhatilde ateacute agraves seis da tarde sem parar nem um momento eu a cavalo ele a peacute Fui derrubar a novilha jaacute de noitinha mas quando acabei o serviccedilo e enchocalhei ares olhei ao redor e natildeo conhecia o lugar onde estaacutevamos Tomei uma vereda que havia assim e aiacute tangendo o boi JOAtildeO GRILO O boi Natildeo era uma garrota CHICOacute Uma garrota e um boi JOAtildeO GRILO E vocecirc corria atraacutes do dois de uma vez CHICOacute Corria eacute proibido JOAtildeO GRILO Natildeo mas eu me admiro eacute eles correrem tanto tempo juntos sem se apartarem Como foi isso CHICOacute Natildeo sei soacute sei que foi assim Saiacute tangendo os bois e de repente avistei uma cidade Eacute uma histoacuteria que eu natildeo goste nem de contar (SUASSUNA 2005 p25-28)

Segundo Girondon (1960) para compor o Auto da Compadecida Suassuna

inspirou-se naturalmente na comeacutedia tradicional italiana no que concerne a certos

personagens Os personagens como Joatildeo Grilo e Chicoacute emprestam de muacuteltiplas fontes seus

traccedilos os mais divertidos Satildeo os personagens ldquoheroacuteisrdquo os condutores da accedilatildeo os criados os

zanni 22 dos Italianos Mas revestem igualmente caracteriacutesticas proacuteprias dos piacutecaros23

espanhoacuteis aos tricksters 24 ingleses ao renard do fabulaacuterio francecircs medieval e ao Pedro

Malasartes da literatura popular luso-brasileira

22 A definiccedilatildeo de zanni no dicionaacuterio estaacute no popular teatro do seacuteculo XV tipo do villano dos vales de Bergamo aacutespero pobre ignorante Zanni tambeacutem eacute um bufatildeo palhaccedilo In Alessandra Mignatti La maschera e il viaggio sullorigine dello Zanni Bergamo Moretti amp Vitali 2007 23 ABRAMS David amp SUTTON-SMITH Brian loc cit 24 ABRAMS David amp SUTTON-SMITH Brian The development of the trickster in childrenrsquos narratives Journal of American Folklore90 (355) 1977 23 24

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Duplos Joatildeo Grilo e Chicoacute satildeo personagens transbordantes de vitalidade e de

artimanhas dotados de uma imensa energia na afirmaccedilatildeo de suas inclinaccedilotildees e de suas ideias

Entretanto na criaccedilatildeo literaacuteria do auto Ariano Suassuna revela todo o controle das accedilotildees

visto que nenhuma das personagens controla verdadeiramente o jogo pois satildeo arrastados pelo

processo cocircmico que se reproduz a cada cena

Assim como o duplo aristofacircnico o par Joatildeo Grilo e Chicoacute nos leva a perceber

que as paixotildees e ambiccedilotildees humanas provocam accedilotildees inconsequentes das quais os seres natildeo se

apercebem Eacute como se o autor quisesse aliar intimamente a bufonaria e a verdade humana

num todo Joatildeo Grilo eacute fanfarratildeo que se deleita sobre seu talento de conduzir bem suas

intrigas Contudo Joatildeo Grilo eacute o ldquomarginalrdquo inventivo que busca uma revanche pelas afrontas

que seus patrotildees o fazem sofrer

No plano teatral eacute justamente Joatildeo Grilo quem nos diz das intenccedilotildees do poeta

fazer rir o puacuteblico pela zombaria da proacutepria natureza humana cuja credulidade e ingenuidade

nos fazem perder a consciecircncia dos proacuteprios defeitos Atraveacutes do riso o homem toma

consciecircncia dele mesmo mitigando suas dores e angustias existenciais Todavia como poeta

cocircmico Ariano Suassuna tambeacutem quer nos fazer refletir uma vez que se o riso pode ser

determinante nas reaccedilotildees entatildeo eacute o pensamento que pode auxiliar a compreender a verdade

humana que se oculta atraacutes do riso

Joatildeo Grilo eacute o duplo poeacutetico que reverbera o pensamento de Suassuna contra as

injusticcedilas e nos ensina que de nada serve se deixar paralisar pelo medo e pela covardia eacute

preciso enfrentar as dificuldades No momento em que tudo parece perdido em que a

condenaccedilatildeo ao inferno parece inevitaacutevel ele revela uma feacute inalteraacutevel em si mesmo e se

permite um novo desafio Ele diz

Eacute difiacutecil quer dizer sem jeito Sem jeito Sem jeito por quecirc Vocecircs satildeo uns pamonhas qualquer coisinha estatildeo arriando Natildeo vecirc que tiveram tudo na terra Se tivessem tido que aguentar o rojatildeo de Joatildeo Grilo passando fome e comendo macambira na seca garanto que tinham mais coragem Quer ver eu dar um jeito nisso Padre Joatildeo (SUASSUNA 2005 p167)

Para Ariano Suassuna o palco do teatro eacute um lugar maacutegico onde as imagens

concretas se instalam na cena a cena em forma de quadros quadros dinacircmicos vivos Ao

lado destas imagens concretas ele instala imagens metafoacutericas que incorpora agrave realidade

cecircnica conduzindo o espectador para o entendimento de que o mundo encontra-se com o

teatro mas natildeo o mundo linear homogecircneo mas o mundo agraves avessas que soacute o teatro mostra e

que pode dar agrave realidade uma chance de impor-se pela ressonacircncia da gargalhada

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Por conseguinte eacute notaacutevel contudo observar que o duplo cocircmico

frequentemente utilizado por Aristoacutefanes em suas peccedilas tambeacutem encontra eco na literatura

popular de Suassuna por apresentar uma tessitura textual atravessada pelas muacuteltiplas vozes de

seus personagens constituindo-se em um fenocircmeno recorrente e natural que aponta para a

tensatildeo de uma crise profunda denunciada pelo proacuteprio poeta em seus discursos De iniacutecio

esclarecemos que em toacutepico especiacutefico trataremos da voz cocircmica entretanto utilizaremos do

termo para nos referirmos ao duplo autoral a partir da identificaccedilatildeo da produccedilatildeo discursiva

Educadores e denunciadores tanto Aristoacutefanes quanto Ariano Suassuna

constroem em seus enredos personagens que usam da autoridade conferida pelo poeta para

ressoar seus anseios e indignaccedilotildees atraveacutes do discurso Ao longo das peccedilas eles projetam seus

duplos de forma que suas proacuteprias vozes possam ser ouvidas indiretamente por traacutes de cada

ato levando o puacuteblico a crer que ouve a voz direta do poeta quer atraveacutes do coro do palhaccedilo

coreuta da paraacutebase

Como justificativa do duplo satildeo em personagens como Diceoacutepolis ou Joatildeo Grilo

que realizam a intenccedilatildeo poeacutetica e eacute ressonante pelo riso da mangofa pelos gestos

performaacuteticos pelo arremedo poeacutetico eou pelo outro travestido de a(u)tor accedilotildees

perfeitamente justificaacuteveis visto que o duplo cocircmico passa a ser o noacute semacircntico entre as

culturas grega e popular utilizando fatos do dia a dia como mateacuteria na representaccedilatildeo de algo

identificado pelo autor atraindo consequentemente a atenccedilatildeo do leitor ou espectador para a

obra

A verdade eacute que a conduccedilatildeo cocircmica e moralizante levada ao espectador encontra

espaccedilo feacutertil em ambas as obras traduzida pela accedilatildeo do poeta a partir das vozes de seus

duplos Diceoacutepolis e Joatildeo Grilo figuras conturbadas em franco desacordo com a situaccedilatildeo

promovida pelos legisladores em Atenas ou na pacata cidade de Taperoaacute Relevantes para

todo o enredo esses protagonistas descobrem-se em atitude de perfeita rebeldia conscientes

das mudanccedilas advindas de suas atitudes e como heroacuteis cocircmicos satildeo tambeacutem autores de uma

saiacuteda que nem sempre pode ser compartilhada socialmente ou compreendida

O proacuteprio Suassuna admite a influecircncia muacuteltipla que sofreu de outros estilos e

gecircneros ao apresentar a peccedila por meio dos contadores de histoacuteria do Auto Portuguecircs e do

Cordel como Chicoacute Joatildeo Grilo e o palhaccedilo responsaacuteveis diretos pela orientaccedilatildeo da

audiecircncia

Diante dessa apropriaccedilatildeo e recuperaccedilatildeo dos mecanismos narrativos da Comeacutedia e

de outros gecircneros literaacuterios como o auto que apresentam um caraacuteter atemporal torna-se

importante salientar que aleacutem de construir ldquomuacuteltiplos cocircmicosrdquo ela apresenta personagens

83

natildeo universais como os que satildeo caricaturas de pessoas que viveram em Atenas em um

momento especiacutefico A obra de Aristoacutefanes potildee em cena nomes de figuras eminentes da

Greacutecia antiga como o de poliacuteticos (Cleatildeo e Lacircmaco) pensadores (Soacutecrates) e poetas

(Euriacutepides e Eacutesquilo) A referecircncia a essas personalidades bem como o diaacutelogo com a

mitologia a histoacuteria e o teatro natildeo constituiacutea um problema para a plateia de Aristoacutefanes No

entanto para noacutes leitores de outras geraccedilotildees a percepccedilatildeo de tais referecircncias natildeo eacute assim tatildeo

simples ainda que seja fundamental para a compreensatildeo da comeacutedia

Na comeacutedia aristofacircnica a simples presenccedila de Diceoacutepolis um camponecircs que vai agrave Pnix para falar contra os horrores e caos produzidos pela guerra jaacute se configura como um ato de quebra da normalidade estabelecido pelo autor que autoriza seu duplo agrave defesa da cidade O proacuteprio discurso do personagem que eacute tambeacutem em partes a fala do poeta nos revela uma intenccedilatildeo por traacutes das atitudes daquele que para ter sua paz e celebrar no campo as dioniacutesias rurais eacute marginal no plano da obediecircncia imposta pelos legisladores que lucram com o traacutegico da guerra

Indissociaacuteveis das peccedilas e da proposta autoral as marcas do traacutegico se tornam

modelos de uma tensatildeo que provoca o riso e ficam mais salientes a partir da metade do

Segundo Ato no Auto da Compadecida com a entrada do cangaceiro e de Severino do

Aracaju travestido de mendigo representando o duplo do bem o assassino impiedoso que se

disfarccedila para enganar a cidade a exemplo do que fez Diceoacutepolis em Acarnenses ao vestir-se

de Teacutelefo para tambeacutem burlar a assembleia para justificar seu acordo de paz

Marcados pela polifonia tanto o cangaceiro-mendigo quanto o agricultor-

mendigo se opotildeem aos demais personagens uma vez que entram no jogo cecircnico para roubar a

atenccedilatildeo de seus algozes No Auto da Compadecida Severino acaba provocando a morte de

todos que estatildeo na igreja Em Acarnenses Diceoacutepolis consegue convencer a assembleia Esse

caraacuteter muacuteltiplo torna-se ainda mais evidente na cena do julgamento que abordaremos no V

Ato uma vez que as accedilotildees do poeta e de seus outros cocircmicos tornam-se ainda mais bruscas

pois num inferno tragicocircmico o leitorouvinte pode perceber toda a desconstruccedilatildeo literaacuteria

tanto do espaccedilo ndash inferno ndash quanto das figuras celestiais e demoniacuteacas que sem chegar a um

acordo deixam de certa forma a cabo de espectador o ato de condenar eou absolver as almas

E nesse jogo luacutedico e didaacutetico encenado no abrir e fechar de cortinas que o teatro

aristofacircnicosuassuniano nos proporciona enquanto expectadores haacute uma visatildeo amplamente

criacutetica das accedilotildees humanas seja pelo desejo pessoal pela injuria ou pela proacutepria paroacutedia que

tatildeo bem se propotildee ao convencimento do puacuteblico

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QUINTO ATO

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5 O POETA VAI AO INFERNO 51 Quem fala por quem

Como esclarecido anteriormente neste ponto do corpus da tese aprofundaremos

nosso estudo para identificar as ocorrecircncias marcadas pela voz poeacutetica responsaacutevel pelas

vaacuterias atitudes didaacuteticas e criacuteticas indispensaacuteveis ao conhecimento do leitor Para tanto

faremos nossa viagem ao inframundo literaacuterio tomando como base Acarnenses e Ratildes de

Aristoacutefanes o Auto da Compadecida de Ariano Suassuna e o Auto de Barca do Inferno de

Gil Vicente por sua influecircncia na obra suassuniana

Em observaccedilatildeo importante ressalto que em Acarnenses o inferno ao qual nos

referimos seraacute estabelecido pelos horrores trazidos pela guerra cujos motivos seratildeo

questionados por Diceoacutepolis diante da Pnix 25

O caraacuteter didaacutetico do texto eacute expresso pelo proacuteprio autor no verso 499 ldquoO que eacute

justo tambeacutem eacute do conhecimento da comeacutedia Ora o que eu vou dizer pode ser caacuteustico mas

justo eacuterdquo Uma marca deste caraacuteter didaacutetico pode ser visto no discurso e nos nomes de alguns

personagens que tecircm uma significaccedilatildeo alegoacuterica como Diceoacutepolis o personagem principal

significa cidade justa

A peccedila comeccedila com Diceoacutepolis assim como Joatildeo Grilo um homem do campo

forccedilado a migrar para a cidade onde vive em condiccedilotildees precaacuterias qual aguarda a reuniatildeo da

assembleia onde o tema da discussatildeo de um tratado de paz vai ser deliberado que a nosso ver

disfarccedila-se de autor ndash evindencia-se aqui o duplo autoral ndash na Pnix ainda vazia esperando do

iniacutecio da Assembleacuteia Diceopolis explica sua experiecircncia sua dor traacutegica que se refere agrave

anguacutestia vivenciada pela falta de representaccedilatildeo de autores como Eacutesquilo considerado

obsoleto na eacutepoca da guerra com a imposiccedilatildeo da moda de Euriacutepides Na versatildeo matuta de

Pompeu a abertura do proacutelogo se reforccedila pela afirmaccedilatildeo de ali ser o momento no qual o

a(u)tor demonstra as alegrias e tristezas de Diceoacutepolis (Pompeu 2014 p01 vv 9-20)

Mas num eacute que de novo tive uma docirc de trageacutedia Na vez que eu tava abestaiadim esperando Eacutesquilo Aiacute o anunciadocirc disse ldquoTeoacutegnis faz entraacute o teu corordquo Pense numa sacudida grande no meu coraccedilatildeo Mas tive outra alegria na vez que em cima do Mosco Dexiacuteteo entrocirc e cantocirc uma beoacutecia Ainda neste ano quase morri e fiquei foi zaroim vendo

25 A Pnix eacute uma colina na parte interna da cidade de Atenas onde ocorriam as assembleias populares de entatildeo In Moura Filho Lauro Inaacutecio de Transtextualidade e hermenecircutica na comeacutedia de Aristoacutefanes O poeta como mestre da cidade 2012 166f ndash Dissertaccedilatildeo (Mestrado) ndash Universidade Federal do Cearaacute

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Na vez que o Ceacuteris se entortocirc pra tocaacute o hino oacutertio Mas nunca desde que eu tomo banho Meus oacuteio ardero tanto cum sabatildeo Do jeito dacuteagora num dia de assembleia regulaacute De manhatildezinha oacute aiacute esta Pnix sem viva alma O pessoaacute na praccedila tagarela e pra cima e pra baixo

A Pnix sede da Assembleacuteia estava vazia e as pessoas conversando na aacutegora o

que era considera um testemunho da falta de interesse nas assembleias que o poeta atribui agrave

tendecircncia belicista do povo ateniense relutante em votar pela paz

O fato eacute que Aristoacutefanes parece se identificar com o caraacuteter de Diceopolis como

deduzido dos versos 440-445 quando ele se dirige aos espectadores apoacutes citar os versos do

telefone de Euriacutepedes personagem que ele argumentou a favor do fim da guerra diante da

Assembleia (Pompeu 2014 p16)

Eacute que tenho que achaacute que socirc um mendigo hoje Secirc quem socirc natildeo parececirc Os espectadocirc vatildeo sabecirc que socirc eu Mas os coreuta vatildeo ficaacute abestaiadim Pra eu troccedilaacute deles crsquouns palavreado EURIacutePIDES Eu dou pois com uma mente astuta tramas sultilezas

Para o autor em particular esta primeira cena na qual Diceoacutepolis deseja falar

sobre seus motivos para celebrar sua paz revela a importacircncia do campo na cidade de Atenas

O proacuteprio gecircnero da comeacutedia eacute entendido como um fenocircmeno urbano de origem agraacuteria

produto de o mesmo processo de formaccedilatildeo da polis em que este se tornou o centro

organizador do territoacuterio agraacuterio e exploradora de seus produtos

Em geral os problemas da guerra satildeo evidentes para os camponeses uma vez que

os campos aacuteticos foram devastados o que despertou o desejos para receber apoio dos

cavaleiros Assim o inferno promovido pela Guerra do Peloponeso (431-404) trazia era uma

condiccedilatildeo desoladora para a cidade e para o campo Este fato pode ser de acordo com

observaccedilatildeo de Plaacutecido (2007) percebido no discurso proferido por Peacutericles no qual satildeo

destadas as condiccedilotildees histoacutericas que diferenciaram Atenas e Esparta e justificaram taacuteticas

empregadas para a defesa

E se eles atacarem nosso territoacuterio por terra noacutes faremos uma expediccedilatildeo naval contra eles e natildeo seraacute o mesmo que uma parte do Peloponeso seja saqueada e que seja toda a Aacutetica eles natildeo seratildeo capazes de adquirir outras terras sem ter que lutar enquanto noacutes temos terras abundantes tanto nas ilhas como no continente Uma

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grande coisa eacute com efeito o domiacutenio do mar a refletir se focircssemos ilheacuteus quem seria menos inexpugnaacutevel do que noacutes Bem agora eacute necessaacuterio que raciocinando da maneira mais semelhante como se vocecirc fosse um ilheacuteu vocecirc abandone o campo e suas casas e vai defender o mar e a cidade

Diceoacutepolis teria que impressionar os legisladores convececirc-los dos recursos

possiacuteveis para a paz Para tanto ele acusou os priacutetanes confabular para prender Anfiacuteteo um

imortal que ia tente a paz como nos mostra Pompeu (2014) nos versos 56-58

DICEOacutePOLIS Oacute priacutetanes vocecircs tatildeo fazendo mal pra assembleia Arrastando o homem que queria fazecirc treacuteguas Pra noacutes e dependuraacute os escudo

O que se percebe nos versos eacute que um dos temas responsaacuteveis pela situaccedilatildeo de

caos na cidade eacute a manipulaccedilatildeo da democracia do ponto de vista de Aristoacutefanes pelas

autoridades que de alguma forma ganham com acirramento do caraacuteter beacutelico A mesma

reclamaccedilatildeo aparece com respeito aos embaixadores que segundo ele zombam do sofrimento

da cidade conforme os versos 75-76

DICEOacutePOLIS Oacute cidade de Cracircnao Tu num sente natildeo a mangaccedilatildeo dos embaixadocirc

Diceoacutepolis queixa-se do tempo que tem sido incapaz de celebrar a dioniacutesias por

causa das invasotildees espartanas Entretanto ele estaacute convencido de que a paz eacute a garantia das

celebraccedilotildees no campo e para isso decide se livrar da guerra geradora de toda maacute sorte para a

cidade como percebemos pelos o versos (266-267 201-202)

DICEOacutePOLIS Depois de seis ano falo contigo e volto feliz pracuteo meu povoado Eu tando livre da guerra e das coisa ruim Vou eacute entraacute e celebraacute as Dioniacutesia matutardquo

O coro se recusa a ouvir longos discursos como aconteceu com o Soacutecrates

platocircnico no Protaacutegoras ou os espartanos que receberam a embaixada dos jocircnios na eacutepoca da

rebeliatildeo antes das Guerras Meacutedicas

Desta forma o laconicismo se espalha entre os atenienses hostis agraves praacuteticas

retoacutericas da democracia Apesar dos ataques do coro que o acusa de querer concordar com os

inimigos Diceoacutepolis defende que os espartanos natildeo satildeo culpados de tudo

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Diceoacutepolis entatildeo assumindo o risco de morte elabora o discurso do justo do que

possa ser justo para a cidade e denuncia a retoacuterica fraudulenta dos oradores que enganaram o

povo com o sortileacutegio encantatoacuterio de um discurso mentiroso como se percebe nos versos

(vv) 497-507 DICEOacutePOLIS Num vatildeo ficaacute cum raiva homes espectador Se eu sendo um mendigo na frente dos ateniense Teja em tempo de falaacute sobre a cidade fazendo uma comeacutedia Pois o que eacute justo a comeacutedia tambeacutem conhece E eu vou falaacute coisas terriacuteve mas justa Pois desta vez num vai me caluniaacute Cleacuteon que Estrangeiros tando aqui eu falo mal da cidade Eacute que tamo soacute eacute o concurso das Leneia E os estrangeiro num tatildeo aqui nem os imposto 505 Chega nem os aliado vem das cidade Mas tamo soacute noacutes agora soacute os miacutei debuiado (POMPEU 2014 p17)

Na parte final da peccedila Diceoacutepolis estaacute reconciliado com os acarnenses e seraacute

aclamado pelo Coro como vencedor detentor justo do desfrute dos prazeres do mundo

CORO O home vence cum as palavra e convence o povo a mudaacute De ideia sobre as treacutegua Mas vamo eacute tiraacute a roupa pra passaacute pros anapesto Desde quando dirige os coro de comeacutedia o nosso mestre Num foi pra perto dos espectadocirc pra dizecirc como eacute esperto Mas foi caluniado pelos inimigo no mei dos ateniense de decisatildeo-praacute-jaacute-jaacute De fazecirc comeacutedia cum a nossa cidade e maltrataacute o povo 631 Tem que respondecirc agora pros ateniense de decisatildeo-troca-troca Diz o poeta que fez muita coisa boa pra vocecircs Impedindo vocecircs de secirc enganado demais pelas fala dos estrangeiro De gostaacute de secirc adulado e de secirc uns cidadatildeo molenga 635 Antes os embaixadocirc das cidade pra enganaacute vocecircs Primeiro chamava vocecircs de ldquocoroados de violetardquo e era soacute dizecirc isto Que por causa das coroa sentava logo tudo de rabo em peacute E se algueacutem adulasse vocecircs chamando ldquoAtenas lustrosardquo Conseguia era tudo com o ldquolustrosardquo uma qualidade das sardinha Por isso tudo aiacute eacute que ele eacute responsaacuteve de muita coisa boa pra vocecircs E por tecirc mostrado pro povo nas cidade como eacute secirc democraacutetico Por isso mermo eacute que agora trazendo das cidade pra vocecircs o tributo Vatildeo chegaacute doidim pra vecirc o poeta danado de bom Que se arrisca para dizecirc na frente dos ateniense as coisa justa 645 E assim da ousadia dele jaacute chega eacute longe a fama Quando o Rei tava testando a embaixada dos lacedemocircnio Perguntou primeiro qual das duas cidade eacute mais forte em navios Depois pra qual das duas este poeta podia dizecirc mais palavra ruim Pois estes home ele disse satildeo muito mioacute E na guerra vatildeo vencecirc muito mais por tecirc ele como conseieiro 651 Eacute por isso que os lacedemocircnio propotildee pra vocecircs a paz Mas pede Egina e num eacute esta iacutea Que importa prrsquoeles mas eacute pra apanhaacute o tal poeta Vocecircs num deixe nunca ele partir pois vai fazecirc comeacutedia da justiccedila655 E diz que vai ensinaacute pra vocecircs muita coisa boa pra que sejam feliz Sem adulaacute nem prometecirc salaacuterio nem enganaacute nem um tiquim Sem secirc perverso nem enchendo de elogio mas ensinando o mioacute

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Depois disto Cleacuteon pode eacute maquinaacute E arquitetaacute tudo contra mim Pois o bem vai taacute eacute comigo e a justiccedila Vai secirc minha aliada e nunca vatildeo me pegaacute Pra cidade sendo igual a ele Medroso e escuiambado Vem caacute Musa chamuscada (POMPEU vv 624-664 p21)

Tatildeo importante quanto a presenccedila do ator em cena a voz do poeta se concretiza

pela (re)criaccedilatildeo da palavra que aleacutem de ser o territoacuterio comum ao locutor e interlocutor

possui tambeacutem uma dimensatildeo sonora e material ao ser emitida e uma dimensatildeo semacircntica

que se constroacutei e revela-se no exerciacutecio do discurso social carregado de sentido moralizante

levado ao leitorexpectador pelo autor atraveacutes do proacuteprio poeta e de seus outros

Nesta parte do nosso trabalho verificaremos como a voz autoral seraacute levada ao

puacuteblico e quais as reais intenccedilotildees do autor por traacutes desse empreacutestimo que eleva os

personagens fazendo com que eles estejam a serviccedilo da moralidade e da defesa dos anseios da

cidade Assim a transferecircncia ou a reproduccedilatildeo de palavras de uma boca para outra apontada

por Bakhtin (1982) gera mudanccedilas de tonalidade e teraacute intenccedilatildeo e possibilidade de

(re)criaccedilatildeo de uma produccedilatildeo cultural histoacuterica e social dando aos personagens ndash porta-vozes

dos autores uma dimensatildeo coletiva que se estabelece como um viacutenculo entre o poeta e seus

outros duplicados

A ldquovoz do poetardquo torna-se fundante da estrutura do discurso e encontra ressonacircncia

na presenccedila dos vaacuterios ecos irreverentes manifestados pelas personagens que articulados

com a vontade do proacuteprio poeta representam a tomada de consciecircncia e a tentativa de se

libertar da opressatildeo social agravada por situaccedilotildees e discursos tatildeo adversos percebidos na

comeacutedia aristofacircnica e nos autos de Ariano Suassuna e Gil Vicente

Assim acredito que faz-se necessaacuterio ressaltar para uma maior compreensatildeo do

leitor que a noccedilatildeo de voz do poeta na Comeacutedia Antiga e no Auto eacute um tema de interesse

para muitos estudiosos todos que se deparam com a questatildeo reconheceram a problemaacutetica de

identificar a voz do outro poeacutetico seus alcance e praacuteticas sociais

Apesar dessa barreira aparentemente intransponiacutevel para o estudo do voz do

poeta nossa pesquisa se norteou na identificaccedilatildeo dessa voz (audiacutevel ou visiacutevel) nas comeacutedias

de Aristoacutefanes e nos autos de Ariano Suassuna e Gil Vicente explorando algumas maneiras

pelas quais a mera noccedilatildeo da voz do poeta pode ser inestimaacutevel ao analisar a comeacutedia e o auto

enfocando seu uso como uma teacutecnica cocircmica manipulada pelo dramaturgo para a realizaccedilatildeo

de seu propoacutesito que aleacutem do riso eacute a tomada de consciecircncia da plateia

90

Eacute pertinente primeiro especificar o que se entende por voz do poeta nesse

contexto tatildeo distante e ao memso tempo tatildeo proacuteximo que tem como condutor o riso Ao

longo das peccedilas de Aristoacutefanes e dos autos de Ariano Suassuna e Gil Vicente uma voz

poeacutetica pode ser ouvida indiretamente por traacutes do drama revelando o mundo no qual o poeta e

seus duplos estatildeo inseridos

Em momentos cheios de misteacuterios o puacuteblico eacute levado a acreditar que a

personagem constantemente troca de lugar com o poeta seja atraveacutes da revelaccedilatildeo de algo

comum ao entendimento do poeta criacutetico e moralizador como por exemplo em Acarnenses

onde atraveacutes de Diceoacutepolis que autorizado por Aristoacutefanes se traveste de Teacutelefo ganha natildeo

somente a voz para por em praacutetica seu plano de enganar a assembleia ao Teacutelefo constituindo-

se tambeacutem como o outro do outro do poeta cocircmico

No Auto da Compadecida compete aos juizes Jesus Virgem Maria e ao Diabo

pares antagocircnicos a representaccedilatildeo do discurso do poeta No plano dinacircmico do enredo

Ariano Suassuna reservou ao cangaceiro Severeino o travestimento de mendigo ndash seu Teacutelefo ndash

como meio de entrar na cidade sem ser reconhecido A Joatildeo Grilo e Chicoacute criticar enganar os

legisladores e representantes da sociedade pela praacutetica do discurso mentiroso

No Auto da Barca do inferno o poeta se revela assim como nas obras citadas

pelas muacuteltiplas vozes que se renovam a cada cena seja atraveacutes dos embates entre o anjo

condutor da nau que leva ao paraiacuteso e os infratores das morais terrenas ou pelas investidas de

Joanes o parvo que espera ao lado do anjo pelas almas que na Terra o desprezaram dando-

lhes a garantia de contar ao juiz as fraquezas dos embarcantes

As maneiras pelas quais Aristoacutefanes Ariano Suassuna e o proacuteprio Gil Vicente

manipulam a noccedilatildeo da voz do poeta satildeo cruciais para entender e revelar a situaccedilatildeo vivenciada

pelas sociedades postas em cena Numa arquitetura perfeita que mistura versos e denuacutencias

tanto Aristoacutefanes e Arianos Suassuna quanto Gil Vicente propositadamente parecem

convidar o puacuteblico a supor que ele estaacute ouvindo a voz direta do poeta quando de fato estatildeo

ouvindo uma voz construiacuteda pelo poeta que submete o mundo a sua proacutepria organizaccedilatildeo

social atraveacutes da linguagem marcada para expor e instaurar uma realidae imaginaacuteria como

afirma Benveniste (1979) A linguagem reproduz o mundo mas submete-o a sua proacutepria organizaccedilatildeo Satildeo logos discurso e razatildeo ao mesmo tempo que os gregos o viam Eacute pelo proacuteprio fato de ser linguagem articulada constituiacuteda por um arranjo orgacircnico de partes uma classificaccedilatildeo formal de objetos e processos () Eacute de fato na e pela linguagem como um indiviacuteduo e sociedade satildeo mutuamente determinados O homem sempre sentiu - e os poetas cantaram com frequecircncia - o poder fundador da linguagem que

91

estabelece uma realidade imaginaacuteria dupla que anima as coisas inertes faz ver o que ainda natildeo eacute devolve os desaparecidos (Traduccedilatildeo nossa) 26

Zonin (2006) afirma que de um modo significativo o discurso literaacuterio apresenta

elementos linguiacutesticos para a produccedilatildeo de efeitos expressivos importantes de serem

resgatados na leitura por meio da construccedilatildeo interdiscursiva que eacute o lugar de incorporaccedilatildeo de

um discurso em outro instante em que se daacute o funcionamento polifocircnico marcado pelas

escolhas operadas pelo locutor sobre a liacutengua enquanto contrato coletivo defendido por

Bakhtin na obra Problemas da poeacutetica de Dostoievski

Eacute justamente por esse caraacuteter plural no qual natildeo se sabe quem fala por quem que

se apresentam os poetas e suas vozes autorais refletidos nas palavras que ora enunciam pela

boca do outro ldquonas vozes que espelham um eu possuiacutedo por uma alma alheiardquo (BAKHTIN

1990 p31) Com isso autor e ator se misturam num jogo de vozes no interior do discurso

terreno onde nenhuma palavra eacute particular uacutenica ao criador senatildeo tambeacutem repleta da voz do

outro da criatura

No plano teatral os termos morte e inferno nos datildeo a dimensatildeo do alegoacuterico

proposto tanto na Comeacutedia quanto no Auto Lugares (re)criados para a projeccedilatildeo do

pensamento do autor que se manifestaraacute por meio dos discursos oriundos das esferas social

religiosa e poliacutetica que dizem do sistema democraacutetico e que potencializam na atmosfera

romanesca ares inquietantes e contraditoacuterios de uma pluridiscursividade que se circunscreve

em torno da temaacutetica como afirma Zonin (2006)

No campo social das peccedilas a dramatizaccedilatildeo das outras vozes mostra-se pela voz

do poeta que eacute usada para desenvolver a accedilatildeo cecircnica das personagens dando-lhes a

capacidade de fazer ou dizer mais do que deveriam Ao usar a noccedilatildeo da voz do poeta para

permitir que os personagens falem fora dos limites de suas persoas literaacuterias Aristoacutefanes

Ariano Suassuna e Gil Vicente criam personagens que satildeo inerentemente polifocircnicos fato que

encontra jusitificativa na teoria bakhtiniana

As semelhanccedilas entre Diceoacutepolis e a voz do poeta satildeo deliberadamente criadas e

indiscutivelmente emitidas para incentivar a identificaccedilatildeo entre personagem e poeta uma vez

26 El lenguaje reproduce el mundo pero sometieacutendolo a su propia organizacioacuten Es logos discurso y razoacuten al mismo tiempo como lo vieron los griegos Lo es por el hecho mismo de ser lenguaje articulado consistente en una disposicioacuten orgaacutenica de partes en una clasificacioacuten formal de los objetos y los procesos () Es en efecto en y por La lengua como individuo y sociedad se determinan mutuamente El hombre ha sentido siempre - y los poetas a menudo lo han cantado- el poder fundador del lenguaje que instaura una realidad imaginaria doble que anima las cosas inertes hace ver lo que auacuten no es devuelve aquiacute lo desaparecido (1979 p58)

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que Diceoacutepolis em Acarnenses eacute o porta-voz de seu criador assim como satildeo Joatildeo Grilo no

Auto da Compadecida e Joanes (o bobo) no Auto da Barca do inferno

Um caso especiacutefico da natureza polifocircnica reside nas personagens aristofacircnicas que

permeiam algumas de suas obras e apresentam-se em outros lugares como na abertura de Ratildes

onde Dioniso eacute visto como ator espectador e leitor Dioniso

Natildeo me venhas com histoacuterias Porque eu como espectador De cada vez que assisto a habilidades dessas Satildeo anos de vida que me tiram ( Silva 2014 p36-37) Dioniso Pois estava eu na coberta do navio a ler caacute com os meus bototildees a Androcircmeda quando de repente uma nostalgia me bate ao coraccedilatildeo sabes laacute tu de que maneira (Silva 2014 p41)

Aristoacutefanes estaacute claramente pondo em cena a voz do poeta usando-a por sua vez

para dar sonoridade a outras vozes de tal maneira que a voz do poeta logicamente nos

conduziraacute a uma forma de dialogismo cocircmico

A presenccedila do poeta eacute bastante palpaacutevel natildeo necessariamente como um intrusivo eu mas muitas vezes na variedade interna natildeo homogeneizada de recursos linguiacutesticos organizados para dar voz a outras vozes e que pode ser vista como uma habilidade presente nos outros do poeta capacitados para operar de forma critica diante do contexto social (DOBROV 1995 p 35)

A noccedilatildeo da voz do poeta tambeacutem eacute uacutetil para entender as parabases aristofacircnicas

passagens onde o puacuteblico eacute diretamente abordado e o liacuteder do coro frequentemente e

temporariamente assume um papel quase-autorial como na paraacutebase das Nuvens (vv 518-

526) ou na abertura do Auto da Compadecida quando o Palhaccedilo justifica sua escolha pra

representar o poeta que naquele instante eacute tambeacutem chamado pelo autor de ldquoa grande vozrdquo

PARAacuteBASE

Espectadores vou dizer-vos com desassombro a verdade e que Dioniso que me criou natildeo deixe mentir Bem eu poderia ter vencido e ser considerado um talento no momento em que por vos ter na conta de espectadores de bom gosto vos dei a provar antes de quaisquer outros a mais perfeita das minhas comeacutedias que me custou os olhos da cara de resto Apesar disso vi-me batido e afastado por rivais casca grossa sem o ter merecido E eacute a vocecircs a gente culta por quem empreendi tatildeo dura tarefa que eu censuro (OLIVEIRA e SILVA 1991 p 73)

93

PALHACcedilO Ao escrever esta peccedila onde combate o mundanismo praga de sua igreja o autor quis ser representado por um palhaccedilo para indicar que sabe mais do que ningueacutem que sua alma eacute um velho catre cheio de insensatez e de soleacutercia Ele natildeo tinha o direito de tocar nesse tema mas ousou fazecirc-lo baseado no espiacuterito popular de sua gente porque acredita que esse povo sofre eacute um povo salvo e tem direito a certas intimidades (SUASSUNA 2005 p23)

Na abertura da peccedila Auto da Compadecida Ariano Suassuna de pronto jaacute adverte

ao leitor sobre o que ele testemunharaacute sobre sua preferecircncia de ser um porta-voz palhaccedilo que

entende e seraacute ao longo da explanaccedilatildeo a voz do poeta

PALHACcedilO grande voz Auto da Compadecida O julgamento de alguns canalhas entre os quais um sacristatildeo um padre e um bispo para exerciacutecio da moralidade (SUASSUNA 2005 p15)

Sobre a passagem acima e tomando como premissa a teoria de Bakhtin (1990)

percebemos que ele (o autor) eacute a concentraccedilatildeo de vozes multidiscursivas dentre as quais deve

ressoar a sua voz As vozes autorizadas criam o fundo necessaacuterio para a voz do poeta fora do

qual satildeo imperceptiacuteveis natildeo ressoam E analisando as obras propostas no presente trabalho

devemos partir do princiacutepio que ambos os textos estatildeo permeados de outros textos e vozes

ecoantes natildeo somente a do autor mas outras vozes como daqueles que desejam a paz diante

da situaccedilatildeo de guerra ou daqueles que usam dos mais variados meacutetodos de sobrevivecircncia

frente as dificuldades vividas em suas relaccedilotildees e (con)textos sociais no sertatildeo apropriando-se

da vez e da voz do outro em diaacutelogos que por vezes satildeo quase inaudiacuteveis

De acordo com Barros (1999) nessa interaccedilatildeo promovida pelo discurso social

nenhuma palavra eacute nossa pois ela traz a perspectiva de outra voz e por meio dela e de seus

ecos(duplos) contribuiacutemos na construccedilatildeo da sociedade Assim tanto o texto aristofacircnico

quanto o suassuniano marcam a formaccedilatildeo de vaacuterios diaacutelogos de cruzamento de vozes e de

aparecimentos de duplos que se originaram em praacuteticas de linguagem diversificada

socialmente essas vozes que podem tambeacutem ter origem no gestual de cada personagem por

sua vez polemizam as accedilotildees executadas em cena ou se completam ou respondem umas agraves

outras e aos desejos de seus a(u)tores

Os textos satildeo dialoacutegicos porque resultam do embate de muitas vozes sociais podem no entanto produzir efeitos de polifonia quando essas vozes ou algumas delas deixam-se escutar ou de monofonia quando o diaacutelogo eacute mascarado e uma voz apenas faz-se ouvir (BARROS 1999 p06)

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Seguindo essa perspectiva entendemos a proposta de Barros (1999) ao afirmar

que todo texto eacute ldquotecido polifonicamente por fios dialoacutegicos de vozes que polemizam entre si

se completam ou respondem umas as outrasrdquo o que mostra que os textos escolhidos por mais

atemporais que possam parecer podem ser entrecruzados por outros textos e que se interligam

em uma ou mais vozes no mesmo texto ou seja a voz do autor interligando-se ou mesclando-

se com a voz do outro ou dos seus outros Tanto as palavras quanto agraves ideias que vecircm de outrem como condiccedilatildeo discursiva tecem o discurso individual de forma que as vozes ndash elaboradas citadas assimiladas ou simplesmente mascaradas ndash interpenetram-se de maneira a fazer-se ouvir ou a ficar nas sombras autoritaacuterias de um discurso social monologizado (BRAIT 1999 p 1415)

Assim fruto do ataque direto e pessoal tiacutepico da tonalidade vigorosa e didaacutectica

da comeacutedia aristofacircnicas a voz constitui-se como arma contra a animosidade de concorrentes

e rivais como forma de apresentar elementos indispensaacuteveis agrave educaccedilatildeo da cidade

Pretendendo obter a confianccedila do grande puacuteblico principalmente composto de verdadeiros acarnenses pois ele se disfarccedila de Teacutelefo diante dos espectadores tomando-os como cuacutemplices contra os supostos acarnenses do coro Diceoacutepolis se dirige ao puacuteblico e natildeo ao coro falando como mendigo e como poeta cocircmico (POMPEU p 30)

DICEOacutePOLIS Do mei de noacutes uns home ndash num tocirc falando da cidade Vecirc se lembram disso que num tocirc falando da cidade - Mas uns tipim imprestaacuteve de qualidade ruacuteim Sem valocirc da pioacute marca e estrangeirado hellip (ARISTOacuteFANES Acarnenses vv 515-518 ndash em versatildeo matuta para os personagens do campo POMPEU 2014)

A voz do poeta na comeacutedia de Aristoacutefanes confere ao personagem dando-lhe a

autoridade pretendida e a capacidade de fazer ou dizer mais do que o esperado A voz poeacutetica

em sua forccedila tambeacutem permite que Aristoacutefanes possa parodiar outras vozes para efeito cocircmico

criando um discurso carregado de ironia respaldado na capacidade de fazer dizer ou saber

algo que vai aleacutem da audiecircncia e que pode ser indispensaacutevel agrave Cidade

Ao usar a noccedilatildeo da voz do poeta para permitir que Diceoacutepolis fale fora dos limites

literaacuterio Aristoacutefanes cria um personagem inerentemente polifocircnico visto que assume

muacuteltiplas vozes e personagens como o Teacutelefo dramaacutetico de Euriacutepedes Diceoacutepolis passa

explicitamente a representar a voz direta do dramaturgo pondo em cena as palavras que saem

diretamente da boca de Aristoacutefanes

95

Diceoacutepolis eacute a voz e a forccedila do proacuteprio argumento aristofacircnico uma vez que ele

proacuteprio se identifica como um poeta cocircmico representando tambeacutem qualquer poeta que

sofreu ataques poliacuteticos incomodado pela exploraccedilatildeo da Cidade pois ldquomesmo a comeacutedia

sabe alguma coisa sobre a verdade e a justiccedila Ao atribuir o caraacuteter muacuteltiplo a Diceoacutepolis

Aristoacutefanes acentua ainda mais seu desejo de dizer aleacutem do que a cidade esperava atraveacutes de

seu porta-voz um roceiro o anti-heroacutei conhecedor das artimanhas dos legisladores que

exploram a Cidade elemento responsaacutevel pela dinacircmica central da comeacutedia pois leva ao

puacuteblico por meio do risiacutevel as verdades necessaacuterias ao discurso justo incentivando-o ou ao

proacuteprio leitor a questionar a validade e a veracidade do jogo diante deles

Para Bergson (1987) o riso natildeo eacute apenas uma reprimenda social mas vem de um

desajuste entre a natureza primeira do homem (que eacute mutaacutevel) e uma espeacutecie de rigidez e

mecanizaccedilatildeo Essa rigidez se manifestaria tanto no niacutevel fiacutesico como no caraacuteter ou seja no

acircmbito moral e psicoloacutegico caracteriacutesticas exploradas no personagem Joatildeo Grilo onde o

risiacutevel e o cocircmico seriam uma forma de desfazer a rigidez social na tentativa de evidenciaacute-la

corrigi-la Para Suassuna (2007) o riso eacute como uma espeacutecie de puniccedilatildeo que a sociedade

confere a algo que a ameaccedila diz em seu livro Iniciaccedilatildeo agrave Esteacutetica

Desta forma o risiacutevel estaacute na inadequaccedilatildeo do comportamento humano

fiacutesicopsicoloacutegico uma vez que excede a normalidade sem causas traacutegicas Suassuna no Auto

da Compadecida nos deixa claro que ali o cocircmico surge como um alerta sobre algo que natildeo

estaacute funcionando bem nas sociedades sendo tambeacutem um instrumento revelador dos

problemas da sociedade como um todo

Atitude bem semelhante eacute do Auto que no uacuteltimo paraacutegrafo fala no Auto da

Compadecida por possuir um enredo que proporciona ao leitorespectador o riso e a dor

numa mistura de trageacutedia e comeacutedia por meio da ldquopalavrardquo (voz do poeta) que eacute dotada de

forccedila e promove sempre encontros com o leitor-ouvinte ou ouvinte-leitor levando-o a

estabelecer uma imensa teia de significados e suas relaccedilotildees reconhecimentos e interaccedilotildees no

mundo-palco de Ariano Suassuna onde ele proacuteprio cria (re)vecirc conceitos recria imagens se

subverte ao ordenado na ressonacircncia das vozes que encontram em Joatildeo Grilo o canal para

torna-se real como afirma Zumthor (2014)

A voz eacute uma subversatildeo ou uma ruptura da clausura do corpo Mas ela atravessa o limite do corpo sem rompecirc-lo ela significa o lugar de um sujeito que natildeo se reduz agrave localizaccedilatildeo pessoal Nesse sentido a voz desaloja o homem de seu corpo Enquanto falo minha voz me faz habitar a minha linguagem Ao mesmo tempo me revela um limite e me libera dele (ZUMTHOR p 81)

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[] Outra tambeacutem importante para nosso raciociacutenio aqui eacute a seguinte Escutar um outro eacute ouvir no silecircncio de si mesmo sua voz que vem de outra parte Essa voz dirigindo-se a mim exige de mim uma atenccedilatildeo que se torna meu lugar pelo tempo dessa escuta Essas palavras natildeo definiriam igualmente bem o fato poeacutetico (ZUMTHOR p 81)

Assim como feito por Diceoacutepolis a palavra-forccedila eacute tomada por Joatildeo Grilo

quando da sua chegada ao que seria a entrada do inferno Assim como um dia os homens

roubaram o fogo dos deuses Joatildeo Grilo a voz dupla do poeta detentor da fala das camadas

populares apropria-se do discurso dos poderosos a fim de que fundidos os dois surja um

texto intenso imbuiacutedo de criacuteticas sociais permeado de escaacuternio e desejo de sobrevivecircncia

No contexto de tensatildeo em que eacute apresentado Joatildeo Grilo eacute convertido a um anti-

heroacutei oprimido e no plano da eacutetica eacute um legiacutetimo malandro que usa do artifiacutecio da

malandragem como uma ferramenta autecircntica de sobrevivecircncia e de luta frente agraves

adversidades sobretudo agravequelas impostas pelos que deteacutem o poder A malandragem portanto

no seu entender natildeo constitui um problema ou pecado grave pois natildeo eacute utilizada para

engrandecimento proacuteprio ou para ascensatildeo econocircmica mas sim para a promoccedilatildeo da justiccedila

social Como podemos ler nos versos do cordelista Paulo Nunes Batista Grilo pra tudo no mundo Tinha uma definiccedilatildeo A sua filosofia Sempre lhe dava razatildeo Pois seguia este ditado Que diz ndash ldquoEstaacute perdoado Ladratildeo que rouba ladratildeordquo Vivendo embora do crime Joatildeo Grilo era caridoso Auxiliava a pobreza Soacute furtava o poderoso Roubava sempre dos nobres Matava a fome dos pobres Mostrando ser generoso (BATISTA 1958 p 28)

Como personagens piacutecaros tanto Joatildeo Grilo como Diceoacutepolis representam os

heroacuteis das obras mas suas construccedilotildees e formaccedilotildees se datildeo agraves avessas uma vez que suas

caracteriacutesticas inversas agrave de um heroacutei dispotildeem de ser aventureiro materialista desleal e de

caraacuteter duvidoso O personagem piacutecaro apresenta algumas caracteriacutesticas singulares sempre estaacute com fome nunca se sente completamente seguro Eacute o mais mortal dos mortais Aparenta natildeo ter princiacutepios morais Aparenta cortejar os poderosos mas acaba por desnudaacute-los como que involuntariamente desmascarando-lhes as franquezas Observa-se que o personagem piacutecaro se envolve em aventuras particulares que representam com fidelidade a realidade da sua condiccedilatildeo social Desta forma revela sua opiniatildeo e suas ideias desafiando as regras sociais (KOTHE 1985 p49)

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As accedilotildees das personagens tanto no Auto quanto na Comeacutedia constituem-se num

instante de ressonacircncia no qual o eu autoral passa a ser polifocircnico se projeta no outro que

tambeacutem se projeta no eu do autor demonstrando ter total conhecimento da realidade numa

dimensatildeo sonora e material pelo exerciacutecio do discurso revelador levado ao leitorexpectador

pelo autor atraveacutes de suas personagens Essa realidade se concretiza pela transferecircncia de

palavras de uma boca para outra como apontada por Bakhtin com forccedila e capacidade de

promover mudanccedilas de tonalidade e de intenccedilatildeo discursiva

Essa atitude representa uma possibilidade de (re)criaccedilatildeo de uma produccedilatildeo

cultural histoacuterica e social que supera a proacutepria noccedilatildeo de oralidade que emerge como porta-

voz de uma dimensatildeo coletiva na qual a singularidade de cada sujeito falante lhe outorga ou

recebe autoridade para agir criando um conjunto de vozes polivalentes pelas quais podemos

afirmar que o narrador passa a atuar como um poeta da voz cuja poeacutetica se inspira nas praacuteticas

sociais e nas vivecircncias de seus atores

511 Ao Hades e com riso frouxo

Em trecircs das peccedilas citadas haacute uma cena de julgamento na qual o poeta moraliza a

accedilatildeo das instituiccedilotildees bem como dos legisladores acontece no inferno ou no Hades ndash Ratildes ndash

Auto da Compadecida e Auto da Barca do Inferno a exceccedilatildeo de Acarnenses cujo cenaacuterio eacute a

Assembleia

Em Ratildes que foi presentada nas Leneias de 405 aC Aristoacutefanes lanccedila matildeo de

artifiacutecios em sua maioria cocircmicos para trazer agrave tona discussotildees literaacuterias da eacutepoca bem como

sua criacutetica social e seu discurso moralizante atraveacutes do qual resgatando-se o poeta tambeacutem

salva a cidade Como bem afirmava Ariano Suassuna a Comeacutedia Grega e o Auto Vicentino o

abasteceram de vaacuterias composiccedilotildees e em Ratildes especificamente observamos que a estrutura

serviu de base para a construccedilatildeo da cena do julgamento tanto em Suassuna quanto em Gil

Vicente

Segundo KOPELMAN (2012 p) Depois de quase um seacuteculo de apogeu o ciclo traacutegico se encerra com a morte de Soacutefocles e Euriacutepides Enquanto instituiccedilatildeo social da cidade ateniense o drama traacutegico reflete os embates e os questionamentos da polis Objetivando o espaccedilo cecircnico o drama eacute avaliado e legitimado pelos cidadatildeos nos Festivais que patrocinam as representaccedilotildees

98

Em Ratildes Aristoacutefanes nos apresenta o cenaacuterio da descida para o infernoHades de um

Dioniso bufatildeo em busca de Euriacutepides como forma de tambeacutem reviver a trageacutedia Entretanto

reforccedila com isso a paroacutedia da descida de Heacutercules

O argumento da peccedila pode ser resumido da seguinte forma Dioniso desce ao Hades

para encontrar Euriacutepides morto recentemente e trazecirc-lo para a terra Atenas estaacute com falta de

poetas e Dioniso estaacute convencido de que Euriacutepides eacute o homem certo Na teatralidade

apresentada o proacuteprio deus eacute uma figura cocircmica eacute acompanhado por um escravo cocircmico e

tenta se dar ares de grandeza no mundo subterracircneo

Depois de uma viagem perigosa ao submundo Dioniso estaacute laacute com uma crise

literaacuteria em pleno andamento Euriacutepides derrotou Eacutesquilo do trono da poesia no Hades e uma

grande discussatildeo surgiu sobre ele Nesta reside o principal da accedilatildeo na peccedila Dioniso eacute

chamado para julgar os dois poetas e a disputa que eacute o cerne da comeacutedia eacute a competiccedilatildeo de

Eacutesquilo e Euriacutepides pelo trono da poesia traacutegica no Hades

Em primeiro lugar para compreender a importacircncia do agoacuten entre Eacutesquilo e

Euriacutepides dois poetas traacutegicos da polis temos que voltar novamente ao contexto do seacuteculo V

a C de Atenas A justificativa do agoacuten encontra-se na situaccedilatildeo da polis a decadecircncia de

Atenas e a ausecircncia de bons poetas jaacute que todos morreram Assim Dioniso possiacutevel alter ego

do proacuteprio Aristoacutefanes quer remediar a situaccedilatildeo entatildeo ele vai para o infernoHades

convencido a trazer de laacute Euriacutepides fazendo do agoacuten uma parte inesperada da peccedila

Aristoacutefanes apresenta de forma brilhante como personagem o proacuteprio Dioniso um

deus meio idiotizado completamente medroso mentiroso e totalmente engraccedilado um

viajante vestido de amarelo de botas mas estranhamente revestido com a pele do leatildeo de

Nemeia e empunhando um cacete como o mais macho dos heroacuteis seu irmatildeo Heacutercules

Para dar iniacutecio a sua empreitada ao lado de seu escravo Xacircntias rumo ao Hades

Dioniso procura por Heacutercules para que este o informe por qual caminho ele poderaacute seguir ateacute

sua chegada ao inferno visto que o proacuteprio Heacutercules jaacute havia realizado o mesmo percurso

No proacutelogo Dioniso explica o motivo da sua viagem Pois tal eacute o desejo que me consome por Euriacutepides (v 66)

Dioniso

Sinto falta de um poeta de talento Eacute que uns jaacute natildeo existem e os que existem natildeo

prestam (vv 72-72)

99

Nos versos seguintes Dioniso prepara com antecedecircncia uma funccedilatildeo de juiz uma

vez que emite sua opiniatildeo sobre os outros poetas Iofonte Agatatildeo Xecircnocles Soacutefocles

Euriacutepides e os jovens poetas (vv78-83) Dioniso Isso natildeo pelo menos antes de tomar Iofonte agrave parte a soacutes longe do Soacutefocles para testar de que eacute que ele eacute capaz Aliaacutes o Euriacutepides que eacute um aldrabatildeo haacute-de dar por paus e por pedras para se raspar comigo para aqui Enquanto o outro que caacute era um bonacheiratildeo haacute-de continuar laacute em baixo o mesmo bonacheiratildeo

Como qualquer heroacutei eacutepico Dioniso na peccedila eacute apresentado como um viajante eacutepico

capaz de feitos heroacuteicos seguido de seu escravo e companheiro Xacircntias que protagonizaraacute ao

lado de seu mestre boa parte das cenas cocircmicas como nos coloca Silva (2014 p 34-39) ao

descrever a cena na qual Dioniso a peacute estaacute acompanhado de um escravo Xacircntias montado

num burro e carregando ao ombro as bagagens vai agrave procura de Heacutercules

Xacircntias Oacute patratildeo e se eu mandasse uma daquelas bocas do costume que sempre fazem rir os espectadores Dioniso Agrave vontadinha a que quiseres menos lsquoestou apertadorsquo Dessa poupa-nos que ateacute jaacute daacute voacutemitos Xacircntias E se fosse entatildeo uma outra daquelas piadas finas Dioniso Desde que natildeo seja lsquoestou agrave rascarsquo Xacircntias Qual haacute-de ser entatildeo Uma de escachar a rir Dioniso Tudo bem vai em frente Haacute soacute aquela famosa livra-te de me vires para caacute com essa Xacircntias Ah natildeo nem por sombras Este que aqui tenho natildeo bolas Quem o carrega sou eu Dioniso Mas carregas como se tu proacuteprio eacutes carregado por outro Xacircntias Tanto natildeo sei Agora que aqui o meu ombro estaacute apertadinho de todo laacute isso estaacute Dioniso Pois entatildeo jaacute que dizes que o burro te natildeo serve para nada eacute a tua vez de seres tu a pegar no burro e a carregar com ele Dioniso Salta daiacute malandro Que depois desta caminhada caacute estou eu diante da porta aonde para comeccedilar me propunha vir Ei moccedilo Oacute moccedilo Moccedilo

100

Heacutercules Quem eacute Seja laacute quem for mandou-se aos coices agrave porta que nem um centauro Ei Explica-me laacute Que raio de ideia vem a ser esta Dioniso Oacute amigo chega aqui Preciso de falar contigo Heacutercules Mas eacute que natildeo consigo espantar o riso ao ver uma pele de leatildeo por cima de um vestido amarelo Que ideia se te meteu na cabeccedila O que fazem juntos um par de botas de senhora e um cacete8 Por que paragens tens tu andado Dioniso Andei embarcado agraves ordens do Cliacutestenes Heacutercules E bateste-te no combate naval Dioniso Bati pois Navios inimigos metemos no fundo uma boa duacutezia deles Heacutercules Vocecircs os dois Dioniso Sim claro Xacircntias Esta ateacute me deixou de olhos arregalados Dioniso Pois estava eu na coberta do navio a ler caacute com os meus bototildees a Androacutemeda quando de repente uma nostalgia me bate ao coraccedilatildeo sabes laacute tu de que maneira Heacutercules Uma nostalgia te bate ao coraccedilatildeo De que dimensatildeo Dioniso Coisa pequena pela medida de Moacutelon Heacutercules Por uma mulher Dioniso Nada disso Heacutercules Por um rapazinho entatildeo Dioniso Nem pensar Heacutercules Por um homem se calhar Dioniso Ai ai Heacutercules Com que entatildeo de panelinha com o Cliacutestenes hem Dioniso Deixa-te de gozo mano que quem se vecirc nelas sou eu Tal eacute a paixatildeo que me devora Heacutercules Paixatildeo Que paixatildeo maninho Dioniso Nem te sei dizer Mas enfm vou tentar explicar-ta por analogia Jaacute alguma vez sentiste assim um desejo suacutebito de sopa Heacutercules

101

De sopa Bolas mil vezes na vida Dioniso E entatildeo faccedilo-me entender ou eacute preciso mais explicaccedilotildees Heacutercules Quanto agrave sopa natildeo Percebi perfeitamente Dioniso Pois tal eacute o desejo que me consome por Euriacutepides Heacutercules Como assim Por Euriacutepides o falecido Dioniso E natildeo haacute quem me tire da cabeccedila a ideia de ir agrave procura dele Heacutercules O quecirc Ao Hades laacute em baixo Dioniso Sim pois e mais abaixo ainda se um tal lugar existir Heacutercules Com que intenccedilatildeo Dioniso Sinto falta de um poeta de talento Eacute que uns jaacute natildeo existem e os que existem natildeo prestam Heacutercules Como assim Entatildeo o Iofonte natildeo estaacute vivo Dioniso Essa eacute ateacute a uacutenica coisa de jeito que por aiacute anda e mesmo assim tenho duacutevidas Porque ateacute sobre esse assunto me falta saber bem o que se passa Heacutercules E porque natildeo trazeres Soacutefocles de preferecircncia a Euriacutepides se tens de trazer algueacutem laacute de baixo Dioniso Isso natildeo pelo menos antes de tomar Iofonte agrave parte a soacutes longe do Soacutefocles para testar de que eacute que ele eacute capaz Aliaacutes o Euriacutepides que eacute um aldrabatildeo haacute-de dar por paus e por pedras para se raspar comigo para aqui Enquanto o outro que caacute era um bonacheiratildeo haacute-de continuar laacute em baixo o mesmo bonacheiratildeo Heacutercules E o Aacutegaton por onde anda ele Dioniso Pocircs-se a mexer foi um ar que lhe deu Um bom poeta que deixou saudades nos amiguinhos dele Heacutercules Para que canto do mundo coitado Heacutercules Ora deixa caacute ver por qual deles hei-de comeccedilar Qual haacute-de ser Haacute um que parte da corda e do banco Enforca-te Dioniso Vira essa boca para laacute Eacute um sufoco esse que dizes Heacutercules Haacute tambeacutem um outro um atalho a direito pisado que eacute um mimo que passa pelo almofariz Dioniso Eacute a cicuta que queres dizer

102

Heacutercules Ora nem mais Dioniso Esse eacute frio de cortar agrave faca mesmo Faz logo enregelar as canelas Heacutercules Queres que te diga um raacutepido e sempre a descer Dioniso Corsquoos diabos esse sim que como andarilho sou um desastre Heacutercules Pois bem vai ateacute ao Ceramico Dioniso E depois Heacutercules Sobe agravequela torre alta que laacute estaacute Dioniso E o que eacute que eu faccedilo Heacutercules Assiste laacute do alto agrave largada da corrida dos archotes E depois quando o puacuteblico gritar lsquopartidarsquo tu partes laacute de cima tambeacutem Dioniso Para onde Heacutercules Caacute para baixo Dioniso Assim dou mas eacute cabo dos miolos Natildeo natildeo vou seguir por esse caminho de que falas Heacutercules Entatildeo qual haacute-de ser Dioniso Aquele mesmo por onde tambeacutem tu outrora laacute chegaste Heacutercules Soacute que esse eacute uma maccediladoria de marinharia Para comeccedilar vais dar a um lago enorme sem fundo Dioniso E depois como eacute que eu atravesso Heacutercules Num barquinho assim pequenininho um velho barqueiro vai-te atravessar por dois oacutebolos a passagem

Ao seguir as informaccedilotildees dadas por Heacutercules Dioniso encontra o barqueiro

Caronte que cobra dois oacutebolos para atravessaacute-lo pelo pacircntano Durante esta travessia Dioniso

discute com as Ratildes que habitam o ambiente porque o barulho recorrente de seus

brequequequequex coax coax o deixam irritado

No inferno Dioniso eacute ameaccedilado de morte pelo Eacuteaco (juiz dos mortos) que o

confunde com Heacutercules jaacute que Dioniso estava disfarccedilado e o acusa-o de ter levado o catildeo de

guarda do inferno(vv605-608)

103

Eacuteaco Prendam-mo depressa este ladratildeo de catildees para que leve o corretivo que merece Vamos despachem-se Dioniso A coisa estaacute torta para algueacutem Xacircntias Vatildeo agravequela parte Alto laacute Eacuteaco Ai eacute queres luta Oacute Camelo oacute Macacatildeo oacute Peidoso Cheguem caacute e faccedilam frente a este gajo

Assim tem-se iniacutecio a algo que seria o agoacuten entre os poetas Euriacutepides e Eacutesquilo (vv 860-870)

Euriacutepides Pois por minha parte estou pronto ndash e longe de mim escusar-me ndash a morder ou a ser mordido primeiro como ele quiser nos diaacutelogos nos cantos nas fibras nevraacutelgicas da trageacutedia e ndash caramba ndash ateacute no Peleu no Eacuteolo no Meleagro e principalmente no Teacutelefo Dioniso (a Eacutesquilo) E tu o que pretendes fazer Diz laacute Eacutesquilo Eacutesquilo O que eu queria era natildeo estar metido nesta discussatildeo Porque um concurso entre noacutes os dois nunca eacute imparcial Dioniso Como assim Eacutesquilo Eacute que a minha poesia natildeo morreu comigo enquanto a dele bateu as botas com ele logo ele pode recitaacute-la aqui Mas enfim jaacute que assim o entendes natildeo haacute outra soluccedilatildeo Dioniso O incenso e o fogo vamos laacute Quero fazer uma prece antes de me assumir como aacuterbitro das vossas subtilezas para que atue com toda a competecircncia de que for capaz E vocecircs acompanhem-me com um canto agraves Musas A entrada do Coro acirra a tomada de decisatildeo por parte de Dioniso (vv875) Coro Donzelas nove filhas de Zeus Musas divinas que do alto olhais os espiacuteritos subtis e engenhosos dos poetas cinzeladores de sentenccedilas agora que eles se confrontam com golpes estudados e se digladiam com argumentos sinuosos observai a potecircncia 880 destas duas bocas tatildeo haacutebeis em produzir palavreado e serradura de versos Pois estaacute iminente o grande concurso do talento Dioniso (a ambos os poetas) (vv 885 - 895) Faccedilam tambeacutem a vossa oraccedilatildeo vocecircs os dois antes de recitarem os vossos versos Eacutesquilo Demeacuteter tu que alimentaste o meu espiacuterito faz com que eu seja digno dos teus misteacuterios Dioniso (a Euriacutepides) Agora tu toma laacute tambeacutem o incenso e faz uma oferenda Euriacutepides Natildeo obrigado Satildeo outros os deuses da minha devoccedilatildeo Dioniso Deuses exclusivos de cunhagem nova Euriacutepides Absolutamente

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Dioniso Pois bem invoca entatildeo os teus deuses privativos Euriacutepides Eacuteter que me alimentas Eixo da minha liacutengua Inteligecircncia e voacutes Narinas de faro penetrante fazei com que eu consiga refutar com eficaacutecia os argumentos que me surjam pela frente Coro (895-900) Pois bem tambeacutem noacutes estamos desejosos de ouvir estes dois geacutenios e de ver que batalha de argumentos vocecircs vatildeo esgrimir Vamos decircem iniacutecio agrave disputa A liacutengua de um e de outro eacute viperina o acircnimo natildeo lhes carece de audaacutecia nem o espiacuterito de agilidade Pode de um esperar-se que tenha uma tirada de espiacuterito limada com requinte do outro que arranque as palavras pela raiz que agarre nelas e desanque o inimigo levantando uma poeirada de versos Corifeu (aos dois poetas) (vv905 -912) Vamos depressa eacute hora de cada um se pronunciar Mas tratem de usar uma linguagem de bom gosto nada de floreados nem dessas patacoadas acessiacuteveis a qualquer um Euriacutepides Muito bem Quanto a mim e ao que valho como poeta eacute mateacuteria que deixo para depois Para jaacute vou desmascarar este sujeito como um parlapatatildeo e um vigarista e revelar por que processos ele fazia o ninho atraacutes da orelha de um puacuteblico de imbecis criado na escola de Friacutenico Antes de mais nada sentava uma personagem solitaacuteria coberta de veacuteus um Aquiles ou uma Nigraveobe por exemplo sem lhe mostrar a cara ndash um perfeito alarde de trageacutedia Quanto a tugir ou mugirnem poacute Dioniso (vv913) (a Eacutesquilo) Era isso sim era isso mesmo Dioniso (vv922- 930) Olha o safado Como ele fazia de mim parvo Porque te torces todo e me potildees essa cara de caso Euriacutepides Eacute por eu o desmascarar A seguir depois destas patacoadas quando a peccedila jaacute ia a meio saiacutea-se com uma duacutezia de mastodontes daquele palavreado de sobrolho e penacho uns papotildees de meter medo desconhecidos dos espectadores Eacutesquilo Com mil demoacutenios Dioniso Cala-te Euriacutepides Que se percebesse nem uma palavrinha para amostra Dioniso Natildeo ranjas os dentes Euriacutepides Eram soacute Escamandros trincheiras e gravadas nos escudos aacuteguias-grifos forjadas em bronze e palavras montadas a cavalo que natildeo era faacutecil digerir

Apoacutes estas discussotildees nas quais as obras literaacuterias e seus proacutelogos satildeo avaliados

Dioniso eacute forccedilado a decidir rapidamente sobre quem seraacute o vencedor do concurso e decide

pesar os versos de cada um na balanccedila O prato de Eacutesquilo pesou mais entatildeo Dioniso

105

novamente pressionado por Hades se pronunciou dizendo que resgataria do inferno Eacutesquilo

por sua visatildeo ciacutevica e educadora da cidade

No entanto o que foi realmente decisivo foi o efeito moral da poesia isto eacute a

capacidade do poeta de tornar as pessoas melhores E eacute esta dimensatildeo moral da poesia que fez

Dioniso escolher Eacutesquilo porque sua proposta era um plano de accedilatildeo contra o que

representava Euriacutepides A vitoacuteria de Eacutesquilo nos diz que a funccedilatildeo social da poesia eacute mais

importante do que qualquer outro aspecto para a polis Assim Aristoacutefanes buscou natildeo apenas

divertir o puacuteblico em sua representaccedilatildeo mas tambeacutem conscientizar as pessoas de que atraveacutes

de mudanccedilas no modelo poliacutetico o antigo esplendor poderia ser restaurado para Atenas

Importante notar que seja em Acarnenses Ratildes Auto da Compadecida ou no Auto

da Barca do Inferno os autores mantiveram uma unidade teatral atemporal o julgamento A

cena do julgamento nas peccedilas referidas marca sensivelmente a preocupaccedilatildeo dos autores em

salvar a cidade e moralizar suas instituiccedilotildees quer seja em Atenas Portugal ou Taperoaacute

Outro fato que deve ser considerado do ponto de vista literaacuterio eacute a divisatildeo das

peccedilas a partir da ideia de julgar para salvar visto que todas estatildeo dividas em duas partes

sendo a primeira burlesca e fantaacutestica tendo como mote a viagem ao mundo dos mortos ndash

encontro com o encourado ndash Barqueiroanjo democircnio ndash poetas mortos e a paroacutedia literaacuteria do

Teacutelefo de Euriacutepides na qual o teatro vai agrave cidade e a segunda com feiccedilatildeo moral e tambeacutem

literaacuteria seja pela retomada da consciecircncia das injusticcedilas (mesmos mortos) pela

condenaccedilatildeoabsolviccedilatildeo ou em Acarnenses pela delaccedilatildeo na Assembleia de toda a maacute sorte

pela qual passa o povo devido agrave guerra

52 O julgamento O riso a morte e o descanso do (in)justo

A ideia de justiccedila sem duacutevida ocupou um lugar privilegiado na ponderaccedilatildeo dos

antigos gregos Desvendando o seu significado determinando o seu alcance especificando o

seu papel - poliacutetico e ou social regulando a sua praacutetica esta foi sempre uma preocupaccedilatildeo

das mais genuiacutenas

Nesta parte do nosso trabalho refletiremos sobre como a ideia de justiccedila tambeacutem

encontra no Auto e na Comeacutedia grega uma expressatildeo proacutepria Atenta aos valores de natureza

social eacutetica e poliacutetica tanto a Comeacutedia quanto o Auto proclamam abertamente a prerrogativa

de saber o que eacute verdadeiramente justo

106

No Auto da Compadecida e no Auto da Barca do Inferno obras para agraves quais

voltaremos nossa atenccedilatildeo ceacuteu e inferno se misturam na promoccedilatildeo da justiccedila e encontram no

humano e no divino espaccedilos para a construccedilatildeo do que seria justo e bem medido ao ser

humano

Nesse cenaacuterio conturbado e perturbador morte e vida se apresentam natildeo de forma

antagocircnica mas dependentes ligadas ao natural do humano viver os prazeres sem a devida

preocupaccedilatildeo com o dia do juiacutezo final no qual todos seratildeo responsabilizados pelos atos

cometidos pendentes para o bem ou para o mal

A morte eacute um fato universal que desde tempos imemoriais tem preocupado a

humanidade Eacute possiacutevel que todas as culturas tenham dedicado rituais simboacutelicos para tentar

sobreviver agrave morte uma realidade tatildeo justa que afeta a todos igualmente Rico pobre

Soberanos e mendigos ningueacutem se livra de ser inerte Embora o corpo pereccedila muitas

sociedades tecircm sido obstinadas em tentar salvar a alma do falecido ou pelo menos

encomendaacute-las a um julgamento (in)justo

No Auto da Compadecida a morte vinculada a Joatildeo Grilo estaacute envolvida em um

clima de tensatildeo entre a comeacutedia e a trageacutedia Ateacute mesmo no momento da morte apoacutes o tira

dado pelo comparsa de Severino Joatildeo faz graccedila diante da morte ldquoDeixe de latomia Chicoacute

parece que nunca viu um homem morrer Nisso tudo eu soacute lamento eacute perder o testamento do

cachorro (SUASSUNA 1995 p133)

A cena do julgamento no Auto da Compadecida eacute uma recriaccedilatildeo advinda do

imaginaacuterio popular cordelesco que vecirc na morte a possibilidade de se encontrar com o divino

mesmo sabendo que a entrada para o ceacuteu purgatoacuterio ou inferno estaacute ligada a um acerto de

contas um julgamento Ariano Suassuna ao apresentar essa imagem resgata os grandes autos

medievais que tinham uma preocupaccedilatildeo religiosa como o Auto da Barca do Inferno de Gil

Vicente obra na qual se verifica que haacute embora de modo diferente da obra de Suassuna a

figura do Diabo acusando cada um daqueles que aparecem indicando para qual barca devem

ir

No Auto da Barca do Inferno tambeacutem conhecido como o Auto da Moralidade o

termo morte foi associado por Gil Vicente ao discernimento entre o Bem e o Mal que se

reflete como elemento necessaacuterio para a expiaccedilatildeo dos pecados Assim a locuccedilatildeo latina

castigat ridendo mores encontra base na temaacutetica da equitaccedilatildeo dos costumes do castigado

sendo representada na vida pelo teatro de forma a caracterizar certos aspectos da sociedade

portuguesa o que tambeacuterm favorece uma anaacutelise mais vivamente sagaz com visatildeo criacutetica de

107

alguns personagens tiacutepicos representantes de certos estratos sociais e espectros

socioeconocircmicos muito variados presentes em Aristoacutefanes e Ariano Suassuna

Aleacutem de grande influecircncia sobre da literatura de Ariano Suassuna a obra

vicentina representa o encontro entre a heranccedila medieval e o espiacuterito renascentista

sagazmente criacutetico revelador e delatoacuterio da imoralidade institucional e dos viacutecios da

sociedade incapaz de assumir a responsabilidade dos seus atos e da sua conduta como se

pode constatar no diaacutelogo inicial entre o Diabo e o Fidalgo na cena II no Auto da Barca do

Inferno na qual o autor nos prepara para o julgamento dos passageiros das naus

Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz

FIDALGO Esta barca para onde vai Que assim estaacute apercebida DIABO Vai para a ilha perdida E haacute de partir daqui a nada FIDALGO E para laacute vai a senhora DIABO Sou um senhor Ao vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isto um corticcedilo DIABO Porque a vedes daiacute de fora FIDALGO Pois sim e por que terra passais DIABO Para o inferno senhor FIDALGO Uma terra sem-sabor DIABO O quecirc Mas tambeacutem disso zombais FIDALGO E que passageiros achais Para tal embarcaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo Para ir no nosso caishellip FIDALGO Parece-te a ti assim DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que deixo na outra vida Quem reze sempre por mim DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi Tu que viveste a teu prazer

108

Pensando caacute guarnecer (salvares-te) Por aqueles que laacute rezam por ti Embarcai agora embarcai Que haveis de ir nas traseiras Mandai meter a cadeira Como tambeacutem passou o vosso pai (Gil Vicente p7-11)

Pela passagem acima fica clara a intenccedilatildeo do poeta em preparar o leitor para a

carga de zombaria que seraacute utilizada como recurso estiliacutestico necessaacuterio capaz de impor a

moralidade perante um conjunto significativo de tipos cocircmicos que post mortem requerem

suas entradas no ceacuteu Gil Vicente conhecedor das fragilidades de sua sociedade apresenta em

seu inferno cocircmico tipos caracteriacutesticos que podem perfeitamente ser ajustados agraves literaturas

mais atuais

Satildeo personagens como o fidalgo o onzeneiro o frade o sapateiro a alcoviteira o

judeu o corregedor ou o procurador entre outros os quais o poeta decide tornar natildeo soacute alvo

de galhofa geral mas tambeacutem um exemplo a natildeo seguir expondo-os explicitamente diante do

julgamento final despojados de todas as riquezas e possessotildees terrenas

521 Aqui eacute o inferno vocecirc pode brincar

Joatildeo Joatildeo Morreu Ai meu Deus morreu pobre de Joatildeo Grilo Tatildeo amarelo tatildeo safado e morrer assim Que eacute que eu faccedilo no mundo sem Joatildeo Joatildeo Joatildeo Natildeo tem mais jeito Joatildeo Grilo morreu Acabou-se o Grilo mais inteligente do mundo Cumpriu sua sentenccedila e encontrou-se com o uacutenico mal irremediaacutevel aquilo que eacute a marca de nosso estranho destino sobre a terra aquele fato sem explicaccedilatildeo que iguala tudo o que eacute vivo num soacute rebanho de condenados porque tudo o que eacute vivo morre (ARIANO SUASSUNA 2005 p113)

A cena transcrita na citaccedilatildeo eacute o iniacutecio do que consideramos como o argumento

teatral que motiva o riso no julgamento das almas diferente do resto da obra pois as situaccedilotildees

que satildeo abordadas neste ato revelam em primeiro plano um tom traacutegico mas ao contraacuterio

pelo desvio que encerra a representaccedilatildeo causam natildeo o temor ou pena mas o riso e a reflexatildeo

A exemplo de Aristoacutefanes e Gil Vicente Suassuna utiliza dos expedientes da

paraacutebase e do coro como seus proacuteprios lugares ideoloacutegicos representando o locus privilegiado

onde podemos traccedilar o efeito de suas poliacuteticas e particularmente o teor criacutetico que se

apresenta nos versos dedicados ao coro encenado pelo personagem-palhaccedilo Na verdade o

significado do discurso moralizante e humoriacutestico introduzido pelo coreuta circense eacute sempre

orientado para um corpo social ou para certos grupos e quando se expressa com tom poeacutetico

de uma comeacutedia eacute sempre uma expressatildeo dirigida a um grupo especiacutefico instituiccedilotildees de uma

dada realidade

109

No caso do tribunal celeste ou na travessia das naus essa realidade move e

denuncia as cenas que se desenvolvem pelo intenso debate entre o Anjo ou o Diabo com seus

hoacutespedes e no caso do Auto da Compadecida do anti-heroacutei Joatildeo Grilo com os mortos e seres

divinizados a partir do proacutelogo estabelecido pela entrada do Palhaccedilo que adverte ao puacuteblico

sobre o assunto posto justificando a dupla funccedilatildeo apresentar o argumento da peccedila e

estabelecer a captatio beneuolentiae 27 clamando pela atenccedilatildeo da plateia dando o tom cocircmico

desde o iniacutecio para prender a atenccedilatildeo da assistecircncia sobre os ensinamentos que ali seratildeo

apresentados PALHACcedilO Que bem precisada anda disso Saia e vaacute rezar laacute fora Muito bem com toda essa gente morta o espetaacuteculo continua e teratildeo oportunidade de assistir seu julgamento Espero que todos os presentes aproveitem os ensinamentos desta peccedila e reformem suas vidas se bem que eu tenha certeza de que todos os que estatildeo aqui satildeo uns verdadeiros santos praticantes da virtude do amor a Deus e ao proacuteximo sem maldade sem mesquinhez incapazes de julgar e de falar mal dos outros generosos sem avareza oacutetimos patrotildees excelentes empregados soacutebrios castos e pacientes E basta se bem que seja pouco Muacutesica (ARIANO SUASSUNA 2005 p117)

O desenvolvimento do julgamento traz elementos superiores e sobrenaturais

comuns na trageacutedia grega que Suassuna representa ao modo nordestino como o Diabo o

Encourado Jesus e Maria A presenccedila dessas divindades na obra que aliaacutes se apresentam a

partir do imaginaacuterio maacutescara do psicoloacutegico aleacutem de suscitar a reflexatildeo sobre os atos que o

homem comete em vida manifesta a denuacutencia que o autor imbrica no texto revelando que de

alguma forma a sociedade seraacute julgada e poderaacute sofrer puniccedilotildees apontando desta forma o

caraacuteter cocircmico e moralizador do auto como vemos abaixo DEMOcircNIO Calem-se todos Chegou a hora da verdade JOAtildeO GRILO Entatildeo jaacute sei que estou desgraccedilado porque comigo era na mentira DEMOcircNIO Vocecircs agora vatildeo pagar tudo o que fizeram ENCOURADO Vamos aos fatos Que vergonha Todos tremendo Tatildeo corajosos antes tatildeo covardes agora O Senhor Bispo tatildeo cheio de dignidade o padre o valente Severino E vocecirc o Grilo que enganava todo o mundo tremendo como qualquer safado JOAtildeO GRILO Que eacute que posso fazer Jaacute disse mais de cem vezes a mim que natildeo tremesse e tremo ENCOURADO

27 Captatio benevolentiae eacute uma categoria retoacuterica que visa capturar a boa vontade do puacuteblico no iniacutecio de um discurso (exoacuterdio prooemium) ou apelo No entanto o termo teacutecnico natildeo eacute encontrado nos manuais retoacutericos da Antiguidade Latinafoi usado pela primeira vez por Boeacutecio (falecido em 524 EC) em seu comentaacuterio sobre os escritos de Ciacutecero Literalmente significa atrair a benevolecircncia Refere-se a uma estrateacutegia usada quando o autor se dirige ao puacuteblico leitor visando conquistar a sua simpatia In E-Dicionaacuterio de Termos Literaacuterios (EDTL) coord de Carlos Ceia ISBN 989-20-0088-9 lthttpwwwedtlcomptgt consultado em 02-09-2018

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E tem razatildeo porque o que vai lhe acontecer eacute coisa muito seacuteria Eacute engraccedilado como vocecircs empregam agraves vezes a palavra exata sem terem consciecircncia perfeita do fato O que vocecirc sentiu foi exatamente um arrepio de danado Leve a todos para dentro SEVERINO Ai meu Deus vou pagar minhas mortes no inferno BISPO Senhor democircnio tenha compaixatildeo de um pobre Bispo ENCOURADO Ah compaixatildeo Como pilheacuteria eacute boa Vamos todos para dentro Para dentro jaacute disse Todos para o fogo eterno para padecer comigo BISPO Ai Leve o Padre PADRE Ai Leve o sacristatildeo SACRISTAtildeO Ai Leve o Severino JOAtildeO GRILO Parem parem Acabem com essa molecagem JOAtildeO GRILO Acabem com essa molecagem Diabo dum barulho danado Eacute assim eacute Eacute assim eacute ENCOURADO Assim como JOAtildeO GRILO Eacute assim de vez Eacute soacute dizer ldquopra dentrordquo e vai tudo Que diabo de tribunal eacute esse que natildeo tem apelaccedilatildeo ENCOURADO Eacute assim mesmo e natildeo tem para onde fugir JOAtildeO GRILO Sai daiacute pai da mentira Sempre ouvi dizer que para se condenar uma pessoa ela tem de ser ouvida BISPO Eu tambeacutem Boa Joatildeo Grilo PADRE Boa Joatildeo Grilo MULHER Boa Joatildeo Grilo PADEIRO Vocecirc achou boa MULHER Achei PADEIRO Entatildeo eu tambeacutem achei Boa Joatildeo Grilo SEVERINO Eacute isso mesmo e eu vou apelar para Nosso Senhor Jesus Cristo que eacute quem pode saber ENCOURADO Besteira maluquice (ARIANO SUASSUNA 2005 p118-124)

Na defesa dos mortos Joatildeo Grilo reveste-se de autoridade e encarna o tiacutepico heroacutei

das epopeias dotado de coragem e bravura que natildeo desiste de viver mesmo depois da morte

persistindo no seu intuito de vencer Joatildeo ultrapassa o previsto e decide se vestir natildeo com as

roupas do rei Miacutesio mas de sua feacute estrateacutegia inconteste para alcanccedilar a intercessatildeo da matildee de

Jesus figura justa e poderosa capaz de levaacute-lo agrave absolviccedilatildeo PADRE

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Acho que nosso caso eacute sem jeito Joatildeo Em Deus natildeo existe contradiccedilatildeo entre a justiccedila e a misericoacuterdia Jaacute fomos julgados pela justiccedila a misericoacuterdia diraacute a mesma coisa (ARIANO SUASSUNA 2005 p 142)

JOAtildeO GRILO E difiacutecil quer dizer sem jeito Sem jeito por quecirc Vocecircs satildeo mesmo uns pamonhas qualquer coisinha estatildeo arriando Natildeo vecirc que tiveram tudo na terra Se tivesse tido que aguentar o rojatildeo de Joatildeo Grilo passando fome e comendo macambira na seca garanto que tinha mais coragem Quer ver eu dar um jeito nisso Padre Joatildeo (ARIANO SUASSUNA 2005 p 142)

Autorizado ou natildeo por Suassuna em algumas passagens o certo eacute que tanto Joatildeo

Grilo como Chicoacute inconfundiacuteveis em seus quiprocoacutes nos convidam pelos tons acentos e

ritmos compassados do cordel a uma experiecircncia uacutenica de denuacutencia do social bem como

reveladora das caracteriacutesticas mais comuns aos habitantes de Taperoaacute espaccedilo universal da

recriaccedilatildeo promovida pelo bardo nordestino

52 2 A Voz a esperteza e a malandragem do poeta Nem tudo que eacute vivo morre

(Anti)Heroacutei ou Heroacutei Ser ou natildeo ser quem decide eacute o leitor O fato eacute que

ligado aos misteacuterios divinos por uma feacute inabalaacutevel Joatildeo Grilo mesmo diante de tantas adversidades busca forccedilas em suas oraccedilotildees e novamente cheio de esperteza e sabedoria invoca atraveacutes da voz do autor a Compadecida por meio dos versos de cordel de Canaacuterio Pardo para dar iniacutecio a sua defesa

JOAtildeO GRILO

Ah isso eacute comigo Vou fazer um chamado especial em verso Garanto que ela vem querem ver (ARIANO SUASSUNA 2005 p 142) Valha-me Nossa Senhora Matildee de Deus de Nazareacute A vaca mansa daacute leite A braba daacute quando quer A mansa daacute sossegada A braba levanta o peacute Jaacute fui barco fui navio Mas hoje sou escaler Jaacute fui menino fui homem Soacute me falta ser mulher () Valha-me Nossa Senhora Matildee de Deus de Nazareacuterdquo (ARIANO SUASSUNA 2005 p 144)

Usando de sua malandragem Joatildeo Grilo se garante por essa invocaccedilatildeo trazendo a

Compadecida para o julgamento que inicia um debate contra o Diabo para evitar sua

condenaccedilatildeo A COMPADECIDA

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E para que foi que vocecirc me chamou Joatildeo JOAtildeO GRILO Eacute que esse filho de chocadeira quer levar a gente para o inferno Eu soacute podia me pegar com a senhora mesmo ENCOURADO As acusaccedilotildees satildeo graves Seu filho mesmo disse que haacute tempo natildeo via tanta coisa ruim junta A COMPADECIDA Ouvi as acusaccedilotildees Estaacute bem vou ver o que posso fazer JOAtildeO GRILO Estaacute vendo Isso aiacute eacute gente e gente boa natildeo eacute filha de chocadeira natildeo Gente como eu pobre filha de Joaquim e de Ana casada com um carpinteiro tudo gente boa MANUEL E agora noacutes Joatildeo Grilo Por que sugeriu o negoacutecio para os outros e ficou de fora JOAtildeO GRILO Porque modeacutestia agrave parte acho que meu caso eacute de salvaccedilatildeo direta ENCOURADO Era o que faltava E a histoacuteria que estava preparada para a mulher do padeiro MANUEL Eacute Joatildeo aquilo foi grave JOAtildeO GRILO E o senhor vai dar uma satisfaccedilatildeo a esse sujeito me desgraccedilando para o resto da vida Valha-me Nossa Senhora matildee de Deus de Nazareacute jaacute fui menino fui homem A COMPADECIDA Soacute lhe falta ser mulher Joatildeo jaacute sei Vou ver o que posso fazer Lembre-se de que Joatildeo estava se preparando para morrer quando o padre o interrompeu (ARIANO SUASSUNA 2005 p 146-158)

Como vemos eacute no cenaacuterio tragicocircmico do Agoacuten dos mortos que o Poeta de

forma moralizante se dirige agrave audiecircncia nas vozes de Jesus e da Compadecida para tratar das

questotildees ligadas agrave igreja e a seus representantes O mesmo natildeo se aplica a Joanes (o parvo)

que no cais do Purgatoacuterio indagado pelo Diabo na barca vicentina natildeo tem defensores ou

fiadores de sua graccedila em vida e contaraacute apenas com suas verdades ingecircnuas atitude que serve

para a quebra da seriedade comum ao julgamento e aos juiacutezes como refere Miranda (2001)

ao tratamento humoriacutestico empregado pelo autor

[hellip] a seriedade do tema eacute quebrada pelo tratamento que recebe ningueacutem pode chorar a sua sorte quando se depara com a prefiguraccedilatildeo de um juiacutezo final O modo como as personagens descobrem a sentenccedila que lhes foi determinada daacute- se de forma alegre e divertida pois o rigor da sentenccedila contrasta com o realismo grotesco de certos personagens e com o sarcasmo do interrogatoacuterio Disso decorre a comicidade da comeacutedia dos viacutecios (MIRANDA 2001 p61)

Mais adiante a Grande Voz - Gil Vicente ndash prepara seus leitores para o processo

de elaboraccedilatildeo e desenvolvimento da histoacuteria do parvo a partir do sentimento traacutegico gerado

pela morte que de iniacutecio natildeo eacute aceita e pelo elemento cocircmico presente no enfrentamento da

verdade do poacutes-morte num ritmo binaacuterio que permite o nivelamento de uma sociedade

estratificada

NarradorAutor

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Vem Joane o Parvo e diz ao barqueiro do Inferno PARVO Oh desta DIABO Quem eacute PARVO Eu sou Eacute esta a nossa naviarra DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Ah Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Oh Pelo pesar do meu avocirc (dor choro) Resumindo Vim a adoecer E em maacute hora fui morrer E nela para mim soacute DIABO E de que morreste PARVO De quecirc Acho que de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Que maacute rabugem que te decirc (um insulto) DIABO Entra Potildee aqui o peacute PARVO Oacute paacute Que natildeo tombe o zambuco() (a barcaccedila) DIABO Entra tolo eunuco Que nos vai embora a mareacute PARVO Aguardai aguardai um pouco E aonde havemos noacutes de ir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-a-a DIABO Ao Inferno Entra caacute PARVO Ao Inferno Espera laacute Ui Ui Eacute a Barca do cornudo Pecircro de Vinagre Beiccediludo Lenhador de Alverca uh uh (GIL VICENTE p 34-38)

Ignorando a entrada no batel infernal Joanes se depara com outra realidade a

visita agrave nau que vai ao paraiacuteso Por que um bobo entraria na nau e seguiria para o descanso

dos justos Capricho ou natildeo do autor que encontra na ingenuidade e na astuacutecia as condiccedilotildees

de puniccedilatildeo daqueles que se julgavam acima das leis

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Chega o Parvo ao batel do Anjo diz PARVO Oh da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Talvez algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres Porque em todos os teus afazeres Por maliacutecia natildeo erraste Da tua simpleza te bastastes Para gozar dos prazeres Espera no entanto aiacute Veremos se vem mais algueacutem Merecedor de tal bem Que deva entrar aqui (GIL VICENTE p 40-41)

A morte natildeo eacute o fim senatildeo o comeccedilo para o arrependimento das simbologias

hierarquizantes que permitem identificaccedilatildeo do homem com seu fazer terreno e com sua classe

social poliacutetica econocircmica e profissional

A morte acima de todos os entendimentos quebra a ordem dos elementos

igualando cada um dos protagonistas nas diferentes obras e gerando uma espeacutecie de

coletividade na qual do ponto de vista da justiccedila natildeo se concedem nem existem privileacutegios

pois cada um deveraacute responder por si soacute

Assim a resposta do poeta agraves injusticcedilas pelas quais se castiga a cidade viraacute com a

puniccedilatildeo dos infratores nas cenas que se revelam natildeo por uma accedilatildeo somente mas pelo

conjunto de mini-accedilotildees que adotam a estrutura gerada pela exposiccedilatildeo o conflito e o

desenlace e que agraves vezes nos apresentam a exposiccedilatildeo e o conflito dependentes um do outro

como no caso da comeacutedia aristofacircnica e dos autos de Ariano Suassuna e Gil Vicente

O fio que liga os enredos e conduz a nau vicentina ao inferno eacute o mesmo que

aguccedila a astuacutecia de Joatildeo Grilo ou que tranquiliza Chicoacute nos causos hercuacuteleos Em travessia

sobrenatural ou amarrado a um pirarucu espectadorleitor sente-se identificado com o

momento da histoacuteria quer pelas reminiscecircncias encontradas atraveacutes de elementos oriundos da

tradiccedilatildeo claacutessica quer pelos viacutenculos que retratam a realidade alegorizada e punitiva

Eacute o sentir sem sentir do poeta estar sem estar de uma realidade aparente natildeo

vivida mas experimentada simbolicamente seja nos autos ou na cena cocircmica aristofacircnica

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que diante de um tribunal definido a partir dos valores humanos e da moralidade a verdade

vai se impor como instrumento para sentenciar as almas que uma a uma iratildeo entrar nos bateis

ou no purgatoacuterio do encourado

No palco construiacutedo pela comeacutedia ou pelo auto os conflitos se resolvem na

quebra da normalidade de um inferno agraves avessas lugar que se transforma em teatro de saacutetira

social de tipos que agem segundo a loacutegica da sua condiccedilatildeo de suas vivecircncias como bem

assinalado por Ariano Suassuna ao dar a Joatildeo Grilo as experiecircncias que lhe serviram de

argumento agrave Compadecida e contribuiacuteram decisivamente para a sua absolviccedilatildeo A COMPADECIDA Joatildeo foi um pobre como noacutes meu filho Teve de suportar as maiores dificuldades numa terra seca e pobre como a nossa Natildeo o condene deixe Joatildeo ir para o purgatoacuterio JOAtildeO GRILO Para o purgatoacuterio Natildeo natildeo faccedila isso assim natildeo Natildeo repare eu dizer isso mas eacute que o diabo eacute muito negociante e com esse povo a gente pede o mais para impressionar A senhora pede o ceacuteu porque aiacute o acordo fica mais faacutecil a respeito do purgatoacuterio A COMPADECIDA Isso daacute certo laacute no sertatildeo Joatildeo Aqui se passa tudo de outro jeito Que eacute isso Natildeo confia mais na sua advogada JOAtildeO GRILO Confio Nossa Senhora mas esse camarada enrolando noacutes dois A COMPADECIDA Deixe comigo Peccedilo-lhe entatildeo muito simplesmente que natildeo condene Joatildeo MANUEL O caso eacute duro Compreendo as circunstacircncias em que Joatildeo viveu mas isso tambeacutem tem um limite Afinal de contas o mandamento existe e foi transgredido Acho que natildeo posso salvaacute-lo A COMPADECIDA Decirc-lhe entatildeo outra oportunidade MANUEL Como A COMPADECIDA Deixe Joatildeo voltar MANUEL Vocecirc se daacute por satisfeito JOAtildeO GRILO Demais Para mim eacute ateacute melhor porque daqui para laacute eu tomo cuidado para a hora de morrer e natildeo passo nem pelo purgatoacuterio para natildeo dar gosto ao catildeo A COMPADECIDA Entatildeo fica satisfeito JOAtildeO GRILO Eu fico (ARIANO SUASSUNA 2005 p 146-158)

Se houve ou natildeo por parte do poeta a intenccedilatildeo de usar bufotildees palhaccedilos e o riso

para punir natildeo haacute duacutevidas Essas personagens promovem tanto na comeacutedia como no auto

uma reflexatildeo mais profunda sobre a existecircncia do homem na terra exercendo sobre as demais

que se julgam merecedoras de entrarem na barca do Anjo ou do perdatildeo divino uma saacutetira

viva e desestabilizadora

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O certo eacute que mesmo apesar da situaccedilatildeo de marginalidade e abandono a que tem

estado sempre os outros cocircmicos autorizados pelo poeta eles mostram em Acarnenses no

Auto da Barca do Inferno e no Auto da Compadecida o discernimento necessaacuterio para por em

causa proacutepria todo o mundo social poliacutetico eacutetico e religioso

Observar o julgamento das almas o convencimento da assembleia ou a absolviccedilatildeo

de Joatildeo Grilo eacute justamente se inquietar com comportamento destoante dos personagens

diante do traacutegico anunciado seja pela sentenccedila no purgatoacuterio em que Suassuna provoca o riso

pelo absurdo da situaccedilatildeo seja pela morte tragicocircmica de Joanes que obteacutem o direito de

embarcar para o paraiacuteso ou mesmo pela negociaccedilatildeo que garantiu aos representantes da Igreja

e ao Cangaceiro o purgatoacuterio cabendo a Joatildeo Grilo o retorno agrave vida Portanto aleacutem de

garantir a absolviccedilatildeo haacute tambeacutem a realizaccedilatildeo de uma vinganccedila astuciosa que imprimindo o

castigo aos superiores reflete a inteligecircncia que se sobrepotildee a avareza e aos desmandos

Moralidade restabelecida Assim a cena cocircmica torna explicita a forte associaccedilatildeo

entre comeacutedia e auto na intecionalidade de uma justiccedila direta que quis aleacutem das palavras das

palavra-voz lapidada pelos a(u)tores impulsionadora de reflexotildees geradora de fissuras

abertas na selva de significados que de forma desconsertada passa a ser o guia de um leitor

carente da tomada de consciecircncia sobre o que eacute ou natildeo (in)justo pelo vibrar incorrigiacutevel da

cadeia de significados que se estabelece entre o dito e o leitorouvinte como afirma Zumthor

O texto vibra o leitor o estabiliza integrando-o agravequilo que eacute ele proacuteprio Entatildeo eacute ele que vibra de corpo e alma No eco da voz-texto natildeo haacute algo que a linguagem tenha criado nem estrutura nem sistema completamente fechados e as lacunas e os brancos que aiacute necessariamente subsistem constituem um espaccedilo de liberdade ilusoacuterio pelo fato de que soacute pode ser ocupado por um instante por mim por vocecirc leitores nocircmades por vocaccedilatildeo (ZUMTHOR 2014 p 53)

O heroacutei cocircmico eacute esse espaccedilo de liberdade de ousadia nem sempre vitorioso mas

que se constitui agraves vezes de um alter ego do autor que na qualidade de educador da cidade se

impotildee e legitima verdadeiramente justo uma vez que a justiccedila e a verdade satildeo suas

verdadeiras aliadas e componentes essenciais da criaccedilatildeo do autor

Comeacutedia e Auto concluem com sucesso as intenccedilotildees de seus autores garantindo a

todos o que eles merecem um final no qual a justiccedila a verdade e a puniccedilatildeo terminam

moralmente como (re)modeladoras da cidade

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6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Nas obras que aqui foram analisadas (Acarnenses Ratildes Auto da Barca do inferno

e Auto da Compadecida) os respectivos autores parecem convidar o puacuteblico a tratar o duplo

poeacutetico e a voz como algo especialmente autorizado agrave tarefa de educar a cidade No entanto

cabe ressaltar que ldquoessa aparente autoridaderdquo eacute o instante singular no qual o poeta diz o que

pensa e quer pela boca de seus personagens reforccedilarcada vez mais a ilusatildeo de ser o que natildeo

se eacute de dizer para aleacutem do abrir e fechar das cortinas do palco teatral

No sertatildeo de chatildeo duro e quase impermeaacutevel agrave chuva do Auto da Compadecida a

palavra-performance fez sua morada na boca dos arremedos de Joatildeo Grilo fincou suas raiacutezes

em seus gestos fez dele sair seus brotos que se transformaram em galhos firmes de uma

aacutervore frondosa que eacute a cultura nordestina tatildeo bem cantada pela literatura de cordel pelo riso

mascarado e ao mesmo tempo denunciativo e desnudado do autor na representaccedilatildeo de sua

criatura Joatildeo Grilo eacute o muacuteltiplo poeacutetico defendido pelo proacuteprio autor numa caracterizaccedilatildeo

niacutetida e social Jaacute Diceoacutepolis em Acarnenses contudo tem uma identificaccedilatildeo claramente

problemaacutetica visto ser um personagem que assume muitas personagens e vozes (tais como

tanto o protagonista cocircmico ruacutestico e o traacutegico Teacutelefo) minando a seriedade com que um

leitor deve tomar suas reivindicaccedilotildees

No Auto da Barca do inferno Gil Vicente como criacutetico mordaz impotildee toda a sua

ironia para condenar os costumes praticados por uma sociedade permeada pela hipocrisia Agrave

guisa do pensamento vicentino a linguagem passa a ser seu principal instrumento pelo qual

se vai operar a zombaria para combater os excessos daqueles que ganham com a miseacuteria do

povo

Pelo vieacutes do desconserto a representaccedilatildeo teatral vicentina se constitui como um

conjunto (ou sistema) de signos de natureza diversa que revela um processo de comunicaccedilatildeo

em que haacute uma seacuterie complexa de transmissores uma seacuterie de mensagens um duplo emissor

assim como um (in)corrigiacutevel e muacuteltiplo receptor presentes no mesmo lugar ansiosos para

saber o que aleacutem do dito eacute ensinado pelo poeta

Esse jogo de diaacutelogosdidascaacutelias a princiacutepio consciente para o poeta permite um

percurso para a compreensatildeo dos diversos fios que compotildeem a tessitura cocircmica ndash moralizante

e dramaacutetica cabendo ao leitorespectador desvelar e revelar as mensagens proferidas pelas

vaacuterias vozes pelas quais se expressa o autor

Ao leitor atento nada escapa ao identificar no espaccedilo cecircnico as simbologias dos

espaccedilos socioculturais comuns agraves trecircs obras que compotildeem o corpus do nosso trabalho e de

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forma particular a Gil Vicente que amarra elementos humanos e divinos burlescos e seacuterios

formais e corriqueiros sem perder sua atualidade uma vez que tecircm o meacuterito de apresentarem

as constantes lutas entre o bem e o mal que existem dentro de cada indiviacuteduo valendo-se de

uma comicidade aacutecida e palpitante inimiga dos desmando e excessos

Assim como Gil Vicente Ariano Suassuna soube como ningueacutem recriar a proacutepria

realidade em seus Autos atraveacutes dos textos orais nordestinos e interdiscursos culturais

medievos Sempre criacutetico sua literatura estaacute impregnada da heranccedila da tradiccedilatildeo popular

regional e de gecircneros medievais portugueses ibeacutericos e claacutessicos reforccedilando que tanto as

raiacutezes populares nordestinas quanto os gecircneros do teatro medievo alimentam seu fazer

poeacutetico

Como o educador da cidade Ariano Suassuna chega ao conhecimento da plateia

pelas vaacuterias frestas de uma accedilatildeo cocircmica e de recortes de um proacutelogo e de uma paraacutebase bem

ao estilo de Aristoacutefanes quando ao questionar metaforicamente os representantes da Igreja

pelo zelo da moralidade e da justiccedila social coloca em cheque tambeacutem toda a sociedade da

eacutepoca produzindo pelos jogos ciacutenicos circenses os novos significados de cidadania

Suassuna e Gil Vicente representam o fazer literaacuterio de um Aristoacutefanes que sob a

maciez do riso e da galhofa esconde o punhal e a foice da contestaccedilatildeo social o desejo de

recuperaccedilatildeo e de conversatildeo dos valores humanos Em Aristoacutefanes e diante de sua

representaccedilatildeo da polis estamos diante de uma realidade caoacutetica quase impassiacutevel de ser

alterada resultado da exploraccedilatildeo e da ambiccedilatildeo social fatos que permeiam a accedilatildeo de seus

personagens e quando o poeta traveste-se de Dioniso e decide descer ao infernos para buscar

um poeta genuiacuteno percebemos que natildeo eacute somente a arte ou os ensinamentos trazidos por ela

que Aristoacutefanes quer salvar mas o proacuteprio homem ndash em essecircncia ndash que jaacute se encontrava

seriamente corrompido fazendo mal agrave coletividade

No seu fazer de mentalidade coletiva Ariano Suassuna e Gil Vicente satildeo Aristoacutefanes

que em defesa da cidade lanccedilam-se num terreno movediccedilo do diaacutelogo literaacuterio e cultural

contrapondo o moderno e arcaico o regional ao erudito o miacutetico ao racional (re)construindo

suas histoacuterias a partir das vaacuterias histoacuterias alheias nas quais autor e personagens satildeo reflexos

maiores de uma sequecircncia de accedilotildees cocircmicas criacuteticas e a serviccedilo da ordem e da moralidade

Portanto por mais incorrigiacuteveis que possam parecer nas obras pesquisadas fica

claro que os autores e suas personagens agem na defesa de seus objetivos marcados por uma

devoccedilatildeo obstinada a uma causa proacutepria a defesa da cidade E no cenaacuterio-mundo que eacute o

teatro tanto Aristoacutefanes quanto Gil Vicente e Ariano Suassuna satildeo senhores da arte da

desconstruccedilatildeo

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De caraacuteter universal a Comeacutedia e o Auto mostram um poeta autocircnomo que

brinca com a vontade e expectativas do leitorespectador levando-o a refletir sobre a realidade

atemporal apresentada pelo teatro em seu jogo cocircmico e moralizante Assim o duplo autoral

passa a conduzir o cecircnico no qual os ldquohome espectadorrdquo evocados por Diceoacutepolis em

Acarnenses ou os condenaacuteveis nos autos de Ariano Suassuna e Gil Vicente satildeo jogados no

labirinto das duacutevidas e incertezas promovidas pelas vozes muacuteltiplas que tambeacutem satildeo de

outrem e que afiadas atravessam o discurso cocircmico levando-o agrave reflexatildeo seacuteria da situaccedilatildeo na

qual se encontra a cidade E tudo aos olhos do leitor sob o desejo de um criador que se perde

e se acha nas criaturas que o representam nos a(u)tos matutos de Ariano Suassuna e

Aristoacutefanes ndash eacute possiacutevel ndash natildeo sei Soacute sei que foi assim

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ZUMTHOR Paul Performance recepccedilatildeo leitura 2 ed Trad Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich Satildeo Paulo Cosac Naify 2007

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARA CENTRO DE HUMANIDADES
  • PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM LETRAS
  • Prof Dr Lauro Inaacutecio de Moura Filho
  • Instituto Federal de Educaccedilatildeo Ciecircncia e Tecnologia do Cearaacute ndash (IFCE)
  • Prof Dr Francisco Wellington Rodrigues Lima
  • Instituto Federal de Educaccedilatildeo Ciecircncia e Tecnologia do Cearaacute ndash (IFCE)
  • COMPTON-ENGLE Gwendolyn Leigh Sudden glory Acharnians and the first comic hero
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FRANCISCO JACSON MARTINS VIEIRA

A(U)TOS MATUTOS DE ARIANO SUASSUNA E ARISTOacuteFANES ndash Eacute POSSIacuteVEL

ndash NAtildeO SEI SOacute SEI QUE FOI ASSIM

Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo LetrasLiteratura da Universidade Federal do Cearaacute como requisito parcial agrave obtenccedilatildeo do Tiacutetulo de Doutor em LetrasLiteratura Aacuterea de concentraccedilatildeo Literatura Comparada Orientadora Profa Dra Ana Maria Ceacutesar Pompeu

FORTALEZA 2019

Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo Universidade Federal do Cearaacute

Biblioteca UniversitaacuteriaGerada automaticamente pelo moacutedulo Catalog mediante os dados fornecidos pelo(a) autor(a)

V715a Vieira Francisco Jacson Martins A(u)tos matutos de Ariano Suassuna e Aristoacutefanes eacute possiacutevel ndash natildeo sei soacute sei que foi assim FranciscoJacson Martins Vieira ndash 2019 124 f

Tese (doutorado) ndash Universidade Federal do Cearaacute Centro de Humanidades Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeoem Letras Fortaleza 2019 Orientaccedilatildeo Prof Dr Ana Maria Ceacutesar Pompeu

1 Teatro 2 A(u)to 3 A(u)tor 4 Popular 5 Duplo I Tiacutetulo CDD 400

A(U)TOS MATUTOS DE ARIANO SUASSUNA E ARISTOacuteFANES ndash Eacute POSSIacuteVEL ndash

NAtildeO SEI SOacute SEI QUE FOI ASSIM

Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo LetrasLiteratura da Universidade Federal do Cearaacute como requisito parcial agrave obtenccedilatildeo do Tiacutetulo de Doutor em LetrasLiteratura Aacuterea de concentraccedilatildeo Literatura Comparada Orientadora Profa Dra Ana Maria Ceacutesar Pompeu

Aprovada em ____________

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________ Professora Dra Ana Maria Ceacutesar Pompeu (Orientadora)

Universidade Federal do Cearaacute (UFC)

___________________________________________ Professora Dra Maria Inecircs Pinheiro Cardoso

Universidade Federal do Cearaacute ndash (UFC)

___________________________________________ Prof Dr Steacutelio Torquato Lima

Universidade Federal do Cearaacute ndash (UFC)

___________________________________________ Prof Dr Lauro Inaacutecio de Moura Filho

Instituto Federal de Educaccedilatildeo Ciecircncia e Tecnologia do Cearaacute ndash (IFCE)

___________________________________________ Prof Dr Francisco Wellington Rodrigues Lima

Instituto Federal de Educaccedilatildeo Ciecircncia e Tecnologia do Cearaacute ndash (IFCE)

DEDICATOacuteRIA

A Patriacutecia e Larissa Pelos inesqueciacuteveis momentos de profundo amor em famiacutelia pelo riso frouxo e desconcertado das horas de companheirismo A todos que um dia sonharam olhando para o ceacuteu e que hoje podem alcanccedilar as estrelas

AGRADECIMENTOS

Agradecer mexe com a memoacuteria e torna registrado o esquecimento Por natildeo ser

uma tarefa muito faacutecil eacute perigosa Natildeo pela dificuldade de lembrar mas pelo medo de deixar

de agradecer a algueacutem que mereccedila Eacute uma oportunidade uacutenica de demonstrar gratidatildeo por

tantos que tornaram este sonho uma realidade possiacutevel pela experiecircncia partilhada pela

dedicaccedilatildeo pelos conselhos ou simplesmente por terem sido ouvintes contadores de estoacuterias

e pacientes Como agradecer

Quem realiza um trabalho de pesquisa sabe o quatildeo solitaacuterias podem ser as

manhatildes tardes e noites de leituras e escritas Longos momentos onde o cursor e a tela satildeo as

uacutenicas testemunhas e companheiros Ao mesmo tempo em que eacute solitaacuterio eacute tambeacutem um

trabalho conjunto soacute me foi possiacutevel chegar ao fim de parte da jornada graccedilas ao esforccedilo de

tantos que vieram antes de mim Tantos outros que abriram e traccedilaram caminhos que depois

pude trilhar sozinho em romaria ou bebendo com Dioniso e com outros que bem antes

percorreram o sertatildeo e aportaram suas buscas na procura de mitos festejados e perpetuados

nos rituais cocircmico - religiosos presentes na literatura popular

O que apresento neste trabalho eacute fruto de uma pesquisa acompanhada de vaacuterios

olhares de muitas vivecircncias de viagens agraves feiras de conversas repletas de informaccedilotildees e

experiecircncias de sorrisos e de tristeza por ver na travessia um ponto de parada mesmo que

seja pelo instante do aprofundamento futuro

Mais que lembrar agradeccedilo a minha orientadora Professora Doutora Ana Maria

Ceacutesar Pompeu de forma bem especial Primeiro por ter ldquoapostadordquo em um projeto de

pesquisa com vaacuterias lacunas Segundo por ter sido uma orientadora no sentido mais amplo da

palavra atraveacutes de suas reflexotildees indicaccedilatildeo de bibliografias reuniotildees de orientaccedilatildeo e

conselhos foi possiacutevel que eu construiacutesse uma nova problemaacutetica do assunto e engendrasse a

pesquisa que agora apresento Terceiro pelo comprometimento acadecircmico em orientar-me

natildeo somente para a tarefa acadecircmica mas por me deixar aprender em suas palavras o sentido

das coisas quebrando a ilusatildeo sorrindo de forma contagiante orientando pela generosidade e

humildade para vida Foi um presente ouvi-la e aprender tambeacutem no silecircncio de suas reflexotildees

antes das orientaccedilotildees para que eu natildeo me perdesse durante a travessia atemporal

Tambeacutem agradeccedilo ao professor Steacutelio Torquato Lima do Departamento de

Literatura da UFC pela generosidade de pesquisador pelo comprometimento na indicaccedilatildeo de

novas fontes de pesquisas indispensaacuteveis agrave Dissertaccedilatildeo de Mestrado e que resultaram em

embriotildees da presente pesquisa de Doutorado me encorajando a ver nas entrelinhas de uma

literatura pujante dotada de vaacuterios significados oral ndash escrita ndash dupla

Ao professor Carlos Augusto Viana da Silva do Departamento de Estudos da

Liacutengua Inglesa suas Literaturas e Traduccedilatildeo da UFC pelo desafio que me levou a pensar a

literatura popular a partir da narrativa fiacutelmica que tatildeo bem impulsionou esta pesquisa

culminando com a anaacutelise do Auto da Compadecida de Ariano Suassuna em conjunto com

Acarnenses de Aristoacutefanes

Ao professor Roque Nascimento Albuquerque da Universidade de Integraccedilatildeo

Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB) que desde o iniacutecio acreditou na ideia

de pensar o cocircmico e o popular a partir de novas leituras desafiadoras e intrigantes

Ao professor Lauro Inaacutecio de Moura Filho meu agradecimento pela amizade por

ter dividido pesquisas sobre Aristoacutefanes e por fazer parte da minha Banca de Doutorado

Agrave professora Maria Inecircs Pinheiro Cardoso minha gratidatildeo pela presenccedila na minha

Banca de Doutorado e por seus valorosos estudos sobre a literatura do ldquobardo do sertatildeordquo

Ariano Suassuna em toda a sua magnitude popular

Ao professor Francisco Wellington Rodrigues Lima meu agradecimento pela

gentileza de fazer parte da minha Banca de Doutorado e por sua contribuiccedilatildeo agrave literatura

popular a partir de seus estudos sobre Gil Vicente e Ariano Suassuna

Para minha famiacutelia agradecimentos especiais Obrigado por terem me dado

oportunidade de chegar ateacute aqui por me ensinarem desde cedo a enfrentar os desafios de

frente com riso estampado no rosto

E por uacuteltimo obrigado as minhas maiores incentivadoras Com elas compreendi o

sentido de muitas coisas companheirismo afeto dedicaccedilatildeo amor Obrigado por entenderem

a importacircncia desta pesquisa na minha vida Sem vocecircs o caminho natildeo teria sido tatildeo animado

encantado e real Obrigado Patriacutecia e Larissa

Agrave FUNCAP e Agrave CAPES e ao CNPQ pelo apoio financeiro com a manutenccedilatildeo da

bolsa de auxiacutelio agrave pesquisa

Debaixo de minha mesa tem sempre um catildeo faminto -que me alimenta a tristeza Debaixo de minha cama tem sempre um fantasma vivo -que perturba quem me ama Debaixo de minha pele algueacutem me olha esquisito -pensando que eu sou ele Debaixo de minha escrita haacute sangue em lugar de tinta -e algueacutem calado que grita

(Affonso Romano de SantacuteAnna)

RESUMO

Por ser uma arte que permanece haacute tantos seacuteculos o teatro desperta curiosidade acerca de seus primoacuterdios existindo vaacuterias conjecturas e teorias sobre o surgimento da Comeacutedia Antiga como ambiente extremamente propiacutecio agrave formaccedilatildeo de duplos presente no mito e no culto do deus do teatro Dioniso no qual as vozes os gestos e as maacutescaras representam o duplo e satildeo sobrepostas como causa de equiacutevocos e componentes centrais das invectivas pessoais ou intrigas como observados em Acarnenses de Aristoacutefanes no Auto da Compadecida de Ariano Suassuna Entretanto haacute de se considerar de iniacutecio que alguns elementos responsaacuteveis pelo riso na obra de Aristoacutefanes tambeacutem encontra eco na literatura de Suassuna por apresentar uma tessitura textual atravessada pelas muacuteltiplas vozes de suas personagens constituindo-se em um fenocircmeno recorrente e natural que aponta para a tensatildeo de uma crise profunda denunciada pelo proacuteprio poeta em seus discursos A partir do estudo das correntes de alguns teoacutericos sobre o riso como Huizinga Pirandello Bergson e Vladimir Propp responderemos por meio da literatura comparada a alguns questionamentos como por exemplo qual a importacircncia da construccedilatildeo das personagens cocircmicas em Aristoacutefanes para a representaccedilatildeo do duplo poeacutetico e como essa criaccedilatildeo se reflete na obra de Ariano Suassuna sendo denunciadora das injusticcedilas a partir da cena cocircmica

Palabras-chave Teatro A(u)to A(u)tor Popular Duplo

RESUMEN Por ser un arte que permanece durante tantos siglos el teatro despierta curiosidad acerca de sus primordios existiendo varias conjeturas y teoriacuteas sobre el surgimiento de la Comedia Antigua como ambiente extremadamente propicio a la formacioacuten de dobles presente en el mito y en el culto del dios del teatro Dioniso en el que las voces los gestos y las maacutescaras representan el doble se superponen como causa de equiacutevocos y componentes centrales de las invectivas personales o intrigas como observados en Acarnienses de Aristoacutefanes en el Auto de la Compadecida de Ariano Suassuna Sin embargo hay que considerar de inicio que algunos elementos responsables de la risa en la obra de Aristoacutefanes tambieacuten encuentra eco en la literatura de Suassuna por presentar una tesitura textual atravesada por las muacuteltiples voces de sus personajes constituyeacutendose en un fenoacutemeno recurrente y natural que apunta para la tensioacuten de una crisis profunda denunciada por el propio poeta en sus discursos A partir del estudio de las corrientes de algunos teoacutericos sobre la risa como Huizinga Pirandello Bergson y Vladimir Propp responderemos por medio de la Literatura Comparada a algunos cuestionamientos como por ejemplo cuaacutel es la importancia de la construccioacuten de los personajes coacutemicos en Aristoacutefanes para la representacioacuten del doble poeacutetico y coacutemo esa creacioacuten se refleja en la obra de Ariano Suassuna siendo denunciadora de las injusticias a partir de la cena coacutemica

Palabras clave Teatro A(u)to A(u)tor Popular Doble

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO12

PRIMEIRO ATO18

1 O TEATRO UM DUPLO ARTIacuteSTICO ndash TRAGEacuteDIA E COMEacuteDIA19

11 A comeacutedia aristofacircnica28

12 Dioniso Matuto Justinoacutepolis um heroacutei embusteiro29

13 O (anti)heroacutei aristofacircnico32

14 Auto da Compadecida uma estoacuteria de outras estoacuterias34

15 Joatildeo Grilo um heroacutei popular e picaresco36

151 O (anti)heroacutei Suassuniano38

152 A tensatildeo tragicocircmica do (anti)heroacutei no Auto da Compadecida39

SEGUNDO ATO41

2 HUMOR E RISO ELEMENTOS INDISPENSAacuteVEIS Agrave CENA COcircMICA42

21 O riso seacuterio-cocircmico em Aristoacutefanes e Suassuna43

212 Riso e Comeacutedia43

213 Os elementos do risiacutevel no heroacutei suassuniano45

TERCEIRO ATO65

3 AS DUAS PECcedilAS ndash O POETA USA MAacuteSCARAS66

31 OS GESTOS ndash A vestimenta o corpo e o disfarce67

QUARTO ATO74

4 O AUTOR E SEUS OUTROS NA COMEacuteDIA E NO AUTO75

41 O par cocircmico na tradiccedilatildeo literaacuteria em Aristoacutefanes e em Ariano Suassuna76

QUINTO ATO84

5 O POETA VAI AO INFERNO85

51 Quem fala por quem86

511 Ao Hades e com riso frouxo97

52 O julgamento O riso a morte e o descanso do (in)justo105

521 Aqui eacute o inferno vocecirc pode brincar108

522 A Voz a esperteza e a malandragem do poeta Nem tudo que eacute vivo morre111

6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS117

REFEREcircNCIAS120

12

INTRODUCcedilAtildeO Num vatildeo ficaacute cum raiva homes espectador Se eu sendo um mendigo na frente dos ateniense Teja em tempo de falaacute sobre a cidade fazendo uma comeacutedia Pois o que eacute justo a comeacutedia tambeacutem conhece E eu vou falaacute coisas terriacuteve mas justa Pois desta vez num vai me caluniaacute Cleacuteon que Estrangeiros tando aqui eu falo mal da cidade Eacute que tamo soacute eacute o concurso das Leneia E os estrangeiro num tatildeo aqui nem os imposto Chega nem os aliado vem das cidade Mas tamo soacute noacutes agora soacute os miacute debuiado (POMPEU Dioniso MatutoARISTOacuteFANES Acarnenses vv497-507)

A Literatura Popular vem sendo cada vez mais estudada e reconhecida no acircmbito

acadecircmico ressaltando seu espaccedilo regional pela criaccedilatildeo e construccedilatildeo de uma nova vertente

literaacuteria que dialoga com outras artes e culturas Assim torna-se importante destacar que esse

tipo de literatura constitui-se tambeacutem como uma das vertentes da histoacuteria cultural tendo em

vista que reuacutene diversos tipos de textos para pensar sua escrita linguagem e (re)leitura pela

apropriaccedilatildeo cultural vivenciada pelo puacuteblico e pelo poeta que ouviu viu e viveu o produto

exposto nos versos como nos assegura Chartier (1990 p 27)

Nesse contexto permeado de apropriaccedilotildees recriaccedilotildees e (in)certezas eacute que

estudaremos o riso cocircmico no auto e na comeacutedia como leitoresjurados do julgamento

paroacutedico atraveacutes da accedilatildeo cocircmica do poeta representado por seus duplos na comeacutedia

Acarnenses1 (425 aC) de Aristoacutefanes no Auto da Compadecida (1956) de Suassuna numa

aproximaccedilatildeo atemporal que se reflete na palavra aacutecida do a(u)tor na gargalhada solta e na

quebra da normalidade literaacuteria reveladora das diversas maacutescaras vozes ndash linguagem matuta

e os gestos elementos que estatildeo a serviccedilo do poeta cocircmico e de seus duplos como porta-

vozes do discurso social

Assim para estudo e anaacutelise dos duetos (duplos) cocircmicos cordelescos

fomentadores do imaginaacuterio e da construccedilatildeo de (anti) heroacuteis cocircmicos populares presentes na

tradiccedilatildeo popular nordestina bebemos de fontes escritas e tambeacutem de uma modalidade

narrativa ateacute pouco tempo desprezada esquecida dada ao puacuteblico quase sempre em papel

ruacutestico e com maacute qualidade da impressatildeo e escrita sem a preocupaccedilatildeo dos autores com a

ldquocorreccedilatildeordquo linguiacutestica a Literatura de Cordel

1 No corpus do nosso trabalho optamos por usar a traduccedilatildeo de Acarnenses de Aristoacutefanes para o cearensecircs da professora Ana Maria Ceacutesar Pompeu Dioniso matuto uma abordagem antropoloacutegica do cocircmico na traduccedilatildeo de Acarnenses de Aristoacutefanes para o cearensecircs

13

Tradicionalmente comum a este tipo de literatura foi a presenccedila marcante da

oralidade o fato de ser vendida em feiras e o tipo de consumidor em geral pessoas de baixo

niacutevel escolar cuja identificaccedilatildeo com os folhetos se estabelecia por meio de variadas

temaacuteticas incluindo o diaacutelogo com outras fontes literaacuterias como a Comeacutedia Grega outro

objeto deste estudo

Com isso a importacircncia do cordel pelo meio acadecircmico daacute-se pela produccedilatildeo de

intelectuais como Ariano Suassuna que transpotildee episoacutedios inteiros do verso popular para a

prosa ou vice-versa num imenso caldeiratildeo de ideias consciente da forccedila que essa modalidade

literaacuteria deteacutem na representaccedilatildeo do imaginaacuterio do povo solidificando sua maneira de pensar e

de reagir ante os fenocircmenos sociais

Essas reaccedilotildees aos diferentes contextos sociais motivadas pelas experiecircncias

escritas auditivas e visuais preteacuteritas atribuem um valor positivo agrave figura do (anti)heroacutei

cocircmico e ou agrave conversatildeo do matuto do ruacutestico e satildeo responsaacuteveis pela sua construccedilatildeo miacutetica

a partir do documento linguiacutestico do falar matuto heranccedila cultural cearense como

apresentado por Pompeu em seu Dioniso Matuto (2014) Entretanto temos de considerar que

Aristoacutefanes natildeo faz distinccedilatildeo entre linguagem matuta e citadina apenas de aspectos dialetais

das cidades natildeo aacuteticas como afirma Andreas Willi

A comeacutedia tambeacutem se diferencia da trageacutedia por apresentar todos os estrangeiros a falar em seus dialetos nativos Embora se costume considerar a reproduccedilatildeo dos outros dialetos como deformaccedilatildeo risiacutevel Aristoacutefanes natildeo exagera as caracteriacutesticas dialetais nem as personagens atenienses escarnecem delas de maneira que eacute provaacutevel que o efeito cocircmico nasccedila ali natildeo do exagero mas do realismo linguiacutestico que natildeo tem equivalente em outro gecircnero (WILLI 2003 p268)

Sobre essa afirmativa e tomando como ponto de partida o pensamento de

Bogatyrev (1977) em relaccedilatildeo agraves variaccedilotildees dialetais nota-se que pelas falas produzidas

o espectador percebe ao mesmo tempo o ator e a personagem presentes nos contextos

nordestino e grego resultado de uma simbiose entre ldquocriador e criaturardquo

O corpo do presente trabalho estaacute dividido em Cinco Atos assim denominada a

divisatildeo da Comeacutedia Antiga que na Greacutecia evolui em trecircs fases distintas considerando-se a

comeacutedia2 antiga a comeacutedia mediana e a comeacutedia nova Relativamente ao periacuteodo da comeacutedia

antiga Aristoacutefanes eacute o seu grande representante estruturando-a com as seguintes partes o

proacutelogo o paacuterodo que consiste na entrada do coro e nas suas intervenccedilotildees ou disputa entre 2 EDMONDS J M The Fragments of Attiacutec Comedy II Uiacuteacircdle Cotnedy Leiden Brill 2010

14

dois coros a paraacutebase isto eacute um interluacutedio coral que suspende parcialmente a ilusatildeo

dramaacutetica dirigindo-se diretamente ao auditoacuterio os episoacutedios ou seja as cenas dialogadas

pelas personagens e intercaladas por intervenccedilotildees do coro o ecircxodo concretizando-se no

desenlace final

A comeacutedia antiga caracteriza-se pelo tom de humor e de saacutetira com que se critica

assuntos da vida cotidiana aspectos poliacuteticos e sociais e figuras e instituiccedilotildees proeminentes

sendo a sua finalidade principal a diversatildeo para aleacutem do objetivo moralizante Emprega uma

linguagem luacutedica atraveacutes de jogos de palavras equiacutevocos ironia clichecircs e apresenta ainda

personagens de forma caricatural

Cabe ressaltar que na Introduccedilatildeo apresentamos uma panoracircmica histoacuterica acerca

da Comeacutedia Grega aristofacircnica ndash Acarnenses com direcionamento agrave comeacutedia suassuniana ndash

retratada no Auto da Compadecida Para tratar do Auto da Compadecida e da influecircncia que

sofreu da literatura de Gil Vicente decidimos optar pela apresentaccedilatildeo do Auto Vicentino visto

que O Auto da Compadecida constitui-se como uma peccedila teatral que resgata a comeacutedia

medieval e renascentista europeia bem como a comeacutedia popular nordestina Tal obra foi

elaborada a partir de vertentes distintas onde se encontram resquiacutecios de obras conhecidas e

consagradas mundialmente e tradiccedilatildeo popular impressa em folhetos

O caraacuteter cordelesco do Auto remonta agrave Idade Meacutedia que teve os uacuteltimos seacuteculos

tambeacutem conhecidos pelos historiadores como tempos embaralhados visto que levaram agraves

uacuteltimas consequecircncias uma visatildeo decadentista da vida O caraacuteter transitoacuterio do seacuteculo XV

tornou-se cada vez mais importante no desencadeamento da ideia de morte dentro da unidade

cristatilde fato que permeia as obras de Gil Vicente

O Auto da Barca do Inferno tambeacutem conhecido como Auto da Moralidade foi escrito em 1517 e representado ao rei Manuel I de Portugal e agrave rainha Lianor Eacute uma das mais significativas e famosas obras de Gil Vicente e que embora esteja na estrutura de uma trilogia Trilogia das Barcas que contempla tambeacutem o Auto da Barca do Purgatoacuterio e o Auto da Barca da Gloacuteria a peccedila conteacutem um uacutenico ato no qual eacute recorrente o uso da saacutetira do riso do ridiacuteculo e do achincalhe dotado de um tenso cunho didaacutetico

Jaacute no caso especiacutefico de Ariano Suassana o Auto da Compadecida se divide em

trecircs episoacutedios o primeiro intitulado o enterro do cachorro o segundo com o retorno do Major

Antocircnio Moraes junto com o Bispo e o terceiro episoacutedio compreendendo o julgamento dos

mortos Os atos satildeo entrecortados pela fala do palhaccedilo que representa o autor situando os

espectadores e antecedendo a mudanccedila de cenaacuterio Os personagens satildeo Joatildeo Grilo Chicoacute

major Antocircnio Moraes o padeiro e sua esposa o cangaceiro Severino de Aracajuacute e seu

15

ajudante Bispo Sacristatildeo Padre Joatildeo e Frade Encourado democircnio Manuel e a

Compadecida mas a peccedila gira em torno de Joatildeo Grilo que eacute quem arma situaccedilotildees

conflituosas e quem concentra o foco dramaacutetico

Eacute nesse contexto que a literatura de cordel se apresenta como um importante

veiacuteculo de expressatildeo habilitado agrave aproximaccedilatildeo do popular e do erudito como tambeacutem

ferramenta de articulaccedilatildeo da comunicaccedilatildeo do sertatildeo desprezado e inculto com as referecircncias

gregas de narraccedilatildeo observadas em Aristoacutefanes Para tanto nos valemos da anaacutelise das obras

referidas por gravitarem em torno da temaacutetica proposta e abordarem de forma direta a

linguagem matuta e a construccedilatildeo dos duplos cocircmicos tendo como foco a figura do matuto

Em termos metodoloacutegicos nossa pesquisa se apoia em uma perspectiva

comparativista considerando o contiacutenuo uso da oralidade efetivado na Comeacutedia como voz

autorizada para a accedilatildeo contiacutenua do proacuteprio poetapersonagem Nesse contexto Segundo

Bakhtin o autor ldquoocupa uma posiccedilatildeo responsaacutevel no acontecimento do existir opera com

elementos desse acontecimento e por isso a sua obra eacute tambeacutem um momento desse

acontecimentordquo (BAKHTIN 2003 p176) Neste esteio Caetano Peixoto e Machado (2011)

nos afirmam que A posiccedilatildeo do autor-criador ou seja aquele que tem a funccedilatildeo esteacutetico-formal engendradora da obra natildeo estaacute dissociada do autor-pessoa isto eacute do escritor do artista A vida natildeo estaacute em dicotomia com a arte Elas se imbricam atraveacutes das vozes sociais e histoacutericas onde a dimensatildeo teoacuterica esteacutetica e eacutetica ndash o conhecimento os valores e o agir ndash convergem organizadas num sistema estiliacutestico harmonioso

Nas obras que constituem nossa pesquisa o autor e suas diversas vozes operam e

se estabelecem por meio de accedilotildees muacuteltiplas grotescas como forma de afastar-se do caraacuteter de

opressatildeo para a compreensatildeo e apreensatildeo de uma verdade pura muitas vezes advinda do

social e das situaccedilotildees de injusticcedila como defendida por DiceoacutepolisJustinoacutepolis em

Acarnenses e por Joatildeo Grilo no Auto da Compadecida

Eis que da multiplicidade das praacuteticas do discurso deriva-se o que se pode

reconhecer como uma tipicidade um modo totalmente particular de afirmaccedilatildeo do sujeito um

muacuteltiplo que ao mesmo tempo se torna iacutempar diferente dos demais na conduccedilatildeo do discurso

social Essa imagem e sua polifonia capazes de reunir habilidades estabelecedoras de um

valor cultural da literatura satildeo o que haacute de mais iacutentimo e intransferiacutevel nesse diaacutelogo proposto

entre as obras estudadas e seus autores por operarem um mecanismo narrativo simples e

divertido atraveacutes do diaacutelogo entre o discurso literaacuterio e o socioloacutegico

16

Retornando agrave divisatildeo do trabalho acentuamos que no PRIMEIRO ATO tratamos

de questotildees inerentes agrave origem e estrutura da Comeacutedia e do Auto ressaltando ainda a

importacircncia desses gecircneros como elementos presentes e ativos no processo de construccedilatildeo da

heranccedila cultural erudita mas de origem popular com foco no discurso permeado de vaacuterias

vozes indispensaacuteveis na formaccedilatildeo do poeta-personagem e de seus (anti)heroacuteis

No SEGUNDO ATO discorremos sobre os elementos da Comeacutedia aristofacircnica e

do Auto suassuniano a partir do Humor e do Humorismo Para tanto recorremos agrave expressatildeo

ldquoriso seacuterio-cocircmico como elemento moralizanterdquo tomando como base os estudos de Huizinga

Pirandello Bergson e Vladimir Propp entre outros estudiosos

No TERCEIRO ATO apresentamos um breve histoacuterico da comeacutedia como duplo

da trageacutedia e escrevemos sobre as maacutescaras vozes e gestos como elementos fundantes do

outro do poeta na cena cocircmica tanto em Aristoacutefanes quanto em Suassuna

No QUARTO ATO aprofundamos nossos estudos sobre o duplo na literatura

tomando como base trabalhos sobre a ocorrecircncia do duplo e seu estranhamento na literatura

Ainda no mesmo Ato fazemos uso dos estudos de Bakhtin sobre polifonia do duplo e a

polifonia do discurso social com o fim de relacionar o discurso social de Joatildeo Grilo e

Diceoacutepolis em defesa do coletivo ndash da polis ndash duplos do poeta e porta-vozes dos discursos

sociais jaacute popularizados na Literatura de Cordel suas influecircncias e os diaacutelogos possiacuteveis com

a Comeacutedia Grega

Por fim desenvolvemos ao longo do QUINTO ATO a anaacutelise comparativa da

formaccedilatildeo dos duplos e presenccedila das vaacuterias vozes constitutivas do enredo da comeacutedia

Acarnenses de Aristoacutefanes do texto traduzido do original grego de 425 a C da versatildeo

Dioniso matuto uma abordagem antropoloacutegica do cocircmico na traduccedilatildeo de Acarnenses de

Aristoacutefanes para o cearensecircs da versatildeo jaacute citada da peccedila produzida por Ana Maria Ceacutesar

Pompeu texto que tambeacutem nos serviraacute tambeacutem como paradigma da Comeacutedia Antiga do Auto

da Compadecida de Ariano Suassuna com vistas a demonstrar a importacircncia de se entender

a partir da oralidade linguagem matuta tatildeo presente na obra de Suassuna a finalidade do uso

das vozes do ldquooutrordquo para a construccedilatildeo significativa do proacuteprio poeta Ainda no Quinto Ato

estudamos o riso e do duplo poeacutetico pela inclusatildeo e estudo de Ratildes de Aristoacutefanes do Auto da

Barca do Inferno (1531) de Gil Vicente tendo como foco a cena do julgamento das almas

comum tambeacutem ao Auto da Compadecida ndash momento no qual a personagem se funde ao

poeta educador da cidade com suas preferecircncias e invectivas

Em Aristoacutefanes somos ouvintes das criacuteticas do proacuteprio poeta que em meio ao

caos propiciado pela guerra decide comprar sua paz Em Gil Vicente provamos da

17

moralidade cristatilde que de forma direta condena ou absolve os pecadores e falsos pregadores

E por uacuteltimo em Ariano Suassuna construtor de cenaacuterios (im)provaacuteveis nos quais ceacuteu e

inferno disputam os mortos por meio de uma seacuterie de accedilotildees cocircmicas onde a morte por vezes

perde seu caraacuteter traacutegico

18

PRIMEIRO ATO

19

1 O TEATRO UM DUPLO3 ARTIacuteSTICO ndash TRAGEacuteDIA E COMEacuteDIA

O teatro grego surgiu no contexto do culto religioso estando ligado

particularmente ao Deus Dioniso permanecendo ligado tambeacutem agrave religiatildeo A palavra teatro

segundo Pereira (2006 P24) tem sua origem no grego theacuteatron (έ) em que theacutea

(έ) quer dizer accedilatildeo de olhar de contemplar aspecto objeto de contemplaccedilatildeo espetaacuteculo

e em que o sufixo ndashtron (-) significa lsquoinstrumento dersquo e theacuteatron querer dizer

lsquomaacutequina de espetaacuteculosrsquo Theacutea e theacuteatron tecircm derivaccedilatildeo do verbo theaacuteomai (ά ou

ῶ) que significa ver contemplar considerar examinar ser espectador contemplar

pela inteligecircncia Entretanto o teatro teve em sua origem duas modalidades artiacutesticas

principais a trageacutedia e a comeacutedia

Pereira (2006) destaca que a palavra trageacutedia em grego (τραγῳδία) deriva de

tragos (τράγος) que significa bode puberdade os primeiros desejos do sentido lubricidade

(pois o bode simbolizava para os antigos pelas suas caracteriacutesticas o desejo sexual a

lubricidade) e de ode (ᾠή) que significa canto com acompanhamento de instrumentos

accedilatildeo de cantar

A palavra tragoidiacutea (τραγῳδία) de acordo com Fernandes (2006) significava em

grego ldquocanto do bode canto religioso com o qual se acompanhava o sacrifiacutecio de um bode nas

festas de Dioniso trageacutedia drama heroacuteico evento traacutegicordquo O tragoidoacutes (τραγῳδός) era

primordialmente aquele que danccedilava e cantava durante a imolaccedilatildeo de um bode nas festas de

Dioniso sendo que este termo significou tambeacutem em seguida lsquoaquele que danccedila e canta em

um coro traacutegico ator traacutegico membro do coro traacutegico poeta traacutegico Para alguns estudiosos o canto do bode era o canto dos companheiros de Dioniso em seus cortejos orgiaacuteticos dos saacutetiros os filhos de Sileno - que teria segundo uma tradiccedilatildeo sido um educador daquele deus (Sileno era famoso pela sua feiuacutera e sua sabedoria e suas formas eram em parte equinas) Poreacutem soacute muito tardiamente ndash a saber na eacutepoca heleniacutestica e romana da cultura grega - os saacutetiros foram representados como seres em que se misturavam formas humanas e formas caprinas tendo os membros inferiores ateacute mais ou menos a cintura em forma caprina e um chifre e feiccedilotildees que lembravam as feiccedilotildees caprinas No tempo aacuteureo das trageacutedias e mesmo pouco depois ndash a saber no seacuteculo V e IV a C - os saacutetiros apareciam como seres em que se misturavam as formas humanas com a equina tendo entatildeo os membros inferiores semelhantes agraves patas traseiras de um cavalo aleacutem de um rabo e orelhas de cavalo Esta hipoacutetese permaneceu poreacutem apoiada em passagens de textos do seacuteculo V (particularmente no fragmento 207 do Prometeu Pirceu de Eacutesquilo) em que saacutetiros satildeo chamados de bode natildeo pela sua forma mas

3 Nesta pesquisa trabalhamos com o conceito de Duplo estabelecido por Anna Beltrametti no artigo ldquoLe couple comique Des origines mythiques aux deacuterives philosophiques incluiacutedo na obra dirigida por Marie-Laurence Esclos Le rire des grecs anthropologie du rire en Gregravece ancienne (2000 p 215-226)

20

hipoteticamente pela sua lasciacutevia ndash pois como jaacute dissemos o bode eacute caracterizado pela lubricidade (PEREIRA 2006 p7)

Outra hipoacutetese esta defendida por Lesky (1999) foi a de que o canto do bode era

o canto lamentoso da viacutetima sacrificada a Dioniso ndash que como vimos acima era um bode

Toda a trageacutedia se assemelha a um ritual de sacrifiacutecio No centro da orquestra no teatro

grego havia um altar a Dioniso (o thymeacutelendashθυμέλη) sugerindo que o destino traacutegico do heroacutei

e a representaccedilatildeo traacutegica eram como uma imolaccedilatildeo a Dioniso Na Greacutecia sobretudo nas

eacutepocas arcaicas eram praticados rituais de sacrifiacutecio dos chamados bodes expiatoacuterios (em

grego pharmakoacutesndashφαρμακός) em que um indiviacuteduo carregado de todas as impurezas da

comunidade era sacrificado

Em Atenas havia um ritual nas festas chamadas Targeacutelias4 dedicadas a Apolo e

Aacutertemis que remetia a este sacrifiacutecio Um homem e uma mulher eram surrados enquanto

eram conduzidos atraveacutes de toda a cidade Depois eram sacrificados fora das fronteiras da

cidade queimados e suas cinzas jogadas no mar Na eacutepoca claacutessica eram apenas jogados no

mar e depois expulsos para fora das fronteiras da cidade Eles eram chamados de pharmakoiacute5

bodes expiatoacuterios

O ritual de sacrifiacutecio era uma tradiccedilatildeo que existia em muitas outras civilizaccedilotildees

Nas Saacuteceas6 babilocircnicas por exemplo que satildeo mencionadas por Nietzsche em O nascimento

da trageacutedia um prisioneiro era sacrificado depois de ser nomeado rei da Babilocircnia por cinco

dias tempo em que tinha direito a desfrutar de todo o hareacutem do proacuteprio rei e de dar livre curso

a todos os seus apetites ateacute o momento de seu sacrifiacutecio Durante este tempo as orgias eram

celebradas em toda a cidade

Na Poeacutetica de Aristoacuteteles trageacutedia e comeacutedia assemelham-se quando satildeo

apresentadas como ldquomimesis7rdquo (1447a) e diferem porque autores cocircmicos ldquoimitamrdquo homens

4 Targeacutelia era um dos principais festivais atenienses realizados em honra a Apolo e Aacutertemis tal festival era celebrado no mecircs de Targeliatildeo (relativo ao periacuteodo de 15 de maio a 15 de junho) 5 Sacrificar (real ou simbolicamente) um bode expiatoacuterio para purificar a cidade era comum no mundo grego A pessoa sacrificada chamava-se pharmakoacutes Em Atenas o rito era parte das Targeacutelias festival em honra a Apolo Para ser pharmakoiacute as pessoas tinham que ser detentores de deficiecircncia fiacutesica e os considerados inuacuteteis 6 Festas que se celebravam na Peacutersia antiga e durante as quais os escravos mandavam nos amos 7 Como notado por GOLDEN Leon Aristotle on the Pleasure of Comedy In A O Rorty Essays on Aristotlersquos Poetics (1992 27) Do gr miacutemesis ldquoimitaccedilatildeordquo (imitatio em latim) designa a accedilatildeo ou faculdade de imitar coacutepia reproduccedilatildeo ou representaccedilatildeo da natureza o que constitui na filosofia aristoteacutelica o fundamento de 7Heroacutedoto foi o primeiro a utilizar o conceito e Aristoacutefanes em Tesmofoacuterias (411) jaacute o aplica O fenocircmeno natildeo eacute um exclusivo do processo artiacutestico pois toda atividade humana inclui procedimentos mimeacuteticos como a danccedila a aprendizagem de liacutenguas os rituais religiosos a praacutetica desportiva o domiacutenio das novas tecnologias etc Por esta razatildeo Aristoacuteteles defendia que era a miacutemesis que nos distinguia dos animais

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piores e os traacutegicos os ldquoimitamrdquo melhores do que satildeo na realidade (1448a) Sendo a mimesis

considerada pelo filoacutesofo como congecircnita agrave natureza humana ndash que com ela se compraz e

aprende ndash a poesia naturalmente tomou as formas da iacutendole particular dos poetas os de

acircnimo mais elevados mimetizavam accedilotildees nobres atraveacutes de hinos e encocircmios e os de mais

baixas inclinaccedilotildees compunham vitupeacuterios (1449a) Vinda agrave luz atraveacutes da poesia a mesma

distinccedilatildeo estendeu-se ao teatro dos ditirambos em honra a Dioniso originou-se a trageacutedia e

nos cantos faacutelicos ndash que tambeacutem evocavam o mesmo Deus ndash pode-se perceber as sementes da

comeacutedia

Na cena teatral segundo Aristoacuteteles (Poeacutetica 1448b) a comeacutedia apresentava o

que os homens tecircm de ridiacuteculo caracterizado como ldquodefeito torpeza anoacutedina e inocenterdquo a

maacutescara cocircmica era disforme mas natildeo possuiacutea expressatildeo de dor Por sua vez a trageacutedia aacutetica

mimetizava homens superiores em accedilotildees de caraacuteter elevado que suscitavam terror (phobos) e

compaixatildeo (eleas) e provocavam o prazer que eacute proacuteprio desses sentimentos

Sem desconsiderar que uma localizaccedilatildeo muito rigorosa das origens seria um erro

metodoloacutegico ressalto a origem comum da trageacutedia e da comeacutedia ndash nos coros dionisiacuteacos ndash

ainda que predominantemente a Filosofia demonstre muito menos apreccedilo por essa uacuteltima Se

a trageacutedia surgiu dos ditirambos a comeacutedia comeccedilou com os komoi uma espeacutecie de procissatildeo

jocosa das quais a mais famosa era realizada nas festas dionisiacuteacas para celebrar a fertilidade

da natureza atraveacutes de homenagens a reproduccedilotildees de falos descomunais ndash costume ainda vivo

em algumas regiotildees da Greacutecia e Japatildeo

Os comediantes (komoidoi) andavam de aldeia em aldeia por natildeo serem tolerados

na cidade registrou Aristoacuteteles (1448b) Oficialmente as representaccedilotildees cocircmicas tiveram

origem nas Dioniacutesias Urbanas (486aC) em Atenas mas cenas pintadas em vasos revelam

sua existecircncia bem antes da data oficial

ldquoA trageacutedia surgiu do coro traacutegicordquo Pode-se ler em O nascimento da trageacutedia

(NIETZSCHE 2007 p52) quando Nietzsche interpreta a origem da trageacutedia no coro dos

saacutetiros de um modo bastante especiacutefico tomando como arma a luta contra a ideia de

naturalismo na arte O coro mesmo eacute percebido ldquocomo uma muralha viva que a trageacutedia

estende agrave sua volta a fim de isolar-se do mundo real e de salvaguardar para si o seu chatildeo ideal

e a sua liberdade poeacuteticardquo (p54) E o faz preservando as semelhanccedilas com os antigos coros

satiacutericos gregos e sua erracircncia por terrenos mais elevados ldquomuito acima das sendas reais do

perambular dos mortaisrdquo (p54) O saacutetiro ndash ldquoser natural e fictiacuteciordquo ndash eacute percebido em relaccedilatildeo ao

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homem grego civilizado do mesmo modo que a muacutesica dionisiacuteaca em relaccedilatildeo agrave civilizaccedilatildeo O

coro satiacuterico suspende eleva e supera o grego civilizado da mesma forma como a claridade do

sol faz com as luzes das lacircmpadas escreve Nietzsche

Expressatildeo do proacuteprio desejo com sua erracircncia original o coro satiacuterico criava um

territoacuterio transcendente distanciado da realidade cotidiana natildeo apenas tolerado como

ldquoliberdade poeacuteticardquo e sim considerado pelo menos por Nietzsche a proacutepria ldquoessecircncia de toda

poesiardquo (p54) O mesmo filoacutesofo escreveu O ecircxtase do estado dionisiacuteaco com sua aniquilaccedilatildeo das usuais barreiras e limites da existecircncia conteacutem enquanto dura um elemento letaacutergico no qual imerge toda vivecircncia pessoal do passado Assim se separam um do outro atraveacutes desse abismo do esquecimento o mundo da realidade cotidiana e o da dionisiacuteaca (NIETZSCHE 2007 p55)

Devo advertir de iniacutecio que eacute difiacutecil dizer por que a partir de uma origem comum

ndash a experiecircncia dionisiacuteaca ndash o distanciamento arrebatador do mundo cotidiano prosaico gerou

expressotildees tatildeo diversas a ponto de constituiacuterem gecircneros ateacute hoje existentes como o cocircmico e

o traacutegico E segundo Nietzsche este uacuteltimo eacute com ajuda de Apolo a ldquodomesticaccedilatildeo artiacutestica

do horriacutevelrdquo enquanto o primeiro seria uma ldquodescarga da naacuteusea do absurdordquo (NIETZSCHE

2007 p56)

Ao longo da histoacuteria entretanto pode-se perceber que o entrelaccedilamento de ambos

no que ficou conhecido como ldquotragicocircmicordquo a ponto de tornar-se popular a ideia expressa

pelo ditado ldquoseria cocircmico se natildeo fosse traacutegicordquo Como tantos outros os termos originais

foram banalizados esvaziados de conteuacutedo tornados difusos

Se em sua origem o cocircmico era o outroduplo do traacutegico tambeacutem desde esses

tempos a saacutetira jaacute se fazia presente como companhia do texto cocircmico A chamada ldquoComeacutedia

Antigardquo (425-404 aC periacuteodo da produccedilatildeo de Aristoacutefanes que nos chegou) caracteriza-se

pela mordacidade caacuteustica na mimesis dos cidadatildeos proeminentes e das instituiccedilotildees dapolis8

seja pelos a(u)tores seja pela manifestaccedilatildeo das proacuteprias personagens que algumas vezes

representavam em cena o proacuteprio discurso revelador das injusticcedilas sociais tatildeo comuns na

Cidade

Nesse contexto o Duplo sempre foi um tema profundamente instigante da cultura

humana e sempre esteve essencialmente relacionado em vaacuterias aacutereas do conhecimento como

na Filosofia Psicologia Literatura e na Mitologia persistindo temporalmente como temaacutetica 8 Para a normatizaccedilatildeo de algumas palavras gregas em portuguecircs seguimos o Glossaacuterio elaborado pelo Laboratoacuterio de Estudos Sobre a Cidade Antiga Disponiacutevel em pdf no site wwwmaeuspbrlabeca aba glossaacuterio No caso de palavras jaacute dicionarizadas utilizamos a forma de acordo como que consta no Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa (2008)

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sempre revisitada e geradora de ambiguidades Na Antiguidade o Duplo era para a

sociedade a representaccedilatildeo ou o reflexo do idecircntico ou seja prevalecia a ideia de Duplo como

o homogecircneo manifestaccedilatildeo do igual

No entanto natildeo permaneceu dessa maneira tendo com o passar do tempo a partir

do seacuteculo XVIII se tornado heterogecircneo isto eacute o Duplo passa a representar o desigual ou em

outras palavras o oposto em Suassuna o arremedo cocircmico Este fato encontra comprovaccedilatildeo

quando procuramos as diferenccedilas existentes entre o traacutegico e o cocircmico tatildeo bem delineadas na

sociedade Greacutecia Claacutessica

Obscura como outros siacutembolos e projeccedilotildees coletivas a figura do duplo em

Acarnenses (Diceoacutepolis) e no Auto da Compadecida (Joatildeo Grilo) eacute cocircmica e criacutetica visto que

satildeo elementos que parodiam o serviccedilo divino cantando errado e fazendo sermotildees

moralizantes travestem-se usam maacutescaras passeiam com maestria nos mundos popular e

erudito representam coletivos pelo poder da gargalhada do riso seacuterio e da tolice formas mais

sutis para se levar ao conhecimento da audiecircncia o desdobramento da consciecircncia ao mesmo

tempo a do idiota e a do bufatildeo que a utiliza como maacutescara e a coloca em praacutetica na defesa do

cidadatildeo injusticcedilado

Cantando errado e fazendo sermotildees moralizantes os a(u)tores travestem-se de

heroacuteis cocircmicos satildeo porta-vozes da opiniatildeo de muitos se apoderam do grotesco usam

maacutescaras passeiam com maestria nos mundos popular e erudito representam coletivos pelo

poder da gargalhada do riso seacuterio e da tolice e encontram em seus outros as formas

mais(in)certas para criticar agravequeles que exploram a cidade e levar ao puacuteblico atraveacutes de

figuras idiotizadas os ensinamentos que ironicamente o poeta preocupado com o destino do

cidadatildeo executa diante de suas audiecircncia

Esta dualidade cocircmica estabelecida pelo poeta e seus duplos no espaccedilo cecircnico da

cidade eou do inframundo implica certa ambiguidade constitutiva na figura do heroacutei cocircmico

ou do juiz apresentado em Acarnenses no Auto da Compadecida e no Auto da Barca do

Inferno tendo em vista tambeacutem a accedilatildeo dos pares antagocircnicos estuacutepido e saacutebio grosseiro e

sutil escravo das pulsotildees e senhor de si mesmo menos e mais humano

Assim percebe-se que tanto no teatro aristofacircnico quanto no teatro popular de

Ariano Suassuna o autoconhecimento expresso pelas maacutescaras gestos e vozes cocircmicas

implica tambeacutem no conhecimento da condiccedilatildeo humana tatildeo bem levada a seacuterio pelos autores e

seus discursos criacuteticos sendo portanto uma nova forma de combinar velhos ingredientes

como o riso frouxo e a voz estridente educadora aacutecida da sociedade ateniense que encontra

espaccedilo semacircntico atraveacutes dos gestos e maacutescaras que se organizam em uma nova composiccedilatildeo

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natildeo soacute da cena teatral mas da inteligecircncia de autores que pensam a sociedade para aleacutem das

mazelas das injusticcedilas vivenciadas impostas pelo estado de guerra

Nesse ambiente muacuteltiplopolifocircnico observamos que a ldquovoz do poetardquo os gestos

e as maacutescaras satildeo fundantes da estrutura do discurso educativo e denunciador formado a

partir da presenccedila de vaacuterias vozes como a do proacuteprio poeta que tem sido um tema de grande

interesse para muitos estudiosos e para todos que se deparam com a problemaacutetica da

identificaccedilatildeo desta quando articulada agrave formaccedilatildeo dos duplos do poeta dentro da Comeacutedia

Antiga perceptiacutevel nas peccedilas Acarnenses de Aristoacutefanes no Auto da Compadecida de

Ariano Suassuna e no Auto da barca do Inferno de Gil Vicente

Por ser uma arte que permanece haacute tantos seacuteculos o teatro desperta curiosidade

acerca de seus primoacuterdios existindo vaacuterias conjecturas e teorias sobre o surgimento da

Comeacutedia Antiga como ambiente extremamente propiacutecio agrave formaccedilatildeo de duplos a partir de

uma seacuterie de elementos presente no mito e culto do deus do teatro Dioniso no qual as vozes

os gestos e as maacutescaras satildeo sobrepostas como causa de equiacutevocos e componentes centrais das

invectivas pessoais ou intrigas transformando-se em acessoacuterios fundamentais para o discurso

moralizante e para alcanccedilar o objetivo maior do a(u)tor a obtenccedilatildeo da paz em Acarnenses de

Aristoacutefanes e a absolviccedilatildeo no Auto da Compadecida de Ariano Suassuna ou na condenaccedilatildeo

das almas em virtude de suas faltas e pecados em vida como esclarece Nemeacutesio (1941) num

ritmo sacral na abordagem vicentina no Auto da Barca do Inferno

Eacute notaacutevel contudo observar que esses elementos frequentemente utilizados por

Aristoacutefanes em suas peccedilas tambeacutem encontram eco na literatura popular de Suassuna Isso

decorre do fato de a obra do pernambucano tambeacutem apresentar uma tessitura textual

atravessada por muacuteltiplas vozes estas representadas pelas diferentes personagens Nesse

processo as obras dos dois autores evidenciam um fenocircmeno recorrente e natural marcado

pela tensatildeo de uma crise profunda denunciada pelos dramaturgos nos discursos de suas

personagens

Assim eacute pertinente que primeiro justifiquemos a escolha das obras citadas visto

que ambas trazem em seus enredos personagens que usam da autoridade conferida pelo poeta

para ressoar seus anseios e indignaccedilotildees atraveacutes do discurso Ao longo das peccedilas Aristoacutefanes e

Suassuna projetam seus duplos de forma que suas proacuteprias vozes possam ser ouvidas

indiretamente por traacutes de cada ato levando o puacuteblico a crer que ouve a voz direta do poeta

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quer atraveacutes do coro do palhaccedilo coreuta da paraacutebase9 ou em personagens protagonistas

como Diceoacutepolis ou Joatildeo Grilo

Atraveacutes dessas personagensautores a voz do dramaturgo eacute projetada pelo riso da

mangofa10 pelos gestos performaacuteticos pelo arremedo poeacutetico eou pelo outro travestido de

a(u)tor accedilotildees perfeitamente justificaacuteveis visto que o cocircmico tem afinidade com a cultura

popular porque utiliza fatos do dia a dia como mateacuteria na representaccedilatildeo de algo atraindo

consequentemente a atenccedilatildeo do leitor ou ouvinte para a obra A verdade eacute que a conduccedilatildeo

cocircmica e moralizante encontra espaccedilo feacutertil em ambas as obras traduzida pela accedilatildeo do poeta a

partir das vozes de seus duplos Diceoacutepolis e Joatildeo Grilo figuras conturbadas em franco

desacordo com a situaccedilatildeo promovida pelos legisladores em Atenas ou na pacata cidade de

Taperoaacute interior nordestino Esses protagonistas descobrem-se em atitude de perfeita

rebeldia conscientes das mudanccedilas advindas de suas atitudes e como heroacuteis cocircmicos satildeo

tambeacutem autores de uma saiacuteda que nem sempre pode ser compartilhada socialmente ou

compreendida

Neste contexto a construccedilatildeo do duplo representa um transbordamento do proacuteprio

poeta um arremedo despadronizado o outro do autor uma imitaccedilatildeo de algo que se pretende

por muitas vezes deter e que retorna fazendo pressatildeo no sentido contraacuterio denunciando as

injusticcedilas e desmandos autorizados pelo poeta com toda a sua pujanccedila Quem natildeo recorda das

figuras ceacutelebres de Diceoacutepolis o duplo cocircmico (matuto) de os Acarnenses (Aristoacutefanes) e de

Joatildeo Grilo e Chicoacute sendo uma espeacutecie de duplo pois representa de forma autorizada a

proacutepria voz do poeta com todas as suas anedotas e os ndash Natildeo sei soacute sei que foi assim ou de

algum outro matuto astuto de nossa tradiccedilatildeo cinematograacutefica ou teatral recriado na literatura

de cordel a partir da influecircncia ibeacuterica ou grega

Diante dessa apropriaccedilatildeo e recuperaccedilatildeo dos mecanismos narrativos da comeacutedia e

de seu caraacuteter atemporal torna-se importante salientar que a Comeacutedia Antiga aleacutem de

construir ldquomuacuteltiplos cocircmicosrdquo apresenta personagens natildeo universais como os que satildeo

caricaturas de pessoas que viveram em Atenas em um momento especiacutefico A obra de

Aristoacutefanes potildee em cena nomes de figuras eminentes da Greacutecia antiga como o de poliacuteticos

9 A paraacutebase eacute uma seccedilatildeo de natureza puramente coral da comeacutedia antiga Na Paraacutebase o coro avanccedilaria em direccedilatildeo aos espectadores e pronunciaria os versos olhando para eles O verbo parabaino aparece doze vezes nas peccedilas de Aristoacutefanes Nas suas demais menccedilotildees significa transgredir um juramento (As Aves vv 331 447 461 Lisiacutestrata vv 235 236 As Mulheres que Celebram as Tesmofoacuterias v 357 Assembleia de Mulheres v 1049) Em As Vespas v 1529 o sentido eacute o de avanccedilar danccedilando mas o contexto em que eacute empregado natildeo eacute parabaacutetico DUARTE Adriane da Silva O dono da voz e a voz do dono a paraacutebase na comeacutedia de Aristoacutefanes Satildeo Paulo Humanitas FFLCH USP 2000308 10 Debique escaacuternio mangaccedilatildeo mangoaccedila mangoccedila mofa zombaria mangofa

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(Cleatildeo e Lacircmaco) pensadores (Soacutecrates) e poetas (Euriacutepides e Eacutesquilo)

A referecircncia a essas personalidades bem como o diaacutelogo com a mitologia a

histoacuteria e o teatro natildeo constituiacutea um problema para a plateia de Aristoacutefanes No entanto para

noacutes leitores de outras geraccedilotildees a percepccedilatildeo de tais referecircncias natildeo eacute assim tatildeo simples ainda

que seja fundamental para a compreensatildeo da comeacutedia

Em Aristoacutefanes Diceoacutepolis que atua na comeacutedia como Joatildeo Grilo no Auto da

Compadecida representa muitos cidadatildeos pois ele eacute a ldquoCidade Justardquo espectador do teatro

participante da assembleia ator ou personagem de Euriacutepides vendedor na sua aacutegora Eacute nesta

interaccedilatildeo criaccedilatildeo e recriaccedilatildeo de discursos que estabelecemos contato com o maior

entendimento da histoacuteria da comicidade a fim de entender os recursos que o comedioacutegrafo

utilizou ao compor seus (duplos) personagens que permanecem por seacuteculos em nossa

tradiccedilatildeo

Vale ressaltar que tudo que acontece na cidade tambeacutem eacute do conhecimento do

poeta que no Auto da Compadecida evidenciado por sua proacutepria construccedilatildeo que obedeceu a

uma ideologia antiga do autor de unir o nacional ao popular para operar as mudanccedilas sociais ndash

em Taperoaacute ndash ou por que natildeo dizer em seu mundo real versejado por suas andanccedilas Para ele

a arte que realmente expressa o paiacutes e o povo brasileiro eacute popular ou baseada no popular uma

arte erudita baseada no popular e em tal concepccedilatildeo de arte estaria a gecircnese de seu teatro no

qual desejava expressar suas raiacutezes e seu povo negando assim os modelos de teatro europeu

como se percebe em sua seguinte fala Queria fazer um teatro que expressasse meu paiacutes e meu povo Aiacute me vi muito naturalmente diante do folheto de cordel essa expressatildeo extraordinaacuteria que o povo brasileiro criou e que eacute o uacutenico espaccedilo cultural onde o povo brasileiro se expressou sem intervenccedilotildees nem deformaccedilotildees que lhe viessem de cima ou de fora O folheto de cordel eacute um universo extraordinaacuterio (SUASSUNA 2001 p 04)

Composto pela recriaccedilatildeo criacutetica e por possuir um enredo que proporciona ao

leitorespectador o riso a reflexatildeo e a dor Auto da Compadecida eacute uma mistura de trageacutedia e

comeacutedia como nos afirma Geraldo da Costa Matos Auto da Compadecida eacute misto um duplo pois participa da estrutura traacutegica pela oposiccedilatildeo muito radical dos personagens a ponto de natildeo haver acordo entre eles e da cocircmica pelos incidentes e desenlace com a salvaccedilatildeo de todos graccedilas agrave intervenccedilatildeo da Compadecida permanecendo no inferno apenas os democircnios cuja situaccedilatildeo jaacute se encontra definida ao aparecerem ao palco (SUASSUNA 2005 p82)

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Na verdade apesar de estarem diluiacutedos em toda a peccedila os elementos traacutegicos e

cocircmicos se intercalam com predominacircncia ora de um ora de outro O cocircmico tem presenccedila

mais marcante em torno das accedilotildees do protagonista Joatildeo Grilo e de seu duplo Chicoacute que

enganam os eclesiaacutesticos (Primeiro Ato) o padeiro e a mulher (Segundo Ato) atraveacutes das

mentiras que criam com o objetivo de ganhar algum trocado ou simplesmente para vingar-se

de seus exploradores

As marcas do traacutegico se tornam mais salientes a partir da metade do segundo ato

com a entrada de Severino do Aracaju travestido de mendigo e do Cangaceiro Estes dois se

opotildeem aos demais personagens uma vez que entram em cena para roubar e acabam

provocando a morte de todos que estatildeo na igreja Na cena do julgamento a oposiccedilatildeo entre as

personagens torna-se ainda mais brusca pois se veem de um lado as figuras celestiais e de

outro as figuras demoniacuteacas natildeo havendo acordo entre elas

Eacute justamente nesse abrir e fechar de cortinas que o teatro aristofacircnicosuassuniano

nos proporciona enquanto espectadores uma visatildeo amplamente criacutetica das accedilotildees humanas

seja pelo desejo pessoal injuacuteria ou pela proacutepria paroacutedia que tatildeo bem se propotildee ao

convencimento do puacuteblico Assim concordamos com Brait (1985) ao referir agrave teoria

desenvolvida por Aristoacuteteles em sua poeacutetica sobre os dois pontos essenciais dos personagens

uma vez que o primeiro ponto define o personagem como reflexo da pessoa humana e o outro

concebe o personagem como construccedilatildeo baseada em leis particulares preacute-existentes no texto

Se quisermos saber alguma coisa a respeito de personagens teremos de encarar frente a frente agrave construccedilatildeo do texto social a maneira que o autor encontrou para dar forma agraves suas criaturas e aiacute pinccedilar a independecircncia a autonomia e a ldquovidardquo desses seres de ficccedilatildeo (BRAIT 1985 p11)

Pode-se observar que esses dois pontos se completam estabelecendo bases para a

criaccedilatildeo das personagens Diceoacutepolis e Joatildeo Grilo tanto em Acarnenses como no Auto da

Compadecida a partir do olhar atento do(s) autor(es) jaacute que eles sofrem pela aplicaccedilatildeo das

leis preacute-existentes tanto na sociedade real quanto na ficccedilatildeo sem perder o caraacuteter denunciador

e intencional proposto pelo criador intriacutenseco agraves suas criaturas

Portanto tanto em Acarnenses quanto no Auto da Compadecida o vieacutes cocircmico

utiliza a irreverecircncia para tratar e relatar as dificuldades as opiniotildees e as injusticcedilas da

sociedade de maneira direta e aberta e deste modo se contrapotildee agraves regras sociais que exigem

boas maneiras ou padratildeo que jamais seraacute alvo da comeacutedia

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A comeacutedia eacute o oposto da trageacutedia pois se traduz no uso do riso que faz

ultrapassar os limites da seriedade criando novas e criacuteticas hipoacuteteses e questionamentos sobre

a realidade denunciando os viacutecios erros morais e atitudes irregulares de indiviacuteduos de uma

classe aleacutem de servir para criticar a sociedade dos corrompidos dos inferiores de maneira

camuflada e irreverente Desta forma pode-se afirmar que a performance cocircmica da qual o

riso a maacutescara o gesto e a voz fazem parte constitui-se de forma implacaacutevel em Aristoacutefanes

e Suassuna como arma para a exposiccedilatildeo ao ridiacuteculo e a exposiccedilatildeo de algo ou algueacutem ao

ridiacuteculo natildeo seraacute bem visto perante as regras e as pessoas da sociedade como o proacuteprio

dramturga citando Moliegravere afirmava ldquoNatildeo existe tirania que resista a gargalhadas que lhe

deem trecircs voltas em tornordquo

11 A comeacutedia aristofacircnica

Castigat ridendo mores 11

Devo de iniacutecio chamar a atenccedilatildeo do empenhado leitor que com grande causa e

sem gabaccedilatildeo deve compreender as peripeacutecias dos (anti)heroacuteis que ora apresento entre o curto

espaccedilo de fechar e abrir as cortinas do teatro-mundo cabe uma especial referecircncia agraves obras

postas em anaacutelise ligadas pelo riso denunciativas em suas eacutepocas separadas

cronologicamente e atemporalmente aqui em completude

Desde a Antiguidade o riso e a comeacutedia tecircm servido para manifestar os viacutecios e

as fraquezas humanas Segundo a perspectiva de Aristoacuteteles na sua Poeacutetica a comeacutedia era a

via por onde passava o homem inferior ndash o nosso anti-heroacutei aquele que natildeo era digno de se

prestar agraves trageacutedias e ser chamado de heroacutei Provavelmente foi na Greacutecia que para noacutes a

representaccedilatildeo do homem inferior surgiu Desde entatildeo aquilo que provoca o riso tem sido no

mais das vezes o que eacute condenaacutevel e baixo na humanidade Em ambas as peccedilas o riso eacute a

arma cocircmica que castiga os costumes que estavam em desacordo com a moral e a partir

disso o riso passa a ser um fenocircmeno sobretudo social e humano e que ocorre somente em

circunstacircncias em que de alguma forma a sociedade vecirc-se ameaccedilada a ponto de criar

situaccedilotildees absurdas rupturas para expurgar os males que decorrem dessa situaccedilatildeo de

encurralamento de total exploraccedilatildeo como demonstradas nas peccedilas a seguir

11 Locuccedilatildeo latina que significa rindo castiga-se os costumes

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12 Dioniso Matuto Justinoacutepolis um heroacutei embusteiro

Ana Maria Ceacutesar Pompeu (2011) nos esclarece que Acarnenses eacute a primeira

comeacutedia que nos chegou de Aristoacutefanes encenada em 425 aC Ela traccedila um retrato

caricatural da cidade de Atenas num periacuteodo de crise das instituiccedilotildees democraacuteticas

relacionado diretamente com a guerra do Peloponeso (431 aC -404aC) Eacute a primeira

comeacutedia que conservamos do seu autor como tambeacutem da Comeacutedia Antiga e define-se como

uma peccedila de tema poliacutetico no sentido moderno inspirada na administraccedilatildeo e na experiecircncia

coletiva de uma Atenas que vive plenamente o seu periacuteodo democraacutetico

O tiacutetulo da peccedila refere-se aos habitantes do demos 12 de Acarnas ex-combatentes de

Maratona que tinham apoiado a guerra contra Esparta por as suas terras terem sido saqueadas

pelos guerreiros lacedemocircnios O caraacuteter didaacutetico do texto eacute expresso pelo proacuteprio autor nos

versos 500-501 (p92) ldquoPois o que eacute justo a comeacutedia tambeacutem cunhece Eu vou falaacute coisas

terrive mas justardquo Aleacutem do caraacuteter didaacutetico da comeacutedia aristofacircnica percebe-se tambeacutem a

presenccedila de nomes de alguns personagens que tecircm uma significaccedilatildeo alegoacuterica Diceoacutepolis o

personagem principal significa cidade justa Anfiacuteteo eacute um nome divino e de alguns poliacuteticos e

legisladores da eacutepoca

O autor de Acarnenses constroacutei a sua peccedila a partir de Atenas pintada em funccedilatildeo

do proacuteprio fluir histoacuterico assolada pela guerra O eixo central da comeacutedia eacute a relaccedilatildeo entre o

puacuteblico e o privado alimentada pela disputa entre belicistas e pacifistas quanto agrave guerra pelo

que a sua mensagem eacute poliacutetica sendo o povo ateniense representado como um bando de

loucos e a democracia como uma farsa

A peccedila comeccedila com DiceoacutepolisJustinoacutepolis um camponecircs forccedilado a migrar para

a cidade onde vive em condiccedilotildees precaacuterias e que aguarda a reuniatildeo da asssembleia onde o

tema da discussatildeo de um tratado de paz vai ser deliberado Vendo a praccedila vazia lamenta a

natildeo participaccedilatildeo do povo na reuniatildeo da assembleia ficando a decisatildeo entregue nas matildeos de

poliacuteticos profissionais que por regra eram demagogos revelando uma contradiccedilatildeo do sistema

democraacutetico os destinos da comunidade cujo governo pertence a todos (puacuteblico) fica afinal

entregue ao cuidado de poucos (privado) deixando a porta aberta a todo o arbiacutetrio e

venalidade

12 Na Greacutecia Antiga o demo (em grego δῆμος) era uma subdivisatildeo da Aacutetica regiatildeo da Greacutecia em torno de Atenas Os demos jaacute existiam como meras subdivisotildees de terra nas aacutereas rurais desde o seacuteculo VI aC

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Comeccedilada a assembleia Ambiacutedeus faz a proposta de paz mas eacute rechaccedilado com

ordem de prisatildeo DiceoacutepolisJustinoacutepolis tenta reverter a situaccedilatildeo mas sem sucesso dizendo

Oacute priacutetanes vocecircs tatildeo fazendo mal pra assembleia Arrastando o homem que queria fazecirc treacuteguas Pra noacutes e dependuraacute os escudo (ARISTOacuteFANES POMPEU 2014 p67)

Este breve momento em que apenas dois indiviacuteduos se manifestam a favor da

discussatildeo de um problema central no contexto ateniense agindo no interesse do bem comum

da cidade eacute logo apagado abafado pelo conselho que desviaraacute a sua atenccedilatildeo para os

embaixadores que chegam da Peacutersia

DiceoacutepolisJustinoacutepolis protagoniza a voz da razatildeo numa sociedade dominada por

loucos e safados que teimam em alimentar a guerra com Esparta como pretexto para

enriquecerem agrave sua custa ficando ele cada vez mais miseraacutevel e pobre Diceoacutepolis

desmascara em seguida a funccedilatildeo das missotildees diplomaacuteticas persas na figura de

Pseudaacutertabas 13 como fraudes pois vem prometer ouro com a conivecircncia dos embaixadores

atenienses como manobra de diversatildeo apenas

Com efeito a sua ostentaccedilatildeo agrave custa do dinheiro puacuteblico que contrasta com a

pobreza da maioria dos cidadatildeos desmente a veracidade da proposta que fazem por isso eacute

com palavras acerbas - ldquocus molesrdquo- que os incita a natildeo caiacuterem no logro Diceoacutepolis eacute entatildeo

silenciado a reuniatildeo eacute suspensa e iraacute fazer-se agrave porta fechada no Conselho (Pritaneu) Com

este estratagema o direito de todos participarem na tomada de decisatildeo eacute abolido confinando

a decisatildeo poliacutetica ao segredo dos gabinetes Compreendendo que a guerra natildeo lhe conveacutem

DiceoacutepolisJustinoacutepolis conclui uma paz privada com o inimigo libertando-se da loucura da

cidade Assim fugindo de uma ordem puacuteblica corrompida procura um espaccedilo em que possa

ser o senhor absoluto de si proacuteprio Os acarnenses ficam enfurecidos ao descobrirem que

Diceoacutepolis fez um acordo de paz com os lacedemocircnios apedrejando-o

Entatildeo ele tenta com palavras sensatas expor suas razotildees defender-se das

acusaccedilotildees que lhe satildeo movidas mas o seu direito de defesa eacute contestado com ameaccedilas de

ainda maior violecircncia por parte do coro dos Acarnenses

13 ldquopseucircdosrdquo ldquofalsordquo artaacutebe ldquomedida persardquo Falsidacircmetro in Traduccedilatildeo Matuta Cearense de Dyscolos o Enfezado de Menandro POMPEU e SANTOS Cultura e Traduccedilatildeo v 5 n 1 (2017) ISSN 2238-9059 Disponiacutevel em httpperiodicosufpbbrojs2indexphpct 2017

31

ldquoCoro Quero eacute morrecirc seu ti iscutaacute Diceoacutepolis Num faccedila isso natildeo oacute Acaacuternicos Coro Tu vai morrecirc fica sabenrsquoagorardquo (ARISTOacuteFANES POMPEU 2014 p81-82)

A democracia encontra-se subvertida na sua essecircncia quando a violecircncia

imperante impede que o criteacuterio de resoluccedilatildeo dos conflitos seja resolvido com recurso agrave livre

discussatildeo em condiccedilotildees igualitaacuterias no espaccedilo puacuteblico Eacute o que estaacute acontecendo primeiro

na assembleia depois eacute-lhe negado o direito de defesa contra as acusaccedilotildees dirigidas a um

cidadatildeo finalmente eacute silenciado e suspenso a sua proposta de discussatildeo

DiceoacutepolisJustinoacutepolis eacute o proacuteprio Aristoacutefanes criador e criatura autorizado a

assumir o risco de morte proclama o que julga ser justo para a cidade e denuncia a retoacuterica

fraudulenta dos oradores que conquistam o povo com o sortileacutegio encantatoacuterio do seu

discurso Taquioia este tronco aqui E o home que vai falaacute eacute deste tamanhin Tenha cuidado natildeo num vocirc me armaacute de iscudo Vocirc falaacute em favocirc dos lacedemocircmios o qrsquoeu acho Mas tenho muito que temecircPois os modo Dos lavradocirc conheccedilo eu eles fica muito alegre Se pra eles e pra cidade fizeacute elogio algum Home inrolatildeo com justiccedila ou sem ela E aiacute num se datildeo conta que tatildeo seno eacute vindido E dos veacuteio tambeacutem conheccedilo as alma que Num bota a vista noutra coisa mas soacute em mordecirc cum voto Euzin aqui sei o que sofri nas matildeo de Cleatildeo Por causa da cumeacutedia do ano passado Pois teno me arrastado pro tribunal Ele me caluniava e cuspia mintiras contra mim Era uma cachoecircra e me banhava que quase Murri afogado na cusparada de insultos Agora intatildeo antes de falaacutedecircxeprimecircro Qacuteeu me vista como o mais miserave de tudin (ARISTOacuteFANES POMPEU 2014 p84)

Na parte final da peccedila o Coro modula a sua posiccedilatildeo ao final da intriga vindo a

reconhecer o serviccedilo que o poeta prestou agrave comunidade e que o tratado de paz eacute o mais justo

para a cidade pois restabeleceraacute o valor da democracia para as cidades desmascarando os

maus costumes e seus legisladores exploradores do povo

Vale ressasltar que o poeta usa uma histoacuteria cocircmica e simples como enredo a

proacutepria histoacuteria passa a ser um mero pretexto para o desenvolvimento cocircmico em Acarnenses

jaacute que a saacutetira eacute um elemento importante e porque natildeo moralizante nesse contexto

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Tatildeo bem quanto Aristoacutefanes Suassuna elaborou seus personagens seguindo um

esterioacutetipo social No enredo da comeacutedia aristofacircnica encontramos dois elementos (1) o (anti)

heroacutei (2) o esquema fantaacutesticomoralizante

13 O (anti)heroacutei Aristofacircnico

A figura do heroacutei tanto na literatura quanto fora dela eacute laureada com uma

tragicidade iminente o traacutegico que no contexto da mitologia eacute muito mais do que a

encarnaccedilatildeo da perda do sofrimento e das incertezas humanas no fim o traacutegico eacute o

eminentemente humano contra o divino a lembranccedila irrestrita da pequenez ceacutelere e irasciacutevel

da existecircncia humana

Jaacute a comeacutedia grega sobretudo a de Aristoacutefanes nos remete da forma mais

evoluiacuteda a uma concepccedilatildeo de existecircncia que prevecirc de forma profeacutetica que nem tudo o que eacute

humano ou divino deve ser levado muito a seacuterio pois no final tudo eacute poacute a vida um suspiro no

vazio das eras portanto natildeo se pode levar nada muito a seacuterio numa clara conotaccedilatildeo Dioniacutesia

O camponecircs ateniense como sujeito histoacuterico e tambeacutem como personagem do

teatro cocircmico de Aristoacutefanes foi figura central e essencial no decorrer do seacuteculo V a C

desde que sua posiccedilatildeo eacutetico-social permaneceu intacta frente aos sofrimentos beacutelicos de

Atenas pelo que tomou um caraacutecter de idealizaccedilatildeo tanto em sua posiccedilatildeo de cidadatildeo como nas

personificaccedilotildees da comeacutedia aristofaacutenica

O heroacutei de Aristoacutefanes natildeo eacute limitado ao desejo do puacuteblico somente de riso ou

excessos ele tem a grandeza de contradizer o estabelecido de conduzir o ouvinte a um

caminho de excesso que educam de entendimento proferido por um agente que carregado de

um heroiacutesmo simples jamais seraacute unilateral ou submisso E toda essa inquietaccedilatildeo que

provoca a presenccedila desse duplo para a Comeacutedia Antiga eacute uma ferramenta que constroacutei o

heroacutei cocircmico aristofacircnico segundo Whitman (1969 p 25) Essa unidade de autoconceito e autoafirmaccedilatildeo confere ao espiacuterito heroacuteico uma espeacutecie de pureza mas dificilmente eacute o que poderiacuteamos chamar de coerecircncia pois a qualquer momento o heroacutei pode desrespeitar todas as expectativas em deferecircncia aos misteacuterios particulares de sua proacutepria vontade Ele eacute pode-se dizer consistente consigo mesmo mas como ele cria a si mesmo agrave medida que age o resultado natildeo pode ser conhecido de antematildeo nem mesmo por si mesmo O heroiacutesmo eacute como se pode dizer dirigido pelo seu interior e embora as direccedilotildees possam diferir o princiacutepio vale as aparecircncias agraves vezes ao contraacuterio nenhuma abstraccedilatildeo jamais poderaacute controla o heroacutei em busca da totalidade E eacute precisamente isso que os heroacuteis de Aristoacutefanes satildeo 14

14 14This unity of self-conception and self-assertion gives to the heroic spirit a kind of purity but hardly what we would call consistency for at any moment the hero may flout all expectation in deference to the private

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Aristoacutefanes como ningueacutem conferiu ao seu (anti)heroacutei a figura simples de um

homem rural idealmente eacutetico e poliacutetico que a polis ateniense precisava para se reconstruir e

se transformar Essa percepccedilatildeo do camponecircs em Aristoacutefanes daacute uma indicaccedilatildeo dos eventos

tanto do cidadatildeo quanto da cidade e daacute ao leitor uma leitura histoacuterica diferente dos eventos

que Atenas sofreu durante a Guerra do Peloponeso

O (anti)heroacutei aristofacircnico como DiceoacutepolisJustinoacutepolis eacute tipificadamente matuto

que se angustia diante de alguma caracteriacutestica perturbadora da sociedade contemporacircnea por

exemplo o prolongamento da guerra os poliacuteticos corruptos que dominam a ecclesia a

loucura das demos atenienses Incapaz de convencer os outros de sua loucura o heroacutei sai por

conta proacutepria colocando em praacutetica algum tipo de esquema fantaacutestico que pretende acertar as

coisas

Diceoacutepolis reconhece as consequecircncias que prejudicaram a cidade e que tambeacutem

foram percebidas por Aristoacutefanes que com sua poesia sua repercussatildeo e sinceridade

colocou em cena o Cidadatildeo-espectador viacutetima direta da decadecircncia e que teraacute discernimento

sobre as decisotildees dos estrategistas e governadores com os atos de guerra

Segundo Fisher (1993 p33) o (anti)heroacutei de Acarnenses tem sua accedilatildeo construiacuteda

nos vaacuterios lugares apresentados na peccedila o que levou Aristoacutefanes a estabelecer relaccedilatildeo com as

vaacuterias personalidades assumidas por DiceoacutepolisJustinoacutepolis dentre as quais ele cita a de

espectador de festivais dramaacuteticos e a de lavrador

Revelado para o puacuteblico Justinoacutepolis que vive vaacuterios outros papeacuteis representa o

justo da cidade ou o cidadatildeo justo Direto e conhecedor dos truques que o levariam a

convencer a assembleia apresenta-se a Euriacutepides pela proacutepria voz dizendo seu nome e o

demos a que pertence Mermo assim Pois num vocirc mimbora vocirc eacute bater na porta Euriacutepides Euripidizin Me ouve se alguma vez tu ocircviu um home Justinoacutepolis de Colides te chama eu (ARISTOacuteFANES POMPEU 2014 p86)

Entretanto rapidamente o espectador toma conhecimento da intenccedilatildeo de

Justinoacutepolis que eacute se transformar em outra pessoa Para isso ele pede ao tragedioacutegrafo um mysteries of his own will He is one might say consistent with himself but since he creates himself as he goes the result cannot be foreknown even perhaps by himself Heroism is one might say inner-directed and though the directions may differ the principle holds appearances sometimes to the contrary no abstraction ever controls the hero in quest of wholeness And that is precisely what Aristophanes heroe sare (Traduccedilatildeo nossa)

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trapo (= κιον) usado por atores que interpretam mendigos em suas trageacutedias pois ele vai fazer

um discurso ldquoPois tenho que falaacute pro coro um leriado grande Ele traz a morte sacuteeufalaacute malrdquo

(vv 426-427) E para convencer Diceoacutepolis acredita que ldquoEacute que tenho que achaacute que socirc um

ismoleu hojerdquo (vv440)

Portanto o espectador percebe que Justinoacutepolis se transforma em Teacutelefo

incorporando a personalidade de Teacutelefo mesmo que essa incorporaccedilatildeo seja planejada e usada

como arma argumentativa Assim como Teacutelefo Justinoacutepolis eacute o homem do convencimento

mesmo que para convencer ele pareccedila deixar de ser ele mesmo

Em Acarnenses o enredo eacute costurado pelas artimanhas do (anti)heroacutei quando faz

uma paz privada com os espartanos para que ele possa desfrutar das becircnccedilatildeos da paz que foram

perdidas com o iniacutecio da guerra

14 Auto da Compadecida Uma estoacuteria de outras estoacuterias

Os instrumentos culturais mais relevantes no enredo satildeo as crenccedilas e a literatura

de cordel da realidade regional brasileira mais precisamente da realidade regional nordestina

A narrativa do Auto da Compadecida eacute fundamentada em romances e narraccedilotildees populares

Composta de elementos que expotildeem a cultura popular do homem do Nordeste Ariano

Suassuna aborda assuntos universais atraveacutes de figuras populares que mostram integramente

a figura do povo nordestino um povo oprimido tanto por aspectos climaacuteticos quanto sociais

O autor faz ainda uso do humor e da criacutetica ao falar sobre a realidade do homem nordestino

O Auto da Compadecida (1955) de Ariano Suassuna eacute uma peccedila teatral em

forma de auto (gecircnero da literatura que trabalha com elementos cocircmicos e tem intenccedilatildeo

moralizadora) Eacute um drama nordestino apresentado em trecircs atos Esta antologia reuacutene trecircs

folhetos dos quais Ariano Suassuna tirou os motivos e peripeacutecias de seu Auto da

Compadecida Embora o autor paraibano tenha se utilizado de muitos temas populares em sua

peccedila estes poemas satildeo as fontes principais como nos assegura Tavares (2004 p191)

Disse um criacutetico

Como foi que o senhor teve aquela ideacuteia do gato que defeca dinheiro Ariano respondeu Eu achei num folheto de cordel O criacutetico E a histoacuteria da bexiga de sangue e da musiquinha que ressuscita a pessoa Ariano lsquoTirei de outro folhetorsquo O outro E o cachorro que morre e deixa dinheiro para fazer o enterro Ariano lsquoAquilo

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ali eacute do folheto tambeacutem rsquo O sujeito impacientou-se e disseAgora danou-se mesmo Entatildeo o que foi que o senhor escreveu E Ariano lsquoOacute xente Escrevi foi a peccedilarsquo

De acordo com Braulio Tavares (TAVARES 2004 p 104) ldquoAriano escolheu o

folheto como a ceacutelula-matildee de uma nova maneira de fazer arte de enxergar o Nordeste de

enxergar o mundo e de recriar suas formasrdquo A utilizaccedilatildeo desse tipo de reescrita a partir de

textos populares compreende uma escrita mais aproximada do povo do Romanceiro

Nordestino transmitido oralmente eou atraveacutes dos folhetos de cordel

A grande importacircncia do folheto no meu entender eacute que o folheto eacute o uacutenico espaccedilo em que o povo brasileiro se expressou sem influecircncias e sem deformaccedilotildees que lhe viessem de cima de fora Aqui ele se expressou como ele eacute Aqui natildeo imitou a Franccedila natildeo imitou a Inglaterra nem os Estados Unidos O povo brasileiro aqui se expressou como ele eacute Entatildeo essa eacute a grande liccedilatildeo do folheto em feira (SUASSUNA apud TAVARES 2007 p 26)

Segundo Vassalo (1993) a obra se divide em trecircs episoacutedios e os folhetos

utilizados na construccedilatildeo arquitetocircnica da obra estatildeo distribuiacutedos de forma arquitetocircnica

O primeiro ato se baseia em O enterro do cachorro fragmento do folheto O dinheiro de Leandro Gomes de Barros o segundo na Histoacuteria do cavalo que defecava dinheiro do mesmo artista o terceiro amalgama O castigo da soberba de Anselmo Vieira de Souza e A peleja da Alma de Silvino Pirauaacute Lima ambos retomados pelo entremez de Suassuna O castigo da soberba Proveacutem ainda do romanceiro a cantiga de Canaacuterio Pardo utilizada como invocaccedilatildeo de Joatildeo Grilo a Maria o nome Compadecida e a estrofe com que o Palhaccedilo encerra o espetaacuteculo pedindo dinheiro satildeo tomados ao folheto O castigo da soberba(VASSALO In CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA 2000 p 156)

Liacutegia Vassalo aproxima no ensaio citado o teatro de Suassuna ao o teatro

medieval cabe ressaltar que mais adiante nos ocuparemos no ATO V do teatro de Gil

Vicente quando vamos tratar do julgamento das almas no inferno alegoacuterico em diaacutelogo

alinhado entre o autor portuguecircs e Ariano Suassuna

Sobre o auto de Suassuna vale ressaltar que conteacutem elementos do cordel

brasileiro e estaacute inserido no gecircnero da comeacutedia aproximando-se dos traccedilos do barroco

catoacutelico brasileiro O autor faz uso de uma linguagem que privilegia o regionalismo atraveacutes da

caracterizaccedilatildeo das particularidades do falar do homem do sertatildeo Nordeste

A peccedila foi escrita em 1955 e encenada pela primeira vez em 1956 Anos mais

tarde foi adaptada para a televisatildeo e para o cinema em 1999 e 2000 respectivamente

Na peccedila Ariano Suassuna trata de maneira leve e com humor do drama vivido

pelo povo nordestino acuado pela seca atormentado pelo medo da fome e em constante luta

contra a miseacuteria Traccedila o perfil dos sertanejos nordestinos que estatildeo submetidos agrave opressatildeo e

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subjugados por famiacutelias de poderosos coroneacuteis donos de terra Nesse contexto o personagem

de Joatildeo Grilo representa o povo oprimido que tenta sobreviver no sertatildeo utilizando a uacutenica

arma do pobre a palavra - astuacutecia

Fica evidente o cunho de saacutetira moralizante da peccedila atraveacutes das caracteriacutesticas de

seus personagens Assim como em Acarnenses de Aristoacutefanes figuras como padeiro e a

mulher que satildeo avarentos que deixam passar necessidade o empregado enquanto cuidam

demasiadamente de um cachorro de estimaccedilatildeo o padre e o bispo gananciosos que utilizam

da autoridade religiosa enquanto legisladores da Igreja para enriquecerem satildeo levados ao

conhecimento do puacuteblico

De forma bem cocircmica e sem as convenccedilotildees que soacute a comeacutedia sabe quebrar todos

estes satildeo condenados ao purgatoacuterio e passam a depender da ajuda astuciosa do roceiro Joatildeo

Grilo poeta travestido e da Compadecida na defesa do coletivo Na obra O riso Henri

Bergson (1987 p 19-21) salienta que o cocircmico eacute um fenocircmeno exclusivamente humano e

que este se dirige agrave inteligecircncia agrave denuacutencia

A partir dessa observaccedilatildeo Suassuna coloca o leitorespectador em contato com

seu outro o anti-heroacutei duplamente qualificado a defesa de seus algozes o arremedo cocircmico

resultado de uma apariccedilatildeo para a qual o proacuteprio autor emprestou seu discurso social No Auto

da Compadecida a dupla Joatildeo Grilo e Chicoacute em certa medida satildeo uma uacutenica personagem

ou seja uma personagem dupla Joatildeo Grilo eacute a representaccedilatildeo do intelecto o mentor de todas

as artimanhas eacute o autor presente na ausecircncia discursiva que por vezes permeia o texto

somente pelos gestos

Enquanto Chicoacute o duplo de Joatildeo Grilo eacute a forccedila fiacutesica o corpo ao mesmo tempo

bobo e bufatildeo o cuacutemplice perfeito o outro de Joatildeo ambos comparados agrave dupla Bom de Laacutebia

e Tudo Azul (na traduccedilatildeo de Adriane Duarte 2000) de As Aves de Aristoacutefanes e por que natildeo

dizer do proacuteprio poeta que acontece sem iniacutecio meio ou fim porque tudo que eacute justo tambeacutem

eacute de interesse da cidade e do poeta e da Comeacutedia como disse Diceoacutepolis no seu discurso em

Acarnenses Por quecirc Natildeo sei como diria Chicoacute Soacute sei que foi assim 15 Joatildeo Grilo um heroacutei popular e picaresco

O romance picaresco que segundo o proacuteprio Ariano Suassuna sempre o

influenciara surgiu na Espanha e infestou toda a Europa abrange um conjunto de textos

narrativos publicados na maioria dos casos entre 1552 e 1646 Eacute um gecircnero que reuacutene obras

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que refletem uma visatildeo irocircnica e pessimista do homem e uma perspectiva ceacutetica em relaccedilatildeo agrave

sociedade espanhola de sua eacutepoca

Segundo Gonzaacutelez (1994) todas as obras desse periacuteodo constituem o reflexo da

tensatildeo provocada pelo confronto entre o indiviacuteduo e uma sociedade extremamente opressora

Portanto para tornar mais clara a origem da picaresca eacute mister considerar o contexto

histoacuterico-poliacutetico-social em virtude de uma das maiores novidades apresentadas pelo gecircnero

a forte vinculaccedilatildeo da ficccedilatildeo com a histoacuteria

O estudo das circunstacircncias que rodeavam os autores deste gecircnero conduz

naturalmente a uma reflexatildeo sobre a sociedade barroca espanhola e portuguesa com atenccedilatildeo

aos autores Calderoacuten de La Barca (1600-1681) e Gil Vicente (1465-1536) Gonzaacutelez (1994 p

21) apresenta uma sociedade na qual predominam as injusticcedilas Apenas uma minoria - uma

nobreza de sangue corrupto e um clero igualmente decadente - teria acesso ao poder e a bens

materiais Sob essas circunstacircncias o povo ignorante supersticioso e fruto de abusos vivia

na miseacuteria

O romance picaresco surge pois como uma saacutetira mordaz que atinge todo o

sistema poliacutetico econocircmico social e moral Constituiacuteram uma rica fonte de material

romanesco situaccedilotildees iacutempares tais como a expulsatildeo dos mouros de Castela e de Leatildeo e a

questatildeo dos cristatildeos-novos considerados estrangeiros no seu proacuteprio paiacutes Os ataques contra

os viacutecios que infestavam a corte espanhola tecircm tambeacutem como alvo ldquoa honrardquo externa e social

ditada pelo poder do dinheiro Ironicamente o piacutecaro eacute o protoacutetipo do homem sem honra

enfim o entretenimento perfeito para os meandros das classes privilegiadas

A apariccedilatildeo da contestadora imagem do piacutecaro em princiacutepio reverte a imagem do

heroacutei das novelas de cavalaria - tem-se uma inversatildeo do modelo heroacuteico que passa a ser anti-

heroacuteico Gonzaacutelez (1994 p 56) assinala que o piacutecaro

Saindo de estratos baixos revela um aspecto pungente o da luta pela vida Solto no mundo tem de resolver por si mesmo os problemas o que o leva a tornar-se frequentemente ladratildeo Estando sempre exposto ao pior escapa das situaccedilotildees difiacuteceis por seu engenho e astuacutecia

Configura-se assim na novela picaresca um traccedilo permanente em Acarnenses e

no Auto da Compadecida a subversatildeo do (anti)heroacutei idealizado Entretanto cabe-nos aqui

salientar que haacute uma diferenccedila uma vez que na picaresca o piacutencaro natildeo tem qualquer projeto

social ao contraacuterio de Justinoacutepolis e Joatildeo Grilo

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151 O (anti)heroacutei Suassuniano

Joatildeo Grilo nasceu da cultura popular atraveacutes do produto oral e segundo o proacuteprio

Ariano Suassuna foi produto de vaacuterios produtos do que viu ouviu e leu nos folhetos de

cordel Nas palavras de Abreu (1999) a literatura de folhetos nordestinos eacute uma das

expressotildees mais brasileiras usual na regiatildeo Nordeste e em regiotildees que acomodam os

migrantes de origem nordestina

Com as grandes navegaccedilotildees atracaram no Brasil trovadores e artistas populares

que expuseram em seus pertences culturais as origens dessa literatura Eacute uma literatura aacutegil

que alcanccedila as mais diversas temaacuteticas com objetivos variados com ampla divulgaccedilatildeo e

anuecircncia social tanto em meios populares quanto nas academias

O folheto eacute um canal popular de cooperaccedilatildeo na vida do paiacutes que concede a naccedilatildeo

discutir a realidade expressar suas exigecircncias e anseios Conforme Zumthor (2000) embora

sejam impressos os folhetos designam-se por sua tradiccedilatildeo oral seus vestiacutegios de oralidade e

pela razatildeo de serem produzidos para serem proferidos lidos ou declamados cantados em voz

alta para um enorme nuacutemero de indiviacuteduos mesmo o iletrado os ignorantes aspectos comuns

agraves culturas que priorizam a oralidade

Foi num folheto de gracejo que Ariano Suassuna encontrou o personagem-

siacutembolo de sua dramaturgia As Proezas de Joatildeo Grilo (ver trecho abaixo) histoacuteria escrita em

1932 por Joatildeo Ferreira de Lima trazia como protagonista o ceacutelebre amarelinho oriundo dos

contos populares portugueses que no processo de aculturaccedilatildeo ganhou caracteriacutesticas

idecircnticas agraves de outro famoso espertalhatildeo de origem ibeacuterica Pedro Malazarte como se pode

perceber no cordel de Joatildeo Martins de Athayde (1951)

As Proezas de Joatildeo Grilo

Joatildeo Grilo foi um cristatildeo que nasceu antes do dia criou-se sem formosura mas tinha sabedoria e morreu depois da hora pelas artes que fazia

E nasceu de sete meses chorou no bucho da matildee quando ela pegou um gato ele gritou natildeo me arranhe natildeo jogue neste animal que talvez vocecirc natildeo ganhe Na noite que Joatildeo nasceu

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houve um eclipse na lua e detonou um vulcatildeo que ainda continua naquela noite correu um lobisome na rua Poreacutem Joatildeo Grilo criou-se pequeno magro e sambudo as pernas tortas e finas e boca grande e beiccediludo no siacutetio onde morava dava notiacutecia de tudo Joatildeo perdeu o seu pai com sete anos de idade morava perto de um rio Ia pescar toda tarde um dia fez uma cena que admirou a cidade (ATHAYDE 1951 p35)

Assim o heroacutei cordelesco forjado por Suassuna representado por Joatildeo Grilo eacute

tambeacutem um produto social e nesses termos eacute o piacutecaro descrito por Kothe (2000) como a

personagem com caracteriacutesticas daquilo que hoje se chama malandragem beira o traacutegico e se

assume como um eacutepico agraves avessas Como piacutecaro de Kothe Joatildeo Grilo no Auto da

Compadecida e Diceoacutepolis em Acarnenses satildeo de extraccedilatildeo social baixa e se comportam de

modo pouco elevado mas se elevam literariamente e contam ateacute mesmo com a complacecircncia

e a simpatia do leitor As duas personagens representam o modo pelo qual a classe baixa

consegue entrar no picadeiro da literatura

152 A tensatildeo tragicocircmica do (anti)heroacutei no Auto da Compadecida

Segundo Deserto (1995) a trageacutedia e a comeacutedia mantecircm entre si uma relaccedilatildeo de

alguma ambiguidade em que proximidade e afastamento parecem jogar em simultacircneo

importante papel Podemos evocar como representaccedilatildeo simboacutelica desta relaccedilatildeo a imagem

que o tempo veio a tornar quase emblema do proacuteprio teatro das duas maacutescaras a traacutegica e a

cocircmica denunciantes do sofrimento e do riso

O leitor atento percebe que a comeacutedia causada pelos quiprocoacutes 15e pelas confusotildees

no Auto da Compadecida natildeo representa a cura da trageacutedia vivenciada por Joatildeo Grilo nem a

15 Quid pro quo eacute uma expressatildeo latina que significa tomar uma coisa por outra Faz referecircncia no uso do portuguecircs e de todas as liacutenguas latinas a uma confusatildeo ou engano Tem origem medieval tendo sido usada na sua origem para se referir a um engano no uso de termos latinos num texto Tambeacutem pode significar isso por aquilo

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mera atenuaccedilatildeo futura de seus efeitos Joatildeo Grilo o heroacutei da peccedila eacute um misto de uma tensatildeo

que se identifica com o heroacutei cordelesco e desta forma natildeo estaacute atrelado somente aos

aspectos da proeza e da glorificaccedilatildeo uma vez que estaacute associado agrave ideia da fraqueza na

constituiccedilatildeo dos valores humano

Assim Joatildeo Grilo natildeo estaacute contemplado pela trajetoacuteria do heroacutei prodigioso e

honrado pois se orienta pela bandeira da transgressatildeo Joatildeo Grilo eacute a expressatildeo desesperada

do homem que luta contra todas as adversidades mas natildeo consegue evitar a desgraccedila que

vive numa sociedade abalizada pela constante oposiccedilatildeo de duas forccedilas o bem e o mau A

convergecircncia e accedilatildeo dessas forccedilas satildeo responsaacuteveis pela falecircncia do heroacutei fazendo com que

ele mergulhe no territoacuterio escorregadio dos valores

Aristoacuteteles em sua Arte Poeacutetica (2005) conceitua a trageacutedia como a imitaccedilatildeo de

pessoas superiores em accedilatildeo a comeacutedia como a imitaccedilatildeo de pessoas inferiores em accedilatildeo e o

drama como a representaccedilatildeo das pessoas em accedilatildeo Por pessoas superiores entendemos os

heroacuteis que estatildeo entre o humano e o divino possuindo algo de sobrenatural

Ariano Suassuna em sua Iniciaccedilatildeo agrave esteacutetica (2007c) reflete sobre os conceitos

de trageacutedia comeacutedia e drama pensados por Aristoacuteteles ressaltando que outras categorias

fazem parte da trageacutedia como o Belo e ateacute mesmo o Cocircmico Na leitura que faz da Poeacutetica o

escritor percebe o heroacutei como algueacutem dotado de uma alma grande mas natildeo pura Tal ldquoalma

granderdquo eacute percebida mais pelas accedilotildees do que pelas palavras em consonacircncia com o

pensamento aristoteacutelico e no caso de Joatildeo Grilo essa impureza reside em sua proacutepria

personalidade desenhada pela presenccedila de falhas cocircmicas tais como a ambiccedilatildeo a trapaccedila a

alcovitagem a avareza a inveja a vinganccedila e a usura

41

SEGUNDO ATO

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2 HUMOR E O RISO ELEMENTOS INDISPENSAacuteVEIS Agrave CENA COcircMICA

ldquoEacute melhor escrever sobre risos do que sobre laacutegrimas pois o riso eacute o apanaacutegio do homemrdquo (Franccedilois Rabelais)

Para muitos antropoacutelogos o riso foi um fator coadjuvante agrave adaptaccedilatildeo da espeacutecie

sendo um ato instintivo e portador de equiliacutebrio frente a situaccedilotildees extremas de abatimento e

que dele depende a sobrevivecircncia da espeacutecie Vladimir Propp (1992) apresenta seis tipos de

riso e alerta para a existecircncia de outros Embora se debruccedilando basicamente sobre o que

chama de riso de zombaria por compreender que ldquoeacute o mais frequenterdquo sendo o ldquotipo

principal de riso humanordquo o teoacuterico atenta para o riso bom o riso maldoso ou ciacutenico o riso

alegre o riso ritual e o riso imoderado Antes de prosseguir nos cabe ressaltar que natildeo nos

ocuparemos das definiccedilotildees de Propp mas do riso como elemento indispensaacutevel agrave cena cocircmica

e de seus reflexos na Comeacutedia e no Auto

Rir eacute o melhor remeacutedio Por essa afirmativa percebemos o poder do riso na vida

da Humanidade Entretanto o humor e o riso satildeo fenocircmenos que ainda natildeo foram elucidados

completamente mas as coisas engraccediladas podem nos dizer muito do que eacute humano visto que

o homem eacute o uacutenico animal que ri

O cocircmico estaacute presente em situaccedilotildees reais de nossas vidasuma vez que todos noacutes

rimos sempre para qualquer situaccedilatildeo que nos leva quase incompreensiacuteveis para o riso

despertando nosso humor Haacute de se considerar que o riso eacute uma parte fundamental dos efeitos

produzidos pelo humor no ser humano e suas muacuteltiplas formas de expressatildeo vatildeo dizer

respeito ao grau de afetaccedilatildeo ou natildeo que tenha causado tal situaccedilatildeo real ou artiacutestica que

apresenta momentos cocircmicos

Em Histoacuteria do riso e do escaacuternio Minois (2003) esquematiza a histoacuteria do riso em

trecircs momentos o divino o diaboacutelico e o humano Os gregos antigos definiriam o riso a

partir de suas noccedilotildees de divindade

Rir eacute participar da recriaccedilatildeo do mundo nas festas dionisiacuteacas nas saturnais acompanhadas de ritos de inversatildeo simulando um retorno perioacutedico ao caos primitivo necessaacuterio agrave confirmaccedilatildeo e agrave estabilidade das normas sociais poliacuteticas e culturais Nas relaccedilotildees sociais o riso eacute vivido como elemento de coesatildeo e de forccedila diante do inimigo como o mostram os risos homeacutericos ou espartanos ele eacute tambeacutem um freio ao despotismo com as bufonarias rituais dos desfiles triunfais em Roma ou as saacutetiras poliacuteticas em Aristoacutefanes eacute por fim um instrumento de conhecimento que desmascara o erro e a mentira como no caso da ironia socraacutetica das zombarias dos ciacutenicos da derrisatildeo dos viacutecios em Plauto ou Terecircncio (MINOIS 2003 p 630)

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Sobre o riso como capacidade para criar o mundo a nossa volta Aristoacuteteles nos

transmite que somente uma democracia poderia tolerar a franqueza das velhas comeacutedias na

democracia o riso se caracteriza por sua forccedila criacutetica e sua accedilatildeo democratizadora Consoante

ao pensamento de Minois o riso busca se livrar do mundo cheio de injusticcedila e substituiacute-lo por

um mundo melhor Cria uma nova realidade que desloca a outra que natildeo pode mais ser

mantida porque perdeu seu significado O riso eacute entatildeo uma libertaccedilatildeo

Apesar de ter sido relegado na Antiguidade o riso continua a desempenhar um

papel de grande importacircncia na vida social O verdadeiro riso ambivalente e universal natildeo

exclui o seacuterio mas o purifica e o completa Purifica-o do dogmatismo da unilateralidade da

esclerose do fanatismo e do espiacuterito categoacuterico do medo e da intimidaccedilatildeo do didatismo do

engenho e das ilusotildees da fixaccedilatildeo sinistra em um uacutenico niacutevel e da exaustatildeo

21 O riso seacuterio-cocircmico em Aristoacutefanes e Suassuna

212 Riso e Comeacutedia

A Comeacutedia e o Auto satildeo gecircneros cujo sucesso eacute medido pela qualidade do humor

promovido pelas personagens em confronto com suas vivecircncias Humor eacute indispensaacutevel para

a arte cocircmica principalmente porque eacute altamente eficaz para convencer em grande parte pois

atrai a atenccedilatildeo e permite a possibilidade de persuasatildeo da plateia

O riso eacute uma reaccedilatildeo puramente fisioloacutegica que pode ser desencadeada por gatilhos

fiacutesicos e natildeo fiacutesicos e eacute observada em humanos desde a infacircncia Em termos de efeitos

somaacuteticos tem sido sugerido que o riso proporciona aliacutevio do estresse e reduz o desconforto e

ou dor liberando endorfinas produtoras de euforia encefalinas dopamina e adrenalina

todos contribuem para a sauacutede mental e fiacutesica geral Como resultado de suas propriedades

terapecircuticas o riso tem sido usado no contra-condicionamento das reaccedilotildees da raiva bem

como na dessensibilizaccedilatildeo sistemaacutetica ao medo

De acordo com Bakhtin (1999) o elo entre o seacuterio e o cocircmico jaacute existia desde os

primoacuterdios da humanidade na vida social Atraveacutes de investigaccedilotildees do folclore de povos

primitivos observou que os rituais seacuterios coadunavam com os rituais que parodiavam os

mitos os acontecimentos e os heroacuteis que as comunidades cultuavam

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A praacutetica do elogio e do escarnecimento fazia parte das cerimocircnias oficiais das

comunidades antigas Entretanto o seacuterio e o cocircmico passaram a ser dicotomizados com o

surgimento do regime de classes e de Estado Com a divisatildeo de classes iniciou-se um

processo que demarca a diferenccedila de direitos entre os indiviacuteduos na sociedade

Determinadas formas cocircmicas deixam de ser autorizadas soacute podendo ser

executadas em determinadas situaccedilotildees A partir daiacute se consubstanciou uma cultura oficial

delimitando as condiccedilotildees de realizaccedilatildeo do riso O espaccedilo da subversatildeo da gargalhada da

chacota tende a restringir-se aos momentos festivos A divisatildeo do riso e do seacuterio da cultura

popular e da cultura erudita comeccedilou a se intensificar fazendo com que a comicidade fosse

vista como uma expressatildeo menor inclusive no campo da cultura letrada

Segundo Huizinga no livro Homo Ludens (1938) o riso encontra nas situaccedilotildees

diaacuterias o seu proacuteprio espaccedilo as suas proacuteprias regras e o seu proacuteprio tempo e deve ser estudado

como fenocircmeno cultural uma vez que ele estaacute ligado agrave produccedilatildeo de situaccedilotildees que satildeo

proacuteprias do riso O autor nos convida a uma reflexatildeo sobre o poder que reside exatamente no

ato do riso De certo modo o riso segundo Huizinga pode ser visto como um tipo moderado

de ldquoloucurardquo tendo em vista que se realiza por meio de fatos cocircmicos que tambeacutem podem ser

entendidos como uma espeacutecie de ldquoloucurardquo porque neles corta-se o nexo do comum do tempo

do cotidiano

O elemento luacutedico tende a provocar o riso que por sua vez eacute um elemento da vida cotidiana estaacute sempre presente nas relaccedilotildees sociais seja para exprimir uma simpatia para desdramatizar uma situaccedilatildeo ou para exprimir a felicidade O risiacutevel eacute proacuteximo ao cocircmico ao jogo agraves brincadeiras agraves piadas ao luacutedico etc O cocircmico pode ser estudado com as formas as atitudes os gestos e os movimentos do corpo humano tambeacutem pode ser estudado pelo cocircmico de caraacuteter ou atraveacutes da fala do cocircmico de situaccedilotildees de palavras (HUIZINGA 1938 p54)

Para Pirandello o riso pode ser uma accedilatildeo subversiva e o proacuteprio autor assegura

que haacute ambivalecircncias na conceituaccedilatildeo do riso e do fenocircmeno cocircmico na tradiccedilatildeo ocidental

pois O riso pode ser compreendido como experiecircncia do natildeo-seacuterio a inversatildeo cocircmica pode revelar uma gravidade antes oculta certos contrastes inexprimiacuteveis pelo discurso mais cordato uma seriedade que o proacuteprio discurso seacuterio camufla O caraacuteter subversivo e anaacuterquico do riso Em diversos momentos o riso implica numa adesatildeo agrave ordem social estabelecida O riso eacute plural e encontra funccedilatildeo como corretivo social natildeo se restringindo a uma funccedilatildeo normativa tatildeo precisa visto que ele pode acometer um indiviacuteduo isoladamente pode prescindir da sociedade O riso guarda consigo o paradoxo da proacutepria accedilatildeo humana (PIRANDELLO 1957 p294)

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Para Bergson (1987) o riso aleacutem de ser um fenocircmeno social eacute um fenocircmeno

psiacutequico O sujeito ri de situaccedilotildees constrangedoras com as quais natildeo se envolve afetivamente

O cocircmico eacute provocado pela observaccedilatildeo das falhas humanas em uma perspectiva corretiva

diante dos olhos do observador Assim o cocircmico estaacute ligado agrave capacidade de explicitar e

identificar o ridiacuteculo humano manifestado no exagero caricaturado na representaccedilatildeo da

transgressatildeo social na encenaccedilatildeo de gestos automaacuteticos e na exploraccedilatildeo de clichecircs

desgastados

De acordo com Propp (1992) os caracteres cocircmicos natildeo existem por si soacute eles

tecircm relaccedilatildeo com as atividades do homem no mundo social Assumindo a mesma perspectiva

Bergson (1987) afirma que o riso eacute sempre grupal sendo determinado por um conjunto de

atitudes discriminadas e colocadas como engraccediladas perante uma comunidade

A identificaccedilatildeo daquilo que eacute engraccedilado ou humoriacutestico aponta para o

reconhecimento de gestos sociais que rompem com conduta ideal Esse desvio expresso no

comportamento fiacutesico ou moral dos seres sociais compotildee a trama das narrativas que satildeo

contadas com irreverecircncia e bom humor

213 Os elementos do risiacutevel no heroacutei suassuniano

Tenho duas armas para lutar contra o desespero a tristeza e ateacute a morte o riso a cavalo e o galope do sonho Eacute com isso que enfrento essa dura e fascinante tarefa de viver (ARIANO SUASSUNA)

Como jaacute visto estudos comprovam que o conceito claacutessico de heroacutei se origina na

Literatura Grega O termo designa um indiviacuteduo notabilizado por feitos extraordinaacuterios No

entanto com o passar do tempo essas figuras quase divinas jaacute natildeo correspondiam

adequadamente agrave vontade coletiva O heroacutei claacutessico foi sendo substituiacutedo pelo ldquoheroacutei

problemaacuteticordquo personagem cuja existecircncia e valores situam-no perante questotildees sobre as

quais natildeo eacute capaz de expressar consciecircncia clara e rigorosa

A construccedilatildeo desse novo enfoque da imagem do heroacutei eacute uma ideia atribuiacuteda aos

tempos modernos e a sua representatividade evidencia-se sobretudo no gecircnero romance

Contudo como mensageiro de uma criacutetica mordaz e bem-humorada da maacute sorte enfrentada

pelo nordestino em sua difiacutecil missatildeo pela sobrevivecircncia Ariano Suassuna na obra Auto da

Compadecida nos apresenta um heroacutei que ao inveacutes do nobre heroacutei claacutessico repleto de viacutecios

e defeitos

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Joatildeo Grilo eacute uma personagem que povoa o imaginaacuterio folcloacuterico brasileiro

sobretudo na regiatildeo Nordeste assumindo todas as caracteriacutesticas de um anti-heroacutei pois eacute

pequeno fraco franzino amarelo e desnutrido ou seja natildeo possui os atributos esteacuteticos e o

porte de um verdadeiro heroacutei cavalheiresco e romacircntico Joatildeo Joatildeo Joatildeo Morreu Ai meu Deus morreu o pobre de Joatildeo Grilo Tatildeo amarelo tatildeo safado e morrer assim Que eacute que eu faccedilo no mundo sem Joatildeo Joatildeo Joatildeo Natildeo tem mais jeito Joatildeo morreu Acabou-se o Grilo mais inteligente do mundo (SUASSUNA 2005 p 63)

Mas Joatildeo Grilo eacute infinitamente astuto e sua esperteza eacute tamanha que suplanta o

seu porte miuacutedo convertendo sua fragilidade em forccedila Com suas artimanhas ele se agiganta

Graccedilas as suas traquinagens enfrenta e afronta todas as instituiccedilotildees que se pretendem

poderosas e ditam as normas preceitos usos e costumes sociais de seu tempo e de seu

ambiente

Essa figura paradoxal assumida por Joatildeo Grilo o coloca como um anti-heroacutei que

faz do medo a sua arma da astuacutecia o seu escudo que vivendo num mundo hostil perseguido

escorraccedilado agraves voltas com a adversidade acaba sempre driblando o infortuacutenio com uma dose

exagerada de humor que aliaacutes eacute marca do enfrentamento do povo nordestino com as

adversidades sociais

Em Suassuna o termo humor estaacute relacionado agrave disposiccedilatildeo que o indiviacuteduo tem

para rir ou fazer sorrir Propp (1992) considera a priori que o riso eacute uma caracteriacutestica

pertinente do homem e somente a ele eacute dada a capacidade de rir o sorriso para o autor estaacute

ligado a outra esfera da razatildeo humana natildeo vinculada ao escaacuternio ou a derrisatildeo mas

compreende uma disposiccedilatildeo benevolente para com o interlocutor

Ainda nesse esteio para Aristoacuteteles a comicidade com efeito eacute um defeito e uma

feiuacutera sem dor nem destruiccedilatildeo Assim podemos pensar no Auto da Compadecida o riso

como decorrecircncia de uma penalidade um desajuste da conduta de Joatildeo Grilo que nos

surpreende nos atos com um comportamento inesperado

Para Bergson (1987) o riso natildeo eacute apenas uma reprimenda social mas vem de um

desajuste entre a natureza primeira do homem (que eacute mutaacutevel) e uma espeacutecie de rigidez e

mecanizaccedilatildeo Essa rigidez se manifestaria tanto no niacutevel fiacutesico como no caraacuteter ou seja no

acircmbito moral e psicoloacutegico caracteriacutesticas exploradas no personagem Joatildeo Grilo O risiacutevel e

o cocircmico seriam uma forma de desfazer a rigidez evidenciaacute-la corrigi-la

Para Suassuna (2008) o riso eacute como uma espeacutecie de puniccedilatildeo que a sociedade

confere a algo que a ameaccedila diz em seu livro Iniciaccedilatildeo agrave Esteacutetica Desta forma o risiacutevel estaacute

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na inadequaccedilatildeo do comportamento humano fiacutesicopsicoloacutegico uma vez que excede agrave

normalidade sem causas traacutegicas Suassuna no Auto da Compadecida nos deixa claro que ali

o cocircmico surge como um alerta sobre algo que natildeo estaacute funcionando bem nas sociedades

sendo tambeacutem um instrumento revelador dos problemas da sociedade como um todo

No contexto de tensatildeo do Auto eacute que encontramos Joatildeo Grilo um anti-heroacutei

oprimido e no plano da eacutetica eacute um legiacutetimo malandro que usa desse artifiacutecio como uma

forma autecircntica de sobrevivecircncia e de luta frente agraves adversidades sobretudo agravequelas impostas

pelos que detecircm o poder

A malandragem portanto no seu entender natildeo constitui um problema ou pecado

grave pois natildeo eacute utilizada para engrandecimento proacuteprio ou para ascensatildeo econocircmica mas

sim para a promoccedilatildeo da justiccedila social Sobre isto lecircem-se os seguintes versos do cordelista

Paulo Nunes Batista Grilo pra tudo no mundo Tinha uma definiccedilatildeo A sua filosofia Sempre lhe dava razatildeo Pois seguia este ditado Que diz ndash ldquoEstaacute perdoado Ladratildeo que rouba ladratildeordquo Vivendo embora do crime Joatildeo Grilo era caridoso Auxiliava a pobreza Soacute furtava o poderoso Roubava sempre dos nobres Matava a fome dos pobres Mostrando ser generoso (BATISTA 1958 p 28)

Ariano Suassuna como ningueacutem mergulhou na foacutermula do riso que sempre

esteve presente na Antiguidade e ligado aos deuses tendo um significado divino Presente nas

festas esse riso natildeo possuiacutea o sentido de diversatildeo como se conhece hoje ldquoAntes ele

correspondia aos preparativos de sacrifiacutecios e tinha uma relaccedilatildeo congruente com a morte O

riso e a morte fazem boa misturardquo (MINOIS 2003 p 29)

No campo do riso a comeacutedia gregandash da qual nos ocuparemos posteriormente ndash

surge como uma arte secundaacuteria cuja funccedilatildeo era descontrair os espectadores afinal era

apresentada nos intervalos das grandes peccedilas Procurava mostrar o homem rebaixado lidando

com figuras inferiores tanto no sentido moral quanto no acircmbito social Tendo como desiacutegnio

exagerar os defeitos humanos a comeacutedia explorava o ridiacuteculo

Nesse campo ao apresentar o Auto da Compadecida por meio dos contadores de

histoacuteria Chicoacute Joatildeo Grilo e do palhaccedilo o proacuteprio Suassuna admite a influecircncia da Comeacutedia

Antiga do Repente do Cordel dentre outros

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Eacute verdade que devo muito ao teatro grego (e a Homero e a Aristoacuteteles) ao latino ao italiano renascentista ao elisabetano ao francecircs barroco e sobretudo ao ibeacuterico Eacute verdade que devo ainda mais aos ensaiacutestas brasileiros que pesquisaram e publicaram as obras assim como salientaram a importacircncia do Romanceiro Popular do Nordeste principalmente a Joseacute de Alencar Siacutelvio Romero Leonardo Mota Rodrigues de Carvalho Euclides da Cunha Gustavo Barroso e mais modernamente Luiacutes Cacircmara Cascudo e Teacuteo Brandatildeo Mas a influecircncia decisiva mesmo em mim eacute a do proacuteprio Romanceiro Popular Nordestino com o qual tive estreito contato desde a minha infacircncia de menino criado no sertatildeo do Cariri da Paraiacuteba (SUASSUNA 2007 p 30)

O riso no Auto da Compadecida encontra suporte na carnavalizaccedilatildeo ideia

concebida por Mikhail Bakhtin (1993 p 7) que consiste na ldquosegunda vida do povo baseada

no princiacutepio do risordquo princiacutepio este que abole as relaccedilotildees hieraacuterquicas quando desloca os

sujeitos e subverte a ordem social estabelecida De acordo com Bakhtin O riso e a visatildeo de carnavalesca do mundo que estatildeo na base do grotesco destroem a seriedade unilateral e as pretensotildees de significaccedilatildeo incondicional e intemporal e liberam a consciecircncia o pensamento e a imaginaccedilatildeo humana que ficam assim disponiacuteveis pra o desenvolvimento de novas possibilidades Daiacute que uma certa carnavalizaccedilatildeo da consciecircncia precede e prepara sempre as grandes transformaccedilotildees mesmo no domiacutenio cientiacutefico (MIKHAIL BAKHTIN1993 p43)

No Primeiro Ato do Auto da Compadecida haacute o cruzamento da histoacuteria narrada

por Suassuna com a Literatura de Cordel precisamente com o Testamento do cachorro

publicado no folheto intitulado ldquoDinheirordquo escrito por Leandro Gomes de Barros (1909) fato

que desperta na plateia o riso frouxo natildeo simplesmente pelos causos propostos por Chicoacute e

Joatildeo Grilo mas pelo niacutevel de linguagem explorado e pelas artimanhas da dupla para

conseguir o intento de benzer a cachorra antes de enterraacute-la JOAtildeO GRILO Padre Joatildeo Padre Joatildeo PADRE aparecendo na igreja Que haacute Que gritaria eacute essa CHICOacute Mandaram avisar para o senhor natildeo sair porque vem uma pessoa aqui trazer um cachorro que estaacute se ultimando para o senhor benzer PADRE Para eu benzer CHICOacute Sim PADRE com desprezo Um cachorro CHICOacute Sim PADRE Que maluquice Que besteira JOAtildeO GRILO Cansei de dizer a ele que o senhor benzia Benze porque benze vim com ele PADRE Natildeo benzo de jeito nenhum

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CHICOacute Mas padre natildeo vejo nada de mal em se benzer o bicho JOAtildeO GRILO No dia em que chegou o motor novo do major Antocircnio Morais o senhor natildeo o benzeu PADRE Motor eacute diferente eacute uma coisa que todo mundo benze Cachorro eacute que eu nunca ouvi falar CHICOacute Eu acho cachorro uma coisa muito melhor do que motor PADRE Eacute mas quem vai ficar engraccedilado sou eu benzendo o cachorro Benzer motor eacute faacutecil todo mundo faz isso mas benzer cachorro (SUASSUNA 2005 p 21-23)

Tanto na visatildeo Suassuniana quanta na bakhtiniana a visatildeo carnavalesca de mundo

produz formas de linguagem que acabam com qualquer registro formal vocabular ou

dificuldade de aproximaccedilatildeo entre sujeitos enunciadores Dessa forma foi produzida uma

linguagem carnavalesca de muitos recursos tiacutepica da qual encontramos exemplos em vaacuterias

cenas do Auto da Compadecida como no enterro da cachorra um dos folhetos utilizados na

composiccedilatildeo da obra no Primeiro Ato quando o Palhaccedilo adverte ao puacuteblico sobre a histoacuteria

que se desenvolveria com a discussatildeo entre Joatildeo Grilo e Chicoacute para ver se o padre benzeria ou

natildeo o cachorro da mulher do padeiro

Por essa apropriaccedilatildeo da literatura popular percebemos que haacute um cruzamento da

histoacuteria de Suassuna com o cordel escrito por Leandro Gomes de Barros (1865 ndash 1918) ndash O

Testamento do cachorro publicado no folheto intitulado ldquoDinheirordquo que recebeu de Ariano o

seguinte comentaacuterio Quando publiquei o Auto da Compadecida Raimundo Magalhatildees Juacutenior em erudito e arguto artigo chamou atenccedilatildeo para o fato de que essa histoacuteria que eu julgava anocircnima e puramente nordestina jaacute fora usada numa versatildeo parecida por Le Sage no Gil Blaacutes de Santillana Punha ele em duacutevida a autoria popular da nossa versatildeo coisa em que se enganava como se vecirc porque como agora se sabe ela eacute de Leandro Gomes de Barros [] Por outro lado depois o Auto da Compadecida foi traduzido e encenado na Europa os professores Jean Girodon e Enrique Martiacutenez Loacutepez ndash um francecircs o outro espanhol ndash mostraram que a histoacuteria eacute muito mais antiga do que Le Sage vem do norte da Aacutefrica tendo passado agrave Peniacutensula Ibeacuterica com os aacuterabes e sendo muito comum nos fabulaacuterios e novelas picarescas ibeacutericasassim como na Franccedila por Ruteboeuf (SUASSUNA apud SANTIAGO 2007 p260)

Foi no cordel ldquoO Dinheiro ou O Testamento do Cachorrordquo escrito por Leandro

Gomes de Barros (1865 ndash 1918) com a narraccedilatildeo da histoacuteria do cachorro e de seu testamento

que Ariano Suassuna encontrou ideia e material como o proacuteprio afirmava para tambeacutem

escrever suas histoacuterias no Auto da Compadecida

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Eu vi narrar um fato Que fiquei admirado Um sertanejo me disse Que nesse seacuteculo passado Viu enterrar um cachorro Com honras de um potentado Um inglecircs tinha um cachorro De uma grande estimaccedilatildeo Morreu o dito cachorro E o inglecircs disse entatildeo Mim enterra esse cachorro Inda que gaste um milhatildeo Foi ao vigaacuterio e lhe disse Morreu cachorra de mim E urubu no Brasil Natildeo poderaacute dar-lhe fim - Cachorro deixou dinheiro Perguntou o vigaacuterio assim - Mim quer enterrar cachorro Disse o vigaacuterio Oh Inglecircs Vocecirc pensa que isto aqui Eacute o paiacutes de vocecircs Disse o inglecircs Oh Cachorro Gasta tudo esta vez Ele antes de morrer Um testamento aprontou Soacute quatro contos de reacuteis Para o vigaacuterio deixou Antes do inglecircs findar O vigaacuterio suspirou - Coitado Disse o vigaacuterio De que morreu esse pobre Que animal inteligente Que sentimento tatildeo nobre Antes de partir do mundo Fez-me presente do cobre Leve-o para o cemiteacuterio Que vou o encomendar Isto eacute traga o dinheiro Antes dele se enterrar Estes sufraacutegios fiados Eacute factiacutevel natildeo salvar E laacute chegou o cachorro O dinheiro foi na frente Teve momento o enterro Missa de corpo presente Ladainha e seu rancho Melhor do que certa gente

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Mandaram dar parte ao bispo Que o vigaacuterio tinha feito O enterro do cachorro Que natildeo era de direito O bispo aiacute falou muito Mostrou-se mal satisfeito Mandou chamar o vigaacuterio Pronto o vigaacuterio chegou As ordens sua excelecircncia O bispo lhe perguntou Entatildeo que cachorro foi Que seu vigaacuterio enterrou Foi um cachorro importante Animal de inteligecircncia Ele antes de morrer Deixou agrave vossa excelecircncia Dois contos de reacuteis em ouro Se errei tenha paciecircncia Natildeo foi erro sr Vigaacuterio Vocecirc eacute um bom pastor Desculpe eu incomodaacute-lo A culpa eacute do portador Um cachorro como este Jaacute vecirc que eacute merecedor (BARROS 2005 p 5)

Como fonte da recriaccedilatildeo tambeacutem operada na cena do Auto da Compadecida o

testamento do cachorro foi estudado como recurso para o riso visto que pelo uso do Latim

comum nas pregaccedilotildees dos padres por ocasiatildeo da despedida das almas e que equipara o

ldquobichinhordquo a um ser humano o poeta brinca com o puacuteblico e faz uma criacutetica agrave ganacircncia dos

legisladores episcopais JOAtildeO GRILO Estou dizendo que se eacute desse jeito vai ser difiacutecil cumprir o testamento do cachorro na parte do dinheiro que ele deixou para o padre e para o sacristatildeo SACRISTAtildeO Que eacute isso Cachorro com testamento JOAtildeO GRILO Esse era um cachorro inteligente Antes de morrer olhava para a torre da igreja toda vez que o sino batia Nesses uacuteltimos tempos jaacute doente pra morrer botava uns olhos bem compridos prrsquoos lados daqui latindo na maior tristeza Ateacute que meu patratildeo entendeu com a minha patroa eacute claro que ele queria ser abenccediloado pelo padre e morrer como cristatildeo Mas nem assim ele sossegou Foi preciso que o patratildeo prometesse que vinha encomendar a becircnccedilatildeo e que no caso dele morrer teria um enterro em latim Que em

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troca do enterro acrescentaria no testamento dele dez contos de reacuteis para o padre e trecircs para o sacristatildeo SACRISTAtildeO Que animal inteligente Que sentimento nobre E o testamento Onde estaacute [] SACRISTAtildeO Mas eu natildeo disse que fica tudo por minha conta PADRE Por sua conta como se o vigaacuterio sou eu SACRISTAtildeO O vigaacuterio eacute o senhor mas quem sabe quanto vale o testamento sou eu PADRE Hein O testamento SACRISTAtildeO Sim o testamento PADRE Mas que testamento eacute esse SACRISTAtildeO O testamento do cachorro PADRE E ele deixou testamento PADEIRO Soacute para o vigaacuterio deixou dez contos PADRE Que cachorro inteligente Que sentimento notaacutevel JOAtildeO GRILO E um cachorro desse ser comido pelos urubus Eacute a maior das injusticcedilas PADRE Comido ele De jeito nenhum Um cachorro desse natildeo pode ser comido pelos urubus PADRE Mas que jeito pode-se dar nisso Estou com tanto medo do bispo E tenho medo de cometer um sacrileacutegio SACRISTAtildeO Que eacute isso Natildeo se trata de nenhum sacrileacutegio Vamos enterrar uma pessoa altamente estimaacutevel nobre e generosa satisfazendo ao mesmo tempo duas outras pessoas altamente estimaacuteveis nobres e sobretudo generosas Natildeo vejo mal nenhum nisso [] SACRISTAtildeO Se eacute assim vamos ao enterro Como se chamava o cachorro MULHER Xareacuteu SACRISTAcircO Xareacuteu Absolve Domine animas omnium fidelium defunctorum abomni vinculi delictorum TODOS Ameacutem (SUASSUNA 2005 p 48 - 55)

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Diante dessa quebra estabelecida por Ariano Suassuna ao propor no Auto da

Compadecida o enterro do cachorro da mulher do padeiro em mais uma das malandragens de

Joatildeo Grilo cabe aqui uma referecircncia e um entrecruzamento de cenas pois na peccedila As Vespas

de Aristoacutefanes que foi apresentada pela primeira vez em 422 aC no contexto da Guerra do

Peloponeso haacute uma humanizaccedilatildeo de dois catildees que satildeo acusados de roubar comida e por isso

seratildeo julgados

Na peccedila as atitudes de Diceoacutepolis devem ser entendidas como a reaccedilatildeo de um

Aristoacutefanes que procura satirizar o mau funcionamento das instituiccedilotildees democraacuteticas

centrando-se sobretudo nos tribunais A criacutetica seraacute trabalhada a partir de Filocleacuteon filho de

Bdelicleacuteon um velho juiz que encontra nas atividades juriacutedicas sua fonte de rendimento

Recriando-se em cena um tribunal domeacutestico o que chama a atenccedilatildeo do leitor eacute o

julgamento de um catildeo acusado de roubo por outro catildeo ndash poreacutem representativos de dois

poliacuteticos da eacutepoca ndash que a peccedila manifesta a cada cena pela corrupccedilatildeo que domina as

instituiccedilotildees juriacutedicas atenienses

A comeacutedia inicia com um diaacutelogo entre Soacutesias e Xacircntias escravos de Filocleacuteon

que foram orientados a vigiar o velho juiz natildeo deixando que ele vaacute para o Tribunal Pelos

dois personagens o poeta explica aos espectadores a ldquodoenccedilardquo que ataca Filocleacuteon Afirma

Xantias Vocecircs estatildeo perdendo tempo nenhum de vocecircs vai esclarecer o caso Se vocecircs estatildeo ansiosos por saber faccedilam silecircncio vou dizer qual eacute mesmo a doenccedila de meu senhor eacute a paixatildeo pelos tribunais A paixatildeo dele eacute julgar ele fica desesperado se natildeo consegue ocupar o primeiro banco dos juiacutezes Agrave noite ele natildeo goza um instante de sono Se por acaso fecha os olhos seu proacuteprio espiacuterito fica olhando para a clepsidra A paixatildeo dele pelo voto no tribunal eacute tatildeo grande que faz ele acordar apertando trecircs de seus dedos como se oferecesse incenso aos deuses no dia da lua novaQuando ele vecirc escrito nos muros ldquoDemo encantador filho de Pirilampordquoescreve ao lado ldquoEncantadora urna de votosrdquo Se seu galo cantava durante a noite ele dizia que algum acusado sem duacutevida usava essa humilde ave para fazecirc-lo acordar mais tarde do que era necessaacuterio Logo depois do jantar ele pedia as sandaacutelias corria para o tribunal em plena noite e adormecia laacute colado a uma coluna como uma ostra agrave concha Sua severidade o levava a traccedilar sobre as plaquetas do voto a linhada condenaccedilatildeo e ficava com os dedos cheios de cera Com receio de natildeo teraacute pedrinha para o voto ele tinha no jardim de sua casa um canteiro de pedrinhas que renovava sem parar Esta era a sua loucura E as censuras deixavam o coroa excitadiacutessimoTambeacutem fechamos o ferrolho da porta principal para impedi-lo de sair pois esta ldquodoenccedilardquo deixava o filho desesperado No comeccedilo este usa a doccedilura lhe pede para natildeo ficar todo o tempo com o manto de sair e permanecer em casa Depois daacute um banho no pai e purifica ele mas tudo isto eacute inuacutetil Ele sujeita o pai aos exerciacutecios sagrados dos Coribantes opai foge com o tambor e corre para o tribunal querendo julgar Diante do fracasso dessas tentativas ele leva o paia Aacuteigina para se deitar de noite no templo de Ascleacutepio mas quando amanhece o dia laacute estaacute o velho no recinto reservado aos juiacutezes no tribunalFazemos o possiacutevel para impedi-lo de sair mas ele escapa pelas calhas e pelos canos de aacuteguas das chuvas onde aparecia um buraco noacutes tapaacutevamos e fechaacutevamos imediatamente todas as saiacutedas mas ele punha paus nos muros e saltava de um lado para o outro como se fosse um gato Afinal pusemos redes fechando todo o acesso ao jardim e ficaacutevamos de guarda O

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velho se chama Filoclecircon nenhum nome ficaria melhor nele O nome do filho dele eacute Bdeliclecircon ele faz tudo para dominar o gecircnio fogoso do pai (ARISTOacuteFANES As Vespas p38-41 ndash KURY 2004)

A cena ganha dinacircmica com o filho do velho Juiz assustado com a presenccedila dos

outros magistrados vestidos de vespas em sua casa

BDELICLEcircON Deus nosso senhor Vocecirc que preside a entrada de minha casa receba estes novos sacrifiacutecios que lhe oferecemos pela primeira vez em favor de meu pai Adoce o humor aacutespero e austero dele Deixe cair sobre o coraccedilatildeo dele algumas gotas de mel para que de hoje em diante ele seja clemente para com os homens mais benevolente para com o acusado que com o acusador enfim seja sensiacutevel agraves preces dirigidas a vocecirc Tire do caraacuteter dele todo o fel e todas as folhas de urtiga CORO Unidos de todo o coraccedilatildeo aos sentimentos que vocecirc expressou juntamos nossos votos aos seus neste cargo que vocecirc exerce de fato vocecirc se torna querido por todos noacutes depois que vimos vocecirc mais zeloso para com o povo que qualquer dos juiacutezes mais novos que vocecirc

Um criado traz dois personagens disfarccedilados de CACHORROS um dos disfarces reproduz as feiccedilotildees de Laques e o outro as de Cleacuteon

BDELICLEcircON Se algum juiz estaacute laacute fora que se apresse a entrar uma vez iniciadas as falas ningueacutem mais poderaacute entrar FILOCLEcircON Quem eacute este acusado A que pena ele estaacute sujeito XANTIAS Como se fosse o promotor Ouccedilam agora a acusaccedilatildeo ldquoO cachorro da vila de Cidateneacuteia acusa Labes da vila de Aixone de haver contra toda a justiccedila devorado sozinho um queijo da Siciacuteliardquo Que sua pena seja a de usar uma coleira bem apertada FILOCLEcircON Ou entatildeo uma morte de catildeo se ele for condenado BDELICLEcircON Aqui estaacute Labes o outro acusado FILOCLEcircON Ah Bandido Ele tem mesmo a pinta de

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um ladratildeo e se orgulha de me tapear rangendo os dentes Onde estaacute o queixoso o cachorro de Cidateneacuteia 1ordm CACHORRO Au Au BDELICLEcircON Aqui estaacute ele FILOCLEcircON Este eacute um outro Labes bom latidor e lambedor de panelas SOSIAS Como se fosse o arauto Silecircncio Todos sentados Vocecirc objeto da acusaccedilatildeo suba agrave tribuna FILOCLEcircON Durante a fala dele vou me servir de sopa e engoli-la rapidamente XANTIAS Como promotor Senhores juiacutezes Os senhores vatildeo ouvir minha acusaccedilatildeo contra este reacuteu Ele cometeu em relaccedilatildeo agrave cidade e agrave frota de Atenas um atentado indecoroso Ele se esgueirou para um canto depois de roubar um enorme queijo da Siciacutelia aproveitando-se das trevas FILOCLEcircON O roubo dele estaacute suficientemente comprovado o patife acaba de deixar cair no chatildeo um naco de queijo extremamente malcheiroso XANTIAS Pedi a ele que me deixasse provar um pedaccedilo do queijo mas ele natildeo me atendeu Quem vai querer ajudar vocecircs se seu cachorro fiel natildeo deixou nem um pouquinho para mim FILOCLEcircON Ele natildeo lhe deu nada mesmo XANTIAS Nadinha nem a mim nem a seu companheiro FILOCLEcircON Aiacute estaacute um trapalhatildeo que vai ferver mais que estas lentilhas BDELICLEcircON Em nome dos deuses meu pai natildeo profira a sentenccedila antes de ter ouvido as duas partes FILOCLEcircON Mas a coisa estaacute clara meu caro ela fala por si mesma BDELICLEcircON Mas preste atenccedilatildeo para natildeo absolver o acusado este cachorro eacute o mais guloso e o mais egoiacutesta que jaacute vi ele lambe num piscar de olhos todos os cantos de umahellip cidade e devora tudo FILOCLEcircON E natildeo tenho dinheiro nem para mandar

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consertar meu vasohellip 2ordm CACHORRO Entatildeo castigue o acusado uma uacutenica cozinha natildeo pode encher a barriga de dois ladrotildees Tomara que eu natildeo tenha latido no vazio e em vatildeo senatildeo nunca mais vou latir FILOCLEcircON Quanta falta de vergonha Aiacute estaacute um grande trapaceiro Que pensa vocecirc dele meu galo Para mim ele diz ldquosimrdquo Guarda do tribunal Onde estaacute vocecirc Que algueacutem me decirc um penico SOSIAS Fingindo ser o guarda do tribunal Pegue vocecirc mesmo o penico estou ocupado fazendo a citaccedilatildeo das testemunhas Apresentem-se as testemunhas de acusaccedilatildeo a Laques Um prato um pilatildeo uma focircrma de queijo uma grelha uma panela e outros utensiacutelios de cozinha Vocecirc ainda estaacute mijando Ainda natildeo acabou FILOCLEcircON Apontando para o acusado Ainda natildeo mas penso que aquele ali vai fazer coisa pior hoje ele vai se borrar BDELICLEcircON Dirigindo-se ao CACHORRO acusador Entatildeo vocecirc seraacute sempre tatildeo severo e intrataacutevel para com o acusado Por que esta ferocidade FILOCLEcircON Dirigindo-se ao acusado Suba agrave tribuna e defenda-se Por que este silecircncio Fale SOSIAS Com certeza ele nada tem a dizer BDELICLEcircON Vocecirc se engana acontece com ele o que aconteceu haacute muito tempo com Tuciacutedides quando acusou Peacutericles a surpresa da acusaccedilatildeo paralisou completamente as mandiacutebulas de Peacutericles Afaste-se vou assumir a sua defesa Eacute uma tarefa difiacutecil senhores juiacutezes defender um cachorro que eacute alvo de acusaccedilotildees extremamente odiosas poreacutem de qualquer maneira falarei Este cachorro eacute valente e caccedila lobos FILOCLEcircON Ele eacute um ladratildeo e um conspirador BDELICLEcircON Natildeo por Zeus Natildeo haacute um cachorro melhor no mundo Ele seria capaz de cuidar de um grande rebanho de carneiros

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FILOCLEcircON Que importa tudo isto se ele comeu o queijo BDELICLEcircON Que importa Ele luta para defender vocecirc guarda sua casa e aleacutem disto tem outras qualidades Se ele rouba uma coisinha vocecirc deve perdoaacute-lo Reconheccedilo que ele natildeo eacute um grande tocador de ciacutetara FILOCLEcircON Eu gostaria de que ele nem soubesse ler ele natildeo faria a apologia de seu crime BDELICLEcircON Ouccedila minhas testemunhas juiz imparcial Aproxime-se facatildeozinho e fale em voz alta entatildeo vocecirc que estava incumbido dos pagamentos responda com clareza vocecirc natildeo cortou as partes que deveriam ser distribuiacutedas aos soldados FILOCLEcircON Como vou suportar a ideacuteia de ter absolvido um acusado Que seraacute de mim Deuses veneraacuteveis Me perdoem Fiz isso tudo sem querer este natildeo eacute o meu haacutebito (ARISTOacuteFANES As Vespas p153-173 ndash KURY 2004)

Essa visatildeo criacutetica e carnavalesca de mundo que se opotildee ao mau serviccedilo das

instituiccedilotildees produzida nas cenas tanto da peccedila As Vespas quanto a partir dos folhetos de

cordel traz em si uma ideia de inacabamento de quebra imperfeiccedilatildeo e uma forma de

expressatildeo ambivalente por isso ela eacute dinacircmica e mutaacutevel

As formas e siacutembolos irreverentes da linguagem carnavalesca caracterizam-se

principalmente pela coerecircncia sequencial das coisas ldquoao avessordquo e pelas diversas formas de

paroacutedias degradaccedilotildees e atitudes burlescas instrumento que tanto permeiam Acarnenses o

auto de Suassuna e o auto de Gil Vicente do qual trataremos no Quinto Ato

Sobre a ideia de quebra na cena teatral Bakhtin (2002) alerta que a ideia

carnavalesca de que ele trata natildeo estaacute relacionada ao carnaval dos ldquotempos modernosrdquo mas a

uma cosmovisatildeo milenar e universalmente popular Segundo o autor a cultura do carnaval

compreende quatro grandes categorias que envolvemos festejos carnavalescos as obras

cocircmicas representadas nas praccedilas puacuteblicas os insultos os juramentos os folguedos populares

entre outros

Assim o rito do carnaval na perspectiva de Bakhtin eacute constituiacutedo pela vitoacuteria de

uma forma de libertaccedilatildeo momentacircnea da verdade predominante e do estatuto soacutecio-poliacutetico-

econocircmico vigente Desta forma eacute possiacutevel propor a carnavalizaccedilatildeo como dispositivo

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presente no texto que compotildee a nossa pesquisa E para isso relacionaremos carnavalizaccedilatildeo e

polifonia ideias propostas por Mikhail Bakhtin para designar um modo diferente de narrar

Na concepccedilatildeo do autor segundo Gomes (2014) o termo ldquopolifoniardquo natildeo pode ser

relacionado agrave realidade heterogecircnea da linguagem quando vista pelo acircngulo da pluralidade

das ldquoliacutenguassociaisrdquo e por isso natildeo deve ser confundido com os termos ldquoheteroglossiardquo ou

ldquoplurivocidaderdquo sendo a Polifonia para Bakhtin um universo no qual todas as vozes e

consciecircncias satildeo imisciacuteveis e equivalentes ou seja plenas de valor mantendo com outras

vozes do discurso uma relaccedilatildeo de plena igualdade realizaacuteveis para se contrapor ao

estabelecido De acordo com Bakhtin

A multiplicidade de vozes e consciecircncias independentes e imisciacuteveis e a autecircntica polifonia de vozes plenivalentes constituem de fato a peculiaridade fundamental dos romances de Dostoievski [] eacute precisamente a multiplicidade de consciecircncias equipolentes e seus mundos que aqui combinam numa unidade de acontecimento mantendo sua imiscibilidade (MIKHAIL BAKHTIN 2002 p4)

Dessa forma eacute importante ressaltar que os discursos que circulam na sociedade

tecircm pesos poliacuteticos diferenciados em funccedilatildeo dos jogos de poder e do proacuteprio jogo luacutedico

social defendido por Huizinga (1999) Portanto essas ldquovozesrdquo possiacuteveis de serem percebidas

as ironias os textos polifocircnicos aparecem em oposiccedilatildeo agraves vozes que tentam passar

despercebidas nos textos monofocircnicos produzindo um ldquoefeito de apagamentordquo em um

esforccedilo contiacutenuo de impor determinados discursos como centro das relaccedilotildees de poder E

nesse campo movediccedilo tanto Aristoacutefanes quanto Ariano Suassuna encontram espaccedilos para

confrontarem as falas das instituiccedilotildees e seus legisladores seja em Atenas ou Taperoaacute

Segundo Rodrigues (2010) a polifonia e a monofonia satildeo efeitos de sentido cuja

existecircncia eacute possiacutevel em virtude dos procedimentos discursivos Assim tomando como

premissa a afirmativa da autora entendemos que a multiplicidade de vozes autorais diluiacutedas

entre as personagens consolidadas em seus discursos bem como a carnavalizaccedilatildeo dos

personagens do Auto da Compadecida provoca o riso que subverte os poderes atraveacutes de

diversas estrateacutegias como as reproduccedilotildees moralizantes dos diaacutelogos que autorizam o uso da

moral e potencializam as cenas cocircmicas

Ainda de acordo com Rodrigues (2002 p 42)

As relaccedilotildees dialoacutegicas [] satildeo um fenocircmeno universal que penetra [] tudo o que tem sentido e importacircnciardquo Dessa forma o dialogismo eacute a de um princiacutepio constitutivo da linguagem natildeo sendo esse ldquodiaacutelogordquo necessariamente um ponto de

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convergecircncia mas sim um espaccedilo de lutas entre os sujeitos do discurso pois ldquoonde comeccedila a consciecircncia comeccedila o diaacutelogo

Assim a alteridade define o sujeito pois o outro eacute fundamental para a sua

constituiccedilatildeo A relaccedilatildeo existente entre os sujeitos e a alteridade propotildee um jogo de imagens

que interfere na produccedilatildeo dos discursos das identidades e consequentemente dos sujeitos O

dialogismo tem como sua forma maacutexima agrave polifonia

Elemento das cenas cocircmicas as falas segundo Rodrigues (2010 p 62) natildeo estatildeo apenas justapostas como se fossem peccedilas de um brinquedo de montar encontram-se em um estado de interaccedilatildeo e de embate ldquotensordquo e contiacutenuo como os dentes de uma engrenagem proporcionando jogos linguiacutesticos e discursivos provocados pelo desenvolvimento de uma situaccedilatildeo de qui pro quoacute no Auto da Compadecida em funccedilatildeo de um plano de Joatildeo Grilo deixam o Padre Joatildeo em maus lenccediloacuteis com o Major Antocircnio Moraes enquanto o Padre fala sobre benzer a cachorra o Major fala sobre seu filho que estaacute doente e vai para o Recife tratando-se aiacute de uma confusatildeo no plano da realizaccedilatildeo e entendimento da linguagem engenhosamente construiacuteda por Joatildeo Grilo

PADRE Eacute o que vivo dizendo do jeito que as coisas vatildeo eacute o fim do mundo Mas que coisa o trouxe aqui Jaacute sei natildeo diga o bichinho estaacute doente natildeo eacute ANTOcircNIO MORAES Eacute jaacute sabia PADRE Jaacute aqui tudo se espalha num instante Jaacute estaacute fedendo ANTOcircNIO MORAES Fedendo Quem PADRE O bichinho ANTOcircNIO MORAES Natildeo Que eacute que o senhor quer dizer PADRE Nada desculpe eacute um modo de falar ANTOcircNIO MORAES Pois o senhor anda com uns modos de falar muito esquisitos PADRE Peccedilo que desculpe um pobre padre sem muita instruccedilatildeo Qual eacute a doenccedila Rabugem ANTOcircNIO MORAES Rabugem PADRE Sim jaacute vi um morrer disso em poucos dias Comeccedilou pelo rabo e espalhou-se pelo resto do corpo ANTOcircNIO MORAES Pelo rabo PADRE Desculpe desculpe eu devia ter dito ldquopela caudardquo Deve-se respeito aos enfermos mesmo que sejam os de mais baixa qualidade ANTOcircNIO MORAES Baixa qualidade Padre Joatildeo veja com quem estaacute falando A Igreja eacute uma coisa respeitaacutevel como garantia da sociedade mas tudo tem limite PADRE

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Mas o que foi que eu disse ANTOcircNIO MORAES Baixa qualidade Meu nome todo eacute Antocircnio Noronha de Brito Moraes e esse Noronha de Brito veio do Conde dos Arcos ouviu Gente que veio nas caravelas ouviu PADRE Ah bem e na certa os antepassados do bichinho tambeacutem vieram nas caravelas natildeo eacute isso ANTOcircNIO MORAES Claro Se meus antepassados vieram eacute claro que os dele vieram tambeacutem Que o senhor que insinuar Que a matildee dele procedeu mal PADRE Mas uma cachorra ANTOcircNIO MORAES O quecirc PADRE Uma cachorra ANTOcircNIO MORAES Repita PADRE Natildeo vejo nada de mal em repetir natildeo eacute uma cachorra mesmo ANTOcircNIO MORAES Padre eu natildeo mato o senhor agora mesmo porque o senhor eacute padre e estaacute louco [] (SUASSUNA 2005 p 32 -34)

Ainda sobre as falas a mesma autora nos relembra que o proacuteprio Suassuna teceu

comentaacuterio sobre a existecircncia do caraacuteter polifocircnico instaurador do riso no Auto da

Compadecida Como observado pelo proacuteprio Suassuna o Auto da Compadecida trouxe o riso instaurado atraveacutes das polissemias e por meio da ldquofalhardquo nada linguagem O riso eacute provocado na cena descrita anteriormente em funccedilatildeo de as reacuteplicas dos diaacutelogos estarem situadas em contextos distintos causando um desacordo entre as falas dos personagens dessa forma a interaccedilatildeo verbal aconteceu de forma equivocada para os interlocutores para o Padre Joatildeo era a cachorra (animal) do Major que estava doente para Antocircnio Moraes sua mulher estava sendo ofendida pelo padre Portanto o ldquoencaixerdquo das falas faz o qui pro quoacute funcionar proporcionando efeitos de sentido diferentes para cada sujeito da cena enunciativa (RODRIGUES 2010 p 6)

Outra estrateacutegia importante para a compreensatildeo do discurso como revelador do social

encontra-se nas palavras de Bakhtin (2003 p48) ao afirmar que o discurso se efetiva pela

praacutetica contextualizada entre emissor e receptor fato recorrente no Auto da Compadecida e

em Acarnenses visto que em ambas as peccedilas a intenccedilatildeo do autor de colocar para o

leitorouvinte seus objetivos eacute muito clara e social

O diaacutelogo eacute um processo de relacionamento reciacuteproco entre as pessoas que satildeo coautores do que acontece no diaacutelogo Desta forma aqueles que participam do diaacutelogo tecircm uma compreensatildeo ativa e antecipatoacuteria do que foi dito e ouvido Portanto tudo o que eacute dito sempre tem um projeto e eacute sempre incompleto pois o entendimento estaacute ancorado em uma accedilatildeo social conjunta Assim trabalhar com essa

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condiccedilatildeo dialoacutegica constitutiva do ser humano e seu potencial transformador afeta nossa compreensatildeo e as praacuteticas que dialogam como recurso fundamental em sua accedilatildeo e reflexatildeo Dado o exposto eacute possiacutevel entender como as praacuteticas dialoacutegicas generativa preservam troca dialoacutegica a singularidade de cada reuniatildeo a construccedilatildeo coordenada de significado emoccedilatildeo e presenccedila dos participantes priorizando como um dos seus objetivos e tarefa a criaccedilatildeo contextualizada de novas possibilidades discursivas 16

Rodrigues (2010) reforccedila que no jogo das desconstruccedilotildees promovidas pela

linguagem no texto de Ariano Suassuna atraveacutes dos causos que o autor engenhosamente

(des)constroacutei nas reflexotildees das personagens sobretudo de Chicoacute produzem a comicidade e

estabelecem o sentido do dito que estaacute a serviccedilo do social

Dessa forma as fronteiras da liacutengua e os seus lugares de transgressotildees podem assim ser observados atraveacutes de uma situaccedilatildeo de qui pro quoacute Ao estabelecer o deslizamento de sentidos como regra o qui pro quoacute coloca em cena a comicidade Nos jogos com a liacutengua esses niacuteveisquando acionados podem sofrer uma espeacutecie de mutaccedilatildeo por causa dos deslocamentos e descentramentos que tecircm como consequecircncia o riso (RODRIGUES 2010 p 7)

No Auto da Compadecida o caraacuteter polifocircnico eacute dinacircmico e se instaura tambeacutem

atraveacutes do entrecruzamento das artimanhas do Joatildeo Grilo e de Chicoacute fato concretizado por

exemplo pelo uso do latim na cena do enterro aqui jaacute citada o que forccedila de forma jaacute

esperada a participaccedilatildeo do puacuteblico visto que o caraacuteter religioso estaacute ligado agrave

cena(SUASSUNA 2005 p 48-55)

Pela apropriaccedilatildeo discursiva e pela sobreposiccedilatildeo de cenas cocircmicas (re)criadas pelo

posicionamento das personagens no Auto da Compadecida tem-se o reforccedilo de que o riso o

humor e a ironia tecircm sido grandes recursos na literatura de grandes autores que despertam na

audiecircncia no instante do abrir de cortinas a gargalhada assim como Ariano Suassuna que

usa do riso como ritual de escapismo e ou como criacutetica moralizante Leacutelia Parreira (2006 p

45) argumenta que a obra irocircnica eacute a siacutentese de noccedilotildees antiteacuteticas accedilatildeo e natildeo contemplaccedilatildeo

16 El diaacutelogo es un proceso de relacioacuten reciacuteproca entre personas quienes son coautores de aquello que sucede en el diaacutelogo De esta manera quienes participan en el diaacutelogo tienen una comprensioacuten activa y anticipatoria de lo dicho y lo escuchado Por ello todo lo que se dice tiene siempre un proyecto y siempre es incompleto ya que la comprensioacuten estaacute anclada en una accioacuten social conjunta Asiacute trabajar con esta condicioacuten dialoacutegica constitutiva del ser humano y su potencial transformativo incide en nuestra comprensioacuten y en las praacutecticas que tienen al diaacutelogo como recurso fundamental en su accioacuten y reflexioacuten A partir de lo anterior es posible entender como las praacutecticas dialoacutegicas generativas preservan el intercambio dialoacutegico la singularidad de cada encuentro la construccioacuten coordinada de significados la emocionalidad y la presencia encarnada de los participantes jerarquizando como uno de sus objetivos y tareas la creacioacuten contextuada de nuevas posibilidades (Traduccedilatildeo nossa)

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passiva alianccedila entre objetividade e subjetividade mistura do seacuterio e da brincadeira o sonho

e a realidade o sublime e o pateacutetico o real e o aparente

As accedilotildees de Ariano Suassuna em toda a trama do Auto nos revelam que eacute

justamente por meio da ironia que o homem ri de si mesmo de suas crenccedilas e ingenuidades

indicando o que existe de representaccedilatildeo e de fingimento nos sistemas e ideologias

Em Aristoacutefanes comeccedilaremos identificando os recursos cocircmicos que tecircm o

objetivo de desvalorizar Lacircmaco traduzido por Batalhatildeo efetivamente aos olhos do puacuteblico e

passaremos para a anaacutelise de seu valor estrateacutegico A cena em que o personagem aparece pela

primeira vez estaacute localizada apoacutes o confronto entre o heroacutei cocircmico Diceoacutepolis e o coro

camponecircs de Acarnes O coro persegue Diceoacutepolis para apedrejaacute-lo por ter realizado uma

treacutegua particular com os Peloponeacutesios

Diceopolis vestido com o disfarce de Teacutelefo que Euriacutepides lhe emprestou tenta

persuadir o coro com suas razotildees mas soacute consegue convencer uma parte dele O semicoro que

ainda se opotildee agrave paz privada do heroacutei pede entatildeo ajuda a Batalhatildeo e ele aparece pela primeira

vez em cena apelando ao seu chamado (vv 557-574)

COREUTA 1 Eacute verdade seu safado mundiccedila Tal coisa tu ismoleuse atreve a dizecirc pra noacutes E se teve um sicofanta22 tu ainda fala mal dele COREUTA 2 Por Poseidon as coisas que ele taacute dizeno Satildeo tudo justa e ninhuma delas eacute falsa COREUTA 1 Por elas ser justa era preciso ele taacute dizeno Mas ele num vai ficaacuterino por se atrevecirc a falaacute assim COREUTA 2 Eh tu vai correcirc pra donde Ficrsquo aiacute Se tu batecirc Neste home tu vai eacute vuaacute pelo ar bem ligerin COREUTA 1 Eh Bataiatildeo tu que solta faiacutesca pelos oacutei Vem me ajudaacute tu do penacho da Goacutergona aparece Eh Bataiatildeo oacute amigo oacute camarada E se tem aiacute um taxiarcaocirc general ocirc Defensor dos muro vem me ajudaacute Depressa pois tocirc metade dominado BATALHAtildeO De onde vem o grito de guerra que ouvi Aonde devo levar socorro Aonde devo lanccedilar o tumulto Quem despertou a Goacutergona do armaacuterio

Neste momento a linguagem de LacircmacoBatalhatildeo eacute caracterizada por seu tom

eacutepico O termo gritar tem na Iliacuteada em geral o sentido de um grito de guerra Da mesma

forma o kydoimoacutes (tumulto guerrero) eacute tambeacutem de origem homeacuterica O uso do leacutexico eacutepico

aqui eacute paroacutedico porque a cena se desenrola fora de um contexto de batalha e aleacutem disso o

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inimigo eacute um homem uacutenico e inofensivo o camponecircs DiceoacutepolisJustinoacutepolis A paroacutedia

eacutepica eacute entatildeo o primeiro recurso cocircmico usado para ridicularizar a LacircmacoBatalhatildeo

Em geral a paroacutedia costuma ter alvos intertextuais o modelo parodiado Mas

neste caso a paroacutedia eacutepica tem como alvo principal natildeo o intertexto homeacuterico mas o caraacuteter

partidaacuterio da guerra Aristoacutefanes usa um recurso tradicional da literatura cocircmica mas usa-a de

uma forma diferente natildeo mais para zombar do intertexto parodiado mas para servir a saacutetira

contra o seu alvo central A primeira cena apresenta outra seacuterie de recursos cocircmicos que tecircm a

funccedilatildeo de degradar o alvo aos olhos do puacuteblico A resposta de Justinoacutepolis a Batalhatildeo eacute na

verdade zombadora JUSTINOacutePOLIS

Oacute Bataiatildeo heroacutei dos penacho e das tropardquo(v 575)

A rima interna entre loacutephon 17 e loacutechon 18 gera um efeito zombeteiro humoriacutestico

que tambeacutem reduz o ridiacuteculo agrave denominaccedilatildeo eacutepica de heroacutei Este verso combina entatildeo

como recursos cocircmicos paroacutedia eacutepica e humor verbal atraveacutes da rima O efeito humoriacutestico

da rima eacute reforccedilado aleacutem disso pela aliteraccedilatildeo do lambda que liga o nome do personagem

aos dois termos rimados Por outro lado esse verso inaugura o motivo cocircmico do ridiacuteculo das

armas do personagem que se repetiraacute sempre nas cenas protagonizadas por Lacircmaco que eacute a

personificaccedilatildeo da batalha

A recepccedilatildeo de Diceoacutepolis revela o papel que o heroacutei cocircmico vai desempenhar em

relaccedilatildeo a Lacircmaco em todas as cenas em que se enfrentam seu papel seraacute o do zombador o

satirista Essa funccedilatildeo estaacute relacionada em si mesma agrave posiccedilatildeo do enunciador-autor e agrave proacutepria

atividade do autor o ridiacuteculo Ou seja Lacircmaco natildeo eacute apenas zombado no texto - por exemplo

por meio dos recursos paroacutedicos que acabamos de mencionar que satildeo colocados na boca do

mesmo Lacircmaco - mas eacute tambeacutem daquela zombaria que se reforccedila pela zombaria do proacuteprio

caraacuteter de Diceoacutepolis A degradaccedilatildeo cocircmica de Lacircmaco eacute entatildeo produzida a partir da instacircncia

17 Normalmente os capacetes eram enfeitados com phaacuteloi ldquopenachosrdquo feitos de caudas de cavalos hippoacutekomoikoacuterytheslamproicircsiphaacuteloisi- ldquocapacetes guarnecidos de cauda equumlina com brilhantes penachosrdquo(Il XIII 132) e koacuterythosphaacutelonhippodaseiacutees- ldquocapacete de penacho equumlinordquo (Il IV 459) O vocaacutebulo loacutephos tambeacutem eacute utilizado como ldquopenachordquo loacutephonhippiokhaiacutetenndash ldquopenacho com crina de cavalordquo (Il VI 469) Merece destaque o penacho da koacuterys do capacete de Aquiles que era koacuterytha kryacuteseonloacutephonndash ldquocapacete com penacho douradordquo (Il XVIII 611-2)Aleacutem da koacuterys existe um outro tipo de capacete a kyneacutee Odisseu tinha uma kyneacutee que eacute um capacete formado por pele de catildeo ou couro qualquer (Il X 257 261) A parte exterior do capacete de Odisseu tinha ldquoos dentes reluzentes de um javali com presas brancas dispostos em grande nuacutemero com arte e habilidaderdquo (Il X 261-5) Este tipo de capacete que Meriacuteone deu ao rei de Iacutetaca eacute mencionado uma uacutenica vez em HomeroIn Os equipamentos beacutelicos dos heroacuteis homeacutericos Prof Me Luciene de Lima Oliveira- wwwe-publicacoesuerj2012 18 Tropa armada

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enunciativa - os recursos cocircmicos usados pelo proacuteprio autor - e eacute duplicada da instacircncia

interna para a accedilatildeo dramaacutetica por meio do escaacuternio do personagem do heroacutei cocircmico

Diceoacutepolis eacute um alter ego do autor uma voz autorizada um duplo do proacuteprio

Aristoacutefanes um satiacuterico que ridiculariza dentro da cena o alvo cocircmico central da obra

ridiacuteculo das armas do guerreiro inaugurado no verso 575 com a referecircncia agrave tropa eacute retomado

em toda essa cena e mais tarde nas cenas posteriores protagonizadas por Diceoacutepolis e

Lacircmaco (vv 575-585) JUSTINOacutePOLIS Oacute Bataiatildeo heroacutei dos penacho e das tropa CORO Oacute Bataiatildeo acredita que este home faz eacute tempo Que insulta a nossa cidade todinha BATALHAtildeO Tal coisa tu mendigo te atreves a dizer JUSTINOacutePOLIS Oacute Bataiatildeo oacute heroacutei me perdoe Se seno ismoleu disse alguma bestecircra BATALHAtildeO E o que foi que tu disseste de noacutes Natildeo vais falar JUSTINOacutePOLIS Nem sei mais o que foi Tocirc eacute arripiadin de medo das arma Mas por favocirc afasta de mim esta marmota BATALHAtildeO Pronto JUSTINOacutePOLIS Virrsquo ela de costa pra mim BATALHAtildeO Estaacute virada JUSTINOacutePOLIS Vaiacute me daacute a pena do teu elmo BATALHAtildeO Toma a pluma JUSTINOacutePOLIS Segura a minha cabeccedila Que eu vocirc inguiaacute Tenho eacute nojo desses penacho aiacute

A verdade eacute que seja na comeacutedia aristofacircnica ou no auto suassuniano a estrutura

das cenas revela a construccedilatildeo estrateacutegica que ambos os autores utilizam para criticar e

moralizar atraveacutes de piadas ridicularizaccedilotildees polifonias discursivas e ironias que satildeo

facilmente recebidas e aceitas pelo puacuteblico que diante dos gestos e vozes das personagens

conseguem ser partiacutecipes da ideia gerando empatia e cumplicidade cocircmicas imediatas

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TERCEIRO ATO

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3 AS DUAS PECcedilAS ndash O POETA USA MAacuteSCARAS

Eacute fato que associado aos tempos aacuteureos do teatro grego da Eacutepoca Claacutessica estaacute

sem duacutevida o uso da maacutescara Vaacuterias tecircm sido as razotildees apontadas para justificar este fato

tais como a necessidade de melhorar a projeccedilatildeo vocal a possibilidade de facultar aos

espectadores uma visualizaccedilatildeo mais eficaz das personagens ou a exigecircncia do recurso a um

adereccedilo imprescindiacutevel num teatro onde natildeo representavam mulheres

O termo grego prosopon 19 segundo Castiajo (2012) significa lsquofacersquo ou lsquomaacutescararsquo

designava este indispensaacutevel adereccedilo confeccionado com fino linho estucado que era

composto por uma peruca de cabelo natural que podia ser curto ou comprido e de vaacuterias

cores e por um rosto que se ajustava agrave cabeccedila do ator e que possuiacutea apenas uma abertura

para os olhos e outra para a boca bastante alargadas para facilitar a visibilidade da audiecircncia

e para obviamente permitir as condiccedilotildees necessaacuterias ao desempenho do ator a visatildeo e a

emissatildeo vocal Eacute preciso lembrar aqui que como siacutembolo do teatro tatildeo conhecido a maacutescara

era um recurso usado para ampliar a voz do inteacuterprete especialmente na declamaccedilatildeo e ateacute

hoje usamos o termo ldquovoz na maacutescarardquo que corresponde ao aspecto da ressonacircncia superior

o elemento que amplifica a voz fator de grande importacircncia no trabalho do ator capaz de

impulsionar sua voz sem esforccedilo ou com um miacutenimo esforccedilo e ser ouvido plenamente por

todos os ouvintes presentes na plateia

Alguns estudiosos como Pickard-Cambridge (1953) defendem que as primeiras

maacutescaras usadas durante a Idade MeacutediaEacutepoca Claacutessica se caracterizavam por serem bem

mais individualizadas e a falta de expressividade que as feiccedilotildees da maacutescara assumiam

durante a encenaccedilatildeo despertava no entanto no puacuteblico significados muacuteltiplos quando o seu

uso era conjugado com os elementos que constituem o schemandash a postura e os movimentos ndash

a voz humana dos quais nos ocuparemos mais a frente mas que contribuiacuteam de forma

contundente para transmitir agrave audiecircncia sobretudo emoccedilotildees e estados de espiacuterito vividos pelas

personagens que o uso da maacutescara natildeo permitia que transparecessem

Ainda de acordo com Castiajo (2012) essas maacutescaras eram tiacutepicas da comeacutedia

chamadas de maacutescaras-retrato e atraveacutes delas cuja existecircncia eacute atestada pela tradiccedilatildeo

recorria-se a traccedilos comuns das figuras puacuteblicas para se efetivar as representaccedilotildees no espaccedilo

cecircnico

19 Marshall (1999 188) defende que o fato de etimologicamente o termo grego significar tanto lsquofacersquo como lsquomaacutescararsquo eacute um exemplo claro de como estes dois conceitos se imiscuiacuteam no pensamento grego In CASTIAJO Isabel O Teatro Grego em Contexto de Representaccedilatildeo IUCV Portugal Coimbra 2012

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De qualquer forma e apesar deste caraacuteter impessoal das maacutescaras e da distacircncia que separava atores e espectadores o sexo e a idade dos atores mascarados poderiam ser identificados pelo puacuteblico pois as maacutescaras brancas eram postas em cena para representar uma personagem feminina para uma masculina uma escura Em relaccedilatildeo agrave idade era possiacutevel distinguir trecircs geraccedilotildees diferentes jovens adultos e velhos Assim da combinaccedilatildeo destas duas variaacuteveis resultaram seis tipos convencionais de maacutescaras diferentes usadas tanto na trageacutedia como na comeacutedia a de homem velho (geron) cuja face era escura a barba e os cabelos brancos e com a particularidade de possivelmente ser calvo a de homem maduro (aner)[] (CASTIAJO 2012p8)

Certo eacute que parece legiacutetimo concordar com Marshall (1999) quando afirma que o

uso da maacutescara resulta mais do fato de o espaccedilo de performance ser apropriado para isso do

que da ideia de ser essencial representar mascarado para se transmitir a moral discursiva eou

a consciecircncia de um outro fato que sugere que o motivo subliminar que estaacute na base do uso

da maacutescara nos tempos mais remotos do teatro prende-se a um assunto seacuterio deixar para

traacutes o deus no santuaacuterio o outro ldquoeurdquo criado em sua honra para que este natildeo fosse transposto

para a sociedade real

Em Acarnenses a paroacutedia reveste o rosto da personagem a partir do Teacutelefo traacutegico

de Euriacutepides que em cena estaacute a serviccedilo do cocircmico mascarado como outro perfeito para a

realizaccedilatildeo de um objetivo maior a obtenccedilatildeo da paz

Em Suassuna a ldquoGrande Vozrdquo que inicia a peccedila eacute um Palhaccedilo ndash um mascarado ndash

que de forma carnavalesca apresenta agrave audiecircncia desde os elementos cecircnicos aos

personagens adiantando que o trabalho que seraacute posto em cena se trata de um julgamento

para o exerciacutecio e restabelecimento da moralidade e que ali os proacuteprios espectadores se

reconheceratildeo nos vaacuterios outros duplos que se disfarccedilaratildeo para alcanccedilar o objetivo do autor

que eacute moralizar pelo riso

31 Os gestos a vestimenta o corpo e o disfarce

A comeacutedia pautava-se por uma maior liberdade nas marcaccedilotildees cecircnicas nos

movimentos e nos gestos e por uma maior verossimilhanccedila com a realidade e segundo Pickard-

Cambridge (1953) embora houvesse tambeacutem alguns gestos tiacutepicos ndash como o gesto chamado de

ldquogansordquo executado atraveacutes das matildeos e que simulava o bico de um ganso usado para indicar que

estavam a ser proferidas palavras sem sentido Era tambeacutem comum assistir-se nas comeacutedias a

gestos praticados na trageacutedia mas sob a forma de paroacutedia

68

Apesar da quase inexistecircncia de indicaccedilotildees textuais do autor eacute possiacutevel

reconstruir a movimentaccedilatildeo cecircnica dos atores a partir de indicaccedilotildees dadas pelos proacuteprios de

referecircncias presentes em escoacutelios 20 das representaccedilotildees dos vasos e ainda levando em conta

uma forma de arte muito semelhante a oratoacuteria seguida do gesto por exemplo falar com

determinado tipo de pose colocando a matildeo por baixo da tuacutenica ndash como era tiacutepico da oratoacuteria e

como se pode visualizar em vasos gregos de representaccedilotildees teatrais ndash ou executar movimentos

circulares ndash situaccedilatildeo que se depreende ter acontecido natildeo soacute no contexto teatral como tambeacutem

na realidade dos tribunais

Sob o vieacutes da representaccedilatildeo cecircnica e da importacircncia de seus elementos para criar a

rede de significados junto ao puacuteblico Mate (2011) afirma sobre o gesto-gestual e o

gestualizaacutevel

Importante agrave execuccedilatildeo das cenas o gestual passa pelo corpo do ator que na condiccedilatildeo de ser social irradia complexa e muacuteltipla gama simboloacutegica Levando o puacuteblico a promover uma relaccedilatildeo fundamentada no jogo de decifraccedilatildeo de siacutembolos tanto enigmaacuteticos (mais difiacuteceis de serem traduzidos) e de alegorias (siacutembolos facilmente traduziacuteveis) A troca entre ambos (atores e puacuteblico) ocorre quando o texto que intermedia essa relaccedilatildeo na condiccedilatildeo de um ldquotecido simboacutelicordquo transforma-se em gesto Na condiccedilatildeo de uma fratura do cotidiano o espetaacuteculo que acontece no tempo e no espaccedilo compreende um grande arcabouccedilo de gestualizaccedilatildeo esteacutetico-social

De qualquer forma fosse qual fosse a natureza dos gestos estes necessitavam de

ser executados em grande escala de forma a serem perceptiacuteveis pelos espectadores mais

distantes e por isso eacute expectaacutevel na opiniatildeo de DrsquoArnott (1989) que eles tivessem mais um

cariz funcional do que legitimidade teatral ateacute porque eram resultado de um sem nuacutemero de

convenccedilotildees Em Acarnenses por exemplo a movimentaccedilatildeo acentuada pela dificuldade

estrateacutegica do mendigo resulta natildeo soacute no princiacutepio da pena junto a alguns espectadores e

acusadores como tambeacutem reforccedila na proacutepria audiecircncia a identificaccedilatildeo com a dor do

apresentado

No Auto da Compadecida apoacutes um toque de clarim o Palhaccedilo figura tiacutepica das

apresentaccedilotildees circenses entra e como ocorre durante todo o espetaacuteculo conduz com ajuda do

gestual a encenaccedilatildeo desempenhando a funccedilatildeo de narrador educador dos espectadores pois

20 Para a normatizaccedilatildeo de algumas palavras gregas jaacute dicionarizadas utilizamos a forma de acordo como que consta no Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa (2008) Escoacutelio (gr σχόλιον scholion comentaacuterio interpretaccedilatildeo) satildeo notas gramaticais ou de criacutetica aos autores antigos

69

no lugar do autor anuncia o caraacuteter moralizador e religioso da peccedila na qual haacute um combate

ao mundanismo visto pelo autor como uma praga de sua igreja Suassuna por considerar-se

digno de falar sobre tal tema deixa-se ser representado por um palhaccedilo para indicar que sabe

mais do que ningueacutem e por acreditar que o povo sofre e tem direito agrave defesa justa

Outro aspecto que deve ser observado durante boa parte da peccedila satildeo as matildeos

retraiacutedas de Joatildeo Grilo as incontaacuteveis viradas de cabeccedila e as baixadas de olhos revelam natildeo

tatildeo somente sua falta de posicionamento social visiacuteveis nos mais variados e longiacutenquos

lugares do sertatildeo brasileiro como abrem para o leitor-espectador a compreensatildeo do que seria

um instante uacutenico no qual o Grilo planeja minuciosamente sua estrateacutegia de convencimento

da audiecircncia e de seus acusadores e defensores

O leitor atento logo percebe que seja na comeacutedia aristofacircnica ou no auto de

Suassuna o gesto corresponde a uma determinada atitude do corpo (que incorpora as

determinaccedilotildees histoacuterico-sociais em seu sentido estrito e restrito) que no teatro efetiva-se por

meio de siacutembolos sonoros e duplamente gestuais intenccedilatildeo por meio da qual a palavra se

projeta traduzida gestualmente

Quem natildeo codificou os gestos propostos pelos olhos e cabeccedila de Chicoacute ao

procurar no bolso cigarro para contar agrave audiecircncia seus causos que ganham vida no

imaginaacuterio popular Eacute neste universo miacutemico que convidamos o leitor a beber e entender

como nos garante Stanford (1983) que estes gestos convencionais para traduzir a intenccedilatildeo do

autor executados pelos personagens dotados de sensaccedilotildees e por vezes reveladores de

estrateacutegias moralizantes satildeo atemporais e indispensaacuteveis agrave tessitura da obra para a

compreensatildeo dos que assistem e chegam a vivenciar o encenado

Segundo Jameson (1999) o gestus ao dividir a apreensatildeo do espectador provoca

um conjunto de reflexotildees Vecirc-se algo que ao expressar variadas e contraditoacuterias conotaccedilotildees

induz ao cotejamento agrave contraposiccedilatildeo de leituras O espectador afasta-se do que vecirc para

aproximar-se da vida que vive e a partir daiacute voltar agrave obra Em movimento dialeacutetico pode-se

ver aleacutem do aparentemente apreensiacutevel

[] gestus eacute o operador de um efeito de estranhamento no sentido proacuteprio e em particular que o estranhamento deriva da superposiccedilatildeo de cada um destes significados sobre os demais mostrando-nos por exemplo como um movimento involuntaacuterio de matildeo poderia em certas circunstacircncias [] contar como um fatiacutedico ato histoacuterico com consequumlecircncias seacuterias e irreversiacuteveis [] eacute uma superposiccedilatildeo e um estranhamento que natildeo apenas nos faz entender o elemento narrativo especiacutefico a uma luz nova e transformadora mas tambeacutem muda nossas ideias sobre o que eacute um simples gesto fiacutesico e sobre o que ao mesmo tempo conta como um acontecimento histoacuterico (JAMESON 1999 p110)

70

Responsaacutevel tambeacutem pelo convencimento da audiecircncia e como defende

Pickard-Cambridge (1953) o vestuaacuterio estava a serviccedilo dos gestos desempenhando um

importante papel (se natildeo o mesmo) na determinaccedilatildeo pelo puacuteblico do estatuto social

representado pelas personagens cujas caracteriacutesticas podiam facilmente ser expressas atraveacutes

das cores texturas e designs No entanto eacute impossiacutevel determinar com exatidatildeo os figurinos

usados pelos atores nos primeiros tempos do teatro Este fato encontra comprovaccedilatildeo quando

nos lembramos do Teacutelefo de Acarnenses ou do ldquomendigordquo encenado por Severino para entrar

na cidade sem ser denunciado e que em ambos os casos o vestuaacuterio se caracteriza por uma

maior simplicidade e uma maior aproximaccedilatildeo agrave mendicacircncia

Em Acarnenses no momento em que eacute ameaccedilado pelos indignados habitantes de

Acarnas que constituem o Coro Diceoacutepolis necessita de um discurso forte o suficiente para

convencer aqueles homens das boas razotildees das suas treacuteguas privadas Nada como procurar

Euriacutepides e solicitar-lhe os andrajos que tatildeo bem serviram agrave eloquecircncia de Teacutelefo (vv 393-

479) E diante de uma longa lista de personagens andrajosas Diceoacutepolis encontra o seu

Teacutelefo Disfarce perfeito Eacute evidente aqui a noccedilatildeo de que a personagem dramaacutetica natildeo eacute

apenas um conjunto de palavras proferido agrave sombra de um nome mas eacute uma entidade sujeita a

uma construccedilatildeo que decorre das proacuteprias regras e exigecircncias do drama enquanto espetaacuteculo Acarnenses traz o enredo de acordo com a necessidade de defesa colocando o protagonista em maus lenccediloacuteis por ter feito treacuteguas com o inimigo espartano Teacutelefo era mesmo a personagem que melhor se encaixava como disfarce para a defesa do poeta e do protagonista O Teacutelefo de Aristoacutefanes quebra a ilusatildeo dramaacutetica e o paacutethos de que a trageacutedia depende pois enquanto o Teacutelefo de Euriacutepides natildeo se disfarccedila no palco mas parece entrar disfarccedilado de acordo com Foley (1996 135-7) o espectador de Aristoacutefanes vecirc Diceoacutepolis vestir os trapos de Teacutelefo e comeccedilar a se comportar como um mendigo jaacute na cena de aquisiccedilatildeo dos acessoacuterios do disfarce pelo exagero do detalhe e da atuaccedilatildeo de Diceoacutepolis torna-se demasiadamente realiacutestico e natildeo traacutegico Tambeacutem por expor o mecanismo do ekkyacuteklema (408) no momento em que Diceoacutepolis chama Euriacutepides para fora de casa pode sugerir que a comeacutedia desmascara o gecircnero seacuterio mostrando os bastidores do teatro traacutegico mas acrescentando o mesmo mecanismo a sua proacutepria ilusatildeo cocircmica Se o disfarce era para causar compaixatildeo aos acarnenses como ele poderaacute funcionar sem o paacutethos traacutegico (POMPEU 2004 p 83-98)

A escolha de Diceoacutepolis nos assegura que aliado aos gestos o disfarce traduz-se

na melhor estrateacutegia para convencer seus algozes

JUSTINOacutePOLIS Tu compotildee de peacute pra riba Podenotaacute de peacutes no chatildeo por isso tu compotildee os manco Mas por que tu taacute vestido cumrsquosmulambo da trageacutedia Rocircpas de daacute doacute Por isso tu compotildee os ismoleu Mas te imploro pelos teus joeio Euriacutepides Daacute pra mim um mulambo daquela peccedila antiga

71

Pois tenho que falaacute pro coro umleriado grande Ela traz a morte srsquoeufalaacute mal (vv 410-417)

Elemento indispensaacutevel aos planos do heroacutei camponecircs o disfarce se constituiraacute

como mateacuteria prima da accedilatildeo do protagonista ameaccedilado pelo coro Na cena transcrita a seguir

o proacuteprio Diceoacutepolis revela a importacircncia da indumentaacuteria do mendigo para que o torne mais

digno de pena e possa reforccedilar sua estrateacutegia de convencer o coro

EURIacutePIDES Quais trapos Acaso aqueles com que aqui Eneu O coitado do velho concorria JUSTINOacutePOLIS De Eneu natildeo era era de ocirctro mais miserave EURIacutePIDES Os de Fecircnix o ceguinho JUSTINOacutePOLIS Natildeo de Fecircnix natildeo Havia ocirctro mais miserave que Fecircnix EURIacutePIDES Que mantos esfarrapados o homem me pede Seraacute que falas dos de Filoctetes o mendigo JUSTINOacutePOLIS Dele natildeo de um muito muito mais ismoleu EURIacutePIDES Acaso queres os mantos sujos Que Belerofonte tinha este coxo aqui JUSTINOacutePOLIS Natildeo era Belerofonte Mas tambeacutem o tipo era Mancoismoleuquexudo bom de laacutebia EURIacutePIDES Sei quem eacute o homem o miacutesioTeacutelefo JUSTINOacutePOLIS Eacute isso Teacutelefo Dele me daacute eu te suplico os mulambo EURIacutePIDES Oacute rapaz daacute-lhe os trapos do Teacutelefo Estatildeo por cima dos trapos do Tiestes No meio dos de Ino Aqui tens toma laacute (vv 416-434)

Com base nos estudos de Mate (2011) sobre o gestual percebemos a intensidade

causada por este elemento da cena cocircmica durante todo o Auto da Compadecida nas atitudes

de Joatildeo Grilo no balanccedilar do corpo desconsertado nas matildeos que evidenciam a ansiedade de

vinganccedilas contra seus patrotildees ndash o padeiro e a mulher ndash nas viradas de ombro e cabeccedilas tatildeo

comuns na cena social dos longiacutenquos lugares do Nordeste 21 brasileiro Com isso puacuteblico e

personagem se reconhecem na compreensatildeo do que seria um momento para aleacutem do riso do

luacutedico mas plenamente do social que ali ganha vida e ao mesmo tempo se finda nas accedilotildees e

histoacuterias contadas recuperadas da tradiccedilatildeo oral

21 ALBUQUERQUE JUacuteNIOR Durval Muniz de A invenccedilatildeo do Nordeste e outras artes p 66

72

Eacute este o Nordeste universal de Ariano Suassuna lugar de profunda mistura onde o

profano e o sagrado se completam pelos recortes natildeo somente geograacuteficos mas humanos e

imagiacutesticos que servem de ferramentas para autores que voltam suas literaturas para falar da

condiccedilatildeo humana de sobreviver numa regiatildeo tatildeo contraditoacuteria nas incontaacuteveis Taperoaacute que

pulam dos livros e telas e se misturam agrave nossa realidade de forma tatildeo atualizada e recorrente

O Nordeste natildeo eacute um fato inerte na natureza Natildeo estaacute dado desde sempre Os recortes geograacuteficos as regiotildees satildeo fatos humanos satildeo pedaccedilos de histoacuteria magma de enfrentamentos que se cristalizaram satildeo ilusoacuterios ancoradouros da lava da luta social que um dia veio agrave tona e escorreu sobre este territoacuterio O Nordeste eacute uma espacialidade fundada historicamente originada por uma tradiccedilatildeo de pensamento uma imagiacutestica e textos que lhe deram realidade e presenccedila (ALBUQUERQUE2011 p63)

Portanto eacute nessa fonte muacuteltipla de (in)certezas que cortam o universo miacutemico que

Aristoacutefanes e Suassuna nos convidam a entender e deles beber como nos garante Stanford

(1983 85-87) que os gestos convencionais que abrem espaccedilo para a leitura social do autor

estatildeo perfeitamente ligados ao seu contexto fato que desperta no leitorouvinte a mesma teia

de sentidos e sensaccedilotildees vivenciadas pelo autor em seu jogo de enganar para ganhar como

acontece durante o julgamento de Diceoacutepolis pela assembleia em Acarnenses e com Joatildeo

Grilo e os demais no Auto da Compadecida considerandoeacute claroa troca simboacutelica de

conhecimento sobre o encenado que compreende natildeo soacute oral como tambeacutem o gestualizaacutevel

(in)visiacutevel

Assim como as maacutescaras e os gestos o vestuaacuterio constitui-se como um importante

papel (se natildeo mesmo o mais importante) na determinaccedilatildeo pelo puacuteblico do estatuto social

representado pelas personagens cujas caracteriacutesticas podiam facilmente ser expressas atraveacutes

das cores texturas e designs

Se haacute juiacutezes disfarccedilados de vespas um Teacutelefo aristofacircnico indumentado para o

convencimento dos juiacutezes da assembleia que veem Diceoacutepolis como real e ao mesmo tempo o

ilusoacuterio travestido de mendigo para ganhar natildeo perdatildeo de seus algozes mas apenas justificar

seus benefiacutecios Assim devemos pontuar a emergecircncia literaacuteria de Ariano Suassuna ao

colocar seu Teacutelefo em Taperoaacute quando para natildeo ser reconhecido Severino entra na cidade e

em nosso imaginaacuterio vestido tambeacutem de mendigo Em ambos os casos o poeta representou

seu projeto de enganar o mundo em cena pelo puacuteblico que assiste ao espetaacuteculo preso agrave cena

seguinte que alimentaraacute ao seu imaginaacuterio em consonacircncia com o dito pelo poeta romano

Petrocircnio (c 27-66 AD) Mundus vult decipi ergo decipiatur (O mundo quer ser enganado

portanto que seja enganado)

73

Mesmo sendo impossiacutevel determinar com exatidatildeo os figurinos usados pelos

atores nos primeiros tempos do teatro haacute registros que asseguram que figurinos traacutegicos se

baseavam no manto com que Dioniso era frequentemente representado e no que concerne agrave

comeacutedia o vestuaacuterio tiacutepico usado caracterizava-se pela carga grotescamente acentuada

visiacutevel quer na forma como o corpo aparecia enchumaccedilado quer no uso de uma tuacutenica ndash

chiton ndash justa e curta o suficiente para exibir o falo -phallos

O certo eacute que a vestimenta o corpo e o disfarce existem para o Teatro de uma

forma indissociaacutevel se reconstroem a cada cena e em unidade criam e recriam expectativas e

realidades na audiecircncia que assiste agrave peccedila e a vivencia

74

QUARTO ATO

75

4 O AUTOR E SEUS OUTROS NA COMEacuteDIA E NO AUTO

No Quarto Ato tanto em Acarnenses como no Auto da Compadecida

ressaltamos que a figura controversa do poeta esteve pautada pela multiplicidade apresentada

nas accedilotildees cecircnicas das personagens reforccedilando uma atitude dupla polifocircnica e multifacetada

A verdade eacute que a figura do duplo sempre foi e tem sido desde a Antiguidade

insistentemente tematizada sob a inspiraccedilatildeo da literatura aristofacircnica e mais precisamente nos

seacuteculos XVI e XX nos autos de Gil Vicente e de Ariano Suassuna lugar onde encontrou um

terreno feacutertil e vigoroso por ser o ldquoduplordquo revestido por uma aura de misteacuterio e ao esmo

tempo de moralidade No palco do (in)certo que nos revela o teatro analisamos o tema em

duas obras Acarnenses de Aristoacutefanes ndash versatildeo matuta de Ana Maria Ceacutesar Pompeu ndash e no

Auto da Compadecida de Ariano Suassuna tendo por meta ressaltar a partir da accedilatildeo cecircnica a

presenccedila do poeta e de seu discurso moralizante em defesa da cidade

Como tema relacionado agraves vaacuterias vivecircncias humanas o duplo persiste como

temaacutetica sempre pungente e revisitada A ideia do duplo tem estado presente na literatura

desde a Antiguidade retornando na contemporaneidade com ecos da tradiccedilatildeo claacutessica uma

vez que a humanidade vive cercada de elementos relacionados agrave duplicidade e que remetem a

questotildees acentuadamente marcantes como por exemplo o caraacuteter existencial ligado ao ser

masculinofeminino homemanimal espiacuteritocorpo vidamorte ou aos miacutesticos deusdiabo

anjodemocircnio ceacuteuinferno entre outros Desse modo eacute sabido que a praacutetica e a vivecircncia

dessas dualidades desde os primoacuterdios da civilizaccedilatildeo tem conduzido o homem se

(re)conhecer e debater-se sobre a anguacutestia e as dores do duplo

Segundo Mello (2000) a ideia de duplicidade do Eu eacute um conceito antigo e no

que se refere agrave literatura esse tema desperta algumas questotildees inquietantes capazes de nos

levar a reflexotildees sobre - Quem somos - o que a anguacutestia representa senatildeo a falta ndash ou o que

seremos depois da morte Um exemplo praacutetico da temaacutetica do duplo estaacute presente em

narrativas literaacuterias como Metamorfose de Kafka Noite na Taverna de Aacutelvares de Azevedo

O homem duplicado de Joseacute Saramago Don Quixote de La Mancha de Cervantes ou no

conto ldquoO espelhordquo de Machado de Assis e de forma mais especiacutefica em Acarnenses de

Aristoacutefanes e no Auto da Compadecida de Ariano Suassuna

Sob o vieacutes do duplo na literatura Mello ainda afirma que a noccedilatildeo da outra metade

do sujeito expressa para a literatura um novo pensar sobre a identidade pois o indiviacuteduo pode

reconhecer-se como o proacuteprio do que se trata atraveacutes de representaccedilotildees metafoacutericas assim o

desdobramento do eu adquire vocaccedilatildeo especial na literatura

76

A literatura tem uma vocaccedilatildeo especial para tematizar o duplo jaacute que no ato de criar o autor se desdobra em narrador e atraveacutes de seus heroacuteis libera partes aprisionadas em si mesmo que estatildeo sob a maacutescara de um Eu particular fixo no molde da personalidade (MELLO 2000 p 123)

Para uma maior aproximaccedilatildeo com o tragicocircmico no contexto cecircnico do duplo

retornamos ao teatro que na Greacutecia Antiga surgiu a partir de manifestaccedilotildees a Dioniso deus

do vinho da vegetaccedilatildeo do ecircxtase e das metamorfoses Pouco a pouco os rituais dionisiacuteacos

foram se modificando e se transformando em trageacutedias e comeacutedias Entretanto as diferenccedilas

entre o traacutegico e o cocircmico nunca foram tatildeo bem delineadas

Todavia cabe salientar que o Duplo sempre foi um tema profundamente

instigante da cultura humana e sempre esteve essencialmente relacionado vaacuterias aacutereas do

conhecimento como na Filosofia Psicologia Literatura e na Mitologia atuando como

geradora de ambiguidades Na Antiguidade o Duplo era para a sociedade a representaccedilatildeo ou

o reflexo do idecircntico ou seja prevalecia a ideia de Duplo como o homogecircneo manifestaccedilatildeo

do igual

No entanto natildeo permaneceu dessa maneira tendo com o passar do tempo a

partir do seacuteculo XVIII se tornado heterogecircneo isto eacute o Duplo passa a representar o desigual

ou em outras palavras o oposto em Suassuna o arremedo cocircmico Este fato encontra

comprovaccedilatildeo quando procuramos as diferenccedilas existentes entre o traacutegico e o cocircmico tatildeo bem

delineadas na sociedade Greacutecia Claacutessica

41 O par cocircmico na tradiccedilatildeo literaacuteria em Aristoacutefanes e Ariano Suassuna

Nossa pesquisa parte da hipoacutetese especiacutefica de que a dimensatildeo do duplo como o

outro do poeta em Aristoacutefanes e Ariano Suassuna estaacute estruturada a partir da loacutegica binaacuteria do

par cocircmico um par composto pelas intenccedilotildees das personagem e pelas manobras exercidas

pelo poeta para dizer por traacutes das cortinas o que deve ser de conhecimento de todos

Portanto nos propomos enquanto espectadores traccedilar a partir da comeacutedia e do auto diferentes

gecircneros literaacuterio o estudo do par cocircmico de forma a analisar a constituiccedilatildeo dos outros

poeacuteticos em cada uma das obras do corpus selecionado

Neste esteio haacute de se considerar um estudo significativo sobre o assunto

mencionado no trabalho de Beltrametti (2000) que analisa as caracteriacutesticas dos pares

cocircmicos em Aristoacutefanes nos diaacutelogos platocircnicos e no dramaturgo latino Plauto A autora

define em termos gerais a dupla cocircmica como 1) uma unidade dramaacutetica de dois elementos

77

inseparaacuteveis 2) um pivocirc estrutural 3) um noacute semacircntico que liga linhas mais importantes de

senttido

Da caracterizaccedilatildeo proposta por de Beltrametti redefinimos o par cocircmico

aristofacircnico e suassuniano como um esquema binaacuterio composto de dois poacutelos opostos e

complementares o zombador e o zombado o palhaccedilo e o tolo que compotildeem o noacute semacircntico

da accedilatildeo cecircnica que nas obras que compotildeem o corpus deste trabalho estatildeo ao nosso ver a

serviccedilo da voz autoral

Em primeiro lugar como fio de uma produccedilatildeo anterior reconhecemos os

antecedentes literaacuterios do par cocircmico aristofacircnico na Odisseia de Homero quando encontra o

seu modelo mais relevante no binocircmio de Ulisses e do Ciclope no Canto IX Em segundo

lugar traccedilamos a presenccedila da dupla cocircmica suassuniana no auto influenciado pela produccedilatildeo

grega e pela literatura de Gil Vicente de cuja obra nos ocuparemos no V Ato

Entretanto cabe ressaltar que o objetivo central desta parte do nosso estudo eacute

explorar os traccedilos distintivos da dupla cocircmica nesses diferentes gecircneros tendo como base o

duplo poeacutetico e a maneira pela qual os comedioacutegrafos manipulam as accedilotildees das personagens

para construir a interpretaccedilatildeo do puacuteblico

A comeacutedia Acarnenses a primeira do corpus aristofacircnico conservado coloca em

cena a polecircmica poliacutetica entre uma posiccedilatildeo de guerra que desejava a continuidade da guerra

contra Esparta e a posiccedilatildeo contraacuteria que era impulsionada pelo sentimento de paz defendida a

partir do discurso do heroacutei cocircmico Diceoacutepolis

De maneira estrateacutegica Aristoacutefanes age na peccedila de forma a esclarecer para a

audiecircncia sobre os efeitos negativos para a cidade caso a guerra natildeo tenha um fim fato que se

comprova nos estudos de Zumbrunnen (2004) ao analisar a dimensatildeo poliacutetica e persuasiva da

peccedila categorizando-a em uma linha usual as intenccedilotildees seacuterias para aconselhar e influenciar o

puacuteblico em favor do fim da guerra

Em nossa opiniatildeo e seguindo MacDowell (1995) as comeacutedias de Aristoacutefanes

tinham que ser claras e de faacutecil entretenimento para os atenienses comuns atitude que se

justifica pela posiccedilatildeo contraacuteria do proacuteprio autor em relaccedilatildeo agrave guerra estreitada e assegurada

pelo discurso poliacutetico pronunciado na assembleia

Partimos da hipoacutetese especiacutefica de que o par cocircmico na comeacutedia aristofacircnica

constitui um dos seus principais recursos de persuasatildeo cocircmica uma vez que estaacute associado agraves

expectativas do olhar do puacuteblico na interaccedilatildeo cecircnica ndash que tambeacutem se constitui como apartir

do trabalho proposto pelo autor Isso significa que o esquema binaacuterio defendido por

Beltrametti jaacute referido nesta pesquisa funciona por si soacute como uma interpretaccedilatildeo chave para

78

o puacuteblico os telespectadores podem antecipar que o duplo autoral - Diceoacutepolis - seraacute o

condutor central atacado e ridicularizado ndash zombador e acusador ao mesmo tempo no plano

interno da accedilatildeo dramaacutetica

Eacute importante ressaltar no entanto que tanto a comeacutedia de Aristoacutefanes como no

auto de Ariano Suassuna natildeo apresentam personagens idealizados nem absolutamente

indiferentem ao ridiacuteculo ao bobo ou ao piacutecaro As figuras do heroacutei Diceogravepolis e a do bobo

Joatildeo Grilo natildeo satildeo exceccedilotildees

Obscura como outros siacutembolos e projeccedilotildees coletivas a figura do duplo de

Diceoacutepolis em Acarnenses e de Joatildeo Grilo no Auto da Compadecida eacute cocircmica e criacutetica visto

que satildeo elementos que parodiam o serviccedilo divino cantando errado e fazendo sermotildees

moralizantes travestindo-se usando maacutescaras e passeando com maestria nos mundos popular

e erudito representando coletivos pelo poder da gargalhada do riso seacuterio e da tolice formas

mais sutis para se levar ao conhecimento da audiecircncia o desdobramento da consciecircncia ao

mesmo tempo a do idiota e a do bufatildeo que a utiliza como maacutescara e a coloca em praacutetica na

defesa do cidadatildeo injusticcedilado

Klein (1998) assegura que a dualidade implica certa ambiguidade constitutiva

na figura do heroacutei cocircmico e de seu discurso premissa apresentada em Acarnenses e por

extensatildeo aplicada por noacutes no Auto da Compadecida Em ambas as peccedilas o duplo poeacutetico eacute

estuacutepido e saacutebio grosseiro e sutil escravo das pulsotildees e senhor de si mesmo menos e mais

humano como nos afirma Pompeu (2004) ao citar Beltrametti quando a autora escreve que

no teatro de Aristoacutefanes haacute dinacircmicas de pares que satildeo mais complexas

Ela conclui que o teatro de Aristoacutefanes tem seus duplos que satildeo ldquoesses outros si mesmos que tecircm por funccedilatildeo instaurar uma tensatildeo com o si dos protagonistas das comeacutedias fazendo com que as perspectivas se entrelacem tatildeo estreitamente que acabem por se perderrdquo Beltrametti entende ser o par cocircmico ldquo1 Unidade dramaacutetica de dois elementos indissociaacuteveis 2 Princiacutepio e ao mesmo tempo base estrutural 3 Noacute semacircntico onde se ligam as mais importantes linhas do sentidordquo (POMPEU p12)

Assim percebe-se que tanto no teatro aristofacircnico quanto no teatro popular de

Ariano Suassuna o conhecimento eacute expresso natildeo somente pelas maacutescaras e gestos como

tambeacutem pelas vozes cocircmicas que conduzem a plateia ao conhecimento da condiccedilatildeo humana

tatildeo bem levada a seacuterio pelos autores em seus discursos criacuteticos sendo portanto uma nova

forma de combinar velhos ingredientes como o riso frouxo e estridente educador aacutecido da

sociedade que encontra espaccedilo semacircntico atraveacutes dos outros do poeta que se organizam em

uma nova composiccedilatildeo natildeo soacute marcada pela cena teatral mas pela inteligecircncia de um autor

79

que pensa a sociedade para aleacutem das mazelas das injusticcedilas vivenciadas impostas pelo estado

de guerra ou pela exploraccedilatildeo das instituiccedilotildees sociais

Neste ambiente duplicadopolifocircnico observamos que a atitude educadora do

poeta bem como as accedilotildees das personagens que satildeo formadoras da estrutura do discurso

moralizador e porque natildeo dizer denunciador formado a partir da presenccedila de vaacuterias vozes

como a do proacuteprio poeta Haacute de se pontuar pel afirmativa acima que este fato se deve porque

as ldquovozes autoraisrdquo tecircm sido um tema de grande interesse para muitos estudiosos e para todos

que se deparam com a problemaacutetica da identificaccedilatildeo desta quando articulada agrave formaccedilatildeo dos

duplos dentro da Comeacutedia Antiga ou no Auto

Como o Proacuteprio Ariano Suassuna bem jaacute colocou para a construccedilatildeo do Auto da

Compadecida recorreu a uma tradiccedilatildeo cocircmica bastante viva que eacute a literatura oral e popular

do Nordeste dando-lhe novas formas para preservar a autenticidade Condutor de uma seacuterie

de armaccedilotildees ao personagem Joatildeo Grilo o autor conferiu a tarefa de explorar os efeitos

cocircmicos das cenas A presenccedila de Chicoacute o duplo de Joatildeo Grilo tem a mesma importacircncia

para o desenrolar dos atos visto ser ele o mentor das histoacuterias sem peacute nem cabeccedila que

divertem o puacuteblico a ponto de tambeacutem participar da criaccedilatildeo de comicidade

Para Joatildeo Grilo por estrateacutegia do autor coube uma verdadeira consciecircncia de sua

posiccedilatildeo social e a Chicoacute personagem simploacuterio coube toda inocecircncia e imaginaccedilatildeo

JOAtildeO GRILO Vocecirc eacute tatildeo sem confianccedila CHICOacute Eu sem confianccedila Que eacute isso Joatildeo estaacute me desconhecendo Juro como ele vem Quer benzer o cachorro da mulher para ver se o bicho natildeo morre A dificuldade natildeo eacute ele vir eacute o padre benzer O bispo estaacute aiacute e tenho certeza de que o Padre Joatildeo natildeo vai querer benzer o cachorro JOAtildeO GRILO Natildeo vai benzer Por quecirc Que eacute que um cachorro tem de mais CHICOacute Bom eu digo assim porque sei como esse povo eacute cheio de coisas mas natildeo eacute nada de mais Eu mesmo jaacute tive um cavalo bento JOAtildeO GRILO Que eacute isso Chico Jaacute estou ficando por aqui com suas histoacuterias Eacute sempre uma coisa toda esquisita Quando se pede uma explicaccedilatildeo vem sempre com ldquonatildeo sei soacute sei que foi assimrdquo CHICOacute Mas se eu tive mesmo o cavalo meu filho o que eacute que eu vou fazer Vou mentir dizer que natildeo tive JOAtildeO GRILO Vocecirc vem com uma histoacuteria dessas e depois se queixa porque o povo diz que vocecirc eacute sem confianccedila CHICOacute Eu sem confianccedila Antocircnio Martinho estaacute para dar as provas do que eu digo JOAtildeO GRILO Antocircnio Martinho Faz trecircs anos que ele morreu

80

CHICOacute Mas era vivo quando eu tive o bicho JOAtildeO GRILO Quando vocecirc teve o bicho E foi vocecirc quem pariu o cavalo Chico CHICOacute Eu natildeo Mas do jeito que as coisas vatildeo natildeo me admiro mais de nada No mecircs passado uma mulher teve um na serra do Araripe para os lados do Cearaacute JOAtildeO GRILO Isso eacute coisa de seca Acaba nisso essa fome ningueacutem pode ter menino e haja cavalo no mundo A comida eacute mais barata e eacute coisa que se pode vender Mas seu cavalo como foi CHICOacute Foi uma velha que me vendeu barato porque ia se mudar mas recomendou todo cuidado porque o cavalo era bento E soacute podia ser mesmo porque cavalo bom como aquele eu nunca tinha visto Uma vez corremos atraacutes de uma garrota das seis da manhatilde ateacute agraves seis da tarde sem parar nem um momento eu a cavalo ele a peacute Fui derrubar a novilha jaacute de noitinha mas quando acabei o serviccedilo e enchocalhei ares olhei ao redor e natildeo conhecia o lugar onde estaacutevamos Tomei uma vereda que havia assim e aiacute tangendo o boi JOAtildeO GRILO O boi Natildeo era uma garrota CHICOacute Uma garrota e um boi JOAtildeO GRILO E vocecirc corria atraacutes do dois de uma vez CHICOacute Corria eacute proibido JOAtildeO GRILO Natildeo mas eu me admiro eacute eles correrem tanto tempo juntos sem se apartarem Como foi isso CHICOacute Natildeo sei soacute sei que foi assim Saiacute tangendo os bois e de repente avistei uma cidade Eacute uma histoacuteria que eu natildeo goste nem de contar (SUASSUNA 2005 p25-28)

Segundo Girondon (1960) para compor o Auto da Compadecida Suassuna

inspirou-se naturalmente na comeacutedia tradicional italiana no que concerne a certos

personagens Os personagens como Joatildeo Grilo e Chicoacute emprestam de muacuteltiplas fontes seus

traccedilos os mais divertidos Satildeo os personagens ldquoheroacuteisrdquo os condutores da accedilatildeo os criados os

zanni 22 dos Italianos Mas revestem igualmente caracteriacutesticas proacuteprias dos piacutecaros23

espanhoacuteis aos tricksters 24 ingleses ao renard do fabulaacuterio francecircs medieval e ao Pedro

Malasartes da literatura popular luso-brasileira

22 A definiccedilatildeo de zanni no dicionaacuterio estaacute no popular teatro do seacuteculo XV tipo do villano dos vales de Bergamo aacutespero pobre ignorante Zanni tambeacutem eacute um bufatildeo palhaccedilo In Alessandra Mignatti La maschera e il viaggio sullorigine dello Zanni Bergamo Moretti amp Vitali 2007 23 ABRAMS David amp SUTTON-SMITH Brian loc cit 24 ABRAMS David amp SUTTON-SMITH Brian The development of the trickster in childrenrsquos narratives Journal of American Folklore90 (355) 1977 23 24

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Duplos Joatildeo Grilo e Chicoacute satildeo personagens transbordantes de vitalidade e de

artimanhas dotados de uma imensa energia na afirmaccedilatildeo de suas inclinaccedilotildees e de suas ideias

Entretanto na criaccedilatildeo literaacuteria do auto Ariano Suassuna revela todo o controle das accedilotildees

visto que nenhuma das personagens controla verdadeiramente o jogo pois satildeo arrastados pelo

processo cocircmico que se reproduz a cada cena

Assim como o duplo aristofacircnico o par Joatildeo Grilo e Chicoacute nos leva a perceber

que as paixotildees e ambiccedilotildees humanas provocam accedilotildees inconsequentes das quais os seres natildeo se

apercebem Eacute como se o autor quisesse aliar intimamente a bufonaria e a verdade humana

num todo Joatildeo Grilo eacute fanfarratildeo que se deleita sobre seu talento de conduzir bem suas

intrigas Contudo Joatildeo Grilo eacute o ldquomarginalrdquo inventivo que busca uma revanche pelas afrontas

que seus patrotildees o fazem sofrer

No plano teatral eacute justamente Joatildeo Grilo quem nos diz das intenccedilotildees do poeta

fazer rir o puacuteblico pela zombaria da proacutepria natureza humana cuja credulidade e ingenuidade

nos fazem perder a consciecircncia dos proacuteprios defeitos Atraveacutes do riso o homem toma

consciecircncia dele mesmo mitigando suas dores e angustias existenciais Todavia como poeta

cocircmico Ariano Suassuna tambeacutem quer nos fazer refletir uma vez que se o riso pode ser

determinante nas reaccedilotildees entatildeo eacute o pensamento que pode auxiliar a compreender a verdade

humana que se oculta atraacutes do riso

Joatildeo Grilo eacute o duplo poeacutetico que reverbera o pensamento de Suassuna contra as

injusticcedilas e nos ensina que de nada serve se deixar paralisar pelo medo e pela covardia eacute

preciso enfrentar as dificuldades No momento em que tudo parece perdido em que a

condenaccedilatildeo ao inferno parece inevitaacutevel ele revela uma feacute inalteraacutevel em si mesmo e se

permite um novo desafio Ele diz

Eacute difiacutecil quer dizer sem jeito Sem jeito Sem jeito por quecirc Vocecircs satildeo uns pamonhas qualquer coisinha estatildeo arriando Natildeo vecirc que tiveram tudo na terra Se tivessem tido que aguentar o rojatildeo de Joatildeo Grilo passando fome e comendo macambira na seca garanto que tinham mais coragem Quer ver eu dar um jeito nisso Padre Joatildeo (SUASSUNA 2005 p167)

Para Ariano Suassuna o palco do teatro eacute um lugar maacutegico onde as imagens

concretas se instalam na cena a cena em forma de quadros quadros dinacircmicos vivos Ao

lado destas imagens concretas ele instala imagens metafoacutericas que incorpora agrave realidade

cecircnica conduzindo o espectador para o entendimento de que o mundo encontra-se com o

teatro mas natildeo o mundo linear homogecircneo mas o mundo agraves avessas que soacute o teatro mostra e

que pode dar agrave realidade uma chance de impor-se pela ressonacircncia da gargalhada

82

Por conseguinte eacute notaacutevel contudo observar que o duplo cocircmico

frequentemente utilizado por Aristoacutefanes em suas peccedilas tambeacutem encontra eco na literatura

popular de Suassuna por apresentar uma tessitura textual atravessada pelas muacuteltiplas vozes de

seus personagens constituindo-se em um fenocircmeno recorrente e natural que aponta para a

tensatildeo de uma crise profunda denunciada pelo proacuteprio poeta em seus discursos De iniacutecio

esclarecemos que em toacutepico especiacutefico trataremos da voz cocircmica entretanto utilizaremos do

termo para nos referirmos ao duplo autoral a partir da identificaccedilatildeo da produccedilatildeo discursiva

Educadores e denunciadores tanto Aristoacutefanes quanto Ariano Suassuna

constroem em seus enredos personagens que usam da autoridade conferida pelo poeta para

ressoar seus anseios e indignaccedilotildees atraveacutes do discurso Ao longo das peccedilas eles projetam seus

duplos de forma que suas proacuteprias vozes possam ser ouvidas indiretamente por traacutes de cada

ato levando o puacuteblico a crer que ouve a voz direta do poeta quer atraveacutes do coro do palhaccedilo

coreuta da paraacutebase

Como justificativa do duplo satildeo em personagens como Diceoacutepolis ou Joatildeo Grilo

que realizam a intenccedilatildeo poeacutetica e eacute ressonante pelo riso da mangofa pelos gestos

performaacuteticos pelo arremedo poeacutetico eou pelo outro travestido de a(u)tor accedilotildees

perfeitamente justificaacuteveis visto que o duplo cocircmico passa a ser o noacute semacircntico entre as

culturas grega e popular utilizando fatos do dia a dia como mateacuteria na representaccedilatildeo de algo

identificado pelo autor atraindo consequentemente a atenccedilatildeo do leitor ou espectador para a

obra

A verdade eacute que a conduccedilatildeo cocircmica e moralizante levada ao espectador encontra

espaccedilo feacutertil em ambas as obras traduzida pela accedilatildeo do poeta a partir das vozes de seus

duplos Diceoacutepolis e Joatildeo Grilo figuras conturbadas em franco desacordo com a situaccedilatildeo

promovida pelos legisladores em Atenas ou na pacata cidade de Taperoaacute Relevantes para

todo o enredo esses protagonistas descobrem-se em atitude de perfeita rebeldia conscientes

das mudanccedilas advindas de suas atitudes e como heroacuteis cocircmicos satildeo tambeacutem autores de uma

saiacuteda que nem sempre pode ser compartilhada socialmente ou compreendida

O proacuteprio Suassuna admite a influecircncia muacuteltipla que sofreu de outros estilos e

gecircneros ao apresentar a peccedila por meio dos contadores de histoacuteria do Auto Portuguecircs e do

Cordel como Chicoacute Joatildeo Grilo e o palhaccedilo responsaacuteveis diretos pela orientaccedilatildeo da

audiecircncia

Diante dessa apropriaccedilatildeo e recuperaccedilatildeo dos mecanismos narrativos da Comeacutedia e

de outros gecircneros literaacuterios como o auto que apresentam um caraacuteter atemporal torna-se

importante salientar que aleacutem de construir ldquomuacuteltiplos cocircmicosrdquo ela apresenta personagens

83

natildeo universais como os que satildeo caricaturas de pessoas que viveram em Atenas em um

momento especiacutefico A obra de Aristoacutefanes potildee em cena nomes de figuras eminentes da

Greacutecia antiga como o de poliacuteticos (Cleatildeo e Lacircmaco) pensadores (Soacutecrates) e poetas

(Euriacutepides e Eacutesquilo) A referecircncia a essas personalidades bem como o diaacutelogo com a

mitologia a histoacuteria e o teatro natildeo constituiacutea um problema para a plateia de Aristoacutefanes No

entanto para noacutes leitores de outras geraccedilotildees a percepccedilatildeo de tais referecircncias natildeo eacute assim tatildeo

simples ainda que seja fundamental para a compreensatildeo da comeacutedia

Na comeacutedia aristofacircnica a simples presenccedila de Diceoacutepolis um camponecircs que vai agrave Pnix para falar contra os horrores e caos produzidos pela guerra jaacute se configura como um ato de quebra da normalidade estabelecido pelo autor que autoriza seu duplo agrave defesa da cidade O proacuteprio discurso do personagem que eacute tambeacutem em partes a fala do poeta nos revela uma intenccedilatildeo por traacutes das atitudes daquele que para ter sua paz e celebrar no campo as dioniacutesias rurais eacute marginal no plano da obediecircncia imposta pelos legisladores que lucram com o traacutegico da guerra

Indissociaacuteveis das peccedilas e da proposta autoral as marcas do traacutegico se tornam

modelos de uma tensatildeo que provoca o riso e ficam mais salientes a partir da metade do

Segundo Ato no Auto da Compadecida com a entrada do cangaceiro e de Severino do

Aracaju travestido de mendigo representando o duplo do bem o assassino impiedoso que se

disfarccedila para enganar a cidade a exemplo do que fez Diceoacutepolis em Acarnenses ao vestir-se

de Teacutelefo para tambeacutem burlar a assembleia para justificar seu acordo de paz

Marcados pela polifonia tanto o cangaceiro-mendigo quanto o agricultor-

mendigo se opotildeem aos demais personagens uma vez que entram no jogo cecircnico para roubar a

atenccedilatildeo de seus algozes No Auto da Compadecida Severino acaba provocando a morte de

todos que estatildeo na igreja Em Acarnenses Diceoacutepolis consegue convencer a assembleia Esse

caraacuteter muacuteltiplo torna-se ainda mais evidente na cena do julgamento que abordaremos no V

Ato uma vez que as accedilotildees do poeta e de seus outros cocircmicos tornam-se ainda mais bruscas

pois num inferno tragicocircmico o leitorouvinte pode perceber toda a desconstruccedilatildeo literaacuteria

tanto do espaccedilo ndash inferno ndash quanto das figuras celestiais e demoniacuteacas que sem chegar a um

acordo deixam de certa forma a cabo de espectador o ato de condenar eou absolver as almas

E nesse jogo luacutedico e didaacutetico encenado no abrir e fechar de cortinas que o teatro

aristofacircnicosuassuniano nos proporciona enquanto expectadores haacute uma visatildeo amplamente

criacutetica das accedilotildees humanas seja pelo desejo pessoal pela injuria ou pela proacutepria paroacutedia que

tatildeo bem se propotildee ao convencimento do puacuteblico

84

QUINTO ATO

85

5 O POETA VAI AO INFERNO 51 Quem fala por quem

Como esclarecido anteriormente neste ponto do corpus da tese aprofundaremos

nosso estudo para identificar as ocorrecircncias marcadas pela voz poeacutetica responsaacutevel pelas

vaacuterias atitudes didaacuteticas e criacuteticas indispensaacuteveis ao conhecimento do leitor Para tanto

faremos nossa viagem ao inframundo literaacuterio tomando como base Acarnenses e Ratildes de

Aristoacutefanes o Auto da Compadecida de Ariano Suassuna e o Auto de Barca do Inferno de

Gil Vicente por sua influecircncia na obra suassuniana

Em observaccedilatildeo importante ressalto que em Acarnenses o inferno ao qual nos

referimos seraacute estabelecido pelos horrores trazidos pela guerra cujos motivos seratildeo

questionados por Diceoacutepolis diante da Pnix 25

O caraacuteter didaacutetico do texto eacute expresso pelo proacuteprio autor no verso 499 ldquoO que eacute

justo tambeacutem eacute do conhecimento da comeacutedia Ora o que eu vou dizer pode ser caacuteustico mas

justo eacuterdquo Uma marca deste caraacuteter didaacutetico pode ser visto no discurso e nos nomes de alguns

personagens que tecircm uma significaccedilatildeo alegoacuterica como Diceoacutepolis o personagem principal

significa cidade justa

A peccedila comeccedila com Diceoacutepolis assim como Joatildeo Grilo um homem do campo

forccedilado a migrar para a cidade onde vive em condiccedilotildees precaacuterias qual aguarda a reuniatildeo da

assembleia onde o tema da discussatildeo de um tratado de paz vai ser deliberado que a nosso ver

disfarccedila-se de autor ndash evindencia-se aqui o duplo autoral ndash na Pnix ainda vazia esperando do

iniacutecio da Assembleacuteia Diceopolis explica sua experiecircncia sua dor traacutegica que se refere agrave

anguacutestia vivenciada pela falta de representaccedilatildeo de autores como Eacutesquilo considerado

obsoleto na eacutepoca da guerra com a imposiccedilatildeo da moda de Euriacutepides Na versatildeo matuta de

Pompeu a abertura do proacutelogo se reforccedila pela afirmaccedilatildeo de ali ser o momento no qual o

a(u)tor demonstra as alegrias e tristezas de Diceoacutepolis (Pompeu 2014 p01 vv 9-20)

Mas num eacute que de novo tive uma docirc de trageacutedia Na vez que eu tava abestaiadim esperando Eacutesquilo Aiacute o anunciadocirc disse ldquoTeoacutegnis faz entraacute o teu corordquo Pense numa sacudida grande no meu coraccedilatildeo Mas tive outra alegria na vez que em cima do Mosco Dexiacuteteo entrocirc e cantocirc uma beoacutecia Ainda neste ano quase morri e fiquei foi zaroim vendo

25 A Pnix eacute uma colina na parte interna da cidade de Atenas onde ocorriam as assembleias populares de entatildeo In Moura Filho Lauro Inaacutecio de Transtextualidade e hermenecircutica na comeacutedia de Aristoacutefanes O poeta como mestre da cidade 2012 166f ndash Dissertaccedilatildeo (Mestrado) ndash Universidade Federal do Cearaacute

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Na vez que o Ceacuteris se entortocirc pra tocaacute o hino oacutertio Mas nunca desde que eu tomo banho Meus oacuteio ardero tanto cum sabatildeo Do jeito dacuteagora num dia de assembleia regulaacute De manhatildezinha oacute aiacute esta Pnix sem viva alma O pessoaacute na praccedila tagarela e pra cima e pra baixo

A Pnix sede da Assembleacuteia estava vazia e as pessoas conversando na aacutegora o

que era considera um testemunho da falta de interesse nas assembleias que o poeta atribui agrave

tendecircncia belicista do povo ateniense relutante em votar pela paz

O fato eacute que Aristoacutefanes parece se identificar com o caraacuteter de Diceopolis como

deduzido dos versos 440-445 quando ele se dirige aos espectadores apoacutes citar os versos do

telefone de Euriacutepedes personagem que ele argumentou a favor do fim da guerra diante da

Assembleia (Pompeu 2014 p16)

Eacute que tenho que achaacute que socirc um mendigo hoje Secirc quem socirc natildeo parececirc Os espectadocirc vatildeo sabecirc que socirc eu Mas os coreuta vatildeo ficaacute abestaiadim Pra eu troccedilaacute deles crsquouns palavreado EURIacutePIDES Eu dou pois com uma mente astuta tramas sultilezas

Para o autor em particular esta primeira cena na qual Diceoacutepolis deseja falar

sobre seus motivos para celebrar sua paz revela a importacircncia do campo na cidade de Atenas

O proacuteprio gecircnero da comeacutedia eacute entendido como um fenocircmeno urbano de origem agraacuteria

produto de o mesmo processo de formaccedilatildeo da polis em que este se tornou o centro

organizador do territoacuterio agraacuterio e exploradora de seus produtos

Em geral os problemas da guerra satildeo evidentes para os camponeses uma vez que

os campos aacuteticos foram devastados o que despertou o desejos para receber apoio dos

cavaleiros Assim o inferno promovido pela Guerra do Peloponeso (431-404) trazia era uma

condiccedilatildeo desoladora para a cidade e para o campo Este fato pode ser de acordo com

observaccedilatildeo de Plaacutecido (2007) percebido no discurso proferido por Peacutericles no qual satildeo

destadas as condiccedilotildees histoacutericas que diferenciaram Atenas e Esparta e justificaram taacuteticas

empregadas para a defesa

E se eles atacarem nosso territoacuterio por terra noacutes faremos uma expediccedilatildeo naval contra eles e natildeo seraacute o mesmo que uma parte do Peloponeso seja saqueada e que seja toda a Aacutetica eles natildeo seratildeo capazes de adquirir outras terras sem ter que lutar enquanto noacutes temos terras abundantes tanto nas ilhas como no continente Uma

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grande coisa eacute com efeito o domiacutenio do mar a refletir se focircssemos ilheacuteus quem seria menos inexpugnaacutevel do que noacutes Bem agora eacute necessaacuterio que raciocinando da maneira mais semelhante como se vocecirc fosse um ilheacuteu vocecirc abandone o campo e suas casas e vai defender o mar e a cidade

Diceoacutepolis teria que impressionar os legisladores convececirc-los dos recursos

possiacuteveis para a paz Para tanto ele acusou os priacutetanes confabular para prender Anfiacuteteo um

imortal que ia tente a paz como nos mostra Pompeu (2014) nos versos 56-58

DICEOacutePOLIS Oacute priacutetanes vocecircs tatildeo fazendo mal pra assembleia Arrastando o homem que queria fazecirc treacuteguas Pra noacutes e dependuraacute os escudo

O que se percebe nos versos eacute que um dos temas responsaacuteveis pela situaccedilatildeo de

caos na cidade eacute a manipulaccedilatildeo da democracia do ponto de vista de Aristoacutefanes pelas

autoridades que de alguma forma ganham com acirramento do caraacuteter beacutelico A mesma

reclamaccedilatildeo aparece com respeito aos embaixadores que segundo ele zombam do sofrimento

da cidade conforme os versos 75-76

DICEOacutePOLIS Oacute cidade de Cracircnao Tu num sente natildeo a mangaccedilatildeo dos embaixadocirc

Diceoacutepolis queixa-se do tempo que tem sido incapaz de celebrar a dioniacutesias por

causa das invasotildees espartanas Entretanto ele estaacute convencido de que a paz eacute a garantia das

celebraccedilotildees no campo e para isso decide se livrar da guerra geradora de toda maacute sorte para a

cidade como percebemos pelos o versos (266-267 201-202)

DICEOacutePOLIS Depois de seis ano falo contigo e volto feliz pracuteo meu povoado Eu tando livre da guerra e das coisa ruim Vou eacute entraacute e celebraacute as Dioniacutesia matutardquo

O coro se recusa a ouvir longos discursos como aconteceu com o Soacutecrates

platocircnico no Protaacutegoras ou os espartanos que receberam a embaixada dos jocircnios na eacutepoca da

rebeliatildeo antes das Guerras Meacutedicas

Desta forma o laconicismo se espalha entre os atenienses hostis agraves praacuteticas

retoacutericas da democracia Apesar dos ataques do coro que o acusa de querer concordar com os

inimigos Diceoacutepolis defende que os espartanos natildeo satildeo culpados de tudo

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Diceoacutepolis entatildeo assumindo o risco de morte elabora o discurso do justo do que

possa ser justo para a cidade e denuncia a retoacuterica fraudulenta dos oradores que enganaram o

povo com o sortileacutegio encantatoacuterio de um discurso mentiroso como se percebe nos versos

(vv) 497-507 DICEOacutePOLIS Num vatildeo ficaacute cum raiva homes espectador Se eu sendo um mendigo na frente dos ateniense Teja em tempo de falaacute sobre a cidade fazendo uma comeacutedia Pois o que eacute justo a comeacutedia tambeacutem conhece E eu vou falaacute coisas terriacuteve mas justa Pois desta vez num vai me caluniaacute Cleacuteon que Estrangeiros tando aqui eu falo mal da cidade Eacute que tamo soacute eacute o concurso das Leneia E os estrangeiro num tatildeo aqui nem os imposto 505 Chega nem os aliado vem das cidade Mas tamo soacute noacutes agora soacute os miacutei debuiado (POMPEU 2014 p17)

Na parte final da peccedila Diceoacutepolis estaacute reconciliado com os acarnenses e seraacute

aclamado pelo Coro como vencedor detentor justo do desfrute dos prazeres do mundo

CORO O home vence cum as palavra e convence o povo a mudaacute De ideia sobre as treacutegua Mas vamo eacute tiraacute a roupa pra passaacute pros anapesto Desde quando dirige os coro de comeacutedia o nosso mestre Num foi pra perto dos espectadocirc pra dizecirc como eacute esperto Mas foi caluniado pelos inimigo no mei dos ateniense de decisatildeo-praacute-jaacute-jaacute De fazecirc comeacutedia cum a nossa cidade e maltrataacute o povo 631 Tem que respondecirc agora pros ateniense de decisatildeo-troca-troca Diz o poeta que fez muita coisa boa pra vocecircs Impedindo vocecircs de secirc enganado demais pelas fala dos estrangeiro De gostaacute de secirc adulado e de secirc uns cidadatildeo molenga 635 Antes os embaixadocirc das cidade pra enganaacute vocecircs Primeiro chamava vocecircs de ldquocoroados de violetardquo e era soacute dizecirc isto Que por causa das coroa sentava logo tudo de rabo em peacute E se algueacutem adulasse vocecircs chamando ldquoAtenas lustrosardquo Conseguia era tudo com o ldquolustrosardquo uma qualidade das sardinha Por isso tudo aiacute eacute que ele eacute responsaacuteve de muita coisa boa pra vocecircs E por tecirc mostrado pro povo nas cidade como eacute secirc democraacutetico Por isso mermo eacute que agora trazendo das cidade pra vocecircs o tributo Vatildeo chegaacute doidim pra vecirc o poeta danado de bom Que se arrisca para dizecirc na frente dos ateniense as coisa justa 645 E assim da ousadia dele jaacute chega eacute longe a fama Quando o Rei tava testando a embaixada dos lacedemocircnio Perguntou primeiro qual das duas cidade eacute mais forte em navios Depois pra qual das duas este poeta podia dizecirc mais palavra ruim Pois estes home ele disse satildeo muito mioacute E na guerra vatildeo vencecirc muito mais por tecirc ele como conseieiro 651 Eacute por isso que os lacedemocircnio propotildee pra vocecircs a paz Mas pede Egina e num eacute esta iacutea Que importa prrsquoeles mas eacute pra apanhaacute o tal poeta Vocecircs num deixe nunca ele partir pois vai fazecirc comeacutedia da justiccedila655 E diz que vai ensinaacute pra vocecircs muita coisa boa pra que sejam feliz Sem adulaacute nem prometecirc salaacuterio nem enganaacute nem um tiquim Sem secirc perverso nem enchendo de elogio mas ensinando o mioacute

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Depois disto Cleacuteon pode eacute maquinaacute E arquitetaacute tudo contra mim Pois o bem vai taacute eacute comigo e a justiccedila Vai secirc minha aliada e nunca vatildeo me pegaacute Pra cidade sendo igual a ele Medroso e escuiambado Vem caacute Musa chamuscada (POMPEU vv 624-664 p21)

Tatildeo importante quanto a presenccedila do ator em cena a voz do poeta se concretiza

pela (re)criaccedilatildeo da palavra que aleacutem de ser o territoacuterio comum ao locutor e interlocutor

possui tambeacutem uma dimensatildeo sonora e material ao ser emitida e uma dimensatildeo semacircntica

que se constroacutei e revela-se no exerciacutecio do discurso social carregado de sentido moralizante

levado ao leitorexpectador pelo autor atraveacutes do proacuteprio poeta e de seus outros

Nesta parte do nosso trabalho verificaremos como a voz autoral seraacute levada ao

puacuteblico e quais as reais intenccedilotildees do autor por traacutes desse empreacutestimo que eleva os

personagens fazendo com que eles estejam a serviccedilo da moralidade e da defesa dos anseios da

cidade Assim a transferecircncia ou a reproduccedilatildeo de palavras de uma boca para outra apontada

por Bakhtin (1982) gera mudanccedilas de tonalidade e teraacute intenccedilatildeo e possibilidade de

(re)criaccedilatildeo de uma produccedilatildeo cultural histoacuterica e social dando aos personagens ndash porta-vozes

dos autores uma dimensatildeo coletiva que se estabelece como um viacutenculo entre o poeta e seus

outros duplicados

A ldquovoz do poetardquo torna-se fundante da estrutura do discurso e encontra ressonacircncia

na presenccedila dos vaacuterios ecos irreverentes manifestados pelas personagens que articulados

com a vontade do proacuteprio poeta representam a tomada de consciecircncia e a tentativa de se

libertar da opressatildeo social agravada por situaccedilotildees e discursos tatildeo adversos percebidos na

comeacutedia aristofacircnica e nos autos de Ariano Suassuna e Gil Vicente

Assim acredito que faz-se necessaacuterio ressaltar para uma maior compreensatildeo do

leitor que a noccedilatildeo de voz do poeta na Comeacutedia Antiga e no Auto eacute um tema de interesse

para muitos estudiosos todos que se deparam com a questatildeo reconheceram a problemaacutetica de

identificar a voz do outro poeacutetico seus alcance e praacuteticas sociais

Apesar dessa barreira aparentemente intransponiacutevel para o estudo do voz do

poeta nossa pesquisa se norteou na identificaccedilatildeo dessa voz (audiacutevel ou visiacutevel) nas comeacutedias

de Aristoacutefanes e nos autos de Ariano Suassuna e Gil Vicente explorando algumas maneiras

pelas quais a mera noccedilatildeo da voz do poeta pode ser inestimaacutevel ao analisar a comeacutedia e o auto

enfocando seu uso como uma teacutecnica cocircmica manipulada pelo dramaturgo para a realizaccedilatildeo

de seu propoacutesito que aleacutem do riso eacute a tomada de consciecircncia da plateia

90

Eacute pertinente primeiro especificar o que se entende por voz do poeta nesse

contexto tatildeo distante e ao memso tempo tatildeo proacuteximo que tem como condutor o riso Ao

longo das peccedilas de Aristoacutefanes e dos autos de Ariano Suassuna e Gil Vicente uma voz

poeacutetica pode ser ouvida indiretamente por traacutes do drama revelando o mundo no qual o poeta e

seus duplos estatildeo inseridos

Em momentos cheios de misteacuterios o puacuteblico eacute levado a acreditar que a

personagem constantemente troca de lugar com o poeta seja atraveacutes da revelaccedilatildeo de algo

comum ao entendimento do poeta criacutetico e moralizador como por exemplo em Acarnenses

onde atraveacutes de Diceoacutepolis que autorizado por Aristoacutefanes se traveste de Teacutelefo ganha natildeo

somente a voz para por em praacutetica seu plano de enganar a assembleia ao Teacutelefo constituindo-

se tambeacutem como o outro do outro do poeta cocircmico

No Auto da Compadecida compete aos juizes Jesus Virgem Maria e ao Diabo

pares antagocircnicos a representaccedilatildeo do discurso do poeta No plano dinacircmico do enredo

Ariano Suassuna reservou ao cangaceiro Severeino o travestimento de mendigo ndash seu Teacutelefo ndash

como meio de entrar na cidade sem ser reconhecido A Joatildeo Grilo e Chicoacute criticar enganar os

legisladores e representantes da sociedade pela praacutetica do discurso mentiroso

No Auto da Barca do inferno o poeta se revela assim como nas obras citadas

pelas muacuteltiplas vozes que se renovam a cada cena seja atraveacutes dos embates entre o anjo

condutor da nau que leva ao paraiacuteso e os infratores das morais terrenas ou pelas investidas de

Joanes o parvo que espera ao lado do anjo pelas almas que na Terra o desprezaram dando-

lhes a garantia de contar ao juiz as fraquezas dos embarcantes

As maneiras pelas quais Aristoacutefanes Ariano Suassuna e o proacuteprio Gil Vicente

manipulam a noccedilatildeo da voz do poeta satildeo cruciais para entender e revelar a situaccedilatildeo vivenciada

pelas sociedades postas em cena Numa arquitetura perfeita que mistura versos e denuacutencias

tanto Aristoacutefanes e Arianos Suassuna quanto Gil Vicente propositadamente parecem

convidar o puacuteblico a supor que ele estaacute ouvindo a voz direta do poeta quando de fato estatildeo

ouvindo uma voz construiacuteda pelo poeta que submete o mundo a sua proacutepria organizaccedilatildeo

social atraveacutes da linguagem marcada para expor e instaurar uma realidae imaginaacuteria como

afirma Benveniste (1979) A linguagem reproduz o mundo mas submete-o a sua proacutepria organizaccedilatildeo Satildeo logos discurso e razatildeo ao mesmo tempo que os gregos o viam Eacute pelo proacuteprio fato de ser linguagem articulada constituiacuteda por um arranjo orgacircnico de partes uma classificaccedilatildeo formal de objetos e processos () Eacute de fato na e pela linguagem como um indiviacuteduo e sociedade satildeo mutuamente determinados O homem sempre sentiu - e os poetas cantaram com frequecircncia - o poder fundador da linguagem que

91

estabelece uma realidade imaginaacuteria dupla que anima as coisas inertes faz ver o que ainda natildeo eacute devolve os desaparecidos (Traduccedilatildeo nossa) 26

Zonin (2006) afirma que de um modo significativo o discurso literaacuterio apresenta

elementos linguiacutesticos para a produccedilatildeo de efeitos expressivos importantes de serem

resgatados na leitura por meio da construccedilatildeo interdiscursiva que eacute o lugar de incorporaccedilatildeo de

um discurso em outro instante em que se daacute o funcionamento polifocircnico marcado pelas

escolhas operadas pelo locutor sobre a liacutengua enquanto contrato coletivo defendido por

Bakhtin na obra Problemas da poeacutetica de Dostoievski

Eacute justamente por esse caraacuteter plural no qual natildeo se sabe quem fala por quem que

se apresentam os poetas e suas vozes autorais refletidos nas palavras que ora enunciam pela

boca do outro ldquonas vozes que espelham um eu possuiacutedo por uma alma alheiardquo (BAKHTIN

1990 p31) Com isso autor e ator se misturam num jogo de vozes no interior do discurso

terreno onde nenhuma palavra eacute particular uacutenica ao criador senatildeo tambeacutem repleta da voz do

outro da criatura

No plano teatral os termos morte e inferno nos datildeo a dimensatildeo do alegoacuterico

proposto tanto na Comeacutedia quanto no Auto Lugares (re)criados para a projeccedilatildeo do

pensamento do autor que se manifestaraacute por meio dos discursos oriundos das esferas social

religiosa e poliacutetica que dizem do sistema democraacutetico e que potencializam na atmosfera

romanesca ares inquietantes e contraditoacuterios de uma pluridiscursividade que se circunscreve

em torno da temaacutetica como afirma Zonin (2006)

No campo social das peccedilas a dramatizaccedilatildeo das outras vozes mostra-se pela voz

do poeta que eacute usada para desenvolver a accedilatildeo cecircnica das personagens dando-lhes a

capacidade de fazer ou dizer mais do que deveriam Ao usar a noccedilatildeo da voz do poeta para

permitir que os personagens falem fora dos limites de suas persoas literaacuterias Aristoacutefanes

Ariano Suassuna e Gil Vicente criam personagens que satildeo inerentemente polifocircnicos fato que

encontra jusitificativa na teoria bakhtiniana

As semelhanccedilas entre Diceoacutepolis e a voz do poeta satildeo deliberadamente criadas e

indiscutivelmente emitidas para incentivar a identificaccedilatildeo entre personagem e poeta uma vez

26 El lenguaje reproduce el mundo pero sometieacutendolo a su propia organizacioacuten Es logos discurso y razoacuten al mismo tiempo como lo vieron los griegos Lo es por el hecho mismo de ser lenguaje articulado consistente en una disposicioacuten orgaacutenica de partes en una clasificacioacuten formal de los objetos y los procesos () Es en efecto en y por La lengua como individuo y sociedad se determinan mutuamente El hombre ha sentido siempre - y los poetas a menudo lo han cantado- el poder fundador del lenguaje que instaura una realidad imaginaria doble que anima las cosas inertes hace ver lo que auacuten no es devuelve aquiacute lo desaparecido (1979 p58)

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que Diceoacutepolis em Acarnenses eacute o porta-voz de seu criador assim como satildeo Joatildeo Grilo no

Auto da Compadecida e Joanes (o bobo) no Auto da Barca do inferno

Um caso especiacutefico da natureza polifocircnica reside nas personagens aristofacircnicas que

permeiam algumas de suas obras e apresentam-se em outros lugares como na abertura de Ratildes

onde Dioniso eacute visto como ator espectador e leitor Dioniso

Natildeo me venhas com histoacuterias Porque eu como espectador De cada vez que assisto a habilidades dessas Satildeo anos de vida que me tiram ( Silva 2014 p36-37) Dioniso Pois estava eu na coberta do navio a ler caacute com os meus bototildees a Androcircmeda quando de repente uma nostalgia me bate ao coraccedilatildeo sabes laacute tu de que maneira (Silva 2014 p41)

Aristoacutefanes estaacute claramente pondo em cena a voz do poeta usando-a por sua vez

para dar sonoridade a outras vozes de tal maneira que a voz do poeta logicamente nos

conduziraacute a uma forma de dialogismo cocircmico

A presenccedila do poeta eacute bastante palpaacutevel natildeo necessariamente como um intrusivo eu mas muitas vezes na variedade interna natildeo homogeneizada de recursos linguiacutesticos organizados para dar voz a outras vozes e que pode ser vista como uma habilidade presente nos outros do poeta capacitados para operar de forma critica diante do contexto social (DOBROV 1995 p 35)

A noccedilatildeo da voz do poeta tambeacutem eacute uacutetil para entender as parabases aristofacircnicas

passagens onde o puacuteblico eacute diretamente abordado e o liacuteder do coro frequentemente e

temporariamente assume um papel quase-autorial como na paraacutebase das Nuvens (vv 518-

526) ou na abertura do Auto da Compadecida quando o Palhaccedilo justifica sua escolha pra

representar o poeta que naquele instante eacute tambeacutem chamado pelo autor de ldquoa grande vozrdquo

PARAacuteBASE

Espectadores vou dizer-vos com desassombro a verdade e que Dioniso que me criou natildeo deixe mentir Bem eu poderia ter vencido e ser considerado um talento no momento em que por vos ter na conta de espectadores de bom gosto vos dei a provar antes de quaisquer outros a mais perfeita das minhas comeacutedias que me custou os olhos da cara de resto Apesar disso vi-me batido e afastado por rivais casca grossa sem o ter merecido E eacute a vocecircs a gente culta por quem empreendi tatildeo dura tarefa que eu censuro (OLIVEIRA e SILVA 1991 p 73)

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PALHACcedilO Ao escrever esta peccedila onde combate o mundanismo praga de sua igreja o autor quis ser representado por um palhaccedilo para indicar que sabe mais do que ningueacutem que sua alma eacute um velho catre cheio de insensatez e de soleacutercia Ele natildeo tinha o direito de tocar nesse tema mas ousou fazecirc-lo baseado no espiacuterito popular de sua gente porque acredita que esse povo sofre eacute um povo salvo e tem direito a certas intimidades (SUASSUNA 2005 p23)

Na abertura da peccedila Auto da Compadecida Ariano Suassuna de pronto jaacute adverte

ao leitor sobre o que ele testemunharaacute sobre sua preferecircncia de ser um porta-voz palhaccedilo que

entende e seraacute ao longo da explanaccedilatildeo a voz do poeta

PALHACcedilO grande voz Auto da Compadecida O julgamento de alguns canalhas entre os quais um sacristatildeo um padre e um bispo para exerciacutecio da moralidade (SUASSUNA 2005 p15)

Sobre a passagem acima e tomando como premissa a teoria de Bakhtin (1990)

percebemos que ele (o autor) eacute a concentraccedilatildeo de vozes multidiscursivas dentre as quais deve

ressoar a sua voz As vozes autorizadas criam o fundo necessaacuterio para a voz do poeta fora do

qual satildeo imperceptiacuteveis natildeo ressoam E analisando as obras propostas no presente trabalho

devemos partir do princiacutepio que ambos os textos estatildeo permeados de outros textos e vozes

ecoantes natildeo somente a do autor mas outras vozes como daqueles que desejam a paz diante

da situaccedilatildeo de guerra ou daqueles que usam dos mais variados meacutetodos de sobrevivecircncia

frente as dificuldades vividas em suas relaccedilotildees e (con)textos sociais no sertatildeo apropriando-se

da vez e da voz do outro em diaacutelogos que por vezes satildeo quase inaudiacuteveis

De acordo com Barros (1999) nessa interaccedilatildeo promovida pelo discurso social

nenhuma palavra eacute nossa pois ela traz a perspectiva de outra voz e por meio dela e de seus

ecos(duplos) contribuiacutemos na construccedilatildeo da sociedade Assim tanto o texto aristofacircnico

quanto o suassuniano marcam a formaccedilatildeo de vaacuterios diaacutelogos de cruzamento de vozes e de

aparecimentos de duplos que se originaram em praacuteticas de linguagem diversificada

socialmente essas vozes que podem tambeacutem ter origem no gestual de cada personagem por

sua vez polemizam as accedilotildees executadas em cena ou se completam ou respondem umas agraves

outras e aos desejos de seus a(u)tores

Os textos satildeo dialoacutegicos porque resultam do embate de muitas vozes sociais podem no entanto produzir efeitos de polifonia quando essas vozes ou algumas delas deixam-se escutar ou de monofonia quando o diaacutelogo eacute mascarado e uma voz apenas faz-se ouvir (BARROS 1999 p06)

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Seguindo essa perspectiva entendemos a proposta de Barros (1999) ao afirmar

que todo texto eacute ldquotecido polifonicamente por fios dialoacutegicos de vozes que polemizam entre si

se completam ou respondem umas as outrasrdquo o que mostra que os textos escolhidos por mais

atemporais que possam parecer podem ser entrecruzados por outros textos e que se interligam

em uma ou mais vozes no mesmo texto ou seja a voz do autor interligando-se ou mesclando-

se com a voz do outro ou dos seus outros Tanto as palavras quanto agraves ideias que vecircm de outrem como condiccedilatildeo discursiva tecem o discurso individual de forma que as vozes ndash elaboradas citadas assimiladas ou simplesmente mascaradas ndash interpenetram-se de maneira a fazer-se ouvir ou a ficar nas sombras autoritaacuterias de um discurso social monologizado (BRAIT 1999 p 1415)

Assim fruto do ataque direto e pessoal tiacutepico da tonalidade vigorosa e didaacutectica

da comeacutedia aristofacircnicas a voz constitui-se como arma contra a animosidade de concorrentes

e rivais como forma de apresentar elementos indispensaacuteveis agrave educaccedilatildeo da cidade

Pretendendo obter a confianccedila do grande puacuteblico principalmente composto de verdadeiros acarnenses pois ele se disfarccedila de Teacutelefo diante dos espectadores tomando-os como cuacutemplices contra os supostos acarnenses do coro Diceoacutepolis se dirige ao puacuteblico e natildeo ao coro falando como mendigo e como poeta cocircmico (POMPEU p 30)

DICEOacutePOLIS Do mei de noacutes uns home ndash num tocirc falando da cidade Vecirc se lembram disso que num tocirc falando da cidade - Mas uns tipim imprestaacuteve de qualidade ruacuteim Sem valocirc da pioacute marca e estrangeirado hellip (ARISTOacuteFANES Acarnenses vv 515-518 ndash em versatildeo matuta para os personagens do campo POMPEU 2014)

A voz do poeta na comeacutedia de Aristoacutefanes confere ao personagem dando-lhe a

autoridade pretendida e a capacidade de fazer ou dizer mais do que o esperado A voz poeacutetica

em sua forccedila tambeacutem permite que Aristoacutefanes possa parodiar outras vozes para efeito cocircmico

criando um discurso carregado de ironia respaldado na capacidade de fazer dizer ou saber

algo que vai aleacutem da audiecircncia e que pode ser indispensaacutevel agrave Cidade

Ao usar a noccedilatildeo da voz do poeta para permitir que Diceoacutepolis fale fora dos limites

literaacuterio Aristoacutefanes cria um personagem inerentemente polifocircnico visto que assume

muacuteltiplas vozes e personagens como o Teacutelefo dramaacutetico de Euriacutepedes Diceoacutepolis passa

explicitamente a representar a voz direta do dramaturgo pondo em cena as palavras que saem

diretamente da boca de Aristoacutefanes

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Diceoacutepolis eacute a voz e a forccedila do proacuteprio argumento aristofacircnico uma vez que ele

proacuteprio se identifica como um poeta cocircmico representando tambeacutem qualquer poeta que

sofreu ataques poliacuteticos incomodado pela exploraccedilatildeo da Cidade pois ldquomesmo a comeacutedia

sabe alguma coisa sobre a verdade e a justiccedila Ao atribuir o caraacuteter muacuteltiplo a Diceoacutepolis

Aristoacutefanes acentua ainda mais seu desejo de dizer aleacutem do que a cidade esperava atraveacutes de

seu porta-voz um roceiro o anti-heroacutei conhecedor das artimanhas dos legisladores que

exploram a Cidade elemento responsaacutevel pela dinacircmica central da comeacutedia pois leva ao

puacuteblico por meio do risiacutevel as verdades necessaacuterias ao discurso justo incentivando-o ou ao

proacuteprio leitor a questionar a validade e a veracidade do jogo diante deles

Para Bergson (1987) o riso natildeo eacute apenas uma reprimenda social mas vem de um

desajuste entre a natureza primeira do homem (que eacute mutaacutevel) e uma espeacutecie de rigidez e

mecanizaccedilatildeo Essa rigidez se manifestaria tanto no niacutevel fiacutesico como no caraacuteter ou seja no

acircmbito moral e psicoloacutegico caracteriacutesticas exploradas no personagem Joatildeo Grilo onde o

risiacutevel e o cocircmico seriam uma forma de desfazer a rigidez social na tentativa de evidenciaacute-la

corrigi-la Para Suassuna (2007) o riso eacute como uma espeacutecie de puniccedilatildeo que a sociedade

confere a algo que a ameaccedila diz em seu livro Iniciaccedilatildeo agrave Esteacutetica

Desta forma o risiacutevel estaacute na inadequaccedilatildeo do comportamento humano

fiacutesicopsicoloacutegico uma vez que excede a normalidade sem causas traacutegicas Suassuna no Auto

da Compadecida nos deixa claro que ali o cocircmico surge como um alerta sobre algo que natildeo

estaacute funcionando bem nas sociedades sendo tambeacutem um instrumento revelador dos

problemas da sociedade como um todo

Atitude bem semelhante eacute do Auto que no uacuteltimo paraacutegrafo fala no Auto da

Compadecida por possuir um enredo que proporciona ao leitorespectador o riso e a dor

numa mistura de trageacutedia e comeacutedia por meio da ldquopalavrardquo (voz do poeta) que eacute dotada de

forccedila e promove sempre encontros com o leitor-ouvinte ou ouvinte-leitor levando-o a

estabelecer uma imensa teia de significados e suas relaccedilotildees reconhecimentos e interaccedilotildees no

mundo-palco de Ariano Suassuna onde ele proacuteprio cria (re)vecirc conceitos recria imagens se

subverte ao ordenado na ressonacircncia das vozes que encontram em Joatildeo Grilo o canal para

torna-se real como afirma Zumthor (2014)

A voz eacute uma subversatildeo ou uma ruptura da clausura do corpo Mas ela atravessa o limite do corpo sem rompecirc-lo ela significa o lugar de um sujeito que natildeo se reduz agrave localizaccedilatildeo pessoal Nesse sentido a voz desaloja o homem de seu corpo Enquanto falo minha voz me faz habitar a minha linguagem Ao mesmo tempo me revela um limite e me libera dele (ZUMTHOR p 81)

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[] Outra tambeacutem importante para nosso raciociacutenio aqui eacute a seguinte Escutar um outro eacute ouvir no silecircncio de si mesmo sua voz que vem de outra parte Essa voz dirigindo-se a mim exige de mim uma atenccedilatildeo que se torna meu lugar pelo tempo dessa escuta Essas palavras natildeo definiriam igualmente bem o fato poeacutetico (ZUMTHOR p 81)

Assim como feito por Diceoacutepolis a palavra-forccedila eacute tomada por Joatildeo Grilo

quando da sua chegada ao que seria a entrada do inferno Assim como um dia os homens

roubaram o fogo dos deuses Joatildeo Grilo a voz dupla do poeta detentor da fala das camadas

populares apropria-se do discurso dos poderosos a fim de que fundidos os dois surja um

texto intenso imbuiacutedo de criacuteticas sociais permeado de escaacuternio e desejo de sobrevivecircncia

No contexto de tensatildeo em que eacute apresentado Joatildeo Grilo eacute convertido a um anti-

heroacutei oprimido e no plano da eacutetica eacute um legiacutetimo malandro que usa do artifiacutecio da

malandragem como uma ferramenta autecircntica de sobrevivecircncia e de luta frente agraves

adversidades sobretudo agravequelas impostas pelos que deteacutem o poder A malandragem portanto

no seu entender natildeo constitui um problema ou pecado grave pois natildeo eacute utilizada para

engrandecimento proacuteprio ou para ascensatildeo econocircmica mas sim para a promoccedilatildeo da justiccedila

social Como podemos ler nos versos do cordelista Paulo Nunes Batista Grilo pra tudo no mundo Tinha uma definiccedilatildeo A sua filosofia Sempre lhe dava razatildeo Pois seguia este ditado Que diz ndash ldquoEstaacute perdoado Ladratildeo que rouba ladratildeordquo Vivendo embora do crime Joatildeo Grilo era caridoso Auxiliava a pobreza Soacute furtava o poderoso Roubava sempre dos nobres Matava a fome dos pobres Mostrando ser generoso (BATISTA 1958 p 28)

Como personagens piacutecaros tanto Joatildeo Grilo como Diceoacutepolis representam os

heroacuteis das obras mas suas construccedilotildees e formaccedilotildees se datildeo agraves avessas uma vez que suas

caracteriacutesticas inversas agrave de um heroacutei dispotildeem de ser aventureiro materialista desleal e de

caraacuteter duvidoso O personagem piacutecaro apresenta algumas caracteriacutesticas singulares sempre estaacute com fome nunca se sente completamente seguro Eacute o mais mortal dos mortais Aparenta natildeo ter princiacutepios morais Aparenta cortejar os poderosos mas acaba por desnudaacute-los como que involuntariamente desmascarando-lhes as franquezas Observa-se que o personagem piacutecaro se envolve em aventuras particulares que representam com fidelidade a realidade da sua condiccedilatildeo social Desta forma revela sua opiniatildeo e suas ideias desafiando as regras sociais (KOTHE 1985 p49)

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As accedilotildees das personagens tanto no Auto quanto na Comeacutedia constituem-se num

instante de ressonacircncia no qual o eu autoral passa a ser polifocircnico se projeta no outro que

tambeacutem se projeta no eu do autor demonstrando ter total conhecimento da realidade numa

dimensatildeo sonora e material pelo exerciacutecio do discurso revelador levado ao leitorexpectador

pelo autor atraveacutes de suas personagens Essa realidade se concretiza pela transferecircncia de

palavras de uma boca para outra como apontada por Bakhtin com forccedila e capacidade de

promover mudanccedilas de tonalidade e de intenccedilatildeo discursiva

Essa atitude representa uma possibilidade de (re)criaccedilatildeo de uma produccedilatildeo

cultural histoacuterica e social que supera a proacutepria noccedilatildeo de oralidade que emerge como porta-

voz de uma dimensatildeo coletiva na qual a singularidade de cada sujeito falante lhe outorga ou

recebe autoridade para agir criando um conjunto de vozes polivalentes pelas quais podemos

afirmar que o narrador passa a atuar como um poeta da voz cuja poeacutetica se inspira nas praacuteticas

sociais e nas vivecircncias de seus atores

511 Ao Hades e com riso frouxo

Em trecircs das peccedilas citadas haacute uma cena de julgamento na qual o poeta moraliza a

accedilatildeo das instituiccedilotildees bem como dos legisladores acontece no inferno ou no Hades ndash Ratildes ndash

Auto da Compadecida e Auto da Barca do Inferno a exceccedilatildeo de Acarnenses cujo cenaacuterio eacute a

Assembleia

Em Ratildes que foi presentada nas Leneias de 405 aC Aristoacutefanes lanccedila matildeo de

artifiacutecios em sua maioria cocircmicos para trazer agrave tona discussotildees literaacuterias da eacutepoca bem como

sua criacutetica social e seu discurso moralizante atraveacutes do qual resgatando-se o poeta tambeacutem

salva a cidade Como bem afirmava Ariano Suassuna a Comeacutedia Grega e o Auto Vicentino o

abasteceram de vaacuterias composiccedilotildees e em Ratildes especificamente observamos que a estrutura

serviu de base para a construccedilatildeo da cena do julgamento tanto em Suassuna quanto em Gil

Vicente

Segundo KOPELMAN (2012 p) Depois de quase um seacuteculo de apogeu o ciclo traacutegico se encerra com a morte de Soacutefocles e Euriacutepides Enquanto instituiccedilatildeo social da cidade ateniense o drama traacutegico reflete os embates e os questionamentos da polis Objetivando o espaccedilo cecircnico o drama eacute avaliado e legitimado pelos cidadatildeos nos Festivais que patrocinam as representaccedilotildees

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Em Ratildes Aristoacutefanes nos apresenta o cenaacuterio da descida para o infernoHades de um

Dioniso bufatildeo em busca de Euriacutepides como forma de tambeacutem reviver a trageacutedia Entretanto

reforccedila com isso a paroacutedia da descida de Heacutercules

O argumento da peccedila pode ser resumido da seguinte forma Dioniso desce ao Hades

para encontrar Euriacutepides morto recentemente e trazecirc-lo para a terra Atenas estaacute com falta de

poetas e Dioniso estaacute convencido de que Euriacutepides eacute o homem certo Na teatralidade

apresentada o proacuteprio deus eacute uma figura cocircmica eacute acompanhado por um escravo cocircmico e

tenta se dar ares de grandeza no mundo subterracircneo

Depois de uma viagem perigosa ao submundo Dioniso estaacute laacute com uma crise

literaacuteria em pleno andamento Euriacutepides derrotou Eacutesquilo do trono da poesia no Hades e uma

grande discussatildeo surgiu sobre ele Nesta reside o principal da accedilatildeo na peccedila Dioniso eacute

chamado para julgar os dois poetas e a disputa que eacute o cerne da comeacutedia eacute a competiccedilatildeo de

Eacutesquilo e Euriacutepides pelo trono da poesia traacutegica no Hades

Em primeiro lugar para compreender a importacircncia do agoacuten entre Eacutesquilo e

Euriacutepides dois poetas traacutegicos da polis temos que voltar novamente ao contexto do seacuteculo V

a C de Atenas A justificativa do agoacuten encontra-se na situaccedilatildeo da polis a decadecircncia de

Atenas e a ausecircncia de bons poetas jaacute que todos morreram Assim Dioniso possiacutevel alter ego

do proacuteprio Aristoacutefanes quer remediar a situaccedilatildeo entatildeo ele vai para o infernoHades

convencido a trazer de laacute Euriacutepides fazendo do agoacuten uma parte inesperada da peccedila

Aristoacutefanes apresenta de forma brilhante como personagem o proacuteprio Dioniso um

deus meio idiotizado completamente medroso mentiroso e totalmente engraccedilado um

viajante vestido de amarelo de botas mas estranhamente revestido com a pele do leatildeo de

Nemeia e empunhando um cacete como o mais macho dos heroacuteis seu irmatildeo Heacutercules

Para dar iniacutecio a sua empreitada ao lado de seu escravo Xacircntias rumo ao Hades

Dioniso procura por Heacutercules para que este o informe por qual caminho ele poderaacute seguir ateacute

sua chegada ao inferno visto que o proacuteprio Heacutercules jaacute havia realizado o mesmo percurso

No proacutelogo Dioniso explica o motivo da sua viagem Pois tal eacute o desejo que me consome por Euriacutepides (v 66)

Dioniso

Sinto falta de um poeta de talento Eacute que uns jaacute natildeo existem e os que existem natildeo

prestam (vv 72-72)

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Nos versos seguintes Dioniso prepara com antecedecircncia uma funccedilatildeo de juiz uma

vez que emite sua opiniatildeo sobre os outros poetas Iofonte Agatatildeo Xecircnocles Soacutefocles

Euriacutepides e os jovens poetas (vv78-83) Dioniso Isso natildeo pelo menos antes de tomar Iofonte agrave parte a soacutes longe do Soacutefocles para testar de que eacute que ele eacute capaz Aliaacutes o Euriacutepides que eacute um aldrabatildeo haacute-de dar por paus e por pedras para se raspar comigo para aqui Enquanto o outro que caacute era um bonacheiratildeo haacute-de continuar laacute em baixo o mesmo bonacheiratildeo

Como qualquer heroacutei eacutepico Dioniso na peccedila eacute apresentado como um viajante eacutepico

capaz de feitos heroacuteicos seguido de seu escravo e companheiro Xacircntias que protagonizaraacute ao

lado de seu mestre boa parte das cenas cocircmicas como nos coloca Silva (2014 p 34-39) ao

descrever a cena na qual Dioniso a peacute estaacute acompanhado de um escravo Xacircntias montado

num burro e carregando ao ombro as bagagens vai agrave procura de Heacutercules

Xacircntias Oacute patratildeo e se eu mandasse uma daquelas bocas do costume que sempre fazem rir os espectadores Dioniso Agrave vontadinha a que quiseres menos lsquoestou apertadorsquo Dessa poupa-nos que ateacute jaacute daacute voacutemitos Xacircntias E se fosse entatildeo uma outra daquelas piadas finas Dioniso Desde que natildeo seja lsquoestou agrave rascarsquo Xacircntias Qual haacute-de ser entatildeo Uma de escachar a rir Dioniso Tudo bem vai em frente Haacute soacute aquela famosa livra-te de me vires para caacute com essa Xacircntias Ah natildeo nem por sombras Este que aqui tenho natildeo bolas Quem o carrega sou eu Dioniso Mas carregas como se tu proacuteprio eacutes carregado por outro Xacircntias Tanto natildeo sei Agora que aqui o meu ombro estaacute apertadinho de todo laacute isso estaacute Dioniso Pois entatildeo jaacute que dizes que o burro te natildeo serve para nada eacute a tua vez de seres tu a pegar no burro e a carregar com ele Dioniso Salta daiacute malandro Que depois desta caminhada caacute estou eu diante da porta aonde para comeccedilar me propunha vir Ei moccedilo Oacute moccedilo Moccedilo

100

Heacutercules Quem eacute Seja laacute quem for mandou-se aos coices agrave porta que nem um centauro Ei Explica-me laacute Que raio de ideia vem a ser esta Dioniso Oacute amigo chega aqui Preciso de falar contigo Heacutercules Mas eacute que natildeo consigo espantar o riso ao ver uma pele de leatildeo por cima de um vestido amarelo Que ideia se te meteu na cabeccedila O que fazem juntos um par de botas de senhora e um cacete8 Por que paragens tens tu andado Dioniso Andei embarcado agraves ordens do Cliacutestenes Heacutercules E bateste-te no combate naval Dioniso Bati pois Navios inimigos metemos no fundo uma boa duacutezia deles Heacutercules Vocecircs os dois Dioniso Sim claro Xacircntias Esta ateacute me deixou de olhos arregalados Dioniso Pois estava eu na coberta do navio a ler caacute com os meus bototildees a Androacutemeda quando de repente uma nostalgia me bate ao coraccedilatildeo sabes laacute tu de que maneira Heacutercules Uma nostalgia te bate ao coraccedilatildeo De que dimensatildeo Dioniso Coisa pequena pela medida de Moacutelon Heacutercules Por uma mulher Dioniso Nada disso Heacutercules Por um rapazinho entatildeo Dioniso Nem pensar Heacutercules Por um homem se calhar Dioniso Ai ai Heacutercules Com que entatildeo de panelinha com o Cliacutestenes hem Dioniso Deixa-te de gozo mano que quem se vecirc nelas sou eu Tal eacute a paixatildeo que me devora Heacutercules Paixatildeo Que paixatildeo maninho Dioniso Nem te sei dizer Mas enfm vou tentar explicar-ta por analogia Jaacute alguma vez sentiste assim um desejo suacutebito de sopa Heacutercules

101

De sopa Bolas mil vezes na vida Dioniso E entatildeo faccedilo-me entender ou eacute preciso mais explicaccedilotildees Heacutercules Quanto agrave sopa natildeo Percebi perfeitamente Dioniso Pois tal eacute o desejo que me consome por Euriacutepides Heacutercules Como assim Por Euriacutepides o falecido Dioniso E natildeo haacute quem me tire da cabeccedila a ideia de ir agrave procura dele Heacutercules O quecirc Ao Hades laacute em baixo Dioniso Sim pois e mais abaixo ainda se um tal lugar existir Heacutercules Com que intenccedilatildeo Dioniso Sinto falta de um poeta de talento Eacute que uns jaacute natildeo existem e os que existem natildeo prestam Heacutercules Como assim Entatildeo o Iofonte natildeo estaacute vivo Dioniso Essa eacute ateacute a uacutenica coisa de jeito que por aiacute anda e mesmo assim tenho duacutevidas Porque ateacute sobre esse assunto me falta saber bem o que se passa Heacutercules E porque natildeo trazeres Soacutefocles de preferecircncia a Euriacutepides se tens de trazer algueacutem laacute de baixo Dioniso Isso natildeo pelo menos antes de tomar Iofonte agrave parte a soacutes longe do Soacutefocles para testar de que eacute que ele eacute capaz Aliaacutes o Euriacutepides que eacute um aldrabatildeo haacute-de dar por paus e por pedras para se raspar comigo para aqui Enquanto o outro que caacute era um bonacheiratildeo haacute-de continuar laacute em baixo o mesmo bonacheiratildeo Heacutercules E o Aacutegaton por onde anda ele Dioniso Pocircs-se a mexer foi um ar que lhe deu Um bom poeta que deixou saudades nos amiguinhos dele Heacutercules Para que canto do mundo coitado Heacutercules Ora deixa caacute ver por qual deles hei-de comeccedilar Qual haacute-de ser Haacute um que parte da corda e do banco Enforca-te Dioniso Vira essa boca para laacute Eacute um sufoco esse que dizes Heacutercules Haacute tambeacutem um outro um atalho a direito pisado que eacute um mimo que passa pelo almofariz Dioniso Eacute a cicuta que queres dizer

102

Heacutercules Ora nem mais Dioniso Esse eacute frio de cortar agrave faca mesmo Faz logo enregelar as canelas Heacutercules Queres que te diga um raacutepido e sempre a descer Dioniso Corsquoos diabos esse sim que como andarilho sou um desastre Heacutercules Pois bem vai ateacute ao Ceramico Dioniso E depois Heacutercules Sobe agravequela torre alta que laacute estaacute Dioniso E o que eacute que eu faccedilo Heacutercules Assiste laacute do alto agrave largada da corrida dos archotes E depois quando o puacuteblico gritar lsquopartidarsquo tu partes laacute de cima tambeacutem Dioniso Para onde Heacutercules Caacute para baixo Dioniso Assim dou mas eacute cabo dos miolos Natildeo natildeo vou seguir por esse caminho de que falas Heacutercules Entatildeo qual haacute-de ser Dioniso Aquele mesmo por onde tambeacutem tu outrora laacute chegaste Heacutercules Soacute que esse eacute uma maccediladoria de marinharia Para comeccedilar vais dar a um lago enorme sem fundo Dioniso E depois como eacute que eu atravesso Heacutercules Num barquinho assim pequenininho um velho barqueiro vai-te atravessar por dois oacutebolos a passagem

Ao seguir as informaccedilotildees dadas por Heacutercules Dioniso encontra o barqueiro

Caronte que cobra dois oacutebolos para atravessaacute-lo pelo pacircntano Durante esta travessia Dioniso

discute com as Ratildes que habitam o ambiente porque o barulho recorrente de seus

brequequequequex coax coax o deixam irritado

No inferno Dioniso eacute ameaccedilado de morte pelo Eacuteaco (juiz dos mortos) que o

confunde com Heacutercules jaacute que Dioniso estava disfarccedilado e o acusa-o de ter levado o catildeo de

guarda do inferno(vv605-608)

103

Eacuteaco Prendam-mo depressa este ladratildeo de catildees para que leve o corretivo que merece Vamos despachem-se Dioniso A coisa estaacute torta para algueacutem Xacircntias Vatildeo agravequela parte Alto laacute Eacuteaco Ai eacute queres luta Oacute Camelo oacute Macacatildeo oacute Peidoso Cheguem caacute e faccedilam frente a este gajo

Assim tem-se iniacutecio a algo que seria o agoacuten entre os poetas Euriacutepides e Eacutesquilo (vv 860-870)

Euriacutepides Pois por minha parte estou pronto ndash e longe de mim escusar-me ndash a morder ou a ser mordido primeiro como ele quiser nos diaacutelogos nos cantos nas fibras nevraacutelgicas da trageacutedia e ndash caramba ndash ateacute no Peleu no Eacuteolo no Meleagro e principalmente no Teacutelefo Dioniso (a Eacutesquilo) E tu o que pretendes fazer Diz laacute Eacutesquilo Eacutesquilo O que eu queria era natildeo estar metido nesta discussatildeo Porque um concurso entre noacutes os dois nunca eacute imparcial Dioniso Como assim Eacutesquilo Eacute que a minha poesia natildeo morreu comigo enquanto a dele bateu as botas com ele logo ele pode recitaacute-la aqui Mas enfim jaacute que assim o entendes natildeo haacute outra soluccedilatildeo Dioniso O incenso e o fogo vamos laacute Quero fazer uma prece antes de me assumir como aacuterbitro das vossas subtilezas para que atue com toda a competecircncia de que for capaz E vocecircs acompanhem-me com um canto agraves Musas A entrada do Coro acirra a tomada de decisatildeo por parte de Dioniso (vv875) Coro Donzelas nove filhas de Zeus Musas divinas que do alto olhais os espiacuteritos subtis e engenhosos dos poetas cinzeladores de sentenccedilas agora que eles se confrontam com golpes estudados e se digladiam com argumentos sinuosos observai a potecircncia 880 destas duas bocas tatildeo haacutebeis em produzir palavreado e serradura de versos Pois estaacute iminente o grande concurso do talento Dioniso (a ambos os poetas) (vv 885 - 895) Faccedilam tambeacutem a vossa oraccedilatildeo vocecircs os dois antes de recitarem os vossos versos Eacutesquilo Demeacuteter tu que alimentaste o meu espiacuterito faz com que eu seja digno dos teus misteacuterios Dioniso (a Euriacutepides) Agora tu toma laacute tambeacutem o incenso e faz uma oferenda Euriacutepides Natildeo obrigado Satildeo outros os deuses da minha devoccedilatildeo Dioniso Deuses exclusivos de cunhagem nova Euriacutepides Absolutamente

104

Dioniso Pois bem invoca entatildeo os teus deuses privativos Euriacutepides Eacuteter que me alimentas Eixo da minha liacutengua Inteligecircncia e voacutes Narinas de faro penetrante fazei com que eu consiga refutar com eficaacutecia os argumentos que me surjam pela frente Coro (895-900) Pois bem tambeacutem noacutes estamos desejosos de ouvir estes dois geacutenios e de ver que batalha de argumentos vocecircs vatildeo esgrimir Vamos decircem iniacutecio agrave disputa A liacutengua de um e de outro eacute viperina o acircnimo natildeo lhes carece de audaacutecia nem o espiacuterito de agilidade Pode de um esperar-se que tenha uma tirada de espiacuterito limada com requinte do outro que arranque as palavras pela raiz que agarre nelas e desanque o inimigo levantando uma poeirada de versos Corifeu (aos dois poetas) (vv905 -912) Vamos depressa eacute hora de cada um se pronunciar Mas tratem de usar uma linguagem de bom gosto nada de floreados nem dessas patacoadas acessiacuteveis a qualquer um Euriacutepides Muito bem Quanto a mim e ao que valho como poeta eacute mateacuteria que deixo para depois Para jaacute vou desmascarar este sujeito como um parlapatatildeo e um vigarista e revelar por que processos ele fazia o ninho atraacutes da orelha de um puacuteblico de imbecis criado na escola de Friacutenico Antes de mais nada sentava uma personagem solitaacuteria coberta de veacuteus um Aquiles ou uma Nigraveobe por exemplo sem lhe mostrar a cara ndash um perfeito alarde de trageacutedia Quanto a tugir ou mugirnem poacute Dioniso (vv913) (a Eacutesquilo) Era isso sim era isso mesmo Dioniso (vv922- 930) Olha o safado Como ele fazia de mim parvo Porque te torces todo e me potildees essa cara de caso Euriacutepides Eacute por eu o desmascarar A seguir depois destas patacoadas quando a peccedila jaacute ia a meio saiacutea-se com uma duacutezia de mastodontes daquele palavreado de sobrolho e penacho uns papotildees de meter medo desconhecidos dos espectadores Eacutesquilo Com mil demoacutenios Dioniso Cala-te Euriacutepides Que se percebesse nem uma palavrinha para amostra Dioniso Natildeo ranjas os dentes Euriacutepides Eram soacute Escamandros trincheiras e gravadas nos escudos aacuteguias-grifos forjadas em bronze e palavras montadas a cavalo que natildeo era faacutecil digerir

Apoacutes estas discussotildees nas quais as obras literaacuterias e seus proacutelogos satildeo avaliados

Dioniso eacute forccedilado a decidir rapidamente sobre quem seraacute o vencedor do concurso e decide

pesar os versos de cada um na balanccedila O prato de Eacutesquilo pesou mais entatildeo Dioniso

105

novamente pressionado por Hades se pronunciou dizendo que resgataria do inferno Eacutesquilo

por sua visatildeo ciacutevica e educadora da cidade

No entanto o que foi realmente decisivo foi o efeito moral da poesia isto eacute a

capacidade do poeta de tornar as pessoas melhores E eacute esta dimensatildeo moral da poesia que fez

Dioniso escolher Eacutesquilo porque sua proposta era um plano de accedilatildeo contra o que

representava Euriacutepides A vitoacuteria de Eacutesquilo nos diz que a funccedilatildeo social da poesia eacute mais

importante do que qualquer outro aspecto para a polis Assim Aristoacutefanes buscou natildeo apenas

divertir o puacuteblico em sua representaccedilatildeo mas tambeacutem conscientizar as pessoas de que atraveacutes

de mudanccedilas no modelo poliacutetico o antigo esplendor poderia ser restaurado para Atenas

Importante notar que seja em Acarnenses Ratildes Auto da Compadecida ou no Auto

da Barca do Inferno os autores mantiveram uma unidade teatral atemporal o julgamento A

cena do julgamento nas peccedilas referidas marca sensivelmente a preocupaccedilatildeo dos autores em

salvar a cidade e moralizar suas instituiccedilotildees quer seja em Atenas Portugal ou Taperoaacute

Outro fato que deve ser considerado do ponto de vista literaacuterio eacute a divisatildeo das

peccedilas a partir da ideia de julgar para salvar visto que todas estatildeo dividas em duas partes

sendo a primeira burlesca e fantaacutestica tendo como mote a viagem ao mundo dos mortos ndash

encontro com o encourado ndash Barqueiroanjo democircnio ndash poetas mortos e a paroacutedia literaacuteria do

Teacutelefo de Euriacutepides na qual o teatro vai agrave cidade e a segunda com feiccedilatildeo moral e tambeacutem

literaacuteria seja pela retomada da consciecircncia das injusticcedilas (mesmos mortos) pela

condenaccedilatildeoabsolviccedilatildeo ou em Acarnenses pela delaccedilatildeo na Assembleia de toda a maacute sorte

pela qual passa o povo devido agrave guerra

52 O julgamento O riso a morte e o descanso do (in)justo

A ideia de justiccedila sem duacutevida ocupou um lugar privilegiado na ponderaccedilatildeo dos

antigos gregos Desvendando o seu significado determinando o seu alcance especificando o

seu papel - poliacutetico e ou social regulando a sua praacutetica esta foi sempre uma preocupaccedilatildeo

das mais genuiacutenas

Nesta parte do nosso trabalho refletiremos sobre como a ideia de justiccedila tambeacutem

encontra no Auto e na Comeacutedia grega uma expressatildeo proacutepria Atenta aos valores de natureza

social eacutetica e poliacutetica tanto a Comeacutedia quanto o Auto proclamam abertamente a prerrogativa

de saber o que eacute verdadeiramente justo

106

No Auto da Compadecida e no Auto da Barca do Inferno obras para agraves quais

voltaremos nossa atenccedilatildeo ceacuteu e inferno se misturam na promoccedilatildeo da justiccedila e encontram no

humano e no divino espaccedilos para a construccedilatildeo do que seria justo e bem medido ao ser

humano

Nesse cenaacuterio conturbado e perturbador morte e vida se apresentam natildeo de forma

antagocircnica mas dependentes ligadas ao natural do humano viver os prazeres sem a devida

preocupaccedilatildeo com o dia do juiacutezo final no qual todos seratildeo responsabilizados pelos atos

cometidos pendentes para o bem ou para o mal

A morte eacute um fato universal que desde tempos imemoriais tem preocupado a

humanidade Eacute possiacutevel que todas as culturas tenham dedicado rituais simboacutelicos para tentar

sobreviver agrave morte uma realidade tatildeo justa que afeta a todos igualmente Rico pobre

Soberanos e mendigos ningueacutem se livra de ser inerte Embora o corpo pereccedila muitas

sociedades tecircm sido obstinadas em tentar salvar a alma do falecido ou pelo menos

encomendaacute-las a um julgamento (in)justo

No Auto da Compadecida a morte vinculada a Joatildeo Grilo estaacute envolvida em um

clima de tensatildeo entre a comeacutedia e a trageacutedia Ateacute mesmo no momento da morte apoacutes o tira

dado pelo comparsa de Severino Joatildeo faz graccedila diante da morte ldquoDeixe de latomia Chicoacute

parece que nunca viu um homem morrer Nisso tudo eu soacute lamento eacute perder o testamento do

cachorro (SUASSUNA 1995 p133)

A cena do julgamento no Auto da Compadecida eacute uma recriaccedilatildeo advinda do

imaginaacuterio popular cordelesco que vecirc na morte a possibilidade de se encontrar com o divino

mesmo sabendo que a entrada para o ceacuteu purgatoacuterio ou inferno estaacute ligada a um acerto de

contas um julgamento Ariano Suassuna ao apresentar essa imagem resgata os grandes autos

medievais que tinham uma preocupaccedilatildeo religiosa como o Auto da Barca do Inferno de Gil

Vicente obra na qual se verifica que haacute embora de modo diferente da obra de Suassuna a

figura do Diabo acusando cada um daqueles que aparecem indicando para qual barca devem

ir

No Auto da Barca do Inferno tambeacutem conhecido como o Auto da Moralidade o

termo morte foi associado por Gil Vicente ao discernimento entre o Bem e o Mal que se

reflete como elemento necessaacuterio para a expiaccedilatildeo dos pecados Assim a locuccedilatildeo latina

castigat ridendo mores encontra base na temaacutetica da equitaccedilatildeo dos costumes do castigado

sendo representada na vida pelo teatro de forma a caracterizar certos aspectos da sociedade

portuguesa o que tambeacuterm favorece uma anaacutelise mais vivamente sagaz com visatildeo criacutetica de

107

alguns personagens tiacutepicos representantes de certos estratos sociais e espectros

socioeconocircmicos muito variados presentes em Aristoacutefanes e Ariano Suassuna

Aleacutem de grande influecircncia sobre da literatura de Ariano Suassuna a obra

vicentina representa o encontro entre a heranccedila medieval e o espiacuterito renascentista

sagazmente criacutetico revelador e delatoacuterio da imoralidade institucional e dos viacutecios da

sociedade incapaz de assumir a responsabilidade dos seus atos e da sua conduta como se

pode constatar no diaacutelogo inicial entre o Diabo e o Fidalgo na cena II no Auto da Barca do

Inferno na qual o autor nos prepara para o julgamento dos passageiros das naus

Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz

FIDALGO Esta barca para onde vai Que assim estaacute apercebida DIABO Vai para a ilha perdida E haacute de partir daqui a nada FIDALGO E para laacute vai a senhora DIABO Sou um senhor Ao vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isto um corticcedilo DIABO Porque a vedes daiacute de fora FIDALGO Pois sim e por que terra passais DIABO Para o inferno senhor FIDALGO Uma terra sem-sabor DIABO O quecirc Mas tambeacutem disso zombais FIDALGO E que passageiros achais Para tal embarcaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo Para ir no nosso caishellip FIDALGO Parece-te a ti assim DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que deixo na outra vida Quem reze sempre por mim DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi Tu que viveste a teu prazer

108

Pensando caacute guarnecer (salvares-te) Por aqueles que laacute rezam por ti Embarcai agora embarcai Que haveis de ir nas traseiras Mandai meter a cadeira Como tambeacutem passou o vosso pai (Gil Vicente p7-11)

Pela passagem acima fica clara a intenccedilatildeo do poeta em preparar o leitor para a

carga de zombaria que seraacute utilizada como recurso estiliacutestico necessaacuterio capaz de impor a

moralidade perante um conjunto significativo de tipos cocircmicos que post mortem requerem

suas entradas no ceacuteu Gil Vicente conhecedor das fragilidades de sua sociedade apresenta em

seu inferno cocircmico tipos caracteriacutesticos que podem perfeitamente ser ajustados agraves literaturas

mais atuais

Satildeo personagens como o fidalgo o onzeneiro o frade o sapateiro a alcoviteira o

judeu o corregedor ou o procurador entre outros os quais o poeta decide tornar natildeo soacute alvo

de galhofa geral mas tambeacutem um exemplo a natildeo seguir expondo-os explicitamente diante do

julgamento final despojados de todas as riquezas e possessotildees terrenas

521 Aqui eacute o inferno vocecirc pode brincar

Joatildeo Joatildeo Morreu Ai meu Deus morreu pobre de Joatildeo Grilo Tatildeo amarelo tatildeo safado e morrer assim Que eacute que eu faccedilo no mundo sem Joatildeo Joatildeo Joatildeo Natildeo tem mais jeito Joatildeo Grilo morreu Acabou-se o Grilo mais inteligente do mundo Cumpriu sua sentenccedila e encontrou-se com o uacutenico mal irremediaacutevel aquilo que eacute a marca de nosso estranho destino sobre a terra aquele fato sem explicaccedilatildeo que iguala tudo o que eacute vivo num soacute rebanho de condenados porque tudo o que eacute vivo morre (ARIANO SUASSUNA 2005 p113)

A cena transcrita na citaccedilatildeo eacute o iniacutecio do que consideramos como o argumento

teatral que motiva o riso no julgamento das almas diferente do resto da obra pois as situaccedilotildees

que satildeo abordadas neste ato revelam em primeiro plano um tom traacutegico mas ao contraacuterio

pelo desvio que encerra a representaccedilatildeo causam natildeo o temor ou pena mas o riso e a reflexatildeo

A exemplo de Aristoacutefanes e Gil Vicente Suassuna utiliza dos expedientes da

paraacutebase e do coro como seus proacuteprios lugares ideoloacutegicos representando o locus privilegiado

onde podemos traccedilar o efeito de suas poliacuteticas e particularmente o teor criacutetico que se

apresenta nos versos dedicados ao coro encenado pelo personagem-palhaccedilo Na verdade o

significado do discurso moralizante e humoriacutestico introduzido pelo coreuta circense eacute sempre

orientado para um corpo social ou para certos grupos e quando se expressa com tom poeacutetico

de uma comeacutedia eacute sempre uma expressatildeo dirigida a um grupo especiacutefico instituiccedilotildees de uma

dada realidade

109

No caso do tribunal celeste ou na travessia das naus essa realidade move e

denuncia as cenas que se desenvolvem pelo intenso debate entre o Anjo ou o Diabo com seus

hoacutespedes e no caso do Auto da Compadecida do anti-heroacutei Joatildeo Grilo com os mortos e seres

divinizados a partir do proacutelogo estabelecido pela entrada do Palhaccedilo que adverte ao puacuteblico

sobre o assunto posto justificando a dupla funccedilatildeo apresentar o argumento da peccedila e

estabelecer a captatio beneuolentiae 27 clamando pela atenccedilatildeo da plateia dando o tom cocircmico

desde o iniacutecio para prender a atenccedilatildeo da assistecircncia sobre os ensinamentos que ali seratildeo

apresentados PALHACcedilO Que bem precisada anda disso Saia e vaacute rezar laacute fora Muito bem com toda essa gente morta o espetaacuteculo continua e teratildeo oportunidade de assistir seu julgamento Espero que todos os presentes aproveitem os ensinamentos desta peccedila e reformem suas vidas se bem que eu tenha certeza de que todos os que estatildeo aqui satildeo uns verdadeiros santos praticantes da virtude do amor a Deus e ao proacuteximo sem maldade sem mesquinhez incapazes de julgar e de falar mal dos outros generosos sem avareza oacutetimos patrotildees excelentes empregados soacutebrios castos e pacientes E basta se bem que seja pouco Muacutesica (ARIANO SUASSUNA 2005 p117)

O desenvolvimento do julgamento traz elementos superiores e sobrenaturais

comuns na trageacutedia grega que Suassuna representa ao modo nordestino como o Diabo o

Encourado Jesus e Maria A presenccedila dessas divindades na obra que aliaacutes se apresentam a

partir do imaginaacuterio maacutescara do psicoloacutegico aleacutem de suscitar a reflexatildeo sobre os atos que o

homem comete em vida manifesta a denuacutencia que o autor imbrica no texto revelando que de

alguma forma a sociedade seraacute julgada e poderaacute sofrer puniccedilotildees apontando desta forma o

caraacuteter cocircmico e moralizador do auto como vemos abaixo DEMOcircNIO Calem-se todos Chegou a hora da verdade JOAtildeO GRILO Entatildeo jaacute sei que estou desgraccedilado porque comigo era na mentira DEMOcircNIO Vocecircs agora vatildeo pagar tudo o que fizeram ENCOURADO Vamos aos fatos Que vergonha Todos tremendo Tatildeo corajosos antes tatildeo covardes agora O Senhor Bispo tatildeo cheio de dignidade o padre o valente Severino E vocecirc o Grilo que enganava todo o mundo tremendo como qualquer safado JOAtildeO GRILO Que eacute que posso fazer Jaacute disse mais de cem vezes a mim que natildeo tremesse e tremo ENCOURADO

27 Captatio benevolentiae eacute uma categoria retoacuterica que visa capturar a boa vontade do puacuteblico no iniacutecio de um discurso (exoacuterdio prooemium) ou apelo No entanto o termo teacutecnico natildeo eacute encontrado nos manuais retoacutericos da Antiguidade Latinafoi usado pela primeira vez por Boeacutecio (falecido em 524 EC) em seu comentaacuterio sobre os escritos de Ciacutecero Literalmente significa atrair a benevolecircncia Refere-se a uma estrateacutegia usada quando o autor se dirige ao puacuteblico leitor visando conquistar a sua simpatia In E-Dicionaacuterio de Termos Literaacuterios (EDTL) coord de Carlos Ceia ISBN 989-20-0088-9 lthttpwwwedtlcomptgt consultado em 02-09-2018

110

E tem razatildeo porque o que vai lhe acontecer eacute coisa muito seacuteria Eacute engraccedilado como vocecircs empregam agraves vezes a palavra exata sem terem consciecircncia perfeita do fato O que vocecirc sentiu foi exatamente um arrepio de danado Leve a todos para dentro SEVERINO Ai meu Deus vou pagar minhas mortes no inferno BISPO Senhor democircnio tenha compaixatildeo de um pobre Bispo ENCOURADO Ah compaixatildeo Como pilheacuteria eacute boa Vamos todos para dentro Para dentro jaacute disse Todos para o fogo eterno para padecer comigo BISPO Ai Leve o Padre PADRE Ai Leve o sacristatildeo SACRISTAtildeO Ai Leve o Severino JOAtildeO GRILO Parem parem Acabem com essa molecagem JOAtildeO GRILO Acabem com essa molecagem Diabo dum barulho danado Eacute assim eacute Eacute assim eacute ENCOURADO Assim como JOAtildeO GRILO Eacute assim de vez Eacute soacute dizer ldquopra dentrordquo e vai tudo Que diabo de tribunal eacute esse que natildeo tem apelaccedilatildeo ENCOURADO Eacute assim mesmo e natildeo tem para onde fugir JOAtildeO GRILO Sai daiacute pai da mentira Sempre ouvi dizer que para se condenar uma pessoa ela tem de ser ouvida BISPO Eu tambeacutem Boa Joatildeo Grilo PADRE Boa Joatildeo Grilo MULHER Boa Joatildeo Grilo PADEIRO Vocecirc achou boa MULHER Achei PADEIRO Entatildeo eu tambeacutem achei Boa Joatildeo Grilo SEVERINO Eacute isso mesmo e eu vou apelar para Nosso Senhor Jesus Cristo que eacute quem pode saber ENCOURADO Besteira maluquice (ARIANO SUASSUNA 2005 p118-124)

Na defesa dos mortos Joatildeo Grilo reveste-se de autoridade e encarna o tiacutepico heroacutei

das epopeias dotado de coragem e bravura que natildeo desiste de viver mesmo depois da morte

persistindo no seu intuito de vencer Joatildeo ultrapassa o previsto e decide se vestir natildeo com as

roupas do rei Miacutesio mas de sua feacute estrateacutegia inconteste para alcanccedilar a intercessatildeo da matildee de

Jesus figura justa e poderosa capaz de levaacute-lo agrave absolviccedilatildeo PADRE

111

Acho que nosso caso eacute sem jeito Joatildeo Em Deus natildeo existe contradiccedilatildeo entre a justiccedila e a misericoacuterdia Jaacute fomos julgados pela justiccedila a misericoacuterdia diraacute a mesma coisa (ARIANO SUASSUNA 2005 p 142)

JOAtildeO GRILO E difiacutecil quer dizer sem jeito Sem jeito por quecirc Vocecircs satildeo mesmo uns pamonhas qualquer coisinha estatildeo arriando Natildeo vecirc que tiveram tudo na terra Se tivesse tido que aguentar o rojatildeo de Joatildeo Grilo passando fome e comendo macambira na seca garanto que tinha mais coragem Quer ver eu dar um jeito nisso Padre Joatildeo (ARIANO SUASSUNA 2005 p 142)

Autorizado ou natildeo por Suassuna em algumas passagens o certo eacute que tanto Joatildeo

Grilo como Chicoacute inconfundiacuteveis em seus quiprocoacutes nos convidam pelos tons acentos e

ritmos compassados do cordel a uma experiecircncia uacutenica de denuacutencia do social bem como

reveladora das caracteriacutesticas mais comuns aos habitantes de Taperoaacute espaccedilo universal da

recriaccedilatildeo promovida pelo bardo nordestino

52 2 A Voz a esperteza e a malandragem do poeta Nem tudo que eacute vivo morre

(Anti)Heroacutei ou Heroacutei Ser ou natildeo ser quem decide eacute o leitor O fato eacute que

ligado aos misteacuterios divinos por uma feacute inabalaacutevel Joatildeo Grilo mesmo diante de tantas adversidades busca forccedilas em suas oraccedilotildees e novamente cheio de esperteza e sabedoria invoca atraveacutes da voz do autor a Compadecida por meio dos versos de cordel de Canaacuterio Pardo para dar iniacutecio a sua defesa

JOAtildeO GRILO

Ah isso eacute comigo Vou fazer um chamado especial em verso Garanto que ela vem querem ver (ARIANO SUASSUNA 2005 p 142) Valha-me Nossa Senhora Matildee de Deus de Nazareacute A vaca mansa daacute leite A braba daacute quando quer A mansa daacute sossegada A braba levanta o peacute Jaacute fui barco fui navio Mas hoje sou escaler Jaacute fui menino fui homem Soacute me falta ser mulher () Valha-me Nossa Senhora Matildee de Deus de Nazareacuterdquo (ARIANO SUASSUNA 2005 p 144)

Usando de sua malandragem Joatildeo Grilo se garante por essa invocaccedilatildeo trazendo a

Compadecida para o julgamento que inicia um debate contra o Diabo para evitar sua

condenaccedilatildeo A COMPADECIDA

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E para que foi que vocecirc me chamou Joatildeo JOAtildeO GRILO Eacute que esse filho de chocadeira quer levar a gente para o inferno Eu soacute podia me pegar com a senhora mesmo ENCOURADO As acusaccedilotildees satildeo graves Seu filho mesmo disse que haacute tempo natildeo via tanta coisa ruim junta A COMPADECIDA Ouvi as acusaccedilotildees Estaacute bem vou ver o que posso fazer JOAtildeO GRILO Estaacute vendo Isso aiacute eacute gente e gente boa natildeo eacute filha de chocadeira natildeo Gente como eu pobre filha de Joaquim e de Ana casada com um carpinteiro tudo gente boa MANUEL E agora noacutes Joatildeo Grilo Por que sugeriu o negoacutecio para os outros e ficou de fora JOAtildeO GRILO Porque modeacutestia agrave parte acho que meu caso eacute de salvaccedilatildeo direta ENCOURADO Era o que faltava E a histoacuteria que estava preparada para a mulher do padeiro MANUEL Eacute Joatildeo aquilo foi grave JOAtildeO GRILO E o senhor vai dar uma satisfaccedilatildeo a esse sujeito me desgraccedilando para o resto da vida Valha-me Nossa Senhora matildee de Deus de Nazareacute jaacute fui menino fui homem A COMPADECIDA Soacute lhe falta ser mulher Joatildeo jaacute sei Vou ver o que posso fazer Lembre-se de que Joatildeo estava se preparando para morrer quando o padre o interrompeu (ARIANO SUASSUNA 2005 p 146-158)

Como vemos eacute no cenaacuterio tragicocircmico do Agoacuten dos mortos que o Poeta de

forma moralizante se dirige agrave audiecircncia nas vozes de Jesus e da Compadecida para tratar das

questotildees ligadas agrave igreja e a seus representantes O mesmo natildeo se aplica a Joanes (o parvo)

que no cais do Purgatoacuterio indagado pelo Diabo na barca vicentina natildeo tem defensores ou

fiadores de sua graccedila em vida e contaraacute apenas com suas verdades ingecircnuas atitude que serve

para a quebra da seriedade comum ao julgamento e aos juiacutezes como refere Miranda (2001)

ao tratamento humoriacutestico empregado pelo autor

[hellip] a seriedade do tema eacute quebrada pelo tratamento que recebe ningueacutem pode chorar a sua sorte quando se depara com a prefiguraccedilatildeo de um juiacutezo final O modo como as personagens descobrem a sentenccedila que lhes foi determinada daacute- se de forma alegre e divertida pois o rigor da sentenccedila contrasta com o realismo grotesco de certos personagens e com o sarcasmo do interrogatoacuterio Disso decorre a comicidade da comeacutedia dos viacutecios (MIRANDA 2001 p61)

Mais adiante a Grande Voz - Gil Vicente ndash prepara seus leitores para o processo

de elaboraccedilatildeo e desenvolvimento da histoacuteria do parvo a partir do sentimento traacutegico gerado

pela morte que de iniacutecio natildeo eacute aceita e pelo elemento cocircmico presente no enfrentamento da

verdade do poacutes-morte num ritmo binaacuterio que permite o nivelamento de uma sociedade

estratificada

NarradorAutor

113

Vem Joane o Parvo e diz ao barqueiro do Inferno PARVO Oh desta DIABO Quem eacute PARVO Eu sou Eacute esta a nossa naviarra DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Ah Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Oh Pelo pesar do meu avocirc (dor choro) Resumindo Vim a adoecer E em maacute hora fui morrer E nela para mim soacute DIABO E de que morreste PARVO De quecirc Acho que de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Que maacute rabugem que te decirc (um insulto) DIABO Entra Potildee aqui o peacute PARVO Oacute paacute Que natildeo tombe o zambuco() (a barcaccedila) DIABO Entra tolo eunuco Que nos vai embora a mareacute PARVO Aguardai aguardai um pouco E aonde havemos noacutes de ir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-a-a DIABO Ao Inferno Entra caacute PARVO Ao Inferno Espera laacute Ui Ui Eacute a Barca do cornudo Pecircro de Vinagre Beiccediludo Lenhador de Alverca uh uh (GIL VICENTE p 34-38)

Ignorando a entrada no batel infernal Joanes se depara com outra realidade a

visita agrave nau que vai ao paraiacuteso Por que um bobo entraria na nau e seguiria para o descanso

dos justos Capricho ou natildeo do autor que encontra na ingenuidade e na astuacutecia as condiccedilotildees

de puniccedilatildeo daqueles que se julgavam acima das leis

114

Chega o Parvo ao batel do Anjo diz PARVO Oh da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Talvez algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres Porque em todos os teus afazeres Por maliacutecia natildeo erraste Da tua simpleza te bastastes Para gozar dos prazeres Espera no entanto aiacute Veremos se vem mais algueacutem Merecedor de tal bem Que deva entrar aqui (GIL VICENTE p 40-41)

A morte natildeo eacute o fim senatildeo o comeccedilo para o arrependimento das simbologias

hierarquizantes que permitem identificaccedilatildeo do homem com seu fazer terreno e com sua classe

social poliacutetica econocircmica e profissional

A morte acima de todos os entendimentos quebra a ordem dos elementos

igualando cada um dos protagonistas nas diferentes obras e gerando uma espeacutecie de

coletividade na qual do ponto de vista da justiccedila natildeo se concedem nem existem privileacutegios

pois cada um deveraacute responder por si soacute

Assim a resposta do poeta agraves injusticcedilas pelas quais se castiga a cidade viraacute com a

puniccedilatildeo dos infratores nas cenas que se revelam natildeo por uma accedilatildeo somente mas pelo

conjunto de mini-accedilotildees que adotam a estrutura gerada pela exposiccedilatildeo o conflito e o

desenlace e que agraves vezes nos apresentam a exposiccedilatildeo e o conflito dependentes um do outro

como no caso da comeacutedia aristofacircnica e dos autos de Ariano Suassuna e Gil Vicente

O fio que liga os enredos e conduz a nau vicentina ao inferno eacute o mesmo que

aguccedila a astuacutecia de Joatildeo Grilo ou que tranquiliza Chicoacute nos causos hercuacuteleos Em travessia

sobrenatural ou amarrado a um pirarucu espectadorleitor sente-se identificado com o

momento da histoacuteria quer pelas reminiscecircncias encontradas atraveacutes de elementos oriundos da

tradiccedilatildeo claacutessica quer pelos viacutenculos que retratam a realidade alegorizada e punitiva

Eacute o sentir sem sentir do poeta estar sem estar de uma realidade aparente natildeo

vivida mas experimentada simbolicamente seja nos autos ou na cena cocircmica aristofacircnica

115

que diante de um tribunal definido a partir dos valores humanos e da moralidade a verdade

vai se impor como instrumento para sentenciar as almas que uma a uma iratildeo entrar nos bateis

ou no purgatoacuterio do encourado

No palco construiacutedo pela comeacutedia ou pelo auto os conflitos se resolvem na

quebra da normalidade de um inferno agraves avessas lugar que se transforma em teatro de saacutetira

social de tipos que agem segundo a loacutegica da sua condiccedilatildeo de suas vivecircncias como bem

assinalado por Ariano Suassuna ao dar a Joatildeo Grilo as experiecircncias que lhe serviram de

argumento agrave Compadecida e contribuiacuteram decisivamente para a sua absolviccedilatildeo A COMPADECIDA Joatildeo foi um pobre como noacutes meu filho Teve de suportar as maiores dificuldades numa terra seca e pobre como a nossa Natildeo o condene deixe Joatildeo ir para o purgatoacuterio JOAtildeO GRILO Para o purgatoacuterio Natildeo natildeo faccedila isso assim natildeo Natildeo repare eu dizer isso mas eacute que o diabo eacute muito negociante e com esse povo a gente pede o mais para impressionar A senhora pede o ceacuteu porque aiacute o acordo fica mais faacutecil a respeito do purgatoacuterio A COMPADECIDA Isso daacute certo laacute no sertatildeo Joatildeo Aqui se passa tudo de outro jeito Que eacute isso Natildeo confia mais na sua advogada JOAtildeO GRILO Confio Nossa Senhora mas esse camarada enrolando noacutes dois A COMPADECIDA Deixe comigo Peccedilo-lhe entatildeo muito simplesmente que natildeo condene Joatildeo MANUEL O caso eacute duro Compreendo as circunstacircncias em que Joatildeo viveu mas isso tambeacutem tem um limite Afinal de contas o mandamento existe e foi transgredido Acho que natildeo posso salvaacute-lo A COMPADECIDA Decirc-lhe entatildeo outra oportunidade MANUEL Como A COMPADECIDA Deixe Joatildeo voltar MANUEL Vocecirc se daacute por satisfeito JOAtildeO GRILO Demais Para mim eacute ateacute melhor porque daqui para laacute eu tomo cuidado para a hora de morrer e natildeo passo nem pelo purgatoacuterio para natildeo dar gosto ao catildeo A COMPADECIDA Entatildeo fica satisfeito JOAtildeO GRILO Eu fico (ARIANO SUASSUNA 2005 p 146-158)

Se houve ou natildeo por parte do poeta a intenccedilatildeo de usar bufotildees palhaccedilos e o riso

para punir natildeo haacute duacutevidas Essas personagens promovem tanto na comeacutedia como no auto

uma reflexatildeo mais profunda sobre a existecircncia do homem na terra exercendo sobre as demais

que se julgam merecedoras de entrarem na barca do Anjo ou do perdatildeo divino uma saacutetira

viva e desestabilizadora

116

O certo eacute que mesmo apesar da situaccedilatildeo de marginalidade e abandono a que tem

estado sempre os outros cocircmicos autorizados pelo poeta eles mostram em Acarnenses no

Auto da Barca do Inferno e no Auto da Compadecida o discernimento necessaacuterio para por em

causa proacutepria todo o mundo social poliacutetico eacutetico e religioso

Observar o julgamento das almas o convencimento da assembleia ou a absolviccedilatildeo

de Joatildeo Grilo eacute justamente se inquietar com comportamento destoante dos personagens

diante do traacutegico anunciado seja pela sentenccedila no purgatoacuterio em que Suassuna provoca o riso

pelo absurdo da situaccedilatildeo seja pela morte tragicocircmica de Joanes que obteacutem o direito de

embarcar para o paraiacuteso ou mesmo pela negociaccedilatildeo que garantiu aos representantes da Igreja

e ao Cangaceiro o purgatoacuterio cabendo a Joatildeo Grilo o retorno agrave vida Portanto aleacutem de

garantir a absolviccedilatildeo haacute tambeacutem a realizaccedilatildeo de uma vinganccedila astuciosa que imprimindo o

castigo aos superiores reflete a inteligecircncia que se sobrepotildee a avareza e aos desmandos

Moralidade restabelecida Assim a cena cocircmica torna explicita a forte associaccedilatildeo

entre comeacutedia e auto na intecionalidade de uma justiccedila direta que quis aleacutem das palavras das

palavra-voz lapidada pelos a(u)tores impulsionadora de reflexotildees geradora de fissuras

abertas na selva de significados que de forma desconsertada passa a ser o guia de um leitor

carente da tomada de consciecircncia sobre o que eacute ou natildeo (in)justo pelo vibrar incorrigiacutevel da

cadeia de significados que se estabelece entre o dito e o leitorouvinte como afirma Zumthor

O texto vibra o leitor o estabiliza integrando-o agravequilo que eacute ele proacuteprio Entatildeo eacute ele que vibra de corpo e alma No eco da voz-texto natildeo haacute algo que a linguagem tenha criado nem estrutura nem sistema completamente fechados e as lacunas e os brancos que aiacute necessariamente subsistem constituem um espaccedilo de liberdade ilusoacuterio pelo fato de que soacute pode ser ocupado por um instante por mim por vocecirc leitores nocircmades por vocaccedilatildeo (ZUMTHOR 2014 p 53)

O heroacutei cocircmico eacute esse espaccedilo de liberdade de ousadia nem sempre vitorioso mas

que se constitui agraves vezes de um alter ego do autor que na qualidade de educador da cidade se

impotildee e legitima verdadeiramente justo uma vez que a justiccedila e a verdade satildeo suas

verdadeiras aliadas e componentes essenciais da criaccedilatildeo do autor

Comeacutedia e Auto concluem com sucesso as intenccedilotildees de seus autores garantindo a

todos o que eles merecem um final no qual a justiccedila a verdade e a puniccedilatildeo terminam

moralmente como (re)modeladoras da cidade

117

6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Nas obras que aqui foram analisadas (Acarnenses Ratildes Auto da Barca do inferno

e Auto da Compadecida) os respectivos autores parecem convidar o puacuteblico a tratar o duplo

poeacutetico e a voz como algo especialmente autorizado agrave tarefa de educar a cidade No entanto

cabe ressaltar que ldquoessa aparente autoridaderdquo eacute o instante singular no qual o poeta diz o que

pensa e quer pela boca de seus personagens reforccedilarcada vez mais a ilusatildeo de ser o que natildeo

se eacute de dizer para aleacutem do abrir e fechar das cortinas do palco teatral

No sertatildeo de chatildeo duro e quase impermeaacutevel agrave chuva do Auto da Compadecida a

palavra-performance fez sua morada na boca dos arremedos de Joatildeo Grilo fincou suas raiacutezes

em seus gestos fez dele sair seus brotos que se transformaram em galhos firmes de uma

aacutervore frondosa que eacute a cultura nordestina tatildeo bem cantada pela literatura de cordel pelo riso

mascarado e ao mesmo tempo denunciativo e desnudado do autor na representaccedilatildeo de sua

criatura Joatildeo Grilo eacute o muacuteltiplo poeacutetico defendido pelo proacuteprio autor numa caracterizaccedilatildeo

niacutetida e social Jaacute Diceoacutepolis em Acarnenses contudo tem uma identificaccedilatildeo claramente

problemaacutetica visto ser um personagem que assume muitas personagens e vozes (tais como

tanto o protagonista cocircmico ruacutestico e o traacutegico Teacutelefo) minando a seriedade com que um

leitor deve tomar suas reivindicaccedilotildees

No Auto da Barca do inferno Gil Vicente como criacutetico mordaz impotildee toda a sua

ironia para condenar os costumes praticados por uma sociedade permeada pela hipocrisia Agrave

guisa do pensamento vicentino a linguagem passa a ser seu principal instrumento pelo qual

se vai operar a zombaria para combater os excessos daqueles que ganham com a miseacuteria do

povo

Pelo vieacutes do desconserto a representaccedilatildeo teatral vicentina se constitui como um

conjunto (ou sistema) de signos de natureza diversa que revela um processo de comunicaccedilatildeo

em que haacute uma seacuterie complexa de transmissores uma seacuterie de mensagens um duplo emissor

assim como um (in)corrigiacutevel e muacuteltiplo receptor presentes no mesmo lugar ansiosos para

saber o que aleacutem do dito eacute ensinado pelo poeta

Esse jogo de diaacutelogosdidascaacutelias a princiacutepio consciente para o poeta permite um

percurso para a compreensatildeo dos diversos fios que compotildeem a tessitura cocircmica ndash moralizante

e dramaacutetica cabendo ao leitorespectador desvelar e revelar as mensagens proferidas pelas

vaacuterias vozes pelas quais se expressa o autor

Ao leitor atento nada escapa ao identificar no espaccedilo cecircnico as simbologias dos

espaccedilos socioculturais comuns agraves trecircs obras que compotildeem o corpus do nosso trabalho e de

118

forma particular a Gil Vicente que amarra elementos humanos e divinos burlescos e seacuterios

formais e corriqueiros sem perder sua atualidade uma vez que tecircm o meacuterito de apresentarem

as constantes lutas entre o bem e o mal que existem dentro de cada indiviacuteduo valendo-se de

uma comicidade aacutecida e palpitante inimiga dos desmando e excessos

Assim como Gil Vicente Ariano Suassuna soube como ningueacutem recriar a proacutepria

realidade em seus Autos atraveacutes dos textos orais nordestinos e interdiscursos culturais

medievos Sempre criacutetico sua literatura estaacute impregnada da heranccedila da tradiccedilatildeo popular

regional e de gecircneros medievais portugueses ibeacutericos e claacutessicos reforccedilando que tanto as

raiacutezes populares nordestinas quanto os gecircneros do teatro medievo alimentam seu fazer

poeacutetico

Como o educador da cidade Ariano Suassuna chega ao conhecimento da plateia

pelas vaacuterias frestas de uma accedilatildeo cocircmica e de recortes de um proacutelogo e de uma paraacutebase bem

ao estilo de Aristoacutefanes quando ao questionar metaforicamente os representantes da Igreja

pelo zelo da moralidade e da justiccedila social coloca em cheque tambeacutem toda a sociedade da

eacutepoca produzindo pelos jogos ciacutenicos circenses os novos significados de cidadania

Suassuna e Gil Vicente representam o fazer literaacuterio de um Aristoacutefanes que sob a

maciez do riso e da galhofa esconde o punhal e a foice da contestaccedilatildeo social o desejo de

recuperaccedilatildeo e de conversatildeo dos valores humanos Em Aristoacutefanes e diante de sua

representaccedilatildeo da polis estamos diante de uma realidade caoacutetica quase impassiacutevel de ser

alterada resultado da exploraccedilatildeo e da ambiccedilatildeo social fatos que permeiam a accedilatildeo de seus

personagens e quando o poeta traveste-se de Dioniso e decide descer ao infernos para buscar

um poeta genuiacuteno percebemos que natildeo eacute somente a arte ou os ensinamentos trazidos por ela

que Aristoacutefanes quer salvar mas o proacuteprio homem ndash em essecircncia ndash que jaacute se encontrava

seriamente corrompido fazendo mal agrave coletividade

No seu fazer de mentalidade coletiva Ariano Suassuna e Gil Vicente satildeo Aristoacutefanes

que em defesa da cidade lanccedilam-se num terreno movediccedilo do diaacutelogo literaacuterio e cultural

contrapondo o moderno e arcaico o regional ao erudito o miacutetico ao racional (re)construindo

suas histoacuterias a partir das vaacuterias histoacuterias alheias nas quais autor e personagens satildeo reflexos

maiores de uma sequecircncia de accedilotildees cocircmicas criacuteticas e a serviccedilo da ordem e da moralidade

Portanto por mais incorrigiacuteveis que possam parecer nas obras pesquisadas fica

claro que os autores e suas personagens agem na defesa de seus objetivos marcados por uma

devoccedilatildeo obstinada a uma causa proacutepria a defesa da cidade E no cenaacuterio-mundo que eacute o

teatro tanto Aristoacutefanes quanto Gil Vicente e Ariano Suassuna satildeo senhores da arte da

desconstruccedilatildeo

119

De caraacuteter universal a Comeacutedia e o Auto mostram um poeta autocircnomo que

brinca com a vontade e expectativas do leitorespectador levando-o a refletir sobre a realidade

atemporal apresentada pelo teatro em seu jogo cocircmico e moralizante Assim o duplo autoral

passa a conduzir o cecircnico no qual os ldquohome espectadorrdquo evocados por Diceoacutepolis em

Acarnenses ou os condenaacuteveis nos autos de Ariano Suassuna e Gil Vicente satildeo jogados no

labirinto das duacutevidas e incertezas promovidas pelas vozes muacuteltiplas que tambeacutem satildeo de

outrem e que afiadas atravessam o discurso cocircmico levando-o agrave reflexatildeo seacuteria da situaccedilatildeo na

qual se encontra a cidade E tudo aos olhos do leitor sob o desejo de um criador que se perde

e se acha nas criaturas que o representam nos a(u)tos matutos de Ariano Suassuna e

Aristoacutefanes ndash eacute possiacutevel ndash natildeo sei Soacute sei que foi assim

120

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ZUMTHOR Paul Performance recepccedilatildeo leitura 2 ed Trad Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich Satildeo Paulo Cosac Naify 2007

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARA CENTRO DE HUMANIDADES
  • PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM LETRAS
  • Prof Dr Lauro Inaacutecio de Moura Filho
  • Instituto Federal de Educaccedilatildeo Ciecircncia e Tecnologia do Cearaacute ndash (IFCE)
  • Prof Dr Francisco Wellington Rodrigues Lima
  • Instituto Federal de Educaccedilatildeo Ciecircncia e Tecnologia do Cearaacute ndash (IFCE)
  • COMPTON-ENGLE Gwendolyn Leigh Sudden glory Acharnians and the first comic hero
Page 3: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARA CENTRO DE HUMANIDADES PROGRAMA DE … · 2019. 5. 22. · universidade federal do ceara centro de humanidades programa de pÓs-graduaÇÃo em letras

Dados Internacionais de Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo Universidade Federal do Cearaacute

Biblioteca UniversitaacuteriaGerada automaticamente pelo moacutedulo Catalog mediante os dados fornecidos pelo(a) autor(a)

V715a Vieira Francisco Jacson Martins A(u)tos matutos de Ariano Suassuna e Aristoacutefanes eacute possiacutevel ndash natildeo sei soacute sei que foi assim FranciscoJacson Martins Vieira ndash 2019 124 f

Tese (doutorado) ndash Universidade Federal do Cearaacute Centro de Humanidades Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeoem Letras Fortaleza 2019 Orientaccedilatildeo Prof Dr Ana Maria Ceacutesar Pompeu

1 Teatro 2 A(u)to 3 A(u)tor 4 Popular 5 Duplo I Tiacutetulo CDD 400

A(U)TOS MATUTOS DE ARIANO SUASSUNA E ARISTOacuteFANES ndash Eacute POSSIacuteVEL ndash

NAtildeO SEI SOacute SEI QUE FOI ASSIM

Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo LetrasLiteratura da Universidade Federal do Cearaacute como requisito parcial agrave obtenccedilatildeo do Tiacutetulo de Doutor em LetrasLiteratura Aacuterea de concentraccedilatildeo Literatura Comparada Orientadora Profa Dra Ana Maria Ceacutesar Pompeu

Aprovada em ____________

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________ Professora Dra Ana Maria Ceacutesar Pompeu (Orientadora)

Universidade Federal do Cearaacute (UFC)

___________________________________________ Professora Dra Maria Inecircs Pinheiro Cardoso

Universidade Federal do Cearaacute ndash (UFC)

___________________________________________ Prof Dr Steacutelio Torquato Lima

Universidade Federal do Cearaacute ndash (UFC)

___________________________________________ Prof Dr Lauro Inaacutecio de Moura Filho

Instituto Federal de Educaccedilatildeo Ciecircncia e Tecnologia do Cearaacute ndash (IFCE)

___________________________________________ Prof Dr Francisco Wellington Rodrigues Lima

Instituto Federal de Educaccedilatildeo Ciecircncia e Tecnologia do Cearaacute ndash (IFCE)

DEDICATOacuteRIA

A Patriacutecia e Larissa Pelos inesqueciacuteveis momentos de profundo amor em famiacutelia pelo riso frouxo e desconcertado das horas de companheirismo A todos que um dia sonharam olhando para o ceacuteu e que hoje podem alcanccedilar as estrelas

AGRADECIMENTOS

Agradecer mexe com a memoacuteria e torna registrado o esquecimento Por natildeo ser

uma tarefa muito faacutecil eacute perigosa Natildeo pela dificuldade de lembrar mas pelo medo de deixar

de agradecer a algueacutem que mereccedila Eacute uma oportunidade uacutenica de demonstrar gratidatildeo por

tantos que tornaram este sonho uma realidade possiacutevel pela experiecircncia partilhada pela

dedicaccedilatildeo pelos conselhos ou simplesmente por terem sido ouvintes contadores de estoacuterias

e pacientes Como agradecer

Quem realiza um trabalho de pesquisa sabe o quatildeo solitaacuterias podem ser as

manhatildes tardes e noites de leituras e escritas Longos momentos onde o cursor e a tela satildeo as

uacutenicas testemunhas e companheiros Ao mesmo tempo em que eacute solitaacuterio eacute tambeacutem um

trabalho conjunto soacute me foi possiacutevel chegar ao fim de parte da jornada graccedilas ao esforccedilo de

tantos que vieram antes de mim Tantos outros que abriram e traccedilaram caminhos que depois

pude trilhar sozinho em romaria ou bebendo com Dioniso e com outros que bem antes

percorreram o sertatildeo e aportaram suas buscas na procura de mitos festejados e perpetuados

nos rituais cocircmico - religiosos presentes na literatura popular

O que apresento neste trabalho eacute fruto de uma pesquisa acompanhada de vaacuterios

olhares de muitas vivecircncias de viagens agraves feiras de conversas repletas de informaccedilotildees e

experiecircncias de sorrisos e de tristeza por ver na travessia um ponto de parada mesmo que

seja pelo instante do aprofundamento futuro

Mais que lembrar agradeccedilo a minha orientadora Professora Doutora Ana Maria

Ceacutesar Pompeu de forma bem especial Primeiro por ter ldquoapostadordquo em um projeto de

pesquisa com vaacuterias lacunas Segundo por ter sido uma orientadora no sentido mais amplo da

palavra atraveacutes de suas reflexotildees indicaccedilatildeo de bibliografias reuniotildees de orientaccedilatildeo e

conselhos foi possiacutevel que eu construiacutesse uma nova problemaacutetica do assunto e engendrasse a

pesquisa que agora apresento Terceiro pelo comprometimento acadecircmico em orientar-me

natildeo somente para a tarefa acadecircmica mas por me deixar aprender em suas palavras o sentido

das coisas quebrando a ilusatildeo sorrindo de forma contagiante orientando pela generosidade e

humildade para vida Foi um presente ouvi-la e aprender tambeacutem no silecircncio de suas reflexotildees

antes das orientaccedilotildees para que eu natildeo me perdesse durante a travessia atemporal

Tambeacutem agradeccedilo ao professor Steacutelio Torquato Lima do Departamento de

Literatura da UFC pela generosidade de pesquisador pelo comprometimento na indicaccedilatildeo de

novas fontes de pesquisas indispensaacuteveis agrave Dissertaccedilatildeo de Mestrado e que resultaram em

embriotildees da presente pesquisa de Doutorado me encorajando a ver nas entrelinhas de uma

literatura pujante dotada de vaacuterios significados oral ndash escrita ndash dupla

Ao professor Carlos Augusto Viana da Silva do Departamento de Estudos da

Liacutengua Inglesa suas Literaturas e Traduccedilatildeo da UFC pelo desafio que me levou a pensar a

literatura popular a partir da narrativa fiacutelmica que tatildeo bem impulsionou esta pesquisa

culminando com a anaacutelise do Auto da Compadecida de Ariano Suassuna em conjunto com

Acarnenses de Aristoacutefanes

Ao professor Roque Nascimento Albuquerque da Universidade de Integraccedilatildeo

Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB) que desde o iniacutecio acreditou na ideia

de pensar o cocircmico e o popular a partir de novas leituras desafiadoras e intrigantes

Ao professor Lauro Inaacutecio de Moura Filho meu agradecimento pela amizade por

ter dividido pesquisas sobre Aristoacutefanes e por fazer parte da minha Banca de Doutorado

Agrave professora Maria Inecircs Pinheiro Cardoso minha gratidatildeo pela presenccedila na minha

Banca de Doutorado e por seus valorosos estudos sobre a literatura do ldquobardo do sertatildeordquo

Ariano Suassuna em toda a sua magnitude popular

Ao professor Francisco Wellington Rodrigues Lima meu agradecimento pela

gentileza de fazer parte da minha Banca de Doutorado e por sua contribuiccedilatildeo agrave literatura

popular a partir de seus estudos sobre Gil Vicente e Ariano Suassuna

Para minha famiacutelia agradecimentos especiais Obrigado por terem me dado

oportunidade de chegar ateacute aqui por me ensinarem desde cedo a enfrentar os desafios de

frente com riso estampado no rosto

E por uacuteltimo obrigado as minhas maiores incentivadoras Com elas compreendi o

sentido de muitas coisas companheirismo afeto dedicaccedilatildeo amor Obrigado por entenderem

a importacircncia desta pesquisa na minha vida Sem vocecircs o caminho natildeo teria sido tatildeo animado

encantado e real Obrigado Patriacutecia e Larissa

Agrave FUNCAP e Agrave CAPES e ao CNPQ pelo apoio financeiro com a manutenccedilatildeo da

bolsa de auxiacutelio agrave pesquisa

Debaixo de minha mesa tem sempre um catildeo faminto -que me alimenta a tristeza Debaixo de minha cama tem sempre um fantasma vivo -que perturba quem me ama Debaixo de minha pele algueacutem me olha esquisito -pensando que eu sou ele Debaixo de minha escrita haacute sangue em lugar de tinta -e algueacutem calado que grita

(Affonso Romano de SantacuteAnna)

RESUMO

Por ser uma arte que permanece haacute tantos seacuteculos o teatro desperta curiosidade acerca de seus primoacuterdios existindo vaacuterias conjecturas e teorias sobre o surgimento da Comeacutedia Antiga como ambiente extremamente propiacutecio agrave formaccedilatildeo de duplos presente no mito e no culto do deus do teatro Dioniso no qual as vozes os gestos e as maacutescaras representam o duplo e satildeo sobrepostas como causa de equiacutevocos e componentes centrais das invectivas pessoais ou intrigas como observados em Acarnenses de Aristoacutefanes no Auto da Compadecida de Ariano Suassuna Entretanto haacute de se considerar de iniacutecio que alguns elementos responsaacuteveis pelo riso na obra de Aristoacutefanes tambeacutem encontra eco na literatura de Suassuna por apresentar uma tessitura textual atravessada pelas muacuteltiplas vozes de suas personagens constituindo-se em um fenocircmeno recorrente e natural que aponta para a tensatildeo de uma crise profunda denunciada pelo proacuteprio poeta em seus discursos A partir do estudo das correntes de alguns teoacutericos sobre o riso como Huizinga Pirandello Bergson e Vladimir Propp responderemos por meio da literatura comparada a alguns questionamentos como por exemplo qual a importacircncia da construccedilatildeo das personagens cocircmicas em Aristoacutefanes para a representaccedilatildeo do duplo poeacutetico e como essa criaccedilatildeo se reflete na obra de Ariano Suassuna sendo denunciadora das injusticcedilas a partir da cena cocircmica

Palabras-chave Teatro A(u)to A(u)tor Popular Duplo

RESUMEN Por ser un arte que permanece durante tantos siglos el teatro despierta curiosidad acerca de sus primordios existiendo varias conjeturas y teoriacuteas sobre el surgimiento de la Comedia Antigua como ambiente extremadamente propicio a la formacioacuten de dobles presente en el mito y en el culto del dios del teatro Dioniso en el que las voces los gestos y las maacutescaras representan el doble se superponen como causa de equiacutevocos y componentes centrales de las invectivas personales o intrigas como observados en Acarnienses de Aristoacutefanes en el Auto de la Compadecida de Ariano Suassuna Sin embargo hay que considerar de inicio que algunos elementos responsables de la risa en la obra de Aristoacutefanes tambieacuten encuentra eco en la literatura de Suassuna por presentar una tesitura textual atravesada por las muacuteltiples voces de sus personajes constituyeacutendose en un fenoacutemeno recurrente y natural que apunta para la tensioacuten de una crisis profunda denunciada por el propio poeta en sus discursos A partir del estudio de las corrientes de algunos teoacutericos sobre la risa como Huizinga Pirandello Bergson y Vladimir Propp responderemos por medio de la Literatura Comparada a algunos cuestionamientos como por ejemplo cuaacutel es la importancia de la construccioacuten de los personajes coacutemicos en Aristoacutefanes para la representacioacuten del doble poeacutetico y coacutemo esa creacioacuten se refleja en la obra de Ariano Suassuna siendo denunciadora de las injusticias a partir de la cena coacutemica

Palabras clave Teatro A(u)to A(u)tor Popular Doble

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO12

PRIMEIRO ATO18

1 O TEATRO UM DUPLO ARTIacuteSTICO ndash TRAGEacuteDIA E COMEacuteDIA19

11 A comeacutedia aristofacircnica28

12 Dioniso Matuto Justinoacutepolis um heroacutei embusteiro29

13 O (anti)heroacutei aristofacircnico32

14 Auto da Compadecida uma estoacuteria de outras estoacuterias34

15 Joatildeo Grilo um heroacutei popular e picaresco36

151 O (anti)heroacutei Suassuniano38

152 A tensatildeo tragicocircmica do (anti)heroacutei no Auto da Compadecida39

SEGUNDO ATO41

2 HUMOR E RISO ELEMENTOS INDISPENSAacuteVEIS Agrave CENA COcircMICA42

21 O riso seacuterio-cocircmico em Aristoacutefanes e Suassuna43

212 Riso e Comeacutedia43

213 Os elementos do risiacutevel no heroacutei suassuniano45

TERCEIRO ATO65

3 AS DUAS PECcedilAS ndash O POETA USA MAacuteSCARAS66

31 OS GESTOS ndash A vestimenta o corpo e o disfarce67

QUARTO ATO74

4 O AUTOR E SEUS OUTROS NA COMEacuteDIA E NO AUTO75

41 O par cocircmico na tradiccedilatildeo literaacuteria em Aristoacutefanes e em Ariano Suassuna76

QUINTO ATO84

5 O POETA VAI AO INFERNO85

51 Quem fala por quem86

511 Ao Hades e com riso frouxo97

52 O julgamento O riso a morte e o descanso do (in)justo105

521 Aqui eacute o inferno vocecirc pode brincar108

522 A Voz a esperteza e a malandragem do poeta Nem tudo que eacute vivo morre111

6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS117

REFEREcircNCIAS120

12

INTRODUCcedilAtildeO Num vatildeo ficaacute cum raiva homes espectador Se eu sendo um mendigo na frente dos ateniense Teja em tempo de falaacute sobre a cidade fazendo uma comeacutedia Pois o que eacute justo a comeacutedia tambeacutem conhece E eu vou falaacute coisas terriacuteve mas justa Pois desta vez num vai me caluniaacute Cleacuteon que Estrangeiros tando aqui eu falo mal da cidade Eacute que tamo soacute eacute o concurso das Leneia E os estrangeiro num tatildeo aqui nem os imposto Chega nem os aliado vem das cidade Mas tamo soacute noacutes agora soacute os miacute debuiado (POMPEU Dioniso MatutoARISTOacuteFANES Acarnenses vv497-507)

A Literatura Popular vem sendo cada vez mais estudada e reconhecida no acircmbito

acadecircmico ressaltando seu espaccedilo regional pela criaccedilatildeo e construccedilatildeo de uma nova vertente

literaacuteria que dialoga com outras artes e culturas Assim torna-se importante destacar que esse

tipo de literatura constitui-se tambeacutem como uma das vertentes da histoacuteria cultural tendo em

vista que reuacutene diversos tipos de textos para pensar sua escrita linguagem e (re)leitura pela

apropriaccedilatildeo cultural vivenciada pelo puacuteblico e pelo poeta que ouviu viu e viveu o produto

exposto nos versos como nos assegura Chartier (1990 p 27)

Nesse contexto permeado de apropriaccedilotildees recriaccedilotildees e (in)certezas eacute que

estudaremos o riso cocircmico no auto e na comeacutedia como leitoresjurados do julgamento

paroacutedico atraveacutes da accedilatildeo cocircmica do poeta representado por seus duplos na comeacutedia

Acarnenses1 (425 aC) de Aristoacutefanes no Auto da Compadecida (1956) de Suassuna numa

aproximaccedilatildeo atemporal que se reflete na palavra aacutecida do a(u)tor na gargalhada solta e na

quebra da normalidade literaacuteria reveladora das diversas maacutescaras vozes ndash linguagem matuta

e os gestos elementos que estatildeo a serviccedilo do poeta cocircmico e de seus duplos como porta-

vozes do discurso social

Assim para estudo e anaacutelise dos duetos (duplos) cocircmicos cordelescos

fomentadores do imaginaacuterio e da construccedilatildeo de (anti) heroacuteis cocircmicos populares presentes na

tradiccedilatildeo popular nordestina bebemos de fontes escritas e tambeacutem de uma modalidade

narrativa ateacute pouco tempo desprezada esquecida dada ao puacuteblico quase sempre em papel

ruacutestico e com maacute qualidade da impressatildeo e escrita sem a preocupaccedilatildeo dos autores com a

ldquocorreccedilatildeordquo linguiacutestica a Literatura de Cordel

1 No corpus do nosso trabalho optamos por usar a traduccedilatildeo de Acarnenses de Aristoacutefanes para o cearensecircs da professora Ana Maria Ceacutesar Pompeu Dioniso matuto uma abordagem antropoloacutegica do cocircmico na traduccedilatildeo de Acarnenses de Aristoacutefanes para o cearensecircs

13

Tradicionalmente comum a este tipo de literatura foi a presenccedila marcante da

oralidade o fato de ser vendida em feiras e o tipo de consumidor em geral pessoas de baixo

niacutevel escolar cuja identificaccedilatildeo com os folhetos se estabelecia por meio de variadas

temaacuteticas incluindo o diaacutelogo com outras fontes literaacuterias como a Comeacutedia Grega outro

objeto deste estudo

Com isso a importacircncia do cordel pelo meio acadecircmico daacute-se pela produccedilatildeo de

intelectuais como Ariano Suassuna que transpotildee episoacutedios inteiros do verso popular para a

prosa ou vice-versa num imenso caldeiratildeo de ideias consciente da forccedila que essa modalidade

literaacuteria deteacutem na representaccedilatildeo do imaginaacuterio do povo solidificando sua maneira de pensar e

de reagir ante os fenocircmenos sociais

Essas reaccedilotildees aos diferentes contextos sociais motivadas pelas experiecircncias

escritas auditivas e visuais preteacuteritas atribuem um valor positivo agrave figura do (anti)heroacutei

cocircmico e ou agrave conversatildeo do matuto do ruacutestico e satildeo responsaacuteveis pela sua construccedilatildeo miacutetica

a partir do documento linguiacutestico do falar matuto heranccedila cultural cearense como

apresentado por Pompeu em seu Dioniso Matuto (2014) Entretanto temos de considerar que

Aristoacutefanes natildeo faz distinccedilatildeo entre linguagem matuta e citadina apenas de aspectos dialetais

das cidades natildeo aacuteticas como afirma Andreas Willi

A comeacutedia tambeacutem se diferencia da trageacutedia por apresentar todos os estrangeiros a falar em seus dialetos nativos Embora se costume considerar a reproduccedilatildeo dos outros dialetos como deformaccedilatildeo risiacutevel Aristoacutefanes natildeo exagera as caracteriacutesticas dialetais nem as personagens atenienses escarnecem delas de maneira que eacute provaacutevel que o efeito cocircmico nasccedila ali natildeo do exagero mas do realismo linguiacutestico que natildeo tem equivalente em outro gecircnero (WILLI 2003 p268)

Sobre essa afirmativa e tomando como ponto de partida o pensamento de

Bogatyrev (1977) em relaccedilatildeo agraves variaccedilotildees dialetais nota-se que pelas falas produzidas

o espectador percebe ao mesmo tempo o ator e a personagem presentes nos contextos

nordestino e grego resultado de uma simbiose entre ldquocriador e criaturardquo

O corpo do presente trabalho estaacute dividido em Cinco Atos assim denominada a

divisatildeo da Comeacutedia Antiga que na Greacutecia evolui em trecircs fases distintas considerando-se a

comeacutedia2 antiga a comeacutedia mediana e a comeacutedia nova Relativamente ao periacuteodo da comeacutedia

antiga Aristoacutefanes eacute o seu grande representante estruturando-a com as seguintes partes o

proacutelogo o paacuterodo que consiste na entrada do coro e nas suas intervenccedilotildees ou disputa entre 2 EDMONDS J M The Fragments of Attiacutec Comedy II Uiacuteacircdle Cotnedy Leiden Brill 2010

14

dois coros a paraacutebase isto eacute um interluacutedio coral que suspende parcialmente a ilusatildeo

dramaacutetica dirigindo-se diretamente ao auditoacuterio os episoacutedios ou seja as cenas dialogadas

pelas personagens e intercaladas por intervenccedilotildees do coro o ecircxodo concretizando-se no

desenlace final

A comeacutedia antiga caracteriza-se pelo tom de humor e de saacutetira com que se critica

assuntos da vida cotidiana aspectos poliacuteticos e sociais e figuras e instituiccedilotildees proeminentes

sendo a sua finalidade principal a diversatildeo para aleacutem do objetivo moralizante Emprega uma

linguagem luacutedica atraveacutes de jogos de palavras equiacutevocos ironia clichecircs e apresenta ainda

personagens de forma caricatural

Cabe ressaltar que na Introduccedilatildeo apresentamos uma panoracircmica histoacuterica acerca

da Comeacutedia Grega aristofacircnica ndash Acarnenses com direcionamento agrave comeacutedia suassuniana ndash

retratada no Auto da Compadecida Para tratar do Auto da Compadecida e da influecircncia que

sofreu da literatura de Gil Vicente decidimos optar pela apresentaccedilatildeo do Auto Vicentino visto

que O Auto da Compadecida constitui-se como uma peccedila teatral que resgata a comeacutedia

medieval e renascentista europeia bem como a comeacutedia popular nordestina Tal obra foi

elaborada a partir de vertentes distintas onde se encontram resquiacutecios de obras conhecidas e

consagradas mundialmente e tradiccedilatildeo popular impressa em folhetos

O caraacuteter cordelesco do Auto remonta agrave Idade Meacutedia que teve os uacuteltimos seacuteculos

tambeacutem conhecidos pelos historiadores como tempos embaralhados visto que levaram agraves

uacuteltimas consequecircncias uma visatildeo decadentista da vida O caraacuteter transitoacuterio do seacuteculo XV

tornou-se cada vez mais importante no desencadeamento da ideia de morte dentro da unidade

cristatilde fato que permeia as obras de Gil Vicente

O Auto da Barca do Inferno tambeacutem conhecido como Auto da Moralidade foi escrito em 1517 e representado ao rei Manuel I de Portugal e agrave rainha Lianor Eacute uma das mais significativas e famosas obras de Gil Vicente e que embora esteja na estrutura de uma trilogia Trilogia das Barcas que contempla tambeacutem o Auto da Barca do Purgatoacuterio e o Auto da Barca da Gloacuteria a peccedila conteacutem um uacutenico ato no qual eacute recorrente o uso da saacutetira do riso do ridiacuteculo e do achincalhe dotado de um tenso cunho didaacutetico

Jaacute no caso especiacutefico de Ariano Suassana o Auto da Compadecida se divide em

trecircs episoacutedios o primeiro intitulado o enterro do cachorro o segundo com o retorno do Major

Antocircnio Moraes junto com o Bispo e o terceiro episoacutedio compreendendo o julgamento dos

mortos Os atos satildeo entrecortados pela fala do palhaccedilo que representa o autor situando os

espectadores e antecedendo a mudanccedila de cenaacuterio Os personagens satildeo Joatildeo Grilo Chicoacute

major Antocircnio Moraes o padeiro e sua esposa o cangaceiro Severino de Aracajuacute e seu

15

ajudante Bispo Sacristatildeo Padre Joatildeo e Frade Encourado democircnio Manuel e a

Compadecida mas a peccedila gira em torno de Joatildeo Grilo que eacute quem arma situaccedilotildees

conflituosas e quem concentra o foco dramaacutetico

Eacute nesse contexto que a literatura de cordel se apresenta como um importante

veiacuteculo de expressatildeo habilitado agrave aproximaccedilatildeo do popular e do erudito como tambeacutem

ferramenta de articulaccedilatildeo da comunicaccedilatildeo do sertatildeo desprezado e inculto com as referecircncias

gregas de narraccedilatildeo observadas em Aristoacutefanes Para tanto nos valemos da anaacutelise das obras

referidas por gravitarem em torno da temaacutetica proposta e abordarem de forma direta a

linguagem matuta e a construccedilatildeo dos duplos cocircmicos tendo como foco a figura do matuto

Em termos metodoloacutegicos nossa pesquisa se apoia em uma perspectiva

comparativista considerando o contiacutenuo uso da oralidade efetivado na Comeacutedia como voz

autorizada para a accedilatildeo contiacutenua do proacuteprio poetapersonagem Nesse contexto Segundo

Bakhtin o autor ldquoocupa uma posiccedilatildeo responsaacutevel no acontecimento do existir opera com

elementos desse acontecimento e por isso a sua obra eacute tambeacutem um momento desse

acontecimentordquo (BAKHTIN 2003 p176) Neste esteio Caetano Peixoto e Machado (2011)

nos afirmam que A posiccedilatildeo do autor-criador ou seja aquele que tem a funccedilatildeo esteacutetico-formal engendradora da obra natildeo estaacute dissociada do autor-pessoa isto eacute do escritor do artista A vida natildeo estaacute em dicotomia com a arte Elas se imbricam atraveacutes das vozes sociais e histoacutericas onde a dimensatildeo teoacuterica esteacutetica e eacutetica ndash o conhecimento os valores e o agir ndash convergem organizadas num sistema estiliacutestico harmonioso

Nas obras que constituem nossa pesquisa o autor e suas diversas vozes operam e

se estabelecem por meio de accedilotildees muacuteltiplas grotescas como forma de afastar-se do caraacuteter de

opressatildeo para a compreensatildeo e apreensatildeo de uma verdade pura muitas vezes advinda do

social e das situaccedilotildees de injusticcedila como defendida por DiceoacutepolisJustinoacutepolis em

Acarnenses e por Joatildeo Grilo no Auto da Compadecida

Eis que da multiplicidade das praacuteticas do discurso deriva-se o que se pode

reconhecer como uma tipicidade um modo totalmente particular de afirmaccedilatildeo do sujeito um

muacuteltiplo que ao mesmo tempo se torna iacutempar diferente dos demais na conduccedilatildeo do discurso

social Essa imagem e sua polifonia capazes de reunir habilidades estabelecedoras de um

valor cultural da literatura satildeo o que haacute de mais iacutentimo e intransferiacutevel nesse diaacutelogo proposto

entre as obras estudadas e seus autores por operarem um mecanismo narrativo simples e

divertido atraveacutes do diaacutelogo entre o discurso literaacuterio e o socioloacutegico

16

Retornando agrave divisatildeo do trabalho acentuamos que no PRIMEIRO ATO tratamos

de questotildees inerentes agrave origem e estrutura da Comeacutedia e do Auto ressaltando ainda a

importacircncia desses gecircneros como elementos presentes e ativos no processo de construccedilatildeo da

heranccedila cultural erudita mas de origem popular com foco no discurso permeado de vaacuterias

vozes indispensaacuteveis na formaccedilatildeo do poeta-personagem e de seus (anti)heroacuteis

No SEGUNDO ATO discorremos sobre os elementos da Comeacutedia aristofacircnica e

do Auto suassuniano a partir do Humor e do Humorismo Para tanto recorremos agrave expressatildeo

ldquoriso seacuterio-cocircmico como elemento moralizanterdquo tomando como base os estudos de Huizinga

Pirandello Bergson e Vladimir Propp entre outros estudiosos

No TERCEIRO ATO apresentamos um breve histoacuterico da comeacutedia como duplo

da trageacutedia e escrevemos sobre as maacutescaras vozes e gestos como elementos fundantes do

outro do poeta na cena cocircmica tanto em Aristoacutefanes quanto em Suassuna

No QUARTO ATO aprofundamos nossos estudos sobre o duplo na literatura

tomando como base trabalhos sobre a ocorrecircncia do duplo e seu estranhamento na literatura

Ainda no mesmo Ato fazemos uso dos estudos de Bakhtin sobre polifonia do duplo e a

polifonia do discurso social com o fim de relacionar o discurso social de Joatildeo Grilo e

Diceoacutepolis em defesa do coletivo ndash da polis ndash duplos do poeta e porta-vozes dos discursos

sociais jaacute popularizados na Literatura de Cordel suas influecircncias e os diaacutelogos possiacuteveis com

a Comeacutedia Grega

Por fim desenvolvemos ao longo do QUINTO ATO a anaacutelise comparativa da

formaccedilatildeo dos duplos e presenccedila das vaacuterias vozes constitutivas do enredo da comeacutedia

Acarnenses de Aristoacutefanes do texto traduzido do original grego de 425 a C da versatildeo

Dioniso matuto uma abordagem antropoloacutegica do cocircmico na traduccedilatildeo de Acarnenses de

Aristoacutefanes para o cearensecircs da versatildeo jaacute citada da peccedila produzida por Ana Maria Ceacutesar

Pompeu texto que tambeacutem nos serviraacute tambeacutem como paradigma da Comeacutedia Antiga do Auto

da Compadecida de Ariano Suassuna com vistas a demonstrar a importacircncia de se entender

a partir da oralidade linguagem matuta tatildeo presente na obra de Suassuna a finalidade do uso

das vozes do ldquooutrordquo para a construccedilatildeo significativa do proacuteprio poeta Ainda no Quinto Ato

estudamos o riso e do duplo poeacutetico pela inclusatildeo e estudo de Ratildes de Aristoacutefanes do Auto da

Barca do Inferno (1531) de Gil Vicente tendo como foco a cena do julgamento das almas

comum tambeacutem ao Auto da Compadecida ndash momento no qual a personagem se funde ao

poeta educador da cidade com suas preferecircncias e invectivas

Em Aristoacutefanes somos ouvintes das criacuteticas do proacuteprio poeta que em meio ao

caos propiciado pela guerra decide comprar sua paz Em Gil Vicente provamos da

17

moralidade cristatilde que de forma direta condena ou absolve os pecadores e falsos pregadores

E por uacuteltimo em Ariano Suassuna construtor de cenaacuterios (im)provaacuteveis nos quais ceacuteu e

inferno disputam os mortos por meio de uma seacuterie de accedilotildees cocircmicas onde a morte por vezes

perde seu caraacuteter traacutegico

18

PRIMEIRO ATO

19

1 O TEATRO UM DUPLO3 ARTIacuteSTICO ndash TRAGEacuteDIA E COMEacuteDIA

O teatro grego surgiu no contexto do culto religioso estando ligado

particularmente ao Deus Dioniso permanecendo ligado tambeacutem agrave religiatildeo A palavra teatro

segundo Pereira (2006 P24) tem sua origem no grego theacuteatron (έ) em que theacutea

(έ) quer dizer accedilatildeo de olhar de contemplar aspecto objeto de contemplaccedilatildeo espetaacuteculo

e em que o sufixo ndashtron (-) significa lsquoinstrumento dersquo e theacuteatron querer dizer

lsquomaacutequina de espetaacuteculosrsquo Theacutea e theacuteatron tecircm derivaccedilatildeo do verbo theaacuteomai (ά ou

ῶ) que significa ver contemplar considerar examinar ser espectador contemplar

pela inteligecircncia Entretanto o teatro teve em sua origem duas modalidades artiacutesticas

principais a trageacutedia e a comeacutedia

Pereira (2006) destaca que a palavra trageacutedia em grego (τραγῳδία) deriva de

tragos (τράγος) que significa bode puberdade os primeiros desejos do sentido lubricidade

(pois o bode simbolizava para os antigos pelas suas caracteriacutesticas o desejo sexual a

lubricidade) e de ode (ᾠή) que significa canto com acompanhamento de instrumentos

accedilatildeo de cantar

A palavra tragoidiacutea (τραγῳδία) de acordo com Fernandes (2006) significava em

grego ldquocanto do bode canto religioso com o qual se acompanhava o sacrifiacutecio de um bode nas

festas de Dioniso trageacutedia drama heroacuteico evento traacutegicordquo O tragoidoacutes (τραγῳδός) era

primordialmente aquele que danccedilava e cantava durante a imolaccedilatildeo de um bode nas festas de

Dioniso sendo que este termo significou tambeacutem em seguida lsquoaquele que danccedila e canta em

um coro traacutegico ator traacutegico membro do coro traacutegico poeta traacutegico Para alguns estudiosos o canto do bode era o canto dos companheiros de Dioniso em seus cortejos orgiaacuteticos dos saacutetiros os filhos de Sileno - que teria segundo uma tradiccedilatildeo sido um educador daquele deus (Sileno era famoso pela sua feiuacutera e sua sabedoria e suas formas eram em parte equinas) Poreacutem soacute muito tardiamente ndash a saber na eacutepoca heleniacutestica e romana da cultura grega - os saacutetiros foram representados como seres em que se misturavam formas humanas e formas caprinas tendo os membros inferiores ateacute mais ou menos a cintura em forma caprina e um chifre e feiccedilotildees que lembravam as feiccedilotildees caprinas No tempo aacuteureo das trageacutedias e mesmo pouco depois ndash a saber no seacuteculo V e IV a C - os saacutetiros apareciam como seres em que se misturavam as formas humanas com a equina tendo entatildeo os membros inferiores semelhantes agraves patas traseiras de um cavalo aleacutem de um rabo e orelhas de cavalo Esta hipoacutetese permaneceu poreacutem apoiada em passagens de textos do seacuteculo V (particularmente no fragmento 207 do Prometeu Pirceu de Eacutesquilo) em que saacutetiros satildeo chamados de bode natildeo pela sua forma mas

3 Nesta pesquisa trabalhamos com o conceito de Duplo estabelecido por Anna Beltrametti no artigo ldquoLe couple comique Des origines mythiques aux deacuterives philosophiques incluiacutedo na obra dirigida por Marie-Laurence Esclos Le rire des grecs anthropologie du rire en Gregravece ancienne (2000 p 215-226)

20

hipoteticamente pela sua lasciacutevia ndash pois como jaacute dissemos o bode eacute caracterizado pela lubricidade (PEREIRA 2006 p7)

Outra hipoacutetese esta defendida por Lesky (1999) foi a de que o canto do bode era

o canto lamentoso da viacutetima sacrificada a Dioniso ndash que como vimos acima era um bode

Toda a trageacutedia se assemelha a um ritual de sacrifiacutecio No centro da orquestra no teatro

grego havia um altar a Dioniso (o thymeacutelendashθυμέλη) sugerindo que o destino traacutegico do heroacutei

e a representaccedilatildeo traacutegica eram como uma imolaccedilatildeo a Dioniso Na Greacutecia sobretudo nas

eacutepocas arcaicas eram praticados rituais de sacrifiacutecio dos chamados bodes expiatoacuterios (em

grego pharmakoacutesndashφαρμακός) em que um indiviacuteduo carregado de todas as impurezas da

comunidade era sacrificado

Em Atenas havia um ritual nas festas chamadas Targeacutelias4 dedicadas a Apolo e

Aacutertemis que remetia a este sacrifiacutecio Um homem e uma mulher eram surrados enquanto

eram conduzidos atraveacutes de toda a cidade Depois eram sacrificados fora das fronteiras da

cidade queimados e suas cinzas jogadas no mar Na eacutepoca claacutessica eram apenas jogados no

mar e depois expulsos para fora das fronteiras da cidade Eles eram chamados de pharmakoiacute5

bodes expiatoacuterios

O ritual de sacrifiacutecio era uma tradiccedilatildeo que existia em muitas outras civilizaccedilotildees

Nas Saacuteceas6 babilocircnicas por exemplo que satildeo mencionadas por Nietzsche em O nascimento

da trageacutedia um prisioneiro era sacrificado depois de ser nomeado rei da Babilocircnia por cinco

dias tempo em que tinha direito a desfrutar de todo o hareacutem do proacuteprio rei e de dar livre curso

a todos os seus apetites ateacute o momento de seu sacrifiacutecio Durante este tempo as orgias eram

celebradas em toda a cidade

Na Poeacutetica de Aristoacuteteles trageacutedia e comeacutedia assemelham-se quando satildeo

apresentadas como ldquomimesis7rdquo (1447a) e diferem porque autores cocircmicos ldquoimitamrdquo homens

4 Targeacutelia era um dos principais festivais atenienses realizados em honra a Apolo e Aacutertemis tal festival era celebrado no mecircs de Targeliatildeo (relativo ao periacuteodo de 15 de maio a 15 de junho) 5 Sacrificar (real ou simbolicamente) um bode expiatoacuterio para purificar a cidade era comum no mundo grego A pessoa sacrificada chamava-se pharmakoacutes Em Atenas o rito era parte das Targeacutelias festival em honra a Apolo Para ser pharmakoiacute as pessoas tinham que ser detentores de deficiecircncia fiacutesica e os considerados inuacuteteis 6 Festas que se celebravam na Peacutersia antiga e durante as quais os escravos mandavam nos amos 7 Como notado por GOLDEN Leon Aristotle on the Pleasure of Comedy In A O Rorty Essays on Aristotlersquos Poetics (1992 27) Do gr miacutemesis ldquoimitaccedilatildeordquo (imitatio em latim) designa a accedilatildeo ou faculdade de imitar coacutepia reproduccedilatildeo ou representaccedilatildeo da natureza o que constitui na filosofia aristoteacutelica o fundamento de 7Heroacutedoto foi o primeiro a utilizar o conceito e Aristoacutefanes em Tesmofoacuterias (411) jaacute o aplica O fenocircmeno natildeo eacute um exclusivo do processo artiacutestico pois toda atividade humana inclui procedimentos mimeacuteticos como a danccedila a aprendizagem de liacutenguas os rituais religiosos a praacutetica desportiva o domiacutenio das novas tecnologias etc Por esta razatildeo Aristoacuteteles defendia que era a miacutemesis que nos distinguia dos animais

21

piores e os traacutegicos os ldquoimitamrdquo melhores do que satildeo na realidade (1448a) Sendo a mimesis

considerada pelo filoacutesofo como congecircnita agrave natureza humana ndash que com ela se compraz e

aprende ndash a poesia naturalmente tomou as formas da iacutendole particular dos poetas os de

acircnimo mais elevados mimetizavam accedilotildees nobres atraveacutes de hinos e encocircmios e os de mais

baixas inclinaccedilotildees compunham vitupeacuterios (1449a) Vinda agrave luz atraveacutes da poesia a mesma

distinccedilatildeo estendeu-se ao teatro dos ditirambos em honra a Dioniso originou-se a trageacutedia e

nos cantos faacutelicos ndash que tambeacutem evocavam o mesmo Deus ndash pode-se perceber as sementes da

comeacutedia

Na cena teatral segundo Aristoacuteteles (Poeacutetica 1448b) a comeacutedia apresentava o

que os homens tecircm de ridiacuteculo caracterizado como ldquodefeito torpeza anoacutedina e inocenterdquo a

maacutescara cocircmica era disforme mas natildeo possuiacutea expressatildeo de dor Por sua vez a trageacutedia aacutetica

mimetizava homens superiores em accedilotildees de caraacuteter elevado que suscitavam terror (phobos) e

compaixatildeo (eleas) e provocavam o prazer que eacute proacuteprio desses sentimentos

Sem desconsiderar que uma localizaccedilatildeo muito rigorosa das origens seria um erro

metodoloacutegico ressalto a origem comum da trageacutedia e da comeacutedia ndash nos coros dionisiacuteacos ndash

ainda que predominantemente a Filosofia demonstre muito menos apreccedilo por essa uacuteltima Se

a trageacutedia surgiu dos ditirambos a comeacutedia comeccedilou com os komoi uma espeacutecie de procissatildeo

jocosa das quais a mais famosa era realizada nas festas dionisiacuteacas para celebrar a fertilidade

da natureza atraveacutes de homenagens a reproduccedilotildees de falos descomunais ndash costume ainda vivo

em algumas regiotildees da Greacutecia e Japatildeo

Os comediantes (komoidoi) andavam de aldeia em aldeia por natildeo serem tolerados

na cidade registrou Aristoacuteteles (1448b) Oficialmente as representaccedilotildees cocircmicas tiveram

origem nas Dioniacutesias Urbanas (486aC) em Atenas mas cenas pintadas em vasos revelam

sua existecircncia bem antes da data oficial

ldquoA trageacutedia surgiu do coro traacutegicordquo Pode-se ler em O nascimento da trageacutedia

(NIETZSCHE 2007 p52) quando Nietzsche interpreta a origem da trageacutedia no coro dos

saacutetiros de um modo bastante especiacutefico tomando como arma a luta contra a ideia de

naturalismo na arte O coro mesmo eacute percebido ldquocomo uma muralha viva que a trageacutedia

estende agrave sua volta a fim de isolar-se do mundo real e de salvaguardar para si o seu chatildeo ideal

e a sua liberdade poeacuteticardquo (p54) E o faz preservando as semelhanccedilas com os antigos coros

satiacutericos gregos e sua erracircncia por terrenos mais elevados ldquomuito acima das sendas reais do

perambular dos mortaisrdquo (p54) O saacutetiro ndash ldquoser natural e fictiacuteciordquo ndash eacute percebido em relaccedilatildeo ao

22

homem grego civilizado do mesmo modo que a muacutesica dionisiacuteaca em relaccedilatildeo agrave civilizaccedilatildeo O

coro satiacuterico suspende eleva e supera o grego civilizado da mesma forma como a claridade do

sol faz com as luzes das lacircmpadas escreve Nietzsche

Expressatildeo do proacuteprio desejo com sua erracircncia original o coro satiacuterico criava um

territoacuterio transcendente distanciado da realidade cotidiana natildeo apenas tolerado como

ldquoliberdade poeacuteticardquo e sim considerado pelo menos por Nietzsche a proacutepria ldquoessecircncia de toda

poesiardquo (p54) O mesmo filoacutesofo escreveu O ecircxtase do estado dionisiacuteaco com sua aniquilaccedilatildeo das usuais barreiras e limites da existecircncia conteacutem enquanto dura um elemento letaacutergico no qual imerge toda vivecircncia pessoal do passado Assim se separam um do outro atraveacutes desse abismo do esquecimento o mundo da realidade cotidiana e o da dionisiacuteaca (NIETZSCHE 2007 p55)

Devo advertir de iniacutecio que eacute difiacutecil dizer por que a partir de uma origem comum

ndash a experiecircncia dionisiacuteaca ndash o distanciamento arrebatador do mundo cotidiano prosaico gerou

expressotildees tatildeo diversas a ponto de constituiacuterem gecircneros ateacute hoje existentes como o cocircmico e

o traacutegico E segundo Nietzsche este uacuteltimo eacute com ajuda de Apolo a ldquodomesticaccedilatildeo artiacutestica

do horriacutevelrdquo enquanto o primeiro seria uma ldquodescarga da naacuteusea do absurdordquo (NIETZSCHE

2007 p56)

Ao longo da histoacuteria entretanto pode-se perceber que o entrelaccedilamento de ambos

no que ficou conhecido como ldquotragicocircmicordquo a ponto de tornar-se popular a ideia expressa

pelo ditado ldquoseria cocircmico se natildeo fosse traacutegicordquo Como tantos outros os termos originais

foram banalizados esvaziados de conteuacutedo tornados difusos

Se em sua origem o cocircmico era o outroduplo do traacutegico tambeacutem desde esses

tempos a saacutetira jaacute se fazia presente como companhia do texto cocircmico A chamada ldquoComeacutedia

Antigardquo (425-404 aC periacuteodo da produccedilatildeo de Aristoacutefanes que nos chegou) caracteriza-se

pela mordacidade caacuteustica na mimesis dos cidadatildeos proeminentes e das instituiccedilotildees dapolis8

seja pelos a(u)tores seja pela manifestaccedilatildeo das proacuteprias personagens que algumas vezes

representavam em cena o proacuteprio discurso revelador das injusticcedilas sociais tatildeo comuns na

Cidade

Nesse contexto o Duplo sempre foi um tema profundamente instigante da cultura

humana e sempre esteve essencialmente relacionado em vaacuterias aacutereas do conhecimento como

na Filosofia Psicologia Literatura e na Mitologia persistindo temporalmente como temaacutetica 8 Para a normatizaccedilatildeo de algumas palavras gregas em portuguecircs seguimos o Glossaacuterio elaborado pelo Laboratoacuterio de Estudos Sobre a Cidade Antiga Disponiacutevel em pdf no site wwwmaeuspbrlabeca aba glossaacuterio No caso de palavras jaacute dicionarizadas utilizamos a forma de acordo como que consta no Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa (2008)

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sempre revisitada e geradora de ambiguidades Na Antiguidade o Duplo era para a

sociedade a representaccedilatildeo ou o reflexo do idecircntico ou seja prevalecia a ideia de Duplo como

o homogecircneo manifestaccedilatildeo do igual

No entanto natildeo permaneceu dessa maneira tendo com o passar do tempo a partir

do seacuteculo XVIII se tornado heterogecircneo isto eacute o Duplo passa a representar o desigual ou em

outras palavras o oposto em Suassuna o arremedo cocircmico Este fato encontra comprovaccedilatildeo

quando procuramos as diferenccedilas existentes entre o traacutegico e o cocircmico tatildeo bem delineadas na

sociedade Greacutecia Claacutessica

Obscura como outros siacutembolos e projeccedilotildees coletivas a figura do duplo em

Acarnenses (Diceoacutepolis) e no Auto da Compadecida (Joatildeo Grilo) eacute cocircmica e criacutetica visto que

satildeo elementos que parodiam o serviccedilo divino cantando errado e fazendo sermotildees

moralizantes travestem-se usam maacutescaras passeiam com maestria nos mundos popular e

erudito representam coletivos pelo poder da gargalhada do riso seacuterio e da tolice formas mais

sutis para se levar ao conhecimento da audiecircncia o desdobramento da consciecircncia ao mesmo

tempo a do idiota e a do bufatildeo que a utiliza como maacutescara e a coloca em praacutetica na defesa do

cidadatildeo injusticcedilado

Cantando errado e fazendo sermotildees moralizantes os a(u)tores travestem-se de

heroacuteis cocircmicos satildeo porta-vozes da opiniatildeo de muitos se apoderam do grotesco usam

maacutescaras passeiam com maestria nos mundos popular e erudito representam coletivos pelo

poder da gargalhada do riso seacuterio e da tolice e encontram em seus outros as formas

mais(in)certas para criticar agravequeles que exploram a cidade e levar ao puacuteblico atraveacutes de

figuras idiotizadas os ensinamentos que ironicamente o poeta preocupado com o destino do

cidadatildeo executa diante de suas audiecircncia

Esta dualidade cocircmica estabelecida pelo poeta e seus duplos no espaccedilo cecircnico da

cidade eou do inframundo implica certa ambiguidade constitutiva na figura do heroacutei cocircmico

ou do juiz apresentado em Acarnenses no Auto da Compadecida e no Auto da Barca do

Inferno tendo em vista tambeacutem a accedilatildeo dos pares antagocircnicos estuacutepido e saacutebio grosseiro e

sutil escravo das pulsotildees e senhor de si mesmo menos e mais humano

Assim percebe-se que tanto no teatro aristofacircnico quanto no teatro popular de

Ariano Suassuna o autoconhecimento expresso pelas maacutescaras gestos e vozes cocircmicas

implica tambeacutem no conhecimento da condiccedilatildeo humana tatildeo bem levada a seacuterio pelos autores e

seus discursos criacuteticos sendo portanto uma nova forma de combinar velhos ingredientes

como o riso frouxo e a voz estridente educadora aacutecida da sociedade ateniense que encontra

espaccedilo semacircntico atraveacutes dos gestos e maacutescaras que se organizam em uma nova composiccedilatildeo

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natildeo soacute da cena teatral mas da inteligecircncia de autores que pensam a sociedade para aleacutem das

mazelas das injusticcedilas vivenciadas impostas pelo estado de guerra

Nesse ambiente muacuteltiplopolifocircnico observamos que a ldquovoz do poetardquo os gestos

e as maacutescaras satildeo fundantes da estrutura do discurso educativo e denunciador formado a

partir da presenccedila de vaacuterias vozes como a do proacuteprio poeta que tem sido um tema de grande

interesse para muitos estudiosos e para todos que se deparam com a problemaacutetica da

identificaccedilatildeo desta quando articulada agrave formaccedilatildeo dos duplos do poeta dentro da Comeacutedia

Antiga perceptiacutevel nas peccedilas Acarnenses de Aristoacutefanes no Auto da Compadecida de

Ariano Suassuna e no Auto da barca do Inferno de Gil Vicente

Por ser uma arte que permanece haacute tantos seacuteculos o teatro desperta curiosidade

acerca de seus primoacuterdios existindo vaacuterias conjecturas e teorias sobre o surgimento da

Comeacutedia Antiga como ambiente extremamente propiacutecio agrave formaccedilatildeo de duplos a partir de

uma seacuterie de elementos presente no mito e culto do deus do teatro Dioniso no qual as vozes

os gestos e as maacutescaras satildeo sobrepostas como causa de equiacutevocos e componentes centrais das

invectivas pessoais ou intrigas transformando-se em acessoacuterios fundamentais para o discurso

moralizante e para alcanccedilar o objetivo maior do a(u)tor a obtenccedilatildeo da paz em Acarnenses de

Aristoacutefanes e a absolviccedilatildeo no Auto da Compadecida de Ariano Suassuna ou na condenaccedilatildeo

das almas em virtude de suas faltas e pecados em vida como esclarece Nemeacutesio (1941) num

ritmo sacral na abordagem vicentina no Auto da Barca do Inferno

Eacute notaacutevel contudo observar que esses elementos frequentemente utilizados por

Aristoacutefanes em suas peccedilas tambeacutem encontram eco na literatura popular de Suassuna Isso

decorre do fato de a obra do pernambucano tambeacutem apresentar uma tessitura textual

atravessada por muacuteltiplas vozes estas representadas pelas diferentes personagens Nesse

processo as obras dos dois autores evidenciam um fenocircmeno recorrente e natural marcado

pela tensatildeo de uma crise profunda denunciada pelos dramaturgos nos discursos de suas

personagens

Assim eacute pertinente que primeiro justifiquemos a escolha das obras citadas visto

que ambas trazem em seus enredos personagens que usam da autoridade conferida pelo poeta

para ressoar seus anseios e indignaccedilotildees atraveacutes do discurso Ao longo das peccedilas Aristoacutefanes e

Suassuna projetam seus duplos de forma que suas proacuteprias vozes possam ser ouvidas

indiretamente por traacutes de cada ato levando o puacuteblico a crer que ouve a voz direta do poeta

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quer atraveacutes do coro do palhaccedilo coreuta da paraacutebase9 ou em personagens protagonistas

como Diceoacutepolis ou Joatildeo Grilo

Atraveacutes dessas personagensautores a voz do dramaturgo eacute projetada pelo riso da

mangofa10 pelos gestos performaacuteticos pelo arremedo poeacutetico eou pelo outro travestido de

a(u)tor accedilotildees perfeitamente justificaacuteveis visto que o cocircmico tem afinidade com a cultura

popular porque utiliza fatos do dia a dia como mateacuteria na representaccedilatildeo de algo atraindo

consequentemente a atenccedilatildeo do leitor ou ouvinte para a obra A verdade eacute que a conduccedilatildeo

cocircmica e moralizante encontra espaccedilo feacutertil em ambas as obras traduzida pela accedilatildeo do poeta a

partir das vozes de seus duplos Diceoacutepolis e Joatildeo Grilo figuras conturbadas em franco

desacordo com a situaccedilatildeo promovida pelos legisladores em Atenas ou na pacata cidade de

Taperoaacute interior nordestino Esses protagonistas descobrem-se em atitude de perfeita

rebeldia conscientes das mudanccedilas advindas de suas atitudes e como heroacuteis cocircmicos satildeo

tambeacutem autores de uma saiacuteda que nem sempre pode ser compartilhada socialmente ou

compreendida

Neste contexto a construccedilatildeo do duplo representa um transbordamento do proacuteprio

poeta um arremedo despadronizado o outro do autor uma imitaccedilatildeo de algo que se pretende

por muitas vezes deter e que retorna fazendo pressatildeo no sentido contraacuterio denunciando as

injusticcedilas e desmandos autorizados pelo poeta com toda a sua pujanccedila Quem natildeo recorda das

figuras ceacutelebres de Diceoacutepolis o duplo cocircmico (matuto) de os Acarnenses (Aristoacutefanes) e de

Joatildeo Grilo e Chicoacute sendo uma espeacutecie de duplo pois representa de forma autorizada a

proacutepria voz do poeta com todas as suas anedotas e os ndash Natildeo sei soacute sei que foi assim ou de

algum outro matuto astuto de nossa tradiccedilatildeo cinematograacutefica ou teatral recriado na literatura

de cordel a partir da influecircncia ibeacuterica ou grega

Diante dessa apropriaccedilatildeo e recuperaccedilatildeo dos mecanismos narrativos da comeacutedia e

de seu caraacuteter atemporal torna-se importante salientar que a Comeacutedia Antiga aleacutem de

construir ldquomuacuteltiplos cocircmicosrdquo apresenta personagens natildeo universais como os que satildeo

caricaturas de pessoas que viveram em Atenas em um momento especiacutefico A obra de

Aristoacutefanes potildee em cena nomes de figuras eminentes da Greacutecia antiga como o de poliacuteticos

9 A paraacutebase eacute uma seccedilatildeo de natureza puramente coral da comeacutedia antiga Na Paraacutebase o coro avanccedilaria em direccedilatildeo aos espectadores e pronunciaria os versos olhando para eles O verbo parabaino aparece doze vezes nas peccedilas de Aristoacutefanes Nas suas demais menccedilotildees significa transgredir um juramento (As Aves vv 331 447 461 Lisiacutestrata vv 235 236 As Mulheres que Celebram as Tesmofoacuterias v 357 Assembleia de Mulheres v 1049) Em As Vespas v 1529 o sentido eacute o de avanccedilar danccedilando mas o contexto em que eacute empregado natildeo eacute parabaacutetico DUARTE Adriane da Silva O dono da voz e a voz do dono a paraacutebase na comeacutedia de Aristoacutefanes Satildeo Paulo Humanitas FFLCH USP 2000308 10 Debique escaacuternio mangaccedilatildeo mangoaccedila mangoccedila mofa zombaria mangofa

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(Cleatildeo e Lacircmaco) pensadores (Soacutecrates) e poetas (Euriacutepides e Eacutesquilo)

A referecircncia a essas personalidades bem como o diaacutelogo com a mitologia a

histoacuteria e o teatro natildeo constituiacutea um problema para a plateia de Aristoacutefanes No entanto para

noacutes leitores de outras geraccedilotildees a percepccedilatildeo de tais referecircncias natildeo eacute assim tatildeo simples ainda

que seja fundamental para a compreensatildeo da comeacutedia

Em Aristoacutefanes Diceoacutepolis que atua na comeacutedia como Joatildeo Grilo no Auto da

Compadecida representa muitos cidadatildeos pois ele eacute a ldquoCidade Justardquo espectador do teatro

participante da assembleia ator ou personagem de Euriacutepides vendedor na sua aacutegora Eacute nesta

interaccedilatildeo criaccedilatildeo e recriaccedilatildeo de discursos que estabelecemos contato com o maior

entendimento da histoacuteria da comicidade a fim de entender os recursos que o comedioacutegrafo

utilizou ao compor seus (duplos) personagens que permanecem por seacuteculos em nossa

tradiccedilatildeo

Vale ressaltar que tudo que acontece na cidade tambeacutem eacute do conhecimento do

poeta que no Auto da Compadecida evidenciado por sua proacutepria construccedilatildeo que obedeceu a

uma ideologia antiga do autor de unir o nacional ao popular para operar as mudanccedilas sociais ndash

em Taperoaacute ndash ou por que natildeo dizer em seu mundo real versejado por suas andanccedilas Para ele

a arte que realmente expressa o paiacutes e o povo brasileiro eacute popular ou baseada no popular uma

arte erudita baseada no popular e em tal concepccedilatildeo de arte estaria a gecircnese de seu teatro no

qual desejava expressar suas raiacutezes e seu povo negando assim os modelos de teatro europeu

como se percebe em sua seguinte fala Queria fazer um teatro que expressasse meu paiacutes e meu povo Aiacute me vi muito naturalmente diante do folheto de cordel essa expressatildeo extraordinaacuteria que o povo brasileiro criou e que eacute o uacutenico espaccedilo cultural onde o povo brasileiro se expressou sem intervenccedilotildees nem deformaccedilotildees que lhe viessem de cima ou de fora O folheto de cordel eacute um universo extraordinaacuterio (SUASSUNA 2001 p 04)

Composto pela recriaccedilatildeo criacutetica e por possuir um enredo que proporciona ao

leitorespectador o riso a reflexatildeo e a dor Auto da Compadecida eacute uma mistura de trageacutedia e

comeacutedia como nos afirma Geraldo da Costa Matos Auto da Compadecida eacute misto um duplo pois participa da estrutura traacutegica pela oposiccedilatildeo muito radical dos personagens a ponto de natildeo haver acordo entre eles e da cocircmica pelos incidentes e desenlace com a salvaccedilatildeo de todos graccedilas agrave intervenccedilatildeo da Compadecida permanecendo no inferno apenas os democircnios cuja situaccedilatildeo jaacute se encontra definida ao aparecerem ao palco (SUASSUNA 2005 p82)

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Na verdade apesar de estarem diluiacutedos em toda a peccedila os elementos traacutegicos e

cocircmicos se intercalam com predominacircncia ora de um ora de outro O cocircmico tem presenccedila

mais marcante em torno das accedilotildees do protagonista Joatildeo Grilo e de seu duplo Chicoacute que

enganam os eclesiaacutesticos (Primeiro Ato) o padeiro e a mulher (Segundo Ato) atraveacutes das

mentiras que criam com o objetivo de ganhar algum trocado ou simplesmente para vingar-se

de seus exploradores

As marcas do traacutegico se tornam mais salientes a partir da metade do segundo ato

com a entrada de Severino do Aracaju travestido de mendigo e do Cangaceiro Estes dois se

opotildeem aos demais personagens uma vez que entram em cena para roubar e acabam

provocando a morte de todos que estatildeo na igreja Na cena do julgamento a oposiccedilatildeo entre as

personagens torna-se ainda mais brusca pois se veem de um lado as figuras celestiais e de

outro as figuras demoniacuteacas natildeo havendo acordo entre elas

Eacute justamente nesse abrir e fechar de cortinas que o teatro aristofacircnicosuassuniano

nos proporciona enquanto espectadores uma visatildeo amplamente criacutetica das accedilotildees humanas

seja pelo desejo pessoal injuacuteria ou pela proacutepria paroacutedia que tatildeo bem se propotildee ao

convencimento do puacuteblico Assim concordamos com Brait (1985) ao referir agrave teoria

desenvolvida por Aristoacuteteles em sua poeacutetica sobre os dois pontos essenciais dos personagens

uma vez que o primeiro ponto define o personagem como reflexo da pessoa humana e o outro

concebe o personagem como construccedilatildeo baseada em leis particulares preacute-existentes no texto

Se quisermos saber alguma coisa a respeito de personagens teremos de encarar frente a frente agrave construccedilatildeo do texto social a maneira que o autor encontrou para dar forma agraves suas criaturas e aiacute pinccedilar a independecircncia a autonomia e a ldquovidardquo desses seres de ficccedilatildeo (BRAIT 1985 p11)

Pode-se observar que esses dois pontos se completam estabelecendo bases para a

criaccedilatildeo das personagens Diceoacutepolis e Joatildeo Grilo tanto em Acarnenses como no Auto da

Compadecida a partir do olhar atento do(s) autor(es) jaacute que eles sofrem pela aplicaccedilatildeo das

leis preacute-existentes tanto na sociedade real quanto na ficccedilatildeo sem perder o caraacuteter denunciador

e intencional proposto pelo criador intriacutenseco agraves suas criaturas

Portanto tanto em Acarnenses quanto no Auto da Compadecida o vieacutes cocircmico

utiliza a irreverecircncia para tratar e relatar as dificuldades as opiniotildees e as injusticcedilas da

sociedade de maneira direta e aberta e deste modo se contrapotildee agraves regras sociais que exigem

boas maneiras ou padratildeo que jamais seraacute alvo da comeacutedia

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A comeacutedia eacute o oposto da trageacutedia pois se traduz no uso do riso que faz

ultrapassar os limites da seriedade criando novas e criacuteticas hipoacuteteses e questionamentos sobre

a realidade denunciando os viacutecios erros morais e atitudes irregulares de indiviacuteduos de uma

classe aleacutem de servir para criticar a sociedade dos corrompidos dos inferiores de maneira

camuflada e irreverente Desta forma pode-se afirmar que a performance cocircmica da qual o

riso a maacutescara o gesto e a voz fazem parte constitui-se de forma implacaacutevel em Aristoacutefanes

e Suassuna como arma para a exposiccedilatildeo ao ridiacuteculo e a exposiccedilatildeo de algo ou algueacutem ao

ridiacuteculo natildeo seraacute bem visto perante as regras e as pessoas da sociedade como o proacuteprio

dramturga citando Moliegravere afirmava ldquoNatildeo existe tirania que resista a gargalhadas que lhe

deem trecircs voltas em tornordquo

11 A comeacutedia aristofacircnica

Castigat ridendo mores 11

Devo de iniacutecio chamar a atenccedilatildeo do empenhado leitor que com grande causa e

sem gabaccedilatildeo deve compreender as peripeacutecias dos (anti)heroacuteis que ora apresento entre o curto

espaccedilo de fechar e abrir as cortinas do teatro-mundo cabe uma especial referecircncia agraves obras

postas em anaacutelise ligadas pelo riso denunciativas em suas eacutepocas separadas

cronologicamente e atemporalmente aqui em completude

Desde a Antiguidade o riso e a comeacutedia tecircm servido para manifestar os viacutecios e

as fraquezas humanas Segundo a perspectiva de Aristoacuteteles na sua Poeacutetica a comeacutedia era a

via por onde passava o homem inferior ndash o nosso anti-heroacutei aquele que natildeo era digno de se

prestar agraves trageacutedias e ser chamado de heroacutei Provavelmente foi na Greacutecia que para noacutes a

representaccedilatildeo do homem inferior surgiu Desde entatildeo aquilo que provoca o riso tem sido no

mais das vezes o que eacute condenaacutevel e baixo na humanidade Em ambas as peccedilas o riso eacute a

arma cocircmica que castiga os costumes que estavam em desacordo com a moral e a partir

disso o riso passa a ser um fenocircmeno sobretudo social e humano e que ocorre somente em

circunstacircncias em que de alguma forma a sociedade vecirc-se ameaccedilada a ponto de criar

situaccedilotildees absurdas rupturas para expurgar os males que decorrem dessa situaccedilatildeo de

encurralamento de total exploraccedilatildeo como demonstradas nas peccedilas a seguir

11 Locuccedilatildeo latina que significa rindo castiga-se os costumes

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12 Dioniso Matuto Justinoacutepolis um heroacutei embusteiro

Ana Maria Ceacutesar Pompeu (2011) nos esclarece que Acarnenses eacute a primeira

comeacutedia que nos chegou de Aristoacutefanes encenada em 425 aC Ela traccedila um retrato

caricatural da cidade de Atenas num periacuteodo de crise das instituiccedilotildees democraacuteticas

relacionado diretamente com a guerra do Peloponeso (431 aC -404aC) Eacute a primeira

comeacutedia que conservamos do seu autor como tambeacutem da Comeacutedia Antiga e define-se como

uma peccedila de tema poliacutetico no sentido moderno inspirada na administraccedilatildeo e na experiecircncia

coletiva de uma Atenas que vive plenamente o seu periacuteodo democraacutetico

O tiacutetulo da peccedila refere-se aos habitantes do demos 12 de Acarnas ex-combatentes de

Maratona que tinham apoiado a guerra contra Esparta por as suas terras terem sido saqueadas

pelos guerreiros lacedemocircnios O caraacuteter didaacutetico do texto eacute expresso pelo proacuteprio autor nos

versos 500-501 (p92) ldquoPois o que eacute justo a comeacutedia tambeacutem cunhece Eu vou falaacute coisas

terrive mas justardquo Aleacutem do caraacuteter didaacutetico da comeacutedia aristofacircnica percebe-se tambeacutem a

presenccedila de nomes de alguns personagens que tecircm uma significaccedilatildeo alegoacuterica Diceoacutepolis o

personagem principal significa cidade justa Anfiacuteteo eacute um nome divino e de alguns poliacuteticos e

legisladores da eacutepoca

O autor de Acarnenses constroacutei a sua peccedila a partir de Atenas pintada em funccedilatildeo

do proacuteprio fluir histoacuterico assolada pela guerra O eixo central da comeacutedia eacute a relaccedilatildeo entre o

puacuteblico e o privado alimentada pela disputa entre belicistas e pacifistas quanto agrave guerra pelo

que a sua mensagem eacute poliacutetica sendo o povo ateniense representado como um bando de

loucos e a democracia como uma farsa

A peccedila comeccedila com DiceoacutepolisJustinoacutepolis um camponecircs forccedilado a migrar para

a cidade onde vive em condiccedilotildees precaacuterias e que aguarda a reuniatildeo da asssembleia onde o

tema da discussatildeo de um tratado de paz vai ser deliberado Vendo a praccedila vazia lamenta a

natildeo participaccedilatildeo do povo na reuniatildeo da assembleia ficando a decisatildeo entregue nas matildeos de

poliacuteticos profissionais que por regra eram demagogos revelando uma contradiccedilatildeo do sistema

democraacutetico os destinos da comunidade cujo governo pertence a todos (puacuteblico) fica afinal

entregue ao cuidado de poucos (privado) deixando a porta aberta a todo o arbiacutetrio e

venalidade

12 Na Greacutecia Antiga o demo (em grego δῆμος) era uma subdivisatildeo da Aacutetica regiatildeo da Greacutecia em torno de Atenas Os demos jaacute existiam como meras subdivisotildees de terra nas aacutereas rurais desde o seacuteculo VI aC

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Comeccedilada a assembleia Ambiacutedeus faz a proposta de paz mas eacute rechaccedilado com

ordem de prisatildeo DiceoacutepolisJustinoacutepolis tenta reverter a situaccedilatildeo mas sem sucesso dizendo

Oacute priacutetanes vocecircs tatildeo fazendo mal pra assembleia Arrastando o homem que queria fazecirc treacuteguas Pra noacutes e dependuraacute os escudo (ARISTOacuteFANES POMPEU 2014 p67)

Este breve momento em que apenas dois indiviacuteduos se manifestam a favor da

discussatildeo de um problema central no contexto ateniense agindo no interesse do bem comum

da cidade eacute logo apagado abafado pelo conselho que desviaraacute a sua atenccedilatildeo para os

embaixadores que chegam da Peacutersia

DiceoacutepolisJustinoacutepolis protagoniza a voz da razatildeo numa sociedade dominada por

loucos e safados que teimam em alimentar a guerra com Esparta como pretexto para

enriquecerem agrave sua custa ficando ele cada vez mais miseraacutevel e pobre Diceoacutepolis

desmascara em seguida a funccedilatildeo das missotildees diplomaacuteticas persas na figura de

Pseudaacutertabas 13 como fraudes pois vem prometer ouro com a conivecircncia dos embaixadores

atenienses como manobra de diversatildeo apenas

Com efeito a sua ostentaccedilatildeo agrave custa do dinheiro puacuteblico que contrasta com a

pobreza da maioria dos cidadatildeos desmente a veracidade da proposta que fazem por isso eacute

com palavras acerbas - ldquocus molesrdquo- que os incita a natildeo caiacuterem no logro Diceoacutepolis eacute entatildeo

silenciado a reuniatildeo eacute suspensa e iraacute fazer-se agrave porta fechada no Conselho (Pritaneu) Com

este estratagema o direito de todos participarem na tomada de decisatildeo eacute abolido confinando

a decisatildeo poliacutetica ao segredo dos gabinetes Compreendendo que a guerra natildeo lhe conveacutem

DiceoacutepolisJustinoacutepolis conclui uma paz privada com o inimigo libertando-se da loucura da

cidade Assim fugindo de uma ordem puacuteblica corrompida procura um espaccedilo em que possa

ser o senhor absoluto de si proacuteprio Os acarnenses ficam enfurecidos ao descobrirem que

Diceoacutepolis fez um acordo de paz com os lacedemocircnios apedrejando-o

Entatildeo ele tenta com palavras sensatas expor suas razotildees defender-se das

acusaccedilotildees que lhe satildeo movidas mas o seu direito de defesa eacute contestado com ameaccedilas de

ainda maior violecircncia por parte do coro dos Acarnenses

13 ldquopseucircdosrdquo ldquofalsordquo artaacutebe ldquomedida persardquo Falsidacircmetro in Traduccedilatildeo Matuta Cearense de Dyscolos o Enfezado de Menandro POMPEU e SANTOS Cultura e Traduccedilatildeo v 5 n 1 (2017) ISSN 2238-9059 Disponiacutevel em httpperiodicosufpbbrojs2indexphpct 2017

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ldquoCoro Quero eacute morrecirc seu ti iscutaacute Diceoacutepolis Num faccedila isso natildeo oacute Acaacuternicos Coro Tu vai morrecirc fica sabenrsquoagorardquo (ARISTOacuteFANES POMPEU 2014 p81-82)

A democracia encontra-se subvertida na sua essecircncia quando a violecircncia

imperante impede que o criteacuterio de resoluccedilatildeo dos conflitos seja resolvido com recurso agrave livre

discussatildeo em condiccedilotildees igualitaacuterias no espaccedilo puacuteblico Eacute o que estaacute acontecendo primeiro

na assembleia depois eacute-lhe negado o direito de defesa contra as acusaccedilotildees dirigidas a um

cidadatildeo finalmente eacute silenciado e suspenso a sua proposta de discussatildeo

DiceoacutepolisJustinoacutepolis eacute o proacuteprio Aristoacutefanes criador e criatura autorizado a

assumir o risco de morte proclama o que julga ser justo para a cidade e denuncia a retoacuterica

fraudulenta dos oradores que conquistam o povo com o sortileacutegio encantatoacuterio do seu

discurso Taquioia este tronco aqui E o home que vai falaacute eacute deste tamanhin Tenha cuidado natildeo num vocirc me armaacute de iscudo Vocirc falaacute em favocirc dos lacedemocircmios o qrsquoeu acho Mas tenho muito que temecircPois os modo Dos lavradocirc conheccedilo eu eles fica muito alegre Se pra eles e pra cidade fizeacute elogio algum Home inrolatildeo com justiccedila ou sem ela E aiacute num se datildeo conta que tatildeo seno eacute vindido E dos veacuteio tambeacutem conheccedilo as alma que Num bota a vista noutra coisa mas soacute em mordecirc cum voto Euzin aqui sei o que sofri nas matildeo de Cleatildeo Por causa da cumeacutedia do ano passado Pois teno me arrastado pro tribunal Ele me caluniava e cuspia mintiras contra mim Era uma cachoecircra e me banhava que quase Murri afogado na cusparada de insultos Agora intatildeo antes de falaacutedecircxeprimecircro Qacuteeu me vista como o mais miserave de tudin (ARISTOacuteFANES POMPEU 2014 p84)

Na parte final da peccedila o Coro modula a sua posiccedilatildeo ao final da intriga vindo a

reconhecer o serviccedilo que o poeta prestou agrave comunidade e que o tratado de paz eacute o mais justo

para a cidade pois restabeleceraacute o valor da democracia para as cidades desmascarando os

maus costumes e seus legisladores exploradores do povo

Vale ressasltar que o poeta usa uma histoacuteria cocircmica e simples como enredo a

proacutepria histoacuteria passa a ser um mero pretexto para o desenvolvimento cocircmico em Acarnenses

jaacute que a saacutetira eacute um elemento importante e porque natildeo moralizante nesse contexto

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Tatildeo bem quanto Aristoacutefanes Suassuna elaborou seus personagens seguindo um

esterioacutetipo social No enredo da comeacutedia aristofacircnica encontramos dois elementos (1) o (anti)

heroacutei (2) o esquema fantaacutesticomoralizante

13 O (anti)heroacutei Aristofacircnico

A figura do heroacutei tanto na literatura quanto fora dela eacute laureada com uma

tragicidade iminente o traacutegico que no contexto da mitologia eacute muito mais do que a

encarnaccedilatildeo da perda do sofrimento e das incertezas humanas no fim o traacutegico eacute o

eminentemente humano contra o divino a lembranccedila irrestrita da pequenez ceacutelere e irasciacutevel

da existecircncia humana

Jaacute a comeacutedia grega sobretudo a de Aristoacutefanes nos remete da forma mais

evoluiacuteda a uma concepccedilatildeo de existecircncia que prevecirc de forma profeacutetica que nem tudo o que eacute

humano ou divino deve ser levado muito a seacuterio pois no final tudo eacute poacute a vida um suspiro no

vazio das eras portanto natildeo se pode levar nada muito a seacuterio numa clara conotaccedilatildeo Dioniacutesia

O camponecircs ateniense como sujeito histoacuterico e tambeacutem como personagem do

teatro cocircmico de Aristoacutefanes foi figura central e essencial no decorrer do seacuteculo V a C

desde que sua posiccedilatildeo eacutetico-social permaneceu intacta frente aos sofrimentos beacutelicos de

Atenas pelo que tomou um caraacutecter de idealizaccedilatildeo tanto em sua posiccedilatildeo de cidadatildeo como nas

personificaccedilotildees da comeacutedia aristofaacutenica

O heroacutei de Aristoacutefanes natildeo eacute limitado ao desejo do puacuteblico somente de riso ou

excessos ele tem a grandeza de contradizer o estabelecido de conduzir o ouvinte a um

caminho de excesso que educam de entendimento proferido por um agente que carregado de

um heroiacutesmo simples jamais seraacute unilateral ou submisso E toda essa inquietaccedilatildeo que

provoca a presenccedila desse duplo para a Comeacutedia Antiga eacute uma ferramenta que constroacutei o

heroacutei cocircmico aristofacircnico segundo Whitman (1969 p 25) Essa unidade de autoconceito e autoafirmaccedilatildeo confere ao espiacuterito heroacuteico uma espeacutecie de pureza mas dificilmente eacute o que poderiacuteamos chamar de coerecircncia pois a qualquer momento o heroacutei pode desrespeitar todas as expectativas em deferecircncia aos misteacuterios particulares de sua proacutepria vontade Ele eacute pode-se dizer consistente consigo mesmo mas como ele cria a si mesmo agrave medida que age o resultado natildeo pode ser conhecido de antematildeo nem mesmo por si mesmo O heroiacutesmo eacute como se pode dizer dirigido pelo seu interior e embora as direccedilotildees possam diferir o princiacutepio vale as aparecircncias agraves vezes ao contraacuterio nenhuma abstraccedilatildeo jamais poderaacute controla o heroacutei em busca da totalidade E eacute precisamente isso que os heroacuteis de Aristoacutefanes satildeo 14

14 14This unity of self-conception and self-assertion gives to the heroic spirit a kind of purity but hardly what we would call consistency for at any moment the hero may flout all expectation in deference to the private

33

Aristoacutefanes como ningueacutem conferiu ao seu (anti)heroacutei a figura simples de um

homem rural idealmente eacutetico e poliacutetico que a polis ateniense precisava para se reconstruir e

se transformar Essa percepccedilatildeo do camponecircs em Aristoacutefanes daacute uma indicaccedilatildeo dos eventos

tanto do cidadatildeo quanto da cidade e daacute ao leitor uma leitura histoacuterica diferente dos eventos

que Atenas sofreu durante a Guerra do Peloponeso

O (anti)heroacutei aristofacircnico como DiceoacutepolisJustinoacutepolis eacute tipificadamente matuto

que se angustia diante de alguma caracteriacutestica perturbadora da sociedade contemporacircnea por

exemplo o prolongamento da guerra os poliacuteticos corruptos que dominam a ecclesia a

loucura das demos atenienses Incapaz de convencer os outros de sua loucura o heroacutei sai por

conta proacutepria colocando em praacutetica algum tipo de esquema fantaacutestico que pretende acertar as

coisas

Diceoacutepolis reconhece as consequecircncias que prejudicaram a cidade e que tambeacutem

foram percebidas por Aristoacutefanes que com sua poesia sua repercussatildeo e sinceridade

colocou em cena o Cidadatildeo-espectador viacutetima direta da decadecircncia e que teraacute discernimento

sobre as decisotildees dos estrategistas e governadores com os atos de guerra

Segundo Fisher (1993 p33) o (anti)heroacutei de Acarnenses tem sua accedilatildeo construiacuteda

nos vaacuterios lugares apresentados na peccedila o que levou Aristoacutefanes a estabelecer relaccedilatildeo com as

vaacuterias personalidades assumidas por DiceoacutepolisJustinoacutepolis dentre as quais ele cita a de

espectador de festivais dramaacuteticos e a de lavrador

Revelado para o puacuteblico Justinoacutepolis que vive vaacuterios outros papeacuteis representa o

justo da cidade ou o cidadatildeo justo Direto e conhecedor dos truques que o levariam a

convencer a assembleia apresenta-se a Euriacutepides pela proacutepria voz dizendo seu nome e o

demos a que pertence Mermo assim Pois num vocirc mimbora vocirc eacute bater na porta Euriacutepides Euripidizin Me ouve se alguma vez tu ocircviu um home Justinoacutepolis de Colides te chama eu (ARISTOacuteFANES POMPEU 2014 p86)

Entretanto rapidamente o espectador toma conhecimento da intenccedilatildeo de

Justinoacutepolis que eacute se transformar em outra pessoa Para isso ele pede ao tragedioacutegrafo um mysteries of his own will He is one might say consistent with himself but since he creates himself as he goes the result cannot be foreknown even perhaps by himself Heroism is one might say inner-directed and though the directions may differ the principle holds appearances sometimes to the contrary no abstraction ever controls the hero in quest of wholeness And that is precisely what Aristophanes heroe sare (Traduccedilatildeo nossa)

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trapo (= κιον) usado por atores que interpretam mendigos em suas trageacutedias pois ele vai fazer

um discurso ldquoPois tenho que falaacute pro coro um leriado grande Ele traz a morte sacuteeufalaacute malrdquo

(vv 426-427) E para convencer Diceoacutepolis acredita que ldquoEacute que tenho que achaacute que socirc um

ismoleu hojerdquo (vv440)

Portanto o espectador percebe que Justinoacutepolis se transforma em Teacutelefo

incorporando a personalidade de Teacutelefo mesmo que essa incorporaccedilatildeo seja planejada e usada

como arma argumentativa Assim como Teacutelefo Justinoacutepolis eacute o homem do convencimento

mesmo que para convencer ele pareccedila deixar de ser ele mesmo

Em Acarnenses o enredo eacute costurado pelas artimanhas do (anti)heroacutei quando faz

uma paz privada com os espartanos para que ele possa desfrutar das becircnccedilatildeos da paz que foram

perdidas com o iniacutecio da guerra

14 Auto da Compadecida Uma estoacuteria de outras estoacuterias

Os instrumentos culturais mais relevantes no enredo satildeo as crenccedilas e a literatura

de cordel da realidade regional brasileira mais precisamente da realidade regional nordestina

A narrativa do Auto da Compadecida eacute fundamentada em romances e narraccedilotildees populares

Composta de elementos que expotildeem a cultura popular do homem do Nordeste Ariano

Suassuna aborda assuntos universais atraveacutes de figuras populares que mostram integramente

a figura do povo nordestino um povo oprimido tanto por aspectos climaacuteticos quanto sociais

O autor faz ainda uso do humor e da criacutetica ao falar sobre a realidade do homem nordestino

O Auto da Compadecida (1955) de Ariano Suassuna eacute uma peccedila teatral em

forma de auto (gecircnero da literatura que trabalha com elementos cocircmicos e tem intenccedilatildeo

moralizadora) Eacute um drama nordestino apresentado em trecircs atos Esta antologia reuacutene trecircs

folhetos dos quais Ariano Suassuna tirou os motivos e peripeacutecias de seu Auto da

Compadecida Embora o autor paraibano tenha se utilizado de muitos temas populares em sua

peccedila estes poemas satildeo as fontes principais como nos assegura Tavares (2004 p191)

Disse um criacutetico

Como foi que o senhor teve aquela ideacuteia do gato que defeca dinheiro Ariano respondeu Eu achei num folheto de cordel O criacutetico E a histoacuteria da bexiga de sangue e da musiquinha que ressuscita a pessoa Ariano lsquoTirei de outro folhetorsquo O outro E o cachorro que morre e deixa dinheiro para fazer o enterro Ariano lsquoAquilo

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ali eacute do folheto tambeacutem rsquo O sujeito impacientou-se e disseAgora danou-se mesmo Entatildeo o que foi que o senhor escreveu E Ariano lsquoOacute xente Escrevi foi a peccedilarsquo

De acordo com Braulio Tavares (TAVARES 2004 p 104) ldquoAriano escolheu o

folheto como a ceacutelula-matildee de uma nova maneira de fazer arte de enxergar o Nordeste de

enxergar o mundo e de recriar suas formasrdquo A utilizaccedilatildeo desse tipo de reescrita a partir de

textos populares compreende uma escrita mais aproximada do povo do Romanceiro

Nordestino transmitido oralmente eou atraveacutes dos folhetos de cordel

A grande importacircncia do folheto no meu entender eacute que o folheto eacute o uacutenico espaccedilo em que o povo brasileiro se expressou sem influecircncias e sem deformaccedilotildees que lhe viessem de cima de fora Aqui ele se expressou como ele eacute Aqui natildeo imitou a Franccedila natildeo imitou a Inglaterra nem os Estados Unidos O povo brasileiro aqui se expressou como ele eacute Entatildeo essa eacute a grande liccedilatildeo do folheto em feira (SUASSUNA apud TAVARES 2007 p 26)

Segundo Vassalo (1993) a obra se divide em trecircs episoacutedios e os folhetos

utilizados na construccedilatildeo arquitetocircnica da obra estatildeo distribuiacutedos de forma arquitetocircnica

O primeiro ato se baseia em O enterro do cachorro fragmento do folheto O dinheiro de Leandro Gomes de Barros o segundo na Histoacuteria do cavalo que defecava dinheiro do mesmo artista o terceiro amalgama O castigo da soberba de Anselmo Vieira de Souza e A peleja da Alma de Silvino Pirauaacute Lima ambos retomados pelo entremez de Suassuna O castigo da soberba Proveacutem ainda do romanceiro a cantiga de Canaacuterio Pardo utilizada como invocaccedilatildeo de Joatildeo Grilo a Maria o nome Compadecida e a estrofe com que o Palhaccedilo encerra o espetaacuteculo pedindo dinheiro satildeo tomados ao folheto O castigo da soberba(VASSALO In CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA 2000 p 156)

Liacutegia Vassalo aproxima no ensaio citado o teatro de Suassuna ao o teatro

medieval cabe ressaltar que mais adiante nos ocuparemos no ATO V do teatro de Gil

Vicente quando vamos tratar do julgamento das almas no inferno alegoacuterico em diaacutelogo

alinhado entre o autor portuguecircs e Ariano Suassuna

Sobre o auto de Suassuna vale ressaltar que conteacutem elementos do cordel

brasileiro e estaacute inserido no gecircnero da comeacutedia aproximando-se dos traccedilos do barroco

catoacutelico brasileiro O autor faz uso de uma linguagem que privilegia o regionalismo atraveacutes da

caracterizaccedilatildeo das particularidades do falar do homem do sertatildeo Nordeste

A peccedila foi escrita em 1955 e encenada pela primeira vez em 1956 Anos mais

tarde foi adaptada para a televisatildeo e para o cinema em 1999 e 2000 respectivamente

Na peccedila Ariano Suassuna trata de maneira leve e com humor do drama vivido

pelo povo nordestino acuado pela seca atormentado pelo medo da fome e em constante luta

contra a miseacuteria Traccedila o perfil dos sertanejos nordestinos que estatildeo submetidos agrave opressatildeo e

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subjugados por famiacutelias de poderosos coroneacuteis donos de terra Nesse contexto o personagem

de Joatildeo Grilo representa o povo oprimido que tenta sobreviver no sertatildeo utilizando a uacutenica

arma do pobre a palavra - astuacutecia

Fica evidente o cunho de saacutetira moralizante da peccedila atraveacutes das caracteriacutesticas de

seus personagens Assim como em Acarnenses de Aristoacutefanes figuras como padeiro e a

mulher que satildeo avarentos que deixam passar necessidade o empregado enquanto cuidam

demasiadamente de um cachorro de estimaccedilatildeo o padre e o bispo gananciosos que utilizam

da autoridade religiosa enquanto legisladores da Igreja para enriquecerem satildeo levados ao

conhecimento do puacuteblico

De forma bem cocircmica e sem as convenccedilotildees que soacute a comeacutedia sabe quebrar todos

estes satildeo condenados ao purgatoacuterio e passam a depender da ajuda astuciosa do roceiro Joatildeo

Grilo poeta travestido e da Compadecida na defesa do coletivo Na obra O riso Henri

Bergson (1987 p 19-21) salienta que o cocircmico eacute um fenocircmeno exclusivamente humano e

que este se dirige agrave inteligecircncia agrave denuacutencia

A partir dessa observaccedilatildeo Suassuna coloca o leitorespectador em contato com

seu outro o anti-heroacutei duplamente qualificado a defesa de seus algozes o arremedo cocircmico

resultado de uma apariccedilatildeo para a qual o proacuteprio autor emprestou seu discurso social No Auto

da Compadecida a dupla Joatildeo Grilo e Chicoacute em certa medida satildeo uma uacutenica personagem

ou seja uma personagem dupla Joatildeo Grilo eacute a representaccedilatildeo do intelecto o mentor de todas

as artimanhas eacute o autor presente na ausecircncia discursiva que por vezes permeia o texto

somente pelos gestos

Enquanto Chicoacute o duplo de Joatildeo Grilo eacute a forccedila fiacutesica o corpo ao mesmo tempo

bobo e bufatildeo o cuacutemplice perfeito o outro de Joatildeo ambos comparados agrave dupla Bom de Laacutebia

e Tudo Azul (na traduccedilatildeo de Adriane Duarte 2000) de As Aves de Aristoacutefanes e por que natildeo

dizer do proacuteprio poeta que acontece sem iniacutecio meio ou fim porque tudo que eacute justo tambeacutem

eacute de interesse da cidade e do poeta e da Comeacutedia como disse Diceoacutepolis no seu discurso em

Acarnenses Por quecirc Natildeo sei como diria Chicoacute Soacute sei que foi assim 15 Joatildeo Grilo um heroacutei popular e picaresco

O romance picaresco que segundo o proacuteprio Ariano Suassuna sempre o

influenciara surgiu na Espanha e infestou toda a Europa abrange um conjunto de textos

narrativos publicados na maioria dos casos entre 1552 e 1646 Eacute um gecircnero que reuacutene obras

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que refletem uma visatildeo irocircnica e pessimista do homem e uma perspectiva ceacutetica em relaccedilatildeo agrave

sociedade espanhola de sua eacutepoca

Segundo Gonzaacutelez (1994) todas as obras desse periacuteodo constituem o reflexo da

tensatildeo provocada pelo confronto entre o indiviacuteduo e uma sociedade extremamente opressora

Portanto para tornar mais clara a origem da picaresca eacute mister considerar o contexto

histoacuterico-poliacutetico-social em virtude de uma das maiores novidades apresentadas pelo gecircnero

a forte vinculaccedilatildeo da ficccedilatildeo com a histoacuteria

O estudo das circunstacircncias que rodeavam os autores deste gecircnero conduz

naturalmente a uma reflexatildeo sobre a sociedade barroca espanhola e portuguesa com atenccedilatildeo

aos autores Calderoacuten de La Barca (1600-1681) e Gil Vicente (1465-1536) Gonzaacutelez (1994 p

21) apresenta uma sociedade na qual predominam as injusticcedilas Apenas uma minoria - uma

nobreza de sangue corrupto e um clero igualmente decadente - teria acesso ao poder e a bens

materiais Sob essas circunstacircncias o povo ignorante supersticioso e fruto de abusos vivia

na miseacuteria

O romance picaresco surge pois como uma saacutetira mordaz que atinge todo o

sistema poliacutetico econocircmico social e moral Constituiacuteram uma rica fonte de material

romanesco situaccedilotildees iacutempares tais como a expulsatildeo dos mouros de Castela e de Leatildeo e a

questatildeo dos cristatildeos-novos considerados estrangeiros no seu proacuteprio paiacutes Os ataques contra

os viacutecios que infestavam a corte espanhola tecircm tambeacutem como alvo ldquoa honrardquo externa e social

ditada pelo poder do dinheiro Ironicamente o piacutecaro eacute o protoacutetipo do homem sem honra

enfim o entretenimento perfeito para os meandros das classes privilegiadas

A apariccedilatildeo da contestadora imagem do piacutecaro em princiacutepio reverte a imagem do

heroacutei das novelas de cavalaria - tem-se uma inversatildeo do modelo heroacuteico que passa a ser anti-

heroacuteico Gonzaacutelez (1994 p 56) assinala que o piacutecaro

Saindo de estratos baixos revela um aspecto pungente o da luta pela vida Solto no mundo tem de resolver por si mesmo os problemas o que o leva a tornar-se frequentemente ladratildeo Estando sempre exposto ao pior escapa das situaccedilotildees difiacuteceis por seu engenho e astuacutecia

Configura-se assim na novela picaresca um traccedilo permanente em Acarnenses e

no Auto da Compadecida a subversatildeo do (anti)heroacutei idealizado Entretanto cabe-nos aqui

salientar que haacute uma diferenccedila uma vez que na picaresca o piacutencaro natildeo tem qualquer projeto

social ao contraacuterio de Justinoacutepolis e Joatildeo Grilo

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151 O (anti)heroacutei Suassuniano

Joatildeo Grilo nasceu da cultura popular atraveacutes do produto oral e segundo o proacuteprio

Ariano Suassuna foi produto de vaacuterios produtos do que viu ouviu e leu nos folhetos de

cordel Nas palavras de Abreu (1999) a literatura de folhetos nordestinos eacute uma das

expressotildees mais brasileiras usual na regiatildeo Nordeste e em regiotildees que acomodam os

migrantes de origem nordestina

Com as grandes navegaccedilotildees atracaram no Brasil trovadores e artistas populares

que expuseram em seus pertences culturais as origens dessa literatura Eacute uma literatura aacutegil

que alcanccedila as mais diversas temaacuteticas com objetivos variados com ampla divulgaccedilatildeo e

anuecircncia social tanto em meios populares quanto nas academias

O folheto eacute um canal popular de cooperaccedilatildeo na vida do paiacutes que concede a naccedilatildeo

discutir a realidade expressar suas exigecircncias e anseios Conforme Zumthor (2000) embora

sejam impressos os folhetos designam-se por sua tradiccedilatildeo oral seus vestiacutegios de oralidade e

pela razatildeo de serem produzidos para serem proferidos lidos ou declamados cantados em voz

alta para um enorme nuacutemero de indiviacuteduos mesmo o iletrado os ignorantes aspectos comuns

agraves culturas que priorizam a oralidade

Foi num folheto de gracejo que Ariano Suassuna encontrou o personagem-

siacutembolo de sua dramaturgia As Proezas de Joatildeo Grilo (ver trecho abaixo) histoacuteria escrita em

1932 por Joatildeo Ferreira de Lima trazia como protagonista o ceacutelebre amarelinho oriundo dos

contos populares portugueses que no processo de aculturaccedilatildeo ganhou caracteriacutesticas

idecircnticas agraves de outro famoso espertalhatildeo de origem ibeacuterica Pedro Malazarte como se pode

perceber no cordel de Joatildeo Martins de Athayde (1951)

As Proezas de Joatildeo Grilo

Joatildeo Grilo foi um cristatildeo que nasceu antes do dia criou-se sem formosura mas tinha sabedoria e morreu depois da hora pelas artes que fazia

E nasceu de sete meses chorou no bucho da matildee quando ela pegou um gato ele gritou natildeo me arranhe natildeo jogue neste animal que talvez vocecirc natildeo ganhe Na noite que Joatildeo nasceu

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houve um eclipse na lua e detonou um vulcatildeo que ainda continua naquela noite correu um lobisome na rua Poreacutem Joatildeo Grilo criou-se pequeno magro e sambudo as pernas tortas e finas e boca grande e beiccediludo no siacutetio onde morava dava notiacutecia de tudo Joatildeo perdeu o seu pai com sete anos de idade morava perto de um rio Ia pescar toda tarde um dia fez uma cena que admirou a cidade (ATHAYDE 1951 p35)

Assim o heroacutei cordelesco forjado por Suassuna representado por Joatildeo Grilo eacute

tambeacutem um produto social e nesses termos eacute o piacutecaro descrito por Kothe (2000) como a

personagem com caracteriacutesticas daquilo que hoje se chama malandragem beira o traacutegico e se

assume como um eacutepico agraves avessas Como piacutecaro de Kothe Joatildeo Grilo no Auto da

Compadecida e Diceoacutepolis em Acarnenses satildeo de extraccedilatildeo social baixa e se comportam de

modo pouco elevado mas se elevam literariamente e contam ateacute mesmo com a complacecircncia

e a simpatia do leitor As duas personagens representam o modo pelo qual a classe baixa

consegue entrar no picadeiro da literatura

152 A tensatildeo tragicocircmica do (anti)heroacutei no Auto da Compadecida

Segundo Deserto (1995) a trageacutedia e a comeacutedia mantecircm entre si uma relaccedilatildeo de

alguma ambiguidade em que proximidade e afastamento parecem jogar em simultacircneo

importante papel Podemos evocar como representaccedilatildeo simboacutelica desta relaccedilatildeo a imagem

que o tempo veio a tornar quase emblema do proacuteprio teatro das duas maacutescaras a traacutegica e a

cocircmica denunciantes do sofrimento e do riso

O leitor atento percebe que a comeacutedia causada pelos quiprocoacutes 15e pelas confusotildees

no Auto da Compadecida natildeo representa a cura da trageacutedia vivenciada por Joatildeo Grilo nem a

15 Quid pro quo eacute uma expressatildeo latina que significa tomar uma coisa por outra Faz referecircncia no uso do portuguecircs e de todas as liacutenguas latinas a uma confusatildeo ou engano Tem origem medieval tendo sido usada na sua origem para se referir a um engano no uso de termos latinos num texto Tambeacutem pode significar isso por aquilo

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mera atenuaccedilatildeo futura de seus efeitos Joatildeo Grilo o heroacutei da peccedila eacute um misto de uma tensatildeo

que se identifica com o heroacutei cordelesco e desta forma natildeo estaacute atrelado somente aos

aspectos da proeza e da glorificaccedilatildeo uma vez que estaacute associado agrave ideia da fraqueza na

constituiccedilatildeo dos valores humano

Assim Joatildeo Grilo natildeo estaacute contemplado pela trajetoacuteria do heroacutei prodigioso e

honrado pois se orienta pela bandeira da transgressatildeo Joatildeo Grilo eacute a expressatildeo desesperada

do homem que luta contra todas as adversidades mas natildeo consegue evitar a desgraccedila que

vive numa sociedade abalizada pela constante oposiccedilatildeo de duas forccedilas o bem e o mau A

convergecircncia e accedilatildeo dessas forccedilas satildeo responsaacuteveis pela falecircncia do heroacutei fazendo com que

ele mergulhe no territoacuterio escorregadio dos valores

Aristoacuteteles em sua Arte Poeacutetica (2005) conceitua a trageacutedia como a imitaccedilatildeo de

pessoas superiores em accedilatildeo a comeacutedia como a imitaccedilatildeo de pessoas inferiores em accedilatildeo e o

drama como a representaccedilatildeo das pessoas em accedilatildeo Por pessoas superiores entendemos os

heroacuteis que estatildeo entre o humano e o divino possuindo algo de sobrenatural

Ariano Suassuna em sua Iniciaccedilatildeo agrave esteacutetica (2007c) reflete sobre os conceitos

de trageacutedia comeacutedia e drama pensados por Aristoacuteteles ressaltando que outras categorias

fazem parte da trageacutedia como o Belo e ateacute mesmo o Cocircmico Na leitura que faz da Poeacutetica o

escritor percebe o heroacutei como algueacutem dotado de uma alma grande mas natildeo pura Tal ldquoalma

granderdquo eacute percebida mais pelas accedilotildees do que pelas palavras em consonacircncia com o

pensamento aristoteacutelico e no caso de Joatildeo Grilo essa impureza reside em sua proacutepria

personalidade desenhada pela presenccedila de falhas cocircmicas tais como a ambiccedilatildeo a trapaccedila a

alcovitagem a avareza a inveja a vinganccedila e a usura

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SEGUNDO ATO

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2 HUMOR E O RISO ELEMENTOS INDISPENSAacuteVEIS Agrave CENA COcircMICA

ldquoEacute melhor escrever sobre risos do que sobre laacutegrimas pois o riso eacute o apanaacutegio do homemrdquo (Franccedilois Rabelais)

Para muitos antropoacutelogos o riso foi um fator coadjuvante agrave adaptaccedilatildeo da espeacutecie

sendo um ato instintivo e portador de equiliacutebrio frente a situaccedilotildees extremas de abatimento e

que dele depende a sobrevivecircncia da espeacutecie Vladimir Propp (1992) apresenta seis tipos de

riso e alerta para a existecircncia de outros Embora se debruccedilando basicamente sobre o que

chama de riso de zombaria por compreender que ldquoeacute o mais frequenterdquo sendo o ldquotipo

principal de riso humanordquo o teoacuterico atenta para o riso bom o riso maldoso ou ciacutenico o riso

alegre o riso ritual e o riso imoderado Antes de prosseguir nos cabe ressaltar que natildeo nos

ocuparemos das definiccedilotildees de Propp mas do riso como elemento indispensaacutevel agrave cena cocircmica

e de seus reflexos na Comeacutedia e no Auto

Rir eacute o melhor remeacutedio Por essa afirmativa percebemos o poder do riso na vida

da Humanidade Entretanto o humor e o riso satildeo fenocircmenos que ainda natildeo foram elucidados

completamente mas as coisas engraccediladas podem nos dizer muito do que eacute humano visto que

o homem eacute o uacutenico animal que ri

O cocircmico estaacute presente em situaccedilotildees reais de nossas vidasuma vez que todos noacutes

rimos sempre para qualquer situaccedilatildeo que nos leva quase incompreensiacuteveis para o riso

despertando nosso humor Haacute de se considerar que o riso eacute uma parte fundamental dos efeitos

produzidos pelo humor no ser humano e suas muacuteltiplas formas de expressatildeo vatildeo dizer

respeito ao grau de afetaccedilatildeo ou natildeo que tenha causado tal situaccedilatildeo real ou artiacutestica que

apresenta momentos cocircmicos

Em Histoacuteria do riso e do escaacuternio Minois (2003) esquematiza a histoacuteria do riso em

trecircs momentos o divino o diaboacutelico e o humano Os gregos antigos definiriam o riso a

partir de suas noccedilotildees de divindade

Rir eacute participar da recriaccedilatildeo do mundo nas festas dionisiacuteacas nas saturnais acompanhadas de ritos de inversatildeo simulando um retorno perioacutedico ao caos primitivo necessaacuterio agrave confirmaccedilatildeo e agrave estabilidade das normas sociais poliacuteticas e culturais Nas relaccedilotildees sociais o riso eacute vivido como elemento de coesatildeo e de forccedila diante do inimigo como o mostram os risos homeacutericos ou espartanos ele eacute tambeacutem um freio ao despotismo com as bufonarias rituais dos desfiles triunfais em Roma ou as saacutetiras poliacuteticas em Aristoacutefanes eacute por fim um instrumento de conhecimento que desmascara o erro e a mentira como no caso da ironia socraacutetica das zombarias dos ciacutenicos da derrisatildeo dos viacutecios em Plauto ou Terecircncio (MINOIS 2003 p 630)

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Sobre o riso como capacidade para criar o mundo a nossa volta Aristoacuteteles nos

transmite que somente uma democracia poderia tolerar a franqueza das velhas comeacutedias na

democracia o riso se caracteriza por sua forccedila criacutetica e sua accedilatildeo democratizadora Consoante

ao pensamento de Minois o riso busca se livrar do mundo cheio de injusticcedila e substituiacute-lo por

um mundo melhor Cria uma nova realidade que desloca a outra que natildeo pode mais ser

mantida porque perdeu seu significado O riso eacute entatildeo uma libertaccedilatildeo

Apesar de ter sido relegado na Antiguidade o riso continua a desempenhar um

papel de grande importacircncia na vida social O verdadeiro riso ambivalente e universal natildeo

exclui o seacuterio mas o purifica e o completa Purifica-o do dogmatismo da unilateralidade da

esclerose do fanatismo e do espiacuterito categoacuterico do medo e da intimidaccedilatildeo do didatismo do

engenho e das ilusotildees da fixaccedilatildeo sinistra em um uacutenico niacutevel e da exaustatildeo

21 O riso seacuterio-cocircmico em Aristoacutefanes e Suassuna

212 Riso e Comeacutedia

A Comeacutedia e o Auto satildeo gecircneros cujo sucesso eacute medido pela qualidade do humor

promovido pelas personagens em confronto com suas vivecircncias Humor eacute indispensaacutevel para

a arte cocircmica principalmente porque eacute altamente eficaz para convencer em grande parte pois

atrai a atenccedilatildeo e permite a possibilidade de persuasatildeo da plateia

O riso eacute uma reaccedilatildeo puramente fisioloacutegica que pode ser desencadeada por gatilhos

fiacutesicos e natildeo fiacutesicos e eacute observada em humanos desde a infacircncia Em termos de efeitos

somaacuteticos tem sido sugerido que o riso proporciona aliacutevio do estresse e reduz o desconforto e

ou dor liberando endorfinas produtoras de euforia encefalinas dopamina e adrenalina

todos contribuem para a sauacutede mental e fiacutesica geral Como resultado de suas propriedades

terapecircuticas o riso tem sido usado no contra-condicionamento das reaccedilotildees da raiva bem

como na dessensibilizaccedilatildeo sistemaacutetica ao medo

De acordo com Bakhtin (1999) o elo entre o seacuterio e o cocircmico jaacute existia desde os

primoacuterdios da humanidade na vida social Atraveacutes de investigaccedilotildees do folclore de povos

primitivos observou que os rituais seacuterios coadunavam com os rituais que parodiavam os

mitos os acontecimentos e os heroacuteis que as comunidades cultuavam

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A praacutetica do elogio e do escarnecimento fazia parte das cerimocircnias oficiais das

comunidades antigas Entretanto o seacuterio e o cocircmico passaram a ser dicotomizados com o

surgimento do regime de classes e de Estado Com a divisatildeo de classes iniciou-se um

processo que demarca a diferenccedila de direitos entre os indiviacuteduos na sociedade

Determinadas formas cocircmicas deixam de ser autorizadas soacute podendo ser

executadas em determinadas situaccedilotildees A partir daiacute se consubstanciou uma cultura oficial

delimitando as condiccedilotildees de realizaccedilatildeo do riso O espaccedilo da subversatildeo da gargalhada da

chacota tende a restringir-se aos momentos festivos A divisatildeo do riso e do seacuterio da cultura

popular e da cultura erudita comeccedilou a se intensificar fazendo com que a comicidade fosse

vista como uma expressatildeo menor inclusive no campo da cultura letrada

Segundo Huizinga no livro Homo Ludens (1938) o riso encontra nas situaccedilotildees

diaacuterias o seu proacuteprio espaccedilo as suas proacuteprias regras e o seu proacuteprio tempo e deve ser estudado

como fenocircmeno cultural uma vez que ele estaacute ligado agrave produccedilatildeo de situaccedilotildees que satildeo

proacuteprias do riso O autor nos convida a uma reflexatildeo sobre o poder que reside exatamente no

ato do riso De certo modo o riso segundo Huizinga pode ser visto como um tipo moderado

de ldquoloucurardquo tendo em vista que se realiza por meio de fatos cocircmicos que tambeacutem podem ser

entendidos como uma espeacutecie de ldquoloucurardquo porque neles corta-se o nexo do comum do tempo

do cotidiano

O elemento luacutedico tende a provocar o riso que por sua vez eacute um elemento da vida cotidiana estaacute sempre presente nas relaccedilotildees sociais seja para exprimir uma simpatia para desdramatizar uma situaccedilatildeo ou para exprimir a felicidade O risiacutevel eacute proacuteximo ao cocircmico ao jogo agraves brincadeiras agraves piadas ao luacutedico etc O cocircmico pode ser estudado com as formas as atitudes os gestos e os movimentos do corpo humano tambeacutem pode ser estudado pelo cocircmico de caraacuteter ou atraveacutes da fala do cocircmico de situaccedilotildees de palavras (HUIZINGA 1938 p54)

Para Pirandello o riso pode ser uma accedilatildeo subversiva e o proacuteprio autor assegura

que haacute ambivalecircncias na conceituaccedilatildeo do riso e do fenocircmeno cocircmico na tradiccedilatildeo ocidental

pois O riso pode ser compreendido como experiecircncia do natildeo-seacuterio a inversatildeo cocircmica pode revelar uma gravidade antes oculta certos contrastes inexprimiacuteveis pelo discurso mais cordato uma seriedade que o proacuteprio discurso seacuterio camufla O caraacuteter subversivo e anaacuterquico do riso Em diversos momentos o riso implica numa adesatildeo agrave ordem social estabelecida O riso eacute plural e encontra funccedilatildeo como corretivo social natildeo se restringindo a uma funccedilatildeo normativa tatildeo precisa visto que ele pode acometer um indiviacuteduo isoladamente pode prescindir da sociedade O riso guarda consigo o paradoxo da proacutepria accedilatildeo humana (PIRANDELLO 1957 p294)

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Para Bergson (1987) o riso aleacutem de ser um fenocircmeno social eacute um fenocircmeno

psiacutequico O sujeito ri de situaccedilotildees constrangedoras com as quais natildeo se envolve afetivamente

O cocircmico eacute provocado pela observaccedilatildeo das falhas humanas em uma perspectiva corretiva

diante dos olhos do observador Assim o cocircmico estaacute ligado agrave capacidade de explicitar e

identificar o ridiacuteculo humano manifestado no exagero caricaturado na representaccedilatildeo da

transgressatildeo social na encenaccedilatildeo de gestos automaacuteticos e na exploraccedilatildeo de clichecircs

desgastados

De acordo com Propp (1992) os caracteres cocircmicos natildeo existem por si soacute eles

tecircm relaccedilatildeo com as atividades do homem no mundo social Assumindo a mesma perspectiva

Bergson (1987) afirma que o riso eacute sempre grupal sendo determinado por um conjunto de

atitudes discriminadas e colocadas como engraccediladas perante uma comunidade

A identificaccedilatildeo daquilo que eacute engraccedilado ou humoriacutestico aponta para o

reconhecimento de gestos sociais que rompem com conduta ideal Esse desvio expresso no

comportamento fiacutesico ou moral dos seres sociais compotildee a trama das narrativas que satildeo

contadas com irreverecircncia e bom humor

213 Os elementos do risiacutevel no heroacutei suassuniano

Tenho duas armas para lutar contra o desespero a tristeza e ateacute a morte o riso a cavalo e o galope do sonho Eacute com isso que enfrento essa dura e fascinante tarefa de viver (ARIANO SUASSUNA)

Como jaacute visto estudos comprovam que o conceito claacutessico de heroacutei se origina na

Literatura Grega O termo designa um indiviacuteduo notabilizado por feitos extraordinaacuterios No

entanto com o passar do tempo essas figuras quase divinas jaacute natildeo correspondiam

adequadamente agrave vontade coletiva O heroacutei claacutessico foi sendo substituiacutedo pelo ldquoheroacutei

problemaacuteticordquo personagem cuja existecircncia e valores situam-no perante questotildees sobre as

quais natildeo eacute capaz de expressar consciecircncia clara e rigorosa

A construccedilatildeo desse novo enfoque da imagem do heroacutei eacute uma ideia atribuiacuteda aos

tempos modernos e a sua representatividade evidencia-se sobretudo no gecircnero romance

Contudo como mensageiro de uma criacutetica mordaz e bem-humorada da maacute sorte enfrentada

pelo nordestino em sua difiacutecil missatildeo pela sobrevivecircncia Ariano Suassuna na obra Auto da

Compadecida nos apresenta um heroacutei que ao inveacutes do nobre heroacutei claacutessico repleto de viacutecios

e defeitos

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Joatildeo Grilo eacute uma personagem que povoa o imaginaacuterio folcloacuterico brasileiro

sobretudo na regiatildeo Nordeste assumindo todas as caracteriacutesticas de um anti-heroacutei pois eacute

pequeno fraco franzino amarelo e desnutrido ou seja natildeo possui os atributos esteacuteticos e o

porte de um verdadeiro heroacutei cavalheiresco e romacircntico Joatildeo Joatildeo Joatildeo Morreu Ai meu Deus morreu o pobre de Joatildeo Grilo Tatildeo amarelo tatildeo safado e morrer assim Que eacute que eu faccedilo no mundo sem Joatildeo Joatildeo Joatildeo Natildeo tem mais jeito Joatildeo morreu Acabou-se o Grilo mais inteligente do mundo (SUASSUNA 2005 p 63)

Mas Joatildeo Grilo eacute infinitamente astuto e sua esperteza eacute tamanha que suplanta o

seu porte miuacutedo convertendo sua fragilidade em forccedila Com suas artimanhas ele se agiganta

Graccedilas as suas traquinagens enfrenta e afronta todas as instituiccedilotildees que se pretendem

poderosas e ditam as normas preceitos usos e costumes sociais de seu tempo e de seu

ambiente

Essa figura paradoxal assumida por Joatildeo Grilo o coloca como um anti-heroacutei que

faz do medo a sua arma da astuacutecia o seu escudo que vivendo num mundo hostil perseguido

escorraccedilado agraves voltas com a adversidade acaba sempre driblando o infortuacutenio com uma dose

exagerada de humor que aliaacutes eacute marca do enfrentamento do povo nordestino com as

adversidades sociais

Em Suassuna o termo humor estaacute relacionado agrave disposiccedilatildeo que o indiviacuteduo tem

para rir ou fazer sorrir Propp (1992) considera a priori que o riso eacute uma caracteriacutestica

pertinente do homem e somente a ele eacute dada a capacidade de rir o sorriso para o autor estaacute

ligado a outra esfera da razatildeo humana natildeo vinculada ao escaacuternio ou a derrisatildeo mas

compreende uma disposiccedilatildeo benevolente para com o interlocutor

Ainda nesse esteio para Aristoacuteteles a comicidade com efeito eacute um defeito e uma

feiuacutera sem dor nem destruiccedilatildeo Assim podemos pensar no Auto da Compadecida o riso

como decorrecircncia de uma penalidade um desajuste da conduta de Joatildeo Grilo que nos

surpreende nos atos com um comportamento inesperado

Para Bergson (1987) o riso natildeo eacute apenas uma reprimenda social mas vem de um

desajuste entre a natureza primeira do homem (que eacute mutaacutevel) e uma espeacutecie de rigidez e

mecanizaccedilatildeo Essa rigidez se manifestaria tanto no niacutevel fiacutesico como no caraacuteter ou seja no

acircmbito moral e psicoloacutegico caracteriacutesticas exploradas no personagem Joatildeo Grilo O risiacutevel e

o cocircmico seriam uma forma de desfazer a rigidez evidenciaacute-la corrigi-la

Para Suassuna (2008) o riso eacute como uma espeacutecie de puniccedilatildeo que a sociedade

confere a algo que a ameaccedila diz em seu livro Iniciaccedilatildeo agrave Esteacutetica Desta forma o risiacutevel estaacute

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na inadequaccedilatildeo do comportamento humano fiacutesicopsicoloacutegico uma vez que excede agrave

normalidade sem causas traacutegicas Suassuna no Auto da Compadecida nos deixa claro que ali

o cocircmico surge como um alerta sobre algo que natildeo estaacute funcionando bem nas sociedades

sendo tambeacutem um instrumento revelador dos problemas da sociedade como um todo

No contexto de tensatildeo do Auto eacute que encontramos Joatildeo Grilo um anti-heroacutei

oprimido e no plano da eacutetica eacute um legiacutetimo malandro que usa desse artifiacutecio como uma

forma autecircntica de sobrevivecircncia e de luta frente agraves adversidades sobretudo agravequelas impostas

pelos que detecircm o poder

A malandragem portanto no seu entender natildeo constitui um problema ou pecado

grave pois natildeo eacute utilizada para engrandecimento proacuteprio ou para ascensatildeo econocircmica mas

sim para a promoccedilatildeo da justiccedila social Sobre isto lecircem-se os seguintes versos do cordelista

Paulo Nunes Batista Grilo pra tudo no mundo Tinha uma definiccedilatildeo A sua filosofia Sempre lhe dava razatildeo Pois seguia este ditado Que diz ndash ldquoEstaacute perdoado Ladratildeo que rouba ladratildeordquo Vivendo embora do crime Joatildeo Grilo era caridoso Auxiliava a pobreza Soacute furtava o poderoso Roubava sempre dos nobres Matava a fome dos pobres Mostrando ser generoso (BATISTA 1958 p 28)

Ariano Suassuna como ningueacutem mergulhou na foacutermula do riso que sempre

esteve presente na Antiguidade e ligado aos deuses tendo um significado divino Presente nas

festas esse riso natildeo possuiacutea o sentido de diversatildeo como se conhece hoje ldquoAntes ele

correspondia aos preparativos de sacrifiacutecios e tinha uma relaccedilatildeo congruente com a morte O

riso e a morte fazem boa misturardquo (MINOIS 2003 p 29)

No campo do riso a comeacutedia gregandash da qual nos ocuparemos posteriormente ndash

surge como uma arte secundaacuteria cuja funccedilatildeo era descontrair os espectadores afinal era

apresentada nos intervalos das grandes peccedilas Procurava mostrar o homem rebaixado lidando

com figuras inferiores tanto no sentido moral quanto no acircmbito social Tendo como desiacutegnio

exagerar os defeitos humanos a comeacutedia explorava o ridiacuteculo

Nesse campo ao apresentar o Auto da Compadecida por meio dos contadores de

histoacuteria Chicoacute Joatildeo Grilo e do palhaccedilo o proacuteprio Suassuna admite a influecircncia da Comeacutedia

Antiga do Repente do Cordel dentre outros

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Eacute verdade que devo muito ao teatro grego (e a Homero e a Aristoacuteteles) ao latino ao italiano renascentista ao elisabetano ao francecircs barroco e sobretudo ao ibeacuterico Eacute verdade que devo ainda mais aos ensaiacutestas brasileiros que pesquisaram e publicaram as obras assim como salientaram a importacircncia do Romanceiro Popular do Nordeste principalmente a Joseacute de Alencar Siacutelvio Romero Leonardo Mota Rodrigues de Carvalho Euclides da Cunha Gustavo Barroso e mais modernamente Luiacutes Cacircmara Cascudo e Teacuteo Brandatildeo Mas a influecircncia decisiva mesmo em mim eacute a do proacuteprio Romanceiro Popular Nordestino com o qual tive estreito contato desde a minha infacircncia de menino criado no sertatildeo do Cariri da Paraiacuteba (SUASSUNA 2007 p 30)

O riso no Auto da Compadecida encontra suporte na carnavalizaccedilatildeo ideia

concebida por Mikhail Bakhtin (1993 p 7) que consiste na ldquosegunda vida do povo baseada

no princiacutepio do risordquo princiacutepio este que abole as relaccedilotildees hieraacuterquicas quando desloca os

sujeitos e subverte a ordem social estabelecida De acordo com Bakhtin O riso e a visatildeo de carnavalesca do mundo que estatildeo na base do grotesco destroem a seriedade unilateral e as pretensotildees de significaccedilatildeo incondicional e intemporal e liberam a consciecircncia o pensamento e a imaginaccedilatildeo humana que ficam assim disponiacuteveis pra o desenvolvimento de novas possibilidades Daiacute que uma certa carnavalizaccedilatildeo da consciecircncia precede e prepara sempre as grandes transformaccedilotildees mesmo no domiacutenio cientiacutefico (MIKHAIL BAKHTIN1993 p43)

No Primeiro Ato do Auto da Compadecida haacute o cruzamento da histoacuteria narrada

por Suassuna com a Literatura de Cordel precisamente com o Testamento do cachorro

publicado no folheto intitulado ldquoDinheirordquo escrito por Leandro Gomes de Barros (1909) fato

que desperta na plateia o riso frouxo natildeo simplesmente pelos causos propostos por Chicoacute e

Joatildeo Grilo mas pelo niacutevel de linguagem explorado e pelas artimanhas da dupla para

conseguir o intento de benzer a cachorra antes de enterraacute-la JOAtildeO GRILO Padre Joatildeo Padre Joatildeo PADRE aparecendo na igreja Que haacute Que gritaria eacute essa CHICOacute Mandaram avisar para o senhor natildeo sair porque vem uma pessoa aqui trazer um cachorro que estaacute se ultimando para o senhor benzer PADRE Para eu benzer CHICOacute Sim PADRE com desprezo Um cachorro CHICOacute Sim PADRE Que maluquice Que besteira JOAtildeO GRILO Cansei de dizer a ele que o senhor benzia Benze porque benze vim com ele PADRE Natildeo benzo de jeito nenhum

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CHICOacute Mas padre natildeo vejo nada de mal em se benzer o bicho JOAtildeO GRILO No dia em que chegou o motor novo do major Antocircnio Morais o senhor natildeo o benzeu PADRE Motor eacute diferente eacute uma coisa que todo mundo benze Cachorro eacute que eu nunca ouvi falar CHICOacute Eu acho cachorro uma coisa muito melhor do que motor PADRE Eacute mas quem vai ficar engraccedilado sou eu benzendo o cachorro Benzer motor eacute faacutecil todo mundo faz isso mas benzer cachorro (SUASSUNA 2005 p 21-23)

Tanto na visatildeo Suassuniana quanta na bakhtiniana a visatildeo carnavalesca de mundo

produz formas de linguagem que acabam com qualquer registro formal vocabular ou

dificuldade de aproximaccedilatildeo entre sujeitos enunciadores Dessa forma foi produzida uma

linguagem carnavalesca de muitos recursos tiacutepica da qual encontramos exemplos em vaacuterias

cenas do Auto da Compadecida como no enterro da cachorra um dos folhetos utilizados na

composiccedilatildeo da obra no Primeiro Ato quando o Palhaccedilo adverte ao puacuteblico sobre a histoacuteria

que se desenvolveria com a discussatildeo entre Joatildeo Grilo e Chicoacute para ver se o padre benzeria ou

natildeo o cachorro da mulher do padeiro

Por essa apropriaccedilatildeo da literatura popular percebemos que haacute um cruzamento da

histoacuteria de Suassuna com o cordel escrito por Leandro Gomes de Barros (1865 ndash 1918) ndash O

Testamento do cachorro publicado no folheto intitulado ldquoDinheirordquo que recebeu de Ariano o

seguinte comentaacuterio Quando publiquei o Auto da Compadecida Raimundo Magalhatildees Juacutenior em erudito e arguto artigo chamou atenccedilatildeo para o fato de que essa histoacuteria que eu julgava anocircnima e puramente nordestina jaacute fora usada numa versatildeo parecida por Le Sage no Gil Blaacutes de Santillana Punha ele em duacutevida a autoria popular da nossa versatildeo coisa em que se enganava como se vecirc porque como agora se sabe ela eacute de Leandro Gomes de Barros [] Por outro lado depois o Auto da Compadecida foi traduzido e encenado na Europa os professores Jean Girodon e Enrique Martiacutenez Loacutepez ndash um francecircs o outro espanhol ndash mostraram que a histoacuteria eacute muito mais antiga do que Le Sage vem do norte da Aacutefrica tendo passado agrave Peniacutensula Ibeacuterica com os aacuterabes e sendo muito comum nos fabulaacuterios e novelas picarescas ibeacutericasassim como na Franccedila por Ruteboeuf (SUASSUNA apud SANTIAGO 2007 p260)

Foi no cordel ldquoO Dinheiro ou O Testamento do Cachorrordquo escrito por Leandro

Gomes de Barros (1865 ndash 1918) com a narraccedilatildeo da histoacuteria do cachorro e de seu testamento

que Ariano Suassuna encontrou ideia e material como o proacuteprio afirmava para tambeacutem

escrever suas histoacuterias no Auto da Compadecida

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Eu vi narrar um fato Que fiquei admirado Um sertanejo me disse Que nesse seacuteculo passado Viu enterrar um cachorro Com honras de um potentado Um inglecircs tinha um cachorro De uma grande estimaccedilatildeo Morreu o dito cachorro E o inglecircs disse entatildeo Mim enterra esse cachorro Inda que gaste um milhatildeo Foi ao vigaacuterio e lhe disse Morreu cachorra de mim E urubu no Brasil Natildeo poderaacute dar-lhe fim - Cachorro deixou dinheiro Perguntou o vigaacuterio assim - Mim quer enterrar cachorro Disse o vigaacuterio Oh Inglecircs Vocecirc pensa que isto aqui Eacute o paiacutes de vocecircs Disse o inglecircs Oh Cachorro Gasta tudo esta vez Ele antes de morrer Um testamento aprontou Soacute quatro contos de reacuteis Para o vigaacuterio deixou Antes do inglecircs findar O vigaacuterio suspirou - Coitado Disse o vigaacuterio De que morreu esse pobre Que animal inteligente Que sentimento tatildeo nobre Antes de partir do mundo Fez-me presente do cobre Leve-o para o cemiteacuterio Que vou o encomendar Isto eacute traga o dinheiro Antes dele se enterrar Estes sufraacutegios fiados Eacute factiacutevel natildeo salvar E laacute chegou o cachorro O dinheiro foi na frente Teve momento o enterro Missa de corpo presente Ladainha e seu rancho Melhor do que certa gente

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Mandaram dar parte ao bispo Que o vigaacuterio tinha feito O enterro do cachorro Que natildeo era de direito O bispo aiacute falou muito Mostrou-se mal satisfeito Mandou chamar o vigaacuterio Pronto o vigaacuterio chegou As ordens sua excelecircncia O bispo lhe perguntou Entatildeo que cachorro foi Que seu vigaacuterio enterrou Foi um cachorro importante Animal de inteligecircncia Ele antes de morrer Deixou agrave vossa excelecircncia Dois contos de reacuteis em ouro Se errei tenha paciecircncia Natildeo foi erro sr Vigaacuterio Vocecirc eacute um bom pastor Desculpe eu incomodaacute-lo A culpa eacute do portador Um cachorro como este Jaacute vecirc que eacute merecedor (BARROS 2005 p 5)

Como fonte da recriaccedilatildeo tambeacutem operada na cena do Auto da Compadecida o

testamento do cachorro foi estudado como recurso para o riso visto que pelo uso do Latim

comum nas pregaccedilotildees dos padres por ocasiatildeo da despedida das almas e que equipara o

ldquobichinhordquo a um ser humano o poeta brinca com o puacuteblico e faz uma criacutetica agrave ganacircncia dos

legisladores episcopais JOAtildeO GRILO Estou dizendo que se eacute desse jeito vai ser difiacutecil cumprir o testamento do cachorro na parte do dinheiro que ele deixou para o padre e para o sacristatildeo SACRISTAtildeO Que eacute isso Cachorro com testamento JOAtildeO GRILO Esse era um cachorro inteligente Antes de morrer olhava para a torre da igreja toda vez que o sino batia Nesses uacuteltimos tempos jaacute doente pra morrer botava uns olhos bem compridos prrsquoos lados daqui latindo na maior tristeza Ateacute que meu patratildeo entendeu com a minha patroa eacute claro que ele queria ser abenccediloado pelo padre e morrer como cristatildeo Mas nem assim ele sossegou Foi preciso que o patratildeo prometesse que vinha encomendar a becircnccedilatildeo e que no caso dele morrer teria um enterro em latim Que em

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troca do enterro acrescentaria no testamento dele dez contos de reacuteis para o padre e trecircs para o sacristatildeo SACRISTAtildeO Que animal inteligente Que sentimento nobre E o testamento Onde estaacute [] SACRISTAtildeO Mas eu natildeo disse que fica tudo por minha conta PADRE Por sua conta como se o vigaacuterio sou eu SACRISTAtildeO O vigaacuterio eacute o senhor mas quem sabe quanto vale o testamento sou eu PADRE Hein O testamento SACRISTAtildeO Sim o testamento PADRE Mas que testamento eacute esse SACRISTAtildeO O testamento do cachorro PADRE E ele deixou testamento PADEIRO Soacute para o vigaacuterio deixou dez contos PADRE Que cachorro inteligente Que sentimento notaacutevel JOAtildeO GRILO E um cachorro desse ser comido pelos urubus Eacute a maior das injusticcedilas PADRE Comido ele De jeito nenhum Um cachorro desse natildeo pode ser comido pelos urubus PADRE Mas que jeito pode-se dar nisso Estou com tanto medo do bispo E tenho medo de cometer um sacrileacutegio SACRISTAtildeO Que eacute isso Natildeo se trata de nenhum sacrileacutegio Vamos enterrar uma pessoa altamente estimaacutevel nobre e generosa satisfazendo ao mesmo tempo duas outras pessoas altamente estimaacuteveis nobres e sobretudo generosas Natildeo vejo mal nenhum nisso [] SACRISTAtildeO Se eacute assim vamos ao enterro Como se chamava o cachorro MULHER Xareacuteu SACRISTAcircO Xareacuteu Absolve Domine animas omnium fidelium defunctorum abomni vinculi delictorum TODOS Ameacutem (SUASSUNA 2005 p 48 - 55)

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Diante dessa quebra estabelecida por Ariano Suassuna ao propor no Auto da

Compadecida o enterro do cachorro da mulher do padeiro em mais uma das malandragens de

Joatildeo Grilo cabe aqui uma referecircncia e um entrecruzamento de cenas pois na peccedila As Vespas

de Aristoacutefanes que foi apresentada pela primeira vez em 422 aC no contexto da Guerra do

Peloponeso haacute uma humanizaccedilatildeo de dois catildees que satildeo acusados de roubar comida e por isso

seratildeo julgados

Na peccedila as atitudes de Diceoacutepolis devem ser entendidas como a reaccedilatildeo de um

Aristoacutefanes que procura satirizar o mau funcionamento das instituiccedilotildees democraacuteticas

centrando-se sobretudo nos tribunais A criacutetica seraacute trabalhada a partir de Filocleacuteon filho de

Bdelicleacuteon um velho juiz que encontra nas atividades juriacutedicas sua fonte de rendimento

Recriando-se em cena um tribunal domeacutestico o que chama a atenccedilatildeo do leitor eacute o

julgamento de um catildeo acusado de roubo por outro catildeo ndash poreacutem representativos de dois

poliacuteticos da eacutepoca ndash que a peccedila manifesta a cada cena pela corrupccedilatildeo que domina as

instituiccedilotildees juriacutedicas atenienses

A comeacutedia inicia com um diaacutelogo entre Soacutesias e Xacircntias escravos de Filocleacuteon

que foram orientados a vigiar o velho juiz natildeo deixando que ele vaacute para o Tribunal Pelos

dois personagens o poeta explica aos espectadores a ldquodoenccedilardquo que ataca Filocleacuteon Afirma

Xantias Vocecircs estatildeo perdendo tempo nenhum de vocecircs vai esclarecer o caso Se vocecircs estatildeo ansiosos por saber faccedilam silecircncio vou dizer qual eacute mesmo a doenccedila de meu senhor eacute a paixatildeo pelos tribunais A paixatildeo dele eacute julgar ele fica desesperado se natildeo consegue ocupar o primeiro banco dos juiacutezes Agrave noite ele natildeo goza um instante de sono Se por acaso fecha os olhos seu proacuteprio espiacuterito fica olhando para a clepsidra A paixatildeo dele pelo voto no tribunal eacute tatildeo grande que faz ele acordar apertando trecircs de seus dedos como se oferecesse incenso aos deuses no dia da lua novaQuando ele vecirc escrito nos muros ldquoDemo encantador filho de Pirilampordquoescreve ao lado ldquoEncantadora urna de votosrdquo Se seu galo cantava durante a noite ele dizia que algum acusado sem duacutevida usava essa humilde ave para fazecirc-lo acordar mais tarde do que era necessaacuterio Logo depois do jantar ele pedia as sandaacutelias corria para o tribunal em plena noite e adormecia laacute colado a uma coluna como uma ostra agrave concha Sua severidade o levava a traccedilar sobre as plaquetas do voto a linhada condenaccedilatildeo e ficava com os dedos cheios de cera Com receio de natildeo teraacute pedrinha para o voto ele tinha no jardim de sua casa um canteiro de pedrinhas que renovava sem parar Esta era a sua loucura E as censuras deixavam o coroa excitadiacutessimoTambeacutem fechamos o ferrolho da porta principal para impedi-lo de sair pois esta ldquodoenccedilardquo deixava o filho desesperado No comeccedilo este usa a doccedilura lhe pede para natildeo ficar todo o tempo com o manto de sair e permanecer em casa Depois daacute um banho no pai e purifica ele mas tudo isto eacute inuacutetil Ele sujeita o pai aos exerciacutecios sagrados dos Coribantes opai foge com o tambor e corre para o tribunal querendo julgar Diante do fracasso dessas tentativas ele leva o paia Aacuteigina para se deitar de noite no templo de Ascleacutepio mas quando amanhece o dia laacute estaacute o velho no recinto reservado aos juiacutezes no tribunalFazemos o possiacutevel para impedi-lo de sair mas ele escapa pelas calhas e pelos canos de aacuteguas das chuvas onde aparecia um buraco noacutes tapaacutevamos e fechaacutevamos imediatamente todas as saiacutedas mas ele punha paus nos muros e saltava de um lado para o outro como se fosse um gato Afinal pusemos redes fechando todo o acesso ao jardim e ficaacutevamos de guarda O

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velho se chama Filoclecircon nenhum nome ficaria melhor nele O nome do filho dele eacute Bdeliclecircon ele faz tudo para dominar o gecircnio fogoso do pai (ARISTOacuteFANES As Vespas p38-41 ndash KURY 2004)

A cena ganha dinacircmica com o filho do velho Juiz assustado com a presenccedila dos

outros magistrados vestidos de vespas em sua casa

BDELICLEcircON Deus nosso senhor Vocecirc que preside a entrada de minha casa receba estes novos sacrifiacutecios que lhe oferecemos pela primeira vez em favor de meu pai Adoce o humor aacutespero e austero dele Deixe cair sobre o coraccedilatildeo dele algumas gotas de mel para que de hoje em diante ele seja clemente para com os homens mais benevolente para com o acusado que com o acusador enfim seja sensiacutevel agraves preces dirigidas a vocecirc Tire do caraacuteter dele todo o fel e todas as folhas de urtiga CORO Unidos de todo o coraccedilatildeo aos sentimentos que vocecirc expressou juntamos nossos votos aos seus neste cargo que vocecirc exerce de fato vocecirc se torna querido por todos noacutes depois que vimos vocecirc mais zeloso para com o povo que qualquer dos juiacutezes mais novos que vocecirc

Um criado traz dois personagens disfarccedilados de CACHORROS um dos disfarces reproduz as feiccedilotildees de Laques e o outro as de Cleacuteon

BDELICLEcircON Se algum juiz estaacute laacute fora que se apresse a entrar uma vez iniciadas as falas ningueacutem mais poderaacute entrar FILOCLEcircON Quem eacute este acusado A que pena ele estaacute sujeito XANTIAS Como se fosse o promotor Ouccedilam agora a acusaccedilatildeo ldquoO cachorro da vila de Cidateneacuteia acusa Labes da vila de Aixone de haver contra toda a justiccedila devorado sozinho um queijo da Siciacuteliardquo Que sua pena seja a de usar uma coleira bem apertada FILOCLEcircON Ou entatildeo uma morte de catildeo se ele for condenado BDELICLEcircON Aqui estaacute Labes o outro acusado FILOCLEcircON Ah Bandido Ele tem mesmo a pinta de

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um ladratildeo e se orgulha de me tapear rangendo os dentes Onde estaacute o queixoso o cachorro de Cidateneacuteia 1ordm CACHORRO Au Au BDELICLEcircON Aqui estaacute ele FILOCLEcircON Este eacute um outro Labes bom latidor e lambedor de panelas SOSIAS Como se fosse o arauto Silecircncio Todos sentados Vocecirc objeto da acusaccedilatildeo suba agrave tribuna FILOCLEcircON Durante a fala dele vou me servir de sopa e engoli-la rapidamente XANTIAS Como promotor Senhores juiacutezes Os senhores vatildeo ouvir minha acusaccedilatildeo contra este reacuteu Ele cometeu em relaccedilatildeo agrave cidade e agrave frota de Atenas um atentado indecoroso Ele se esgueirou para um canto depois de roubar um enorme queijo da Siciacutelia aproveitando-se das trevas FILOCLEcircON O roubo dele estaacute suficientemente comprovado o patife acaba de deixar cair no chatildeo um naco de queijo extremamente malcheiroso XANTIAS Pedi a ele que me deixasse provar um pedaccedilo do queijo mas ele natildeo me atendeu Quem vai querer ajudar vocecircs se seu cachorro fiel natildeo deixou nem um pouquinho para mim FILOCLEcircON Ele natildeo lhe deu nada mesmo XANTIAS Nadinha nem a mim nem a seu companheiro FILOCLEcircON Aiacute estaacute um trapalhatildeo que vai ferver mais que estas lentilhas BDELICLEcircON Em nome dos deuses meu pai natildeo profira a sentenccedila antes de ter ouvido as duas partes FILOCLEcircON Mas a coisa estaacute clara meu caro ela fala por si mesma BDELICLEcircON Mas preste atenccedilatildeo para natildeo absolver o acusado este cachorro eacute o mais guloso e o mais egoiacutesta que jaacute vi ele lambe num piscar de olhos todos os cantos de umahellip cidade e devora tudo FILOCLEcircON E natildeo tenho dinheiro nem para mandar

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consertar meu vasohellip 2ordm CACHORRO Entatildeo castigue o acusado uma uacutenica cozinha natildeo pode encher a barriga de dois ladrotildees Tomara que eu natildeo tenha latido no vazio e em vatildeo senatildeo nunca mais vou latir FILOCLEcircON Quanta falta de vergonha Aiacute estaacute um grande trapaceiro Que pensa vocecirc dele meu galo Para mim ele diz ldquosimrdquo Guarda do tribunal Onde estaacute vocecirc Que algueacutem me decirc um penico SOSIAS Fingindo ser o guarda do tribunal Pegue vocecirc mesmo o penico estou ocupado fazendo a citaccedilatildeo das testemunhas Apresentem-se as testemunhas de acusaccedilatildeo a Laques Um prato um pilatildeo uma focircrma de queijo uma grelha uma panela e outros utensiacutelios de cozinha Vocecirc ainda estaacute mijando Ainda natildeo acabou FILOCLEcircON Apontando para o acusado Ainda natildeo mas penso que aquele ali vai fazer coisa pior hoje ele vai se borrar BDELICLEcircON Dirigindo-se ao CACHORRO acusador Entatildeo vocecirc seraacute sempre tatildeo severo e intrataacutevel para com o acusado Por que esta ferocidade FILOCLEcircON Dirigindo-se ao acusado Suba agrave tribuna e defenda-se Por que este silecircncio Fale SOSIAS Com certeza ele nada tem a dizer BDELICLEcircON Vocecirc se engana acontece com ele o que aconteceu haacute muito tempo com Tuciacutedides quando acusou Peacutericles a surpresa da acusaccedilatildeo paralisou completamente as mandiacutebulas de Peacutericles Afaste-se vou assumir a sua defesa Eacute uma tarefa difiacutecil senhores juiacutezes defender um cachorro que eacute alvo de acusaccedilotildees extremamente odiosas poreacutem de qualquer maneira falarei Este cachorro eacute valente e caccedila lobos FILOCLEcircON Ele eacute um ladratildeo e um conspirador BDELICLEcircON Natildeo por Zeus Natildeo haacute um cachorro melhor no mundo Ele seria capaz de cuidar de um grande rebanho de carneiros

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FILOCLEcircON Que importa tudo isto se ele comeu o queijo BDELICLEcircON Que importa Ele luta para defender vocecirc guarda sua casa e aleacutem disto tem outras qualidades Se ele rouba uma coisinha vocecirc deve perdoaacute-lo Reconheccedilo que ele natildeo eacute um grande tocador de ciacutetara FILOCLEcircON Eu gostaria de que ele nem soubesse ler ele natildeo faria a apologia de seu crime BDELICLEcircON Ouccedila minhas testemunhas juiz imparcial Aproxime-se facatildeozinho e fale em voz alta entatildeo vocecirc que estava incumbido dos pagamentos responda com clareza vocecirc natildeo cortou as partes que deveriam ser distribuiacutedas aos soldados FILOCLEcircON Como vou suportar a ideacuteia de ter absolvido um acusado Que seraacute de mim Deuses veneraacuteveis Me perdoem Fiz isso tudo sem querer este natildeo eacute o meu haacutebito (ARISTOacuteFANES As Vespas p153-173 ndash KURY 2004)

Essa visatildeo criacutetica e carnavalesca de mundo que se opotildee ao mau serviccedilo das

instituiccedilotildees produzida nas cenas tanto da peccedila As Vespas quanto a partir dos folhetos de

cordel traz em si uma ideia de inacabamento de quebra imperfeiccedilatildeo e uma forma de

expressatildeo ambivalente por isso ela eacute dinacircmica e mutaacutevel

As formas e siacutembolos irreverentes da linguagem carnavalesca caracterizam-se

principalmente pela coerecircncia sequencial das coisas ldquoao avessordquo e pelas diversas formas de

paroacutedias degradaccedilotildees e atitudes burlescas instrumento que tanto permeiam Acarnenses o

auto de Suassuna e o auto de Gil Vicente do qual trataremos no Quinto Ato

Sobre a ideia de quebra na cena teatral Bakhtin (2002) alerta que a ideia

carnavalesca de que ele trata natildeo estaacute relacionada ao carnaval dos ldquotempos modernosrdquo mas a

uma cosmovisatildeo milenar e universalmente popular Segundo o autor a cultura do carnaval

compreende quatro grandes categorias que envolvemos festejos carnavalescos as obras

cocircmicas representadas nas praccedilas puacuteblicas os insultos os juramentos os folguedos populares

entre outros

Assim o rito do carnaval na perspectiva de Bakhtin eacute constituiacutedo pela vitoacuteria de

uma forma de libertaccedilatildeo momentacircnea da verdade predominante e do estatuto soacutecio-poliacutetico-

econocircmico vigente Desta forma eacute possiacutevel propor a carnavalizaccedilatildeo como dispositivo

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presente no texto que compotildee a nossa pesquisa E para isso relacionaremos carnavalizaccedilatildeo e

polifonia ideias propostas por Mikhail Bakhtin para designar um modo diferente de narrar

Na concepccedilatildeo do autor segundo Gomes (2014) o termo ldquopolifoniardquo natildeo pode ser

relacionado agrave realidade heterogecircnea da linguagem quando vista pelo acircngulo da pluralidade

das ldquoliacutenguassociaisrdquo e por isso natildeo deve ser confundido com os termos ldquoheteroglossiardquo ou

ldquoplurivocidaderdquo sendo a Polifonia para Bakhtin um universo no qual todas as vozes e

consciecircncias satildeo imisciacuteveis e equivalentes ou seja plenas de valor mantendo com outras

vozes do discurso uma relaccedilatildeo de plena igualdade realizaacuteveis para se contrapor ao

estabelecido De acordo com Bakhtin

A multiplicidade de vozes e consciecircncias independentes e imisciacuteveis e a autecircntica polifonia de vozes plenivalentes constituem de fato a peculiaridade fundamental dos romances de Dostoievski [] eacute precisamente a multiplicidade de consciecircncias equipolentes e seus mundos que aqui combinam numa unidade de acontecimento mantendo sua imiscibilidade (MIKHAIL BAKHTIN 2002 p4)

Dessa forma eacute importante ressaltar que os discursos que circulam na sociedade

tecircm pesos poliacuteticos diferenciados em funccedilatildeo dos jogos de poder e do proacuteprio jogo luacutedico

social defendido por Huizinga (1999) Portanto essas ldquovozesrdquo possiacuteveis de serem percebidas

as ironias os textos polifocircnicos aparecem em oposiccedilatildeo agraves vozes que tentam passar

despercebidas nos textos monofocircnicos produzindo um ldquoefeito de apagamentordquo em um

esforccedilo contiacutenuo de impor determinados discursos como centro das relaccedilotildees de poder E

nesse campo movediccedilo tanto Aristoacutefanes quanto Ariano Suassuna encontram espaccedilos para

confrontarem as falas das instituiccedilotildees e seus legisladores seja em Atenas ou Taperoaacute

Segundo Rodrigues (2010) a polifonia e a monofonia satildeo efeitos de sentido cuja

existecircncia eacute possiacutevel em virtude dos procedimentos discursivos Assim tomando como

premissa a afirmativa da autora entendemos que a multiplicidade de vozes autorais diluiacutedas

entre as personagens consolidadas em seus discursos bem como a carnavalizaccedilatildeo dos

personagens do Auto da Compadecida provoca o riso que subverte os poderes atraveacutes de

diversas estrateacutegias como as reproduccedilotildees moralizantes dos diaacutelogos que autorizam o uso da

moral e potencializam as cenas cocircmicas

Ainda de acordo com Rodrigues (2002 p 42)

As relaccedilotildees dialoacutegicas [] satildeo um fenocircmeno universal que penetra [] tudo o que tem sentido e importacircnciardquo Dessa forma o dialogismo eacute a de um princiacutepio constitutivo da linguagem natildeo sendo esse ldquodiaacutelogordquo necessariamente um ponto de

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convergecircncia mas sim um espaccedilo de lutas entre os sujeitos do discurso pois ldquoonde comeccedila a consciecircncia comeccedila o diaacutelogo

Assim a alteridade define o sujeito pois o outro eacute fundamental para a sua

constituiccedilatildeo A relaccedilatildeo existente entre os sujeitos e a alteridade propotildee um jogo de imagens

que interfere na produccedilatildeo dos discursos das identidades e consequentemente dos sujeitos O

dialogismo tem como sua forma maacutexima agrave polifonia

Elemento das cenas cocircmicas as falas segundo Rodrigues (2010 p 62) natildeo estatildeo apenas justapostas como se fossem peccedilas de um brinquedo de montar encontram-se em um estado de interaccedilatildeo e de embate ldquotensordquo e contiacutenuo como os dentes de uma engrenagem proporcionando jogos linguiacutesticos e discursivos provocados pelo desenvolvimento de uma situaccedilatildeo de qui pro quoacute no Auto da Compadecida em funccedilatildeo de um plano de Joatildeo Grilo deixam o Padre Joatildeo em maus lenccediloacuteis com o Major Antocircnio Moraes enquanto o Padre fala sobre benzer a cachorra o Major fala sobre seu filho que estaacute doente e vai para o Recife tratando-se aiacute de uma confusatildeo no plano da realizaccedilatildeo e entendimento da linguagem engenhosamente construiacuteda por Joatildeo Grilo

PADRE Eacute o que vivo dizendo do jeito que as coisas vatildeo eacute o fim do mundo Mas que coisa o trouxe aqui Jaacute sei natildeo diga o bichinho estaacute doente natildeo eacute ANTOcircNIO MORAES Eacute jaacute sabia PADRE Jaacute aqui tudo se espalha num instante Jaacute estaacute fedendo ANTOcircNIO MORAES Fedendo Quem PADRE O bichinho ANTOcircNIO MORAES Natildeo Que eacute que o senhor quer dizer PADRE Nada desculpe eacute um modo de falar ANTOcircNIO MORAES Pois o senhor anda com uns modos de falar muito esquisitos PADRE Peccedilo que desculpe um pobre padre sem muita instruccedilatildeo Qual eacute a doenccedila Rabugem ANTOcircNIO MORAES Rabugem PADRE Sim jaacute vi um morrer disso em poucos dias Comeccedilou pelo rabo e espalhou-se pelo resto do corpo ANTOcircNIO MORAES Pelo rabo PADRE Desculpe desculpe eu devia ter dito ldquopela caudardquo Deve-se respeito aos enfermos mesmo que sejam os de mais baixa qualidade ANTOcircNIO MORAES Baixa qualidade Padre Joatildeo veja com quem estaacute falando A Igreja eacute uma coisa respeitaacutevel como garantia da sociedade mas tudo tem limite PADRE

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Mas o que foi que eu disse ANTOcircNIO MORAES Baixa qualidade Meu nome todo eacute Antocircnio Noronha de Brito Moraes e esse Noronha de Brito veio do Conde dos Arcos ouviu Gente que veio nas caravelas ouviu PADRE Ah bem e na certa os antepassados do bichinho tambeacutem vieram nas caravelas natildeo eacute isso ANTOcircNIO MORAES Claro Se meus antepassados vieram eacute claro que os dele vieram tambeacutem Que o senhor que insinuar Que a matildee dele procedeu mal PADRE Mas uma cachorra ANTOcircNIO MORAES O quecirc PADRE Uma cachorra ANTOcircNIO MORAES Repita PADRE Natildeo vejo nada de mal em repetir natildeo eacute uma cachorra mesmo ANTOcircNIO MORAES Padre eu natildeo mato o senhor agora mesmo porque o senhor eacute padre e estaacute louco [] (SUASSUNA 2005 p 32 -34)

Ainda sobre as falas a mesma autora nos relembra que o proacuteprio Suassuna teceu

comentaacuterio sobre a existecircncia do caraacuteter polifocircnico instaurador do riso no Auto da

Compadecida Como observado pelo proacuteprio Suassuna o Auto da Compadecida trouxe o riso instaurado atraveacutes das polissemias e por meio da ldquofalhardquo nada linguagem O riso eacute provocado na cena descrita anteriormente em funccedilatildeo de as reacuteplicas dos diaacutelogos estarem situadas em contextos distintos causando um desacordo entre as falas dos personagens dessa forma a interaccedilatildeo verbal aconteceu de forma equivocada para os interlocutores para o Padre Joatildeo era a cachorra (animal) do Major que estava doente para Antocircnio Moraes sua mulher estava sendo ofendida pelo padre Portanto o ldquoencaixerdquo das falas faz o qui pro quoacute funcionar proporcionando efeitos de sentido diferentes para cada sujeito da cena enunciativa (RODRIGUES 2010 p 6)

Outra estrateacutegia importante para a compreensatildeo do discurso como revelador do social

encontra-se nas palavras de Bakhtin (2003 p48) ao afirmar que o discurso se efetiva pela

praacutetica contextualizada entre emissor e receptor fato recorrente no Auto da Compadecida e

em Acarnenses visto que em ambas as peccedilas a intenccedilatildeo do autor de colocar para o

leitorouvinte seus objetivos eacute muito clara e social

O diaacutelogo eacute um processo de relacionamento reciacuteproco entre as pessoas que satildeo coautores do que acontece no diaacutelogo Desta forma aqueles que participam do diaacutelogo tecircm uma compreensatildeo ativa e antecipatoacuteria do que foi dito e ouvido Portanto tudo o que eacute dito sempre tem um projeto e eacute sempre incompleto pois o entendimento estaacute ancorado em uma accedilatildeo social conjunta Assim trabalhar com essa

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condiccedilatildeo dialoacutegica constitutiva do ser humano e seu potencial transformador afeta nossa compreensatildeo e as praacuteticas que dialogam como recurso fundamental em sua accedilatildeo e reflexatildeo Dado o exposto eacute possiacutevel entender como as praacuteticas dialoacutegicas generativa preservam troca dialoacutegica a singularidade de cada reuniatildeo a construccedilatildeo coordenada de significado emoccedilatildeo e presenccedila dos participantes priorizando como um dos seus objetivos e tarefa a criaccedilatildeo contextualizada de novas possibilidades discursivas 16

Rodrigues (2010) reforccedila que no jogo das desconstruccedilotildees promovidas pela

linguagem no texto de Ariano Suassuna atraveacutes dos causos que o autor engenhosamente

(des)constroacutei nas reflexotildees das personagens sobretudo de Chicoacute produzem a comicidade e

estabelecem o sentido do dito que estaacute a serviccedilo do social

Dessa forma as fronteiras da liacutengua e os seus lugares de transgressotildees podem assim ser observados atraveacutes de uma situaccedilatildeo de qui pro quoacute Ao estabelecer o deslizamento de sentidos como regra o qui pro quoacute coloca em cena a comicidade Nos jogos com a liacutengua esses niacuteveisquando acionados podem sofrer uma espeacutecie de mutaccedilatildeo por causa dos deslocamentos e descentramentos que tecircm como consequecircncia o riso (RODRIGUES 2010 p 7)

No Auto da Compadecida o caraacuteter polifocircnico eacute dinacircmico e se instaura tambeacutem

atraveacutes do entrecruzamento das artimanhas do Joatildeo Grilo e de Chicoacute fato concretizado por

exemplo pelo uso do latim na cena do enterro aqui jaacute citada o que forccedila de forma jaacute

esperada a participaccedilatildeo do puacuteblico visto que o caraacuteter religioso estaacute ligado agrave

cena(SUASSUNA 2005 p 48-55)

Pela apropriaccedilatildeo discursiva e pela sobreposiccedilatildeo de cenas cocircmicas (re)criadas pelo

posicionamento das personagens no Auto da Compadecida tem-se o reforccedilo de que o riso o

humor e a ironia tecircm sido grandes recursos na literatura de grandes autores que despertam na

audiecircncia no instante do abrir de cortinas a gargalhada assim como Ariano Suassuna que

usa do riso como ritual de escapismo e ou como criacutetica moralizante Leacutelia Parreira (2006 p

45) argumenta que a obra irocircnica eacute a siacutentese de noccedilotildees antiteacuteticas accedilatildeo e natildeo contemplaccedilatildeo

16 El diaacutelogo es un proceso de relacioacuten reciacuteproca entre personas quienes son coautores de aquello que sucede en el diaacutelogo De esta manera quienes participan en el diaacutelogo tienen una comprensioacuten activa y anticipatoria de lo dicho y lo escuchado Por ello todo lo que se dice tiene siempre un proyecto y siempre es incompleto ya que la comprensioacuten estaacute anclada en una accioacuten social conjunta Asiacute trabajar con esta condicioacuten dialoacutegica constitutiva del ser humano y su potencial transformativo incide en nuestra comprensioacuten y en las praacutecticas que tienen al diaacutelogo como recurso fundamental en su accioacuten y reflexioacuten A partir de lo anterior es posible entender como las praacutecticas dialoacutegicas generativas preservan el intercambio dialoacutegico la singularidad de cada encuentro la construccioacuten coordinada de significados la emocionalidad y la presencia encarnada de los participantes jerarquizando como uno de sus objetivos y tareas la creacioacuten contextuada de nuevas posibilidades (Traduccedilatildeo nossa)

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passiva alianccedila entre objetividade e subjetividade mistura do seacuterio e da brincadeira o sonho

e a realidade o sublime e o pateacutetico o real e o aparente

As accedilotildees de Ariano Suassuna em toda a trama do Auto nos revelam que eacute

justamente por meio da ironia que o homem ri de si mesmo de suas crenccedilas e ingenuidades

indicando o que existe de representaccedilatildeo e de fingimento nos sistemas e ideologias

Em Aristoacutefanes comeccedilaremos identificando os recursos cocircmicos que tecircm o

objetivo de desvalorizar Lacircmaco traduzido por Batalhatildeo efetivamente aos olhos do puacuteblico e

passaremos para a anaacutelise de seu valor estrateacutegico A cena em que o personagem aparece pela

primeira vez estaacute localizada apoacutes o confronto entre o heroacutei cocircmico Diceoacutepolis e o coro

camponecircs de Acarnes O coro persegue Diceoacutepolis para apedrejaacute-lo por ter realizado uma

treacutegua particular com os Peloponeacutesios

Diceopolis vestido com o disfarce de Teacutelefo que Euriacutepides lhe emprestou tenta

persuadir o coro com suas razotildees mas soacute consegue convencer uma parte dele O semicoro que

ainda se opotildee agrave paz privada do heroacutei pede entatildeo ajuda a Batalhatildeo e ele aparece pela primeira

vez em cena apelando ao seu chamado (vv 557-574)

COREUTA 1 Eacute verdade seu safado mundiccedila Tal coisa tu ismoleuse atreve a dizecirc pra noacutes E se teve um sicofanta22 tu ainda fala mal dele COREUTA 2 Por Poseidon as coisas que ele taacute dizeno Satildeo tudo justa e ninhuma delas eacute falsa COREUTA 1 Por elas ser justa era preciso ele taacute dizeno Mas ele num vai ficaacuterino por se atrevecirc a falaacute assim COREUTA 2 Eh tu vai correcirc pra donde Ficrsquo aiacute Se tu batecirc Neste home tu vai eacute vuaacute pelo ar bem ligerin COREUTA 1 Eh Bataiatildeo tu que solta faiacutesca pelos oacutei Vem me ajudaacute tu do penacho da Goacutergona aparece Eh Bataiatildeo oacute amigo oacute camarada E se tem aiacute um taxiarcaocirc general ocirc Defensor dos muro vem me ajudaacute Depressa pois tocirc metade dominado BATALHAtildeO De onde vem o grito de guerra que ouvi Aonde devo levar socorro Aonde devo lanccedilar o tumulto Quem despertou a Goacutergona do armaacuterio

Neste momento a linguagem de LacircmacoBatalhatildeo eacute caracterizada por seu tom

eacutepico O termo gritar tem na Iliacuteada em geral o sentido de um grito de guerra Da mesma

forma o kydoimoacutes (tumulto guerrero) eacute tambeacutem de origem homeacuterica O uso do leacutexico eacutepico

aqui eacute paroacutedico porque a cena se desenrola fora de um contexto de batalha e aleacutem disso o

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inimigo eacute um homem uacutenico e inofensivo o camponecircs DiceoacutepolisJustinoacutepolis A paroacutedia

eacutepica eacute entatildeo o primeiro recurso cocircmico usado para ridicularizar a LacircmacoBatalhatildeo

Em geral a paroacutedia costuma ter alvos intertextuais o modelo parodiado Mas

neste caso a paroacutedia eacutepica tem como alvo principal natildeo o intertexto homeacuterico mas o caraacuteter

partidaacuterio da guerra Aristoacutefanes usa um recurso tradicional da literatura cocircmica mas usa-a de

uma forma diferente natildeo mais para zombar do intertexto parodiado mas para servir a saacutetira

contra o seu alvo central A primeira cena apresenta outra seacuterie de recursos cocircmicos que tecircm a

funccedilatildeo de degradar o alvo aos olhos do puacuteblico A resposta de Justinoacutepolis a Batalhatildeo eacute na

verdade zombadora JUSTINOacutePOLIS

Oacute Bataiatildeo heroacutei dos penacho e das tropardquo(v 575)

A rima interna entre loacutephon 17 e loacutechon 18 gera um efeito zombeteiro humoriacutestico

que tambeacutem reduz o ridiacuteculo agrave denominaccedilatildeo eacutepica de heroacutei Este verso combina entatildeo

como recursos cocircmicos paroacutedia eacutepica e humor verbal atraveacutes da rima O efeito humoriacutestico

da rima eacute reforccedilado aleacutem disso pela aliteraccedilatildeo do lambda que liga o nome do personagem

aos dois termos rimados Por outro lado esse verso inaugura o motivo cocircmico do ridiacuteculo das

armas do personagem que se repetiraacute sempre nas cenas protagonizadas por Lacircmaco que eacute a

personificaccedilatildeo da batalha

A recepccedilatildeo de Diceoacutepolis revela o papel que o heroacutei cocircmico vai desempenhar em

relaccedilatildeo a Lacircmaco em todas as cenas em que se enfrentam seu papel seraacute o do zombador o

satirista Essa funccedilatildeo estaacute relacionada em si mesma agrave posiccedilatildeo do enunciador-autor e agrave proacutepria

atividade do autor o ridiacuteculo Ou seja Lacircmaco natildeo eacute apenas zombado no texto - por exemplo

por meio dos recursos paroacutedicos que acabamos de mencionar que satildeo colocados na boca do

mesmo Lacircmaco - mas eacute tambeacutem daquela zombaria que se reforccedila pela zombaria do proacuteprio

caraacuteter de Diceoacutepolis A degradaccedilatildeo cocircmica de Lacircmaco eacute entatildeo produzida a partir da instacircncia

17 Normalmente os capacetes eram enfeitados com phaacuteloi ldquopenachosrdquo feitos de caudas de cavalos hippoacutekomoikoacuterytheslamproicircsiphaacuteloisi- ldquocapacetes guarnecidos de cauda equumlina com brilhantes penachosrdquo(Il XIII 132) e koacuterythosphaacutelonhippodaseiacutees- ldquocapacete de penacho equumlinordquo (Il IV 459) O vocaacutebulo loacutephos tambeacutem eacute utilizado como ldquopenachordquo loacutephonhippiokhaiacutetenndash ldquopenacho com crina de cavalordquo (Il VI 469) Merece destaque o penacho da koacuterys do capacete de Aquiles que era koacuterytha kryacuteseonloacutephonndash ldquocapacete com penacho douradordquo (Il XVIII 611-2)Aleacutem da koacuterys existe um outro tipo de capacete a kyneacutee Odisseu tinha uma kyneacutee que eacute um capacete formado por pele de catildeo ou couro qualquer (Il X 257 261) A parte exterior do capacete de Odisseu tinha ldquoos dentes reluzentes de um javali com presas brancas dispostos em grande nuacutemero com arte e habilidaderdquo (Il X 261-5) Este tipo de capacete que Meriacuteone deu ao rei de Iacutetaca eacute mencionado uma uacutenica vez em HomeroIn Os equipamentos beacutelicos dos heroacuteis homeacutericos Prof Me Luciene de Lima Oliveira- wwwe-publicacoesuerj2012 18 Tropa armada

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enunciativa - os recursos cocircmicos usados pelo proacuteprio autor - e eacute duplicada da instacircncia

interna para a accedilatildeo dramaacutetica por meio do escaacuternio do personagem do heroacutei cocircmico

Diceoacutepolis eacute um alter ego do autor uma voz autorizada um duplo do proacuteprio

Aristoacutefanes um satiacuterico que ridiculariza dentro da cena o alvo cocircmico central da obra

ridiacuteculo das armas do guerreiro inaugurado no verso 575 com a referecircncia agrave tropa eacute retomado

em toda essa cena e mais tarde nas cenas posteriores protagonizadas por Diceoacutepolis e

Lacircmaco (vv 575-585) JUSTINOacutePOLIS Oacute Bataiatildeo heroacutei dos penacho e das tropa CORO Oacute Bataiatildeo acredita que este home faz eacute tempo Que insulta a nossa cidade todinha BATALHAtildeO Tal coisa tu mendigo te atreves a dizer JUSTINOacutePOLIS Oacute Bataiatildeo oacute heroacutei me perdoe Se seno ismoleu disse alguma bestecircra BATALHAtildeO E o que foi que tu disseste de noacutes Natildeo vais falar JUSTINOacutePOLIS Nem sei mais o que foi Tocirc eacute arripiadin de medo das arma Mas por favocirc afasta de mim esta marmota BATALHAtildeO Pronto JUSTINOacutePOLIS Virrsquo ela de costa pra mim BATALHAtildeO Estaacute virada JUSTINOacutePOLIS Vaiacute me daacute a pena do teu elmo BATALHAtildeO Toma a pluma JUSTINOacutePOLIS Segura a minha cabeccedila Que eu vocirc inguiaacute Tenho eacute nojo desses penacho aiacute

A verdade eacute que seja na comeacutedia aristofacircnica ou no auto suassuniano a estrutura

das cenas revela a construccedilatildeo estrateacutegica que ambos os autores utilizam para criticar e

moralizar atraveacutes de piadas ridicularizaccedilotildees polifonias discursivas e ironias que satildeo

facilmente recebidas e aceitas pelo puacuteblico que diante dos gestos e vozes das personagens

conseguem ser partiacutecipes da ideia gerando empatia e cumplicidade cocircmicas imediatas

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TERCEIRO ATO

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3 AS DUAS PECcedilAS ndash O POETA USA MAacuteSCARAS

Eacute fato que associado aos tempos aacuteureos do teatro grego da Eacutepoca Claacutessica estaacute

sem duacutevida o uso da maacutescara Vaacuterias tecircm sido as razotildees apontadas para justificar este fato

tais como a necessidade de melhorar a projeccedilatildeo vocal a possibilidade de facultar aos

espectadores uma visualizaccedilatildeo mais eficaz das personagens ou a exigecircncia do recurso a um

adereccedilo imprescindiacutevel num teatro onde natildeo representavam mulheres

O termo grego prosopon 19 segundo Castiajo (2012) significa lsquofacersquo ou lsquomaacutescararsquo

designava este indispensaacutevel adereccedilo confeccionado com fino linho estucado que era

composto por uma peruca de cabelo natural que podia ser curto ou comprido e de vaacuterias

cores e por um rosto que se ajustava agrave cabeccedila do ator e que possuiacutea apenas uma abertura

para os olhos e outra para a boca bastante alargadas para facilitar a visibilidade da audiecircncia

e para obviamente permitir as condiccedilotildees necessaacuterias ao desempenho do ator a visatildeo e a

emissatildeo vocal Eacute preciso lembrar aqui que como siacutembolo do teatro tatildeo conhecido a maacutescara

era um recurso usado para ampliar a voz do inteacuterprete especialmente na declamaccedilatildeo e ateacute

hoje usamos o termo ldquovoz na maacutescarardquo que corresponde ao aspecto da ressonacircncia superior

o elemento que amplifica a voz fator de grande importacircncia no trabalho do ator capaz de

impulsionar sua voz sem esforccedilo ou com um miacutenimo esforccedilo e ser ouvido plenamente por

todos os ouvintes presentes na plateia

Alguns estudiosos como Pickard-Cambridge (1953) defendem que as primeiras

maacutescaras usadas durante a Idade MeacutediaEacutepoca Claacutessica se caracterizavam por serem bem

mais individualizadas e a falta de expressividade que as feiccedilotildees da maacutescara assumiam

durante a encenaccedilatildeo despertava no entanto no puacuteblico significados muacuteltiplos quando o seu

uso era conjugado com os elementos que constituem o schemandash a postura e os movimentos ndash

a voz humana dos quais nos ocuparemos mais a frente mas que contribuiacuteam de forma

contundente para transmitir agrave audiecircncia sobretudo emoccedilotildees e estados de espiacuterito vividos pelas

personagens que o uso da maacutescara natildeo permitia que transparecessem

Ainda de acordo com Castiajo (2012) essas maacutescaras eram tiacutepicas da comeacutedia

chamadas de maacutescaras-retrato e atraveacutes delas cuja existecircncia eacute atestada pela tradiccedilatildeo

recorria-se a traccedilos comuns das figuras puacuteblicas para se efetivar as representaccedilotildees no espaccedilo

cecircnico

19 Marshall (1999 188) defende que o fato de etimologicamente o termo grego significar tanto lsquofacersquo como lsquomaacutescararsquo eacute um exemplo claro de como estes dois conceitos se imiscuiacuteam no pensamento grego In CASTIAJO Isabel O Teatro Grego em Contexto de Representaccedilatildeo IUCV Portugal Coimbra 2012

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De qualquer forma e apesar deste caraacuteter impessoal das maacutescaras e da distacircncia que separava atores e espectadores o sexo e a idade dos atores mascarados poderiam ser identificados pelo puacuteblico pois as maacutescaras brancas eram postas em cena para representar uma personagem feminina para uma masculina uma escura Em relaccedilatildeo agrave idade era possiacutevel distinguir trecircs geraccedilotildees diferentes jovens adultos e velhos Assim da combinaccedilatildeo destas duas variaacuteveis resultaram seis tipos convencionais de maacutescaras diferentes usadas tanto na trageacutedia como na comeacutedia a de homem velho (geron) cuja face era escura a barba e os cabelos brancos e com a particularidade de possivelmente ser calvo a de homem maduro (aner)[] (CASTIAJO 2012p8)

Certo eacute que parece legiacutetimo concordar com Marshall (1999) quando afirma que o

uso da maacutescara resulta mais do fato de o espaccedilo de performance ser apropriado para isso do

que da ideia de ser essencial representar mascarado para se transmitir a moral discursiva eou

a consciecircncia de um outro fato que sugere que o motivo subliminar que estaacute na base do uso

da maacutescara nos tempos mais remotos do teatro prende-se a um assunto seacuterio deixar para

traacutes o deus no santuaacuterio o outro ldquoeurdquo criado em sua honra para que este natildeo fosse transposto

para a sociedade real

Em Acarnenses a paroacutedia reveste o rosto da personagem a partir do Teacutelefo traacutegico

de Euriacutepides que em cena estaacute a serviccedilo do cocircmico mascarado como outro perfeito para a

realizaccedilatildeo de um objetivo maior a obtenccedilatildeo da paz

Em Suassuna a ldquoGrande Vozrdquo que inicia a peccedila eacute um Palhaccedilo ndash um mascarado ndash

que de forma carnavalesca apresenta agrave audiecircncia desde os elementos cecircnicos aos

personagens adiantando que o trabalho que seraacute posto em cena se trata de um julgamento

para o exerciacutecio e restabelecimento da moralidade e que ali os proacuteprios espectadores se

reconheceratildeo nos vaacuterios outros duplos que se disfarccedilaratildeo para alcanccedilar o objetivo do autor

que eacute moralizar pelo riso

31 Os gestos a vestimenta o corpo e o disfarce

A comeacutedia pautava-se por uma maior liberdade nas marcaccedilotildees cecircnicas nos

movimentos e nos gestos e por uma maior verossimilhanccedila com a realidade e segundo Pickard-

Cambridge (1953) embora houvesse tambeacutem alguns gestos tiacutepicos ndash como o gesto chamado de

ldquogansordquo executado atraveacutes das matildeos e que simulava o bico de um ganso usado para indicar que

estavam a ser proferidas palavras sem sentido Era tambeacutem comum assistir-se nas comeacutedias a

gestos praticados na trageacutedia mas sob a forma de paroacutedia

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Apesar da quase inexistecircncia de indicaccedilotildees textuais do autor eacute possiacutevel

reconstruir a movimentaccedilatildeo cecircnica dos atores a partir de indicaccedilotildees dadas pelos proacuteprios de

referecircncias presentes em escoacutelios 20 das representaccedilotildees dos vasos e ainda levando em conta

uma forma de arte muito semelhante a oratoacuteria seguida do gesto por exemplo falar com

determinado tipo de pose colocando a matildeo por baixo da tuacutenica ndash como era tiacutepico da oratoacuteria e

como se pode visualizar em vasos gregos de representaccedilotildees teatrais ndash ou executar movimentos

circulares ndash situaccedilatildeo que se depreende ter acontecido natildeo soacute no contexto teatral como tambeacutem

na realidade dos tribunais

Sob o vieacutes da representaccedilatildeo cecircnica e da importacircncia de seus elementos para criar a

rede de significados junto ao puacuteblico Mate (2011) afirma sobre o gesto-gestual e o

gestualizaacutevel

Importante agrave execuccedilatildeo das cenas o gestual passa pelo corpo do ator que na condiccedilatildeo de ser social irradia complexa e muacuteltipla gama simboloacutegica Levando o puacuteblico a promover uma relaccedilatildeo fundamentada no jogo de decifraccedilatildeo de siacutembolos tanto enigmaacuteticos (mais difiacuteceis de serem traduzidos) e de alegorias (siacutembolos facilmente traduziacuteveis) A troca entre ambos (atores e puacuteblico) ocorre quando o texto que intermedia essa relaccedilatildeo na condiccedilatildeo de um ldquotecido simboacutelicordquo transforma-se em gesto Na condiccedilatildeo de uma fratura do cotidiano o espetaacuteculo que acontece no tempo e no espaccedilo compreende um grande arcabouccedilo de gestualizaccedilatildeo esteacutetico-social

De qualquer forma fosse qual fosse a natureza dos gestos estes necessitavam de

ser executados em grande escala de forma a serem perceptiacuteveis pelos espectadores mais

distantes e por isso eacute expectaacutevel na opiniatildeo de DrsquoArnott (1989) que eles tivessem mais um

cariz funcional do que legitimidade teatral ateacute porque eram resultado de um sem nuacutemero de

convenccedilotildees Em Acarnenses por exemplo a movimentaccedilatildeo acentuada pela dificuldade

estrateacutegica do mendigo resulta natildeo soacute no princiacutepio da pena junto a alguns espectadores e

acusadores como tambeacutem reforccedila na proacutepria audiecircncia a identificaccedilatildeo com a dor do

apresentado

No Auto da Compadecida apoacutes um toque de clarim o Palhaccedilo figura tiacutepica das

apresentaccedilotildees circenses entra e como ocorre durante todo o espetaacuteculo conduz com ajuda do

gestual a encenaccedilatildeo desempenhando a funccedilatildeo de narrador educador dos espectadores pois

20 Para a normatizaccedilatildeo de algumas palavras gregas jaacute dicionarizadas utilizamos a forma de acordo como que consta no Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa (2008) Escoacutelio (gr σχόλιον scholion comentaacuterio interpretaccedilatildeo) satildeo notas gramaticais ou de criacutetica aos autores antigos

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no lugar do autor anuncia o caraacuteter moralizador e religioso da peccedila na qual haacute um combate

ao mundanismo visto pelo autor como uma praga de sua igreja Suassuna por considerar-se

digno de falar sobre tal tema deixa-se ser representado por um palhaccedilo para indicar que sabe

mais do que ningueacutem e por acreditar que o povo sofre e tem direito agrave defesa justa

Outro aspecto que deve ser observado durante boa parte da peccedila satildeo as matildeos

retraiacutedas de Joatildeo Grilo as incontaacuteveis viradas de cabeccedila e as baixadas de olhos revelam natildeo

tatildeo somente sua falta de posicionamento social visiacuteveis nos mais variados e longiacutenquos

lugares do sertatildeo brasileiro como abrem para o leitor-espectador a compreensatildeo do que seria

um instante uacutenico no qual o Grilo planeja minuciosamente sua estrateacutegia de convencimento

da audiecircncia e de seus acusadores e defensores

O leitor atento logo percebe que seja na comeacutedia aristofacircnica ou no auto de

Suassuna o gesto corresponde a uma determinada atitude do corpo (que incorpora as

determinaccedilotildees histoacuterico-sociais em seu sentido estrito e restrito) que no teatro efetiva-se por

meio de siacutembolos sonoros e duplamente gestuais intenccedilatildeo por meio da qual a palavra se

projeta traduzida gestualmente

Quem natildeo codificou os gestos propostos pelos olhos e cabeccedila de Chicoacute ao

procurar no bolso cigarro para contar agrave audiecircncia seus causos que ganham vida no

imaginaacuterio popular Eacute neste universo miacutemico que convidamos o leitor a beber e entender

como nos garante Stanford (1983) que estes gestos convencionais para traduzir a intenccedilatildeo do

autor executados pelos personagens dotados de sensaccedilotildees e por vezes reveladores de

estrateacutegias moralizantes satildeo atemporais e indispensaacuteveis agrave tessitura da obra para a

compreensatildeo dos que assistem e chegam a vivenciar o encenado

Segundo Jameson (1999) o gestus ao dividir a apreensatildeo do espectador provoca

um conjunto de reflexotildees Vecirc-se algo que ao expressar variadas e contraditoacuterias conotaccedilotildees

induz ao cotejamento agrave contraposiccedilatildeo de leituras O espectador afasta-se do que vecirc para

aproximar-se da vida que vive e a partir daiacute voltar agrave obra Em movimento dialeacutetico pode-se

ver aleacutem do aparentemente apreensiacutevel

[] gestus eacute o operador de um efeito de estranhamento no sentido proacuteprio e em particular que o estranhamento deriva da superposiccedilatildeo de cada um destes significados sobre os demais mostrando-nos por exemplo como um movimento involuntaacuterio de matildeo poderia em certas circunstacircncias [] contar como um fatiacutedico ato histoacuterico com consequumlecircncias seacuterias e irreversiacuteveis [] eacute uma superposiccedilatildeo e um estranhamento que natildeo apenas nos faz entender o elemento narrativo especiacutefico a uma luz nova e transformadora mas tambeacutem muda nossas ideias sobre o que eacute um simples gesto fiacutesico e sobre o que ao mesmo tempo conta como um acontecimento histoacuterico (JAMESON 1999 p110)

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Responsaacutevel tambeacutem pelo convencimento da audiecircncia e como defende

Pickard-Cambridge (1953) o vestuaacuterio estava a serviccedilo dos gestos desempenhando um

importante papel (se natildeo o mesmo) na determinaccedilatildeo pelo puacuteblico do estatuto social

representado pelas personagens cujas caracteriacutesticas podiam facilmente ser expressas atraveacutes

das cores texturas e designs No entanto eacute impossiacutevel determinar com exatidatildeo os figurinos

usados pelos atores nos primeiros tempos do teatro Este fato encontra comprovaccedilatildeo quando

nos lembramos do Teacutelefo de Acarnenses ou do ldquomendigordquo encenado por Severino para entrar

na cidade sem ser denunciado e que em ambos os casos o vestuaacuterio se caracteriza por uma

maior simplicidade e uma maior aproximaccedilatildeo agrave mendicacircncia

Em Acarnenses no momento em que eacute ameaccedilado pelos indignados habitantes de

Acarnas que constituem o Coro Diceoacutepolis necessita de um discurso forte o suficiente para

convencer aqueles homens das boas razotildees das suas treacuteguas privadas Nada como procurar

Euriacutepides e solicitar-lhe os andrajos que tatildeo bem serviram agrave eloquecircncia de Teacutelefo (vv 393-

479) E diante de uma longa lista de personagens andrajosas Diceoacutepolis encontra o seu

Teacutelefo Disfarce perfeito Eacute evidente aqui a noccedilatildeo de que a personagem dramaacutetica natildeo eacute

apenas um conjunto de palavras proferido agrave sombra de um nome mas eacute uma entidade sujeita a

uma construccedilatildeo que decorre das proacuteprias regras e exigecircncias do drama enquanto espetaacuteculo Acarnenses traz o enredo de acordo com a necessidade de defesa colocando o protagonista em maus lenccediloacuteis por ter feito treacuteguas com o inimigo espartano Teacutelefo era mesmo a personagem que melhor se encaixava como disfarce para a defesa do poeta e do protagonista O Teacutelefo de Aristoacutefanes quebra a ilusatildeo dramaacutetica e o paacutethos de que a trageacutedia depende pois enquanto o Teacutelefo de Euriacutepides natildeo se disfarccedila no palco mas parece entrar disfarccedilado de acordo com Foley (1996 135-7) o espectador de Aristoacutefanes vecirc Diceoacutepolis vestir os trapos de Teacutelefo e comeccedilar a se comportar como um mendigo jaacute na cena de aquisiccedilatildeo dos acessoacuterios do disfarce pelo exagero do detalhe e da atuaccedilatildeo de Diceoacutepolis torna-se demasiadamente realiacutestico e natildeo traacutegico Tambeacutem por expor o mecanismo do ekkyacuteklema (408) no momento em que Diceoacutepolis chama Euriacutepides para fora de casa pode sugerir que a comeacutedia desmascara o gecircnero seacuterio mostrando os bastidores do teatro traacutegico mas acrescentando o mesmo mecanismo a sua proacutepria ilusatildeo cocircmica Se o disfarce era para causar compaixatildeo aos acarnenses como ele poderaacute funcionar sem o paacutethos traacutegico (POMPEU 2004 p 83-98)

A escolha de Diceoacutepolis nos assegura que aliado aos gestos o disfarce traduz-se

na melhor estrateacutegia para convencer seus algozes

JUSTINOacutePOLIS Tu compotildee de peacute pra riba Podenotaacute de peacutes no chatildeo por isso tu compotildee os manco Mas por que tu taacute vestido cumrsquosmulambo da trageacutedia Rocircpas de daacute doacute Por isso tu compotildee os ismoleu Mas te imploro pelos teus joeio Euriacutepides Daacute pra mim um mulambo daquela peccedila antiga

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Pois tenho que falaacute pro coro umleriado grande Ela traz a morte srsquoeufalaacute mal (vv 410-417)

Elemento indispensaacutevel aos planos do heroacutei camponecircs o disfarce se constituiraacute

como mateacuteria prima da accedilatildeo do protagonista ameaccedilado pelo coro Na cena transcrita a seguir

o proacuteprio Diceoacutepolis revela a importacircncia da indumentaacuteria do mendigo para que o torne mais

digno de pena e possa reforccedilar sua estrateacutegia de convencer o coro

EURIacutePIDES Quais trapos Acaso aqueles com que aqui Eneu O coitado do velho concorria JUSTINOacutePOLIS De Eneu natildeo era era de ocirctro mais miserave EURIacutePIDES Os de Fecircnix o ceguinho JUSTINOacutePOLIS Natildeo de Fecircnix natildeo Havia ocirctro mais miserave que Fecircnix EURIacutePIDES Que mantos esfarrapados o homem me pede Seraacute que falas dos de Filoctetes o mendigo JUSTINOacutePOLIS Dele natildeo de um muito muito mais ismoleu EURIacutePIDES Acaso queres os mantos sujos Que Belerofonte tinha este coxo aqui JUSTINOacutePOLIS Natildeo era Belerofonte Mas tambeacutem o tipo era Mancoismoleuquexudo bom de laacutebia EURIacutePIDES Sei quem eacute o homem o miacutesioTeacutelefo JUSTINOacutePOLIS Eacute isso Teacutelefo Dele me daacute eu te suplico os mulambo EURIacutePIDES Oacute rapaz daacute-lhe os trapos do Teacutelefo Estatildeo por cima dos trapos do Tiestes No meio dos de Ino Aqui tens toma laacute (vv 416-434)

Com base nos estudos de Mate (2011) sobre o gestual percebemos a intensidade

causada por este elemento da cena cocircmica durante todo o Auto da Compadecida nas atitudes

de Joatildeo Grilo no balanccedilar do corpo desconsertado nas matildeos que evidenciam a ansiedade de

vinganccedilas contra seus patrotildees ndash o padeiro e a mulher ndash nas viradas de ombro e cabeccedilas tatildeo

comuns na cena social dos longiacutenquos lugares do Nordeste 21 brasileiro Com isso puacuteblico e

personagem se reconhecem na compreensatildeo do que seria um momento para aleacutem do riso do

luacutedico mas plenamente do social que ali ganha vida e ao mesmo tempo se finda nas accedilotildees e

histoacuterias contadas recuperadas da tradiccedilatildeo oral

21 ALBUQUERQUE JUacuteNIOR Durval Muniz de A invenccedilatildeo do Nordeste e outras artes p 66

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Eacute este o Nordeste universal de Ariano Suassuna lugar de profunda mistura onde o

profano e o sagrado se completam pelos recortes natildeo somente geograacuteficos mas humanos e

imagiacutesticos que servem de ferramentas para autores que voltam suas literaturas para falar da

condiccedilatildeo humana de sobreviver numa regiatildeo tatildeo contraditoacuteria nas incontaacuteveis Taperoaacute que

pulam dos livros e telas e se misturam agrave nossa realidade de forma tatildeo atualizada e recorrente

O Nordeste natildeo eacute um fato inerte na natureza Natildeo estaacute dado desde sempre Os recortes geograacuteficos as regiotildees satildeo fatos humanos satildeo pedaccedilos de histoacuteria magma de enfrentamentos que se cristalizaram satildeo ilusoacuterios ancoradouros da lava da luta social que um dia veio agrave tona e escorreu sobre este territoacuterio O Nordeste eacute uma espacialidade fundada historicamente originada por uma tradiccedilatildeo de pensamento uma imagiacutestica e textos que lhe deram realidade e presenccedila (ALBUQUERQUE2011 p63)

Portanto eacute nessa fonte muacuteltipla de (in)certezas que cortam o universo miacutemico que

Aristoacutefanes e Suassuna nos convidam a entender e deles beber como nos garante Stanford

(1983 85-87) que os gestos convencionais que abrem espaccedilo para a leitura social do autor

estatildeo perfeitamente ligados ao seu contexto fato que desperta no leitorouvinte a mesma teia

de sentidos e sensaccedilotildees vivenciadas pelo autor em seu jogo de enganar para ganhar como

acontece durante o julgamento de Diceoacutepolis pela assembleia em Acarnenses e com Joatildeo

Grilo e os demais no Auto da Compadecida considerandoeacute claroa troca simboacutelica de

conhecimento sobre o encenado que compreende natildeo soacute oral como tambeacutem o gestualizaacutevel

(in)visiacutevel

Assim como as maacutescaras e os gestos o vestuaacuterio constitui-se como um importante

papel (se natildeo mesmo o mais importante) na determinaccedilatildeo pelo puacuteblico do estatuto social

representado pelas personagens cujas caracteriacutesticas podiam facilmente ser expressas atraveacutes

das cores texturas e designs

Se haacute juiacutezes disfarccedilados de vespas um Teacutelefo aristofacircnico indumentado para o

convencimento dos juiacutezes da assembleia que veem Diceoacutepolis como real e ao mesmo tempo o

ilusoacuterio travestido de mendigo para ganhar natildeo perdatildeo de seus algozes mas apenas justificar

seus benefiacutecios Assim devemos pontuar a emergecircncia literaacuteria de Ariano Suassuna ao

colocar seu Teacutelefo em Taperoaacute quando para natildeo ser reconhecido Severino entra na cidade e

em nosso imaginaacuterio vestido tambeacutem de mendigo Em ambos os casos o poeta representou

seu projeto de enganar o mundo em cena pelo puacuteblico que assiste ao espetaacuteculo preso agrave cena

seguinte que alimentaraacute ao seu imaginaacuterio em consonacircncia com o dito pelo poeta romano

Petrocircnio (c 27-66 AD) Mundus vult decipi ergo decipiatur (O mundo quer ser enganado

portanto que seja enganado)

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Mesmo sendo impossiacutevel determinar com exatidatildeo os figurinos usados pelos

atores nos primeiros tempos do teatro haacute registros que asseguram que figurinos traacutegicos se

baseavam no manto com que Dioniso era frequentemente representado e no que concerne agrave

comeacutedia o vestuaacuterio tiacutepico usado caracterizava-se pela carga grotescamente acentuada

visiacutevel quer na forma como o corpo aparecia enchumaccedilado quer no uso de uma tuacutenica ndash

chiton ndash justa e curta o suficiente para exibir o falo -phallos

O certo eacute que a vestimenta o corpo e o disfarce existem para o Teatro de uma

forma indissociaacutevel se reconstroem a cada cena e em unidade criam e recriam expectativas e

realidades na audiecircncia que assiste agrave peccedila e a vivencia

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QUARTO ATO

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4 O AUTOR E SEUS OUTROS NA COMEacuteDIA E NO AUTO

No Quarto Ato tanto em Acarnenses como no Auto da Compadecida

ressaltamos que a figura controversa do poeta esteve pautada pela multiplicidade apresentada

nas accedilotildees cecircnicas das personagens reforccedilando uma atitude dupla polifocircnica e multifacetada

A verdade eacute que a figura do duplo sempre foi e tem sido desde a Antiguidade

insistentemente tematizada sob a inspiraccedilatildeo da literatura aristofacircnica e mais precisamente nos

seacuteculos XVI e XX nos autos de Gil Vicente e de Ariano Suassuna lugar onde encontrou um

terreno feacutertil e vigoroso por ser o ldquoduplordquo revestido por uma aura de misteacuterio e ao esmo

tempo de moralidade No palco do (in)certo que nos revela o teatro analisamos o tema em

duas obras Acarnenses de Aristoacutefanes ndash versatildeo matuta de Ana Maria Ceacutesar Pompeu ndash e no

Auto da Compadecida de Ariano Suassuna tendo por meta ressaltar a partir da accedilatildeo cecircnica a

presenccedila do poeta e de seu discurso moralizante em defesa da cidade

Como tema relacionado agraves vaacuterias vivecircncias humanas o duplo persiste como

temaacutetica sempre pungente e revisitada A ideia do duplo tem estado presente na literatura

desde a Antiguidade retornando na contemporaneidade com ecos da tradiccedilatildeo claacutessica uma

vez que a humanidade vive cercada de elementos relacionados agrave duplicidade e que remetem a

questotildees acentuadamente marcantes como por exemplo o caraacuteter existencial ligado ao ser

masculinofeminino homemanimal espiacuteritocorpo vidamorte ou aos miacutesticos deusdiabo

anjodemocircnio ceacuteuinferno entre outros Desse modo eacute sabido que a praacutetica e a vivecircncia

dessas dualidades desde os primoacuterdios da civilizaccedilatildeo tem conduzido o homem se

(re)conhecer e debater-se sobre a anguacutestia e as dores do duplo

Segundo Mello (2000) a ideia de duplicidade do Eu eacute um conceito antigo e no

que se refere agrave literatura esse tema desperta algumas questotildees inquietantes capazes de nos

levar a reflexotildees sobre - Quem somos - o que a anguacutestia representa senatildeo a falta ndash ou o que

seremos depois da morte Um exemplo praacutetico da temaacutetica do duplo estaacute presente em

narrativas literaacuterias como Metamorfose de Kafka Noite na Taverna de Aacutelvares de Azevedo

O homem duplicado de Joseacute Saramago Don Quixote de La Mancha de Cervantes ou no

conto ldquoO espelhordquo de Machado de Assis e de forma mais especiacutefica em Acarnenses de

Aristoacutefanes e no Auto da Compadecida de Ariano Suassuna

Sob o vieacutes do duplo na literatura Mello ainda afirma que a noccedilatildeo da outra metade

do sujeito expressa para a literatura um novo pensar sobre a identidade pois o indiviacuteduo pode

reconhecer-se como o proacuteprio do que se trata atraveacutes de representaccedilotildees metafoacutericas assim o

desdobramento do eu adquire vocaccedilatildeo especial na literatura

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A literatura tem uma vocaccedilatildeo especial para tematizar o duplo jaacute que no ato de criar o autor se desdobra em narrador e atraveacutes de seus heroacuteis libera partes aprisionadas em si mesmo que estatildeo sob a maacutescara de um Eu particular fixo no molde da personalidade (MELLO 2000 p 123)

Para uma maior aproximaccedilatildeo com o tragicocircmico no contexto cecircnico do duplo

retornamos ao teatro que na Greacutecia Antiga surgiu a partir de manifestaccedilotildees a Dioniso deus

do vinho da vegetaccedilatildeo do ecircxtase e das metamorfoses Pouco a pouco os rituais dionisiacuteacos

foram se modificando e se transformando em trageacutedias e comeacutedias Entretanto as diferenccedilas

entre o traacutegico e o cocircmico nunca foram tatildeo bem delineadas

Todavia cabe salientar que o Duplo sempre foi um tema profundamente

instigante da cultura humana e sempre esteve essencialmente relacionado vaacuterias aacutereas do

conhecimento como na Filosofia Psicologia Literatura e na Mitologia atuando como

geradora de ambiguidades Na Antiguidade o Duplo era para a sociedade a representaccedilatildeo ou

o reflexo do idecircntico ou seja prevalecia a ideia de Duplo como o homogecircneo manifestaccedilatildeo

do igual

No entanto natildeo permaneceu dessa maneira tendo com o passar do tempo a

partir do seacuteculo XVIII se tornado heterogecircneo isto eacute o Duplo passa a representar o desigual

ou em outras palavras o oposto em Suassuna o arremedo cocircmico Este fato encontra

comprovaccedilatildeo quando procuramos as diferenccedilas existentes entre o traacutegico e o cocircmico tatildeo bem

delineadas na sociedade Greacutecia Claacutessica

41 O par cocircmico na tradiccedilatildeo literaacuteria em Aristoacutefanes e Ariano Suassuna

Nossa pesquisa parte da hipoacutetese especiacutefica de que a dimensatildeo do duplo como o

outro do poeta em Aristoacutefanes e Ariano Suassuna estaacute estruturada a partir da loacutegica binaacuteria do

par cocircmico um par composto pelas intenccedilotildees das personagem e pelas manobras exercidas

pelo poeta para dizer por traacutes das cortinas o que deve ser de conhecimento de todos

Portanto nos propomos enquanto espectadores traccedilar a partir da comeacutedia e do auto diferentes

gecircneros literaacuterio o estudo do par cocircmico de forma a analisar a constituiccedilatildeo dos outros

poeacuteticos em cada uma das obras do corpus selecionado

Neste esteio haacute de se considerar um estudo significativo sobre o assunto

mencionado no trabalho de Beltrametti (2000) que analisa as caracteriacutesticas dos pares

cocircmicos em Aristoacutefanes nos diaacutelogos platocircnicos e no dramaturgo latino Plauto A autora

define em termos gerais a dupla cocircmica como 1) uma unidade dramaacutetica de dois elementos

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inseparaacuteveis 2) um pivocirc estrutural 3) um noacute semacircntico que liga linhas mais importantes de

senttido

Da caracterizaccedilatildeo proposta por de Beltrametti redefinimos o par cocircmico

aristofacircnico e suassuniano como um esquema binaacuterio composto de dois poacutelos opostos e

complementares o zombador e o zombado o palhaccedilo e o tolo que compotildeem o noacute semacircntico

da accedilatildeo cecircnica que nas obras que compotildeem o corpus deste trabalho estatildeo ao nosso ver a

serviccedilo da voz autoral

Em primeiro lugar como fio de uma produccedilatildeo anterior reconhecemos os

antecedentes literaacuterios do par cocircmico aristofacircnico na Odisseia de Homero quando encontra o

seu modelo mais relevante no binocircmio de Ulisses e do Ciclope no Canto IX Em segundo

lugar traccedilamos a presenccedila da dupla cocircmica suassuniana no auto influenciado pela produccedilatildeo

grega e pela literatura de Gil Vicente de cuja obra nos ocuparemos no V Ato

Entretanto cabe ressaltar que o objetivo central desta parte do nosso estudo eacute

explorar os traccedilos distintivos da dupla cocircmica nesses diferentes gecircneros tendo como base o

duplo poeacutetico e a maneira pela qual os comedioacutegrafos manipulam as accedilotildees das personagens

para construir a interpretaccedilatildeo do puacuteblico

A comeacutedia Acarnenses a primeira do corpus aristofacircnico conservado coloca em

cena a polecircmica poliacutetica entre uma posiccedilatildeo de guerra que desejava a continuidade da guerra

contra Esparta e a posiccedilatildeo contraacuteria que era impulsionada pelo sentimento de paz defendida a

partir do discurso do heroacutei cocircmico Diceoacutepolis

De maneira estrateacutegica Aristoacutefanes age na peccedila de forma a esclarecer para a

audiecircncia sobre os efeitos negativos para a cidade caso a guerra natildeo tenha um fim fato que se

comprova nos estudos de Zumbrunnen (2004) ao analisar a dimensatildeo poliacutetica e persuasiva da

peccedila categorizando-a em uma linha usual as intenccedilotildees seacuterias para aconselhar e influenciar o

puacuteblico em favor do fim da guerra

Em nossa opiniatildeo e seguindo MacDowell (1995) as comeacutedias de Aristoacutefanes

tinham que ser claras e de faacutecil entretenimento para os atenienses comuns atitude que se

justifica pela posiccedilatildeo contraacuteria do proacuteprio autor em relaccedilatildeo agrave guerra estreitada e assegurada

pelo discurso poliacutetico pronunciado na assembleia

Partimos da hipoacutetese especiacutefica de que o par cocircmico na comeacutedia aristofacircnica

constitui um dos seus principais recursos de persuasatildeo cocircmica uma vez que estaacute associado agraves

expectativas do olhar do puacuteblico na interaccedilatildeo cecircnica ndash que tambeacutem se constitui como apartir

do trabalho proposto pelo autor Isso significa que o esquema binaacuterio defendido por

Beltrametti jaacute referido nesta pesquisa funciona por si soacute como uma interpretaccedilatildeo chave para

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o puacuteblico os telespectadores podem antecipar que o duplo autoral - Diceoacutepolis - seraacute o

condutor central atacado e ridicularizado ndash zombador e acusador ao mesmo tempo no plano

interno da accedilatildeo dramaacutetica

Eacute importante ressaltar no entanto que tanto a comeacutedia de Aristoacutefanes como no

auto de Ariano Suassuna natildeo apresentam personagens idealizados nem absolutamente

indiferentem ao ridiacuteculo ao bobo ou ao piacutecaro As figuras do heroacutei Diceogravepolis e a do bobo

Joatildeo Grilo natildeo satildeo exceccedilotildees

Obscura como outros siacutembolos e projeccedilotildees coletivas a figura do duplo de

Diceoacutepolis em Acarnenses e de Joatildeo Grilo no Auto da Compadecida eacute cocircmica e criacutetica visto

que satildeo elementos que parodiam o serviccedilo divino cantando errado e fazendo sermotildees

moralizantes travestindo-se usando maacutescaras e passeando com maestria nos mundos popular

e erudito representando coletivos pelo poder da gargalhada do riso seacuterio e da tolice formas

mais sutis para se levar ao conhecimento da audiecircncia o desdobramento da consciecircncia ao

mesmo tempo a do idiota e a do bufatildeo que a utiliza como maacutescara e a coloca em praacutetica na

defesa do cidadatildeo injusticcedilado

Klein (1998) assegura que a dualidade implica certa ambiguidade constitutiva

na figura do heroacutei cocircmico e de seu discurso premissa apresentada em Acarnenses e por

extensatildeo aplicada por noacutes no Auto da Compadecida Em ambas as peccedilas o duplo poeacutetico eacute

estuacutepido e saacutebio grosseiro e sutil escravo das pulsotildees e senhor de si mesmo menos e mais

humano como nos afirma Pompeu (2004) ao citar Beltrametti quando a autora escreve que

no teatro de Aristoacutefanes haacute dinacircmicas de pares que satildeo mais complexas

Ela conclui que o teatro de Aristoacutefanes tem seus duplos que satildeo ldquoesses outros si mesmos que tecircm por funccedilatildeo instaurar uma tensatildeo com o si dos protagonistas das comeacutedias fazendo com que as perspectivas se entrelacem tatildeo estreitamente que acabem por se perderrdquo Beltrametti entende ser o par cocircmico ldquo1 Unidade dramaacutetica de dois elementos indissociaacuteveis 2 Princiacutepio e ao mesmo tempo base estrutural 3 Noacute semacircntico onde se ligam as mais importantes linhas do sentidordquo (POMPEU p12)

Assim percebe-se que tanto no teatro aristofacircnico quanto no teatro popular de

Ariano Suassuna o conhecimento eacute expresso natildeo somente pelas maacutescaras e gestos como

tambeacutem pelas vozes cocircmicas que conduzem a plateia ao conhecimento da condiccedilatildeo humana

tatildeo bem levada a seacuterio pelos autores em seus discursos criacuteticos sendo portanto uma nova

forma de combinar velhos ingredientes como o riso frouxo e estridente educador aacutecido da

sociedade que encontra espaccedilo semacircntico atraveacutes dos outros do poeta que se organizam em

uma nova composiccedilatildeo natildeo soacute marcada pela cena teatral mas pela inteligecircncia de um autor

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que pensa a sociedade para aleacutem das mazelas das injusticcedilas vivenciadas impostas pelo estado

de guerra ou pela exploraccedilatildeo das instituiccedilotildees sociais

Neste ambiente duplicadopolifocircnico observamos que a atitude educadora do

poeta bem como as accedilotildees das personagens que satildeo formadoras da estrutura do discurso

moralizador e porque natildeo dizer denunciador formado a partir da presenccedila de vaacuterias vozes

como a do proacuteprio poeta Haacute de se pontuar pel afirmativa acima que este fato se deve porque

as ldquovozes autoraisrdquo tecircm sido um tema de grande interesse para muitos estudiosos e para todos

que se deparam com a problemaacutetica da identificaccedilatildeo desta quando articulada agrave formaccedilatildeo dos

duplos dentro da Comeacutedia Antiga ou no Auto

Como o Proacuteprio Ariano Suassuna bem jaacute colocou para a construccedilatildeo do Auto da

Compadecida recorreu a uma tradiccedilatildeo cocircmica bastante viva que eacute a literatura oral e popular

do Nordeste dando-lhe novas formas para preservar a autenticidade Condutor de uma seacuterie

de armaccedilotildees ao personagem Joatildeo Grilo o autor conferiu a tarefa de explorar os efeitos

cocircmicos das cenas A presenccedila de Chicoacute o duplo de Joatildeo Grilo tem a mesma importacircncia

para o desenrolar dos atos visto ser ele o mentor das histoacuterias sem peacute nem cabeccedila que

divertem o puacuteblico a ponto de tambeacutem participar da criaccedilatildeo de comicidade

Para Joatildeo Grilo por estrateacutegia do autor coube uma verdadeira consciecircncia de sua

posiccedilatildeo social e a Chicoacute personagem simploacuterio coube toda inocecircncia e imaginaccedilatildeo

JOAtildeO GRILO Vocecirc eacute tatildeo sem confianccedila CHICOacute Eu sem confianccedila Que eacute isso Joatildeo estaacute me desconhecendo Juro como ele vem Quer benzer o cachorro da mulher para ver se o bicho natildeo morre A dificuldade natildeo eacute ele vir eacute o padre benzer O bispo estaacute aiacute e tenho certeza de que o Padre Joatildeo natildeo vai querer benzer o cachorro JOAtildeO GRILO Natildeo vai benzer Por quecirc Que eacute que um cachorro tem de mais CHICOacute Bom eu digo assim porque sei como esse povo eacute cheio de coisas mas natildeo eacute nada de mais Eu mesmo jaacute tive um cavalo bento JOAtildeO GRILO Que eacute isso Chico Jaacute estou ficando por aqui com suas histoacuterias Eacute sempre uma coisa toda esquisita Quando se pede uma explicaccedilatildeo vem sempre com ldquonatildeo sei soacute sei que foi assimrdquo CHICOacute Mas se eu tive mesmo o cavalo meu filho o que eacute que eu vou fazer Vou mentir dizer que natildeo tive JOAtildeO GRILO Vocecirc vem com uma histoacuteria dessas e depois se queixa porque o povo diz que vocecirc eacute sem confianccedila CHICOacute Eu sem confianccedila Antocircnio Martinho estaacute para dar as provas do que eu digo JOAtildeO GRILO Antocircnio Martinho Faz trecircs anos que ele morreu

80

CHICOacute Mas era vivo quando eu tive o bicho JOAtildeO GRILO Quando vocecirc teve o bicho E foi vocecirc quem pariu o cavalo Chico CHICOacute Eu natildeo Mas do jeito que as coisas vatildeo natildeo me admiro mais de nada No mecircs passado uma mulher teve um na serra do Araripe para os lados do Cearaacute JOAtildeO GRILO Isso eacute coisa de seca Acaba nisso essa fome ningueacutem pode ter menino e haja cavalo no mundo A comida eacute mais barata e eacute coisa que se pode vender Mas seu cavalo como foi CHICOacute Foi uma velha que me vendeu barato porque ia se mudar mas recomendou todo cuidado porque o cavalo era bento E soacute podia ser mesmo porque cavalo bom como aquele eu nunca tinha visto Uma vez corremos atraacutes de uma garrota das seis da manhatilde ateacute agraves seis da tarde sem parar nem um momento eu a cavalo ele a peacute Fui derrubar a novilha jaacute de noitinha mas quando acabei o serviccedilo e enchocalhei ares olhei ao redor e natildeo conhecia o lugar onde estaacutevamos Tomei uma vereda que havia assim e aiacute tangendo o boi JOAtildeO GRILO O boi Natildeo era uma garrota CHICOacute Uma garrota e um boi JOAtildeO GRILO E vocecirc corria atraacutes do dois de uma vez CHICOacute Corria eacute proibido JOAtildeO GRILO Natildeo mas eu me admiro eacute eles correrem tanto tempo juntos sem se apartarem Como foi isso CHICOacute Natildeo sei soacute sei que foi assim Saiacute tangendo os bois e de repente avistei uma cidade Eacute uma histoacuteria que eu natildeo goste nem de contar (SUASSUNA 2005 p25-28)

Segundo Girondon (1960) para compor o Auto da Compadecida Suassuna

inspirou-se naturalmente na comeacutedia tradicional italiana no que concerne a certos

personagens Os personagens como Joatildeo Grilo e Chicoacute emprestam de muacuteltiplas fontes seus

traccedilos os mais divertidos Satildeo os personagens ldquoheroacuteisrdquo os condutores da accedilatildeo os criados os

zanni 22 dos Italianos Mas revestem igualmente caracteriacutesticas proacuteprias dos piacutecaros23

espanhoacuteis aos tricksters 24 ingleses ao renard do fabulaacuterio francecircs medieval e ao Pedro

Malasartes da literatura popular luso-brasileira

22 A definiccedilatildeo de zanni no dicionaacuterio estaacute no popular teatro do seacuteculo XV tipo do villano dos vales de Bergamo aacutespero pobre ignorante Zanni tambeacutem eacute um bufatildeo palhaccedilo In Alessandra Mignatti La maschera e il viaggio sullorigine dello Zanni Bergamo Moretti amp Vitali 2007 23 ABRAMS David amp SUTTON-SMITH Brian loc cit 24 ABRAMS David amp SUTTON-SMITH Brian The development of the trickster in childrenrsquos narratives Journal of American Folklore90 (355) 1977 23 24

81

Duplos Joatildeo Grilo e Chicoacute satildeo personagens transbordantes de vitalidade e de

artimanhas dotados de uma imensa energia na afirmaccedilatildeo de suas inclinaccedilotildees e de suas ideias

Entretanto na criaccedilatildeo literaacuteria do auto Ariano Suassuna revela todo o controle das accedilotildees

visto que nenhuma das personagens controla verdadeiramente o jogo pois satildeo arrastados pelo

processo cocircmico que se reproduz a cada cena

Assim como o duplo aristofacircnico o par Joatildeo Grilo e Chicoacute nos leva a perceber

que as paixotildees e ambiccedilotildees humanas provocam accedilotildees inconsequentes das quais os seres natildeo se

apercebem Eacute como se o autor quisesse aliar intimamente a bufonaria e a verdade humana

num todo Joatildeo Grilo eacute fanfarratildeo que se deleita sobre seu talento de conduzir bem suas

intrigas Contudo Joatildeo Grilo eacute o ldquomarginalrdquo inventivo que busca uma revanche pelas afrontas

que seus patrotildees o fazem sofrer

No plano teatral eacute justamente Joatildeo Grilo quem nos diz das intenccedilotildees do poeta

fazer rir o puacuteblico pela zombaria da proacutepria natureza humana cuja credulidade e ingenuidade

nos fazem perder a consciecircncia dos proacuteprios defeitos Atraveacutes do riso o homem toma

consciecircncia dele mesmo mitigando suas dores e angustias existenciais Todavia como poeta

cocircmico Ariano Suassuna tambeacutem quer nos fazer refletir uma vez que se o riso pode ser

determinante nas reaccedilotildees entatildeo eacute o pensamento que pode auxiliar a compreender a verdade

humana que se oculta atraacutes do riso

Joatildeo Grilo eacute o duplo poeacutetico que reverbera o pensamento de Suassuna contra as

injusticcedilas e nos ensina que de nada serve se deixar paralisar pelo medo e pela covardia eacute

preciso enfrentar as dificuldades No momento em que tudo parece perdido em que a

condenaccedilatildeo ao inferno parece inevitaacutevel ele revela uma feacute inalteraacutevel em si mesmo e se

permite um novo desafio Ele diz

Eacute difiacutecil quer dizer sem jeito Sem jeito Sem jeito por quecirc Vocecircs satildeo uns pamonhas qualquer coisinha estatildeo arriando Natildeo vecirc que tiveram tudo na terra Se tivessem tido que aguentar o rojatildeo de Joatildeo Grilo passando fome e comendo macambira na seca garanto que tinham mais coragem Quer ver eu dar um jeito nisso Padre Joatildeo (SUASSUNA 2005 p167)

Para Ariano Suassuna o palco do teatro eacute um lugar maacutegico onde as imagens

concretas se instalam na cena a cena em forma de quadros quadros dinacircmicos vivos Ao

lado destas imagens concretas ele instala imagens metafoacutericas que incorpora agrave realidade

cecircnica conduzindo o espectador para o entendimento de que o mundo encontra-se com o

teatro mas natildeo o mundo linear homogecircneo mas o mundo agraves avessas que soacute o teatro mostra e

que pode dar agrave realidade uma chance de impor-se pela ressonacircncia da gargalhada

82

Por conseguinte eacute notaacutevel contudo observar que o duplo cocircmico

frequentemente utilizado por Aristoacutefanes em suas peccedilas tambeacutem encontra eco na literatura

popular de Suassuna por apresentar uma tessitura textual atravessada pelas muacuteltiplas vozes de

seus personagens constituindo-se em um fenocircmeno recorrente e natural que aponta para a

tensatildeo de uma crise profunda denunciada pelo proacuteprio poeta em seus discursos De iniacutecio

esclarecemos que em toacutepico especiacutefico trataremos da voz cocircmica entretanto utilizaremos do

termo para nos referirmos ao duplo autoral a partir da identificaccedilatildeo da produccedilatildeo discursiva

Educadores e denunciadores tanto Aristoacutefanes quanto Ariano Suassuna

constroem em seus enredos personagens que usam da autoridade conferida pelo poeta para

ressoar seus anseios e indignaccedilotildees atraveacutes do discurso Ao longo das peccedilas eles projetam seus

duplos de forma que suas proacuteprias vozes possam ser ouvidas indiretamente por traacutes de cada

ato levando o puacuteblico a crer que ouve a voz direta do poeta quer atraveacutes do coro do palhaccedilo

coreuta da paraacutebase

Como justificativa do duplo satildeo em personagens como Diceoacutepolis ou Joatildeo Grilo

que realizam a intenccedilatildeo poeacutetica e eacute ressonante pelo riso da mangofa pelos gestos

performaacuteticos pelo arremedo poeacutetico eou pelo outro travestido de a(u)tor accedilotildees

perfeitamente justificaacuteveis visto que o duplo cocircmico passa a ser o noacute semacircntico entre as

culturas grega e popular utilizando fatos do dia a dia como mateacuteria na representaccedilatildeo de algo

identificado pelo autor atraindo consequentemente a atenccedilatildeo do leitor ou espectador para a

obra

A verdade eacute que a conduccedilatildeo cocircmica e moralizante levada ao espectador encontra

espaccedilo feacutertil em ambas as obras traduzida pela accedilatildeo do poeta a partir das vozes de seus

duplos Diceoacutepolis e Joatildeo Grilo figuras conturbadas em franco desacordo com a situaccedilatildeo

promovida pelos legisladores em Atenas ou na pacata cidade de Taperoaacute Relevantes para

todo o enredo esses protagonistas descobrem-se em atitude de perfeita rebeldia conscientes

das mudanccedilas advindas de suas atitudes e como heroacuteis cocircmicos satildeo tambeacutem autores de uma

saiacuteda que nem sempre pode ser compartilhada socialmente ou compreendida

O proacuteprio Suassuna admite a influecircncia muacuteltipla que sofreu de outros estilos e

gecircneros ao apresentar a peccedila por meio dos contadores de histoacuteria do Auto Portuguecircs e do

Cordel como Chicoacute Joatildeo Grilo e o palhaccedilo responsaacuteveis diretos pela orientaccedilatildeo da

audiecircncia

Diante dessa apropriaccedilatildeo e recuperaccedilatildeo dos mecanismos narrativos da Comeacutedia e

de outros gecircneros literaacuterios como o auto que apresentam um caraacuteter atemporal torna-se

importante salientar que aleacutem de construir ldquomuacuteltiplos cocircmicosrdquo ela apresenta personagens

83

natildeo universais como os que satildeo caricaturas de pessoas que viveram em Atenas em um

momento especiacutefico A obra de Aristoacutefanes potildee em cena nomes de figuras eminentes da

Greacutecia antiga como o de poliacuteticos (Cleatildeo e Lacircmaco) pensadores (Soacutecrates) e poetas

(Euriacutepides e Eacutesquilo) A referecircncia a essas personalidades bem como o diaacutelogo com a

mitologia a histoacuteria e o teatro natildeo constituiacutea um problema para a plateia de Aristoacutefanes No

entanto para noacutes leitores de outras geraccedilotildees a percepccedilatildeo de tais referecircncias natildeo eacute assim tatildeo

simples ainda que seja fundamental para a compreensatildeo da comeacutedia

Na comeacutedia aristofacircnica a simples presenccedila de Diceoacutepolis um camponecircs que vai agrave Pnix para falar contra os horrores e caos produzidos pela guerra jaacute se configura como um ato de quebra da normalidade estabelecido pelo autor que autoriza seu duplo agrave defesa da cidade O proacuteprio discurso do personagem que eacute tambeacutem em partes a fala do poeta nos revela uma intenccedilatildeo por traacutes das atitudes daquele que para ter sua paz e celebrar no campo as dioniacutesias rurais eacute marginal no plano da obediecircncia imposta pelos legisladores que lucram com o traacutegico da guerra

Indissociaacuteveis das peccedilas e da proposta autoral as marcas do traacutegico se tornam

modelos de uma tensatildeo que provoca o riso e ficam mais salientes a partir da metade do

Segundo Ato no Auto da Compadecida com a entrada do cangaceiro e de Severino do

Aracaju travestido de mendigo representando o duplo do bem o assassino impiedoso que se

disfarccedila para enganar a cidade a exemplo do que fez Diceoacutepolis em Acarnenses ao vestir-se

de Teacutelefo para tambeacutem burlar a assembleia para justificar seu acordo de paz

Marcados pela polifonia tanto o cangaceiro-mendigo quanto o agricultor-

mendigo se opotildeem aos demais personagens uma vez que entram no jogo cecircnico para roubar a

atenccedilatildeo de seus algozes No Auto da Compadecida Severino acaba provocando a morte de

todos que estatildeo na igreja Em Acarnenses Diceoacutepolis consegue convencer a assembleia Esse

caraacuteter muacuteltiplo torna-se ainda mais evidente na cena do julgamento que abordaremos no V

Ato uma vez que as accedilotildees do poeta e de seus outros cocircmicos tornam-se ainda mais bruscas

pois num inferno tragicocircmico o leitorouvinte pode perceber toda a desconstruccedilatildeo literaacuteria

tanto do espaccedilo ndash inferno ndash quanto das figuras celestiais e demoniacuteacas que sem chegar a um

acordo deixam de certa forma a cabo de espectador o ato de condenar eou absolver as almas

E nesse jogo luacutedico e didaacutetico encenado no abrir e fechar de cortinas que o teatro

aristofacircnicosuassuniano nos proporciona enquanto expectadores haacute uma visatildeo amplamente

criacutetica das accedilotildees humanas seja pelo desejo pessoal pela injuria ou pela proacutepria paroacutedia que

tatildeo bem se propotildee ao convencimento do puacuteblico

84

QUINTO ATO

85

5 O POETA VAI AO INFERNO 51 Quem fala por quem

Como esclarecido anteriormente neste ponto do corpus da tese aprofundaremos

nosso estudo para identificar as ocorrecircncias marcadas pela voz poeacutetica responsaacutevel pelas

vaacuterias atitudes didaacuteticas e criacuteticas indispensaacuteveis ao conhecimento do leitor Para tanto

faremos nossa viagem ao inframundo literaacuterio tomando como base Acarnenses e Ratildes de

Aristoacutefanes o Auto da Compadecida de Ariano Suassuna e o Auto de Barca do Inferno de

Gil Vicente por sua influecircncia na obra suassuniana

Em observaccedilatildeo importante ressalto que em Acarnenses o inferno ao qual nos

referimos seraacute estabelecido pelos horrores trazidos pela guerra cujos motivos seratildeo

questionados por Diceoacutepolis diante da Pnix 25

O caraacuteter didaacutetico do texto eacute expresso pelo proacuteprio autor no verso 499 ldquoO que eacute

justo tambeacutem eacute do conhecimento da comeacutedia Ora o que eu vou dizer pode ser caacuteustico mas

justo eacuterdquo Uma marca deste caraacuteter didaacutetico pode ser visto no discurso e nos nomes de alguns

personagens que tecircm uma significaccedilatildeo alegoacuterica como Diceoacutepolis o personagem principal

significa cidade justa

A peccedila comeccedila com Diceoacutepolis assim como Joatildeo Grilo um homem do campo

forccedilado a migrar para a cidade onde vive em condiccedilotildees precaacuterias qual aguarda a reuniatildeo da

assembleia onde o tema da discussatildeo de um tratado de paz vai ser deliberado que a nosso ver

disfarccedila-se de autor ndash evindencia-se aqui o duplo autoral ndash na Pnix ainda vazia esperando do

iniacutecio da Assembleacuteia Diceopolis explica sua experiecircncia sua dor traacutegica que se refere agrave

anguacutestia vivenciada pela falta de representaccedilatildeo de autores como Eacutesquilo considerado

obsoleto na eacutepoca da guerra com a imposiccedilatildeo da moda de Euriacutepides Na versatildeo matuta de

Pompeu a abertura do proacutelogo se reforccedila pela afirmaccedilatildeo de ali ser o momento no qual o

a(u)tor demonstra as alegrias e tristezas de Diceoacutepolis (Pompeu 2014 p01 vv 9-20)

Mas num eacute que de novo tive uma docirc de trageacutedia Na vez que eu tava abestaiadim esperando Eacutesquilo Aiacute o anunciadocirc disse ldquoTeoacutegnis faz entraacute o teu corordquo Pense numa sacudida grande no meu coraccedilatildeo Mas tive outra alegria na vez que em cima do Mosco Dexiacuteteo entrocirc e cantocirc uma beoacutecia Ainda neste ano quase morri e fiquei foi zaroim vendo

25 A Pnix eacute uma colina na parte interna da cidade de Atenas onde ocorriam as assembleias populares de entatildeo In Moura Filho Lauro Inaacutecio de Transtextualidade e hermenecircutica na comeacutedia de Aristoacutefanes O poeta como mestre da cidade 2012 166f ndash Dissertaccedilatildeo (Mestrado) ndash Universidade Federal do Cearaacute

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Na vez que o Ceacuteris se entortocirc pra tocaacute o hino oacutertio Mas nunca desde que eu tomo banho Meus oacuteio ardero tanto cum sabatildeo Do jeito dacuteagora num dia de assembleia regulaacute De manhatildezinha oacute aiacute esta Pnix sem viva alma O pessoaacute na praccedila tagarela e pra cima e pra baixo

A Pnix sede da Assembleacuteia estava vazia e as pessoas conversando na aacutegora o

que era considera um testemunho da falta de interesse nas assembleias que o poeta atribui agrave

tendecircncia belicista do povo ateniense relutante em votar pela paz

O fato eacute que Aristoacutefanes parece se identificar com o caraacuteter de Diceopolis como

deduzido dos versos 440-445 quando ele se dirige aos espectadores apoacutes citar os versos do

telefone de Euriacutepedes personagem que ele argumentou a favor do fim da guerra diante da

Assembleia (Pompeu 2014 p16)

Eacute que tenho que achaacute que socirc um mendigo hoje Secirc quem socirc natildeo parececirc Os espectadocirc vatildeo sabecirc que socirc eu Mas os coreuta vatildeo ficaacute abestaiadim Pra eu troccedilaacute deles crsquouns palavreado EURIacutePIDES Eu dou pois com uma mente astuta tramas sultilezas

Para o autor em particular esta primeira cena na qual Diceoacutepolis deseja falar

sobre seus motivos para celebrar sua paz revela a importacircncia do campo na cidade de Atenas

O proacuteprio gecircnero da comeacutedia eacute entendido como um fenocircmeno urbano de origem agraacuteria

produto de o mesmo processo de formaccedilatildeo da polis em que este se tornou o centro

organizador do territoacuterio agraacuterio e exploradora de seus produtos

Em geral os problemas da guerra satildeo evidentes para os camponeses uma vez que

os campos aacuteticos foram devastados o que despertou o desejos para receber apoio dos

cavaleiros Assim o inferno promovido pela Guerra do Peloponeso (431-404) trazia era uma

condiccedilatildeo desoladora para a cidade e para o campo Este fato pode ser de acordo com

observaccedilatildeo de Plaacutecido (2007) percebido no discurso proferido por Peacutericles no qual satildeo

destadas as condiccedilotildees histoacutericas que diferenciaram Atenas e Esparta e justificaram taacuteticas

empregadas para a defesa

E se eles atacarem nosso territoacuterio por terra noacutes faremos uma expediccedilatildeo naval contra eles e natildeo seraacute o mesmo que uma parte do Peloponeso seja saqueada e que seja toda a Aacutetica eles natildeo seratildeo capazes de adquirir outras terras sem ter que lutar enquanto noacutes temos terras abundantes tanto nas ilhas como no continente Uma

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grande coisa eacute com efeito o domiacutenio do mar a refletir se focircssemos ilheacuteus quem seria menos inexpugnaacutevel do que noacutes Bem agora eacute necessaacuterio que raciocinando da maneira mais semelhante como se vocecirc fosse um ilheacuteu vocecirc abandone o campo e suas casas e vai defender o mar e a cidade

Diceoacutepolis teria que impressionar os legisladores convececirc-los dos recursos

possiacuteveis para a paz Para tanto ele acusou os priacutetanes confabular para prender Anfiacuteteo um

imortal que ia tente a paz como nos mostra Pompeu (2014) nos versos 56-58

DICEOacutePOLIS Oacute priacutetanes vocecircs tatildeo fazendo mal pra assembleia Arrastando o homem que queria fazecirc treacuteguas Pra noacutes e dependuraacute os escudo

O que se percebe nos versos eacute que um dos temas responsaacuteveis pela situaccedilatildeo de

caos na cidade eacute a manipulaccedilatildeo da democracia do ponto de vista de Aristoacutefanes pelas

autoridades que de alguma forma ganham com acirramento do caraacuteter beacutelico A mesma

reclamaccedilatildeo aparece com respeito aos embaixadores que segundo ele zombam do sofrimento

da cidade conforme os versos 75-76

DICEOacutePOLIS Oacute cidade de Cracircnao Tu num sente natildeo a mangaccedilatildeo dos embaixadocirc

Diceoacutepolis queixa-se do tempo que tem sido incapaz de celebrar a dioniacutesias por

causa das invasotildees espartanas Entretanto ele estaacute convencido de que a paz eacute a garantia das

celebraccedilotildees no campo e para isso decide se livrar da guerra geradora de toda maacute sorte para a

cidade como percebemos pelos o versos (266-267 201-202)

DICEOacutePOLIS Depois de seis ano falo contigo e volto feliz pracuteo meu povoado Eu tando livre da guerra e das coisa ruim Vou eacute entraacute e celebraacute as Dioniacutesia matutardquo

O coro se recusa a ouvir longos discursos como aconteceu com o Soacutecrates

platocircnico no Protaacutegoras ou os espartanos que receberam a embaixada dos jocircnios na eacutepoca da

rebeliatildeo antes das Guerras Meacutedicas

Desta forma o laconicismo se espalha entre os atenienses hostis agraves praacuteticas

retoacutericas da democracia Apesar dos ataques do coro que o acusa de querer concordar com os

inimigos Diceoacutepolis defende que os espartanos natildeo satildeo culpados de tudo

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Diceoacutepolis entatildeo assumindo o risco de morte elabora o discurso do justo do que

possa ser justo para a cidade e denuncia a retoacuterica fraudulenta dos oradores que enganaram o

povo com o sortileacutegio encantatoacuterio de um discurso mentiroso como se percebe nos versos

(vv) 497-507 DICEOacutePOLIS Num vatildeo ficaacute cum raiva homes espectador Se eu sendo um mendigo na frente dos ateniense Teja em tempo de falaacute sobre a cidade fazendo uma comeacutedia Pois o que eacute justo a comeacutedia tambeacutem conhece E eu vou falaacute coisas terriacuteve mas justa Pois desta vez num vai me caluniaacute Cleacuteon que Estrangeiros tando aqui eu falo mal da cidade Eacute que tamo soacute eacute o concurso das Leneia E os estrangeiro num tatildeo aqui nem os imposto 505 Chega nem os aliado vem das cidade Mas tamo soacute noacutes agora soacute os miacutei debuiado (POMPEU 2014 p17)

Na parte final da peccedila Diceoacutepolis estaacute reconciliado com os acarnenses e seraacute

aclamado pelo Coro como vencedor detentor justo do desfrute dos prazeres do mundo

CORO O home vence cum as palavra e convence o povo a mudaacute De ideia sobre as treacutegua Mas vamo eacute tiraacute a roupa pra passaacute pros anapesto Desde quando dirige os coro de comeacutedia o nosso mestre Num foi pra perto dos espectadocirc pra dizecirc como eacute esperto Mas foi caluniado pelos inimigo no mei dos ateniense de decisatildeo-praacute-jaacute-jaacute De fazecirc comeacutedia cum a nossa cidade e maltrataacute o povo 631 Tem que respondecirc agora pros ateniense de decisatildeo-troca-troca Diz o poeta que fez muita coisa boa pra vocecircs Impedindo vocecircs de secirc enganado demais pelas fala dos estrangeiro De gostaacute de secirc adulado e de secirc uns cidadatildeo molenga 635 Antes os embaixadocirc das cidade pra enganaacute vocecircs Primeiro chamava vocecircs de ldquocoroados de violetardquo e era soacute dizecirc isto Que por causa das coroa sentava logo tudo de rabo em peacute E se algueacutem adulasse vocecircs chamando ldquoAtenas lustrosardquo Conseguia era tudo com o ldquolustrosardquo uma qualidade das sardinha Por isso tudo aiacute eacute que ele eacute responsaacuteve de muita coisa boa pra vocecircs E por tecirc mostrado pro povo nas cidade como eacute secirc democraacutetico Por isso mermo eacute que agora trazendo das cidade pra vocecircs o tributo Vatildeo chegaacute doidim pra vecirc o poeta danado de bom Que se arrisca para dizecirc na frente dos ateniense as coisa justa 645 E assim da ousadia dele jaacute chega eacute longe a fama Quando o Rei tava testando a embaixada dos lacedemocircnio Perguntou primeiro qual das duas cidade eacute mais forte em navios Depois pra qual das duas este poeta podia dizecirc mais palavra ruim Pois estes home ele disse satildeo muito mioacute E na guerra vatildeo vencecirc muito mais por tecirc ele como conseieiro 651 Eacute por isso que os lacedemocircnio propotildee pra vocecircs a paz Mas pede Egina e num eacute esta iacutea Que importa prrsquoeles mas eacute pra apanhaacute o tal poeta Vocecircs num deixe nunca ele partir pois vai fazecirc comeacutedia da justiccedila655 E diz que vai ensinaacute pra vocecircs muita coisa boa pra que sejam feliz Sem adulaacute nem prometecirc salaacuterio nem enganaacute nem um tiquim Sem secirc perverso nem enchendo de elogio mas ensinando o mioacute

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Depois disto Cleacuteon pode eacute maquinaacute E arquitetaacute tudo contra mim Pois o bem vai taacute eacute comigo e a justiccedila Vai secirc minha aliada e nunca vatildeo me pegaacute Pra cidade sendo igual a ele Medroso e escuiambado Vem caacute Musa chamuscada (POMPEU vv 624-664 p21)

Tatildeo importante quanto a presenccedila do ator em cena a voz do poeta se concretiza

pela (re)criaccedilatildeo da palavra que aleacutem de ser o territoacuterio comum ao locutor e interlocutor

possui tambeacutem uma dimensatildeo sonora e material ao ser emitida e uma dimensatildeo semacircntica

que se constroacutei e revela-se no exerciacutecio do discurso social carregado de sentido moralizante

levado ao leitorexpectador pelo autor atraveacutes do proacuteprio poeta e de seus outros

Nesta parte do nosso trabalho verificaremos como a voz autoral seraacute levada ao

puacuteblico e quais as reais intenccedilotildees do autor por traacutes desse empreacutestimo que eleva os

personagens fazendo com que eles estejam a serviccedilo da moralidade e da defesa dos anseios da

cidade Assim a transferecircncia ou a reproduccedilatildeo de palavras de uma boca para outra apontada

por Bakhtin (1982) gera mudanccedilas de tonalidade e teraacute intenccedilatildeo e possibilidade de

(re)criaccedilatildeo de uma produccedilatildeo cultural histoacuterica e social dando aos personagens ndash porta-vozes

dos autores uma dimensatildeo coletiva que se estabelece como um viacutenculo entre o poeta e seus

outros duplicados

A ldquovoz do poetardquo torna-se fundante da estrutura do discurso e encontra ressonacircncia

na presenccedila dos vaacuterios ecos irreverentes manifestados pelas personagens que articulados

com a vontade do proacuteprio poeta representam a tomada de consciecircncia e a tentativa de se

libertar da opressatildeo social agravada por situaccedilotildees e discursos tatildeo adversos percebidos na

comeacutedia aristofacircnica e nos autos de Ariano Suassuna e Gil Vicente

Assim acredito que faz-se necessaacuterio ressaltar para uma maior compreensatildeo do

leitor que a noccedilatildeo de voz do poeta na Comeacutedia Antiga e no Auto eacute um tema de interesse

para muitos estudiosos todos que se deparam com a questatildeo reconheceram a problemaacutetica de

identificar a voz do outro poeacutetico seus alcance e praacuteticas sociais

Apesar dessa barreira aparentemente intransponiacutevel para o estudo do voz do

poeta nossa pesquisa se norteou na identificaccedilatildeo dessa voz (audiacutevel ou visiacutevel) nas comeacutedias

de Aristoacutefanes e nos autos de Ariano Suassuna e Gil Vicente explorando algumas maneiras

pelas quais a mera noccedilatildeo da voz do poeta pode ser inestimaacutevel ao analisar a comeacutedia e o auto

enfocando seu uso como uma teacutecnica cocircmica manipulada pelo dramaturgo para a realizaccedilatildeo

de seu propoacutesito que aleacutem do riso eacute a tomada de consciecircncia da plateia

90

Eacute pertinente primeiro especificar o que se entende por voz do poeta nesse

contexto tatildeo distante e ao memso tempo tatildeo proacuteximo que tem como condutor o riso Ao

longo das peccedilas de Aristoacutefanes e dos autos de Ariano Suassuna e Gil Vicente uma voz

poeacutetica pode ser ouvida indiretamente por traacutes do drama revelando o mundo no qual o poeta e

seus duplos estatildeo inseridos

Em momentos cheios de misteacuterios o puacuteblico eacute levado a acreditar que a

personagem constantemente troca de lugar com o poeta seja atraveacutes da revelaccedilatildeo de algo

comum ao entendimento do poeta criacutetico e moralizador como por exemplo em Acarnenses

onde atraveacutes de Diceoacutepolis que autorizado por Aristoacutefanes se traveste de Teacutelefo ganha natildeo

somente a voz para por em praacutetica seu plano de enganar a assembleia ao Teacutelefo constituindo-

se tambeacutem como o outro do outro do poeta cocircmico

No Auto da Compadecida compete aos juizes Jesus Virgem Maria e ao Diabo

pares antagocircnicos a representaccedilatildeo do discurso do poeta No plano dinacircmico do enredo

Ariano Suassuna reservou ao cangaceiro Severeino o travestimento de mendigo ndash seu Teacutelefo ndash

como meio de entrar na cidade sem ser reconhecido A Joatildeo Grilo e Chicoacute criticar enganar os

legisladores e representantes da sociedade pela praacutetica do discurso mentiroso

No Auto da Barca do inferno o poeta se revela assim como nas obras citadas

pelas muacuteltiplas vozes que se renovam a cada cena seja atraveacutes dos embates entre o anjo

condutor da nau que leva ao paraiacuteso e os infratores das morais terrenas ou pelas investidas de

Joanes o parvo que espera ao lado do anjo pelas almas que na Terra o desprezaram dando-

lhes a garantia de contar ao juiz as fraquezas dos embarcantes

As maneiras pelas quais Aristoacutefanes Ariano Suassuna e o proacuteprio Gil Vicente

manipulam a noccedilatildeo da voz do poeta satildeo cruciais para entender e revelar a situaccedilatildeo vivenciada

pelas sociedades postas em cena Numa arquitetura perfeita que mistura versos e denuacutencias

tanto Aristoacutefanes e Arianos Suassuna quanto Gil Vicente propositadamente parecem

convidar o puacuteblico a supor que ele estaacute ouvindo a voz direta do poeta quando de fato estatildeo

ouvindo uma voz construiacuteda pelo poeta que submete o mundo a sua proacutepria organizaccedilatildeo

social atraveacutes da linguagem marcada para expor e instaurar uma realidae imaginaacuteria como

afirma Benveniste (1979) A linguagem reproduz o mundo mas submete-o a sua proacutepria organizaccedilatildeo Satildeo logos discurso e razatildeo ao mesmo tempo que os gregos o viam Eacute pelo proacuteprio fato de ser linguagem articulada constituiacuteda por um arranjo orgacircnico de partes uma classificaccedilatildeo formal de objetos e processos () Eacute de fato na e pela linguagem como um indiviacuteduo e sociedade satildeo mutuamente determinados O homem sempre sentiu - e os poetas cantaram com frequecircncia - o poder fundador da linguagem que

91

estabelece uma realidade imaginaacuteria dupla que anima as coisas inertes faz ver o que ainda natildeo eacute devolve os desaparecidos (Traduccedilatildeo nossa) 26

Zonin (2006) afirma que de um modo significativo o discurso literaacuterio apresenta

elementos linguiacutesticos para a produccedilatildeo de efeitos expressivos importantes de serem

resgatados na leitura por meio da construccedilatildeo interdiscursiva que eacute o lugar de incorporaccedilatildeo de

um discurso em outro instante em que se daacute o funcionamento polifocircnico marcado pelas

escolhas operadas pelo locutor sobre a liacutengua enquanto contrato coletivo defendido por

Bakhtin na obra Problemas da poeacutetica de Dostoievski

Eacute justamente por esse caraacuteter plural no qual natildeo se sabe quem fala por quem que

se apresentam os poetas e suas vozes autorais refletidos nas palavras que ora enunciam pela

boca do outro ldquonas vozes que espelham um eu possuiacutedo por uma alma alheiardquo (BAKHTIN

1990 p31) Com isso autor e ator se misturam num jogo de vozes no interior do discurso

terreno onde nenhuma palavra eacute particular uacutenica ao criador senatildeo tambeacutem repleta da voz do

outro da criatura

No plano teatral os termos morte e inferno nos datildeo a dimensatildeo do alegoacuterico

proposto tanto na Comeacutedia quanto no Auto Lugares (re)criados para a projeccedilatildeo do

pensamento do autor que se manifestaraacute por meio dos discursos oriundos das esferas social

religiosa e poliacutetica que dizem do sistema democraacutetico e que potencializam na atmosfera

romanesca ares inquietantes e contraditoacuterios de uma pluridiscursividade que se circunscreve

em torno da temaacutetica como afirma Zonin (2006)

No campo social das peccedilas a dramatizaccedilatildeo das outras vozes mostra-se pela voz

do poeta que eacute usada para desenvolver a accedilatildeo cecircnica das personagens dando-lhes a

capacidade de fazer ou dizer mais do que deveriam Ao usar a noccedilatildeo da voz do poeta para

permitir que os personagens falem fora dos limites de suas persoas literaacuterias Aristoacutefanes

Ariano Suassuna e Gil Vicente criam personagens que satildeo inerentemente polifocircnicos fato que

encontra jusitificativa na teoria bakhtiniana

As semelhanccedilas entre Diceoacutepolis e a voz do poeta satildeo deliberadamente criadas e

indiscutivelmente emitidas para incentivar a identificaccedilatildeo entre personagem e poeta uma vez

26 El lenguaje reproduce el mundo pero sometieacutendolo a su propia organizacioacuten Es logos discurso y razoacuten al mismo tiempo como lo vieron los griegos Lo es por el hecho mismo de ser lenguaje articulado consistente en una disposicioacuten orgaacutenica de partes en una clasificacioacuten formal de los objetos y los procesos () Es en efecto en y por La lengua como individuo y sociedad se determinan mutuamente El hombre ha sentido siempre - y los poetas a menudo lo han cantado- el poder fundador del lenguaje que instaura una realidad imaginaria doble que anima las cosas inertes hace ver lo que auacuten no es devuelve aquiacute lo desaparecido (1979 p58)

92

que Diceoacutepolis em Acarnenses eacute o porta-voz de seu criador assim como satildeo Joatildeo Grilo no

Auto da Compadecida e Joanes (o bobo) no Auto da Barca do inferno

Um caso especiacutefico da natureza polifocircnica reside nas personagens aristofacircnicas que

permeiam algumas de suas obras e apresentam-se em outros lugares como na abertura de Ratildes

onde Dioniso eacute visto como ator espectador e leitor Dioniso

Natildeo me venhas com histoacuterias Porque eu como espectador De cada vez que assisto a habilidades dessas Satildeo anos de vida que me tiram ( Silva 2014 p36-37) Dioniso Pois estava eu na coberta do navio a ler caacute com os meus bototildees a Androcircmeda quando de repente uma nostalgia me bate ao coraccedilatildeo sabes laacute tu de que maneira (Silva 2014 p41)

Aristoacutefanes estaacute claramente pondo em cena a voz do poeta usando-a por sua vez

para dar sonoridade a outras vozes de tal maneira que a voz do poeta logicamente nos

conduziraacute a uma forma de dialogismo cocircmico

A presenccedila do poeta eacute bastante palpaacutevel natildeo necessariamente como um intrusivo eu mas muitas vezes na variedade interna natildeo homogeneizada de recursos linguiacutesticos organizados para dar voz a outras vozes e que pode ser vista como uma habilidade presente nos outros do poeta capacitados para operar de forma critica diante do contexto social (DOBROV 1995 p 35)

A noccedilatildeo da voz do poeta tambeacutem eacute uacutetil para entender as parabases aristofacircnicas

passagens onde o puacuteblico eacute diretamente abordado e o liacuteder do coro frequentemente e

temporariamente assume um papel quase-autorial como na paraacutebase das Nuvens (vv 518-

526) ou na abertura do Auto da Compadecida quando o Palhaccedilo justifica sua escolha pra

representar o poeta que naquele instante eacute tambeacutem chamado pelo autor de ldquoa grande vozrdquo

PARAacuteBASE

Espectadores vou dizer-vos com desassombro a verdade e que Dioniso que me criou natildeo deixe mentir Bem eu poderia ter vencido e ser considerado um talento no momento em que por vos ter na conta de espectadores de bom gosto vos dei a provar antes de quaisquer outros a mais perfeita das minhas comeacutedias que me custou os olhos da cara de resto Apesar disso vi-me batido e afastado por rivais casca grossa sem o ter merecido E eacute a vocecircs a gente culta por quem empreendi tatildeo dura tarefa que eu censuro (OLIVEIRA e SILVA 1991 p 73)

93

PALHACcedilO Ao escrever esta peccedila onde combate o mundanismo praga de sua igreja o autor quis ser representado por um palhaccedilo para indicar que sabe mais do que ningueacutem que sua alma eacute um velho catre cheio de insensatez e de soleacutercia Ele natildeo tinha o direito de tocar nesse tema mas ousou fazecirc-lo baseado no espiacuterito popular de sua gente porque acredita que esse povo sofre eacute um povo salvo e tem direito a certas intimidades (SUASSUNA 2005 p23)

Na abertura da peccedila Auto da Compadecida Ariano Suassuna de pronto jaacute adverte

ao leitor sobre o que ele testemunharaacute sobre sua preferecircncia de ser um porta-voz palhaccedilo que

entende e seraacute ao longo da explanaccedilatildeo a voz do poeta

PALHACcedilO grande voz Auto da Compadecida O julgamento de alguns canalhas entre os quais um sacristatildeo um padre e um bispo para exerciacutecio da moralidade (SUASSUNA 2005 p15)

Sobre a passagem acima e tomando como premissa a teoria de Bakhtin (1990)

percebemos que ele (o autor) eacute a concentraccedilatildeo de vozes multidiscursivas dentre as quais deve

ressoar a sua voz As vozes autorizadas criam o fundo necessaacuterio para a voz do poeta fora do

qual satildeo imperceptiacuteveis natildeo ressoam E analisando as obras propostas no presente trabalho

devemos partir do princiacutepio que ambos os textos estatildeo permeados de outros textos e vozes

ecoantes natildeo somente a do autor mas outras vozes como daqueles que desejam a paz diante

da situaccedilatildeo de guerra ou daqueles que usam dos mais variados meacutetodos de sobrevivecircncia

frente as dificuldades vividas em suas relaccedilotildees e (con)textos sociais no sertatildeo apropriando-se

da vez e da voz do outro em diaacutelogos que por vezes satildeo quase inaudiacuteveis

De acordo com Barros (1999) nessa interaccedilatildeo promovida pelo discurso social

nenhuma palavra eacute nossa pois ela traz a perspectiva de outra voz e por meio dela e de seus

ecos(duplos) contribuiacutemos na construccedilatildeo da sociedade Assim tanto o texto aristofacircnico

quanto o suassuniano marcam a formaccedilatildeo de vaacuterios diaacutelogos de cruzamento de vozes e de

aparecimentos de duplos que se originaram em praacuteticas de linguagem diversificada

socialmente essas vozes que podem tambeacutem ter origem no gestual de cada personagem por

sua vez polemizam as accedilotildees executadas em cena ou se completam ou respondem umas agraves

outras e aos desejos de seus a(u)tores

Os textos satildeo dialoacutegicos porque resultam do embate de muitas vozes sociais podem no entanto produzir efeitos de polifonia quando essas vozes ou algumas delas deixam-se escutar ou de monofonia quando o diaacutelogo eacute mascarado e uma voz apenas faz-se ouvir (BARROS 1999 p06)

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Seguindo essa perspectiva entendemos a proposta de Barros (1999) ao afirmar

que todo texto eacute ldquotecido polifonicamente por fios dialoacutegicos de vozes que polemizam entre si

se completam ou respondem umas as outrasrdquo o que mostra que os textos escolhidos por mais

atemporais que possam parecer podem ser entrecruzados por outros textos e que se interligam

em uma ou mais vozes no mesmo texto ou seja a voz do autor interligando-se ou mesclando-

se com a voz do outro ou dos seus outros Tanto as palavras quanto agraves ideias que vecircm de outrem como condiccedilatildeo discursiva tecem o discurso individual de forma que as vozes ndash elaboradas citadas assimiladas ou simplesmente mascaradas ndash interpenetram-se de maneira a fazer-se ouvir ou a ficar nas sombras autoritaacuterias de um discurso social monologizado (BRAIT 1999 p 1415)

Assim fruto do ataque direto e pessoal tiacutepico da tonalidade vigorosa e didaacutectica

da comeacutedia aristofacircnicas a voz constitui-se como arma contra a animosidade de concorrentes

e rivais como forma de apresentar elementos indispensaacuteveis agrave educaccedilatildeo da cidade

Pretendendo obter a confianccedila do grande puacuteblico principalmente composto de verdadeiros acarnenses pois ele se disfarccedila de Teacutelefo diante dos espectadores tomando-os como cuacutemplices contra os supostos acarnenses do coro Diceoacutepolis se dirige ao puacuteblico e natildeo ao coro falando como mendigo e como poeta cocircmico (POMPEU p 30)

DICEOacutePOLIS Do mei de noacutes uns home ndash num tocirc falando da cidade Vecirc se lembram disso que num tocirc falando da cidade - Mas uns tipim imprestaacuteve de qualidade ruacuteim Sem valocirc da pioacute marca e estrangeirado hellip (ARISTOacuteFANES Acarnenses vv 515-518 ndash em versatildeo matuta para os personagens do campo POMPEU 2014)

A voz do poeta na comeacutedia de Aristoacutefanes confere ao personagem dando-lhe a

autoridade pretendida e a capacidade de fazer ou dizer mais do que o esperado A voz poeacutetica

em sua forccedila tambeacutem permite que Aristoacutefanes possa parodiar outras vozes para efeito cocircmico

criando um discurso carregado de ironia respaldado na capacidade de fazer dizer ou saber

algo que vai aleacutem da audiecircncia e que pode ser indispensaacutevel agrave Cidade

Ao usar a noccedilatildeo da voz do poeta para permitir que Diceoacutepolis fale fora dos limites

literaacuterio Aristoacutefanes cria um personagem inerentemente polifocircnico visto que assume

muacuteltiplas vozes e personagens como o Teacutelefo dramaacutetico de Euriacutepedes Diceoacutepolis passa

explicitamente a representar a voz direta do dramaturgo pondo em cena as palavras que saem

diretamente da boca de Aristoacutefanes

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Diceoacutepolis eacute a voz e a forccedila do proacuteprio argumento aristofacircnico uma vez que ele

proacuteprio se identifica como um poeta cocircmico representando tambeacutem qualquer poeta que

sofreu ataques poliacuteticos incomodado pela exploraccedilatildeo da Cidade pois ldquomesmo a comeacutedia

sabe alguma coisa sobre a verdade e a justiccedila Ao atribuir o caraacuteter muacuteltiplo a Diceoacutepolis

Aristoacutefanes acentua ainda mais seu desejo de dizer aleacutem do que a cidade esperava atraveacutes de

seu porta-voz um roceiro o anti-heroacutei conhecedor das artimanhas dos legisladores que

exploram a Cidade elemento responsaacutevel pela dinacircmica central da comeacutedia pois leva ao

puacuteblico por meio do risiacutevel as verdades necessaacuterias ao discurso justo incentivando-o ou ao

proacuteprio leitor a questionar a validade e a veracidade do jogo diante deles

Para Bergson (1987) o riso natildeo eacute apenas uma reprimenda social mas vem de um

desajuste entre a natureza primeira do homem (que eacute mutaacutevel) e uma espeacutecie de rigidez e

mecanizaccedilatildeo Essa rigidez se manifestaria tanto no niacutevel fiacutesico como no caraacuteter ou seja no

acircmbito moral e psicoloacutegico caracteriacutesticas exploradas no personagem Joatildeo Grilo onde o

risiacutevel e o cocircmico seriam uma forma de desfazer a rigidez social na tentativa de evidenciaacute-la

corrigi-la Para Suassuna (2007) o riso eacute como uma espeacutecie de puniccedilatildeo que a sociedade

confere a algo que a ameaccedila diz em seu livro Iniciaccedilatildeo agrave Esteacutetica

Desta forma o risiacutevel estaacute na inadequaccedilatildeo do comportamento humano

fiacutesicopsicoloacutegico uma vez que excede a normalidade sem causas traacutegicas Suassuna no Auto

da Compadecida nos deixa claro que ali o cocircmico surge como um alerta sobre algo que natildeo

estaacute funcionando bem nas sociedades sendo tambeacutem um instrumento revelador dos

problemas da sociedade como um todo

Atitude bem semelhante eacute do Auto que no uacuteltimo paraacutegrafo fala no Auto da

Compadecida por possuir um enredo que proporciona ao leitorespectador o riso e a dor

numa mistura de trageacutedia e comeacutedia por meio da ldquopalavrardquo (voz do poeta) que eacute dotada de

forccedila e promove sempre encontros com o leitor-ouvinte ou ouvinte-leitor levando-o a

estabelecer uma imensa teia de significados e suas relaccedilotildees reconhecimentos e interaccedilotildees no

mundo-palco de Ariano Suassuna onde ele proacuteprio cria (re)vecirc conceitos recria imagens se

subverte ao ordenado na ressonacircncia das vozes que encontram em Joatildeo Grilo o canal para

torna-se real como afirma Zumthor (2014)

A voz eacute uma subversatildeo ou uma ruptura da clausura do corpo Mas ela atravessa o limite do corpo sem rompecirc-lo ela significa o lugar de um sujeito que natildeo se reduz agrave localizaccedilatildeo pessoal Nesse sentido a voz desaloja o homem de seu corpo Enquanto falo minha voz me faz habitar a minha linguagem Ao mesmo tempo me revela um limite e me libera dele (ZUMTHOR p 81)

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[] Outra tambeacutem importante para nosso raciociacutenio aqui eacute a seguinte Escutar um outro eacute ouvir no silecircncio de si mesmo sua voz que vem de outra parte Essa voz dirigindo-se a mim exige de mim uma atenccedilatildeo que se torna meu lugar pelo tempo dessa escuta Essas palavras natildeo definiriam igualmente bem o fato poeacutetico (ZUMTHOR p 81)

Assim como feito por Diceoacutepolis a palavra-forccedila eacute tomada por Joatildeo Grilo

quando da sua chegada ao que seria a entrada do inferno Assim como um dia os homens

roubaram o fogo dos deuses Joatildeo Grilo a voz dupla do poeta detentor da fala das camadas

populares apropria-se do discurso dos poderosos a fim de que fundidos os dois surja um

texto intenso imbuiacutedo de criacuteticas sociais permeado de escaacuternio e desejo de sobrevivecircncia

No contexto de tensatildeo em que eacute apresentado Joatildeo Grilo eacute convertido a um anti-

heroacutei oprimido e no plano da eacutetica eacute um legiacutetimo malandro que usa do artifiacutecio da

malandragem como uma ferramenta autecircntica de sobrevivecircncia e de luta frente agraves

adversidades sobretudo agravequelas impostas pelos que deteacutem o poder A malandragem portanto

no seu entender natildeo constitui um problema ou pecado grave pois natildeo eacute utilizada para

engrandecimento proacuteprio ou para ascensatildeo econocircmica mas sim para a promoccedilatildeo da justiccedila

social Como podemos ler nos versos do cordelista Paulo Nunes Batista Grilo pra tudo no mundo Tinha uma definiccedilatildeo A sua filosofia Sempre lhe dava razatildeo Pois seguia este ditado Que diz ndash ldquoEstaacute perdoado Ladratildeo que rouba ladratildeordquo Vivendo embora do crime Joatildeo Grilo era caridoso Auxiliava a pobreza Soacute furtava o poderoso Roubava sempre dos nobres Matava a fome dos pobres Mostrando ser generoso (BATISTA 1958 p 28)

Como personagens piacutecaros tanto Joatildeo Grilo como Diceoacutepolis representam os

heroacuteis das obras mas suas construccedilotildees e formaccedilotildees se datildeo agraves avessas uma vez que suas

caracteriacutesticas inversas agrave de um heroacutei dispotildeem de ser aventureiro materialista desleal e de

caraacuteter duvidoso O personagem piacutecaro apresenta algumas caracteriacutesticas singulares sempre estaacute com fome nunca se sente completamente seguro Eacute o mais mortal dos mortais Aparenta natildeo ter princiacutepios morais Aparenta cortejar os poderosos mas acaba por desnudaacute-los como que involuntariamente desmascarando-lhes as franquezas Observa-se que o personagem piacutecaro se envolve em aventuras particulares que representam com fidelidade a realidade da sua condiccedilatildeo social Desta forma revela sua opiniatildeo e suas ideias desafiando as regras sociais (KOTHE 1985 p49)

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As accedilotildees das personagens tanto no Auto quanto na Comeacutedia constituem-se num

instante de ressonacircncia no qual o eu autoral passa a ser polifocircnico se projeta no outro que

tambeacutem se projeta no eu do autor demonstrando ter total conhecimento da realidade numa

dimensatildeo sonora e material pelo exerciacutecio do discurso revelador levado ao leitorexpectador

pelo autor atraveacutes de suas personagens Essa realidade se concretiza pela transferecircncia de

palavras de uma boca para outra como apontada por Bakhtin com forccedila e capacidade de

promover mudanccedilas de tonalidade e de intenccedilatildeo discursiva

Essa atitude representa uma possibilidade de (re)criaccedilatildeo de uma produccedilatildeo

cultural histoacuterica e social que supera a proacutepria noccedilatildeo de oralidade que emerge como porta-

voz de uma dimensatildeo coletiva na qual a singularidade de cada sujeito falante lhe outorga ou

recebe autoridade para agir criando um conjunto de vozes polivalentes pelas quais podemos

afirmar que o narrador passa a atuar como um poeta da voz cuja poeacutetica se inspira nas praacuteticas

sociais e nas vivecircncias de seus atores

511 Ao Hades e com riso frouxo

Em trecircs das peccedilas citadas haacute uma cena de julgamento na qual o poeta moraliza a

accedilatildeo das instituiccedilotildees bem como dos legisladores acontece no inferno ou no Hades ndash Ratildes ndash

Auto da Compadecida e Auto da Barca do Inferno a exceccedilatildeo de Acarnenses cujo cenaacuterio eacute a

Assembleia

Em Ratildes que foi presentada nas Leneias de 405 aC Aristoacutefanes lanccedila matildeo de

artifiacutecios em sua maioria cocircmicos para trazer agrave tona discussotildees literaacuterias da eacutepoca bem como

sua criacutetica social e seu discurso moralizante atraveacutes do qual resgatando-se o poeta tambeacutem

salva a cidade Como bem afirmava Ariano Suassuna a Comeacutedia Grega e o Auto Vicentino o

abasteceram de vaacuterias composiccedilotildees e em Ratildes especificamente observamos que a estrutura

serviu de base para a construccedilatildeo da cena do julgamento tanto em Suassuna quanto em Gil

Vicente

Segundo KOPELMAN (2012 p) Depois de quase um seacuteculo de apogeu o ciclo traacutegico se encerra com a morte de Soacutefocles e Euriacutepides Enquanto instituiccedilatildeo social da cidade ateniense o drama traacutegico reflete os embates e os questionamentos da polis Objetivando o espaccedilo cecircnico o drama eacute avaliado e legitimado pelos cidadatildeos nos Festivais que patrocinam as representaccedilotildees

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Em Ratildes Aristoacutefanes nos apresenta o cenaacuterio da descida para o infernoHades de um

Dioniso bufatildeo em busca de Euriacutepides como forma de tambeacutem reviver a trageacutedia Entretanto

reforccedila com isso a paroacutedia da descida de Heacutercules

O argumento da peccedila pode ser resumido da seguinte forma Dioniso desce ao Hades

para encontrar Euriacutepides morto recentemente e trazecirc-lo para a terra Atenas estaacute com falta de

poetas e Dioniso estaacute convencido de que Euriacutepides eacute o homem certo Na teatralidade

apresentada o proacuteprio deus eacute uma figura cocircmica eacute acompanhado por um escravo cocircmico e

tenta se dar ares de grandeza no mundo subterracircneo

Depois de uma viagem perigosa ao submundo Dioniso estaacute laacute com uma crise

literaacuteria em pleno andamento Euriacutepides derrotou Eacutesquilo do trono da poesia no Hades e uma

grande discussatildeo surgiu sobre ele Nesta reside o principal da accedilatildeo na peccedila Dioniso eacute

chamado para julgar os dois poetas e a disputa que eacute o cerne da comeacutedia eacute a competiccedilatildeo de

Eacutesquilo e Euriacutepides pelo trono da poesia traacutegica no Hades

Em primeiro lugar para compreender a importacircncia do agoacuten entre Eacutesquilo e

Euriacutepides dois poetas traacutegicos da polis temos que voltar novamente ao contexto do seacuteculo V

a C de Atenas A justificativa do agoacuten encontra-se na situaccedilatildeo da polis a decadecircncia de

Atenas e a ausecircncia de bons poetas jaacute que todos morreram Assim Dioniso possiacutevel alter ego

do proacuteprio Aristoacutefanes quer remediar a situaccedilatildeo entatildeo ele vai para o infernoHades

convencido a trazer de laacute Euriacutepides fazendo do agoacuten uma parte inesperada da peccedila

Aristoacutefanes apresenta de forma brilhante como personagem o proacuteprio Dioniso um

deus meio idiotizado completamente medroso mentiroso e totalmente engraccedilado um

viajante vestido de amarelo de botas mas estranhamente revestido com a pele do leatildeo de

Nemeia e empunhando um cacete como o mais macho dos heroacuteis seu irmatildeo Heacutercules

Para dar iniacutecio a sua empreitada ao lado de seu escravo Xacircntias rumo ao Hades

Dioniso procura por Heacutercules para que este o informe por qual caminho ele poderaacute seguir ateacute

sua chegada ao inferno visto que o proacuteprio Heacutercules jaacute havia realizado o mesmo percurso

No proacutelogo Dioniso explica o motivo da sua viagem Pois tal eacute o desejo que me consome por Euriacutepides (v 66)

Dioniso

Sinto falta de um poeta de talento Eacute que uns jaacute natildeo existem e os que existem natildeo

prestam (vv 72-72)

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Nos versos seguintes Dioniso prepara com antecedecircncia uma funccedilatildeo de juiz uma

vez que emite sua opiniatildeo sobre os outros poetas Iofonte Agatatildeo Xecircnocles Soacutefocles

Euriacutepides e os jovens poetas (vv78-83) Dioniso Isso natildeo pelo menos antes de tomar Iofonte agrave parte a soacutes longe do Soacutefocles para testar de que eacute que ele eacute capaz Aliaacutes o Euriacutepides que eacute um aldrabatildeo haacute-de dar por paus e por pedras para se raspar comigo para aqui Enquanto o outro que caacute era um bonacheiratildeo haacute-de continuar laacute em baixo o mesmo bonacheiratildeo

Como qualquer heroacutei eacutepico Dioniso na peccedila eacute apresentado como um viajante eacutepico

capaz de feitos heroacuteicos seguido de seu escravo e companheiro Xacircntias que protagonizaraacute ao

lado de seu mestre boa parte das cenas cocircmicas como nos coloca Silva (2014 p 34-39) ao

descrever a cena na qual Dioniso a peacute estaacute acompanhado de um escravo Xacircntias montado

num burro e carregando ao ombro as bagagens vai agrave procura de Heacutercules

Xacircntias Oacute patratildeo e se eu mandasse uma daquelas bocas do costume que sempre fazem rir os espectadores Dioniso Agrave vontadinha a que quiseres menos lsquoestou apertadorsquo Dessa poupa-nos que ateacute jaacute daacute voacutemitos Xacircntias E se fosse entatildeo uma outra daquelas piadas finas Dioniso Desde que natildeo seja lsquoestou agrave rascarsquo Xacircntias Qual haacute-de ser entatildeo Uma de escachar a rir Dioniso Tudo bem vai em frente Haacute soacute aquela famosa livra-te de me vires para caacute com essa Xacircntias Ah natildeo nem por sombras Este que aqui tenho natildeo bolas Quem o carrega sou eu Dioniso Mas carregas como se tu proacuteprio eacutes carregado por outro Xacircntias Tanto natildeo sei Agora que aqui o meu ombro estaacute apertadinho de todo laacute isso estaacute Dioniso Pois entatildeo jaacute que dizes que o burro te natildeo serve para nada eacute a tua vez de seres tu a pegar no burro e a carregar com ele Dioniso Salta daiacute malandro Que depois desta caminhada caacute estou eu diante da porta aonde para comeccedilar me propunha vir Ei moccedilo Oacute moccedilo Moccedilo

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Heacutercules Quem eacute Seja laacute quem for mandou-se aos coices agrave porta que nem um centauro Ei Explica-me laacute Que raio de ideia vem a ser esta Dioniso Oacute amigo chega aqui Preciso de falar contigo Heacutercules Mas eacute que natildeo consigo espantar o riso ao ver uma pele de leatildeo por cima de um vestido amarelo Que ideia se te meteu na cabeccedila O que fazem juntos um par de botas de senhora e um cacete8 Por que paragens tens tu andado Dioniso Andei embarcado agraves ordens do Cliacutestenes Heacutercules E bateste-te no combate naval Dioniso Bati pois Navios inimigos metemos no fundo uma boa duacutezia deles Heacutercules Vocecircs os dois Dioniso Sim claro Xacircntias Esta ateacute me deixou de olhos arregalados Dioniso Pois estava eu na coberta do navio a ler caacute com os meus bototildees a Androacutemeda quando de repente uma nostalgia me bate ao coraccedilatildeo sabes laacute tu de que maneira Heacutercules Uma nostalgia te bate ao coraccedilatildeo De que dimensatildeo Dioniso Coisa pequena pela medida de Moacutelon Heacutercules Por uma mulher Dioniso Nada disso Heacutercules Por um rapazinho entatildeo Dioniso Nem pensar Heacutercules Por um homem se calhar Dioniso Ai ai Heacutercules Com que entatildeo de panelinha com o Cliacutestenes hem Dioniso Deixa-te de gozo mano que quem se vecirc nelas sou eu Tal eacute a paixatildeo que me devora Heacutercules Paixatildeo Que paixatildeo maninho Dioniso Nem te sei dizer Mas enfm vou tentar explicar-ta por analogia Jaacute alguma vez sentiste assim um desejo suacutebito de sopa Heacutercules

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De sopa Bolas mil vezes na vida Dioniso E entatildeo faccedilo-me entender ou eacute preciso mais explicaccedilotildees Heacutercules Quanto agrave sopa natildeo Percebi perfeitamente Dioniso Pois tal eacute o desejo que me consome por Euriacutepides Heacutercules Como assim Por Euriacutepides o falecido Dioniso E natildeo haacute quem me tire da cabeccedila a ideia de ir agrave procura dele Heacutercules O quecirc Ao Hades laacute em baixo Dioniso Sim pois e mais abaixo ainda se um tal lugar existir Heacutercules Com que intenccedilatildeo Dioniso Sinto falta de um poeta de talento Eacute que uns jaacute natildeo existem e os que existem natildeo prestam Heacutercules Como assim Entatildeo o Iofonte natildeo estaacute vivo Dioniso Essa eacute ateacute a uacutenica coisa de jeito que por aiacute anda e mesmo assim tenho duacutevidas Porque ateacute sobre esse assunto me falta saber bem o que se passa Heacutercules E porque natildeo trazeres Soacutefocles de preferecircncia a Euriacutepides se tens de trazer algueacutem laacute de baixo Dioniso Isso natildeo pelo menos antes de tomar Iofonte agrave parte a soacutes longe do Soacutefocles para testar de que eacute que ele eacute capaz Aliaacutes o Euriacutepides que eacute um aldrabatildeo haacute-de dar por paus e por pedras para se raspar comigo para aqui Enquanto o outro que caacute era um bonacheiratildeo haacute-de continuar laacute em baixo o mesmo bonacheiratildeo Heacutercules E o Aacutegaton por onde anda ele Dioniso Pocircs-se a mexer foi um ar que lhe deu Um bom poeta que deixou saudades nos amiguinhos dele Heacutercules Para que canto do mundo coitado Heacutercules Ora deixa caacute ver por qual deles hei-de comeccedilar Qual haacute-de ser Haacute um que parte da corda e do banco Enforca-te Dioniso Vira essa boca para laacute Eacute um sufoco esse que dizes Heacutercules Haacute tambeacutem um outro um atalho a direito pisado que eacute um mimo que passa pelo almofariz Dioniso Eacute a cicuta que queres dizer

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Heacutercules Ora nem mais Dioniso Esse eacute frio de cortar agrave faca mesmo Faz logo enregelar as canelas Heacutercules Queres que te diga um raacutepido e sempre a descer Dioniso Corsquoos diabos esse sim que como andarilho sou um desastre Heacutercules Pois bem vai ateacute ao Ceramico Dioniso E depois Heacutercules Sobe agravequela torre alta que laacute estaacute Dioniso E o que eacute que eu faccedilo Heacutercules Assiste laacute do alto agrave largada da corrida dos archotes E depois quando o puacuteblico gritar lsquopartidarsquo tu partes laacute de cima tambeacutem Dioniso Para onde Heacutercules Caacute para baixo Dioniso Assim dou mas eacute cabo dos miolos Natildeo natildeo vou seguir por esse caminho de que falas Heacutercules Entatildeo qual haacute-de ser Dioniso Aquele mesmo por onde tambeacutem tu outrora laacute chegaste Heacutercules Soacute que esse eacute uma maccediladoria de marinharia Para comeccedilar vais dar a um lago enorme sem fundo Dioniso E depois como eacute que eu atravesso Heacutercules Num barquinho assim pequenininho um velho barqueiro vai-te atravessar por dois oacutebolos a passagem

Ao seguir as informaccedilotildees dadas por Heacutercules Dioniso encontra o barqueiro

Caronte que cobra dois oacutebolos para atravessaacute-lo pelo pacircntano Durante esta travessia Dioniso

discute com as Ratildes que habitam o ambiente porque o barulho recorrente de seus

brequequequequex coax coax o deixam irritado

No inferno Dioniso eacute ameaccedilado de morte pelo Eacuteaco (juiz dos mortos) que o

confunde com Heacutercules jaacute que Dioniso estava disfarccedilado e o acusa-o de ter levado o catildeo de

guarda do inferno(vv605-608)

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Eacuteaco Prendam-mo depressa este ladratildeo de catildees para que leve o corretivo que merece Vamos despachem-se Dioniso A coisa estaacute torta para algueacutem Xacircntias Vatildeo agravequela parte Alto laacute Eacuteaco Ai eacute queres luta Oacute Camelo oacute Macacatildeo oacute Peidoso Cheguem caacute e faccedilam frente a este gajo

Assim tem-se iniacutecio a algo que seria o agoacuten entre os poetas Euriacutepides e Eacutesquilo (vv 860-870)

Euriacutepides Pois por minha parte estou pronto ndash e longe de mim escusar-me ndash a morder ou a ser mordido primeiro como ele quiser nos diaacutelogos nos cantos nas fibras nevraacutelgicas da trageacutedia e ndash caramba ndash ateacute no Peleu no Eacuteolo no Meleagro e principalmente no Teacutelefo Dioniso (a Eacutesquilo) E tu o que pretendes fazer Diz laacute Eacutesquilo Eacutesquilo O que eu queria era natildeo estar metido nesta discussatildeo Porque um concurso entre noacutes os dois nunca eacute imparcial Dioniso Como assim Eacutesquilo Eacute que a minha poesia natildeo morreu comigo enquanto a dele bateu as botas com ele logo ele pode recitaacute-la aqui Mas enfim jaacute que assim o entendes natildeo haacute outra soluccedilatildeo Dioniso O incenso e o fogo vamos laacute Quero fazer uma prece antes de me assumir como aacuterbitro das vossas subtilezas para que atue com toda a competecircncia de que for capaz E vocecircs acompanhem-me com um canto agraves Musas A entrada do Coro acirra a tomada de decisatildeo por parte de Dioniso (vv875) Coro Donzelas nove filhas de Zeus Musas divinas que do alto olhais os espiacuteritos subtis e engenhosos dos poetas cinzeladores de sentenccedilas agora que eles se confrontam com golpes estudados e se digladiam com argumentos sinuosos observai a potecircncia 880 destas duas bocas tatildeo haacutebeis em produzir palavreado e serradura de versos Pois estaacute iminente o grande concurso do talento Dioniso (a ambos os poetas) (vv 885 - 895) Faccedilam tambeacutem a vossa oraccedilatildeo vocecircs os dois antes de recitarem os vossos versos Eacutesquilo Demeacuteter tu que alimentaste o meu espiacuterito faz com que eu seja digno dos teus misteacuterios Dioniso (a Euriacutepides) Agora tu toma laacute tambeacutem o incenso e faz uma oferenda Euriacutepides Natildeo obrigado Satildeo outros os deuses da minha devoccedilatildeo Dioniso Deuses exclusivos de cunhagem nova Euriacutepides Absolutamente

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Dioniso Pois bem invoca entatildeo os teus deuses privativos Euriacutepides Eacuteter que me alimentas Eixo da minha liacutengua Inteligecircncia e voacutes Narinas de faro penetrante fazei com que eu consiga refutar com eficaacutecia os argumentos que me surjam pela frente Coro (895-900) Pois bem tambeacutem noacutes estamos desejosos de ouvir estes dois geacutenios e de ver que batalha de argumentos vocecircs vatildeo esgrimir Vamos decircem iniacutecio agrave disputa A liacutengua de um e de outro eacute viperina o acircnimo natildeo lhes carece de audaacutecia nem o espiacuterito de agilidade Pode de um esperar-se que tenha uma tirada de espiacuterito limada com requinte do outro que arranque as palavras pela raiz que agarre nelas e desanque o inimigo levantando uma poeirada de versos Corifeu (aos dois poetas) (vv905 -912) Vamos depressa eacute hora de cada um se pronunciar Mas tratem de usar uma linguagem de bom gosto nada de floreados nem dessas patacoadas acessiacuteveis a qualquer um Euriacutepides Muito bem Quanto a mim e ao que valho como poeta eacute mateacuteria que deixo para depois Para jaacute vou desmascarar este sujeito como um parlapatatildeo e um vigarista e revelar por que processos ele fazia o ninho atraacutes da orelha de um puacuteblico de imbecis criado na escola de Friacutenico Antes de mais nada sentava uma personagem solitaacuteria coberta de veacuteus um Aquiles ou uma Nigraveobe por exemplo sem lhe mostrar a cara ndash um perfeito alarde de trageacutedia Quanto a tugir ou mugirnem poacute Dioniso (vv913) (a Eacutesquilo) Era isso sim era isso mesmo Dioniso (vv922- 930) Olha o safado Como ele fazia de mim parvo Porque te torces todo e me potildees essa cara de caso Euriacutepides Eacute por eu o desmascarar A seguir depois destas patacoadas quando a peccedila jaacute ia a meio saiacutea-se com uma duacutezia de mastodontes daquele palavreado de sobrolho e penacho uns papotildees de meter medo desconhecidos dos espectadores Eacutesquilo Com mil demoacutenios Dioniso Cala-te Euriacutepides Que se percebesse nem uma palavrinha para amostra Dioniso Natildeo ranjas os dentes Euriacutepides Eram soacute Escamandros trincheiras e gravadas nos escudos aacuteguias-grifos forjadas em bronze e palavras montadas a cavalo que natildeo era faacutecil digerir

Apoacutes estas discussotildees nas quais as obras literaacuterias e seus proacutelogos satildeo avaliados

Dioniso eacute forccedilado a decidir rapidamente sobre quem seraacute o vencedor do concurso e decide

pesar os versos de cada um na balanccedila O prato de Eacutesquilo pesou mais entatildeo Dioniso

105

novamente pressionado por Hades se pronunciou dizendo que resgataria do inferno Eacutesquilo

por sua visatildeo ciacutevica e educadora da cidade

No entanto o que foi realmente decisivo foi o efeito moral da poesia isto eacute a

capacidade do poeta de tornar as pessoas melhores E eacute esta dimensatildeo moral da poesia que fez

Dioniso escolher Eacutesquilo porque sua proposta era um plano de accedilatildeo contra o que

representava Euriacutepides A vitoacuteria de Eacutesquilo nos diz que a funccedilatildeo social da poesia eacute mais

importante do que qualquer outro aspecto para a polis Assim Aristoacutefanes buscou natildeo apenas

divertir o puacuteblico em sua representaccedilatildeo mas tambeacutem conscientizar as pessoas de que atraveacutes

de mudanccedilas no modelo poliacutetico o antigo esplendor poderia ser restaurado para Atenas

Importante notar que seja em Acarnenses Ratildes Auto da Compadecida ou no Auto

da Barca do Inferno os autores mantiveram uma unidade teatral atemporal o julgamento A

cena do julgamento nas peccedilas referidas marca sensivelmente a preocupaccedilatildeo dos autores em

salvar a cidade e moralizar suas instituiccedilotildees quer seja em Atenas Portugal ou Taperoaacute

Outro fato que deve ser considerado do ponto de vista literaacuterio eacute a divisatildeo das

peccedilas a partir da ideia de julgar para salvar visto que todas estatildeo dividas em duas partes

sendo a primeira burlesca e fantaacutestica tendo como mote a viagem ao mundo dos mortos ndash

encontro com o encourado ndash Barqueiroanjo democircnio ndash poetas mortos e a paroacutedia literaacuteria do

Teacutelefo de Euriacutepides na qual o teatro vai agrave cidade e a segunda com feiccedilatildeo moral e tambeacutem

literaacuteria seja pela retomada da consciecircncia das injusticcedilas (mesmos mortos) pela

condenaccedilatildeoabsolviccedilatildeo ou em Acarnenses pela delaccedilatildeo na Assembleia de toda a maacute sorte

pela qual passa o povo devido agrave guerra

52 O julgamento O riso a morte e o descanso do (in)justo

A ideia de justiccedila sem duacutevida ocupou um lugar privilegiado na ponderaccedilatildeo dos

antigos gregos Desvendando o seu significado determinando o seu alcance especificando o

seu papel - poliacutetico e ou social regulando a sua praacutetica esta foi sempre uma preocupaccedilatildeo

das mais genuiacutenas

Nesta parte do nosso trabalho refletiremos sobre como a ideia de justiccedila tambeacutem

encontra no Auto e na Comeacutedia grega uma expressatildeo proacutepria Atenta aos valores de natureza

social eacutetica e poliacutetica tanto a Comeacutedia quanto o Auto proclamam abertamente a prerrogativa

de saber o que eacute verdadeiramente justo

106

No Auto da Compadecida e no Auto da Barca do Inferno obras para agraves quais

voltaremos nossa atenccedilatildeo ceacuteu e inferno se misturam na promoccedilatildeo da justiccedila e encontram no

humano e no divino espaccedilos para a construccedilatildeo do que seria justo e bem medido ao ser

humano

Nesse cenaacuterio conturbado e perturbador morte e vida se apresentam natildeo de forma

antagocircnica mas dependentes ligadas ao natural do humano viver os prazeres sem a devida

preocupaccedilatildeo com o dia do juiacutezo final no qual todos seratildeo responsabilizados pelos atos

cometidos pendentes para o bem ou para o mal

A morte eacute um fato universal que desde tempos imemoriais tem preocupado a

humanidade Eacute possiacutevel que todas as culturas tenham dedicado rituais simboacutelicos para tentar

sobreviver agrave morte uma realidade tatildeo justa que afeta a todos igualmente Rico pobre

Soberanos e mendigos ningueacutem se livra de ser inerte Embora o corpo pereccedila muitas

sociedades tecircm sido obstinadas em tentar salvar a alma do falecido ou pelo menos

encomendaacute-las a um julgamento (in)justo

No Auto da Compadecida a morte vinculada a Joatildeo Grilo estaacute envolvida em um

clima de tensatildeo entre a comeacutedia e a trageacutedia Ateacute mesmo no momento da morte apoacutes o tira

dado pelo comparsa de Severino Joatildeo faz graccedila diante da morte ldquoDeixe de latomia Chicoacute

parece que nunca viu um homem morrer Nisso tudo eu soacute lamento eacute perder o testamento do

cachorro (SUASSUNA 1995 p133)

A cena do julgamento no Auto da Compadecida eacute uma recriaccedilatildeo advinda do

imaginaacuterio popular cordelesco que vecirc na morte a possibilidade de se encontrar com o divino

mesmo sabendo que a entrada para o ceacuteu purgatoacuterio ou inferno estaacute ligada a um acerto de

contas um julgamento Ariano Suassuna ao apresentar essa imagem resgata os grandes autos

medievais que tinham uma preocupaccedilatildeo religiosa como o Auto da Barca do Inferno de Gil

Vicente obra na qual se verifica que haacute embora de modo diferente da obra de Suassuna a

figura do Diabo acusando cada um daqueles que aparecem indicando para qual barca devem

ir

No Auto da Barca do Inferno tambeacutem conhecido como o Auto da Moralidade o

termo morte foi associado por Gil Vicente ao discernimento entre o Bem e o Mal que se

reflete como elemento necessaacuterio para a expiaccedilatildeo dos pecados Assim a locuccedilatildeo latina

castigat ridendo mores encontra base na temaacutetica da equitaccedilatildeo dos costumes do castigado

sendo representada na vida pelo teatro de forma a caracterizar certos aspectos da sociedade

portuguesa o que tambeacuterm favorece uma anaacutelise mais vivamente sagaz com visatildeo criacutetica de

107

alguns personagens tiacutepicos representantes de certos estratos sociais e espectros

socioeconocircmicos muito variados presentes em Aristoacutefanes e Ariano Suassuna

Aleacutem de grande influecircncia sobre da literatura de Ariano Suassuna a obra

vicentina representa o encontro entre a heranccedila medieval e o espiacuterito renascentista

sagazmente criacutetico revelador e delatoacuterio da imoralidade institucional e dos viacutecios da

sociedade incapaz de assumir a responsabilidade dos seus atos e da sua conduta como se

pode constatar no diaacutelogo inicial entre o Diabo e o Fidalgo na cena II no Auto da Barca do

Inferno na qual o autor nos prepara para o julgamento dos passageiros das naus

Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz

FIDALGO Esta barca para onde vai Que assim estaacute apercebida DIABO Vai para a ilha perdida E haacute de partir daqui a nada FIDALGO E para laacute vai a senhora DIABO Sou um senhor Ao vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isto um corticcedilo DIABO Porque a vedes daiacute de fora FIDALGO Pois sim e por que terra passais DIABO Para o inferno senhor FIDALGO Uma terra sem-sabor DIABO O quecirc Mas tambeacutem disso zombais FIDALGO E que passageiros achais Para tal embarcaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo Para ir no nosso caishellip FIDALGO Parece-te a ti assim DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que deixo na outra vida Quem reze sempre por mim DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi Tu que viveste a teu prazer

108

Pensando caacute guarnecer (salvares-te) Por aqueles que laacute rezam por ti Embarcai agora embarcai Que haveis de ir nas traseiras Mandai meter a cadeira Como tambeacutem passou o vosso pai (Gil Vicente p7-11)

Pela passagem acima fica clara a intenccedilatildeo do poeta em preparar o leitor para a

carga de zombaria que seraacute utilizada como recurso estiliacutestico necessaacuterio capaz de impor a

moralidade perante um conjunto significativo de tipos cocircmicos que post mortem requerem

suas entradas no ceacuteu Gil Vicente conhecedor das fragilidades de sua sociedade apresenta em

seu inferno cocircmico tipos caracteriacutesticos que podem perfeitamente ser ajustados agraves literaturas

mais atuais

Satildeo personagens como o fidalgo o onzeneiro o frade o sapateiro a alcoviteira o

judeu o corregedor ou o procurador entre outros os quais o poeta decide tornar natildeo soacute alvo

de galhofa geral mas tambeacutem um exemplo a natildeo seguir expondo-os explicitamente diante do

julgamento final despojados de todas as riquezas e possessotildees terrenas

521 Aqui eacute o inferno vocecirc pode brincar

Joatildeo Joatildeo Morreu Ai meu Deus morreu pobre de Joatildeo Grilo Tatildeo amarelo tatildeo safado e morrer assim Que eacute que eu faccedilo no mundo sem Joatildeo Joatildeo Joatildeo Natildeo tem mais jeito Joatildeo Grilo morreu Acabou-se o Grilo mais inteligente do mundo Cumpriu sua sentenccedila e encontrou-se com o uacutenico mal irremediaacutevel aquilo que eacute a marca de nosso estranho destino sobre a terra aquele fato sem explicaccedilatildeo que iguala tudo o que eacute vivo num soacute rebanho de condenados porque tudo o que eacute vivo morre (ARIANO SUASSUNA 2005 p113)

A cena transcrita na citaccedilatildeo eacute o iniacutecio do que consideramos como o argumento

teatral que motiva o riso no julgamento das almas diferente do resto da obra pois as situaccedilotildees

que satildeo abordadas neste ato revelam em primeiro plano um tom traacutegico mas ao contraacuterio

pelo desvio que encerra a representaccedilatildeo causam natildeo o temor ou pena mas o riso e a reflexatildeo

A exemplo de Aristoacutefanes e Gil Vicente Suassuna utiliza dos expedientes da

paraacutebase e do coro como seus proacuteprios lugares ideoloacutegicos representando o locus privilegiado

onde podemos traccedilar o efeito de suas poliacuteticas e particularmente o teor criacutetico que se

apresenta nos versos dedicados ao coro encenado pelo personagem-palhaccedilo Na verdade o

significado do discurso moralizante e humoriacutestico introduzido pelo coreuta circense eacute sempre

orientado para um corpo social ou para certos grupos e quando se expressa com tom poeacutetico

de uma comeacutedia eacute sempre uma expressatildeo dirigida a um grupo especiacutefico instituiccedilotildees de uma

dada realidade

109

No caso do tribunal celeste ou na travessia das naus essa realidade move e

denuncia as cenas que se desenvolvem pelo intenso debate entre o Anjo ou o Diabo com seus

hoacutespedes e no caso do Auto da Compadecida do anti-heroacutei Joatildeo Grilo com os mortos e seres

divinizados a partir do proacutelogo estabelecido pela entrada do Palhaccedilo que adverte ao puacuteblico

sobre o assunto posto justificando a dupla funccedilatildeo apresentar o argumento da peccedila e

estabelecer a captatio beneuolentiae 27 clamando pela atenccedilatildeo da plateia dando o tom cocircmico

desde o iniacutecio para prender a atenccedilatildeo da assistecircncia sobre os ensinamentos que ali seratildeo

apresentados PALHACcedilO Que bem precisada anda disso Saia e vaacute rezar laacute fora Muito bem com toda essa gente morta o espetaacuteculo continua e teratildeo oportunidade de assistir seu julgamento Espero que todos os presentes aproveitem os ensinamentos desta peccedila e reformem suas vidas se bem que eu tenha certeza de que todos os que estatildeo aqui satildeo uns verdadeiros santos praticantes da virtude do amor a Deus e ao proacuteximo sem maldade sem mesquinhez incapazes de julgar e de falar mal dos outros generosos sem avareza oacutetimos patrotildees excelentes empregados soacutebrios castos e pacientes E basta se bem que seja pouco Muacutesica (ARIANO SUASSUNA 2005 p117)

O desenvolvimento do julgamento traz elementos superiores e sobrenaturais

comuns na trageacutedia grega que Suassuna representa ao modo nordestino como o Diabo o

Encourado Jesus e Maria A presenccedila dessas divindades na obra que aliaacutes se apresentam a

partir do imaginaacuterio maacutescara do psicoloacutegico aleacutem de suscitar a reflexatildeo sobre os atos que o

homem comete em vida manifesta a denuacutencia que o autor imbrica no texto revelando que de

alguma forma a sociedade seraacute julgada e poderaacute sofrer puniccedilotildees apontando desta forma o

caraacuteter cocircmico e moralizador do auto como vemos abaixo DEMOcircNIO Calem-se todos Chegou a hora da verdade JOAtildeO GRILO Entatildeo jaacute sei que estou desgraccedilado porque comigo era na mentira DEMOcircNIO Vocecircs agora vatildeo pagar tudo o que fizeram ENCOURADO Vamos aos fatos Que vergonha Todos tremendo Tatildeo corajosos antes tatildeo covardes agora O Senhor Bispo tatildeo cheio de dignidade o padre o valente Severino E vocecirc o Grilo que enganava todo o mundo tremendo como qualquer safado JOAtildeO GRILO Que eacute que posso fazer Jaacute disse mais de cem vezes a mim que natildeo tremesse e tremo ENCOURADO

27 Captatio benevolentiae eacute uma categoria retoacuterica que visa capturar a boa vontade do puacuteblico no iniacutecio de um discurso (exoacuterdio prooemium) ou apelo No entanto o termo teacutecnico natildeo eacute encontrado nos manuais retoacutericos da Antiguidade Latinafoi usado pela primeira vez por Boeacutecio (falecido em 524 EC) em seu comentaacuterio sobre os escritos de Ciacutecero Literalmente significa atrair a benevolecircncia Refere-se a uma estrateacutegia usada quando o autor se dirige ao puacuteblico leitor visando conquistar a sua simpatia In E-Dicionaacuterio de Termos Literaacuterios (EDTL) coord de Carlos Ceia ISBN 989-20-0088-9 lthttpwwwedtlcomptgt consultado em 02-09-2018

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E tem razatildeo porque o que vai lhe acontecer eacute coisa muito seacuteria Eacute engraccedilado como vocecircs empregam agraves vezes a palavra exata sem terem consciecircncia perfeita do fato O que vocecirc sentiu foi exatamente um arrepio de danado Leve a todos para dentro SEVERINO Ai meu Deus vou pagar minhas mortes no inferno BISPO Senhor democircnio tenha compaixatildeo de um pobre Bispo ENCOURADO Ah compaixatildeo Como pilheacuteria eacute boa Vamos todos para dentro Para dentro jaacute disse Todos para o fogo eterno para padecer comigo BISPO Ai Leve o Padre PADRE Ai Leve o sacristatildeo SACRISTAtildeO Ai Leve o Severino JOAtildeO GRILO Parem parem Acabem com essa molecagem JOAtildeO GRILO Acabem com essa molecagem Diabo dum barulho danado Eacute assim eacute Eacute assim eacute ENCOURADO Assim como JOAtildeO GRILO Eacute assim de vez Eacute soacute dizer ldquopra dentrordquo e vai tudo Que diabo de tribunal eacute esse que natildeo tem apelaccedilatildeo ENCOURADO Eacute assim mesmo e natildeo tem para onde fugir JOAtildeO GRILO Sai daiacute pai da mentira Sempre ouvi dizer que para se condenar uma pessoa ela tem de ser ouvida BISPO Eu tambeacutem Boa Joatildeo Grilo PADRE Boa Joatildeo Grilo MULHER Boa Joatildeo Grilo PADEIRO Vocecirc achou boa MULHER Achei PADEIRO Entatildeo eu tambeacutem achei Boa Joatildeo Grilo SEVERINO Eacute isso mesmo e eu vou apelar para Nosso Senhor Jesus Cristo que eacute quem pode saber ENCOURADO Besteira maluquice (ARIANO SUASSUNA 2005 p118-124)

Na defesa dos mortos Joatildeo Grilo reveste-se de autoridade e encarna o tiacutepico heroacutei

das epopeias dotado de coragem e bravura que natildeo desiste de viver mesmo depois da morte

persistindo no seu intuito de vencer Joatildeo ultrapassa o previsto e decide se vestir natildeo com as

roupas do rei Miacutesio mas de sua feacute estrateacutegia inconteste para alcanccedilar a intercessatildeo da matildee de

Jesus figura justa e poderosa capaz de levaacute-lo agrave absolviccedilatildeo PADRE

111

Acho que nosso caso eacute sem jeito Joatildeo Em Deus natildeo existe contradiccedilatildeo entre a justiccedila e a misericoacuterdia Jaacute fomos julgados pela justiccedila a misericoacuterdia diraacute a mesma coisa (ARIANO SUASSUNA 2005 p 142)

JOAtildeO GRILO E difiacutecil quer dizer sem jeito Sem jeito por quecirc Vocecircs satildeo mesmo uns pamonhas qualquer coisinha estatildeo arriando Natildeo vecirc que tiveram tudo na terra Se tivesse tido que aguentar o rojatildeo de Joatildeo Grilo passando fome e comendo macambira na seca garanto que tinha mais coragem Quer ver eu dar um jeito nisso Padre Joatildeo (ARIANO SUASSUNA 2005 p 142)

Autorizado ou natildeo por Suassuna em algumas passagens o certo eacute que tanto Joatildeo

Grilo como Chicoacute inconfundiacuteveis em seus quiprocoacutes nos convidam pelos tons acentos e

ritmos compassados do cordel a uma experiecircncia uacutenica de denuacutencia do social bem como

reveladora das caracteriacutesticas mais comuns aos habitantes de Taperoaacute espaccedilo universal da

recriaccedilatildeo promovida pelo bardo nordestino

52 2 A Voz a esperteza e a malandragem do poeta Nem tudo que eacute vivo morre

(Anti)Heroacutei ou Heroacutei Ser ou natildeo ser quem decide eacute o leitor O fato eacute que

ligado aos misteacuterios divinos por uma feacute inabalaacutevel Joatildeo Grilo mesmo diante de tantas adversidades busca forccedilas em suas oraccedilotildees e novamente cheio de esperteza e sabedoria invoca atraveacutes da voz do autor a Compadecida por meio dos versos de cordel de Canaacuterio Pardo para dar iniacutecio a sua defesa

JOAtildeO GRILO

Ah isso eacute comigo Vou fazer um chamado especial em verso Garanto que ela vem querem ver (ARIANO SUASSUNA 2005 p 142) Valha-me Nossa Senhora Matildee de Deus de Nazareacute A vaca mansa daacute leite A braba daacute quando quer A mansa daacute sossegada A braba levanta o peacute Jaacute fui barco fui navio Mas hoje sou escaler Jaacute fui menino fui homem Soacute me falta ser mulher () Valha-me Nossa Senhora Matildee de Deus de Nazareacuterdquo (ARIANO SUASSUNA 2005 p 144)

Usando de sua malandragem Joatildeo Grilo se garante por essa invocaccedilatildeo trazendo a

Compadecida para o julgamento que inicia um debate contra o Diabo para evitar sua

condenaccedilatildeo A COMPADECIDA

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E para que foi que vocecirc me chamou Joatildeo JOAtildeO GRILO Eacute que esse filho de chocadeira quer levar a gente para o inferno Eu soacute podia me pegar com a senhora mesmo ENCOURADO As acusaccedilotildees satildeo graves Seu filho mesmo disse que haacute tempo natildeo via tanta coisa ruim junta A COMPADECIDA Ouvi as acusaccedilotildees Estaacute bem vou ver o que posso fazer JOAtildeO GRILO Estaacute vendo Isso aiacute eacute gente e gente boa natildeo eacute filha de chocadeira natildeo Gente como eu pobre filha de Joaquim e de Ana casada com um carpinteiro tudo gente boa MANUEL E agora noacutes Joatildeo Grilo Por que sugeriu o negoacutecio para os outros e ficou de fora JOAtildeO GRILO Porque modeacutestia agrave parte acho que meu caso eacute de salvaccedilatildeo direta ENCOURADO Era o que faltava E a histoacuteria que estava preparada para a mulher do padeiro MANUEL Eacute Joatildeo aquilo foi grave JOAtildeO GRILO E o senhor vai dar uma satisfaccedilatildeo a esse sujeito me desgraccedilando para o resto da vida Valha-me Nossa Senhora matildee de Deus de Nazareacute jaacute fui menino fui homem A COMPADECIDA Soacute lhe falta ser mulher Joatildeo jaacute sei Vou ver o que posso fazer Lembre-se de que Joatildeo estava se preparando para morrer quando o padre o interrompeu (ARIANO SUASSUNA 2005 p 146-158)

Como vemos eacute no cenaacuterio tragicocircmico do Agoacuten dos mortos que o Poeta de

forma moralizante se dirige agrave audiecircncia nas vozes de Jesus e da Compadecida para tratar das

questotildees ligadas agrave igreja e a seus representantes O mesmo natildeo se aplica a Joanes (o parvo)

que no cais do Purgatoacuterio indagado pelo Diabo na barca vicentina natildeo tem defensores ou

fiadores de sua graccedila em vida e contaraacute apenas com suas verdades ingecircnuas atitude que serve

para a quebra da seriedade comum ao julgamento e aos juiacutezes como refere Miranda (2001)

ao tratamento humoriacutestico empregado pelo autor

[hellip] a seriedade do tema eacute quebrada pelo tratamento que recebe ningueacutem pode chorar a sua sorte quando se depara com a prefiguraccedilatildeo de um juiacutezo final O modo como as personagens descobrem a sentenccedila que lhes foi determinada daacute- se de forma alegre e divertida pois o rigor da sentenccedila contrasta com o realismo grotesco de certos personagens e com o sarcasmo do interrogatoacuterio Disso decorre a comicidade da comeacutedia dos viacutecios (MIRANDA 2001 p61)

Mais adiante a Grande Voz - Gil Vicente ndash prepara seus leitores para o processo

de elaboraccedilatildeo e desenvolvimento da histoacuteria do parvo a partir do sentimento traacutegico gerado

pela morte que de iniacutecio natildeo eacute aceita e pelo elemento cocircmico presente no enfrentamento da

verdade do poacutes-morte num ritmo binaacuterio que permite o nivelamento de uma sociedade

estratificada

NarradorAutor

113

Vem Joane o Parvo e diz ao barqueiro do Inferno PARVO Oh desta DIABO Quem eacute PARVO Eu sou Eacute esta a nossa naviarra DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Ah Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Oh Pelo pesar do meu avocirc (dor choro) Resumindo Vim a adoecer E em maacute hora fui morrer E nela para mim soacute DIABO E de que morreste PARVO De quecirc Acho que de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Que maacute rabugem que te decirc (um insulto) DIABO Entra Potildee aqui o peacute PARVO Oacute paacute Que natildeo tombe o zambuco() (a barcaccedila) DIABO Entra tolo eunuco Que nos vai embora a mareacute PARVO Aguardai aguardai um pouco E aonde havemos noacutes de ir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-a-a DIABO Ao Inferno Entra caacute PARVO Ao Inferno Espera laacute Ui Ui Eacute a Barca do cornudo Pecircro de Vinagre Beiccediludo Lenhador de Alverca uh uh (GIL VICENTE p 34-38)

Ignorando a entrada no batel infernal Joanes se depara com outra realidade a

visita agrave nau que vai ao paraiacuteso Por que um bobo entraria na nau e seguiria para o descanso

dos justos Capricho ou natildeo do autor que encontra na ingenuidade e na astuacutecia as condiccedilotildees

de puniccedilatildeo daqueles que se julgavam acima das leis

114

Chega o Parvo ao batel do Anjo diz PARVO Oh da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Talvez algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres Porque em todos os teus afazeres Por maliacutecia natildeo erraste Da tua simpleza te bastastes Para gozar dos prazeres Espera no entanto aiacute Veremos se vem mais algueacutem Merecedor de tal bem Que deva entrar aqui (GIL VICENTE p 40-41)

A morte natildeo eacute o fim senatildeo o comeccedilo para o arrependimento das simbologias

hierarquizantes que permitem identificaccedilatildeo do homem com seu fazer terreno e com sua classe

social poliacutetica econocircmica e profissional

A morte acima de todos os entendimentos quebra a ordem dos elementos

igualando cada um dos protagonistas nas diferentes obras e gerando uma espeacutecie de

coletividade na qual do ponto de vista da justiccedila natildeo se concedem nem existem privileacutegios

pois cada um deveraacute responder por si soacute

Assim a resposta do poeta agraves injusticcedilas pelas quais se castiga a cidade viraacute com a

puniccedilatildeo dos infratores nas cenas que se revelam natildeo por uma accedilatildeo somente mas pelo

conjunto de mini-accedilotildees que adotam a estrutura gerada pela exposiccedilatildeo o conflito e o

desenlace e que agraves vezes nos apresentam a exposiccedilatildeo e o conflito dependentes um do outro

como no caso da comeacutedia aristofacircnica e dos autos de Ariano Suassuna e Gil Vicente

O fio que liga os enredos e conduz a nau vicentina ao inferno eacute o mesmo que

aguccedila a astuacutecia de Joatildeo Grilo ou que tranquiliza Chicoacute nos causos hercuacuteleos Em travessia

sobrenatural ou amarrado a um pirarucu espectadorleitor sente-se identificado com o

momento da histoacuteria quer pelas reminiscecircncias encontradas atraveacutes de elementos oriundos da

tradiccedilatildeo claacutessica quer pelos viacutenculos que retratam a realidade alegorizada e punitiva

Eacute o sentir sem sentir do poeta estar sem estar de uma realidade aparente natildeo

vivida mas experimentada simbolicamente seja nos autos ou na cena cocircmica aristofacircnica

115

que diante de um tribunal definido a partir dos valores humanos e da moralidade a verdade

vai se impor como instrumento para sentenciar as almas que uma a uma iratildeo entrar nos bateis

ou no purgatoacuterio do encourado

No palco construiacutedo pela comeacutedia ou pelo auto os conflitos se resolvem na

quebra da normalidade de um inferno agraves avessas lugar que se transforma em teatro de saacutetira

social de tipos que agem segundo a loacutegica da sua condiccedilatildeo de suas vivecircncias como bem

assinalado por Ariano Suassuna ao dar a Joatildeo Grilo as experiecircncias que lhe serviram de

argumento agrave Compadecida e contribuiacuteram decisivamente para a sua absolviccedilatildeo A COMPADECIDA Joatildeo foi um pobre como noacutes meu filho Teve de suportar as maiores dificuldades numa terra seca e pobre como a nossa Natildeo o condene deixe Joatildeo ir para o purgatoacuterio JOAtildeO GRILO Para o purgatoacuterio Natildeo natildeo faccedila isso assim natildeo Natildeo repare eu dizer isso mas eacute que o diabo eacute muito negociante e com esse povo a gente pede o mais para impressionar A senhora pede o ceacuteu porque aiacute o acordo fica mais faacutecil a respeito do purgatoacuterio A COMPADECIDA Isso daacute certo laacute no sertatildeo Joatildeo Aqui se passa tudo de outro jeito Que eacute isso Natildeo confia mais na sua advogada JOAtildeO GRILO Confio Nossa Senhora mas esse camarada enrolando noacutes dois A COMPADECIDA Deixe comigo Peccedilo-lhe entatildeo muito simplesmente que natildeo condene Joatildeo MANUEL O caso eacute duro Compreendo as circunstacircncias em que Joatildeo viveu mas isso tambeacutem tem um limite Afinal de contas o mandamento existe e foi transgredido Acho que natildeo posso salvaacute-lo A COMPADECIDA Decirc-lhe entatildeo outra oportunidade MANUEL Como A COMPADECIDA Deixe Joatildeo voltar MANUEL Vocecirc se daacute por satisfeito JOAtildeO GRILO Demais Para mim eacute ateacute melhor porque daqui para laacute eu tomo cuidado para a hora de morrer e natildeo passo nem pelo purgatoacuterio para natildeo dar gosto ao catildeo A COMPADECIDA Entatildeo fica satisfeito JOAtildeO GRILO Eu fico (ARIANO SUASSUNA 2005 p 146-158)

Se houve ou natildeo por parte do poeta a intenccedilatildeo de usar bufotildees palhaccedilos e o riso

para punir natildeo haacute duacutevidas Essas personagens promovem tanto na comeacutedia como no auto

uma reflexatildeo mais profunda sobre a existecircncia do homem na terra exercendo sobre as demais

que se julgam merecedoras de entrarem na barca do Anjo ou do perdatildeo divino uma saacutetira

viva e desestabilizadora

116

O certo eacute que mesmo apesar da situaccedilatildeo de marginalidade e abandono a que tem

estado sempre os outros cocircmicos autorizados pelo poeta eles mostram em Acarnenses no

Auto da Barca do Inferno e no Auto da Compadecida o discernimento necessaacuterio para por em

causa proacutepria todo o mundo social poliacutetico eacutetico e religioso

Observar o julgamento das almas o convencimento da assembleia ou a absolviccedilatildeo

de Joatildeo Grilo eacute justamente se inquietar com comportamento destoante dos personagens

diante do traacutegico anunciado seja pela sentenccedila no purgatoacuterio em que Suassuna provoca o riso

pelo absurdo da situaccedilatildeo seja pela morte tragicocircmica de Joanes que obteacutem o direito de

embarcar para o paraiacuteso ou mesmo pela negociaccedilatildeo que garantiu aos representantes da Igreja

e ao Cangaceiro o purgatoacuterio cabendo a Joatildeo Grilo o retorno agrave vida Portanto aleacutem de

garantir a absolviccedilatildeo haacute tambeacutem a realizaccedilatildeo de uma vinganccedila astuciosa que imprimindo o

castigo aos superiores reflete a inteligecircncia que se sobrepotildee a avareza e aos desmandos

Moralidade restabelecida Assim a cena cocircmica torna explicita a forte associaccedilatildeo

entre comeacutedia e auto na intecionalidade de uma justiccedila direta que quis aleacutem das palavras das

palavra-voz lapidada pelos a(u)tores impulsionadora de reflexotildees geradora de fissuras

abertas na selva de significados que de forma desconsertada passa a ser o guia de um leitor

carente da tomada de consciecircncia sobre o que eacute ou natildeo (in)justo pelo vibrar incorrigiacutevel da

cadeia de significados que se estabelece entre o dito e o leitorouvinte como afirma Zumthor

O texto vibra o leitor o estabiliza integrando-o agravequilo que eacute ele proacuteprio Entatildeo eacute ele que vibra de corpo e alma No eco da voz-texto natildeo haacute algo que a linguagem tenha criado nem estrutura nem sistema completamente fechados e as lacunas e os brancos que aiacute necessariamente subsistem constituem um espaccedilo de liberdade ilusoacuterio pelo fato de que soacute pode ser ocupado por um instante por mim por vocecirc leitores nocircmades por vocaccedilatildeo (ZUMTHOR 2014 p 53)

O heroacutei cocircmico eacute esse espaccedilo de liberdade de ousadia nem sempre vitorioso mas

que se constitui agraves vezes de um alter ego do autor que na qualidade de educador da cidade se

impotildee e legitima verdadeiramente justo uma vez que a justiccedila e a verdade satildeo suas

verdadeiras aliadas e componentes essenciais da criaccedilatildeo do autor

Comeacutedia e Auto concluem com sucesso as intenccedilotildees de seus autores garantindo a

todos o que eles merecem um final no qual a justiccedila a verdade e a puniccedilatildeo terminam

moralmente como (re)modeladoras da cidade

117

6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Nas obras que aqui foram analisadas (Acarnenses Ratildes Auto da Barca do inferno

e Auto da Compadecida) os respectivos autores parecem convidar o puacuteblico a tratar o duplo

poeacutetico e a voz como algo especialmente autorizado agrave tarefa de educar a cidade No entanto

cabe ressaltar que ldquoessa aparente autoridaderdquo eacute o instante singular no qual o poeta diz o que

pensa e quer pela boca de seus personagens reforccedilarcada vez mais a ilusatildeo de ser o que natildeo

se eacute de dizer para aleacutem do abrir e fechar das cortinas do palco teatral

No sertatildeo de chatildeo duro e quase impermeaacutevel agrave chuva do Auto da Compadecida a

palavra-performance fez sua morada na boca dos arremedos de Joatildeo Grilo fincou suas raiacutezes

em seus gestos fez dele sair seus brotos que se transformaram em galhos firmes de uma

aacutervore frondosa que eacute a cultura nordestina tatildeo bem cantada pela literatura de cordel pelo riso

mascarado e ao mesmo tempo denunciativo e desnudado do autor na representaccedilatildeo de sua

criatura Joatildeo Grilo eacute o muacuteltiplo poeacutetico defendido pelo proacuteprio autor numa caracterizaccedilatildeo

niacutetida e social Jaacute Diceoacutepolis em Acarnenses contudo tem uma identificaccedilatildeo claramente

problemaacutetica visto ser um personagem que assume muitas personagens e vozes (tais como

tanto o protagonista cocircmico ruacutestico e o traacutegico Teacutelefo) minando a seriedade com que um

leitor deve tomar suas reivindicaccedilotildees

No Auto da Barca do inferno Gil Vicente como criacutetico mordaz impotildee toda a sua

ironia para condenar os costumes praticados por uma sociedade permeada pela hipocrisia Agrave

guisa do pensamento vicentino a linguagem passa a ser seu principal instrumento pelo qual

se vai operar a zombaria para combater os excessos daqueles que ganham com a miseacuteria do

povo

Pelo vieacutes do desconserto a representaccedilatildeo teatral vicentina se constitui como um

conjunto (ou sistema) de signos de natureza diversa que revela um processo de comunicaccedilatildeo

em que haacute uma seacuterie complexa de transmissores uma seacuterie de mensagens um duplo emissor

assim como um (in)corrigiacutevel e muacuteltiplo receptor presentes no mesmo lugar ansiosos para

saber o que aleacutem do dito eacute ensinado pelo poeta

Esse jogo de diaacutelogosdidascaacutelias a princiacutepio consciente para o poeta permite um

percurso para a compreensatildeo dos diversos fios que compotildeem a tessitura cocircmica ndash moralizante

e dramaacutetica cabendo ao leitorespectador desvelar e revelar as mensagens proferidas pelas

vaacuterias vozes pelas quais se expressa o autor

Ao leitor atento nada escapa ao identificar no espaccedilo cecircnico as simbologias dos

espaccedilos socioculturais comuns agraves trecircs obras que compotildeem o corpus do nosso trabalho e de

118

forma particular a Gil Vicente que amarra elementos humanos e divinos burlescos e seacuterios

formais e corriqueiros sem perder sua atualidade uma vez que tecircm o meacuterito de apresentarem

as constantes lutas entre o bem e o mal que existem dentro de cada indiviacuteduo valendo-se de

uma comicidade aacutecida e palpitante inimiga dos desmando e excessos

Assim como Gil Vicente Ariano Suassuna soube como ningueacutem recriar a proacutepria

realidade em seus Autos atraveacutes dos textos orais nordestinos e interdiscursos culturais

medievos Sempre criacutetico sua literatura estaacute impregnada da heranccedila da tradiccedilatildeo popular

regional e de gecircneros medievais portugueses ibeacutericos e claacutessicos reforccedilando que tanto as

raiacutezes populares nordestinas quanto os gecircneros do teatro medievo alimentam seu fazer

poeacutetico

Como o educador da cidade Ariano Suassuna chega ao conhecimento da plateia

pelas vaacuterias frestas de uma accedilatildeo cocircmica e de recortes de um proacutelogo e de uma paraacutebase bem

ao estilo de Aristoacutefanes quando ao questionar metaforicamente os representantes da Igreja

pelo zelo da moralidade e da justiccedila social coloca em cheque tambeacutem toda a sociedade da

eacutepoca produzindo pelos jogos ciacutenicos circenses os novos significados de cidadania

Suassuna e Gil Vicente representam o fazer literaacuterio de um Aristoacutefanes que sob a

maciez do riso e da galhofa esconde o punhal e a foice da contestaccedilatildeo social o desejo de

recuperaccedilatildeo e de conversatildeo dos valores humanos Em Aristoacutefanes e diante de sua

representaccedilatildeo da polis estamos diante de uma realidade caoacutetica quase impassiacutevel de ser

alterada resultado da exploraccedilatildeo e da ambiccedilatildeo social fatos que permeiam a accedilatildeo de seus

personagens e quando o poeta traveste-se de Dioniso e decide descer ao infernos para buscar

um poeta genuiacuteno percebemos que natildeo eacute somente a arte ou os ensinamentos trazidos por ela

que Aristoacutefanes quer salvar mas o proacuteprio homem ndash em essecircncia ndash que jaacute se encontrava

seriamente corrompido fazendo mal agrave coletividade

No seu fazer de mentalidade coletiva Ariano Suassuna e Gil Vicente satildeo Aristoacutefanes

que em defesa da cidade lanccedilam-se num terreno movediccedilo do diaacutelogo literaacuterio e cultural

contrapondo o moderno e arcaico o regional ao erudito o miacutetico ao racional (re)construindo

suas histoacuterias a partir das vaacuterias histoacuterias alheias nas quais autor e personagens satildeo reflexos

maiores de uma sequecircncia de accedilotildees cocircmicas criacuteticas e a serviccedilo da ordem e da moralidade

Portanto por mais incorrigiacuteveis que possam parecer nas obras pesquisadas fica

claro que os autores e suas personagens agem na defesa de seus objetivos marcados por uma

devoccedilatildeo obstinada a uma causa proacutepria a defesa da cidade E no cenaacuterio-mundo que eacute o

teatro tanto Aristoacutefanes quanto Gil Vicente e Ariano Suassuna satildeo senhores da arte da

desconstruccedilatildeo

119

De caraacuteter universal a Comeacutedia e o Auto mostram um poeta autocircnomo que

brinca com a vontade e expectativas do leitorespectador levando-o a refletir sobre a realidade

atemporal apresentada pelo teatro em seu jogo cocircmico e moralizante Assim o duplo autoral

passa a conduzir o cecircnico no qual os ldquohome espectadorrdquo evocados por Diceoacutepolis em

Acarnenses ou os condenaacuteveis nos autos de Ariano Suassuna e Gil Vicente satildeo jogados no

labirinto das duacutevidas e incertezas promovidas pelas vozes muacuteltiplas que tambeacutem satildeo de

outrem e que afiadas atravessam o discurso cocircmico levando-o agrave reflexatildeo seacuteria da situaccedilatildeo na

qual se encontra a cidade E tudo aos olhos do leitor sob o desejo de um criador que se perde

e se acha nas criaturas que o representam nos a(u)tos matutos de Ariano Suassuna e

Aristoacutefanes ndash eacute possiacutevel ndash natildeo sei Soacute sei que foi assim

120

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ZUMTHOR Paul Performance recepccedilatildeo leitura 2 ed Trad Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich Satildeo Paulo Cosac Naify 2007

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARA CENTRO DE HUMANIDADES
  • PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM LETRAS
  • Prof Dr Lauro Inaacutecio de Moura Filho
  • Instituto Federal de Educaccedilatildeo Ciecircncia e Tecnologia do Cearaacute ndash (IFCE)
  • Prof Dr Francisco Wellington Rodrigues Lima
  • Instituto Federal de Educaccedilatildeo Ciecircncia e Tecnologia do Cearaacute ndash (IFCE)
  • COMPTON-ENGLE Gwendolyn Leigh Sudden glory Acharnians and the first comic hero
Page 4: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARA CENTRO DE HUMANIDADES PROGRAMA DE … · 2019. 5. 22. · universidade federal do ceara centro de humanidades programa de pÓs-graduaÇÃo em letras

A(U)TOS MATUTOS DE ARIANO SUASSUNA E ARISTOacuteFANES ndash Eacute POSSIacuteVEL ndash

NAtildeO SEI SOacute SEI QUE FOI ASSIM

Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo LetrasLiteratura da Universidade Federal do Cearaacute como requisito parcial agrave obtenccedilatildeo do Tiacutetulo de Doutor em LetrasLiteratura Aacuterea de concentraccedilatildeo Literatura Comparada Orientadora Profa Dra Ana Maria Ceacutesar Pompeu

Aprovada em ____________

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________ Professora Dra Ana Maria Ceacutesar Pompeu (Orientadora)

Universidade Federal do Cearaacute (UFC)

___________________________________________ Professora Dra Maria Inecircs Pinheiro Cardoso

Universidade Federal do Cearaacute ndash (UFC)

___________________________________________ Prof Dr Steacutelio Torquato Lima

Universidade Federal do Cearaacute ndash (UFC)

___________________________________________ Prof Dr Lauro Inaacutecio de Moura Filho

Instituto Federal de Educaccedilatildeo Ciecircncia e Tecnologia do Cearaacute ndash (IFCE)

___________________________________________ Prof Dr Francisco Wellington Rodrigues Lima

Instituto Federal de Educaccedilatildeo Ciecircncia e Tecnologia do Cearaacute ndash (IFCE)

DEDICATOacuteRIA

A Patriacutecia e Larissa Pelos inesqueciacuteveis momentos de profundo amor em famiacutelia pelo riso frouxo e desconcertado das horas de companheirismo A todos que um dia sonharam olhando para o ceacuteu e que hoje podem alcanccedilar as estrelas

AGRADECIMENTOS

Agradecer mexe com a memoacuteria e torna registrado o esquecimento Por natildeo ser

uma tarefa muito faacutecil eacute perigosa Natildeo pela dificuldade de lembrar mas pelo medo de deixar

de agradecer a algueacutem que mereccedila Eacute uma oportunidade uacutenica de demonstrar gratidatildeo por

tantos que tornaram este sonho uma realidade possiacutevel pela experiecircncia partilhada pela

dedicaccedilatildeo pelos conselhos ou simplesmente por terem sido ouvintes contadores de estoacuterias

e pacientes Como agradecer

Quem realiza um trabalho de pesquisa sabe o quatildeo solitaacuterias podem ser as

manhatildes tardes e noites de leituras e escritas Longos momentos onde o cursor e a tela satildeo as

uacutenicas testemunhas e companheiros Ao mesmo tempo em que eacute solitaacuterio eacute tambeacutem um

trabalho conjunto soacute me foi possiacutevel chegar ao fim de parte da jornada graccedilas ao esforccedilo de

tantos que vieram antes de mim Tantos outros que abriram e traccedilaram caminhos que depois

pude trilhar sozinho em romaria ou bebendo com Dioniso e com outros que bem antes

percorreram o sertatildeo e aportaram suas buscas na procura de mitos festejados e perpetuados

nos rituais cocircmico - religiosos presentes na literatura popular

O que apresento neste trabalho eacute fruto de uma pesquisa acompanhada de vaacuterios

olhares de muitas vivecircncias de viagens agraves feiras de conversas repletas de informaccedilotildees e

experiecircncias de sorrisos e de tristeza por ver na travessia um ponto de parada mesmo que

seja pelo instante do aprofundamento futuro

Mais que lembrar agradeccedilo a minha orientadora Professora Doutora Ana Maria

Ceacutesar Pompeu de forma bem especial Primeiro por ter ldquoapostadordquo em um projeto de

pesquisa com vaacuterias lacunas Segundo por ter sido uma orientadora no sentido mais amplo da

palavra atraveacutes de suas reflexotildees indicaccedilatildeo de bibliografias reuniotildees de orientaccedilatildeo e

conselhos foi possiacutevel que eu construiacutesse uma nova problemaacutetica do assunto e engendrasse a

pesquisa que agora apresento Terceiro pelo comprometimento acadecircmico em orientar-me

natildeo somente para a tarefa acadecircmica mas por me deixar aprender em suas palavras o sentido

das coisas quebrando a ilusatildeo sorrindo de forma contagiante orientando pela generosidade e

humildade para vida Foi um presente ouvi-la e aprender tambeacutem no silecircncio de suas reflexotildees

antes das orientaccedilotildees para que eu natildeo me perdesse durante a travessia atemporal

Tambeacutem agradeccedilo ao professor Steacutelio Torquato Lima do Departamento de

Literatura da UFC pela generosidade de pesquisador pelo comprometimento na indicaccedilatildeo de

novas fontes de pesquisas indispensaacuteveis agrave Dissertaccedilatildeo de Mestrado e que resultaram em

embriotildees da presente pesquisa de Doutorado me encorajando a ver nas entrelinhas de uma

literatura pujante dotada de vaacuterios significados oral ndash escrita ndash dupla

Ao professor Carlos Augusto Viana da Silva do Departamento de Estudos da

Liacutengua Inglesa suas Literaturas e Traduccedilatildeo da UFC pelo desafio que me levou a pensar a

literatura popular a partir da narrativa fiacutelmica que tatildeo bem impulsionou esta pesquisa

culminando com a anaacutelise do Auto da Compadecida de Ariano Suassuna em conjunto com

Acarnenses de Aristoacutefanes

Ao professor Roque Nascimento Albuquerque da Universidade de Integraccedilatildeo

Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB) que desde o iniacutecio acreditou na ideia

de pensar o cocircmico e o popular a partir de novas leituras desafiadoras e intrigantes

Ao professor Lauro Inaacutecio de Moura Filho meu agradecimento pela amizade por

ter dividido pesquisas sobre Aristoacutefanes e por fazer parte da minha Banca de Doutorado

Agrave professora Maria Inecircs Pinheiro Cardoso minha gratidatildeo pela presenccedila na minha

Banca de Doutorado e por seus valorosos estudos sobre a literatura do ldquobardo do sertatildeordquo

Ariano Suassuna em toda a sua magnitude popular

Ao professor Francisco Wellington Rodrigues Lima meu agradecimento pela

gentileza de fazer parte da minha Banca de Doutorado e por sua contribuiccedilatildeo agrave literatura

popular a partir de seus estudos sobre Gil Vicente e Ariano Suassuna

Para minha famiacutelia agradecimentos especiais Obrigado por terem me dado

oportunidade de chegar ateacute aqui por me ensinarem desde cedo a enfrentar os desafios de

frente com riso estampado no rosto

E por uacuteltimo obrigado as minhas maiores incentivadoras Com elas compreendi o

sentido de muitas coisas companheirismo afeto dedicaccedilatildeo amor Obrigado por entenderem

a importacircncia desta pesquisa na minha vida Sem vocecircs o caminho natildeo teria sido tatildeo animado

encantado e real Obrigado Patriacutecia e Larissa

Agrave FUNCAP e Agrave CAPES e ao CNPQ pelo apoio financeiro com a manutenccedilatildeo da

bolsa de auxiacutelio agrave pesquisa

Debaixo de minha mesa tem sempre um catildeo faminto -que me alimenta a tristeza Debaixo de minha cama tem sempre um fantasma vivo -que perturba quem me ama Debaixo de minha pele algueacutem me olha esquisito -pensando que eu sou ele Debaixo de minha escrita haacute sangue em lugar de tinta -e algueacutem calado que grita

(Affonso Romano de SantacuteAnna)

RESUMO

Por ser uma arte que permanece haacute tantos seacuteculos o teatro desperta curiosidade acerca de seus primoacuterdios existindo vaacuterias conjecturas e teorias sobre o surgimento da Comeacutedia Antiga como ambiente extremamente propiacutecio agrave formaccedilatildeo de duplos presente no mito e no culto do deus do teatro Dioniso no qual as vozes os gestos e as maacutescaras representam o duplo e satildeo sobrepostas como causa de equiacutevocos e componentes centrais das invectivas pessoais ou intrigas como observados em Acarnenses de Aristoacutefanes no Auto da Compadecida de Ariano Suassuna Entretanto haacute de se considerar de iniacutecio que alguns elementos responsaacuteveis pelo riso na obra de Aristoacutefanes tambeacutem encontra eco na literatura de Suassuna por apresentar uma tessitura textual atravessada pelas muacuteltiplas vozes de suas personagens constituindo-se em um fenocircmeno recorrente e natural que aponta para a tensatildeo de uma crise profunda denunciada pelo proacuteprio poeta em seus discursos A partir do estudo das correntes de alguns teoacutericos sobre o riso como Huizinga Pirandello Bergson e Vladimir Propp responderemos por meio da literatura comparada a alguns questionamentos como por exemplo qual a importacircncia da construccedilatildeo das personagens cocircmicas em Aristoacutefanes para a representaccedilatildeo do duplo poeacutetico e como essa criaccedilatildeo se reflete na obra de Ariano Suassuna sendo denunciadora das injusticcedilas a partir da cena cocircmica

Palabras-chave Teatro A(u)to A(u)tor Popular Duplo

RESUMEN Por ser un arte que permanece durante tantos siglos el teatro despierta curiosidad acerca de sus primordios existiendo varias conjeturas y teoriacuteas sobre el surgimiento de la Comedia Antigua como ambiente extremadamente propicio a la formacioacuten de dobles presente en el mito y en el culto del dios del teatro Dioniso en el que las voces los gestos y las maacutescaras representan el doble se superponen como causa de equiacutevocos y componentes centrales de las invectivas personales o intrigas como observados en Acarnienses de Aristoacutefanes en el Auto de la Compadecida de Ariano Suassuna Sin embargo hay que considerar de inicio que algunos elementos responsables de la risa en la obra de Aristoacutefanes tambieacuten encuentra eco en la literatura de Suassuna por presentar una tesitura textual atravesada por las muacuteltiples voces de sus personajes constituyeacutendose en un fenoacutemeno recurrente y natural que apunta para la tensioacuten de una crisis profunda denunciada por el propio poeta en sus discursos A partir del estudio de las corrientes de algunos teoacutericos sobre la risa como Huizinga Pirandello Bergson y Vladimir Propp responderemos por medio de la Literatura Comparada a algunos cuestionamientos como por ejemplo cuaacutel es la importancia de la construccioacuten de los personajes coacutemicos en Aristoacutefanes para la representacioacuten del doble poeacutetico y coacutemo esa creacioacuten se refleja en la obra de Ariano Suassuna siendo denunciadora de las injusticias a partir de la cena coacutemica

Palabras clave Teatro A(u)to A(u)tor Popular Doble

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO12

PRIMEIRO ATO18

1 O TEATRO UM DUPLO ARTIacuteSTICO ndash TRAGEacuteDIA E COMEacuteDIA19

11 A comeacutedia aristofacircnica28

12 Dioniso Matuto Justinoacutepolis um heroacutei embusteiro29

13 O (anti)heroacutei aristofacircnico32

14 Auto da Compadecida uma estoacuteria de outras estoacuterias34

15 Joatildeo Grilo um heroacutei popular e picaresco36

151 O (anti)heroacutei Suassuniano38

152 A tensatildeo tragicocircmica do (anti)heroacutei no Auto da Compadecida39

SEGUNDO ATO41

2 HUMOR E RISO ELEMENTOS INDISPENSAacuteVEIS Agrave CENA COcircMICA42

21 O riso seacuterio-cocircmico em Aristoacutefanes e Suassuna43

212 Riso e Comeacutedia43

213 Os elementos do risiacutevel no heroacutei suassuniano45

TERCEIRO ATO65

3 AS DUAS PECcedilAS ndash O POETA USA MAacuteSCARAS66

31 OS GESTOS ndash A vestimenta o corpo e o disfarce67

QUARTO ATO74

4 O AUTOR E SEUS OUTROS NA COMEacuteDIA E NO AUTO75

41 O par cocircmico na tradiccedilatildeo literaacuteria em Aristoacutefanes e em Ariano Suassuna76

QUINTO ATO84

5 O POETA VAI AO INFERNO85

51 Quem fala por quem86

511 Ao Hades e com riso frouxo97

52 O julgamento O riso a morte e o descanso do (in)justo105

521 Aqui eacute o inferno vocecirc pode brincar108

522 A Voz a esperteza e a malandragem do poeta Nem tudo que eacute vivo morre111

6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS117

REFEREcircNCIAS120

12

INTRODUCcedilAtildeO Num vatildeo ficaacute cum raiva homes espectador Se eu sendo um mendigo na frente dos ateniense Teja em tempo de falaacute sobre a cidade fazendo uma comeacutedia Pois o que eacute justo a comeacutedia tambeacutem conhece E eu vou falaacute coisas terriacuteve mas justa Pois desta vez num vai me caluniaacute Cleacuteon que Estrangeiros tando aqui eu falo mal da cidade Eacute que tamo soacute eacute o concurso das Leneia E os estrangeiro num tatildeo aqui nem os imposto Chega nem os aliado vem das cidade Mas tamo soacute noacutes agora soacute os miacute debuiado (POMPEU Dioniso MatutoARISTOacuteFANES Acarnenses vv497-507)

A Literatura Popular vem sendo cada vez mais estudada e reconhecida no acircmbito

acadecircmico ressaltando seu espaccedilo regional pela criaccedilatildeo e construccedilatildeo de uma nova vertente

literaacuteria que dialoga com outras artes e culturas Assim torna-se importante destacar que esse

tipo de literatura constitui-se tambeacutem como uma das vertentes da histoacuteria cultural tendo em

vista que reuacutene diversos tipos de textos para pensar sua escrita linguagem e (re)leitura pela

apropriaccedilatildeo cultural vivenciada pelo puacuteblico e pelo poeta que ouviu viu e viveu o produto

exposto nos versos como nos assegura Chartier (1990 p 27)

Nesse contexto permeado de apropriaccedilotildees recriaccedilotildees e (in)certezas eacute que

estudaremos o riso cocircmico no auto e na comeacutedia como leitoresjurados do julgamento

paroacutedico atraveacutes da accedilatildeo cocircmica do poeta representado por seus duplos na comeacutedia

Acarnenses1 (425 aC) de Aristoacutefanes no Auto da Compadecida (1956) de Suassuna numa

aproximaccedilatildeo atemporal que se reflete na palavra aacutecida do a(u)tor na gargalhada solta e na

quebra da normalidade literaacuteria reveladora das diversas maacutescaras vozes ndash linguagem matuta

e os gestos elementos que estatildeo a serviccedilo do poeta cocircmico e de seus duplos como porta-

vozes do discurso social

Assim para estudo e anaacutelise dos duetos (duplos) cocircmicos cordelescos

fomentadores do imaginaacuterio e da construccedilatildeo de (anti) heroacuteis cocircmicos populares presentes na

tradiccedilatildeo popular nordestina bebemos de fontes escritas e tambeacutem de uma modalidade

narrativa ateacute pouco tempo desprezada esquecida dada ao puacuteblico quase sempre em papel

ruacutestico e com maacute qualidade da impressatildeo e escrita sem a preocupaccedilatildeo dos autores com a

ldquocorreccedilatildeordquo linguiacutestica a Literatura de Cordel

1 No corpus do nosso trabalho optamos por usar a traduccedilatildeo de Acarnenses de Aristoacutefanes para o cearensecircs da professora Ana Maria Ceacutesar Pompeu Dioniso matuto uma abordagem antropoloacutegica do cocircmico na traduccedilatildeo de Acarnenses de Aristoacutefanes para o cearensecircs

13

Tradicionalmente comum a este tipo de literatura foi a presenccedila marcante da

oralidade o fato de ser vendida em feiras e o tipo de consumidor em geral pessoas de baixo

niacutevel escolar cuja identificaccedilatildeo com os folhetos se estabelecia por meio de variadas

temaacuteticas incluindo o diaacutelogo com outras fontes literaacuterias como a Comeacutedia Grega outro

objeto deste estudo

Com isso a importacircncia do cordel pelo meio acadecircmico daacute-se pela produccedilatildeo de

intelectuais como Ariano Suassuna que transpotildee episoacutedios inteiros do verso popular para a

prosa ou vice-versa num imenso caldeiratildeo de ideias consciente da forccedila que essa modalidade

literaacuteria deteacutem na representaccedilatildeo do imaginaacuterio do povo solidificando sua maneira de pensar e

de reagir ante os fenocircmenos sociais

Essas reaccedilotildees aos diferentes contextos sociais motivadas pelas experiecircncias

escritas auditivas e visuais preteacuteritas atribuem um valor positivo agrave figura do (anti)heroacutei

cocircmico e ou agrave conversatildeo do matuto do ruacutestico e satildeo responsaacuteveis pela sua construccedilatildeo miacutetica

a partir do documento linguiacutestico do falar matuto heranccedila cultural cearense como

apresentado por Pompeu em seu Dioniso Matuto (2014) Entretanto temos de considerar que

Aristoacutefanes natildeo faz distinccedilatildeo entre linguagem matuta e citadina apenas de aspectos dialetais

das cidades natildeo aacuteticas como afirma Andreas Willi

A comeacutedia tambeacutem se diferencia da trageacutedia por apresentar todos os estrangeiros a falar em seus dialetos nativos Embora se costume considerar a reproduccedilatildeo dos outros dialetos como deformaccedilatildeo risiacutevel Aristoacutefanes natildeo exagera as caracteriacutesticas dialetais nem as personagens atenienses escarnecem delas de maneira que eacute provaacutevel que o efeito cocircmico nasccedila ali natildeo do exagero mas do realismo linguiacutestico que natildeo tem equivalente em outro gecircnero (WILLI 2003 p268)

Sobre essa afirmativa e tomando como ponto de partida o pensamento de

Bogatyrev (1977) em relaccedilatildeo agraves variaccedilotildees dialetais nota-se que pelas falas produzidas

o espectador percebe ao mesmo tempo o ator e a personagem presentes nos contextos

nordestino e grego resultado de uma simbiose entre ldquocriador e criaturardquo

O corpo do presente trabalho estaacute dividido em Cinco Atos assim denominada a

divisatildeo da Comeacutedia Antiga que na Greacutecia evolui em trecircs fases distintas considerando-se a

comeacutedia2 antiga a comeacutedia mediana e a comeacutedia nova Relativamente ao periacuteodo da comeacutedia

antiga Aristoacutefanes eacute o seu grande representante estruturando-a com as seguintes partes o

proacutelogo o paacuterodo que consiste na entrada do coro e nas suas intervenccedilotildees ou disputa entre 2 EDMONDS J M The Fragments of Attiacutec Comedy II Uiacuteacircdle Cotnedy Leiden Brill 2010

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dois coros a paraacutebase isto eacute um interluacutedio coral que suspende parcialmente a ilusatildeo

dramaacutetica dirigindo-se diretamente ao auditoacuterio os episoacutedios ou seja as cenas dialogadas

pelas personagens e intercaladas por intervenccedilotildees do coro o ecircxodo concretizando-se no

desenlace final

A comeacutedia antiga caracteriza-se pelo tom de humor e de saacutetira com que se critica

assuntos da vida cotidiana aspectos poliacuteticos e sociais e figuras e instituiccedilotildees proeminentes

sendo a sua finalidade principal a diversatildeo para aleacutem do objetivo moralizante Emprega uma

linguagem luacutedica atraveacutes de jogos de palavras equiacutevocos ironia clichecircs e apresenta ainda

personagens de forma caricatural

Cabe ressaltar que na Introduccedilatildeo apresentamos uma panoracircmica histoacuterica acerca

da Comeacutedia Grega aristofacircnica ndash Acarnenses com direcionamento agrave comeacutedia suassuniana ndash

retratada no Auto da Compadecida Para tratar do Auto da Compadecida e da influecircncia que

sofreu da literatura de Gil Vicente decidimos optar pela apresentaccedilatildeo do Auto Vicentino visto

que O Auto da Compadecida constitui-se como uma peccedila teatral que resgata a comeacutedia

medieval e renascentista europeia bem como a comeacutedia popular nordestina Tal obra foi

elaborada a partir de vertentes distintas onde se encontram resquiacutecios de obras conhecidas e

consagradas mundialmente e tradiccedilatildeo popular impressa em folhetos

O caraacuteter cordelesco do Auto remonta agrave Idade Meacutedia que teve os uacuteltimos seacuteculos

tambeacutem conhecidos pelos historiadores como tempos embaralhados visto que levaram agraves

uacuteltimas consequecircncias uma visatildeo decadentista da vida O caraacuteter transitoacuterio do seacuteculo XV

tornou-se cada vez mais importante no desencadeamento da ideia de morte dentro da unidade

cristatilde fato que permeia as obras de Gil Vicente

O Auto da Barca do Inferno tambeacutem conhecido como Auto da Moralidade foi escrito em 1517 e representado ao rei Manuel I de Portugal e agrave rainha Lianor Eacute uma das mais significativas e famosas obras de Gil Vicente e que embora esteja na estrutura de uma trilogia Trilogia das Barcas que contempla tambeacutem o Auto da Barca do Purgatoacuterio e o Auto da Barca da Gloacuteria a peccedila conteacutem um uacutenico ato no qual eacute recorrente o uso da saacutetira do riso do ridiacuteculo e do achincalhe dotado de um tenso cunho didaacutetico

Jaacute no caso especiacutefico de Ariano Suassana o Auto da Compadecida se divide em

trecircs episoacutedios o primeiro intitulado o enterro do cachorro o segundo com o retorno do Major

Antocircnio Moraes junto com o Bispo e o terceiro episoacutedio compreendendo o julgamento dos

mortos Os atos satildeo entrecortados pela fala do palhaccedilo que representa o autor situando os

espectadores e antecedendo a mudanccedila de cenaacuterio Os personagens satildeo Joatildeo Grilo Chicoacute

major Antocircnio Moraes o padeiro e sua esposa o cangaceiro Severino de Aracajuacute e seu

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ajudante Bispo Sacristatildeo Padre Joatildeo e Frade Encourado democircnio Manuel e a

Compadecida mas a peccedila gira em torno de Joatildeo Grilo que eacute quem arma situaccedilotildees

conflituosas e quem concentra o foco dramaacutetico

Eacute nesse contexto que a literatura de cordel se apresenta como um importante

veiacuteculo de expressatildeo habilitado agrave aproximaccedilatildeo do popular e do erudito como tambeacutem

ferramenta de articulaccedilatildeo da comunicaccedilatildeo do sertatildeo desprezado e inculto com as referecircncias

gregas de narraccedilatildeo observadas em Aristoacutefanes Para tanto nos valemos da anaacutelise das obras

referidas por gravitarem em torno da temaacutetica proposta e abordarem de forma direta a

linguagem matuta e a construccedilatildeo dos duplos cocircmicos tendo como foco a figura do matuto

Em termos metodoloacutegicos nossa pesquisa se apoia em uma perspectiva

comparativista considerando o contiacutenuo uso da oralidade efetivado na Comeacutedia como voz

autorizada para a accedilatildeo contiacutenua do proacuteprio poetapersonagem Nesse contexto Segundo

Bakhtin o autor ldquoocupa uma posiccedilatildeo responsaacutevel no acontecimento do existir opera com

elementos desse acontecimento e por isso a sua obra eacute tambeacutem um momento desse

acontecimentordquo (BAKHTIN 2003 p176) Neste esteio Caetano Peixoto e Machado (2011)

nos afirmam que A posiccedilatildeo do autor-criador ou seja aquele que tem a funccedilatildeo esteacutetico-formal engendradora da obra natildeo estaacute dissociada do autor-pessoa isto eacute do escritor do artista A vida natildeo estaacute em dicotomia com a arte Elas se imbricam atraveacutes das vozes sociais e histoacutericas onde a dimensatildeo teoacuterica esteacutetica e eacutetica ndash o conhecimento os valores e o agir ndash convergem organizadas num sistema estiliacutestico harmonioso

Nas obras que constituem nossa pesquisa o autor e suas diversas vozes operam e

se estabelecem por meio de accedilotildees muacuteltiplas grotescas como forma de afastar-se do caraacuteter de

opressatildeo para a compreensatildeo e apreensatildeo de uma verdade pura muitas vezes advinda do

social e das situaccedilotildees de injusticcedila como defendida por DiceoacutepolisJustinoacutepolis em

Acarnenses e por Joatildeo Grilo no Auto da Compadecida

Eis que da multiplicidade das praacuteticas do discurso deriva-se o que se pode

reconhecer como uma tipicidade um modo totalmente particular de afirmaccedilatildeo do sujeito um

muacuteltiplo que ao mesmo tempo se torna iacutempar diferente dos demais na conduccedilatildeo do discurso

social Essa imagem e sua polifonia capazes de reunir habilidades estabelecedoras de um

valor cultural da literatura satildeo o que haacute de mais iacutentimo e intransferiacutevel nesse diaacutelogo proposto

entre as obras estudadas e seus autores por operarem um mecanismo narrativo simples e

divertido atraveacutes do diaacutelogo entre o discurso literaacuterio e o socioloacutegico

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Retornando agrave divisatildeo do trabalho acentuamos que no PRIMEIRO ATO tratamos

de questotildees inerentes agrave origem e estrutura da Comeacutedia e do Auto ressaltando ainda a

importacircncia desses gecircneros como elementos presentes e ativos no processo de construccedilatildeo da

heranccedila cultural erudita mas de origem popular com foco no discurso permeado de vaacuterias

vozes indispensaacuteveis na formaccedilatildeo do poeta-personagem e de seus (anti)heroacuteis

No SEGUNDO ATO discorremos sobre os elementos da Comeacutedia aristofacircnica e

do Auto suassuniano a partir do Humor e do Humorismo Para tanto recorremos agrave expressatildeo

ldquoriso seacuterio-cocircmico como elemento moralizanterdquo tomando como base os estudos de Huizinga

Pirandello Bergson e Vladimir Propp entre outros estudiosos

No TERCEIRO ATO apresentamos um breve histoacuterico da comeacutedia como duplo

da trageacutedia e escrevemos sobre as maacutescaras vozes e gestos como elementos fundantes do

outro do poeta na cena cocircmica tanto em Aristoacutefanes quanto em Suassuna

No QUARTO ATO aprofundamos nossos estudos sobre o duplo na literatura

tomando como base trabalhos sobre a ocorrecircncia do duplo e seu estranhamento na literatura

Ainda no mesmo Ato fazemos uso dos estudos de Bakhtin sobre polifonia do duplo e a

polifonia do discurso social com o fim de relacionar o discurso social de Joatildeo Grilo e

Diceoacutepolis em defesa do coletivo ndash da polis ndash duplos do poeta e porta-vozes dos discursos

sociais jaacute popularizados na Literatura de Cordel suas influecircncias e os diaacutelogos possiacuteveis com

a Comeacutedia Grega

Por fim desenvolvemos ao longo do QUINTO ATO a anaacutelise comparativa da

formaccedilatildeo dos duplos e presenccedila das vaacuterias vozes constitutivas do enredo da comeacutedia

Acarnenses de Aristoacutefanes do texto traduzido do original grego de 425 a C da versatildeo

Dioniso matuto uma abordagem antropoloacutegica do cocircmico na traduccedilatildeo de Acarnenses de

Aristoacutefanes para o cearensecircs da versatildeo jaacute citada da peccedila produzida por Ana Maria Ceacutesar

Pompeu texto que tambeacutem nos serviraacute tambeacutem como paradigma da Comeacutedia Antiga do Auto

da Compadecida de Ariano Suassuna com vistas a demonstrar a importacircncia de se entender

a partir da oralidade linguagem matuta tatildeo presente na obra de Suassuna a finalidade do uso

das vozes do ldquooutrordquo para a construccedilatildeo significativa do proacuteprio poeta Ainda no Quinto Ato

estudamos o riso e do duplo poeacutetico pela inclusatildeo e estudo de Ratildes de Aristoacutefanes do Auto da

Barca do Inferno (1531) de Gil Vicente tendo como foco a cena do julgamento das almas

comum tambeacutem ao Auto da Compadecida ndash momento no qual a personagem se funde ao

poeta educador da cidade com suas preferecircncias e invectivas

Em Aristoacutefanes somos ouvintes das criacuteticas do proacuteprio poeta que em meio ao

caos propiciado pela guerra decide comprar sua paz Em Gil Vicente provamos da

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moralidade cristatilde que de forma direta condena ou absolve os pecadores e falsos pregadores

E por uacuteltimo em Ariano Suassuna construtor de cenaacuterios (im)provaacuteveis nos quais ceacuteu e

inferno disputam os mortos por meio de uma seacuterie de accedilotildees cocircmicas onde a morte por vezes

perde seu caraacuteter traacutegico

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PRIMEIRO ATO

19

1 O TEATRO UM DUPLO3 ARTIacuteSTICO ndash TRAGEacuteDIA E COMEacuteDIA

O teatro grego surgiu no contexto do culto religioso estando ligado

particularmente ao Deus Dioniso permanecendo ligado tambeacutem agrave religiatildeo A palavra teatro

segundo Pereira (2006 P24) tem sua origem no grego theacuteatron (έ) em que theacutea

(έ) quer dizer accedilatildeo de olhar de contemplar aspecto objeto de contemplaccedilatildeo espetaacuteculo

e em que o sufixo ndashtron (-) significa lsquoinstrumento dersquo e theacuteatron querer dizer

lsquomaacutequina de espetaacuteculosrsquo Theacutea e theacuteatron tecircm derivaccedilatildeo do verbo theaacuteomai (ά ou

ῶ) que significa ver contemplar considerar examinar ser espectador contemplar

pela inteligecircncia Entretanto o teatro teve em sua origem duas modalidades artiacutesticas

principais a trageacutedia e a comeacutedia

Pereira (2006) destaca que a palavra trageacutedia em grego (τραγῳδία) deriva de

tragos (τράγος) que significa bode puberdade os primeiros desejos do sentido lubricidade

(pois o bode simbolizava para os antigos pelas suas caracteriacutesticas o desejo sexual a

lubricidade) e de ode (ᾠή) que significa canto com acompanhamento de instrumentos

accedilatildeo de cantar

A palavra tragoidiacutea (τραγῳδία) de acordo com Fernandes (2006) significava em

grego ldquocanto do bode canto religioso com o qual se acompanhava o sacrifiacutecio de um bode nas

festas de Dioniso trageacutedia drama heroacuteico evento traacutegicordquo O tragoidoacutes (τραγῳδός) era

primordialmente aquele que danccedilava e cantava durante a imolaccedilatildeo de um bode nas festas de

Dioniso sendo que este termo significou tambeacutem em seguida lsquoaquele que danccedila e canta em

um coro traacutegico ator traacutegico membro do coro traacutegico poeta traacutegico Para alguns estudiosos o canto do bode era o canto dos companheiros de Dioniso em seus cortejos orgiaacuteticos dos saacutetiros os filhos de Sileno - que teria segundo uma tradiccedilatildeo sido um educador daquele deus (Sileno era famoso pela sua feiuacutera e sua sabedoria e suas formas eram em parte equinas) Poreacutem soacute muito tardiamente ndash a saber na eacutepoca heleniacutestica e romana da cultura grega - os saacutetiros foram representados como seres em que se misturavam formas humanas e formas caprinas tendo os membros inferiores ateacute mais ou menos a cintura em forma caprina e um chifre e feiccedilotildees que lembravam as feiccedilotildees caprinas No tempo aacuteureo das trageacutedias e mesmo pouco depois ndash a saber no seacuteculo V e IV a C - os saacutetiros apareciam como seres em que se misturavam as formas humanas com a equina tendo entatildeo os membros inferiores semelhantes agraves patas traseiras de um cavalo aleacutem de um rabo e orelhas de cavalo Esta hipoacutetese permaneceu poreacutem apoiada em passagens de textos do seacuteculo V (particularmente no fragmento 207 do Prometeu Pirceu de Eacutesquilo) em que saacutetiros satildeo chamados de bode natildeo pela sua forma mas

3 Nesta pesquisa trabalhamos com o conceito de Duplo estabelecido por Anna Beltrametti no artigo ldquoLe couple comique Des origines mythiques aux deacuterives philosophiques incluiacutedo na obra dirigida por Marie-Laurence Esclos Le rire des grecs anthropologie du rire en Gregravece ancienne (2000 p 215-226)

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hipoteticamente pela sua lasciacutevia ndash pois como jaacute dissemos o bode eacute caracterizado pela lubricidade (PEREIRA 2006 p7)

Outra hipoacutetese esta defendida por Lesky (1999) foi a de que o canto do bode era

o canto lamentoso da viacutetima sacrificada a Dioniso ndash que como vimos acima era um bode

Toda a trageacutedia se assemelha a um ritual de sacrifiacutecio No centro da orquestra no teatro

grego havia um altar a Dioniso (o thymeacutelendashθυμέλη) sugerindo que o destino traacutegico do heroacutei

e a representaccedilatildeo traacutegica eram como uma imolaccedilatildeo a Dioniso Na Greacutecia sobretudo nas

eacutepocas arcaicas eram praticados rituais de sacrifiacutecio dos chamados bodes expiatoacuterios (em

grego pharmakoacutesndashφαρμακός) em que um indiviacuteduo carregado de todas as impurezas da

comunidade era sacrificado

Em Atenas havia um ritual nas festas chamadas Targeacutelias4 dedicadas a Apolo e

Aacutertemis que remetia a este sacrifiacutecio Um homem e uma mulher eram surrados enquanto

eram conduzidos atraveacutes de toda a cidade Depois eram sacrificados fora das fronteiras da

cidade queimados e suas cinzas jogadas no mar Na eacutepoca claacutessica eram apenas jogados no

mar e depois expulsos para fora das fronteiras da cidade Eles eram chamados de pharmakoiacute5

bodes expiatoacuterios

O ritual de sacrifiacutecio era uma tradiccedilatildeo que existia em muitas outras civilizaccedilotildees

Nas Saacuteceas6 babilocircnicas por exemplo que satildeo mencionadas por Nietzsche em O nascimento

da trageacutedia um prisioneiro era sacrificado depois de ser nomeado rei da Babilocircnia por cinco

dias tempo em que tinha direito a desfrutar de todo o hareacutem do proacuteprio rei e de dar livre curso

a todos os seus apetites ateacute o momento de seu sacrifiacutecio Durante este tempo as orgias eram

celebradas em toda a cidade

Na Poeacutetica de Aristoacuteteles trageacutedia e comeacutedia assemelham-se quando satildeo

apresentadas como ldquomimesis7rdquo (1447a) e diferem porque autores cocircmicos ldquoimitamrdquo homens

4 Targeacutelia era um dos principais festivais atenienses realizados em honra a Apolo e Aacutertemis tal festival era celebrado no mecircs de Targeliatildeo (relativo ao periacuteodo de 15 de maio a 15 de junho) 5 Sacrificar (real ou simbolicamente) um bode expiatoacuterio para purificar a cidade era comum no mundo grego A pessoa sacrificada chamava-se pharmakoacutes Em Atenas o rito era parte das Targeacutelias festival em honra a Apolo Para ser pharmakoiacute as pessoas tinham que ser detentores de deficiecircncia fiacutesica e os considerados inuacuteteis 6 Festas que se celebravam na Peacutersia antiga e durante as quais os escravos mandavam nos amos 7 Como notado por GOLDEN Leon Aristotle on the Pleasure of Comedy In A O Rorty Essays on Aristotlersquos Poetics (1992 27) Do gr miacutemesis ldquoimitaccedilatildeordquo (imitatio em latim) designa a accedilatildeo ou faculdade de imitar coacutepia reproduccedilatildeo ou representaccedilatildeo da natureza o que constitui na filosofia aristoteacutelica o fundamento de 7Heroacutedoto foi o primeiro a utilizar o conceito e Aristoacutefanes em Tesmofoacuterias (411) jaacute o aplica O fenocircmeno natildeo eacute um exclusivo do processo artiacutestico pois toda atividade humana inclui procedimentos mimeacuteticos como a danccedila a aprendizagem de liacutenguas os rituais religiosos a praacutetica desportiva o domiacutenio das novas tecnologias etc Por esta razatildeo Aristoacuteteles defendia que era a miacutemesis que nos distinguia dos animais

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piores e os traacutegicos os ldquoimitamrdquo melhores do que satildeo na realidade (1448a) Sendo a mimesis

considerada pelo filoacutesofo como congecircnita agrave natureza humana ndash que com ela se compraz e

aprende ndash a poesia naturalmente tomou as formas da iacutendole particular dos poetas os de

acircnimo mais elevados mimetizavam accedilotildees nobres atraveacutes de hinos e encocircmios e os de mais

baixas inclinaccedilotildees compunham vitupeacuterios (1449a) Vinda agrave luz atraveacutes da poesia a mesma

distinccedilatildeo estendeu-se ao teatro dos ditirambos em honra a Dioniso originou-se a trageacutedia e

nos cantos faacutelicos ndash que tambeacutem evocavam o mesmo Deus ndash pode-se perceber as sementes da

comeacutedia

Na cena teatral segundo Aristoacuteteles (Poeacutetica 1448b) a comeacutedia apresentava o

que os homens tecircm de ridiacuteculo caracterizado como ldquodefeito torpeza anoacutedina e inocenterdquo a

maacutescara cocircmica era disforme mas natildeo possuiacutea expressatildeo de dor Por sua vez a trageacutedia aacutetica

mimetizava homens superiores em accedilotildees de caraacuteter elevado que suscitavam terror (phobos) e

compaixatildeo (eleas) e provocavam o prazer que eacute proacuteprio desses sentimentos

Sem desconsiderar que uma localizaccedilatildeo muito rigorosa das origens seria um erro

metodoloacutegico ressalto a origem comum da trageacutedia e da comeacutedia ndash nos coros dionisiacuteacos ndash

ainda que predominantemente a Filosofia demonstre muito menos apreccedilo por essa uacuteltima Se

a trageacutedia surgiu dos ditirambos a comeacutedia comeccedilou com os komoi uma espeacutecie de procissatildeo

jocosa das quais a mais famosa era realizada nas festas dionisiacuteacas para celebrar a fertilidade

da natureza atraveacutes de homenagens a reproduccedilotildees de falos descomunais ndash costume ainda vivo

em algumas regiotildees da Greacutecia e Japatildeo

Os comediantes (komoidoi) andavam de aldeia em aldeia por natildeo serem tolerados

na cidade registrou Aristoacuteteles (1448b) Oficialmente as representaccedilotildees cocircmicas tiveram

origem nas Dioniacutesias Urbanas (486aC) em Atenas mas cenas pintadas em vasos revelam

sua existecircncia bem antes da data oficial

ldquoA trageacutedia surgiu do coro traacutegicordquo Pode-se ler em O nascimento da trageacutedia

(NIETZSCHE 2007 p52) quando Nietzsche interpreta a origem da trageacutedia no coro dos

saacutetiros de um modo bastante especiacutefico tomando como arma a luta contra a ideia de

naturalismo na arte O coro mesmo eacute percebido ldquocomo uma muralha viva que a trageacutedia

estende agrave sua volta a fim de isolar-se do mundo real e de salvaguardar para si o seu chatildeo ideal

e a sua liberdade poeacuteticardquo (p54) E o faz preservando as semelhanccedilas com os antigos coros

satiacutericos gregos e sua erracircncia por terrenos mais elevados ldquomuito acima das sendas reais do

perambular dos mortaisrdquo (p54) O saacutetiro ndash ldquoser natural e fictiacuteciordquo ndash eacute percebido em relaccedilatildeo ao

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homem grego civilizado do mesmo modo que a muacutesica dionisiacuteaca em relaccedilatildeo agrave civilizaccedilatildeo O

coro satiacuterico suspende eleva e supera o grego civilizado da mesma forma como a claridade do

sol faz com as luzes das lacircmpadas escreve Nietzsche

Expressatildeo do proacuteprio desejo com sua erracircncia original o coro satiacuterico criava um

territoacuterio transcendente distanciado da realidade cotidiana natildeo apenas tolerado como

ldquoliberdade poeacuteticardquo e sim considerado pelo menos por Nietzsche a proacutepria ldquoessecircncia de toda

poesiardquo (p54) O mesmo filoacutesofo escreveu O ecircxtase do estado dionisiacuteaco com sua aniquilaccedilatildeo das usuais barreiras e limites da existecircncia conteacutem enquanto dura um elemento letaacutergico no qual imerge toda vivecircncia pessoal do passado Assim se separam um do outro atraveacutes desse abismo do esquecimento o mundo da realidade cotidiana e o da dionisiacuteaca (NIETZSCHE 2007 p55)

Devo advertir de iniacutecio que eacute difiacutecil dizer por que a partir de uma origem comum

ndash a experiecircncia dionisiacuteaca ndash o distanciamento arrebatador do mundo cotidiano prosaico gerou

expressotildees tatildeo diversas a ponto de constituiacuterem gecircneros ateacute hoje existentes como o cocircmico e

o traacutegico E segundo Nietzsche este uacuteltimo eacute com ajuda de Apolo a ldquodomesticaccedilatildeo artiacutestica

do horriacutevelrdquo enquanto o primeiro seria uma ldquodescarga da naacuteusea do absurdordquo (NIETZSCHE

2007 p56)

Ao longo da histoacuteria entretanto pode-se perceber que o entrelaccedilamento de ambos

no que ficou conhecido como ldquotragicocircmicordquo a ponto de tornar-se popular a ideia expressa

pelo ditado ldquoseria cocircmico se natildeo fosse traacutegicordquo Como tantos outros os termos originais

foram banalizados esvaziados de conteuacutedo tornados difusos

Se em sua origem o cocircmico era o outroduplo do traacutegico tambeacutem desde esses

tempos a saacutetira jaacute se fazia presente como companhia do texto cocircmico A chamada ldquoComeacutedia

Antigardquo (425-404 aC periacuteodo da produccedilatildeo de Aristoacutefanes que nos chegou) caracteriza-se

pela mordacidade caacuteustica na mimesis dos cidadatildeos proeminentes e das instituiccedilotildees dapolis8

seja pelos a(u)tores seja pela manifestaccedilatildeo das proacuteprias personagens que algumas vezes

representavam em cena o proacuteprio discurso revelador das injusticcedilas sociais tatildeo comuns na

Cidade

Nesse contexto o Duplo sempre foi um tema profundamente instigante da cultura

humana e sempre esteve essencialmente relacionado em vaacuterias aacutereas do conhecimento como

na Filosofia Psicologia Literatura e na Mitologia persistindo temporalmente como temaacutetica 8 Para a normatizaccedilatildeo de algumas palavras gregas em portuguecircs seguimos o Glossaacuterio elaborado pelo Laboratoacuterio de Estudos Sobre a Cidade Antiga Disponiacutevel em pdf no site wwwmaeuspbrlabeca aba glossaacuterio No caso de palavras jaacute dicionarizadas utilizamos a forma de acordo como que consta no Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa (2008)

23

sempre revisitada e geradora de ambiguidades Na Antiguidade o Duplo era para a

sociedade a representaccedilatildeo ou o reflexo do idecircntico ou seja prevalecia a ideia de Duplo como

o homogecircneo manifestaccedilatildeo do igual

No entanto natildeo permaneceu dessa maneira tendo com o passar do tempo a partir

do seacuteculo XVIII se tornado heterogecircneo isto eacute o Duplo passa a representar o desigual ou em

outras palavras o oposto em Suassuna o arremedo cocircmico Este fato encontra comprovaccedilatildeo

quando procuramos as diferenccedilas existentes entre o traacutegico e o cocircmico tatildeo bem delineadas na

sociedade Greacutecia Claacutessica

Obscura como outros siacutembolos e projeccedilotildees coletivas a figura do duplo em

Acarnenses (Diceoacutepolis) e no Auto da Compadecida (Joatildeo Grilo) eacute cocircmica e criacutetica visto que

satildeo elementos que parodiam o serviccedilo divino cantando errado e fazendo sermotildees

moralizantes travestem-se usam maacutescaras passeiam com maestria nos mundos popular e

erudito representam coletivos pelo poder da gargalhada do riso seacuterio e da tolice formas mais

sutis para se levar ao conhecimento da audiecircncia o desdobramento da consciecircncia ao mesmo

tempo a do idiota e a do bufatildeo que a utiliza como maacutescara e a coloca em praacutetica na defesa do

cidadatildeo injusticcedilado

Cantando errado e fazendo sermotildees moralizantes os a(u)tores travestem-se de

heroacuteis cocircmicos satildeo porta-vozes da opiniatildeo de muitos se apoderam do grotesco usam

maacutescaras passeiam com maestria nos mundos popular e erudito representam coletivos pelo

poder da gargalhada do riso seacuterio e da tolice e encontram em seus outros as formas

mais(in)certas para criticar agravequeles que exploram a cidade e levar ao puacuteblico atraveacutes de

figuras idiotizadas os ensinamentos que ironicamente o poeta preocupado com o destino do

cidadatildeo executa diante de suas audiecircncia

Esta dualidade cocircmica estabelecida pelo poeta e seus duplos no espaccedilo cecircnico da

cidade eou do inframundo implica certa ambiguidade constitutiva na figura do heroacutei cocircmico

ou do juiz apresentado em Acarnenses no Auto da Compadecida e no Auto da Barca do

Inferno tendo em vista tambeacutem a accedilatildeo dos pares antagocircnicos estuacutepido e saacutebio grosseiro e

sutil escravo das pulsotildees e senhor de si mesmo menos e mais humano

Assim percebe-se que tanto no teatro aristofacircnico quanto no teatro popular de

Ariano Suassuna o autoconhecimento expresso pelas maacutescaras gestos e vozes cocircmicas

implica tambeacutem no conhecimento da condiccedilatildeo humana tatildeo bem levada a seacuterio pelos autores e

seus discursos criacuteticos sendo portanto uma nova forma de combinar velhos ingredientes

como o riso frouxo e a voz estridente educadora aacutecida da sociedade ateniense que encontra

espaccedilo semacircntico atraveacutes dos gestos e maacutescaras que se organizam em uma nova composiccedilatildeo

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natildeo soacute da cena teatral mas da inteligecircncia de autores que pensam a sociedade para aleacutem das

mazelas das injusticcedilas vivenciadas impostas pelo estado de guerra

Nesse ambiente muacuteltiplopolifocircnico observamos que a ldquovoz do poetardquo os gestos

e as maacutescaras satildeo fundantes da estrutura do discurso educativo e denunciador formado a

partir da presenccedila de vaacuterias vozes como a do proacuteprio poeta que tem sido um tema de grande

interesse para muitos estudiosos e para todos que se deparam com a problemaacutetica da

identificaccedilatildeo desta quando articulada agrave formaccedilatildeo dos duplos do poeta dentro da Comeacutedia

Antiga perceptiacutevel nas peccedilas Acarnenses de Aristoacutefanes no Auto da Compadecida de

Ariano Suassuna e no Auto da barca do Inferno de Gil Vicente

Por ser uma arte que permanece haacute tantos seacuteculos o teatro desperta curiosidade

acerca de seus primoacuterdios existindo vaacuterias conjecturas e teorias sobre o surgimento da

Comeacutedia Antiga como ambiente extremamente propiacutecio agrave formaccedilatildeo de duplos a partir de

uma seacuterie de elementos presente no mito e culto do deus do teatro Dioniso no qual as vozes

os gestos e as maacutescaras satildeo sobrepostas como causa de equiacutevocos e componentes centrais das

invectivas pessoais ou intrigas transformando-se em acessoacuterios fundamentais para o discurso

moralizante e para alcanccedilar o objetivo maior do a(u)tor a obtenccedilatildeo da paz em Acarnenses de

Aristoacutefanes e a absolviccedilatildeo no Auto da Compadecida de Ariano Suassuna ou na condenaccedilatildeo

das almas em virtude de suas faltas e pecados em vida como esclarece Nemeacutesio (1941) num

ritmo sacral na abordagem vicentina no Auto da Barca do Inferno

Eacute notaacutevel contudo observar que esses elementos frequentemente utilizados por

Aristoacutefanes em suas peccedilas tambeacutem encontram eco na literatura popular de Suassuna Isso

decorre do fato de a obra do pernambucano tambeacutem apresentar uma tessitura textual

atravessada por muacuteltiplas vozes estas representadas pelas diferentes personagens Nesse

processo as obras dos dois autores evidenciam um fenocircmeno recorrente e natural marcado

pela tensatildeo de uma crise profunda denunciada pelos dramaturgos nos discursos de suas

personagens

Assim eacute pertinente que primeiro justifiquemos a escolha das obras citadas visto

que ambas trazem em seus enredos personagens que usam da autoridade conferida pelo poeta

para ressoar seus anseios e indignaccedilotildees atraveacutes do discurso Ao longo das peccedilas Aristoacutefanes e

Suassuna projetam seus duplos de forma que suas proacuteprias vozes possam ser ouvidas

indiretamente por traacutes de cada ato levando o puacuteblico a crer que ouve a voz direta do poeta

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quer atraveacutes do coro do palhaccedilo coreuta da paraacutebase9 ou em personagens protagonistas

como Diceoacutepolis ou Joatildeo Grilo

Atraveacutes dessas personagensautores a voz do dramaturgo eacute projetada pelo riso da

mangofa10 pelos gestos performaacuteticos pelo arremedo poeacutetico eou pelo outro travestido de

a(u)tor accedilotildees perfeitamente justificaacuteveis visto que o cocircmico tem afinidade com a cultura

popular porque utiliza fatos do dia a dia como mateacuteria na representaccedilatildeo de algo atraindo

consequentemente a atenccedilatildeo do leitor ou ouvinte para a obra A verdade eacute que a conduccedilatildeo

cocircmica e moralizante encontra espaccedilo feacutertil em ambas as obras traduzida pela accedilatildeo do poeta a

partir das vozes de seus duplos Diceoacutepolis e Joatildeo Grilo figuras conturbadas em franco

desacordo com a situaccedilatildeo promovida pelos legisladores em Atenas ou na pacata cidade de

Taperoaacute interior nordestino Esses protagonistas descobrem-se em atitude de perfeita

rebeldia conscientes das mudanccedilas advindas de suas atitudes e como heroacuteis cocircmicos satildeo

tambeacutem autores de uma saiacuteda que nem sempre pode ser compartilhada socialmente ou

compreendida

Neste contexto a construccedilatildeo do duplo representa um transbordamento do proacuteprio

poeta um arremedo despadronizado o outro do autor uma imitaccedilatildeo de algo que se pretende

por muitas vezes deter e que retorna fazendo pressatildeo no sentido contraacuterio denunciando as

injusticcedilas e desmandos autorizados pelo poeta com toda a sua pujanccedila Quem natildeo recorda das

figuras ceacutelebres de Diceoacutepolis o duplo cocircmico (matuto) de os Acarnenses (Aristoacutefanes) e de

Joatildeo Grilo e Chicoacute sendo uma espeacutecie de duplo pois representa de forma autorizada a

proacutepria voz do poeta com todas as suas anedotas e os ndash Natildeo sei soacute sei que foi assim ou de

algum outro matuto astuto de nossa tradiccedilatildeo cinematograacutefica ou teatral recriado na literatura

de cordel a partir da influecircncia ibeacuterica ou grega

Diante dessa apropriaccedilatildeo e recuperaccedilatildeo dos mecanismos narrativos da comeacutedia e

de seu caraacuteter atemporal torna-se importante salientar que a Comeacutedia Antiga aleacutem de

construir ldquomuacuteltiplos cocircmicosrdquo apresenta personagens natildeo universais como os que satildeo

caricaturas de pessoas que viveram em Atenas em um momento especiacutefico A obra de

Aristoacutefanes potildee em cena nomes de figuras eminentes da Greacutecia antiga como o de poliacuteticos

9 A paraacutebase eacute uma seccedilatildeo de natureza puramente coral da comeacutedia antiga Na Paraacutebase o coro avanccedilaria em direccedilatildeo aos espectadores e pronunciaria os versos olhando para eles O verbo parabaino aparece doze vezes nas peccedilas de Aristoacutefanes Nas suas demais menccedilotildees significa transgredir um juramento (As Aves vv 331 447 461 Lisiacutestrata vv 235 236 As Mulheres que Celebram as Tesmofoacuterias v 357 Assembleia de Mulheres v 1049) Em As Vespas v 1529 o sentido eacute o de avanccedilar danccedilando mas o contexto em que eacute empregado natildeo eacute parabaacutetico DUARTE Adriane da Silva O dono da voz e a voz do dono a paraacutebase na comeacutedia de Aristoacutefanes Satildeo Paulo Humanitas FFLCH USP 2000308 10 Debique escaacuternio mangaccedilatildeo mangoaccedila mangoccedila mofa zombaria mangofa

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(Cleatildeo e Lacircmaco) pensadores (Soacutecrates) e poetas (Euriacutepides e Eacutesquilo)

A referecircncia a essas personalidades bem como o diaacutelogo com a mitologia a

histoacuteria e o teatro natildeo constituiacutea um problema para a plateia de Aristoacutefanes No entanto para

noacutes leitores de outras geraccedilotildees a percepccedilatildeo de tais referecircncias natildeo eacute assim tatildeo simples ainda

que seja fundamental para a compreensatildeo da comeacutedia

Em Aristoacutefanes Diceoacutepolis que atua na comeacutedia como Joatildeo Grilo no Auto da

Compadecida representa muitos cidadatildeos pois ele eacute a ldquoCidade Justardquo espectador do teatro

participante da assembleia ator ou personagem de Euriacutepides vendedor na sua aacutegora Eacute nesta

interaccedilatildeo criaccedilatildeo e recriaccedilatildeo de discursos que estabelecemos contato com o maior

entendimento da histoacuteria da comicidade a fim de entender os recursos que o comedioacutegrafo

utilizou ao compor seus (duplos) personagens que permanecem por seacuteculos em nossa

tradiccedilatildeo

Vale ressaltar que tudo que acontece na cidade tambeacutem eacute do conhecimento do

poeta que no Auto da Compadecida evidenciado por sua proacutepria construccedilatildeo que obedeceu a

uma ideologia antiga do autor de unir o nacional ao popular para operar as mudanccedilas sociais ndash

em Taperoaacute ndash ou por que natildeo dizer em seu mundo real versejado por suas andanccedilas Para ele

a arte que realmente expressa o paiacutes e o povo brasileiro eacute popular ou baseada no popular uma

arte erudita baseada no popular e em tal concepccedilatildeo de arte estaria a gecircnese de seu teatro no

qual desejava expressar suas raiacutezes e seu povo negando assim os modelos de teatro europeu

como se percebe em sua seguinte fala Queria fazer um teatro que expressasse meu paiacutes e meu povo Aiacute me vi muito naturalmente diante do folheto de cordel essa expressatildeo extraordinaacuteria que o povo brasileiro criou e que eacute o uacutenico espaccedilo cultural onde o povo brasileiro se expressou sem intervenccedilotildees nem deformaccedilotildees que lhe viessem de cima ou de fora O folheto de cordel eacute um universo extraordinaacuterio (SUASSUNA 2001 p 04)

Composto pela recriaccedilatildeo criacutetica e por possuir um enredo que proporciona ao

leitorespectador o riso a reflexatildeo e a dor Auto da Compadecida eacute uma mistura de trageacutedia e

comeacutedia como nos afirma Geraldo da Costa Matos Auto da Compadecida eacute misto um duplo pois participa da estrutura traacutegica pela oposiccedilatildeo muito radical dos personagens a ponto de natildeo haver acordo entre eles e da cocircmica pelos incidentes e desenlace com a salvaccedilatildeo de todos graccedilas agrave intervenccedilatildeo da Compadecida permanecendo no inferno apenas os democircnios cuja situaccedilatildeo jaacute se encontra definida ao aparecerem ao palco (SUASSUNA 2005 p82)

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Na verdade apesar de estarem diluiacutedos em toda a peccedila os elementos traacutegicos e

cocircmicos se intercalam com predominacircncia ora de um ora de outro O cocircmico tem presenccedila

mais marcante em torno das accedilotildees do protagonista Joatildeo Grilo e de seu duplo Chicoacute que

enganam os eclesiaacutesticos (Primeiro Ato) o padeiro e a mulher (Segundo Ato) atraveacutes das

mentiras que criam com o objetivo de ganhar algum trocado ou simplesmente para vingar-se

de seus exploradores

As marcas do traacutegico se tornam mais salientes a partir da metade do segundo ato

com a entrada de Severino do Aracaju travestido de mendigo e do Cangaceiro Estes dois se

opotildeem aos demais personagens uma vez que entram em cena para roubar e acabam

provocando a morte de todos que estatildeo na igreja Na cena do julgamento a oposiccedilatildeo entre as

personagens torna-se ainda mais brusca pois se veem de um lado as figuras celestiais e de

outro as figuras demoniacuteacas natildeo havendo acordo entre elas

Eacute justamente nesse abrir e fechar de cortinas que o teatro aristofacircnicosuassuniano

nos proporciona enquanto espectadores uma visatildeo amplamente criacutetica das accedilotildees humanas

seja pelo desejo pessoal injuacuteria ou pela proacutepria paroacutedia que tatildeo bem se propotildee ao

convencimento do puacuteblico Assim concordamos com Brait (1985) ao referir agrave teoria

desenvolvida por Aristoacuteteles em sua poeacutetica sobre os dois pontos essenciais dos personagens

uma vez que o primeiro ponto define o personagem como reflexo da pessoa humana e o outro

concebe o personagem como construccedilatildeo baseada em leis particulares preacute-existentes no texto

Se quisermos saber alguma coisa a respeito de personagens teremos de encarar frente a frente agrave construccedilatildeo do texto social a maneira que o autor encontrou para dar forma agraves suas criaturas e aiacute pinccedilar a independecircncia a autonomia e a ldquovidardquo desses seres de ficccedilatildeo (BRAIT 1985 p11)

Pode-se observar que esses dois pontos se completam estabelecendo bases para a

criaccedilatildeo das personagens Diceoacutepolis e Joatildeo Grilo tanto em Acarnenses como no Auto da

Compadecida a partir do olhar atento do(s) autor(es) jaacute que eles sofrem pela aplicaccedilatildeo das

leis preacute-existentes tanto na sociedade real quanto na ficccedilatildeo sem perder o caraacuteter denunciador

e intencional proposto pelo criador intriacutenseco agraves suas criaturas

Portanto tanto em Acarnenses quanto no Auto da Compadecida o vieacutes cocircmico

utiliza a irreverecircncia para tratar e relatar as dificuldades as opiniotildees e as injusticcedilas da

sociedade de maneira direta e aberta e deste modo se contrapotildee agraves regras sociais que exigem

boas maneiras ou padratildeo que jamais seraacute alvo da comeacutedia

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A comeacutedia eacute o oposto da trageacutedia pois se traduz no uso do riso que faz

ultrapassar os limites da seriedade criando novas e criacuteticas hipoacuteteses e questionamentos sobre

a realidade denunciando os viacutecios erros morais e atitudes irregulares de indiviacuteduos de uma

classe aleacutem de servir para criticar a sociedade dos corrompidos dos inferiores de maneira

camuflada e irreverente Desta forma pode-se afirmar que a performance cocircmica da qual o

riso a maacutescara o gesto e a voz fazem parte constitui-se de forma implacaacutevel em Aristoacutefanes

e Suassuna como arma para a exposiccedilatildeo ao ridiacuteculo e a exposiccedilatildeo de algo ou algueacutem ao

ridiacuteculo natildeo seraacute bem visto perante as regras e as pessoas da sociedade como o proacuteprio

dramturga citando Moliegravere afirmava ldquoNatildeo existe tirania que resista a gargalhadas que lhe

deem trecircs voltas em tornordquo

11 A comeacutedia aristofacircnica

Castigat ridendo mores 11

Devo de iniacutecio chamar a atenccedilatildeo do empenhado leitor que com grande causa e

sem gabaccedilatildeo deve compreender as peripeacutecias dos (anti)heroacuteis que ora apresento entre o curto

espaccedilo de fechar e abrir as cortinas do teatro-mundo cabe uma especial referecircncia agraves obras

postas em anaacutelise ligadas pelo riso denunciativas em suas eacutepocas separadas

cronologicamente e atemporalmente aqui em completude

Desde a Antiguidade o riso e a comeacutedia tecircm servido para manifestar os viacutecios e

as fraquezas humanas Segundo a perspectiva de Aristoacuteteles na sua Poeacutetica a comeacutedia era a

via por onde passava o homem inferior ndash o nosso anti-heroacutei aquele que natildeo era digno de se

prestar agraves trageacutedias e ser chamado de heroacutei Provavelmente foi na Greacutecia que para noacutes a

representaccedilatildeo do homem inferior surgiu Desde entatildeo aquilo que provoca o riso tem sido no

mais das vezes o que eacute condenaacutevel e baixo na humanidade Em ambas as peccedilas o riso eacute a

arma cocircmica que castiga os costumes que estavam em desacordo com a moral e a partir

disso o riso passa a ser um fenocircmeno sobretudo social e humano e que ocorre somente em

circunstacircncias em que de alguma forma a sociedade vecirc-se ameaccedilada a ponto de criar

situaccedilotildees absurdas rupturas para expurgar os males que decorrem dessa situaccedilatildeo de

encurralamento de total exploraccedilatildeo como demonstradas nas peccedilas a seguir

11 Locuccedilatildeo latina que significa rindo castiga-se os costumes

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12 Dioniso Matuto Justinoacutepolis um heroacutei embusteiro

Ana Maria Ceacutesar Pompeu (2011) nos esclarece que Acarnenses eacute a primeira

comeacutedia que nos chegou de Aristoacutefanes encenada em 425 aC Ela traccedila um retrato

caricatural da cidade de Atenas num periacuteodo de crise das instituiccedilotildees democraacuteticas

relacionado diretamente com a guerra do Peloponeso (431 aC -404aC) Eacute a primeira

comeacutedia que conservamos do seu autor como tambeacutem da Comeacutedia Antiga e define-se como

uma peccedila de tema poliacutetico no sentido moderno inspirada na administraccedilatildeo e na experiecircncia

coletiva de uma Atenas que vive plenamente o seu periacuteodo democraacutetico

O tiacutetulo da peccedila refere-se aos habitantes do demos 12 de Acarnas ex-combatentes de

Maratona que tinham apoiado a guerra contra Esparta por as suas terras terem sido saqueadas

pelos guerreiros lacedemocircnios O caraacuteter didaacutetico do texto eacute expresso pelo proacuteprio autor nos

versos 500-501 (p92) ldquoPois o que eacute justo a comeacutedia tambeacutem cunhece Eu vou falaacute coisas

terrive mas justardquo Aleacutem do caraacuteter didaacutetico da comeacutedia aristofacircnica percebe-se tambeacutem a

presenccedila de nomes de alguns personagens que tecircm uma significaccedilatildeo alegoacuterica Diceoacutepolis o

personagem principal significa cidade justa Anfiacuteteo eacute um nome divino e de alguns poliacuteticos e

legisladores da eacutepoca

O autor de Acarnenses constroacutei a sua peccedila a partir de Atenas pintada em funccedilatildeo

do proacuteprio fluir histoacuterico assolada pela guerra O eixo central da comeacutedia eacute a relaccedilatildeo entre o

puacuteblico e o privado alimentada pela disputa entre belicistas e pacifistas quanto agrave guerra pelo

que a sua mensagem eacute poliacutetica sendo o povo ateniense representado como um bando de

loucos e a democracia como uma farsa

A peccedila comeccedila com DiceoacutepolisJustinoacutepolis um camponecircs forccedilado a migrar para

a cidade onde vive em condiccedilotildees precaacuterias e que aguarda a reuniatildeo da asssembleia onde o

tema da discussatildeo de um tratado de paz vai ser deliberado Vendo a praccedila vazia lamenta a

natildeo participaccedilatildeo do povo na reuniatildeo da assembleia ficando a decisatildeo entregue nas matildeos de

poliacuteticos profissionais que por regra eram demagogos revelando uma contradiccedilatildeo do sistema

democraacutetico os destinos da comunidade cujo governo pertence a todos (puacuteblico) fica afinal

entregue ao cuidado de poucos (privado) deixando a porta aberta a todo o arbiacutetrio e

venalidade

12 Na Greacutecia Antiga o demo (em grego δῆμος) era uma subdivisatildeo da Aacutetica regiatildeo da Greacutecia em torno de Atenas Os demos jaacute existiam como meras subdivisotildees de terra nas aacutereas rurais desde o seacuteculo VI aC

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Comeccedilada a assembleia Ambiacutedeus faz a proposta de paz mas eacute rechaccedilado com

ordem de prisatildeo DiceoacutepolisJustinoacutepolis tenta reverter a situaccedilatildeo mas sem sucesso dizendo

Oacute priacutetanes vocecircs tatildeo fazendo mal pra assembleia Arrastando o homem que queria fazecirc treacuteguas Pra noacutes e dependuraacute os escudo (ARISTOacuteFANES POMPEU 2014 p67)

Este breve momento em que apenas dois indiviacuteduos se manifestam a favor da

discussatildeo de um problema central no contexto ateniense agindo no interesse do bem comum

da cidade eacute logo apagado abafado pelo conselho que desviaraacute a sua atenccedilatildeo para os

embaixadores que chegam da Peacutersia

DiceoacutepolisJustinoacutepolis protagoniza a voz da razatildeo numa sociedade dominada por

loucos e safados que teimam em alimentar a guerra com Esparta como pretexto para

enriquecerem agrave sua custa ficando ele cada vez mais miseraacutevel e pobre Diceoacutepolis

desmascara em seguida a funccedilatildeo das missotildees diplomaacuteticas persas na figura de

Pseudaacutertabas 13 como fraudes pois vem prometer ouro com a conivecircncia dos embaixadores

atenienses como manobra de diversatildeo apenas

Com efeito a sua ostentaccedilatildeo agrave custa do dinheiro puacuteblico que contrasta com a

pobreza da maioria dos cidadatildeos desmente a veracidade da proposta que fazem por isso eacute

com palavras acerbas - ldquocus molesrdquo- que os incita a natildeo caiacuterem no logro Diceoacutepolis eacute entatildeo

silenciado a reuniatildeo eacute suspensa e iraacute fazer-se agrave porta fechada no Conselho (Pritaneu) Com

este estratagema o direito de todos participarem na tomada de decisatildeo eacute abolido confinando

a decisatildeo poliacutetica ao segredo dos gabinetes Compreendendo que a guerra natildeo lhe conveacutem

DiceoacutepolisJustinoacutepolis conclui uma paz privada com o inimigo libertando-se da loucura da

cidade Assim fugindo de uma ordem puacuteblica corrompida procura um espaccedilo em que possa

ser o senhor absoluto de si proacuteprio Os acarnenses ficam enfurecidos ao descobrirem que

Diceoacutepolis fez um acordo de paz com os lacedemocircnios apedrejando-o

Entatildeo ele tenta com palavras sensatas expor suas razotildees defender-se das

acusaccedilotildees que lhe satildeo movidas mas o seu direito de defesa eacute contestado com ameaccedilas de

ainda maior violecircncia por parte do coro dos Acarnenses

13 ldquopseucircdosrdquo ldquofalsordquo artaacutebe ldquomedida persardquo Falsidacircmetro in Traduccedilatildeo Matuta Cearense de Dyscolos o Enfezado de Menandro POMPEU e SANTOS Cultura e Traduccedilatildeo v 5 n 1 (2017) ISSN 2238-9059 Disponiacutevel em httpperiodicosufpbbrojs2indexphpct 2017

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ldquoCoro Quero eacute morrecirc seu ti iscutaacute Diceoacutepolis Num faccedila isso natildeo oacute Acaacuternicos Coro Tu vai morrecirc fica sabenrsquoagorardquo (ARISTOacuteFANES POMPEU 2014 p81-82)

A democracia encontra-se subvertida na sua essecircncia quando a violecircncia

imperante impede que o criteacuterio de resoluccedilatildeo dos conflitos seja resolvido com recurso agrave livre

discussatildeo em condiccedilotildees igualitaacuterias no espaccedilo puacuteblico Eacute o que estaacute acontecendo primeiro

na assembleia depois eacute-lhe negado o direito de defesa contra as acusaccedilotildees dirigidas a um

cidadatildeo finalmente eacute silenciado e suspenso a sua proposta de discussatildeo

DiceoacutepolisJustinoacutepolis eacute o proacuteprio Aristoacutefanes criador e criatura autorizado a

assumir o risco de morte proclama o que julga ser justo para a cidade e denuncia a retoacuterica

fraudulenta dos oradores que conquistam o povo com o sortileacutegio encantatoacuterio do seu

discurso Taquioia este tronco aqui E o home que vai falaacute eacute deste tamanhin Tenha cuidado natildeo num vocirc me armaacute de iscudo Vocirc falaacute em favocirc dos lacedemocircmios o qrsquoeu acho Mas tenho muito que temecircPois os modo Dos lavradocirc conheccedilo eu eles fica muito alegre Se pra eles e pra cidade fizeacute elogio algum Home inrolatildeo com justiccedila ou sem ela E aiacute num se datildeo conta que tatildeo seno eacute vindido E dos veacuteio tambeacutem conheccedilo as alma que Num bota a vista noutra coisa mas soacute em mordecirc cum voto Euzin aqui sei o que sofri nas matildeo de Cleatildeo Por causa da cumeacutedia do ano passado Pois teno me arrastado pro tribunal Ele me caluniava e cuspia mintiras contra mim Era uma cachoecircra e me banhava que quase Murri afogado na cusparada de insultos Agora intatildeo antes de falaacutedecircxeprimecircro Qacuteeu me vista como o mais miserave de tudin (ARISTOacuteFANES POMPEU 2014 p84)

Na parte final da peccedila o Coro modula a sua posiccedilatildeo ao final da intriga vindo a

reconhecer o serviccedilo que o poeta prestou agrave comunidade e que o tratado de paz eacute o mais justo

para a cidade pois restabeleceraacute o valor da democracia para as cidades desmascarando os

maus costumes e seus legisladores exploradores do povo

Vale ressasltar que o poeta usa uma histoacuteria cocircmica e simples como enredo a

proacutepria histoacuteria passa a ser um mero pretexto para o desenvolvimento cocircmico em Acarnenses

jaacute que a saacutetira eacute um elemento importante e porque natildeo moralizante nesse contexto

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Tatildeo bem quanto Aristoacutefanes Suassuna elaborou seus personagens seguindo um

esterioacutetipo social No enredo da comeacutedia aristofacircnica encontramos dois elementos (1) o (anti)

heroacutei (2) o esquema fantaacutesticomoralizante

13 O (anti)heroacutei Aristofacircnico

A figura do heroacutei tanto na literatura quanto fora dela eacute laureada com uma

tragicidade iminente o traacutegico que no contexto da mitologia eacute muito mais do que a

encarnaccedilatildeo da perda do sofrimento e das incertezas humanas no fim o traacutegico eacute o

eminentemente humano contra o divino a lembranccedila irrestrita da pequenez ceacutelere e irasciacutevel

da existecircncia humana

Jaacute a comeacutedia grega sobretudo a de Aristoacutefanes nos remete da forma mais

evoluiacuteda a uma concepccedilatildeo de existecircncia que prevecirc de forma profeacutetica que nem tudo o que eacute

humano ou divino deve ser levado muito a seacuterio pois no final tudo eacute poacute a vida um suspiro no

vazio das eras portanto natildeo se pode levar nada muito a seacuterio numa clara conotaccedilatildeo Dioniacutesia

O camponecircs ateniense como sujeito histoacuterico e tambeacutem como personagem do

teatro cocircmico de Aristoacutefanes foi figura central e essencial no decorrer do seacuteculo V a C

desde que sua posiccedilatildeo eacutetico-social permaneceu intacta frente aos sofrimentos beacutelicos de

Atenas pelo que tomou um caraacutecter de idealizaccedilatildeo tanto em sua posiccedilatildeo de cidadatildeo como nas

personificaccedilotildees da comeacutedia aristofaacutenica

O heroacutei de Aristoacutefanes natildeo eacute limitado ao desejo do puacuteblico somente de riso ou

excessos ele tem a grandeza de contradizer o estabelecido de conduzir o ouvinte a um

caminho de excesso que educam de entendimento proferido por um agente que carregado de

um heroiacutesmo simples jamais seraacute unilateral ou submisso E toda essa inquietaccedilatildeo que

provoca a presenccedila desse duplo para a Comeacutedia Antiga eacute uma ferramenta que constroacutei o

heroacutei cocircmico aristofacircnico segundo Whitman (1969 p 25) Essa unidade de autoconceito e autoafirmaccedilatildeo confere ao espiacuterito heroacuteico uma espeacutecie de pureza mas dificilmente eacute o que poderiacuteamos chamar de coerecircncia pois a qualquer momento o heroacutei pode desrespeitar todas as expectativas em deferecircncia aos misteacuterios particulares de sua proacutepria vontade Ele eacute pode-se dizer consistente consigo mesmo mas como ele cria a si mesmo agrave medida que age o resultado natildeo pode ser conhecido de antematildeo nem mesmo por si mesmo O heroiacutesmo eacute como se pode dizer dirigido pelo seu interior e embora as direccedilotildees possam diferir o princiacutepio vale as aparecircncias agraves vezes ao contraacuterio nenhuma abstraccedilatildeo jamais poderaacute controla o heroacutei em busca da totalidade E eacute precisamente isso que os heroacuteis de Aristoacutefanes satildeo 14

14 14This unity of self-conception and self-assertion gives to the heroic spirit a kind of purity but hardly what we would call consistency for at any moment the hero may flout all expectation in deference to the private

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Aristoacutefanes como ningueacutem conferiu ao seu (anti)heroacutei a figura simples de um

homem rural idealmente eacutetico e poliacutetico que a polis ateniense precisava para se reconstruir e

se transformar Essa percepccedilatildeo do camponecircs em Aristoacutefanes daacute uma indicaccedilatildeo dos eventos

tanto do cidadatildeo quanto da cidade e daacute ao leitor uma leitura histoacuterica diferente dos eventos

que Atenas sofreu durante a Guerra do Peloponeso

O (anti)heroacutei aristofacircnico como DiceoacutepolisJustinoacutepolis eacute tipificadamente matuto

que se angustia diante de alguma caracteriacutestica perturbadora da sociedade contemporacircnea por

exemplo o prolongamento da guerra os poliacuteticos corruptos que dominam a ecclesia a

loucura das demos atenienses Incapaz de convencer os outros de sua loucura o heroacutei sai por

conta proacutepria colocando em praacutetica algum tipo de esquema fantaacutestico que pretende acertar as

coisas

Diceoacutepolis reconhece as consequecircncias que prejudicaram a cidade e que tambeacutem

foram percebidas por Aristoacutefanes que com sua poesia sua repercussatildeo e sinceridade

colocou em cena o Cidadatildeo-espectador viacutetima direta da decadecircncia e que teraacute discernimento

sobre as decisotildees dos estrategistas e governadores com os atos de guerra

Segundo Fisher (1993 p33) o (anti)heroacutei de Acarnenses tem sua accedilatildeo construiacuteda

nos vaacuterios lugares apresentados na peccedila o que levou Aristoacutefanes a estabelecer relaccedilatildeo com as

vaacuterias personalidades assumidas por DiceoacutepolisJustinoacutepolis dentre as quais ele cita a de

espectador de festivais dramaacuteticos e a de lavrador

Revelado para o puacuteblico Justinoacutepolis que vive vaacuterios outros papeacuteis representa o

justo da cidade ou o cidadatildeo justo Direto e conhecedor dos truques que o levariam a

convencer a assembleia apresenta-se a Euriacutepides pela proacutepria voz dizendo seu nome e o

demos a que pertence Mermo assim Pois num vocirc mimbora vocirc eacute bater na porta Euriacutepides Euripidizin Me ouve se alguma vez tu ocircviu um home Justinoacutepolis de Colides te chama eu (ARISTOacuteFANES POMPEU 2014 p86)

Entretanto rapidamente o espectador toma conhecimento da intenccedilatildeo de

Justinoacutepolis que eacute se transformar em outra pessoa Para isso ele pede ao tragedioacutegrafo um mysteries of his own will He is one might say consistent with himself but since he creates himself as he goes the result cannot be foreknown even perhaps by himself Heroism is one might say inner-directed and though the directions may differ the principle holds appearances sometimes to the contrary no abstraction ever controls the hero in quest of wholeness And that is precisely what Aristophanes heroe sare (Traduccedilatildeo nossa)

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trapo (= κιον) usado por atores que interpretam mendigos em suas trageacutedias pois ele vai fazer

um discurso ldquoPois tenho que falaacute pro coro um leriado grande Ele traz a morte sacuteeufalaacute malrdquo

(vv 426-427) E para convencer Diceoacutepolis acredita que ldquoEacute que tenho que achaacute que socirc um

ismoleu hojerdquo (vv440)

Portanto o espectador percebe que Justinoacutepolis se transforma em Teacutelefo

incorporando a personalidade de Teacutelefo mesmo que essa incorporaccedilatildeo seja planejada e usada

como arma argumentativa Assim como Teacutelefo Justinoacutepolis eacute o homem do convencimento

mesmo que para convencer ele pareccedila deixar de ser ele mesmo

Em Acarnenses o enredo eacute costurado pelas artimanhas do (anti)heroacutei quando faz

uma paz privada com os espartanos para que ele possa desfrutar das becircnccedilatildeos da paz que foram

perdidas com o iniacutecio da guerra

14 Auto da Compadecida Uma estoacuteria de outras estoacuterias

Os instrumentos culturais mais relevantes no enredo satildeo as crenccedilas e a literatura

de cordel da realidade regional brasileira mais precisamente da realidade regional nordestina

A narrativa do Auto da Compadecida eacute fundamentada em romances e narraccedilotildees populares

Composta de elementos que expotildeem a cultura popular do homem do Nordeste Ariano

Suassuna aborda assuntos universais atraveacutes de figuras populares que mostram integramente

a figura do povo nordestino um povo oprimido tanto por aspectos climaacuteticos quanto sociais

O autor faz ainda uso do humor e da criacutetica ao falar sobre a realidade do homem nordestino

O Auto da Compadecida (1955) de Ariano Suassuna eacute uma peccedila teatral em

forma de auto (gecircnero da literatura que trabalha com elementos cocircmicos e tem intenccedilatildeo

moralizadora) Eacute um drama nordestino apresentado em trecircs atos Esta antologia reuacutene trecircs

folhetos dos quais Ariano Suassuna tirou os motivos e peripeacutecias de seu Auto da

Compadecida Embora o autor paraibano tenha se utilizado de muitos temas populares em sua

peccedila estes poemas satildeo as fontes principais como nos assegura Tavares (2004 p191)

Disse um criacutetico

Como foi que o senhor teve aquela ideacuteia do gato que defeca dinheiro Ariano respondeu Eu achei num folheto de cordel O criacutetico E a histoacuteria da bexiga de sangue e da musiquinha que ressuscita a pessoa Ariano lsquoTirei de outro folhetorsquo O outro E o cachorro que morre e deixa dinheiro para fazer o enterro Ariano lsquoAquilo

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ali eacute do folheto tambeacutem rsquo O sujeito impacientou-se e disseAgora danou-se mesmo Entatildeo o que foi que o senhor escreveu E Ariano lsquoOacute xente Escrevi foi a peccedilarsquo

De acordo com Braulio Tavares (TAVARES 2004 p 104) ldquoAriano escolheu o

folheto como a ceacutelula-matildee de uma nova maneira de fazer arte de enxergar o Nordeste de

enxergar o mundo e de recriar suas formasrdquo A utilizaccedilatildeo desse tipo de reescrita a partir de

textos populares compreende uma escrita mais aproximada do povo do Romanceiro

Nordestino transmitido oralmente eou atraveacutes dos folhetos de cordel

A grande importacircncia do folheto no meu entender eacute que o folheto eacute o uacutenico espaccedilo em que o povo brasileiro se expressou sem influecircncias e sem deformaccedilotildees que lhe viessem de cima de fora Aqui ele se expressou como ele eacute Aqui natildeo imitou a Franccedila natildeo imitou a Inglaterra nem os Estados Unidos O povo brasileiro aqui se expressou como ele eacute Entatildeo essa eacute a grande liccedilatildeo do folheto em feira (SUASSUNA apud TAVARES 2007 p 26)

Segundo Vassalo (1993) a obra se divide em trecircs episoacutedios e os folhetos

utilizados na construccedilatildeo arquitetocircnica da obra estatildeo distribuiacutedos de forma arquitetocircnica

O primeiro ato se baseia em O enterro do cachorro fragmento do folheto O dinheiro de Leandro Gomes de Barros o segundo na Histoacuteria do cavalo que defecava dinheiro do mesmo artista o terceiro amalgama O castigo da soberba de Anselmo Vieira de Souza e A peleja da Alma de Silvino Pirauaacute Lima ambos retomados pelo entremez de Suassuna O castigo da soberba Proveacutem ainda do romanceiro a cantiga de Canaacuterio Pardo utilizada como invocaccedilatildeo de Joatildeo Grilo a Maria o nome Compadecida e a estrofe com que o Palhaccedilo encerra o espetaacuteculo pedindo dinheiro satildeo tomados ao folheto O castigo da soberba(VASSALO In CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA 2000 p 156)

Liacutegia Vassalo aproxima no ensaio citado o teatro de Suassuna ao o teatro

medieval cabe ressaltar que mais adiante nos ocuparemos no ATO V do teatro de Gil

Vicente quando vamos tratar do julgamento das almas no inferno alegoacuterico em diaacutelogo

alinhado entre o autor portuguecircs e Ariano Suassuna

Sobre o auto de Suassuna vale ressaltar que conteacutem elementos do cordel

brasileiro e estaacute inserido no gecircnero da comeacutedia aproximando-se dos traccedilos do barroco

catoacutelico brasileiro O autor faz uso de uma linguagem que privilegia o regionalismo atraveacutes da

caracterizaccedilatildeo das particularidades do falar do homem do sertatildeo Nordeste

A peccedila foi escrita em 1955 e encenada pela primeira vez em 1956 Anos mais

tarde foi adaptada para a televisatildeo e para o cinema em 1999 e 2000 respectivamente

Na peccedila Ariano Suassuna trata de maneira leve e com humor do drama vivido

pelo povo nordestino acuado pela seca atormentado pelo medo da fome e em constante luta

contra a miseacuteria Traccedila o perfil dos sertanejos nordestinos que estatildeo submetidos agrave opressatildeo e

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subjugados por famiacutelias de poderosos coroneacuteis donos de terra Nesse contexto o personagem

de Joatildeo Grilo representa o povo oprimido que tenta sobreviver no sertatildeo utilizando a uacutenica

arma do pobre a palavra - astuacutecia

Fica evidente o cunho de saacutetira moralizante da peccedila atraveacutes das caracteriacutesticas de

seus personagens Assim como em Acarnenses de Aristoacutefanes figuras como padeiro e a

mulher que satildeo avarentos que deixam passar necessidade o empregado enquanto cuidam

demasiadamente de um cachorro de estimaccedilatildeo o padre e o bispo gananciosos que utilizam

da autoridade religiosa enquanto legisladores da Igreja para enriquecerem satildeo levados ao

conhecimento do puacuteblico

De forma bem cocircmica e sem as convenccedilotildees que soacute a comeacutedia sabe quebrar todos

estes satildeo condenados ao purgatoacuterio e passam a depender da ajuda astuciosa do roceiro Joatildeo

Grilo poeta travestido e da Compadecida na defesa do coletivo Na obra O riso Henri

Bergson (1987 p 19-21) salienta que o cocircmico eacute um fenocircmeno exclusivamente humano e

que este se dirige agrave inteligecircncia agrave denuacutencia

A partir dessa observaccedilatildeo Suassuna coloca o leitorespectador em contato com

seu outro o anti-heroacutei duplamente qualificado a defesa de seus algozes o arremedo cocircmico

resultado de uma apariccedilatildeo para a qual o proacuteprio autor emprestou seu discurso social No Auto

da Compadecida a dupla Joatildeo Grilo e Chicoacute em certa medida satildeo uma uacutenica personagem

ou seja uma personagem dupla Joatildeo Grilo eacute a representaccedilatildeo do intelecto o mentor de todas

as artimanhas eacute o autor presente na ausecircncia discursiva que por vezes permeia o texto

somente pelos gestos

Enquanto Chicoacute o duplo de Joatildeo Grilo eacute a forccedila fiacutesica o corpo ao mesmo tempo

bobo e bufatildeo o cuacutemplice perfeito o outro de Joatildeo ambos comparados agrave dupla Bom de Laacutebia

e Tudo Azul (na traduccedilatildeo de Adriane Duarte 2000) de As Aves de Aristoacutefanes e por que natildeo

dizer do proacuteprio poeta que acontece sem iniacutecio meio ou fim porque tudo que eacute justo tambeacutem

eacute de interesse da cidade e do poeta e da Comeacutedia como disse Diceoacutepolis no seu discurso em

Acarnenses Por quecirc Natildeo sei como diria Chicoacute Soacute sei que foi assim 15 Joatildeo Grilo um heroacutei popular e picaresco

O romance picaresco que segundo o proacuteprio Ariano Suassuna sempre o

influenciara surgiu na Espanha e infestou toda a Europa abrange um conjunto de textos

narrativos publicados na maioria dos casos entre 1552 e 1646 Eacute um gecircnero que reuacutene obras

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que refletem uma visatildeo irocircnica e pessimista do homem e uma perspectiva ceacutetica em relaccedilatildeo agrave

sociedade espanhola de sua eacutepoca

Segundo Gonzaacutelez (1994) todas as obras desse periacuteodo constituem o reflexo da

tensatildeo provocada pelo confronto entre o indiviacuteduo e uma sociedade extremamente opressora

Portanto para tornar mais clara a origem da picaresca eacute mister considerar o contexto

histoacuterico-poliacutetico-social em virtude de uma das maiores novidades apresentadas pelo gecircnero

a forte vinculaccedilatildeo da ficccedilatildeo com a histoacuteria

O estudo das circunstacircncias que rodeavam os autores deste gecircnero conduz

naturalmente a uma reflexatildeo sobre a sociedade barroca espanhola e portuguesa com atenccedilatildeo

aos autores Calderoacuten de La Barca (1600-1681) e Gil Vicente (1465-1536) Gonzaacutelez (1994 p

21) apresenta uma sociedade na qual predominam as injusticcedilas Apenas uma minoria - uma

nobreza de sangue corrupto e um clero igualmente decadente - teria acesso ao poder e a bens

materiais Sob essas circunstacircncias o povo ignorante supersticioso e fruto de abusos vivia

na miseacuteria

O romance picaresco surge pois como uma saacutetira mordaz que atinge todo o

sistema poliacutetico econocircmico social e moral Constituiacuteram uma rica fonte de material

romanesco situaccedilotildees iacutempares tais como a expulsatildeo dos mouros de Castela e de Leatildeo e a

questatildeo dos cristatildeos-novos considerados estrangeiros no seu proacuteprio paiacutes Os ataques contra

os viacutecios que infestavam a corte espanhola tecircm tambeacutem como alvo ldquoa honrardquo externa e social

ditada pelo poder do dinheiro Ironicamente o piacutecaro eacute o protoacutetipo do homem sem honra

enfim o entretenimento perfeito para os meandros das classes privilegiadas

A apariccedilatildeo da contestadora imagem do piacutecaro em princiacutepio reverte a imagem do

heroacutei das novelas de cavalaria - tem-se uma inversatildeo do modelo heroacuteico que passa a ser anti-

heroacuteico Gonzaacutelez (1994 p 56) assinala que o piacutecaro

Saindo de estratos baixos revela um aspecto pungente o da luta pela vida Solto no mundo tem de resolver por si mesmo os problemas o que o leva a tornar-se frequentemente ladratildeo Estando sempre exposto ao pior escapa das situaccedilotildees difiacuteceis por seu engenho e astuacutecia

Configura-se assim na novela picaresca um traccedilo permanente em Acarnenses e

no Auto da Compadecida a subversatildeo do (anti)heroacutei idealizado Entretanto cabe-nos aqui

salientar que haacute uma diferenccedila uma vez que na picaresca o piacutencaro natildeo tem qualquer projeto

social ao contraacuterio de Justinoacutepolis e Joatildeo Grilo

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151 O (anti)heroacutei Suassuniano

Joatildeo Grilo nasceu da cultura popular atraveacutes do produto oral e segundo o proacuteprio

Ariano Suassuna foi produto de vaacuterios produtos do que viu ouviu e leu nos folhetos de

cordel Nas palavras de Abreu (1999) a literatura de folhetos nordestinos eacute uma das

expressotildees mais brasileiras usual na regiatildeo Nordeste e em regiotildees que acomodam os

migrantes de origem nordestina

Com as grandes navegaccedilotildees atracaram no Brasil trovadores e artistas populares

que expuseram em seus pertences culturais as origens dessa literatura Eacute uma literatura aacutegil

que alcanccedila as mais diversas temaacuteticas com objetivos variados com ampla divulgaccedilatildeo e

anuecircncia social tanto em meios populares quanto nas academias

O folheto eacute um canal popular de cooperaccedilatildeo na vida do paiacutes que concede a naccedilatildeo

discutir a realidade expressar suas exigecircncias e anseios Conforme Zumthor (2000) embora

sejam impressos os folhetos designam-se por sua tradiccedilatildeo oral seus vestiacutegios de oralidade e

pela razatildeo de serem produzidos para serem proferidos lidos ou declamados cantados em voz

alta para um enorme nuacutemero de indiviacuteduos mesmo o iletrado os ignorantes aspectos comuns

agraves culturas que priorizam a oralidade

Foi num folheto de gracejo que Ariano Suassuna encontrou o personagem-

siacutembolo de sua dramaturgia As Proezas de Joatildeo Grilo (ver trecho abaixo) histoacuteria escrita em

1932 por Joatildeo Ferreira de Lima trazia como protagonista o ceacutelebre amarelinho oriundo dos

contos populares portugueses que no processo de aculturaccedilatildeo ganhou caracteriacutesticas

idecircnticas agraves de outro famoso espertalhatildeo de origem ibeacuterica Pedro Malazarte como se pode

perceber no cordel de Joatildeo Martins de Athayde (1951)

As Proezas de Joatildeo Grilo

Joatildeo Grilo foi um cristatildeo que nasceu antes do dia criou-se sem formosura mas tinha sabedoria e morreu depois da hora pelas artes que fazia

E nasceu de sete meses chorou no bucho da matildee quando ela pegou um gato ele gritou natildeo me arranhe natildeo jogue neste animal que talvez vocecirc natildeo ganhe Na noite que Joatildeo nasceu

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houve um eclipse na lua e detonou um vulcatildeo que ainda continua naquela noite correu um lobisome na rua Poreacutem Joatildeo Grilo criou-se pequeno magro e sambudo as pernas tortas e finas e boca grande e beiccediludo no siacutetio onde morava dava notiacutecia de tudo Joatildeo perdeu o seu pai com sete anos de idade morava perto de um rio Ia pescar toda tarde um dia fez uma cena que admirou a cidade (ATHAYDE 1951 p35)

Assim o heroacutei cordelesco forjado por Suassuna representado por Joatildeo Grilo eacute

tambeacutem um produto social e nesses termos eacute o piacutecaro descrito por Kothe (2000) como a

personagem com caracteriacutesticas daquilo que hoje se chama malandragem beira o traacutegico e se

assume como um eacutepico agraves avessas Como piacutecaro de Kothe Joatildeo Grilo no Auto da

Compadecida e Diceoacutepolis em Acarnenses satildeo de extraccedilatildeo social baixa e se comportam de

modo pouco elevado mas se elevam literariamente e contam ateacute mesmo com a complacecircncia

e a simpatia do leitor As duas personagens representam o modo pelo qual a classe baixa

consegue entrar no picadeiro da literatura

152 A tensatildeo tragicocircmica do (anti)heroacutei no Auto da Compadecida

Segundo Deserto (1995) a trageacutedia e a comeacutedia mantecircm entre si uma relaccedilatildeo de

alguma ambiguidade em que proximidade e afastamento parecem jogar em simultacircneo

importante papel Podemos evocar como representaccedilatildeo simboacutelica desta relaccedilatildeo a imagem

que o tempo veio a tornar quase emblema do proacuteprio teatro das duas maacutescaras a traacutegica e a

cocircmica denunciantes do sofrimento e do riso

O leitor atento percebe que a comeacutedia causada pelos quiprocoacutes 15e pelas confusotildees

no Auto da Compadecida natildeo representa a cura da trageacutedia vivenciada por Joatildeo Grilo nem a

15 Quid pro quo eacute uma expressatildeo latina que significa tomar uma coisa por outra Faz referecircncia no uso do portuguecircs e de todas as liacutenguas latinas a uma confusatildeo ou engano Tem origem medieval tendo sido usada na sua origem para se referir a um engano no uso de termos latinos num texto Tambeacutem pode significar isso por aquilo

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mera atenuaccedilatildeo futura de seus efeitos Joatildeo Grilo o heroacutei da peccedila eacute um misto de uma tensatildeo

que se identifica com o heroacutei cordelesco e desta forma natildeo estaacute atrelado somente aos

aspectos da proeza e da glorificaccedilatildeo uma vez que estaacute associado agrave ideia da fraqueza na

constituiccedilatildeo dos valores humano

Assim Joatildeo Grilo natildeo estaacute contemplado pela trajetoacuteria do heroacutei prodigioso e

honrado pois se orienta pela bandeira da transgressatildeo Joatildeo Grilo eacute a expressatildeo desesperada

do homem que luta contra todas as adversidades mas natildeo consegue evitar a desgraccedila que

vive numa sociedade abalizada pela constante oposiccedilatildeo de duas forccedilas o bem e o mau A

convergecircncia e accedilatildeo dessas forccedilas satildeo responsaacuteveis pela falecircncia do heroacutei fazendo com que

ele mergulhe no territoacuterio escorregadio dos valores

Aristoacuteteles em sua Arte Poeacutetica (2005) conceitua a trageacutedia como a imitaccedilatildeo de

pessoas superiores em accedilatildeo a comeacutedia como a imitaccedilatildeo de pessoas inferiores em accedilatildeo e o

drama como a representaccedilatildeo das pessoas em accedilatildeo Por pessoas superiores entendemos os

heroacuteis que estatildeo entre o humano e o divino possuindo algo de sobrenatural

Ariano Suassuna em sua Iniciaccedilatildeo agrave esteacutetica (2007c) reflete sobre os conceitos

de trageacutedia comeacutedia e drama pensados por Aristoacuteteles ressaltando que outras categorias

fazem parte da trageacutedia como o Belo e ateacute mesmo o Cocircmico Na leitura que faz da Poeacutetica o

escritor percebe o heroacutei como algueacutem dotado de uma alma grande mas natildeo pura Tal ldquoalma

granderdquo eacute percebida mais pelas accedilotildees do que pelas palavras em consonacircncia com o

pensamento aristoteacutelico e no caso de Joatildeo Grilo essa impureza reside em sua proacutepria

personalidade desenhada pela presenccedila de falhas cocircmicas tais como a ambiccedilatildeo a trapaccedila a

alcovitagem a avareza a inveja a vinganccedila e a usura

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SEGUNDO ATO

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2 HUMOR E O RISO ELEMENTOS INDISPENSAacuteVEIS Agrave CENA COcircMICA

ldquoEacute melhor escrever sobre risos do que sobre laacutegrimas pois o riso eacute o apanaacutegio do homemrdquo (Franccedilois Rabelais)

Para muitos antropoacutelogos o riso foi um fator coadjuvante agrave adaptaccedilatildeo da espeacutecie

sendo um ato instintivo e portador de equiliacutebrio frente a situaccedilotildees extremas de abatimento e

que dele depende a sobrevivecircncia da espeacutecie Vladimir Propp (1992) apresenta seis tipos de

riso e alerta para a existecircncia de outros Embora se debruccedilando basicamente sobre o que

chama de riso de zombaria por compreender que ldquoeacute o mais frequenterdquo sendo o ldquotipo

principal de riso humanordquo o teoacuterico atenta para o riso bom o riso maldoso ou ciacutenico o riso

alegre o riso ritual e o riso imoderado Antes de prosseguir nos cabe ressaltar que natildeo nos

ocuparemos das definiccedilotildees de Propp mas do riso como elemento indispensaacutevel agrave cena cocircmica

e de seus reflexos na Comeacutedia e no Auto

Rir eacute o melhor remeacutedio Por essa afirmativa percebemos o poder do riso na vida

da Humanidade Entretanto o humor e o riso satildeo fenocircmenos que ainda natildeo foram elucidados

completamente mas as coisas engraccediladas podem nos dizer muito do que eacute humano visto que

o homem eacute o uacutenico animal que ri

O cocircmico estaacute presente em situaccedilotildees reais de nossas vidasuma vez que todos noacutes

rimos sempre para qualquer situaccedilatildeo que nos leva quase incompreensiacuteveis para o riso

despertando nosso humor Haacute de se considerar que o riso eacute uma parte fundamental dos efeitos

produzidos pelo humor no ser humano e suas muacuteltiplas formas de expressatildeo vatildeo dizer

respeito ao grau de afetaccedilatildeo ou natildeo que tenha causado tal situaccedilatildeo real ou artiacutestica que

apresenta momentos cocircmicos

Em Histoacuteria do riso e do escaacuternio Minois (2003) esquematiza a histoacuteria do riso em

trecircs momentos o divino o diaboacutelico e o humano Os gregos antigos definiriam o riso a

partir de suas noccedilotildees de divindade

Rir eacute participar da recriaccedilatildeo do mundo nas festas dionisiacuteacas nas saturnais acompanhadas de ritos de inversatildeo simulando um retorno perioacutedico ao caos primitivo necessaacuterio agrave confirmaccedilatildeo e agrave estabilidade das normas sociais poliacuteticas e culturais Nas relaccedilotildees sociais o riso eacute vivido como elemento de coesatildeo e de forccedila diante do inimigo como o mostram os risos homeacutericos ou espartanos ele eacute tambeacutem um freio ao despotismo com as bufonarias rituais dos desfiles triunfais em Roma ou as saacutetiras poliacuteticas em Aristoacutefanes eacute por fim um instrumento de conhecimento que desmascara o erro e a mentira como no caso da ironia socraacutetica das zombarias dos ciacutenicos da derrisatildeo dos viacutecios em Plauto ou Terecircncio (MINOIS 2003 p 630)

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Sobre o riso como capacidade para criar o mundo a nossa volta Aristoacuteteles nos

transmite que somente uma democracia poderia tolerar a franqueza das velhas comeacutedias na

democracia o riso se caracteriza por sua forccedila criacutetica e sua accedilatildeo democratizadora Consoante

ao pensamento de Minois o riso busca se livrar do mundo cheio de injusticcedila e substituiacute-lo por

um mundo melhor Cria uma nova realidade que desloca a outra que natildeo pode mais ser

mantida porque perdeu seu significado O riso eacute entatildeo uma libertaccedilatildeo

Apesar de ter sido relegado na Antiguidade o riso continua a desempenhar um

papel de grande importacircncia na vida social O verdadeiro riso ambivalente e universal natildeo

exclui o seacuterio mas o purifica e o completa Purifica-o do dogmatismo da unilateralidade da

esclerose do fanatismo e do espiacuterito categoacuterico do medo e da intimidaccedilatildeo do didatismo do

engenho e das ilusotildees da fixaccedilatildeo sinistra em um uacutenico niacutevel e da exaustatildeo

21 O riso seacuterio-cocircmico em Aristoacutefanes e Suassuna

212 Riso e Comeacutedia

A Comeacutedia e o Auto satildeo gecircneros cujo sucesso eacute medido pela qualidade do humor

promovido pelas personagens em confronto com suas vivecircncias Humor eacute indispensaacutevel para

a arte cocircmica principalmente porque eacute altamente eficaz para convencer em grande parte pois

atrai a atenccedilatildeo e permite a possibilidade de persuasatildeo da plateia

O riso eacute uma reaccedilatildeo puramente fisioloacutegica que pode ser desencadeada por gatilhos

fiacutesicos e natildeo fiacutesicos e eacute observada em humanos desde a infacircncia Em termos de efeitos

somaacuteticos tem sido sugerido que o riso proporciona aliacutevio do estresse e reduz o desconforto e

ou dor liberando endorfinas produtoras de euforia encefalinas dopamina e adrenalina

todos contribuem para a sauacutede mental e fiacutesica geral Como resultado de suas propriedades

terapecircuticas o riso tem sido usado no contra-condicionamento das reaccedilotildees da raiva bem

como na dessensibilizaccedilatildeo sistemaacutetica ao medo

De acordo com Bakhtin (1999) o elo entre o seacuterio e o cocircmico jaacute existia desde os

primoacuterdios da humanidade na vida social Atraveacutes de investigaccedilotildees do folclore de povos

primitivos observou que os rituais seacuterios coadunavam com os rituais que parodiavam os

mitos os acontecimentos e os heroacuteis que as comunidades cultuavam

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A praacutetica do elogio e do escarnecimento fazia parte das cerimocircnias oficiais das

comunidades antigas Entretanto o seacuterio e o cocircmico passaram a ser dicotomizados com o

surgimento do regime de classes e de Estado Com a divisatildeo de classes iniciou-se um

processo que demarca a diferenccedila de direitos entre os indiviacuteduos na sociedade

Determinadas formas cocircmicas deixam de ser autorizadas soacute podendo ser

executadas em determinadas situaccedilotildees A partir daiacute se consubstanciou uma cultura oficial

delimitando as condiccedilotildees de realizaccedilatildeo do riso O espaccedilo da subversatildeo da gargalhada da

chacota tende a restringir-se aos momentos festivos A divisatildeo do riso e do seacuterio da cultura

popular e da cultura erudita comeccedilou a se intensificar fazendo com que a comicidade fosse

vista como uma expressatildeo menor inclusive no campo da cultura letrada

Segundo Huizinga no livro Homo Ludens (1938) o riso encontra nas situaccedilotildees

diaacuterias o seu proacuteprio espaccedilo as suas proacuteprias regras e o seu proacuteprio tempo e deve ser estudado

como fenocircmeno cultural uma vez que ele estaacute ligado agrave produccedilatildeo de situaccedilotildees que satildeo

proacuteprias do riso O autor nos convida a uma reflexatildeo sobre o poder que reside exatamente no

ato do riso De certo modo o riso segundo Huizinga pode ser visto como um tipo moderado

de ldquoloucurardquo tendo em vista que se realiza por meio de fatos cocircmicos que tambeacutem podem ser

entendidos como uma espeacutecie de ldquoloucurardquo porque neles corta-se o nexo do comum do tempo

do cotidiano

O elemento luacutedico tende a provocar o riso que por sua vez eacute um elemento da vida cotidiana estaacute sempre presente nas relaccedilotildees sociais seja para exprimir uma simpatia para desdramatizar uma situaccedilatildeo ou para exprimir a felicidade O risiacutevel eacute proacuteximo ao cocircmico ao jogo agraves brincadeiras agraves piadas ao luacutedico etc O cocircmico pode ser estudado com as formas as atitudes os gestos e os movimentos do corpo humano tambeacutem pode ser estudado pelo cocircmico de caraacuteter ou atraveacutes da fala do cocircmico de situaccedilotildees de palavras (HUIZINGA 1938 p54)

Para Pirandello o riso pode ser uma accedilatildeo subversiva e o proacuteprio autor assegura

que haacute ambivalecircncias na conceituaccedilatildeo do riso e do fenocircmeno cocircmico na tradiccedilatildeo ocidental

pois O riso pode ser compreendido como experiecircncia do natildeo-seacuterio a inversatildeo cocircmica pode revelar uma gravidade antes oculta certos contrastes inexprimiacuteveis pelo discurso mais cordato uma seriedade que o proacuteprio discurso seacuterio camufla O caraacuteter subversivo e anaacuterquico do riso Em diversos momentos o riso implica numa adesatildeo agrave ordem social estabelecida O riso eacute plural e encontra funccedilatildeo como corretivo social natildeo se restringindo a uma funccedilatildeo normativa tatildeo precisa visto que ele pode acometer um indiviacuteduo isoladamente pode prescindir da sociedade O riso guarda consigo o paradoxo da proacutepria accedilatildeo humana (PIRANDELLO 1957 p294)

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Para Bergson (1987) o riso aleacutem de ser um fenocircmeno social eacute um fenocircmeno

psiacutequico O sujeito ri de situaccedilotildees constrangedoras com as quais natildeo se envolve afetivamente

O cocircmico eacute provocado pela observaccedilatildeo das falhas humanas em uma perspectiva corretiva

diante dos olhos do observador Assim o cocircmico estaacute ligado agrave capacidade de explicitar e

identificar o ridiacuteculo humano manifestado no exagero caricaturado na representaccedilatildeo da

transgressatildeo social na encenaccedilatildeo de gestos automaacuteticos e na exploraccedilatildeo de clichecircs

desgastados

De acordo com Propp (1992) os caracteres cocircmicos natildeo existem por si soacute eles

tecircm relaccedilatildeo com as atividades do homem no mundo social Assumindo a mesma perspectiva

Bergson (1987) afirma que o riso eacute sempre grupal sendo determinado por um conjunto de

atitudes discriminadas e colocadas como engraccediladas perante uma comunidade

A identificaccedilatildeo daquilo que eacute engraccedilado ou humoriacutestico aponta para o

reconhecimento de gestos sociais que rompem com conduta ideal Esse desvio expresso no

comportamento fiacutesico ou moral dos seres sociais compotildee a trama das narrativas que satildeo

contadas com irreverecircncia e bom humor

213 Os elementos do risiacutevel no heroacutei suassuniano

Tenho duas armas para lutar contra o desespero a tristeza e ateacute a morte o riso a cavalo e o galope do sonho Eacute com isso que enfrento essa dura e fascinante tarefa de viver (ARIANO SUASSUNA)

Como jaacute visto estudos comprovam que o conceito claacutessico de heroacutei se origina na

Literatura Grega O termo designa um indiviacuteduo notabilizado por feitos extraordinaacuterios No

entanto com o passar do tempo essas figuras quase divinas jaacute natildeo correspondiam

adequadamente agrave vontade coletiva O heroacutei claacutessico foi sendo substituiacutedo pelo ldquoheroacutei

problemaacuteticordquo personagem cuja existecircncia e valores situam-no perante questotildees sobre as

quais natildeo eacute capaz de expressar consciecircncia clara e rigorosa

A construccedilatildeo desse novo enfoque da imagem do heroacutei eacute uma ideia atribuiacuteda aos

tempos modernos e a sua representatividade evidencia-se sobretudo no gecircnero romance

Contudo como mensageiro de uma criacutetica mordaz e bem-humorada da maacute sorte enfrentada

pelo nordestino em sua difiacutecil missatildeo pela sobrevivecircncia Ariano Suassuna na obra Auto da

Compadecida nos apresenta um heroacutei que ao inveacutes do nobre heroacutei claacutessico repleto de viacutecios

e defeitos

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Joatildeo Grilo eacute uma personagem que povoa o imaginaacuterio folcloacuterico brasileiro

sobretudo na regiatildeo Nordeste assumindo todas as caracteriacutesticas de um anti-heroacutei pois eacute

pequeno fraco franzino amarelo e desnutrido ou seja natildeo possui os atributos esteacuteticos e o

porte de um verdadeiro heroacutei cavalheiresco e romacircntico Joatildeo Joatildeo Joatildeo Morreu Ai meu Deus morreu o pobre de Joatildeo Grilo Tatildeo amarelo tatildeo safado e morrer assim Que eacute que eu faccedilo no mundo sem Joatildeo Joatildeo Joatildeo Natildeo tem mais jeito Joatildeo morreu Acabou-se o Grilo mais inteligente do mundo (SUASSUNA 2005 p 63)

Mas Joatildeo Grilo eacute infinitamente astuto e sua esperteza eacute tamanha que suplanta o

seu porte miuacutedo convertendo sua fragilidade em forccedila Com suas artimanhas ele se agiganta

Graccedilas as suas traquinagens enfrenta e afronta todas as instituiccedilotildees que se pretendem

poderosas e ditam as normas preceitos usos e costumes sociais de seu tempo e de seu

ambiente

Essa figura paradoxal assumida por Joatildeo Grilo o coloca como um anti-heroacutei que

faz do medo a sua arma da astuacutecia o seu escudo que vivendo num mundo hostil perseguido

escorraccedilado agraves voltas com a adversidade acaba sempre driblando o infortuacutenio com uma dose

exagerada de humor que aliaacutes eacute marca do enfrentamento do povo nordestino com as

adversidades sociais

Em Suassuna o termo humor estaacute relacionado agrave disposiccedilatildeo que o indiviacuteduo tem

para rir ou fazer sorrir Propp (1992) considera a priori que o riso eacute uma caracteriacutestica

pertinente do homem e somente a ele eacute dada a capacidade de rir o sorriso para o autor estaacute

ligado a outra esfera da razatildeo humana natildeo vinculada ao escaacuternio ou a derrisatildeo mas

compreende uma disposiccedilatildeo benevolente para com o interlocutor

Ainda nesse esteio para Aristoacuteteles a comicidade com efeito eacute um defeito e uma

feiuacutera sem dor nem destruiccedilatildeo Assim podemos pensar no Auto da Compadecida o riso

como decorrecircncia de uma penalidade um desajuste da conduta de Joatildeo Grilo que nos

surpreende nos atos com um comportamento inesperado

Para Bergson (1987) o riso natildeo eacute apenas uma reprimenda social mas vem de um

desajuste entre a natureza primeira do homem (que eacute mutaacutevel) e uma espeacutecie de rigidez e

mecanizaccedilatildeo Essa rigidez se manifestaria tanto no niacutevel fiacutesico como no caraacuteter ou seja no

acircmbito moral e psicoloacutegico caracteriacutesticas exploradas no personagem Joatildeo Grilo O risiacutevel e

o cocircmico seriam uma forma de desfazer a rigidez evidenciaacute-la corrigi-la

Para Suassuna (2008) o riso eacute como uma espeacutecie de puniccedilatildeo que a sociedade

confere a algo que a ameaccedila diz em seu livro Iniciaccedilatildeo agrave Esteacutetica Desta forma o risiacutevel estaacute

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na inadequaccedilatildeo do comportamento humano fiacutesicopsicoloacutegico uma vez que excede agrave

normalidade sem causas traacutegicas Suassuna no Auto da Compadecida nos deixa claro que ali

o cocircmico surge como um alerta sobre algo que natildeo estaacute funcionando bem nas sociedades

sendo tambeacutem um instrumento revelador dos problemas da sociedade como um todo

No contexto de tensatildeo do Auto eacute que encontramos Joatildeo Grilo um anti-heroacutei

oprimido e no plano da eacutetica eacute um legiacutetimo malandro que usa desse artifiacutecio como uma

forma autecircntica de sobrevivecircncia e de luta frente agraves adversidades sobretudo agravequelas impostas

pelos que detecircm o poder

A malandragem portanto no seu entender natildeo constitui um problema ou pecado

grave pois natildeo eacute utilizada para engrandecimento proacuteprio ou para ascensatildeo econocircmica mas

sim para a promoccedilatildeo da justiccedila social Sobre isto lecircem-se os seguintes versos do cordelista

Paulo Nunes Batista Grilo pra tudo no mundo Tinha uma definiccedilatildeo A sua filosofia Sempre lhe dava razatildeo Pois seguia este ditado Que diz ndash ldquoEstaacute perdoado Ladratildeo que rouba ladratildeordquo Vivendo embora do crime Joatildeo Grilo era caridoso Auxiliava a pobreza Soacute furtava o poderoso Roubava sempre dos nobres Matava a fome dos pobres Mostrando ser generoso (BATISTA 1958 p 28)

Ariano Suassuna como ningueacutem mergulhou na foacutermula do riso que sempre

esteve presente na Antiguidade e ligado aos deuses tendo um significado divino Presente nas

festas esse riso natildeo possuiacutea o sentido de diversatildeo como se conhece hoje ldquoAntes ele

correspondia aos preparativos de sacrifiacutecios e tinha uma relaccedilatildeo congruente com a morte O

riso e a morte fazem boa misturardquo (MINOIS 2003 p 29)

No campo do riso a comeacutedia gregandash da qual nos ocuparemos posteriormente ndash

surge como uma arte secundaacuteria cuja funccedilatildeo era descontrair os espectadores afinal era

apresentada nos intervalos das grandes peccedilas Procurava mostrar o homem rebaixado lidando

com figuras inferiores tanto no sentido moral quanto no acircmbito social Tendo como desiacutegnio

exagerar os defeitos humanos a comeacutedia explorava o ridiacuteculo

Nesse campo ao apresentar o Auto da Compadecida por meio dos contadores de

histoacuteria Chicoacute Joatildeo Grilo e do palhaccedilo o proacuteprio Suassuna admite a influecircncia da Comeacutedia

Antiga do Repente do Cordel dentre outros

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Eacute verdade que devo muito ao teatro grego (e a Homero e a Aristoacuteteles) ao latino ao italiano renascentista ao elisabetano ao francecircs barroco e sobretudo ao ibeacuterico Eacute verdade que devo ainda mais aos ensaiacutestas brasileiros que pesquisaram e publicaram as obras assim como salientaram a importacircncia do Romanceiro Popular do Nordeste principalmente a Joseacute de Alencar Siacutelvio Romero Leonardo Mota Rodrigues de Carvalho Euclides da Cunha Gustavo Barroso e mais modernamente Luiacutes Cacircmara Cascudo e Teacuteo Brandatildeo Mas a influecircncia decisiva mesmo em mim eacute a do proacuteprio Romanceiro Popular Nordestino com o qual tive estreito contato desde a minha infacircncia de menino criado no sertatildeo do Cariri da Paraiacuteba (SUASSUNA 2007 p 30)

O riso no Auto da Compadecida encontra suporte na carnavalizaccedilatildeo ideia

concebida por Mikhail Bakhtin (1993 p 7) que consiste na ldquosegunda vida do povo baseada

no princiacutepio do risordquo princiacutepio este que abole as relaccedilotildees hieraacuterquicas quando desloca os

sujeitos e subverte a ordem social estabelecida De acordo com Bakhtin O riso e a visatildeo de carnavalesca do mundo que estatildeo na base do grotesco destroem a seriedade unilateral e as pretensotildees de significaccedilatildeo incondicional e intemporal e liberam a consciecircncia o pensamento e a imaginaccedilatildeo humana que ficam assim disponiacuteveis pra o desenvolvimento de novas possibilidades Daiacute que uma certa carnavalizaccedilatildeo da consciecircncia precede e prepara sempre as grandes transformaccedilotildees mesmo no domiacutenio cientiacutefico (MIKHAIL BAKHTIN1993 p43)

No Primeiro Ato do Auto da Compadecida haacute o cruzamento da histoacuteria narrada

por Suassuna com a Literatura de Cordel precisamente com o Testamento do cachorro

publicado no folheto intitulado ldquoDinheirordquo escrito por Leandro Gomes de Barros (1909) fato

que desperta na plateia o riso frouxo natildeo simplesmente pelos causos propostos por Chicoacute e

Joatildeo Grilo mas pelo niacutevel de linguagem explorado e pelas artimanhas da dupla para

conseguir o intento de benzer a cachorra antes de enterraacute-la JOAtildeO GRILO Padre Joatildeo Padre Joatildeo PADRE aparecendo na igreja Que haacute Que gritaria eacute essa CHICOacute Mandaram avisar para o senhor natildeo sair porque vem uma pessoa aqui trazer um cachorro que estaacute se ultimando para o senhor benzer PADRE Para eu benzer CHICOacute Sim PADRE com desprezo Um cachorro CHICOacute Sim PADRE Que maluquice Que besteira JOAtildeO GRILO Cansei de dizer a ele que o senhor benzia Benze porque benze vim com ele PADRE Natildeo benzo de jeito nenhum

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CHICOacute Mas padre natildeo vejo nada de mal em se benzer o bicho JOAtildeO GRILO No dia em que chegou o motor novo do major Antocircnio Morais o senhor natildeo o benzeu PADRE Motor eacute diferente eacute uma coisa que todo mundo benze Cachorro eacute que eu nunca ouvi falar CHICOacute Eu acho cachorro uma coisa muito melhor do que motor PADRE Eacute mas quem vai ficar engraccedilado sou eu benzendo o cachorro Benzer motor eacute faacutecil todo mundo faz isso mas benzer cachorro (SUASSUNA 2005 p 21-23)

Tanto na visatildeo Suassuniana quanta na bakhtiniana a visatildeo carnavalesca de mundo

produz formas de linguagem que acabam com qualquer registro formal vocabular ou

dificuldade de aproximaccedilatildeo entre sujeitos enunciadores Dessa forma foi produzida uma

linguagem carnavalesca de muitos recursos tiacutepica da qual encontramos exemplos em vaacuterias

cenas do Auto da Compadecida como no enterro da cachorra um dos folhetos utilizados na

composiccedilatildeo da obra no Primeiro Ato quando o Palhaccedilo adverte ao puacuteblico sobre a histoacuteria

que se desenvolveria com a discussatildeo entre Joatildeo Grilo e Chicoacute para ver se o padre benzeria ou

natildeo o cachorro da mulher do padeiro

Por essa apropriaccedilatildeo da literatura popular percebemos que haacute um cruzamento da

histoacuteria de Suassuna com o cordel escrito por Leandro Gomes de Barros (1865 ndash 1918) ndash O

Testamento do cachorro publicado no folheto intitulado ldquoDinheirordquo que recebeu de Ariano o

seguinte comentaacuterio Quando publiquei o Auto da Compadecida Raimundo Magalhatildees Juacutenior em erudito e arguto artigo chamou atenccedilatildeo para o fato de que essa histoacuteria que eu julgava anocircnima e puramente nordestina jaacute fora usada numa versatildeo parecida por Le Sage no Gil Blaacutes de Santillana Punha ele em duacutevida a autoria popular da nossa versatildeo coisa em que se enganava como se vecirc porque como agora se sabe ela eacute de Leandro Gomes de Barros [] Por outro lado depois o Auto da Compadecida foi traduzido e encenado na Europa os professores Jean Girodon e Enrique Martiacutenez Loacutepez ndash um francecircs o outro espanhol ndash mostraram que a histoacuteria eacute muito mais antiga do que Le Sage vem do norte da Aacutefrica tendo passado agrave Peniacutensula Ibeacuterica com os aacuterabes e sendo muito comum nos fabulaacuterios e novelas picarescas ibeacutericasassim como na Franccedila por Ruteboeuf (SUASSUNA apud SANTIAGO 2007 p260)

Foi no cordel ldquoO Dinheiro ou O Testamento do Cachorrordquo escrito por Leandro

Gomes de Barros (1865 ndash 1918) com a narraccedilatildeo da histoacuteria do cachorro e de seu testamento

que Ariano Suassuna encontrou ideia e material como o proacuteprio afirmava para tambeacutem

escrever suas histoacuterias no Auto da Compadecida

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Eu vi narrar um fato Que fiquei admirado Um sertanejo me disse Que nesse seacuteculo passado Viu enterrar um cachorro Com honras de um potentado Um inglecircs tinha um cachorro De uma grande estimaccedilatildeo Morreu o dito cachorro E o inglecircs disse entatildeo Mim enterra esse cachorro Inda que gaste um milhatildeo Foi ao vigaacuterio e lhe disse Morreu cachorra de mim E urubu no Brasil Natildeo poderaacute dar-lhe fim - Cachorro deixou dinheiro Perguntou o vigaacuterio assim - Mim quer enterrar cachorro Disse o vigaacuterio Oh Inglecircs Vocecirc pensa que isto aqui Eacute o paiacutes de vocecircs Disse o inglecircs Oh Cachorro Gasta tudo esta vez Ele antes de morrer Um testamento aprontou Soacute quatro contos de reacuteis Para o vigaacuterio deixou Antes do inglecircs findar O vigaacuterio suspirou - Coitado Disse o vigaacuterio De que morreu esse pobre Que animal inteligente Que sentimento tatildeo nobre Antes de partir do mundo Fez-me presente do cobre Leve-o para o cemiteacuterio Que vou o encomendar Isto eacute traga o dinheiro Antes dele se enterrar Estes sufraacutegios fiados Eacute factiacutevel natildeo salvar E laacute chegou o cachorro O dinheiro foi na frente Teve momento o enterro Missa de corpo presente Ladainha e seu rancho Melhor do que certa gente

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Mandaram dar parte ao bispo Que o vigaacuterio tinha feito O enterro do cachorro Que natildeo era de direito O bispo aiacute falou muito Mostrou-se mal satisfeito Mandou chamar o vigaacuterio Pronto o vigaacuterio chegou As ordens sua excelecircncia O bispo lhe perguntou Entatildeo que cachorro foi Que seu vigaacuterio enterrou Foi um cachorro importante Animal de inteligecircncia Ele antes de morrer Deixou agrave vossa excelecircncia Dois contos de reacuteis em ouro Se errei tenha paciecircncia Natildeo foi erro sr Vigaacuterio Vocecirc eacute um bom pastor Desculpe eu incomodaacute-lo A culpa eacute do portador Um cachorro como este Jaacute vecirc que eacute merecedor (BARROS 2005 p 5)

Como fonte da recriaccedilatildeo tambeacutem operada na cena do Auto da Compadecida o

testamento do cachorro foi estudado como recurso para o riso visto que pelo uso do Latim

comum nas pregaccedilotildees dos padres por ocasiatildeo da despedida das almas e que equipara o

ldquobichinhordquo a um ser humano o poeta brinca com o puacuteblico e faz uma criacutetica agrave ganacircncia dos

legisladores episcopais JOAtildeO GRILO Estou dizendo que se eacute desse jeito vai ser difiacutecil cumprir o testamento do cachorro na parte do dinheiro que ele deixou para o padre e para o sacristatildeo SACRISTAtildeO Que eacute isso Cachorro com testamento JOAtildeO GRILO Esse era um cachorro inteligente Antes de morrer olhava para a torre da igreja toda vez que o sino batia Nesses uacuteltimos tempos jaacute doente pra morrer botava uns olhos bem compridos prrsquoos lados daqui latindo na maior tristeza Ateacute que meu patratildeo entendeu com a minha patroa eacute claro que ele queria ser abenccediloado pelo padre e morrer como cristatildeo Mas nem assim ele sossegou Foi preciso que o patratildeo prometesse que vinha encomendar a becircnccedilatildeo e que no caso dele morrer teria um enterro em latim Que em

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troca do enterro acrescentaria no testamento dele dez contos de reacuteis para o padre e trecircs para o sacristatildeo SACRISTAtildeO Que animal inteligente Que sentimento nobre E o testamento Onde estaacute [] SACRISTAtildeO Mas eu natildeo disse que fica tudo por minha conta PADRE Por sua conta como se o vigaacuterio sou eu SACRISTAtildeO O vigaacuterio eacute o senhor mas quem sabe quanto vale o testamento sou eu PADRE Hein O testamento SACRISTAtildeO Sim o testamento PADRE Mas que testamento eacute esse SACRISTAtildeO O testamento do cachorro PADRE E ele deixou testamento PADEIRO Soacute para o vigaacuterio deixou dez contos PADRE Que cachorro inteligente Que sentimento notaacutevel JOAtildeO GRILO E um cachorro desse ser comido pelos urubus Eacute a maior das injusticcedilas PADRE Comido ele De jeito nenhum Um cachorro desse natildeo pode ser comido pelos urubus PADRE Mas que jeito pode-se dar nisso Estou com tanto medo do bispo E tenho medo de cometer um sacrileacutegio SACRISTAtildeO Que eacute isso Natildeo se trata de nenhum sacrileacutegio Vamos enterrar uma pessoa altamente estimaacutevel nobre e generosa satisfazendo ao mesmo tempo duas outras pessoas altamente estimaacuteveis nobres e sobretudo generosas Natildeo vejo mal nenhum nisso [] SACRISTAtildeO Se eacute assim vamos ao enterro Como se chamava o cachorro MULHER Xareacuteu SACRISTAcircO Xareacuteu Absolve Domine animas omnium fidelium defunctorum abomni vinculi delictorum TODOS Ameacutem (SUASSUNA 2005 p 48 - 55)

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Diante dessa quebra estabelecida por Ariano Suassuna ao propor no Auto da

Compadecida o enterro do cachorro da mulher do padeiro em mais uma das malandragens de

Joatildeo Grilo cabe aqui uma referecircncia e um entrecruzamento de cenas pois na peccedila As Vespas

de Aristoacutefanes que foi apresentada pela primeira vez em 422 aC no contexto da Guerra do

Peloponeso haacute uma humanizaccedilatildeo de dois catildees que satildeo acusados de roubar comida e por isso

seratildeo julgados

Na peccedila as atitudes de Diceoacutepolis devem ser entendidas como a reaccedilatildeo de um

Aristoacutefanes que procura satirizar o mau funcionamento das instituiccedilotildees democraacuteticas

centrando-se sobretudo nos tribunais A criacutetica seraacute trabalhada a partir de Filocleacuteon filho de

Bdelicleacuteon um velho juiz que encontra nas atividades juriacutedicas sua fonte de rendimento

Recriando-se em cena um tribunal domeacutestico o que chama a atenccedilatildeo do leitor eacute o

julgamento de um catildeo acusado de roubo por outro catildeo ndash poreacutem representativos de dois

poliacuteticos da eacutepoca ndash que a peccedila manifesta a cada cena pela corrupccedilatildeo que domina as

instituiccedilotildees juriacutedicas atenienses

A comeacutedia inicia com um diaacutelogo entre Soacutesias e Xacircntias escravos de Filocleacuteon

que foram orientados a vigiar o velho juiz natildeo deixando que ele vaacute para o Tribunal Pelos

dois personagens o poeta explica aos espectadores a ldquodoenccedilardquo que ataca Filocleacuteon Afirma

Xantias Vocecircs estatildeo perdendo tempo nenhum de vocecircs vai esclarecer o caso Se vocecircs estatildeo ansiosos por saber faccedilam silecircncio vou dizer qual eacute mesmo a doenccedila de meu senhor eacute a paixatildeo pelos tribunais A paixatildeo dele eacute julgar ele fica desesperado se natildeo consegue ocupar o primeiro banco dos juiacutezes Agrave noite ele natildeo goza um instante de sono Se por acaso fecha os olhos seu proacuteprio espiacuterito fica olhando para a clepsidra A paixatildeo dele pelo voto no tribunal eacute tatildeo grande que faz ele acordar apertando trecircs de seus dedos como se oferecesse incenso aos deuses no dia da lua novaQuando ele vecirc escrito nos muros ldquoDemo encantador filho de Pirilampordquoescreve ao lado ldquoEncantadora urna de votosrdquo Se seu galo cantava durante a noite ele dizia que algum acusado sem duacutevida usava essa humilde ave para fazecirc-lo acordar mais tarde do que era necessaacuterio Logo depois do jantar ele pedia as sandaacutelias corria para o tribunal em plena noite e adormecia laacute colado a uma coluna como uma ostra agrave concha Sua severidade o levava a traccedilar sobre as plaquetas do voto a linhada condenaccedilatildeo e ficava com os dedos cheios de cera Com receio de natildeo teraacute pedrinha para o voto ele tinha no jardim de sua casa um canteiro de pedrinhas que renovava sem parar Esta era a sua loucura E as censuras deixavam o coroa excitadiacutessimoTambeacutem fechamos o ferrolho da porta principal para impedi-lo de sair pois esta ldquodoenccedilardquo deixava o filho desesperado No comeccedilo este usa a doccedilura lhe pede para natildeo ficar todo o tempo com o manto de sair e permanecer em casa Depois daacute um banho no pai e purifica ele mas tudo isto eacute inuacutetil Ele sujeita o pai aos exerciacutecios sagrados dos Coribantes opai foge com o tambor e corre para o tribunal querendo julgar Diante do fracasso dessas tentativas ele leva o paia Aacuteigina para se deitar de noite no templo de Ascleacutepio mas quando amanhece o dia laacute estaacute o velho no recinto reservado aos juiacutezes no tribunalFazemos o possiacutevel para impedi-lo de sair mas ele escapa pelas calhas e pelos canos de aacuteguas das chuvas onde aparecia um buraco noacutes tapaacutevamos e fechaacutevamos imediatamente todas as saiacutedas mas ele punha paus nos muros e saltava de um lado para o outro como se fosse um gato Afinal pusemos redes fechando todo o acesso ao jardim e ficaacutevamos de guarda O

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velho se chama Filoclecircon nenhum nome ficaria melhor nele O nome do filho dele eacute Bdeliclecircon ele faz tudo para dominar o gecircnio fogoso do pai (ARISTOacuteFANES As Vespas p38-41 ndash KURY 2004)

A cena ganha dinacircmica com o filho do velho Juiz assustado com a presenccedila dos

outros magistrados vestidos de vespas em sua casa

BDELICLEcircON Deus nosso senhor Vocecirc que preside a entrada de minha casa receba estes novos sacrifiacutecios que lhe oferecemos pela primeira vez em favor de meu pai Adoce o humor aacutespero e austero dele Deixe cair sobre o coraccedilatildeo dele algumas gotas de mel para que de hoje em diante ele seja clemente para com os homens mais benevolente para com o acusado que com o acusador enfim seja sensiacutevel agraves preces dirigidas a vocecirc Tire do caraacuteter dele todo o fel e todas as folhas de urtiga CORO Unidos de todo o coraccedilatildeo aos sentimentos que vocecirc expressou juntamos nossos votos aos seus neste cargo que vocecirc exerce de fato vocecirc se torna querido por todos noacutes depois que vimos vocecirc mais zeloso para com o povo que qualquer dos juiacutezes mais novos que vocecirc

Um criado traz dois personagens disfarccedilados de CACHORROS um dos disfarces reproduz as feiccedilotildees de Laques e o outro as de Cleacuteon

BDELICLEcircON Se algum juiz estaacute laacute fora que se apresse a entrar uma vez iniciadas as falas ningueacutem mais poderaacute entrar FILOCLEcircON Quem eacute este acusado A que pena ele estaacute sujeito XANTIAS Como se fosse o promotor Ouccedilam agora a acusaccedilatildeo ldquoO cachorro da vila de Cidateneacuteia acusa Labes da vila de Aixone de haver contra toda a justiccedila devorado sozinho um queijo da Siciacuteliardquo Que sua pena seja a de usar uma coleira bem apertada FILOCLEcircON Ou entatildeo uma morte de catildeo se ele for condenado BDELICLEcircON Aqui estaacute Labes o outro acusado FILOCLEcircON Ah Bandido Ele tem mesmo a pinta de

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um ladratildeo e se orgulha de me tapear rangendo os dentes Onde estaacute o queixoso o cachorro de Cidateneacuteia 1ordm CACHORRO Au Au BDELICLEcircON Aqui estaacute ele FILOCLEcircON Este eacute um outro Labes bom latidor e lambedor de panelas SOSIAS Como se fosse o arauto Silecircncio Todos sentados Vocecirc objeto da acusaccedilatildeo suba agrave tribuna FILOCLEcircON Durante a fala dele vou me servir de sopa e engoli-la rapidamente XANTIAS Como promotor Senhores juiacutezes Os senhores vatildeo ouvir minha acusaccedilatildeo contra este reacuteu Ele cometeu em relaccedilatildeo agrave cidade e agrave frota de Atenas um atentado indecoroso Ele se esgueirou para um canto depois de roubar um enorme queijo da Siciacutelia aproveitando-se das trevas FILOCLEcircON O roubo dele estaacute suficientemente comprovado o patife acaba de deixar cair no chatildeo um naco de queijo extremamente malcheiroso XANTIAS Pedi a ele que me deixasse provar um pedaccedilo do queijo mas ele natildeo me atendeu Quem vai querer ajudar vocecircs se seu cachorro fiel natildeo deixou nem um pouquinho para mim FILOCLEcircON Ele natildeo lhe deu nada mesmo XANTIAS Nadinha nem a mim nem a seu companheiro FILOCLEcircON Aiacute estaacute um trapalhatildeo que vai ferver mais que estas lentilhas BDELICLEcircON Em nome dos deuses meu pai natildeo profira a sentenccedila antes de ter ouvido as duas partes FILOCLEcircON Mas a coisa estaacute clara meu caro ela fala por si mesma BDELICLEcircON Mas preste atenccedilatildeo para natildeo absolver o acusado este cachorro eacute o mais guloso e o mais egoiacutesta que jaacute vi ele lambe num piscar de olhos todos os cantos de umahellip cidade e devora tudo FILOCLEcircON E natildeo tenho dinheiro nem para mandar

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consertar meu vasohellip 2ordm CACHORRO Entatildeo castigue o acusado uma uacutenica cozinha natildeo pode encher a barriga de dois ladrotildees Tomara que eu natildeo tenha latido no vazio e em vatildeo senatildeo nunca mais vou latir FILOCLEcircON Quanta falta de vergonha Aiacute estaacute um grande trapaceiro Que pensa vocecirc dele meu galo Para mim ele diz ldquosimrdquo Guarda do tribunal Onde estaacute vocecirc Que algueacutem me decirc um penico SOSIAS Fingindo ser o guarda do tribunal Pegue vocecirc mesmo o penico estou ocupado fazendo a citaccedilatildeo das testemunhas Apresentem-se as testemunhas de acusaccedilatildeo a Laques Um prato um pilatildeo uma focircrma de queijo uma grelha uma panela e outros utensiacutelios de cozinha Vocecirc ainda estaacute mijando Ainda natildeo acabou FILOCLEcircON Apontando para o acusado Ainda natildeo mas penso que aquele ali vai fazer coisa pior hoje ele vai se borrar BDELICLEcircON Dirigindo-se ao CACHORRO acusador Entatildeo vocecirc seraacute sempre tatildeo severo e intrataacutevel para com o acusado Por que esta ferocidade FILOCLEcircON Dirigindo-se ao acusado Suba agrave tribuna e defenda-se Por que este silecircncio Fale SOSIAS Com certeza ele nada tem a dizer BDELICLEcircON Vocecirc se engana acontece com ele o que aconteceu haacute muito tempo com Tuciacutedides quando acusou Peacutericles a surpresa da acusaccedilatildeo paralisou completamente as mandiacutebulas de Peacutericles Afaste-se vou assumir a sua defesa Eacute uma tarefa difiacutecil senhores juiacutezes defender um cachorro que eacute alvo de acusaccedilotildees extremamente odiosas poreacutem de qualquer maneira falarei Este cachorro eacute valente e caccedila lobos FILOCLEcircON Ele eacute um ladratildeo e um conspirador BDELICLEcircON Natildeo por Zeus Natildeo haacute um cachorro melhor no mundo Ele seria capaz de cuidar de um grande rebanho de carneiros

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FILOCLEcircON Que importa tudo isto se ele comeu o queijo BDELICLEcircON Que importa Ele luta para defender vocecirc guarda sua casa e aleacutem disto tem outras qualidades Se ele rouba uma coisinha vocecirc deve perdoaacute-lo Reconheccedilo que ele natildeo eacute um grande tocador de ciacutetara FILOCLEcircON Eu gostaria de que ele nem soubesse ler ele natildeo faria a apologia de seu crime BDELICLEcircON Ouccedila minhas testemunhas juiz imparcial Aproxime-se facatildeozinho e fale em voz alta entatildeo vocecirc que estava incumbido dos pagamentos responda com clareza vocecirc natildeo cortou as partes que deveriam ser distribuiacutedas aos soldados FILOCLEcircON Como vou suportar a ideacuteia de ter absolvido um acusado Que seraacute de mim Deuses veneraacuteveis Me perdoem Fiz isso tudo sem querer este natildeo eacute o meu haacutebito (ARISTOacuteFANES As Vespas p153-173 ndash KURY 2004)

Essa visatildeo criacutetica e carnavalesca de mundo que se opotildee ao mau serviccedilo das

instituiccedilotildees produzida nas cenas tanto da peccedila As Vespas quanto a partir dos folhetos de

cordel traz em si uma ideia de inacabamento de quebra imperfeiccedilatildeo e uma forma de

expressatildeo ambivalente por isso ela eacute dinacircmica e mutaacutevel

As formas e siacutembolos irreverentes da linguagem carnavalesca caracterizam-se

principalmente pela coerecircncia sequencial das coisas ldquoao avessordquo e pelas diversas formas de

paroacutedias degradaccedilotildees e atitudes burlescas instrumento que tanto permeiam Acarnenses o

auto de Suassuna e o auto de Gil Vicente do qual trataremos no Quinto Ato

Sobre a ideia de quebra na cena teatral Bakhtin (2002) alerta que a ideia

carnavalesca de que ele trata natildeo estaacute relacionada ao carnaval dos ldquotempos modernosrdquo mas a

uma cosmovisatildeo milenar e universalmente popular Segundo o autor a cultura do carnaval

compreende quatro grandes categorias que envolvemos festejos carnavalescos as obras

cocircmicas representadas nas praccedilas puacuteblicas os insultos os juramentos os folguedos populares

entre outros

Assim o rito do carnaval na perspectiva de Bakhtin eacute constituiacutedo pela vitoacuteria de

uma forma de libertaccedilatildeo momentacircnea da verdade predominante e do estatuto soacutecio-poliacutetico-

econocircmico vigente Desta forma eacute possiacutevel propor a carnavalizaccedilatildeo como dispositivo

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presente no texto que compotildee a nossa pesquisa E para isso relacionaremos carnavalizaccedilatildeo e

polifonia ideias propostas por Mikhail Bakhtin para designar um modo diferente de narrar

Na concepccedilatildeo do autor segundo Gomes (2014) o termo ldquopolifoniardquo natildeo pode ser

relacionado agrave realidade heterogecircnea da linguagem quando vista pelo acircngulo da pluralidade

das ldquoliacutenguassociaisrdquo e por isso natildeo deve ser confundido com os termos ldquoheteroglossiardquo ou

ldquoplurivocidaderdquo sendo a Polifonia para Bakhtin um universo no qual todas as vozes e

consciecircncias satildeo imisciacuteveis e equivalentes ou seja plenas de valor mantendo com outras

vozes do discurso uma relaccedilatildeo de plena igualdade realizaacuteveis para se contrapor ao

estabelecido De acordo com Bakhtin

A multiplicidade de vozes e consciecircncias independentes e imisciacuteveis e a autecircntica polifonia de vozes plenivalentes constituem de fato a peculiaridade fundamental dos romances de Dostoievski [] eacute precisamente a multiplicidade de consciecircncias equipolentes e seus mundos que aqui combinam numa unidade de acontecimento mantendo sua imiscibilidade (MIKHAIL BAKHTIN 2002 p4)

Dessa forma eacute importante ressaltar que os discursos que circulam na sociedade

tecircm pesos poliacuteticos diferenciados em funccedilatildeo dos jogos de poder e do proacuteprio jogo luacutedico

social defendido por Huizinga (1999) Portanto essas ldquovozesrdquo possiacuteveis de serem percebidas

as ironias os textos polifocircnicos aparecem em oposiccedilatildeo agraves vozes que tentam passar

despercebidas nos textos monofocircnicos produzindo um ldquoefeito de apagamentordquo em um

esforccedilo contiacutenuo de impor determinados discursos como centro das relaccedilotildees de poder E

nesse campo movediccedilo tanto Aristoacutefanes quanto Ariano Suassuna encontram espaccedilos para

confrontarem as falas das instituiccedilotildees e seus legisladores seja em Atenas ou Taperoaacute

Segundo Rodrigues (2010) a polifonia e a monofonia satildeo efeitos de sentido cuja

existecircncia eacute possiacutevel em virtude dos procedimentos discursivos Assim tomando como

premissa a afirmativa da autora entendemos que a multiplicidade de vozes autorais diluiacutedas

entre as personagens consolidadas em seus discursos bem como a carnavalizaccedilatildeo dos

personagens do Auto da Compadecida provoca o riso que subverte os poderes atraveacutes de

diversas estrateacutegias como as reproduccedilotildees moralizantes dos diaacutelogos que autorizam o uso da

moral e potencializam as cenas cocircmicas

Ainda de acordo com Rodrigues (2002 p 42)

As relaccedilotildees dialoacutegicas [] satildeo um fenocircmeno universal que penetra [] tudo o que tem sentido e importacircnciardquo Dessa forma o dialogismo eacute a de um princiacutepio constitutivo da linguagem natildeo sendo esse ldquodiaacutelogordquo necessariamente um ponto de

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convergecircncia mas sim um espaccedilo de lutas entre os sujeitos do discurso pois ldquoonde comeccedila a consciecircncia comeccedila o diaacutelogo

Assim a alteridade define o sujeito pois o outro eacute fundamental para a sua

constituiccedilatildeo A relaccedilatildeo existente entre os sujeitos e a alteridade propotildee um jogo de imagens

que interfere na produccedilatildeo dos discursos das identidades e consequentemente dos sujeitos O

dialogismo tem como sua forma maacutexima agrave polifonia

Elemento das cenas cocircmicas as falas segundo Rodrigues (2010 p 62) natildeo estatildeo apenas justapostas como se fossem peccedilas de um brinquedo de montar encontram-se em um estado de interaccedilatildeo e de embate ldquotensordquo e contiacutenuo como os dentes de uma engrenagem proporcionando jogos linguiacutesticos e discursivos provocados pelo desenvolvimento de uma situaccedilatildeo de qui pro quoacute no Auto da Compadecida em funccedilatildeo de um plano de Joatildeo Grilo deixam o Padre Joatildeo em maus lenccediloacuteis com o Major Antocircnio Moraes enquanto o Padre fala sobre benzer a cachorra o Major fala sobre seu filho que estaacute doente e vai para o Recife tratando-se aiacute de uma confusatildeo no plano da realizaccedilatildeo e entendimento da linguagem engenhosamente construiacuteda por Joatildeo Grilo

PADRE Eacute o que vivo dizendo do jeito que as coisas vatildeo eacute o fim do mundo Mas que coisa o trouxe aqui Jaacute sei natildeo diga o bichinho estaacute doente natildeo eacute ANTOcircNIO MORAES Eacute jaacute sabia PADRE Jaacute aqui tudo se espalha num instante Jaacute estaacute fedendo ANTOcircNIO MORAES Fedendo Quem PADRE O bichinho ANTOcircNIO MORAES Natildeo Que eacute que o senhor quer dizer PADRE Nada desculpe eacute um modo de falar ANTOcircNIO MORAES Pois o senhor anda com uns modos de falar muito esquisitos PADRE Peccedilo que desculpe um pobre padre sem muita instruccedilatildeo Qual eacute a doenccedila Rabugem ANTOcircNIO MORAES Rabugem PADRE Sim jaacute vi um morrer disso em poucos dias Comeccedilou pelo rabo e espalhou-se pelo resto do corpo ANTOcircNIO MORAES Pelo rabo PADRE Desculpe desculpe eu devia ter dito ldquopela caudardquo Deve-se respeito aos enfermos mesmo que sejam os de mais baixa qualidade ANTOcircNIO MORAES Baixa qualidade Padre Joatildeo veja com quem estaacute falando A Igreja eacute uma coisa respeitaacutevel como garantia da sociedade mas tudo tem limite PADRE

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Mas o que foi que eu disse ANTOcircNIO MORAES Baixa qualidade Meu nome todo eacute Antocircnio Noronha de Brito Moraes e esse Noronha de Brito veio do Conde dos Arcos ouviu Gente que veio nas caravelas ouviu PADRE Ah bem e na certa os antepassados do bichinho tambeacutem vieram nas caravelas natildeo eacute isso ANTOcircNIO MORAES Claro Se meus antepassados vieram eacute claro que os dele vieram tambeacutem Que o senhor que insinuar Que a matildee dele procedeu mal PADRE Mas uma cachorra ANTOcircNIO MORAES O quecirc PADRE Uma cachorra ANTOcircNIO MORAES Repita PADRE Natildeo vejo nada de mal em repetir natildeo eacute uma cachorra mesmo ANTOcircNIO MORAES Padre eu natildeo mato o senhor agora mesmo porque o senhor eacute padre e estaacute louco [] (SUASSUNA 2005 p 32 -34)

Ainda sobre as falas a mesma autora nos relembra que o proacuteprio Suassuna teceu

comentaacuterio sobre a existecircncia do caraacuteter polifocircnico instaurador do riso no Auto da

Compadecida Como observado pelo proacuteprio Suassuna o Auto da Compadecida trouxe o riso instaurado atraveacutes das polissemias e por meio da ldquofalhardquo nada linguagem O riso eacute provocado na cena descrita anteriormente em funccedilatildeo de as reacuteplicas dos diaacutelogos estarem situadas em contextos distintos causando um desacordo entre as falas dos personagens dessa forma a interaccedilatildeo verbal aconteceu de forma equivocada para os interlocutores para o Padre Joatildeo era a cachorra (animal) do Major que estava doente para Antocircnio Moraes sua mulher estava sendo ofendida pelo padre Portanto o ldquoencaixerdquo das falas faz o qui pro quoacute funcionar proporcionando efeitos de sentido diferentes para cada sujeito da cena enunciativa (RODRIGUES 2010 p 6)

Outra estrateacutegia importante para a compreensatildeo do discurso como revelador do social

encontra-se nas palavras de Bakhtin (2003 p48) ao afirmar que o discurso se efetiva pela

praacutetica contextualizada entre emissor e receptor fato recorrente no Auto da Compadecida e

em Acarnenses visto que em ambas as peccedilas a intenccedilatildeo do autor de colocar para o

leitorouvinte seus objetivos eacute muito clara e social

O diaacutelogo eacute um processo de relacionamento reciacuteproco entre as pessoas que satildeo coautores do que acontece no diaacutelogo Desta forma aqueles que participam do diaacutelogo tecircm uma compreensatildeo ativa e antecipatoacuteria do que foi dito e ouvido Portanto tudo o que eacute dito sempre tem um projeto e eacute sempre incompleto pois o entendimento estaacute ancorado em uma accedilatildeo social conjunta Assim trabalhar com essa

61

condiccedilatildeo dialoacutegica constitutiva do ser humano e seu potencial transformador afeta nossa compreensatildeo e as praacuteticas que dialogam como recurso fundamental em sua accedilatildeo e reflexatildeo Dado o exposto eacute possiacutevel entender como as praacuteticas dialoacutegicas generativa preservam troca dialoacutegica a singularidade de cada reuniatildeo a construccedilatildeo coordenada de significado emoccedilatildeo e presenccedila dos participantes priorizando como um dos seus objetivos e tarefa a criaccedilatildeo contextualizada de novas possibilidades discursivas 16

Rodrigues (2010) reforccedila que no jogo das desconstruccedilotildees promovidas pela

linguagem no texto de Ariano Suassuna atraveacutes dos causos que o autor engenhosamente

(des)constroacutei nas reflexotildees das personagens sobretudo de Chicoacute produzem a comicidade e

estabelecem o sentido do dito que estaacute a serviccedilo do social

Dessa forma as fronteiras da liacutengua e os seus lugares de transgressotildees podem assim ser observados atraveacutes de uma situaccedilatildeo de qui pro quoacute Ao estabelecer o deslizamento de sentidos como regra o qui pro quoacute coloca em cena a comicidade Nos jogos com a liacutengua esses niacuteveisquando acionados podem sofrer uma espeacutecie de mutaccedilatildeo por causa dos deslocamentos e descentramentos que tecircm como consequecircncia o riso (RODRIGUES 2010 p 7)

No Auto da Compadecida o caraacuteter polifocircnico eacute dinacircmico e se instaura tambeacutem

atraveacutes do entrecruzamento das artimanhas do Joatildeo Grilo e de Chicoacute fato concretizado por

exemplo pelo uso do latim na cena do enterro aqui jaacute citada o que forccedila de forma jaacute

esperada a participaccedilatildeo do puacuteblico visto que o caraacuteter religioso estaacute ligado agrave

cena(SUASSUNA 2005 p 48-55)

Pela apropriaccedilatildeo discursiva e pela sobreposiccedilatildeo de cenas cocircmicas (re)criadas pelo

posicionamento das personagens no Auto da Compadecida tem-se o reforccedilo de que o riso o

humor e a ironia tecircm sido grandes recursos na literatura de grandes autores que despertam na

audiecircncia no instante do abrir de cortinas a gargalhada assim como Ariano Suassuna que

usa do riso como ritual de escapismo e ou como criacutetica moralizante Leacutelia Parreira (2006 p

45) argumenta que a obra irocircnica eacute a siacutentese de noccedilotildees antiteacuteticas accedilatildeo e natildeo contemplaccedilatildeo

16 El diaacutelogo es un proceso de relacioacuten reciacuteproca entre personas quienes son coautores de aquello que sucede en el diaacutelogo De esta manera quienes participan en el diaacutelogo tienen una comprensioacuten activa y anticipatoria de lo dicho y lo escuchado Por ello todo lo que se dice tiene siempre un proyecto y siempre es incompleto ya que la comprensioacuten estaacute anclada en una accioacuten social conjunta Asiacute trabajar con esta condicioacuten dialoacutegica constitutiva del ser humano y su potencial transformativo incide en nuestra comprensioacuten y en las praacutecticas que tienen al diaacutelogo como recurso fundamental en su accioacuten y reflexioacuten A partir de lo anterior es posible entender como las praacutecticas dialoacutegicas generativas preservan el intercambio dialoacutegico la singularidad de cada encuentro la construccioacuten coordinada de significados la emocionalidad y la presencia encarnada de los participantes jerarquizando como uno de sus objetivos y tareas la creacioacuten contextuada de nuevas posibilidades (Traduccedilatildeo nossa)

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passiva alianccedila entre objetividade e subjetividade mistura do seacuterio e da brincadeira o sonho

e a realidade o sublime e o pateacutetico o real e o aparente

As accedilotildees de Ariano Suassuna em toda a trama do Auto nos revelam que eacute

justamente por meio da ironia que o homem ri de si mesmo de suas crenccedilas e ingenuidades

indicando o que existe de representaccedilatildeo e de fingimento nos sistemas e ideologias

Em Aristoacutefanes comeccedilaremos identificando os recursos cocircmicos que tecircm o

objetivo de desvalorizar Lacircmaco traduzido por Batalhatildeo efetivamente aos olhos do puacuteblico e

passaremos para a anaacutelise de seu valor estrateacutegico A cena em que o personagem aparece pela

primeira vez estaacute localizada apoacutes o confronto entre o heroacutei cocircmico Diceoacutepolis e o coro

camponecircs de Acarnes O coro persegue Diceoacutepolis para apedrejaacute-lo por ter realizado uma

treacutegua particular com os Peloponeacutesios

Diceopolis vestido com o disfarce de Teacutelefo que Euriacutepides lhe emprestou tenta

persuadir o coro com suas razotildees mas soacute consegue convencer uma parte dele O semicoro que

ainda se opotildee agrave paz privada do heroacutei pede entatildeo ajuda a Batalhatildeo e ele aparece pela primeira

vez em cena apelando ao seu chamado (vv 557-574)

COREUTA 1 Eacute verdade seu safado mundiccedila Tal coisa tu ismoleuse atreve a dizecirc pra noacutes E se teve um sicofanta22 tu ainda fala mal dele COREUTA 2 Por Poseidon as coisas que ele taacute dizeno Satildeo tudo justa e ninhuma delas eacute falsa COREUTA 1 Por elas ser justa era preciso ele taacute dizeno Mas ele num vai ficaacuterino por se atrevecirc a falaacute assim COREUTA 2 Eh tu vai correcirc pra donde Ficrsquo aiacute Se tu batecirc Neste home tu vai eacute vuaacute pelo ar bem ligerin COREUTA 1 Eh Bataiatildeo tu que solta faiacutesca pelos oacutei Vem me ajudaacute tu do penacho da Goacutergona aparece Eh Bataiatildeo oacute amigo oacute camarada E se tem aiacute um taxiarcaocirc general ocirc Defensor dos muro vem me ajudaacute Depressa pois tocirc metade dominado BATALHAtildeO De onde vem o grito de guerra que ouvi Aonde devo levar socorro Aonde devo lanccedilar o tumulto Quem despertou a Goacutergona do armaacuterio

Neste momento a linguagem de LacircmacoBatalhatildeo eacute caracterizada por seu tom

eacutepico O termo gritar tem na Iliacuteada em geral o sentido de um grito de guerra Da mesma

forma o kydoimoacutes (tumulto guerrero) eacute tambeacutem de origem homeacuterica O uso do leacutexico eacutepico

aqui eacute paroacutedico porque a cena se desenrola fora de um contexto de batalha e aleacutem disso o

63

inimigo eacute um homem uacutenico e inofensivo o camponecircs DiceoacutepolisJustinoacutepolis A paroacutedia

eacutepica eacute entatildeo o primeiro recurso cocircmico usado para ridicularizar a LacircmacoBatalhatildeo

Em geral a paroacutedia costuma ter alvos intertextuais o modelo parodiado Mas

neste caso a paroacutedia eacutepica tem como alvo principal natildeo o intertexto homeacuterico mas o caraacuteter

partidaacuterio da guerra Aristoacutefanes usa um recurso tradicional da literatura cocircmica mas usa-a de

uma forma diferente natildeo mais para zombar do intertexto parodiado mas para servir a saacutetira

contra o seu alvo central A primeira cena apresenta outra seacuterie de recursos cocircmicos que tecircm a

funccedilatildeo de degradar o alvo aos olhos do puacuteblico A resposta de Justinoacutepolis a Batalhatildeo eacute na

verdade zombadora JUSTINOacutePOLIS

Oacute Bataiatildeo heroacutei dos penacho e das tropardquo(v 575)

A rima interna entre loacutephon 17 e loacutechon 18 gera um efeito zombeteiro humoriacutestico

que tambeacutem reduz o ridiacuteculo agrave denominaccedilatildeo eacutepica de heroacutei Este verso combina entatildeo

como recursos cocircmicos paroacutedia eacutepica e humor verbal atraveacutes da rima O efeito humoriacutestico

da rima eacute reforccedilado aleacutem disso pela aliteraccedilatildeo do lambda que liga o nome do personagem

aos dois termos rimados Por outro lado esse verso inaugura o motivo cocircmico do ridiacuteculo das

armas do personagem que se repetiraacute sempre nas cenas protagonizadas por Lacircmaco que eacute a

personificaccedilatildeo da batalha

A recepccedilatildeo de Diceoacutepolis revela o papel que o heroacutei cocircmico vai desempenhar em

relaccedilatildeo a Lacircmaco em todas as cenas em que se enfrentam seu papel seraacute o do zombador o

satirista Essa funccedilatildeo estaacute relacionada em si mesma agrave posiccedilatildeo do enunciador-autor e agrave proacutepria

atividade do autor o ridiacuteculo Ou seja Lacircmaco natildeo eacute apenas zombado no texto - por exemplo

por meio dos recursos paroacutedicos que acabamos de mencionar que satildeo colocados na boca do

mesmo Lacircmaco - mas eacute tambeacutem daquela zombaria que se reforccedila pela zombaria do proacuteprio

caraacuteter de Diceoacutepolis A degradaccedilatildeo cocircmica de Lacircmaco eacute entatildeo produzida a partir da instacircncia

17 Normalmente os capacetes eram enfeitados com phaacuteloi ldquopenachosrdquo feitos de caudas de cavalos hippoacutekomoikoacuterytheslamproicircsiphaacuteloisi- ldquocapacetes guarnecidos de cauda equumlina com brilhantes penachosrdquo(Il XIII 132) e koacuterythosphaacutelonhippodaseiacutees- ldquocapacete de penacho equumlinordquo (Il IV 459) O vocaacutebulo loacutephos tambeacutem eacute utilizado como ldquopenachordquo loacutephonhippiokhaiacutetenndash ldquopenacho com crina de cavalordquo (Il VI 469) Merece destaque o penacho da koacuterys do capacete de Aquiles que era koacuterytha kryacuteseonloacutephonndash ldquocapacete com penacho douradordquo (Il XVIII 611-2)Aleacutem da koacuterys existe um outro tipo de capacete a kyneacutee Odisseu tinha uma kyneacutee que eacute um capacete formado por pele de catildeo ou couro qualquer (Il X 257 261) A parte exterior do capacete de Odisseu tinha ldquoos dentes reluzentes de um javali com presas brancas dispostos em grande nuacutemero com arte e habilidaderdquo (Il X 261-5) Este tipo de capacete que Meriacuteone deu ao rei de Iacutetaca eacute mencionado uma uacutenica vez em HomeroIn Os equipamentos beacutelicos dos heroacuteis homeacutericos Prof Me Luciene de Lima Oliveira- wwwe-publicacoesuerj2012 18 Tropa armada

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enunciativa - os recursos cocircmicos usados pelo proacuteprio autor - e eacute duplicada da instacircncia

interna para a accedilatildeo dramaacutetica por meio do escaacuternio do personagem do heroacutei cocircmico

Diceoacutepolis eacute um alter ego do autor uma voz autorizada um duplo do proacuteprio

Aristoacutefanes um satiacuterico que ridiculariza dentro da cena o alvo cocircmico central da obra

ridiacuteculo das armas do guerreiro inaugurado no verso 575 com a referecircncia agrave tropa eacute retomado

em toda essa cena e mais tarde nas cenas posteriores protagonizadas por Diceoacutepolis e

Lacircmaco (vv 575-585) JUSTINOacutePOLIS Oacute Bataiatildeo heroacutei dos penacho e das tropa CORO Oacute Bataiatildeo acredita que este home faz eacute tempo Que insulta a nossa cidade todinha BATALHAtildeO Tal coisa tu mendigo te atreves a dizer JUSTINOacutePOLIS Oacute Bataiatildeo oacute heroacutei me perdoe Se seno ismoleu disse alguma bestecircra BATALHAtildeO E o que foi que tu disseste de noacutes Natildeo vais falar JUSTINOacutePOLIS Nem sei mais o que foi Tocirc eacute arripiadin de medo das arma Mas por favocirc afasta de mim esta marmota BATALHAtildeO Pronto JUSTINOacutePOLIS Virrsquo ela de costa pra mim BATALHAtildeO Estaacute virada JUSTINOacutePOLIS Vaiacute me daacute a pena do teu elmo BATALHAtildeO Toma a pluma JUSTINOacutePOLIS Segura a minha cabeccedila Que eu vocirc inguiaacute Tenho eacute nojo desses penacho aiacute

A verdade eacute que seja na comeacutedia aristofacircnica ou no auto suassuniano a estrutura

das cenas revela a construccedilatildeo estrateacutegica que ambos os autores utilizam para criticar e

moralizar atraveacutes de piadas ridicularizaccedilotildees polifonias discursivas e ironias que satildeo

facilmente recebidas e aceitas pelo puacuteblico que diante dos gestos e vozes das personagens

conseguem ser partiacutecipes da ideia gerando empatia e cumplicidade cocircmicas imediatas

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TERCEIRO ATO

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3 AS DUAS PECcedilAS ndash O POETA USA MAacuteSCARAS

Eacute fato que associado aos tempos aacuteureos do teatro grego da Eacutepoca Claacutessica estaacute

sem duacutevida o uso da maacutescara Vaacuterias tecircm sido as razotildees apontadas para justificar este fato

tais como a necessidade de melhorar a projeccedilatildeo vocal a possibilidade de facultar aos

espectadores uma visualizaccedilatildeo mais eficaz das personagens ou a exigecircncia do recurso a um

adereccedilo imprescindiacutevel num teatro onde natildeo representavam mulheres

O termo grego prosopon 19 segundo Castiajo (2012) significa lsquofacersquo ou lsquomaacutescararsquo

designava este indispensaacutevel adereccedilo confeccionado com fino linho estucado que era

composto por uma peruca de cabelo natural que podia ser curto ou comprido e de vaacuterias

cores e por um rosto que se ajustava agrave cabeccedila do ator e que possuiacutea apenas uma abertura

para os olhos e outra para a boca bastante alargadas para facilitar a visibilidade da audiecircncia

e para obviamente permitir as condiccedilotildees necessaacuterias ao desempenho do ator a visatildeo e a

emissatildeo vocal Eacute preciso lembrar aqui que como siacutembolo do teatro tatildeo conhecido a maacutescara

era um recurso usado para ampliar a voz do inteacuterprete especialmente na declamaccedilatildeo e ateacute

hoje usamos o termo ldquovoz na maacutescarardquo que corresponde ao aspecto da ressonacircncia superior

o elemento que amplifica a voz fator de grande importacircncia no trabalho do ator capaz de

impulsionar sua voz sem esforccedilo ou com um miacutenimo esforccedilo e ser ouvido plenamente por

todos os ouvintes presentes na plateia

Alguns estudiosos como Pickard-Cambridge (1953) defendem que as primeiras

maacutescaras usadas durante a Idade MeacutediaEacutepoca Claacutessica se caracterizavam por serem bem

mais individualizadas e a falta de expressividade que as feiccedilotildees da maacutescara assumiam

durante a encenaccedilatildeo despertava no entanto no puacuteblico significados muacuteltiplos quando o seu

uso era conjugado com os elementos que constituem o schemandash a postura e os movimentos ndash

a voz humana dos quais nos ocuparemos mais a frente mas que contribuiacuteam de forma

contundente para transmitir agrave audiecircncia sobretudo emoccedilotildees e estados de espiacuterito vividos pelas

personagens que o uso da maacutescara natildeo permitia que transparecessem

Ainda de acordo com Castiajo (2012) essas maacutescaras eram tiacutepicas da comeacutedia

chamadas de maacutescaras-retrato e atraveacutes delas cuja existecircncia eacute atestada pela tradiccedilatildeo

recorria-se a traccedilos comuns das figuras puacuteblicas para se efetivar as representaccedilotildees no espaccedilo

cecircnico

19 Marshall (1999 188) defende que o fato de etimologicamente o termo grego significar tanto lsquofacersquo como lsquomaacutescararsquo eacute um exemplo claro de como estes dois conceitos se imiscuiacuteam no pensamento grego In CASTIAJO Isabel O Teatro Grego em Contexto de Representaccedilatildeo IUCV Portugal Coimbra 2012

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De qualquer forma e apesar deste caraacuteter impessoal das maacutescaras e da distacircncia que separava atores e espectadores o sexo e a idade dos atores mascarados poderiam ser identificados pelo puacuteblico pois as maacutescaras brancas eram postas em cena para representar uma personagem feminina para uma masculina uma escura Em relaccedilatildeo agrave idade era possiacutevel distinguir trecircs geraccedilotildees diferentes jovens adultos e velhos Assim da combinaccedilatildeo destas duas variaacuteveis resultaram seis tipos convencionais de maacutescaras diferentes usadas tanto na trageacutedia como na comeacutedia a de homem velho (geron) cuja face era escura a barba e os cabelos brancos e com a particularidade de possivelmente ser calvo a de homem maduro (aner)[] (CASTIAJO 2012p8)

Certo eacute que parece legiacutetimo concordar com Marshall (1999) quando afirma que o

uso da maacutescara resulta mais do fato de o espaccedilo de performance ser apropriado para isso do

que da ideia de ser essencial representar mascarado para se transmitir a moral discursiva eou

a consciecircncia de um outro fato que sugere que o motivo subliminar que estaacute na base do uso

da maacutescara nos tempos mais remotos do teatro prende-se a um assunto seacuterio deixar para

traacutes o deus no santuaacuterio o outro ldquoeurdquo criado em sua honra para que este natildeo fosse transposto

para a sociedade real

Em Acarnenses a paroacutedia reveste o rosto da personagem a partir do Teacutelefo traacutegico

de Euriacutepides que em cena estaacute a serviccedilo do cocircmico mascarado como outro perfeito para a

realizaccedilatildeo de um objetivo maior a obtenccedilatildeo da paz

Em Suassuna a ldquoGrande Vozrdquo que inicia a peccedila eacute um Palhaccedilo ndash um mascarado ndash

que de forma carnavalesca apresenta agrave audiecircncia desde os elementos cecircnicos aos

personagens adiantando que o trabalho que seraacute posto em cena se trata de um julgamento

para o exerciacutecio e restabelecimento da moralidade e que ali os proacuteprios espectadores se

reconheceratildeo nos vaacuterios outros duplos que se disfarccedilaratildeo para alcanccedilar o objetivo do autor

que eacute moralizar pelo riso

31 Os gestos a vestimenta o corpo e o disfarce

A comeacutedia pautava-se por uma maior liberdade nas marcaccedilotildees cecircnicas nos

movimentos e nos gestos e por uma maior verossimilhanccedila com a realidade e segundo Pickard-

Cambridge (1953) embora houvesse tambeacutem alguns gestos tiacutepicos ndash como o gesto chamado de

ldquogansordquo executado atraveacutes das matildeos e que simulava o bico de um ganso usado para indicar que

estavam a ser proferidas palavras sem sentido Era tambeacutem comum assistir-se nas comeacutedias a

gestos praticados na trageacutedia mas sob a forma de paroacutedia

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Apesar da quase inexistecircncia de indicaccedilotildees textuais do autor eacute possiacutevel

reconstruir a movimentaccedilatildeo cecircnica dos atores a partir de indicaccedilotildees dadas pelos proacuteprios de

referecircncias presentes em escoacutelios 20 das representaccedilotildees dos vasos e ainda levando em conta

uma forma de arte muito semelhante a oratoacuteria seguida do gesto por exemplo falar com

determinado tipo de pose colocando a matildeo por baixo da tuacutenica ndash como era tiacutepico da oratoacuteria e

como se pode visualizar em vasos gregos de representaccedilotildees teatrais ndash ou executar movimentos

circulares ndash situaccedilatildeo que se depreende ter acontecido natildeo soacute no contexto teatral como tambeacutem

na realidade dos tribunais

Sob o vieacutes da representaccedilatildeo cecircnica e da importacircncia de seus elementos para criar a

rede de significados junto ao puacuteblico Mate (2011) afirma sobre o gesto-gestual e o

gestualizaacutevel

Importante agrave execuccedilatildeo das cenas o gestual passa pelo corpo do ator que na condiccedilatildeo de ser social irradia complexa e muacuteltipla gama simboloacutegica Levando o puacuteblico a promover uma relaccedilatildeo fundamentada no jogo de decifraccedilatildeo de siacutembolos tanto enigmaacuteticos (mais difiacuteceis de serem traduzidos) e de alegorias (siacutembolos facilmente traduziacuteveis) A troca entre ambos (atores e puacuteblico) ocorre quando o texto que intermedia essa relaccedilatildeo na condiccedilatildeo de um ldquotecido simboacutelicordquo transforma-se em gesto Na condiccedilatildeo de uma fratura do cotidiano o espetaacuteculo que acontece no tempo e no espaccedilo compreende um grande arcabouccedilo de gestualizaccedilatildeo esteacutetico-social

De qualquer forma fosse qual fosse a natureza dos gestos estes necessitavam de

ser executados em grande escala de forma a serem perceptiacuteveis pelos espectadores mais

distantes e por isso eacute expectaacutevel na opiniatildeo de DrsquoArnott (1989) que eles tivessem mais um

cariz funcional do que legitimidade teatral ateacute porque eram resultado de um sem nuacutemero de

convenccedilotildees Em Acarnenses por exemplo a movimentaccedilatildeo acentuada pela dificuldade

estrateacutegica do mendigo resulta natildeo soacute no princiacutepio da pena junto a alguns espectadores e

acusadores como tambeacutem reforccedila na proacutepria audiecircncia a identificaccedilatildeo com a dor do

apresentado

No Auto da Compadecida apoacutes um toque de clarim o Palhaccedilo figura tiacutepica das

apresentaccedilotildees circenses entra e como ocorre durante todo o espetaacuteculo conduz com ajuda do

gestual a encenaccedilatildeo desempenhando a funccedilatildeo de narrador educador dos espectadores pois

20 Para a normatizaccedilatildeo de algumas palavras gregas jaacute dicionarizadas utilizamos a forma de acordo como que consta no Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa (2008) Escoacutelio (gr σχόλιον scholion comentaacuterio interpretaccedilatildeo) satildeo notas gramaticais ou de criacutetica aos autores antigos

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no lugar do autor anuncia o caraacuteter moralizador e religioso da peccedila na qual haacute um combate

ao mundanismo visto pelo autor como uma praga de sua igreja Suassuna por considerar-se

digno de falar sobre tal tema deixa-se ser representado por um palhaccedilo para indicar que sabe

mais do que ningueacutem e por acreditar que o povo sofre e tem direito agrave defesa justa

Outro aspecto que deve ser observado durante boa parte da peccedila satildeo as matildeos

retraiacutedas de Joatildeo Grilo as incontaacuteveis viradas de cabeccedila e as baixadas de olhos revelam natildeo

tatildeo somente sua falta de posicionamento social visiacuteveis nos mais variados e longiacutenquos

lugares do sertatildeo brasileiro como abrem para o leitor-espectador a compreensatildeo do que seria

um instante uacutenico no qual o Grilo planeja minuciosamente sua estrateacutegia de convencimento

da audiecircncia e de seus acusadores e defensores

O leitor atento logo percebe que seja na comeacutedia aristofacircnica ou no auto de

Suassuna o gesto corresponde a uma determinada atitude do corpo (que incorpora as

determinaccedilotildees histoacuterico-sociais em seu sentido estrito e restrito) que no teatro efetiva-se por

meio de siacutembolos sonoros e duplamente gestuais intenccedilatildeo por meio da qual a palavra se

projeta traduzida gestualmente

Quem natildeo codificou os gestos propostos pelos olhos e cabeccedila de Chicoacute ao

procurar no bolso cigarro para contar agrave audiecircncia seus causos que ganham vida no

imaginaacuterio popular Eacute neste universo miacutemico que convidamos o leitor a beber e entender

como nos garante Stanford (1983) que estes gestos convencionais para traduzir a intenccedilatildeo do

autor executados pelos personagens dotados de sensaccedilotildees e por vezes reveladores de

estrateacutegias moralizantes satildeo atemporais e indispensaacuteveis agrave tessitura da obra para a

compreensatildeo dos que assistem e chegam a vivenciar o encenado

Segundo Jameson (1999) o gestus ao dividir a apreensatildeo do espectador provoca

um conjunto de reflexotildees Vecirc-se algo que ao expressar variadas e contraditoacuterias conotaccedilotildees

induz ao cotejamento agrave contraposiccedilatildeo de leituras O espectador afasta-se do que vecirc para

aproximar-se da vida que vive e a partir daiacute voltar agrave obra Em movimento dialeacutetico pode-se

ver aleacutem do aparentemente apreensiacutevel

[] gestus eacute o operador de um efeito de estranhamento no sentido proacuteprio e em particular que o estranhamento deriva da superposiccedilatildeo de cada um destes significados sobre os demais mostrando-nos por exemplo como um movimento involuntaacuterio de matildeo poderia em certas circunstacircncias [] contar como um fatiacutedico ato histoacuterico com consequumlecircncias seacuterias e irreversiacuteveis [] eacute uma superposiccedilatildeo e um estranhamento que natildeo apenas nos faz entender o elemento narrativo especiacutefico a uma luz nova e transformadora mas tambeacutem muda nossas ideias sobre o que eacute um simples gesto fiacutesico e sobre o que ao mesmo tempo conta como um acontecimento histoacuterico (JAMESON 1999 p110)

70

Responsaacutevel tambeacutem pelo convencimento da audiecircncia e como defende

Pickard-Cambridge (1953) o vestuaacuterio estava a serviccedilo dos gestos desempenhando um

importante papel (se natildeo o mesmo) na determinaccedilatildeo pelo puacuteblico do estatuto social

representado pelas personagens cujas caracteriacutesticas podiam facilmente ser expressas atraveacutes

das cores texturas e designs No entanto eacute impossiacutevel determinar com exatidatildeo os figurinos

usados pelos atores nos primeiros tempos do teatro Este fato encontra comprovaccedilatildeo quando

nos lembramos do Teacutelefo de Acarnenses ou do ldquomendigordquo encenado por Severino para entrar

na cidade sem ser denunciado e que em ambos os casos o vestuaacuterio se caracteriza por uma

maior simplicidade e uma maior aproximaccedilatildeo agrave mendicacircncia

Em Acarnenses no momento em que eacute ameaccedilado pelos indignados habitantes de

Acarnas que constituem o Coro Diceoacutepolis necessita de um discurso forte o suficiente para

convencer aqueles homens das boas razotildees das suas treacuteguas privadas Nada como procurar

Euriacutepides e solicitar-lhe os andrajos que tatildeo bem serviram agrave eloquecircncia de Teacutelefo (vv 393-

479) E diante de uma longa lista de personagens andrajosas Diceoacutepolis encontra o seu

Teacutelefo Disfarce perfeito Eacute evidente aqui a noccedilatildeo de que a personagem dramaacutetica natildeo eacute

apenas um conjunto de palavras proferido agrave sombra de um nome mas eacute uma entidade sujeita a

uma construccedilatildeo que decorre das proacuteprias regras e exigecircncias do drama enquanto espetaacuteculo Acarnenses traz o enredo de acordo com a necessidade de defesa colocando o protagonista em maus lenccediloacuteis por ter feito treacuteguas com o inimigo espartano Teacutelefo era mesmo a personagem que melhor se encaixava como disfarce para a defesa do poeta e do protagonista O Teacutelefo de Aristoacutefanes quebra a ilusatildeo dramaacutetica e o paacutethos de que a trageacutedia depende pois enquanto o Teacutelefo de Euriacutepides natildeo se disfarccedila no palco mas parece entrar disfarccedilado de acordo com Foley (1996 135-7) o espectador de Aristoacutefanes vecirc Diceoacutepolis vestir os trapos de Teacutelefo e comeccedilar a se comportar como um mendigo jaacute na cena de aquisiccedilatildeo dos acessoacuterios do disfarce pelo exagero do detalhe e da atuaccedilatildeo de Diceoacutepolis torna-se demasiadamente realiacutestico e natildeo traacutegico Tambeacutem por expor o mecanismo do ekkyacuteklema (408) no momento em que Diceoacutepolis chama Euriacutepides para fora de casa pode sugerir que a comeacutedia desmascara o gecircnero seacuterio mostrando os bastidores do teatro traacutegico mas acrescentando o mesmo mecanismo a sua proacutepria ilusatildeo cocircmica Se o disfarce era para causar compaixatildeo aos acarnenses como ele poderaacute funcionar sem o paacutethos traacutegico (POMPEU 2004 p 83-98)

A escolha de Diceoacutepolis nos assegura que aliado aos gestos o disfarce traduz-se

na melhor estrateacutegia para convencer seus algozes

JUSTINOacutePOLIS Tu compotildee de peacute pra riba Podenotaacute de peacutes no chatildeo por isso tu compotildee os manco Mas por que tu taacute vestido cumrsquosmulambo da trageacutedia Rocircpas de daacute doacute Por isso tu compotildee os ismoleu Mas te imploro pelos teus joeio Euriacutepides Daacute pra mim um mulambo daquela peccedila antiga

71

Pois tenho que falaacute pro coro umleriado grande Ela traz a morte srsquoeufalaacute mal (vv 410-417)

Elemento indispensaacutevel aos planos do heroacutei camponecircs o disfarce se constituiraacute

como mateacuteria prima da accedilatildeo do protagonista ameaccedilado pelo coro Na cena transcrita a seguir

o proacuteprio Diceoacutepolis revela a importacircncia da indumentaacuteria do mendigo para que o torne mais

digno de pena e possa reforccedilar sua estrateacutegia de convencer o coro

EURIacutePIDES Quais trapos Acaso aqueles com que aqui Eneu O coitado do velho concorria JUSTINOacutePOLIS De Eneu natildeo era era de ocirctro mais miserave EURIacutePIDES Os de Fecircnix o ceguinho JUSTINOacutePOLIS Natildeo de Fecircnix natildeo Havia ocirctro mais miserave que Fecircnix EURIacutePIDES Que mantos esfarrapados o homem me pede Seraacute que falas dos de Filoctetes o mendigo JUSTINOacutePOLIS Dele natildeo de um muito muito mais ismoleu EURIacutePIDES Acaso queres os mantos sujos Que Belerofonte tinha este coxo aqui JUSTINOacutePOLIS Natildeo era Belerofonte Mas tambeacutem o tipo era Mancoismoleuquexudo bom de laacutebia EURIacutePIDES Sei quem eacute o homem o miacutesioTeacutelefo JUSTINOacutePOLIS Eacute isso Teacutelefo Dele me daacute eu te suplico os mulambo EURIacutePIDES Oacute rapaz daacute-lhe os trapos do Teacutelefo Estatildeo por cima dos trapos do Tiestes No meio dos de Ino Aqui tens toma laacute (vv 416-434)

Com base nos estudos de Mate (2011) sobre o gestual percebemos a intensidade

causada por este elemento da cena cocircmica durante todo o Auto da Compadecida nas atitudes

de Joatildeo Grilo no balanccedilar do corpo desconsertado nas matildeos que evidenciam a ansiedade de

vinganccedilas contra seus patrotildees ndash o padeiro e a mulher ndash nas viradas de ombro e cabeccedilas tatildeo

comuns na cena social dos longiacutenquos lugares do Nordeste 21 brasileiro Com isso puacuteblico e

personagem se reconhecem na compreensatildeo do que seria um momento para aleacutem do riso do

luacutedico mas plenamente do social que ali ganha vida e ao mesmo tempo se finda nas accedilotildees e

histoacuterias contadas recuperadas da tradiccedilatildeo oral

21 ALBUQUERQUE JUacuteNIOR Durval Muniz de A invenccedilatildeo do Nordeste e outras artes p 66

72

Eacute este o Nordeste universal de Ariano Suassuna lugar de profunda mistura onde o

profano e o sagrado se completam pelos recortes natildeo somente geograacuteficos mas humanos e

imagiacutesticos que servem de ferramentas para autores que voltam suas literaturas para falar da

condiccedilatildeo humana de sobreviver numa regiatildeo tatildeo contraditoacuteria nas incontaacuteveis Taperoaacute que

pulam dos livros e telas e se misturam agrave nossa realidade de forma tatildeo atualizada e recorrente

O Nordeste natildeo eacute um fato inerte na natureza Natildeo estaacute dado desde sempre Os recortes geograacuteficos as regiotildees satildeo fatos humanos satildeo pedaccedilos de histoacuteria magma de enfrentamentos que se cristalizaram satildeo ilusoacuterios ancoradouros da lava da luta social que um dia veio agrave tona e escorreu sobre este territoacuterio O Nordeste eacute uma espacialidade fundada historicamente originada por uma tradiccedilatildeo de pensamento uma imagiacutestica e textos que lhe deram realidade e presenccedila (ALBUQUERQUE2011 p63)

Portanto eacute nessa fonte muacuteltipla de (in)certezas que cortam o universo miacutemico que

Aristoacutefanes e Suassuna nos convidam a entender e deles beber como nos garante Stanford

(1983 85-87) que os gestos convencionais que abrem espaccedilo para a leitura social do autor

estatildeo perfeitamente ligados ao seu contexto fato que desperta no leitorouvinte a mesma teia

de sentidos e sensaccedilotildees vivenciadas pelo autor em seu jogo de enganar para ganhar como

acontece durante o julgamento de Diceoacutepolis pela assembleia em Acarnenses e com Joatildeo

Grilo e os demais no Auto da Compadecida considerandoeacute claroa troca simboacutelica de

conhecimento sobre o encenado que compreende natildeo soacute oral como tambeacutem o gestualizaacutevel

(in)visiacutevel

Assim como as maacutescaras e os gestos o vestuaacuterio constitui-se como um importante

papel (se natildeo mesmo o mais importante) na determinaccedilatildeo pelo puacuteblico do estatuto social

representado pelas personagens cujas caracteriacutesticas podiam facilmente ser expressas atraveacutes

das cores texturas e designs

Se haacute juiacutezes disfarccedilados de vespas um Teacutelefo aristofacircnico indumentado para o

convencimento dos juiacutezes da assembleia que veem Diceoacutepolis como real e ao mesmo tempo o

ilusoacuterio travestido de mendigo para ganhar natildeo perdatildeo de seus algozes mas apenas justificar

seus benefiacutecios Assim devemos pontuar a emergecircncia literaacuteria de Ariano Suassuna ao

colocar seu Teacutelefo em Taperoaacute quando para natildeo ser reconhecido Severino entra na cidade e

em nosso imaginaacuterio vestido tambeacutem de mendigo Em ambos os casos o poeta representou

seu projeto de enganar o mundo em cena pelo puacuteblico que assiste ao espetaacuteculo preso agrave cena

seguinte que alimentaraacute ao seu imaginaacuterio em consonacircncia com o dito pelo poeta romano

Petrocircnio (c 27-66 AD) Mundus vult decipi ergo decipiatur (O mundo quer ser enganado

portanto que seja enganado)

73

Mesmo sendo impossiacutevel determinar com exatidatildeo os figurinos usados pelos

atores nos primeiros tempos do teatro haacute registros que asseguram que figurinos traacutegicos se

baseavam no manto com que Dioniso era frequentemente representado e no que concerne agrave

comeacutedia o vestuaacuterio tiacutepico usado caracterizava-se pela carga grotescamente acentuada

visiacutevel quer na forma como o corpo aparecia enchumaccedilado quer no uso de uma tuacutenica ndash

chiton ndash justa e curta o suficiente para exibir o falo -phallos

O certo eacute que a vestimenta o corpo e o disfarce existem para o Teatro de uma

forma indissociaacutevel se reconstroem a cada cena e em unidade criam e recriam expectativas e

realidades na audiecircncia que assiste agrave peccedila e a vivencia

74

QUARTO ATO

75

4 O AUTOR E SEUS OUTROS NA COMEacuteDIA E NO AUTO

No Quarto Ato tanto em Acarnenses como no Auto da Compadecida

ressaltamos que a figura controversa do poeta esteve pautada pela multiplicidade apresentada

nas accedilotildees cecircnicas das personagens reforccedilando uma atitude dupla polifocircnica e multifacetada

A verdade eacute que a figura do duplo sempre foi e tem sido desde a Antiguidade

insistentemente tematizada sob a inspiraccedilatildeo da literatura aristofacircnica e mais precisamente nos

seacuteculos XVI e XX nos autos de Gil Vicente e de Ariano Suassuna lugar onde encontrou um

terreno feacutertil e vigoroso por ser o ldquoduplordquo revestido por uma aura de misteacuterio e ao esmo

tempo de moralidade No palco do (in)certo que nos revela o teatro analisamos o tema em

duas obras Acarnenses de Aristoacutefanes ndash versatildeo matuta de Ana Maria Ceacutesar Pompeu ndash e no

Auto da Compadecida de Ariano Suassuna tendo por meta ressaltar a partir da accedilatildeo cecircnica a

presenccedila do poeta e de seu discurso moralizante em defesa da cidade

Como tema relacionado agraves vaacuterias vivecircncias humanas o duplo persiste como

temaacutetica sempre pungente e revisitada A ideia do duplo tem estado presente na literatura

desde a Antiguidade retornando na contemporaneidade com ecos da tradiccedilatildeo claacutessica uma

vez que a humanidade vive cercada de elementos relacionados agrave duplicidade e que remetem a

questotildees acentuadamente marcantes como por exemplo o caraacuteter existencial ligado ao ser

masculinofeminino homemanimal espiacuteritocorpo vidamorte ou aos miacutesticos deusdiabo

anjodemocircnio ceacuteuinferno entre outros Desse modo eacute sabido que a praacutetica e a vivecircncia

dessas dualidades desde os primoacuterdios da civilizaccedilatildeo tem conduzido o homem se

(re)conhecer e debater-se sobre a anguacutestia e as dores do duplo

Segundo Mello (2000) a ideia de duplicidade do Eu eacute um conceito antigo e no

que se refere agrave literatura esse tema desperta algumas questotildees inquietantes capazes de nos

levar a reflexotildees sobre - Quem somos - o que a anguacutestia representa senatildeo a falta ndash ou o que

seremos depois da morte Um exemplo praacutetico da temaacutetica do duplo estaacute presente em

narrativas literaacuterias como Metamorfose de Kafka Noite na Taverna de Aacutelvares de Azevedo

O homem duplicado de Joseacute Saramago Don Quixote de La Mancha de Cervantes ou no

conto ldquoO espelhordquo de Machado de Assis e de forma mais especiacutefica em Acarnenses de

Aristoacutefanes e no Auto da Compadecida de Ariano Suassuna

Sob o vieacutes do duplo na literatura Mello ainda afirma que a noccedilatildeo da outra metade

do sujeito expressa para a literatura um novo pensar sobre a identidade pois o indiviacuteduo pode

reconhecer-se como o proacuteprio do que se trata atraveacutes de representaccedilotildees metafoacutericas assim o

desdobramento do eu adquire vocaccedilatildeo especial na literatura

76

A literatura tem uma vocaccedilatildeo especial para tematizar o duplo jaacute que no ato de criar o autor se desdobra em narrador e atraveacutes de seus heroacuteis libera partes aprisionadas em si mesmo que estatildeo sob a maacutescara de um Eu particular fixo no molde da personalidade (MELLO 2000 p 123)

Para uma maior aproximaccedilatildeo com o tragicocircmico no contexto cecircnico do duplo

retornamos ao teatro que na Greacutecia Antiga surgiu a partir de manifestaccedilotildees a Dioniso deus

do vinho da vegetaccedilatildeo do ecircxtase e das metamorfoses Pouco a pouco os rituais dionisiacuteacos

foram se modificando e se transformando em trageacutedias e comeacutedias Entretanto as diferenccedilas

entre o traacutegico e o cocircmico nunca foram tatildeo bem delineadas

Todavia cabe salientar que o Duplo sempre foi um tema profundamente

instigante da cultura humana e sempre esteve essencialmente relacionado vaacuterias aacutereas do

conhecimento como na Filosofia Psicologia Literatura e na Mitologia atuando como

geradora de ambiguidades Na Antiguidade o Duplo era para a sociedade a representaccedilatildeo ou

o reflexo do idecircntico ou seja prevalecia a ideia de Duplo como o homogecircneo manifestaccedilatildeo

do igual

No entanto natildeo permaneceu dessa maneira tendo com o passar do tempo a

partir do seacuteculo XVIII se tornado heterogecircneo isto eacute o Duplo passa a representar o desigual

ou em outras palavras o oposto em Suassuna o arremedo cocircmico Este fato encontra

comprovaccedilatildeo quando procuramos as diferenccedilas existentes entre o traacutegico e o cocircmico tatildeo bem

delineadas na sociedade Greacutecia Claacutessica

41 O par cocircmico na tradiccedilatildeo literaacuteria em Aristoacutefanes e Ariano Suassuna

Nossa pesquisa parte da hipoacutetese especiacutefica de que a dimensatildeo do duplo como o

outro do poeta em Aristoacutefanes e Ariano Suassuna estaacute estruturada a partir da loacutegica binaacuteria do

par cocircmico um par composto pelas intenccedilotildees das personagem e pelas manobras exercidas

pelo poeta para dizer por traacutes das cortinas o que deve ser de conhecimento de todos

Portanto nos propomos enquanto espectadores traccedilar a partir da comeacutedia e do auto diferentes

gecircneros literaacuterio o estudo do par cocircmico de forma a analisar a constituiccedilatildeo dos outros

poeacuteticos em cada uma das obras do corpus selecionado

Neste esteio haacute de se considerar um estudo significativo sobre o assunto

mencionado no trabalho de Beltrametti (2000) que analisa as caracteriacutesticas dos pares

cocircmicos em Aristoacutefanes nos diaacutelogos platocircnicos e no dramaturgo latino Plauto A autora

define em termos gerais a dupla cocircmica como 1) uma unidade dramaacutetica de dois elementos

77

inseparaacuteveis 2) um pivocirc estrutural 3) um noacute semacircntico que liga linhas mais importantes de

senttido

Da caracterizaccedilatildeo proposta por de Beltrametti redefinimos o par cocircmico

aristofacircnico e suassuniano como um esquema binaacuterio composto de dois poacutelos opostos e

complementares o zombador e o zombado o palhaccedilo e o tolo que compotildeem o noacute semacircntico

da accedilatildeo cecircnica que nas obras que compotildeem o corpus deste trabalho estatildeo ao nosso ver a

serviccedilo da voz autoral

Em primeiro lugar como fio de uma produccedilatildeo anterior reconhecemos os

antecedentes literaacuterios do par cocircmico aristofacircnico na Odisseia de Homero quando encontra o

seu modelo mais relevante no binocircmio de Ulisses e do Ciclope no Canto IX Em segundo

lugar traccedilamos a presenccedila da dupla cocircmica suassuniana no auto influenciado pela produccedilatildeo

grega e pela literatura de Gil Vicente de cuja obra nos ocuparemos no V Ato

Entretanto cabe ressaltar que o objetivo central desta parte do nosso estudo eacute

explorar os traccedilos distintivos da dupla cocircmica nesses diferentes gecircneros tendo como base o

duplo poeacutetico e a maneira pela qual os comedioacutegrafos manipulam as accedilotildees das personagens

para construir a interpretaccedilatildeo do puacuteblico

A comeacutedia Acarnenses a primeira do corpus aristofacircnico conservado coloca em

cena a polecircmica poliacutetica entre uma posiccedilatildeo de guerra que desejava a continuidade da guerra

contra Esparta e a posiccedilatildeo contraacuteria que era impulsionada pelo sentimento de paz defendida a

partir do discurso do heroacutei cocircmico Diceoacutepolis

De maneira estrateacutegica Aristoacutefanes age na peccedila de forma a esclarecer para a

audiecircncia sobre os efeitos negativos para a cidade caso a guerra natildeo tenha um fim fato que se

comprova nos estudos de Zumbrunnen (2004) ao analisar a dimensatildeo poliacutetica e persuasiva da

peccedila categorizando-a em uma linha usual as intenccedilotildees seacuterias para aconselhar e influenciar o

puacuteblico em favor do fim da guerra

Em nossa opiniatildeo e seguindo MacDowell (1995) as comeacutedias de Aristoacutefanes

tinham que ser claras e de faacutecil entretenimento para os atenienses comuns atitude que se

justifica pela posiccedilatildeo contraacuteria do proacuteprio autor em relaccedilatildeo agrave guerra estreitada e assegurada

pelo discurso poliacutetico pronunciado na assembleia

Partimos da hipoacutetese especiacutefica de que o par cocircmico na comeacutedia aristofacircnica

constitui um dos seus principais recursos de persuasatildeo cocircmica uma vez que estaacute associado agraves

expectativas do olhar do puacuteblico na interaccedilatildeo cecircnica ndash que tambeacutem se constitui como apartir

do trabalho proposto pelo autor Isso significa que o esquema binaacuterio defendido por

Beltrametti jaacute referido nesta pesquisa funciona por si soacute como uma interpretaccedilatildeo chave para

78

o puacuteblico os telespectadores podem antecipar que o duplo autoral - Diceoacutepolis - seraacute o

condutor central atacado e ridicularizado ndash zombador e acusador ao mesmo tempo no plano

interno da accedilatildeo dramaacutetica

Eacute importante ressaltar no entanto que tanto a comeacutedia de Aristoacutefanes como no

auto de Ariano Suassuna natildeo apresentam personagens idealizados nem absolutamente

indiferentem ao ridiacuteculo ao bobo ou ao piacutecaro As figuras do heroacutei Diceogravepolis e a do bobo

Joatildeo Grilo natildeo satildeo exceccedilotildees

Obscura como outros siacutembolos e projeccedilotildees coletivas a figura do duplo de

Diceoacutepolis em Acarnenses e de Joatildeo Grilo no Auto da Compadecida eacute cocircmica e criacutetica visto

que satildeo elementos que parodiam o serviccedilo divino cantando errado e fazendo sermotildees

moralizantes travestindo-se usando maacutescaras e passeando com maestria nos mundos popular

e erudito representando coletivos pelo poder da gargalhada do riso seacuterio e da tolice formas

mais sutis para se levar ao conhecimento da audiecircncia o desdobramento da consciecircncia ao

mesmo tempo a do idiota e a do bufatildeo que a utiliza como maacutescara e a coloca em praacutetica na

defesa do cidadatildeo injusticcedilado

Klein (1998) assegura que a dualidade implica certa ambiguidade constitutiva

na figura do heroacutei cocircmico e de seu discurso premissa apresentada em Acarnenses e por

extensatildeo aplicada por noacutes no Auto da Compadecida Em ambas as peccedilas o duplo poeacutetico eacute

estuacutepido e saacutebio grosseiro e sutil escravo das pulsotildees e senhor de si mesmo menos e mais

humano como nos afirma Pompeu (2004) ao citar Beltrametti quando a autora escreve que

no teatro de Aristoacutefanes haacute dinacircmicas de pares que satildeo mais complexas

Ela conclui que o teatro de Aristoacutefanes tem seus duplos que satildeo ldquoesses outros si mesmos que tecircm por funccedilatildeo instaurar uma tensatildeo com o si dos protagonistas das comeacutedias fazendo com que as perspectivas se entrelacem tatildeo estreitamente que acabem por se perderrdquo Beltrametti entende ser o par cocircmico ldquo1 Unidade dramaacutetica de dois elementos indissociaacuteveis 2 Princiacutepio e ao mesmo tempo base estrutural 3 Noacute semacircntico onde se ligam as mais importantes linhas do sentidordquo (POMPEU p12)

Assim percebe-se que tanto no teatro aristofacircnico quanto no teatro popular de

Ariano Suassuna o conhecimento eacute expresso natildeo somente pelas maacutescaras e gestos como

tambeacutem pelas vozes cocircmicas que conduzem a plateia ao conhecimento da condiccedilatildeo humana

tatildeo bem levada a seacuterio pelos autores em seus discursos criacuteticos sendo portanto uma nova

forma de combinar velhos ingredientes como o riso frouxo e estridente educador aacutecido da

sociedade que encontra espaccedilo semacircntico atraveacutes dos outros do poeta que se organizam em

uma nova composiccedilatildeo natildeo soacute marcada pela cena teatral mas pela inteligecircncia de um autor

79

que pensa a sociedade para aleacutem das mazelas das injusticcedilas vivenciadas impostas pelo estado

de guerra ou pela exploraccedilatildeo das instituiccedilotildees sociais

Neste ambiente duplicadopolifocircnico observamos que a atitude educadora do

poeta bem como as accedilotildees das personagens que satildeo formadoras da estrutura do discurso

moralizador e porque natildeo dizer denunciador formado a partir da presenccedila de vaacuterias vozes

como a do proacuteprio poeta Haacute de se pontuar pel afirmativa acima que este fato se deve porque

as ldquovozes autoraisrdquo tecircm sido um tema de grande interesse para muitos estudiosos e para todos

que se deparam com a problemaacutetica da identificaccedilatildeo desta quando articulada agrave formaccedilatildeo dos

duplos dentro da Comeacutedia Antiga ou no Auto

Como o Proacuteprio Ariano Suassuna bem jaacute colocou para a construccedilatildeo do Auto da

Compadecida recorreu a uma tradiccedilatildeo cocircmica bastante viva que eacute a literatura oral e popular

do Nordeste dando-lhe novas formas para preservar a autenticidade Condutor de uma seacuterie

de armaccedilotildees ao personagem Joatildeo Grilo o autor conferiu a tarefa de explorar os efeitos

cocircmicos das cenas A presenccedila de Chicoacute o duplo de Joatildeo Grilo tem a mesma importacircncia

para o desenrolar dos atos visto ser ele o mentor das histoacuterias sem peacute nem cabeccedila que

divertem o puacuteblico a ponto de tambeacutem participar da criaccedilatildeo de comicidade

Para Joatildeo Grilo por estrateacutegia do autor coube uma verdadeira consciecircncia de sua

posiccedilatildeo social e a Chicoacute personagem simploacuterio coube toda inocecircncia e imaginaccedilatildeo

JOAtildeO GRILO Vocecirc eacute tatildeo sem confianccedila CHICOacute Eu sem confianccedila Que eacute isso Joatildeo estaacute me desconhecendo Juro como ele vem Quer benzer o cachorro da mulher para ver se o bicho natildeo morre A dificuldade natildeo eacute ele vir eacute o padre benzer O bispo estaacute aiacute e tenho certeza de que o Padre Joatildeo natildeo vai querer benzer o cachorro JOAtildeO GRILO Natildeo vai benzer Por quecirc Que eacute que um cachorro tem de mais CHICOacute Bom eu digo assim porque sei como esse povo eacute cheio de coisas mas natildeo eacute nada de mais Eu mesmo jaacute tive um cavalo bento JOAtildeO GRILO Que eacute isso Chico Jaacute estou ficando por aqui com suas histoacuterias Eacute sempre uma coisa toda esquisita Quando se pede uma explicaccedilatildeo vem sempre com ldquonatildeo sei soacute sei que foi assimrdquo CHICOacute Mas se eu tive mesmo o cavalo meu filho o que eacute que eu vou fazer Vou mentir dizer que natildeo tive JOAtildeO GRILO Vocecirc vem com uma histoacuteria dessas e depois se queixa porque o povo diz que vocecirc eacute sem confianccedila CHICOacute Eu sem confianccedila Antocircnio Martinho estaacute para dar as provas do que eu digo JOAtildeO GRILO Antocircnio Martinho Faz trecircs anos que ele morreu

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CHICOacute Mas era vivo quando eu tive o bicho JOAtildeO GRILO Quando vocecirc teve o bicho E foi vocecirc quem pariu o cavalo Chico CHICOacute Eu natildeo Mas do jeito que as coisas vatildeo natildeo me admiro mais de nada No mecircs passado uma mulher teve um na serra do Araripe para os lados do Cearaacute JOAtildeO GRILO Isso eacute coisa de seca Acaba nisso essa fome ningueacutem pode ter menino e haja cavalo no mundo A comida eacute mais barata e eacute coisa que se pode vender Mas seu cavalo como foi CHICOacute Foi uma velha que me vendeu barato porque ia se mudar mas recomendou todo cuidado porque o cavalo era bento E soacute podia ser mesmo porque cavalo bom como aquele eu nunca tinha visto Uma vez corremos atraacutes de uma garrota das seis da manhatilde ateacute agraves seis da tarde sem parar nem um momento eu a cavalo ele a peacute Fui derrubar a novilha jaacute de noitinha mas quando acabei o serviccedilo e enchocalhei ares olhei ao redor e natildeo conhecia o lugar onde estaacutevamos Tomei uma vereda que havia assim e aiacute tangendo o boi JOAtildeO GRILO O boi Natildeo era uma garrota CHICOacute Uma garrota e um boi JOAtildeO GRILO E vocecirc corria atraacutes do dois de uma vez CHICOacute Corria eacute proibido JOAtildeO GRILO Natildeo mas eu me admiro eacute eles correrem tanto tempo juntos sem se apartarem Como foi isso CHICOacute Natildeo sei soacute sei que foi assim Saiacute tangendo os bois e de repente avistei uma cidade Eacute uma histoacuteria que eu natildeo goste nem de contar (SUASSUNA 2005 p25-28)

Segundo Girondon (1960) para compor o Auto da Compadecida Suassuna

inspirou-se naturalmente na comeacutedia tradicional italiana no que concerne a certos

personagens Os personagens como Joatildeo Grilo e Chicoacute emprestam de muacuteltiplas fontes seus

traccedilos os mais divertidos Satildeo os personagens ldquoheroacuteisrdquo os condutores da accedilatildeo os criados os

zanni 22 dos Italianos Mas revestem igualmente caracteriacutesticas proacuteprias dos piacutecaros23

espanhoacuteis aos tricksters 24 ingleses ao renard do fabulaacuterio francecircs medieval e ao Pedro

Malasartes da literatura popular luso-brasileira

22 A definiccedilatildeo de zanni no dicionaacuterio estaacute no popular teatro do seacuteculo XV tipo do villano dos vales de Bergamo aacutespero pobre ignorante Zanni tambeacutem eacute um bufatildeo palhaccedilo In Alessandra Mignatti La maschera e il viaggio sullorigine dello Zanni Bergamo Moretti amp Vitali 2007 23 ABRAMS David amp SUTTON-SMITH Brian loc cit 24 ABRAMS David amp SUTTON-SMITH Brian The development of the trickster in childrenrsquos narratives Journal of American Folklore90 (355) 1977 23 24

81

Duplos Joatildeo Grilo e Chicoacute satildeo personagens transbordantes de vitalidade e de

artimanhas dotados de uma imensa energia na afirmaccedilatildeo de suas inclinaccedilotildees e de suas ideias

Entretanto na criaccedilatildeo literaacuteria do auto Ariano Suassuna revela todo o controle das accedilotildees

visto que nenhuma das personagens controla verdadeiramente o jogo pois satildeo arrastados pelo

processo cocircmico que se reproduz a cada cena

Assim como o duplo aristofacircnico o par Joatildeo Grilo e Chicoacute nos leva a perceber

que as paixotildees e ambiccedilotildees humanas provocam accedilotildees inconsequentes das quais os seres natildeo se

apercebem Eacute como se o autor quisesse aliar intimamente a bufonaria e a verdade humana

num todo Joatildeo Grilo eacute fanfarratildeo que se deleita sobre seu talento de conduzir bem suas

intrigas Contudo Joatildeo Grilo eacute o ldquomarginalrdquo inventivo que busca uma revanche pelas afrontas

que seus patrotildees o fazem sofrer

No plano teatral eacute justamente Joatildeo Grilo quem nos diz das intenccedilotildees do poeta

fazer rir o puacuteblico pela zombaria da proacutepria natureza humana cuja credulidade e ingenuidade

nos fazem perder a consciecircncia dos proacuteprios defeitos Atraveacutes do riso o homem toma

consciecircncia dele mesmo mitigando suas dores e angustias existenciais Todavia como poeta

cocircmico Ariano Suassuna tambeacutem quer nos fazer refletir uma vez que se o riso pode ser

determinante nas reaccedilotildees entatildeo eacute o pensamento que pode auxiliar a compreender a verdade

humana que se oculta atraacutes do riso

Joatildeo Grilo eacute o duplo poeacutetico que reverbera o pensamento de Suassuna contra as

injusticcedilas e nos ensina que de nada serve se deixar paralisar pelo medo e pela covardia eacute

preciso enfrentar as dificuldades No momento em que tudo parece perdido em que a

condenaccedilatildeo ao inferno parece inevitaacutevel ele revela uma feacute inalteraacutevel em si mesmo e se

permite um novo desafio Ele diz

Eacute difiacutecil quer dizer sem jeito Sem jeito Sem jeito por quecirc Vocecircs satildeo uns pamonhas qualquer coisinha estatildeo arriando Natildeo vecirc que tiveram tudo na terra Se tivessem tido que aguentar o rojatildeo de Joatildeo Grilo passando fome e comendo macambira na seca garanto que tinham mais coragem Quer ver eu dar um jeito nisso Padre Joatildeo (SUASSUNA 2005 p167)

Para Ariano Suassuna o palco do teatro eacute um lugar maacutegico onde as imagens

concretas se instalam na cena a cena em forma de quadros quadros dinacircmicos vivos Ao

lado destas imagens concretas ele instala imagens metafoacutericas que incorpora agrave realidade

cecircnica conduzindo o espectador para o entendimento de que o mundo encontra-se com o

teatro mas natildeo o mundo linear homogecircneo mas o mundo agraves avessas que soacute o teatro mostra e

que pode dar agrave realidade uma chance de impor-se pela ressonacircncia da gargalhada

82

Por conseguinte eacute notaacutevel contudo observar que o duplo cocircmico

frequentemente utilizado por Aristoacutefanes em suas peccedilas tambeacutem encontra eco na literatura

popular de Suassuna por apresentar uma tessitura textual atravessada pelas muacuteltiplas vozes de

seus personagens constituindo-se em um fenocircmeno recorrente e natural que aponta para a

tensatildeo de uma crise profunda denunciada pelo proacuteprio poeta em seus discursos De iniacutecio

esclarecemos que em toacutepico especiacutefico trataremos da voz cocircmica entretanto utilizaremos do

termo para nos referirmos ao duplo autoral a partir da identificaccedilatildeo da produccedilatildeo discursiva

Educadores e denunciadores tanto Aristoacutefanes quanto Ariano Suassuna

constroem em seus enredos personagens que usam da autoridade conferida pelo poeta para

ressoar seus anseios e indignaccedilotildees atraveacutes do discurso Ao longo das peccedilas eles projetam seus

duplos de forma que suas proacuteprias vozes possam ser ouvidas indiretamente por traacutes de cada

ato levando o puacuteblico a crer que ouve a voz direta do poeta quer atraveacutes do coro do palhaccedilo

coreuta da paraacutebase

Como justificativa do duplo satildeo em personagens como Diceoacutepolis ou Joatildeo Grilo

que realizam a intenccedilatildeo poeacutetica e eacute ressonante pelo riso da mangofa pelos gestos

performaacuteticos pelo arremedo poeacutetico eou pelo outro travestido de a(u)tor accedilotildees

perfeitamente justificaacuteveis visto que o duplo cocircmico passa a ser o noacute semacircntico entre as

culturas grega e popular utilizando fatos do dia a dia como mateacuteria na representaccedilatildeo de algo

identificado pelo autor atraindo consequentemente a atenccedilatildeo do leitor ou espectador para a

obra

A verdade eacute que a conduccedilatildeo cocircmica e moralizante levada ao espectador encontra

espaccedilo feacutertil em ambas as obras traduzida pela accedilatildeo do poeta a partir das vozes de seus

duplos Diceoacutepolis e Joatildeo Grilo figuras conturbadas em franco desacordo com a situaccedilatildeo

promovida pelos legisladores em Atenas ou na pacata cidade de Taperoaacute Relevantes para

todo o enredo esses protagonistas descobrem-se em atitude de perfeita rebeldia conscientes

das mudanccedilas advindas de suas atitudes e como heroacuteis cocircmicos satildeo tambeacutem autores de uma

saiacuteda que nem sempre pode ser compartilhada socialmente ou compreendida

O proacuteprio Suassuna admite a influecircncia muacuteltipla que sofreu de outros estilos e

gecircneros ao apresentar a peccedila por meio dos contadores de histoacuteria do Auto Portuguecircs e do

Cordel como Chicoacute Joatildeo Grilo e o palhaccedilo responsaacuteveis diretos pela orientaccedilatildeo da

audiecircncia

Diante dessa apropriaccedilatildeo e recuperaccedilatildeo dos mecanismos narrativos da Comeacutedia e

de outros gecircneros literaacuterios como o auto que apresentam um caraacuteter atemporal torna-se

importante salientar que aleacutem de construir ldquomuacuteltiplos cocircmicosrdquo ela apresenta personagens

83

natildeo universais como os que satildeo caricaturas de pessoas que viveram em Atenas em um

momento especiacutefico A obra de Aristoacutefanes potildee em cena nomes de figuras eminentes da

Greacutecia antiga como o de poliacuteticos (Cleatildeo e Lacircmaco) pensadores (Soacutecrates) e poetas

(Euriacutepides e Eacutesquilo) A referecircncia a essas personalidades bem como o diaacutelogo com a

mitologia a histoacuteria e o teatro natildeo constituiacutea um problema para a plateia de Aristoacutefanes No

entanto para noacutes leitores de outras geraccedilotildees a percepccedilatildeo de tais referecircncias natildeo eacute assim tatildeo

simples ainda que seja fundamental para a compreensatildeo da comeacutedia

Na comeacutedia aristofacircnica a simples presenccedila de Diceoacutepolis um camponecircs que vai agrave Pnix para falar contra os horrores e caos produzidos pela guerra jaacute se configura como um ato de quebra da normalidade estabelecido pelo autor que autoriza seu duplo agrave defesa da cidade O proacuteprio discurso do personagem que eacute tambeacutem em partes a fala do poeta nos revela uma intenccedilatildeo por traacutes das atitudes daquele que para ter sua paz e celebrar no campo as dioniacutesias rurais eacute marginal no plano da obediecircncia imposta pelos legisladores que lucram com o traacutegico da guerra

Indissociaacuteveis das peccedilas e da proposta autoral as marcas do traacutegico se tornam

modelos de uma tensatildeo que provoca o riso e ficam mais salientes a partir da metade do

Segundo Ato no Auto da Compadecida com a entrada do cangaceiro e de Severino do

Aracaju travestido de mendigo representando o duplo do bem o assassino impiedoso que se

disfarccedila para enganar a cidade a exemplo do que fez Diceoacutepolis em Acarnenses ao vestir-se

de Teacutelefo para tambeacutem burlar a assembleia para justificar seu acordo de paz

Marcados pela polifonia tanto o cangaceiro-mendigo quanto o agricultor-

mendigo se opotildeem aos demais personagens uma vez que entram no jogo cecircnico para roubar a

atenccedilatildeo de seus algozes No Auto da Compadecida Severino acaba provocando a morte de

todos que estatildeo na igreja Em Acarnenses Diceoacutepolis consegue convencer a assembleia Esse

caraacuteter muacuteltiplo torna-se ainda mais evidente na cena do julgamento que abordaremos no V

Ato uma vez que as accedilotildees do poeta e de seus outros cocircmicos tornam-se ainda mais bruscas

pois num inferno tragicocircmico o leitorouvinte pode perceber toda a desconstruccedilatildeo literaacuteria

tanto do espaccedilo ndash inferno ndash quanto das figuras celestiais e demoniacuteacas que sem chegar a um

acordo deixam de certa forma a cabo de espectador o ato de condenar eou absolver as almas

E nesse jogo luacutedico e didaacutetico encenado no abrir e fechar de cortinas que o teatro

aristofacircnicosuassuniano nos proporciona enquanto expectadores haacute uma visatildeo amplamente

criacutetica das accedilotildees humanas seja pelo desejo pessoal pela injuria ou pela proacutepria paroacutedia que

tatildeo bem se propotildee ao convencimento do puacuteblico

84

QUINTO ATO

85

5 O POETA VAI AO INFERNO 51 Quem fala por quem

Como esclarecido anteriormente neste ponto do corpus da tese aprofundaremos

nosso estudo para identificar as ocorrecircncias marcadas pela voz poeacutetica responsaacutevel pelas

vaacuterias atitudes didaacuteticas e criacuteticas indispensaacuteveis ao conhecimento do leitor Para tanto

faremos nossa viagem ao inframundo literaacuterio tomando como base Acarnenses e Ratildes de

Aristoacutefanes o Auto da Compadecida de Ariano Suassuna e o Auto de Barca do Inferno de

Gil Vicente por sua influecircncia na obra suassuniana

Em observaccedilatildeo importante ressalto que em Acarnenses o inferno ao qual nos

referimos seraacute estabelecido pelos horrores trazidos pela guerra cujos motivos seratildeo

questionados por Diceoacutepolis diante da Pnix 25

O caraacuteter didaacutetico do texto eacute expresso pelo proacuteprio autor no verso 499 ldquoO que eacute

justo tambeacutem eacute do conhecimento da comeacutedia Ora o que eu vou dizer pode ser caacuteustico mas

justo eacuterdquo Uma marca deste caraacuteter didaacutetico pode ser visto no discurso e nos nomes de alguns

personagens que tecircm uma significaccedilatildeo alegoacuterica como Diceoacutepolis o personagem principal

significa cidade justa

A peccedila comeccedila com Diceoacutepolis assim como Joatildeo Grilo um homem do campo

forccedilado a migrar para a cidade onde vive em condiccedilotildees precaacuterias qual aguarda a reuniatildeo da

assembleia onde o tema da discussatildeo de um tratado de paz vai ser deliberado que a nosso ver

disfarccedila-se de autor ndash evindencia-se aqui o duplo autoral ndash na Pnix ainda vazia esperando do

iniacutecio da Assembleacuteia Diceopolis explica sua experiecircncia sua dor traacutegica que se refere agrave

anguacutestia vivenciada pela falta de representaccedilatildeo de autores como Eacutesquilo considerado

obsoleto na eacutepoca da guerra com a imposiccedilatildeo da moda de Euriacutepides Na versatildeo matuta de

Pompeu a abertura do proacutelogo se reforccedila pela afirmaccedilatildeo de ali ser o momento no qual o

a(u)tor demonstra as alegrias e tristezas de Diceoacutepolis (Pompeu 2014 p01 vv 9-20)

Mas num eacute que de novo tive uma docirc de trageacutedia Na vez que eu tava abestaiadim esperando Eacutesquilo Aiacute o anunciadocirc disse ldquoTeoacutegnis faz entraacute o teu corordquo Pense numa sacudida grande no meu coraccedilatildeo Mas tive outra alegria na vez que em cima do Mosco Dexiacuteteo entrocirc e cantocirc uma beoacutecia Ainda neste ano quase morri e fiquei foi zaroim vendo

25 A Pnix eacute uma colina na parte interna da cidade de Atenas onde ocorriam as assembleias populares de entatildeo In Moura Filho Lauro Inaacutecio de Transtextualidade e hermenecircutica na comeacutedia de Aristoacutefanes O poeta como mestre da cidade 2012 166f ndash Dissertaccedilatildeo (Mestrado) ndash Universidade Federal do Cearaacute

86

Na vez que o Ceacuteris se entortocirc pra tocaacute o hino oacutertio Mas nunca desde que eu tomo banho Meus oacuteio ardero tanto cum sabatildeo Do jeito dacuteagora num dia de assembleia regulaacute De manhatildezinha oacute aiacute esta Pnix sem viva alma O pessoaacute na praccedila tagarela e pra cima e pra baixo

A Pnix sede da Assembleacuteia estava vazia e as pessoas conversando na aacutegora o

que era considera um testemunho da falta de interesse nas assembleias que o poeta atribui agrave

tendecircncia belicista do povo ateniense relutante em votar pela paz

O fato eacute que Aristoacutefanes parece se identificar com o caraacuteter de Diceopolis como

deduzido dos versos 440-445 quando ele se dirige aos espectadores apoacutes citar os versos do

telefone de Euriacutepedes personagem que ele argumentou a favor do fim da guerra diante da

Assembleia (Pompeu 2014 p16)

Eacute que tenho que achaacute que socirc um mendigo hoje Secirc quem socirc natildeo parececirc Os espectadocirc vatildeo sabecirc que socirc eu Mas os coreuta vatildeo ficaacute abestaiadim Pra eu troccedilaacute deles crsquouns palavreado EURIacutePIDES Eu dou pois com uma mente astuta tramas sultilezas

Para o autor em particular esta primeira cena na qual Diceoacutepolis deseja falar

sobre seus motivos para celebrar sua paz revela a importacircncia do campo na cidade de Atenas

O proacuteprio gecircnero da comeacutedia eacute entendido como um fenocircmeno urbano de origem agraacuteria

produto de o mesmo processo de formaccedilatildeo da polis em que este se tornou o centro

organizador do territoacuterio agraacuterio e exploradora de seus produtos

Em geral os problemas da guerra satildeo evidentes para os camponeses uma vez que

os campos aacuteticos foram devastados o que despertou o desejos para receber apoio dos

cavaleiros Assim o inferno promovido pela Guerra do Peloponeso (431-404) trazia era uma

condiccedilatildeo desoladora para a cidade e para o campo Este fato pode ser de acordo com

observaccedilatildeo de Plaacutecido (2007) percebido no discurso proferido por Peacutericles no qual satildeo

destadas as condiccedilotildees histoacutericas que diferenciaram Atenas e Esparta e justificaram taacuteticas

empregadas para a defesa

E se eles atacarem nosso territoacuterio por terra noacutes faremos uma expediccedilatildeo naval contra eles e natildeo seraacute o mesmo que uma parte do Peloponeso seja saqueada e que seja toda a Aacutetica eles natildeo seratildeo capazes de adquirir outras terras sem ter que lutar enquanto noacutes temos terras abundantes tanto nas ilhas como no continente Uma

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grande coisa eacute com efeito o domiacutenio do mar a refletir se focircssemos ilheacuteus quem seria menos inexpugnaacutevel do que noacutes Bem agora eacute necessaacuterio que raciocinando da maneira mais semelhante como se vocecirc fosse um ilheacuteu vocecirc abandone o campo e suas casas e vai defender o mar e a cidade

Diceoacutepolis teria que impressionar os legisladores convececirc-los dos recursos

possiacuteveis para a paz Para tanto ele acusou os priacutetanes confabular para prender Anfiacuteteo um

imortal que ia tente a paz como nos mostra Pompeu (2014) nos versos 56-58

DICEOacutePOLIS Oacute priacutetanes vocecircs tatildeo fazendo mal pra assembleia Arrastando o homem que queria fazecirc treacuteguas Pra noacutes e dependuraacute os escudo

O que se percebe nos versos eacute que um dos temas responsaacuteveis pela situaccedilatildeo de

caos na cidade eacute a manipulaccedilatildeo da democracia do ponto de vista de Aristoacutefanes pelas

autoridades que de alguma forma ganham com acirramento do caraacuteter beacutelico A mesma

reclamaccedilatildeo aparece com respeito aos embaixadores que segundo ele zombam do sofrimento

da cidade conforme os versos 75-76

DICEOacutePOLIS Oacute cidade de Cracircnao Tu num sente natildeo a mangaccedilatildeo dos embaixadocirc

Diceoacutepolis queixa-se do tempo que tem sido incapaz de celebrar a dioniacutesias por

causa das invasotildees espartanas Entretanto ele estaacute convencido de que a paz eacute a garantia das

celebraccedilotildees no campo e para isso decide se livrar da guerra geradora de toda maacute sorte para a

cidade como percebemos pelos o versos (266-267 201-202)

DICEOacutePOLIS Depois de seis ano falo contigo e volto feliz pracuteo meu povoado Eu tando livre da guerra e das coisa ruim Vou eacute entraacute e celebraacute as Dioniacutesia matutardquo

O coro se recusa a ouvir longos discursos como aconteceu com o Soacutecrates

platocircnico no Protaacutegoras ou os espartanos que receberam a embaixada dos jocircnios na eacutepoca da

rebeliatildeo antes das Guerras Meacutedicas

Desta forma o laconicismo se espalha entre os atenienses hostis agraves praacuteticas

retoacutericas da democracia Apesar dos ataques do coro que o acusa de querer concordar com os

inimigos Diceoacutepolis defende que os espartanos natildeo satildeo culpados de tudo

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Diceoacutepolis entatildeo assumindo o risco de morte elabora o discurso do justo do que

possa ser justo para a cidade e denuncia a retoacuterica fraudulenta dos oradores que enganaram o

povo com o sortileacutegio encantatoacuterio de um discurso mentiroso como se percebe nos versos

(vv) 497-507 DICEOacutePOLIS Num vatildeo ficaacute cum raiva homes espectador Se eu sendo um mendigo na frente dos ateniense Teja em tempo de falaacute sobre a cidade fazendo uma comeacutedia Pois o que eacute justo a comeacutedia tambeacutem conhece E eu vou falaacute coisas terriacuteve mas justa Pois desta vez num vai me caluniaacute Cleacuteon que Estrangeiros tando aqui eu falo mal da cidade Eacute que tamo soacute eacute o concurso das Leneia E os estrangeiro num tatildeo aqui nem os imposto 505 Chega nem os aliado vem das cidade Mas tamo soacute noacutes agora soacute os miacutei debuiado (POMPEU 2014 p17)

Na parte final da peccedila Diceoacutepolis estaacute reconciliado com os acarnenses e seraacute

aclamado pelo Coro como vencedor detentor justo do desfrute dos prazeres do mundo

CORO O home vence cum as palavra e convence o povo a mudaacute De ideia sobre as treacutegua Mas vamo eacute tiraacute a roupa pra passaacute pros anapesto Desde quando dirige os coro de comeacutedia o nosso mestre Num foi pra perto dos espectadocirc pra dizecirc como eacute esperto Mas foi caluniado pelos inimigo no mei dos ateniense de decisatildeo-praacute-jaacute-jaacute De fazecirc comeacutedia cum a nossa cidade e maltrataacute o povo 631 Tem que respondecirc agora pros ateniense de decisatildeo-troca-troca Diz o poeta que fez muita coisa boa pra vocecircs Impedindo vocecircs de secirc enganado demais pelas fala dos estrangeiro De gostaacute de secirc adulado e de secirc uns cidadatildeo molenga 635 Antes os embaixadocirc das cidade pra enganaacute vocecircs Primeiro chamava vocecircs de ldquocoroados de violetardquo e era soacute dizecirc isto Que por causa das coroa sentava logo tudo de rabo em peacute E se algueacutem adulasse vocecircs chamando ldquoAtenas lustrosardquo Conseguia era tudo com o ldquolustrosardquo uma qualidade das sardinha Por isso tudo aiacute eacute que ele eacute responsaacuteve de muita coisa boa pra vocecircs E por tecirc mostrado pro povo nas cidade como eacute secirc democraacutetico Por isso mermo eacute que agora trazendo das cidade pra vocecircs o tributo Vatildeo chegaacute doidim pra vecirc o poeta danado de bom Que se arrisca para dizecirc na frente dos ateniense as coisa justa 645 E assim da ousadia dele jaacute chega eacute longe a fama Quando o Rei tava testando a embaixada dos lacedemocircnio Perguntou primeiro qual das duas cidade eacute mais forte em navios Depois pra qual das duas este poeta podia dizecirc mais palavra ruim Pois estes home ele disse satildeo muito mioacute E na guerra vatildeo vencecirc muito mais por tecirc ele como conseieiro 651 Eacute por isso que os lacedemocircnio propotildee pra vocecircs a paz Mas pede Egina e num eacute esta iacutea Que importa prrsquoeles mas eacute pra apanhaacute o tal poeta Vocecircs num deixe nunca ele partir pois vai fazecirc comeacutedia da justiccedila655 E diz que vai ensinaacute pra vocecircs muita coisa boa pra que sejam feliz Sem adulaacute nem prometecirc salaacuterio nem enganaacute nem um tiquim Sem secirc perverso nem enchendo de elogio mas ensinando o mioacute

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Depois disto Cleacuteon pode eacute maquinaacute E arquitetaacute tudo contra mim Pois o bem vai taacute eacute comigo e a justiccedila Vai secirc minha aliada e nunca vatildeo me pegaacute Pra cidade sendo igual a ele Medroso e escuiambado Vem caacute Musa chamuscada (POMPEU vv 624-664 p21)

Tatildeo importante quanto a presenccedila do ator em cena a voz do poeta se concretiza

pela (re)criaccedilatildeo da palavra que aleacutem de ser o territoacuterio comum ao locutor e interlocutor

possui tambeacutem uma dimensatildeo sonora e material ao ser emitida e uma dimensatildeo semacircntica

que se constroacutei e revela-se no exerciacutecio do discurso social carregado de sentido moralizante

levado ao leitorexpectador pelo autor atraveacutes do proacuteprio poeta e de seus outros

Nesta parte do nosso trabalho verificaremos como a voz autoral seraacute levada ao

puacuteblico e quais as reais intenccedilotildees do autor por traacutes desse empreacutestimo que eleva os

personagens fazendo com que eles estejam a serviccedilo da moralidade e da defesa dos anseios da

cidade Assim a transferecircncia ou a reproduccedilatildeo de palavras de uma boca para outra apontada

por Bakhtin (1982) gera mudanccedilas de tonalidade e teraacute intenccedilatildeo e possibilidade de

(re)criaccedilatildeo de uma produccedilatildeo cultural histoacuterica e social dando aos personagens ndash porta-vozes

dos autores uma dimensatildeo coletiva que se estabelece como um viacutenculo entre o poeta e seus

outros duplicados

A ldquovoz do poetardquo torna-se fundante da estrutura do discurso e encontra ressonacircncia

na presenccedila dos vaacuterios ecos irreverentes manifestados pelas personagens que articulados

com a vontade do proacuteprio poeta representam a tomada de consciecircncia e a tentativa de se

libertar da opressatildeo social agravada por situaccedilotildees e discursos tatildeo adversos percebidos na

comeacutedia aristofacircnica e nos autos de Ariano Suassuna e Gil Vicente

Assim acredito que faz-se necessaacuterio ressaltar para uma maior compreensatildeo do

leitor que a noccedilatildeo de voz do poeta na Comeacutedia Antiga e no Auto eacute um tema de interesse

para muitos estudiosos todos que se deparam com a questatildeo reconheceram a problemaacutetica de

identificar a voz do outro poeacutetico seus alcance e praacuteticas sociais

Apesar dessa barreira aparentemente intransponiacutevel para o estudo do voz do

poeta nossa pesquisa se norteou na identificaccedilatildeo dessa voz (audiacutevel ou visiacutevel) nas comeacutedias

de Aristoacutefanes e nos autos de Ariano Suassuna e Gil Vicente explorando algumas maneiras

pelas quais a mera noccedilatildeo da voz do poeta pode ser inestimaacutevel ao analisar a comeacutedia e o auto

enfocando seu uso como uma teacutecnica cocircmica manipulada pelo dramaturgo para a realizaccedilatildeo

de seu propoacutesito que aleacutem do riso eacute a tomada de consciecircncia da plateia

90

Eacute pertinente primeiro especificar o que se entende por voz do poeta nesse

contexto tatildeo distante e ao memso tempo tatildeo proacuteximo que tem como condutor o riso Ao

longo das peccedilas de Aristoacutefanes e dos autos de Ariano Suassuna e Gil Vicente uma voz

poeacutetica pode ser ouvida indiretamente por traacutes do drama revelando o mundo no qual o poeta e

seus duplos estatildeo inseridos

Em momentos cheios de misteacuterios o puacuteblico eacute levado a acreditar que a

personagem constantemente troca de lugar com o poeta seja atraveacutes da revelaccedilatildeo de algo

comum ao entendimento do poeta criacutetico e moralizador como por exemplo em Acarnenses

onde atraveacutes de Diceoacutepolis que autorizado por Aristoacutefanes se traveste de Teacutelefo ganha natildeo

somente a voz para por em praacutetica seu plano de enganar a assembleia ao Teacutelefo constituindo-

se tambeacutem como o outro do outro do poeta cocircmico

No Auto da Compadecida compete aos juizes Jesus Virgem Maria e ao Diabo

pares antagocircnicos a representaccedilatildeo do discurso do poeta No plano dinacircmico do enredo

Ariano Suassuna reservou ao cangaceiro Severeino o travestimento de mendigo ndash seu Teacutelefo ndash

como meio de entrar na cidade sem ser reconhecido A Joatildeo Grilo e Chicoacute criticar enganar os

legisladores e representantes da sociedade pela praacutetica do discurso mentiroso

No Auto da Barca do inferno o poeta se revela assim como nas obras citadas

pelas muacuteltiplas vozes que se renovam a cada cena seja atraveacutes dos embates entre o anjo

condutor da nau que leva ao paraiacuteso e os infratores das morais terrenas ou pelas investidas de

Joanes o parvo que espera ao lado do anjo pelas almas que na Terra o desprezaram dando-

lhes a garantia de contar ao juiz as fraquezas dos embarcantes

As maneiras pelas quais Aristoacutefanes Ariano Suassuna e o proacuteprio Gil Vicente

manipulam a noccedilatildeo da voz do poeta satildeo cruciais para entender e revelar a situaccedilatildeo vivenciada

pelas sociedades postas em cena Numa arquitetura perfeita que mistura versos e denuacutencias

tanto Aristoacutefanes e Arianos Suassuna quanto Gil Vicente propositadamente parecem

convidar o puacuteblico a supor que ele estaacute ouvindo a voz direta do poeta quando de fato estatildeo

ouvindo uma voz construiacuteda pelo poeta que submete o mundo a sua proacutepria organizaccedilatildeo

social atraveacutes da linguagem marcada para expor e instaurar uma realidae imaginaacuteria como

afirma Benveniste (1979) A linguagem reproduz o mundo mas submete-o a sua proacutepria organizaccedilatildeo Satildeo logos discurso e razatildeo ao mesmo tempo que os gregos o viam Eacute pelo proacuteprio fato de ser linguagem articulada constituiacuteda por um arranjo orgacircnico de partes uma classificaccedilatildeo formal de objetos e processos () Eacute de fato na e pela linguagem como um indiviacuteduo e sociedade satildeo mutuamente determinados O homem sempre sentiu - e os poetas cantaram com frequecircncia - o poder fundador da linguagem que

91

estabelece uma realidade imaginaacuteria dupla que anima as coisas inertes faz ver o que ainda natildeo eacute devolve os desaparecidos (Traduccedilatildeo nossa) 26

Zonin (2006) afirma que de um modo significativo o discurso literaacuterio apresenta

elementos linguiacutesticos para a produccedilatildeo de efeitos expressivos importantes de serem

resgatados na leitura por meio da construccedilatildeo interdiscursiva que eacute o lugar de incorporaccedilatildeo de

um discurso em outro instante em que se daacute o funcionamento polifocircnico marcado pelas

escolhas operadas pelo locutor sobre a liacutengua enquanto contrato coletivo defendido por

Bakhtin na obra Problemas da poeacutetica de Dostoievski

Eacute justamente por esse caraacuteter plural no qual natildeo se sabe quem fala por quem que

se apresentam os poetas e suas vozes autorais refletidos nas palavras que ora enunciam pela

boca do outro ldquonas vozes que espelham um eu possuiacutedo por uma alma alheiardquo (BAKHTIN

1990 p31) Com isso autor e ator se misturam num jogo de vozes no interior do discurso

terreno onde nenhuma palavra eacute particular uacutenica ao criador senatildeo tambeacutem repleta da voz do

outro da criatura

No plano teatral os termos morte e inferno nos datildeo a dimensatildeo do alegoacuterico

proposto tanto na Comeacutedia quanto no Auto Lugares (re)criados para a projeccedilatildeo do

pensamento do autor que se manifestaraacute por meio dos discursos oriundos das esferas social

religiosa e poliacutetica que dizem do sistema democraacutetico e que potencializam na atmosfera

romanesca ares inquietantes e contraditoacuterios de uma pluridiscursividade que se circunscreve

em torno da temaacutetica como afirma Zonin (2006)

No campo social das peccedilas a dramatizaccedilatildeo das outras vozes mostra-se pela voz

do poeta que eacute usada para desenvolver a accedilatildeo cecircnica das personagens dando-lhes a

capacidade de fazer ou dizer mais do que deveriam Ao usar a noccedilatildeo da voz do poeta para

permitir que os personagens falem fora dos limites de suas persoas literaacuterias Aristoacutefanes

Ariano Suassuna e Gil Vicente criam personagens que satildeo inerentemente polifocircnicos fato que

encontra jusitificativa na teoria bakhtiniana

As semelhanccedilas entre Diceoacutepolis e a voz do poeta satildeo deliberadamente criadas e

indiscutivelmente emitidas para incentivar a identificaccedilatildeo entre personagem e poeta uma vez

26 El lenguaje reproduce el mundo pero sometieacutendolo a su propia organizacioacuten Es logos discurso y razoacuten al mismo tiempo como lo vieron los griegos Lo es por el hecho mismo de ser lenguaje articulado consistente en una disposicioacuten orgaacutenica de partes en una clasificacioacuten formal de los objetos y los procesos () Es en efecto en y por La lengua como individuo y sociedad se determinan mutuamente El hombre ha sentido siempre - y los poetas a menudo lo han cantado- el poder fundador del lenguaje que instaura una realidad imaginaria doble que anima las cosas inertes hace ver lo que auacuten no es devuelve aquiacute lo desaparecido (1979 p58)

92

que Diceoacutepolis em Acarnenses eacute o porta-voz de seu criador assim como satildeo Joatildeo Grilo no

Auto da Compadecida e Joanes (o bobo) no Auto da Barca do inferno

Um caso especiacutefico da natureza polifocircnica reside nas personagens aristofacircnicas que

permeiam algumas de suas obras e apresentam-se em outros lugares como na abertura de Ratildes

onde Dioniso eacute visto como ator espectador e leitor Dioniso

Natildeo me venhas com histoacuterias Porque eu como espectador De cada vez que assisto a habilidades dessas Satildeo anos de vida que me tiram ( Silva 2014 p36-37) Dioniso Pois estava eu na coberta do navio a ler caacute com os meus bototildees a Androcircmeda quando de repente uma nostalgia me bate ao coraccedilatildeo sabes laacute tu de que maneira (Silva 2014 p41)

Aristoacutefanes estaacute claramente pondo em cena a voz do poeta usando-a por sua vez

para dar sonoridade a outras vozes de tal maneira que a voz do poeta logicamente nos

conduziraacute a uma forma de dialogismo cocircmico

A presenccedila do poeta eacute bastante palpaacutevel natildeo necessariamente como um intrusivo eu mas muitas vezes na variedade interna natildeo homogeneizada de recursos linguiacutesticos organizados para dar voz a outras vozes e que pode ser vista como uma habilidade presente nos outros do poeta capacitados para operar de forma critica diante do contexto social (DOBROV 1995 p 35)

A noccedilatildeo da voz do poeta tambeacutem eacute uacutetil para entender as parabases aristofacircnicas

passagens onde o puacuteblico eacute diretamente abordado e o liacuteder do coro frequentemente e

temporariamente assume um papel quase-autorial como na paraacutebase das Nuvens (vv 518-

526) ou na abertura do Auto da Compadecida quando o Palhaccedilo justifica sua escolha pra

representar o poeta que naquele instante eacute tambeacutem chamado pelo autor de ldquoa grande vozrdquo

PARAacuteBASE

Espectadores vou dizer-vos com desassombro a verdade e que Dioniso que me criou natildeo deixe mentir Bem eu poderia ter vencido e ser considerado um talento no momento em que por vos ter na conta de espectadores de bom gosto vos dei a provar antes de quaisquer outros a mais perfeita das minhas comeacutedias que me custou os olhos da cara de resto Apesar disso vi-me batido e afastado por rivais casca grossa sem o ter merecido E eacute a vocecircs a gente culta por quem empreendi tatildeo dura tarefa que eu censuro (OLIVEIRA e SILVA 1991 p 73)

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PALHACcedilO Ao escrever esta peccedila onde combate o mundanismo praga de sua igreja o autor quis ser representado por um palhaccedilo para indicar que sabe mais do que ningueacutem que sua alma eacute um velho catre cheio de insensatez e de soleacutercia Ele natildeo tinha o direito de tocar nesse tema mas ousou fazecirc-lo baseado no espiacuterito popular de sua gente porque acredita que esse povo sofre eacute um povo salvo e tem direito a certas intimidades (SUASSUNA 2005 p23)

Na abertura da peccedila Auto da Compadecida Ariano Suassuna de pronto jaacute adverte

ao leitor sobre o que ele testemunharaacute sobre sua preferecircncia de ser um porta-voz palhaccedilo que

entende e seraacute ao longo da explanaccedilatildeo a voz do poeta

PALHACcedilO grande voz Auto da Compadecida O julgamento de alguns canalhas entre os quais um sacristatildeo um padre e um bispo para exerciacutecio da moralidade (SUASSUNA 2005 p15)

Sobre a passagem acima e tomando como premissa a teoria de Bakhtin (1990)

percebemos que ele (o autor) eacute a concentraccedilatildeo de vozes multidiscursivas dentre as quais deve

ressoar a sua voz As vozes autorizadas criam o fundo necessaacuterio para a voz do poeta fora do

qual satildeo imperceptiacuteveis natildeo ressoam E analisando as obras propostas no presente trabalho

devemos partir do princiacutepio que ambos os textos estatildeo permeados de outros textos e vozes

ecoantes natildeo somente a do autor mas outras vozes como daqueles que desejam a paz diante

da situaccedilatildeo de guerra ou daqueles que usam dos mais variados meacutetodos de sobrevivecircncia

frente as dificuldades vividas em suas relaccedilotildees e (con)textos sociais no sertatildeo apropriando-se

da vez e da voz do outro em diaacutelogos que por vezes satildeo quase inaudiacuteveis

De acordo com Barros (1999) nessa interaccedilatildeo promovida pelo discurso social

nenhuma palavra eacute nossa pois ela traz a perspectiva de outra voz e por meio dela e de seus

ecos(duplos) contribuiacutemos na construccedilatildeo da sociedade Assim tanto o texto aristofacircnico

quanto o suassuniano marcam a formaccedilatildeo de vaacuterios diaacutelogos de cruzamento de vozes e de

aparecimentos de duplos que se originaram em praacuteticas de linguagem diversificada

socialmente essas vozes que podem tambeacutem ter origem no gestual de cada personagem por

sua vez polemizam as accedilotildees executadas em cena ou se completam ou respondem umas agraves

outras e aos desejos de seus a(u)tores

Os textos satildeo dialoacutegicos porque resultam do embate de muitas vozes sociais podem no entanto produzir efeitos de polifonia quando essas vozes ou algumas delas deixam-se escutar ou de monofonia quando o diaacutelogo eacute mascarado e uma voz apenas faz-se ouvir (BARROS 1999 p06)

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Seguindo essa perspectiva entendemos a proposta de Barros (1999) ao afirmar

que todo texto eacute ldquotecido polifonicamente por fios dialoacutegicos de vozes que polemizam entre si

se completam ou respondem umas as outrasrdquo o que mostra que os textos escolhidos por mais

atemporais que possam parecer podem ser entrecruzados por outros textos e que se interligam

em uma ou mais vozes no mesmo texto ou seja a voz do autor interligando-se ou mesclando-

se com a voz do outro ou dos seus outros Tanto as palavras quanto agraves ideias que vecircm de outrem como condiccedilatildeo discursiva tecem o discurso individual de forma que as vozes ndash elaboradas citadas assimiladas ou simplesmente mascaradas ndash interpenetram-se de maneira a fazer-se ouvir ou a ficar nas sombras autoritaacuterias de um discurso social monologizado (BRAIT 1999 p 1415)

Assim fruto do ataque direto e pessoal tiacutepico da tonalidade vigorosa e didaacutectica

da comeacutedia aristofacircnicas a voz constitui-se como arma contra a animosidade de concorrentes

e rivais como forma de apresentar elementos indispensaacuteveis agrave educaccedilatildeo da cidade

Pretendendo obter a confianccedila do grande puacuteblico principalmente composto de verdadeiros acarnenses pois ele se disfarccedila de Teacutelefo diante dos espectadores tomando-os como cuacutemplices contra os supostos acarnenses do coro Diceoacutepolis se dirige ao puacuteblico e natildeo ao coro falando como mendigo e como poeta cocircmico (POMPEU p 30)

DICEOacutePOLIS Do mei de noacutes uns home ndash num tocirc falando da cidade Vecirc se lembram disso que num tocirc falando da cidade - Mas uns tipim imprestaacuteve de qualidade ruacuteim Sem valocirc da pioacute marca e estrangeirado hellip (ARISTOacuteFANES Acarnenses vv 515-518 ndash em versatildeo matuta para os personagens do campo POMPEU 2014)

A voz do poeta na comeacutedia de Aristoacutefanes confere ao personagem dando-lhe a

autoridade pretendida e a capacidade de fazer ou dizer mais do que o esperado A voz poeacutetica

em sua forccedila tambeacutem permite que Aristoacutefanes possa parodiar outras vozes para efeito cocircmico

criando um discurso carregado de ironia respaldado na capacidade de fazer dizer ou saber

algo que vai aleacutem da audiecircncia e que pode ser indispensaacutevel agrave Cidade

Ao usar a noccedilatildeo da voz do poeta para permitir que Diceoacutepolis fale fora dos limites

literaacuterio Aristoacutefanes cria um personagem inerentemente polifocircnico visto que assume

muacuteltiplas vozes e personagens como o Teacutelefo dramaacutetico de Euriacutepedes Diceoacutepolis passa

explicitamente a representar a voz direta do dramaturgo pondo em cena as palavras que saem

diretamente da boca de Aristoacutefanes

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Diceoacutepolis eacute a voz e a forccedila do proacuteprio argumento aristofacircnico uma vez que ele

proacuteprio se identifica como um poeta cocircmico representando tambeacutem qualquer poeta que

sofreu ataques poliacuteticos incomodado pela exploraccedilatildeo da Cidade pois ldquomesmo a comeacutedia

sabe alguma coisa sobre a verdade e a justiccedila Ao atribuir o caraacuteter muacuteltiplo a Diceoacutepolis

Aristoacutefanes acentua ainda mais seu desejo de dizer aleacutem do que a cidade esperava atraveacutes de

seu porta-voz um roceiro o anti-heroacutei conhecedor das artimanhas dos legisladores que

exploram a Cidade elemento responsaacutevel pela dinacircmica central da comeacutedia pois leva ao

puacuteblico por meio do risiacutevel as verdades necessaacuterias ao discurso justo incentivando-o ou ao

proacuteprio leitor a questionar a validade e a veracidade do jogo diante deles

Para Bergson (1987) o riso natildeo eacute apenas uma reprimenda social mas vem de um

desajuste entre a natureza primeira do homem (que eacute mutaacutevel) e uma espeacutecie de rigidez e

mecanizaccedilatildeo Essa rigidez se manifestaria tanto no niacutevel fiacutesico como no caraacuteter ou seja no

acircmbito moral e psicoloacutegico caracteriacutesticas exploradas no personagem Joatildeo Grilo onde o

risiacutevel e o cocircmico seriam uma forma de desfazer a rigidez social na tentativa de evidenciaacute-la

corrigi-la Para Suassuna (2007) o riso eacute como uma espeacutecie de puniccedilatildeo que a sociedade

confere a algo que a ameaccedila diz em seu livro Iniciaccedilatildeo agrave Esteacutetica

Desta forma o risiacutevel estaacute na inadequaccedilatildeo do comportamento humano

fiacutesicopsicoloacutegico uma vez que excede a normalidade sem causas traacutegicas Suassuna no Auto

da Compadecida nos deixa claro que ali o cocircmico surge como um alerta sobre algo que natildeo

estaacute funcionando bem nas sociedades sendo tambeacutem um instrumento revelador dos

problemas da sociedade como um todo

Atitude bem semelhante eacute do Auto que no uacuteltimo paraacutegrafo fala no Auto da

Compadecida por possuir um enredo que proporciona ao leitorespectador o riso e a dor

numa mistura de trageacutedia e comeacutedia por meio da ldquopalavrardquo (voz do poeta) que eacute dotada de

forccedila e promove sempre encontros com o leitor-ouvinte ou ouvinte-leitor levando-o a

estabelecer uma imensa teia de significados e suas relaccedilotildees reconhecimentos e interaccedilotildees no

mundo-palco de Ariano Suassuna onde ele proacuteprio cria (re)vecirc conceitos recria imagens se

subverte ao ordenado na ressonacircncia das vozes que encontram em Joatildeo Grilo o canal para

torna-se real como afirma Zumthor (2014)

A voz eacute uma subversatildeo ou uma ruptura da clausura do corpo Mas ela atravessa o limite do corpo sem rompecirc-lo ela significa o lugar de um sujeito que natildeo se reduz agrave localizaccedilatildeo pessoal Nesse sentido a voz desaloja o homem de seu corpo Enquanto falo minha voz me faz habitar a minha linguagem Ao mesmo tempo me revela um limite e me libera dele (ZUMTHOR p 81)

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[] Outra tambeacutem importante para nosso raciociacutenio aqui eacute a seguinte Escutar um outro eacute ouvir no silecircncio de si mesmo sua voz que vem de outra parte Essa voz dirigindo-se a mim exige de mim uma atenccedilatildeo que se torna meu lugar pelo tempo dessa escuta Essas palavras natildeo definiriam igualmente bem o fato poeacutetico (ZUMTHOR p 81)

Assim como feito por Diceoacutepolis a palavra-forccedila eacute tomada por Joatildeo Grilo

quando da sua chegada ao que seria a entrada do inferno Assim como um dia os homens

roubaram o fogo dos deuses Joatildeo Grilo a voz dupla do poeta detentor da fala das camadas

populares apropria-se do discurso dos poderosos a fim de que fundidos os dois surja um

texto intenso imbuiacutedo de criacuteticas sociais permeado de escaacuternio e desejo de sobrevivecircncia

No contexto de tensatildeo em que eacute apresentado Joatildeo Grilo eacute convertido a um anti-

heroacutei oprimido e no plano da eacutetica eacute um legiacutetimo malandro que usa do artifiacutecio da

malandragem como uma ferramenta autecircntica de sobrevivecircncia e de luta frente agraves

adversidades sobretudo agravequelas impostas pelos que deteacutem o poder A malandragem portanto

no seu entender natildeo constitui um problema ou pecado grave pois natildeo eacute utilizada para

engrandecimento proacuteprio ou para ascensatildeo econocircmica mas sim para a promoccedilatildeo da justiccedila

social Como podemos ler nos versos do cordelista Paulo Nunes Batista Grilo pra tudo no mundo Tinha uma definiccedilatildeo A sua filosofia Sempre lhe dava razatildeo Pois seguia este ditado Que diz ndash ldquoEstaacute perdoado Ladratildeo que rouba ladratildeordquo Vivendo embora do crime Joatildeo Grilo era caridoso Auxiliava a pobreza Soacute furtava o poderoso Roubava sempre dos nobres Matava a fome dos pobres Mostrando ser generoso (BATISTA 1958 p 28)

Como personagens piacutecaros tanto Joatildeo Grilo como Diceoacutepolis representam os

heroacuteis das obras mas suas construccedilotildees e formaccedilotildees se datildeo agraves avessas uma vez que suas

caracteriacutesticas inversas agrave de um heroacutei dispotildeem de ser aventureiro materialista desleal e de

caraacuteter duvidoso O personagem piacutecaro apresenta algumas caracteriacutesticas singulares sempre estaacute com fome nunca se sente completamente seguro Eacute o mais mortal dos mortais Aparenta natildeo ter princiacutepios morais Aparenta cortejar os poderosos mas acaba por desnudaacute-los como que involuntariamente desmascarando-lhes as franquezas Observa-se que o personagem piacutecaro se envolve em aventuras particulares que representam com fidelidade a realidade da sua condiccedilatildeo social Desta forma revela sua opiniatildeo e suas ideias desafiando as regras sociais (KOTHE 1985 p49)

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As accedilotildees das personagens tanto no Auto quanto na Comeacutedia constituem-se num

instante de ressonacircncia no qual o eu autoral passa a ser polifocircnico se projeta no outro que

tambeacutem se projeta no eu do autor demonstrando ter total conhecimento da realidade numa

dimensatildeo sonora e material pelo exerciacutecio do discurso revelador levado ao leitorexpectador

pelo autor atraveacutes de suas personagens Essa realidade se concretiza pela transferecircncia de

palavras de uma boca para outra como apontada por Bakhtin com forccedila e capacidade de

promover mudanccedilas de tonalidade e de intenccedilatildeo discursiva

Essa atitude representa uma possibilidade de (re)criaccedilatildeo de uma produccedilatildeo

cultural histoacuterica e social que supera a proacutepria noccedilatildeo de oralidade que emerge como porta-

voz de uma dimensatildeo coletiva na qual a singularidade de cada sujeito falante lhe outorga ou

recebe autoridade para agir criando um conjunto de vozes polivalentes pelas quais podemos

afirmar que o narrador passa a atuar como um poeta da voz cuja poeacutetica se inspira nas praacuteticas

sociais e nas vivecircncias de seus atores

511 Ao Hades e com riso frouxo

Em trecircs das peccedilas citadas haacute uma cena de julgamento na qual o poeta moraliza a

accedilatildeo das instituiccedilotildees bem como dos legisladores acontece no inferno ou no Hades ndash Ratildes ndash

Auto da Compadecida e Auto da Barca do Inferno a exceccedilatildeo de Acarnenses cujo cenaacuterio eacute a

Assembleia

Em Ratildes que foi presentada nas Leneias de 405 aC Aristoacutefanes lanccedila matildeo de

artifiacutecios em sua maioria cocircmicos para trazer agrave tona discussotildees literaacuterias da eacutepoca bem como

sua criacutetica social e seu discurso moralizante atraveacutes do qual resgatando-se o poeta tambeacutem

salva a cidade Como bem afirmava Ariano Suassuna a Comeacutedia Grega e o Auto Vicentino o

abasteceram de vaacuterias composiccedilotildees e em Ratildes especificamente observamos que a estrutura

serviu de base para a construccedilatildeo da cena do julgamento tanto em Suassuna quanto em Gil

Vicente

Segundo KOPELMAN (2012 p) Depois de quase um seacuteculo de apogeu o ciclo traacutegico se encerra com a morte de Soacutefocles e Euriacutepides Enquanto instituiccedilatildeo social da cidade ateniense o drama traacutegico reflete os embates e os questionamentos da polis Objetivando o espaccedilo cecircnico o drama eacute avaliado e legitimado pelos cidadatildeos nos Festivais que patrocinam as representaccedilotildees

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Em Ratildes Aristoacutefanes nos apresenta o cenaacuterio da descida para o infernoHades de um

Dioniso bufatildeo em busca de Euriacutepides como forma de tambeacutem reviver a trageacutedia Entretanto

reforccedila com isso a paroacutedia da descida de Heacutercules

O argumento da peccedila pode ser resumido da seguinte forma Dioniso desce ao Hades

para encontrar Euriacutepides morto recentemente e trazecirc-lo para a terra Atenas estaacute com falta de

poetas e Dioniso estaacute convencido de que Euriacutepides eacute o homem certo Na teatralidade

apresentada o proacuteprio deus eacute uma figura cocircmica eacute acompanhado por um escravo cocircmico e

tenta se dar ares de grandeza no mundo subterracircneo

Depois de uma viagem perigosa ao submundo Dioniso estaacute laacute com uma crise

literaacuteria em pleno andamento Euriacutepides derrotou Eacutesquilo do trono da poesia no Hades e uma

grande discussatildeo surgiu sobre ele Nesta reside o principal da accedilatildeo na peccedila Dioniso eacute

chamado para julgar os dois poetas e a disputa que eacute o cerne da comeacutedia eacute a competiccedilatildeo de

Eacutesquilo e Euriacutepides pelo trono da poesia traacutegica no Hades

Em primeiro lugar para compreender a importacircncia do agoacuten entre Eacutesquilo e

Euriacutepides dois poetas traacutegicos da polis temos que voltar novamente ao contexto do seacuteculo V

a C de Atenas A justificativa do agoacuten encontra-se na situaccedilatildeo da polis a decadecircncia de

Atenas e a ausecircncia de bons poetas jaacute que todos morreram Assim Dioniso possiacutevel alter ego

do proacuteprio Aristoacutefanes quer remediar a situaccedilatildeo entatildeo ele vai para o infernoHades

convencido a trazer de laacute Euriacutepides fazendo do agoacuten uma parte inesperada da peccedila

Aristoacutefanes apresenta de forma brilhante como personagem o proacuteprio Dioniso um

deus meio idiotizado completamente medroso mentiroso e totalmente engraccedilado um

viajante vestido de amarelo de botas mas estranhamente revestido com a pele do leatildeo de

Nemeia e empunhando um cacete como o mais macho dos heroacuteis seu irmatildeo Heacutercules

Para dar iniacutecio a sua empreitada ao lado de seu escravo Xacircntias rumo ao Hades

Dioniso procura por Heacutercules para que este o informe por qual caminho ele poderaacute seguir ateacute

sua chegada ao inferno visto que o proacuteprio Heacutercules jaacute havia realizado o mesmo percurso

No proacutelogo Dioniso explica o motivo da sua viagem Pois tal eacute o desejo que me consome por Euriacutepides (v 66)

Dioniso

Sinto falta de um poeta de talento Eacute que uns jaacute natildeo existem e os que existem natildeo

prestam (vv 72-72)

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Nos versos seguintes Dioniso prepara com antecedecircncia uma funccedilatildeo de juiz uma

vez que emite sua opiniatildeo sobre os outros poetas Iofonte Agatatildeo Xecircnocles Soacutefocles

Euriacutepides e os jovens poetas (vv78-83) Dioniso Isso natildeo pelo menos antes de tomar Iofonte agrave parte a soacutes longe do Soacutefocles para testar de que eacute que ele eacute capaz Aliaacutes o Euriacutepides que eacute um aldrabatildeo haacute-de dar por paus e por pedras para se raspar comigo para aqui Enquanto o outro que caacute era um bonacheiratildeo haacute-de continuar laacute em baixo o mesmo bonacheiratildeo

Como qualquer heroacutei eacutepico Dioniso na peccedila eacute apresentado como um viajante eacutepico

capaz de feitos heroacuteicos seguido de seu escravo e companheiro Xacircntias que protagonizaraacute ao

lado de seu mestre boa parte das cenas cocircmicas como nos coloca Silva (2014 p 34-39) ao

descrever a cena na qual Dioniso a peacute estaacute acompanhado de um escravo Xacircntias montado

num burro e carregando ao ombro as bagagens vai agrave procura de Heacutercules

Xacircntias Oacute patratildeo e se eu mandasse uma daquelas bocas do costume que sempre fazem rir os espectadores Dioniso Agrave vontadinha a que quiseres menos lsquoestou apertadorsquo Dessa poupa-nos que ateacute jaacute daacute voacutemitos Xacircntias E se fosse entatildeo uma outra daquelas piadas finas Dioniso Desde que natildeo seja lsquoestou agrave rascarsquo Xacircntias Qual haacute-de ser entatildeo Uma de escachar a rir Dioniso Tudo bem vai em frente Haacute soacute aquela famosa livra-te de me vires para caacute com essa Xacircntias Ah natildeo nem por sombras Este que aqui tenho natildeo bolas Quem o carrega sou eu Dioniso Mas carregas como se tu proacuteprio eacutes carregado por outro Xacircntias Tanto natildeo sei Agora que aqui o meu ombro estaacute apertadinho de todo laacute isso estaacute Dioniso Pois entatildeo jaacute que dizes que o burro te natildeo serve para nada eacute a tua vez de seres tu a pegar no burro e a carregar com ele Dioniso Salta daiacute malandro Que depois desta caminhada caacute estou eu diante da porta aonde para comeccedilar me propunha vir Ei moccedilo Oacute moccedilo Moccedilo

100

Heacutercules Quem eacute Seja laacute quem for mandou-se aos coices agrave porta que nem um centauro Ei Explica-me laacute Que raio de ideia vem a ser esta Dioniso Oacute amigo chega aqui Preciso de falar contigo Heacutercules Mas eacute que natildeo consigo espantar o riso ao ver uma pele de leatildeo por cima de um vestido amarelo Que ideia se te meteu na cabeccedila O que fazem juntos um par de botas de senhora e um cacete8 Por que paragens tens tu andado Dioniso Andei embarcado agraves ordens do Cliacutestenes Heacutercules E bateste-te no combate naval Dioniso Bati pois Navios inimigos metemos no fundo uma boa duacutezia deles Heacutercules Vocecircs os dois Dioniso Sim claro Xacircntias Esta ateacute me deixou de olhos arregalados Dioniso Pois estava eu na coberta do navio a ler caacute com os meus bototildees a Androacutemeda quando de repente uma nostalgia me bate ao coraccedilatildeo sabes laacute tu de que maneira Heacutercules Uma nostalgia te bate ao coraccedilatildeo De que dimensatildeo Dioniso Coisa pequena pela medida de Moacutelon Heacutercules Por uma mulher Dioniso Nada disso Heacutercules Por um rapazinho entatildeo Dioniso Nem pensar Heacutercules Por um homem se calhar Dioniso Ai ai Heacutercules Com que entatildeo de panelinha com o Cliacutestenes hem Dioniso Deixa-te de gozo mano que quem se vecirc nelas sou eu Tal eacute a paixatildeo que me devora Heacutercules Paixatildeo Que paixatildeo maninho Dioniso Nem te sei dizer Mas enfm vou tentar explicar-ta por analogia Jaacute alguma vez sentiste assim um desejo suacutebito de sopa Heacutercules

101

De sopa Bolas mil vezes na vida Dioniso E entatildeo faccedilo-me entender ou eacute preciso mais explicaccedilotildees Heacutercules Quanto agrave sopa natildeo Percebi perfeitamente Dioniso Pois tal eacute o desejo que me consome por Euriacutepides Heacutercules Como assim Por Euriacutepides o falecido Dioniso E natildeo haacute quem me tire da cabeccedila a ideia de ir agrave procura dele Heacutercules O quecirc Ao Hades laacute em baixo Dioniso Sim pois e mais abaixo ainda se um tal lugar existir Heacutercules Com que intenccedilatildeo Dioniso Sinto falta de um poeta de talento Eacute que uns jaacute natildeo existem e os que existem natildeo prestam Heacutercules Como assim Entatildeo o Iofonte natildeo estaacute vivo Dioniso Essa eacute ateacute a uacutenica coisa de jeito que por aiacute anda e mesmo assim tenho duacutevidas Porque ateacute sobre esse assunto me falta saber bem o que se passa Heacutercules E porque natildeo trazeres Soacutefocles de preferecircncia a Euriacutepides se tens de trazer algueacutem laacute de baixo Dioniso Isso natildeo pelo menos antes de tomar Iofonte agrave parte a soacutes longe do Soacutefocles para testar de que eacute que ele eacute capaz Aliaacutes o Euriacutepides que eacute um aldrabatildeo haacute-de dar por paus e por pedras para se raspar comigo para aqui Enquanto o outro que caacute era um bonacheiratildeo haacute-de continuar laacute em baixo o mesmo bonacheiratildeo Heacutercules E o Aacutegaton por onde anda ele Dioniso Pocircs-se a mexer foi um ar que lhe deu Um bom poeta que deixou saudades nos amiguinhos dele Heacutercules Para que canto do mundo coitado Heacutercules Ora deixa caacute ver por qual deles hei-de comeccedilar Qual haacute-de ser Haacute um que parte da corda e do banco Enforca-te Dioniso Vira essa boca para laacute Eacute um sufoco esse que dizes Heacutercules Haacute tambeacutem um outro um atalho a direito pisado que eacute um mimo que passa pelo almofariz Dioniso Eacute a cicuta que queres dizer

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Heacutercules Ora nem mais Dioniso Esse eacute frio de cortar agrave faca mesmo Faz logo enregelar as canelas Heacutercules Queres que te diga um raacutepido e sempre a descer Dioniso Corsquoos diabos esse sim que como andarilho sou um desastre Heacutercules Pois bem vai ateacute ao Ceramico Dioniso E depois Heacutercules Sobe agravequela torre alta que laacute estaacute Dioniso E o que eacute que eu faccedilo Heacutercules Assiste laacute do alto agrave largada da corrida dos archotes E depois quando o puacuteblico gritar lsquopartidarsquo tu partes laacute de cima tambeacutem Dioniso Para onde Heacutercules Caacute para baixo Dioniso Assim dou mas eacute cabo dos miolos Natildeo natildeo vou seguir por esse caminho de que falas Heacutercules Entatildeo qual haacute-de ser Dioniso Aquele mesmo por onde tambeacutem tu outrora laacute chegaste Heacutercules Soacute que esse eacute uma maccediladoria de marinharia Para comeccedilar vais dar a um lago enorme sem fundo Dioniso E depois como eacute que eu atravesso Heacutercules Num barquinho assim pequenininho um velho barqueiro vai-te atravessar por dois oacutebolos a passagem

Ao seguir as informaccedilotildees dadas por Heacutercules Dioniso encontra o barqueiro

Caronte que cobra dois oacutebolos para atravessaacute-lo pelo pacircntano Durante esta travessia Dioniso

discute com as Ratildes que habitam o ambiente porque o barulho recorrente de seus

brequequequequex coax coax o deixam irritado

No inferno Dioniso eacute ameaccedilado de morte pelo Eacuteaco (juiz dos mortos) que o

confunde com Heacutercules jaacute que Dioniso estava disfarccedilado e o acusa-o de ter levado o catildeo de

guarda do inferno(vv605-608)

103

Eacuteaco Prendam-mo depressa este ladratildeo de catildees para que leve o corretivo que merece Vamos despachem-se Dioniso A coisa estaacute torta para algueacutem Xacircntias Vatildeo agravequela parte Alto laacute Eacuteaco Ai eacute queres luta Oacute Camelo oacute Macacatildeo oacute Peidoso Cheguem caacute e faccedilam frente a este gajo

Assim tem-se iniacutecio a algo que seria o agoacuten entre os poetas Euriacutepides e Eacutesquilo (vv 860-870)

Euriacutepides Pois por minha parte estou pronto ndash e longe de mim escusar-me ndash a morder ou a ser mordido primeiro como ele quiser nos diaacutelogos nos cantos nas fibras nevraacutelgicas da trageacutedia e ndash caramba ndash ateacute no Peleu no Eacuteolo no Meleagro e principalmente no Teacutelefo Dioniso (a Eacutesquilo) E tu o que pretendes fazer Diz laacute Eacutesquilo Eacutesquilo O que eu queria era natildeo estar metido nesta discussatildeo Porque um concurso entre noacutes os dois nunca eacute imparcial Dioniso Como assim Eacutesquilo Eacute que a minha poesia natildeo morreu comigo enquanto a dele bateu as botas com ele logo ele pode recitaacute-la aqui Mas enfim jaacute que assim o entendes natildeo haacute outra soluccedilatildeo Dioniso O incenso e o fogo vamos laacute Quero fazer uma prece antes de me assumir como aacuterbitro das vossas subtilezas para que atue com toda a competecircncia de que for capaz E vocecircs acompanhem-me com um canto agraves Musas A entrada do Coro acirra a tomada de decisatildeo por parte de Dioniso (vv875) Coro Donzelas nove filhas de Zeus Musas divinas que do alto olhais os espiacuteritos subtis e engenhosos dos poetas cinzeladores de sentenccedilas agora que eles se confrontam com golpes estudados e se digladiam com argumentos sinuosos observai a potecircncia 880 destas duas bocas tatildeo haacutebeis em produzir palavreado e serradura de versos Pois estaacute iminente o grande concurso do talento Dioniso (a ambos os poetas) (vv 885 - 895) Faccedilam tambeacutem a vossa oraccedilatildeo vocecircs os dois antes de recitarem os vossos versos Eacutesquilo Demeacuteter tu que alimentaste o meu espiacuterito faz com que eu seja digno dos teus misteacuterios Dioniso (a Euriacutepides) Agora tu toma laacute tambeacutem o incenso e faz uma oferenda Euriacutepides Natildeo obrigado Satildeo outros os deuses da minha devoccedilatildeo Dioniso Deuses exclusivos de cunhagem nova Euriacutepides Absolutamente

104

Dioniso Pois bem invoca entatildeo os teus deuses privativos Euriacutepides Eacuteter que me alimentas Eixo da minha liacutengua Inteligecircncia e voacutes Narinas de faro penetrante fazei com que eu consiga refutar com eficaacutecia os argumentos que me surjam pela frente Coro (895-900) Pois bem tambeacutem noacutes estamos desejosos de ouvir estes dois geacutenios e de ver que batalha de argumentos vocecircs vatildeo esgrimir Vamos decircem iniacutecio agrave disputa A liacutengua de um e de outro eacute viperina o acircnimo natildeo lhes carece de audaacutecia nem o espiacuterito de agilidade Pode de um esperar-se que tenha uma tirada de espiacuterito limada com requinte do outro que arranque as palavras pela raiz que agarre nelas e desanque o inimigo levantando uma poeirada de versos Corifeu (aos dois poetas) (vv905 -912) Vamos depressa eacute hora de cada um se pronunciar Mas tratem de usar uma linguagem de bom gosto nada de floreados nem dessas patacoadas acessiacuteveis a qualquer um Euriacutepides Muito bem Quanto a mim e ao que valho como poeta eacute mateacuteria que deixo para depois Para jaacute vou desmascarar este sujeito como um parlapatatildeo e um vigarista e revelar por que processos ele fazia o ninho atraacutes da orelha de um puacuteblico de imbecis criado na escola de Friacutenico Antes de mais nada sentava uma personagem solitaacuteria coberta de veacuteus um Aquiles ou uma Nigraveobe por exemplo sem lhe mostrar a cara ndash um perfeito alarde de trageacutedia Quanto a tugir ou mugirnem poacute Dioniso (vv913) (a Eacutesquilo) Era isso sim era isso mesmo Dioniso (vv922- 930) Olha o safado Como ele fazia de mim parvo Porque te torces todo e me potildees essa cara de caso Euriacutepides Eacute por eu o desmascarar A seguir depois destas patacoadas quando a peccedila jaacute ia a meio saiacutea-se com uma duacutezia de mastodontes daquele palavreado de sobrolho e penacho uns papotildees de meter medo desconhecidos dos espectadores Eacutesquilo Com mil demoacutenios Dioniso Cala-te Euriacutepides Que se percebesse nem uma palavrinha para amostra Dioniso Natildeo ranjas os dentes Euriacutepides Eram soacute Escamandros trincheiras e gravadas nos escudos aacuteguias-grifos forjadas em bronze e palavras montadas a cavalo que natildeo era faacutecil digerir

Apoacutes estas discussotildees nas quais as obras literaacuterias e seus proacutelogos satildeo avaliados

Dioniso eacute forccedilado a decidir rapidamente sobre quem seraacute o vencedor do concurso e decide

pesar os versos de cada um na balanccedila O prato de Eacutesquilo pesou mais entatildeo Dioniso

105

novamente pressionado por Hades se pronunciou dizendo que resgataria do inferno Eacutesquilo

por sua visatildeo ciacutevica e educadora da cidade

No entanto o que foi realmente decisivo foi o efeito moral da poesia isto eacute a

capacidade do poeta de tornar as pessoas melhores E eacute esta dimensatildeo moral da poesia que fez

Dioniso escolher Eacutesquilo porque sua proposta era um plano de accedilatildeo contra o que

representava Euriacutepides A vitoacuteria de Eacutesquilo nos diz que a funccedilatildeo social da poesia eacute mais

importante do que qualquer outro aspecto para a polis Assim Aristoacutefanes buscou natildeo apenas

divertir o puacuteblico em sua representaccedilatildeo mas tambeacutem conscientizar as pessoas de que atraveacutes

de mudanccedilas no modelo poliacutetico o antigo esplendor poderia ser restaurado para Atenas

Importante notar que seja em Acarnenses Ratildes Auto da Compadecida ou no Auto

da Barca do Inferno os autores mantiveram uma unidade teatral atemporal o julgamento A

cena do julgamento nas peccedilas referidas marca sensivelmente a preocupaccedilatildeo dos autores em

salvar a cidade e moralizar suas instituiccedilotildees quer seja em Atenas Portugal ou Taperoaacute

Outro fato que deve ser considerado do ponto de vista literaacuterio eacute a divisatildeo das

peccedilas a partir da ideia de julgar para salvar visto que todas estatildeo dividas em duas partes

sendo a primeira burlesca e fantaacutestica tendo como mote a viagem ao mundo dos mortos ndash

encontro com o encourado ndash Barqueiroanjo democircnio ndash poetas mortos e a paroacutedia literaacuteria do

Teacutelefo de Euriacutepides na qual o teatro vai agrave cidade e a segunda com feiccedilatildeo moral e tambeacutem

literaacuteria seja pela retomada da consciecircncia das injusticcedilas (mesmos mortos) pela

condenaccedilatildeoabsolviccedilatildeo ou em Acarnenses pela delaccedilatildeo na Assembleia de toda a maacute sorte

pela qual passa o povo devido agrave guerra

52 O julgamento O riso a morte e o descanso do (in)justo

A ideia de justiccedila sem duacutevida ocupou um lugar privilegiado na ponderaccedilatildeo dos

antigos gregos Desvendando o seu significado determinando o seu alcance especificando o

seu papel - poliacutetico e ou social regulando a sua praacutetica esta foi sempre uma preocupaccedilatildeo

das mais genuiacutenas

Nesta parte do nosso trabalho refletiremos sobre como a ideia de justiccedila tambeacutem

encontra no Auto e na Comeacutedia grega uma expressatildeo proacutepria Atenta aos valores de natureza

social eacutetica e poliacutetica tanto a Comeacutedia quanto o Auto proclamam abertamente a prerrogativa

de saber o que eacute verdadeiramente justo

106

No Auto da Compadecida e no Auto da Barca do Inferno obras para agraves quais

voltaremos nossa atenccedilatildeo ceacuteu e inferno se misturam na promoccedilatildeo da justiccedila e encontram no

humano e no divino espaccedilos para a construccedilatildeo do que seria justo e bem medido ao ser

humano

Nesse cenaacuterio conturbado e perturbador morte e vida se apresentam natildeo de forma

antagocircnica mas dependentes ligadas ao natural do humano viver os prazeres sem a devida

preocupaccedilatildeo com o dia do juiacutezo final no qual todos seratildeo responsabilizados pelos atos

cometidos pendentes para o bem ou para o mal

A morte eacute um fato universal que desde tempos imemoriais tem preocupado a

humanidade Eacute possiacutevel que todas as culturas tenham dedicado rituais simboacutelicos para tentar

sobreviver agrave morte uma realidade tatildeo justa que afeta a todos igualmente Rico pobre

Soberanos e mendigos ningueacutem se livra de ser inerte Embora o corpo pereccedila muitas

sociedades tecircm sido obstinadas em tentar salvar a alma do falecido ou pelo menos

encomendaacute-las a um julgamento (in)justo

No Auto da Compadecida a morte vinculada a Joatildeo Grilo estaacute envolvida em um

clima de tensatildeo entre a comeacutedia e a trageacutedia Ateacute mesmo no momento da morte apoacutes o tira

dado pelo comparsa de Severino Joatildeo faz graccedila diante da morte ldquoDeixe de latomia Chicoacute

parece que nunca viu um homem morrer Nisso tudo eu soacute lamento eacute perder o testamento do

cachorro (SUASSUNA 1995 p133)

A cena do julgamento no Auto da Compadecida eacute uma recriaccedilatildeo advinda do

imaginaacuterio popular cordelesco que vecirc na morte a possibilidade de se encontrar com o divino

mesmo sabendo que a entrada para o ceacuteu purgatoacuterio ou inferno estaacute ligada a um acerto de

contas um julgamento Ariano Suassuna ao apresentar essa imagem resgata os grandes autos

medievais que tinham uma preocupaccedilatildeo religiosa como o Auto da Barca do Inferno de Gil

Vicente obra na qual se verifica que haacute embora de modo diferente da obra de Suassuna a

figura do Diabo acusando cada um daqueles que aparecem indicando para qual barca devem

ir

No Auto da Barca do Inferno tambeacutem conhecido como o Auto da Moralidade o

termo morte foi associado por Gil Vicente ao discernimento entre o Bem e o Mal que se

reflete como elemento necessaacuterio para a expiaccedilatildeo dos pecados Assim a locuccedilatildeo latina

castigat ridendo mores encontra base na temaacutetica da equitaccedilatildeo dos costumes do castigado

sendo representada na vida pelo teatro de forma a caracterizar certos aspectos da sociedade

portuguesa o que tambeacuterm favorece uma anaacutelise mais vivamente sagaz com visatildeo criacutetica de

107

alguns personagens tiacutepicos representantes de certos estratos sociais e espectros

socioeconocircmicos muito variados presentes em Aristoacutefanes e Ariano Suassuna

Aleacutem de grande influecircncia sobre da literatura de Ariano Suassuna a obra

vicentina representa o encontro entre a heranccedila medieval e o espiacuterito renascentista

sagazmente criacutetico revelador e delatoacuterio da imoralidade institucional e dos viacutecios da

sociedade incapaz de assumir a responsabilidade dos seus atos e da sua conduta como se

pode constatar no diaacutelogo inicial entre o Diabo e o Fidalgo na cena II no Auto da Barca do

Inferno na qual o autor nos prepara para o julgamento dos passageiros das naus

Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz

FIDALGO Esta barca para onde vai Que assim estaacute apercebida DIABO Vai para a ilha perdida E haacute de partir daqui a nada FIDALGO E para laacute vai a senhora DIABO Sou um senhor Ao vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isto um corticcedilo DIABO Porque a vedes daiacute de fora FIDALGO Pois sim e por que terra passais DIABO Para o inferno senhor FIDALGO Uma terra sem-sabor DIABO O quecirc Mas tambeacutem disso zombais FIDALGO E que passageiros achais Para tal embarcaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo Para ir no nosso caishellip FIDALGO Parece-te a ti assim DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que deixo na outra vida Quem reze sempre por mim DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi Tu que viveste a teu prazer

108

Pensando caacute guarnecer (salvares-te) Por aqueles que laacute rezam por ti Embarcai agora embarcai Que haveis de ir nas traseiras Mandai meter a cadeira Como tambeacutem passou o vosso pai (Gil Vicente p7-11)

Pela passagem acima fica clara a intenccedilatildeo do poeta em preparar o leitor para a

carga de zombaria que seraacute utilizada como recurso estiliacutestico necessaacuterio capaz de impor a

moralidade perante um conjunto significativo de tipos cocircmicos que post mortem requerem

suas entradas no ceacuteu Gil Vicente conhecedor das fragilidades de sua sociedade apresenta em

seu inferno cocircmico tipos caracteriacutesticos que podem perfeitamente ser ajustados agraves literaturas

mais atuais

Satildeo personagens como o fidalgo o onzeneiro o frade o sapateiro a alcoviteira o

judeu o corregedor ou o procurador entre outros os quais o poeta decide tornar natildeo soacute alvo

de galhofa geral mas tambeacutem um exemplo a natildeo seguir expondo-os explicitamente diante do

julgamento final despojados de todas as riquezas e possessotildees terrenas

521 Aqui eacute o inferno vocecirc pode brincar

Joatildeo Joatildeo Morreu Ai meu Deus morreu pobre de Joatildeo Grilo Tatildeo amarelo tatildeo safado e morrer assim Que eacute que eu faccedilo no mundo sem Joatildeo Joatildeo Joatildeo Natildeo tem mais jeito Joatildeo Grilo morreu Acabou-se o Grilo mais inteligente do mundo Cumpriu sua sentenccedila e encontrou-se com o uacutenico mal irremediaacutevel aquilo que eacute a marca de nosso estranho destino sobre a terra aquele fato sem explicaccedilatildeo que iguala tudo o que eacute vivo num soacute rebanho de condenados porque tudo o que eacute vivo morre (ARIANO SUASSUNA 2005 p113)

A cena transcrita na citaccedilatildeo eacute o iniacutecio do que consideramos como o argumento

teatral que motiva o riso no julgamento das almas diferente do resto da obra pois as situaccedilotildees

que satildeo abordadas neste ato revelam em primeiro plano um tom traacutegico mas ao contraacuterio

pelo desvio que encerra a representaccedilatildeo causam natildeo o temor ou pena mas o riso e a reflexatildeo

A exemplo de Aristoacutefanes e Gil Vicente Suassuna utiliza dos expedientes da

paraacutebase e do coro como seus proacuteprios lugares ideoloacutegicos representando o locus privilegiado

onde podemos traccedilar o efeito de suas poliacuteticas e particularmente o teor criacutetico que se

apresenta nos versos dedicados ao coro encenado pelo personagem-palhaccedilo Na verdade o

significado do discurso moralizante e humoriacutestico introduzido pelo coreuta circense eacute sempre

orientado para um corpo social ou para certos grupos e quando se expressa com tom poeacutetico

de uma comeacutedia eacute sempre uma expressatildeo dirigida a um grupo especiacutefico instituiccedilotildees de uma

dada realidade

109

No caso do tribunal celeste ou na travessia das naus essa realidade move e

denuncia as cenas que se desenvolvem pelo intenso debate entre o Anjo ou o Diabo com seus

hoacutespedes e no caso do Auto da Compadecida do anti-heroacutei Joatildeo Grilo com os mortos e seres

divinizados a partir do proacutelogo estabelecido pela entrada do Palhaccedilo que adverte ao puacuteblico

sobre o assunto posto justificando a dupla funccedilatildeo apresentar o argumento da peccedila e

estabelecer a captatio beneuolentiae 27 clamando pela atenccedilatildeo da plateia dando o tom cocircmico

desde o iniacutecio para prender a atenccedilatildeo da assistecircncia sobre os ensinamentos que ali seratildeo

apresentados PALHACcedilO Que bem precisada anda disso Saia e vaacute rezar laacute fora Muito bem com toda essa gente morta o espetaacuteculo continua e teratildeo oportunidade de assistir seu julgamento Espero que todos os presentes aproveitem os ensinamentos desta peccedila e reformem suas vidas se bem que eu tenha certeza de que todos os que estatildeo aqui satildeo uns verdadeiros santos praticantes da virtude do amor a Deus e ao proacuteximo sem maldade sem mesquinhez incapazes de julgar e de falar mal dos outros generosos sem avareza oacutetimos patrotildees excelentes empregados soacutebrios castos e pacientes E basta se bem que seja pouco Muacutesica (ARIANO SUASSUNA 2005 p117)

O desenvolvimento do julgamento traz elementos superiores e sobrenaturais

comuns na trageacutedia grega que Suassuna representa ao modo nordestino como o Diabo o

Encourado Jesus e Maria A presenccedila dessas divindades na obra que aliaacutes se apresentam a

partir do imaginaacuterio maacutescara do psicoloacutegico aleacutem de suscitar a reflexatildeo sobre os atos que o

homem comete em vida manifesta a denuacutencia que o autor imbrica no texto revelando que de

alguma forma a sociedade seraacute julgada e poderaacute sofrer puniccedilotildees apontando desta forma o

caraacuteter cocircmico e moralizador do auto como vemos abaixo DEMOcircNIO Calem-se todos Chegou a hora da verdade JOAtildeO GRILO Entatildeo jaacute sei que estou desgraccedilado porque comigo era na mentira DEMOcircNIO Vocecircs agora vatildeo pagar tudo o que fizeram ENCOURADO Vamos aos fatos Que vergonha Todos tremendo Tatildeo corajosos antes tatildeo covardes agora O Senhor Bispo tatildeo cheio de dignidade o padre o valente Severino E vocecirc o Grilo que enganava todo o mundo tremendo como qualquer safado JOAtildeO GRILO Que eacute que posso fazer Jaacute disse mais de cem vezes a mim que natildeo tremesse e tremo ENCOURADO

27 Captatio benevolentiae eacute uma categoria retoacuterica que visa capturar a boa vontade do puacuteblico no iniacutecio de um discurso (exoacuterdio prooemium) ou apelo No entanto o termo teacutecnico natildeo eacute encontrado nos manuais retoacutericos da Antiguidade Latinafoi usado pela primeira vez por Boeacutecio (falecido em 524 EC) em seu comentaacuterio sobre os escritos de Ciacutecero Literalmente significa atrair a benevolecircncia Refere-se a uma estrateacutegia usada quando o autor se dirige ao puacuteblico leitor visando conquistar a sua simpatia In E-Dicionaacuterio de Termos Literaacuterios (EDTL) coord de Carlos Ceia ISBN 989-20-0088-9 lthttpwwwedtlcomptgt consultado em 02-09-2018

110

E tem razatildeo porque o que vai lhe acontecer eacute coisa muito seacuteria Eacute engraccedilado como vocecircs empregam agraves vezes a palavra exata sem terem consciecircncia perfeita do fato O que vocecirc sentiu foi exatamente um arrepio de danado Leve a todos para dentro SEVERINO Ai meu Deus vou pagar minhas mortes no inferno BISPO Senhor democircnio tenha compaixatildeo de um pobre Bispo ENCOURADO Ah compaixatildeo Como pilheacuteria eacute boa Vamos todos para dentro Para dentro jaacute disse Todos para o fogo eterno para padecer comigo BISPO Ai Leve o Padre PADRE Ai Leve o sacristatildeo SACRISTAtildeO Ai Leve o Severino JOAtildeO GRILO Parem parem Acabem com essa molecagem JOAtildeO GRILO Acabem com essa molecagem Diabo dum barulho danado Eacute assim eacute Eacute assim eacute ENCOURADO Assim como JOAtildeO GRILO Eacute assim de vez Eacute soacute dizer ldquopra dentrordquo e vai tudo Que diabo de tribunal eacute esse que natildeo tem apelaccedilatildeo ENCOURADO Eacute assim mesmo e natildeo tem para onde fugir JOAtildeO GRILO Sai daiacute pai da mentira Sempre ouvi dizer que para se condenar uma pessoa ela tem de ser ouvida BISPO Eu tambeacutem Boa Joatildeo Grilo PADRE Boa Joatildeo Grilo MULHER Boa Joatildeo Grilo PADEIRO Vocecirc achou boa MULHER Achei PADEIRO Entatildeo eu tambeacutem achei Boa Joatildeo Grilo SEVERINO Eacute isso mesmo e eu vou apelar para Nosso Senhor Jesus Cristo que eacute quem pode saber ENCOURADO Besteira maluquice (ARIANO SUASSUNA 2005 p118-124)

Na defesa dos mortos Joatildeo Grilo reveste-se de autoridade e encarna o tiacutepico heroacutei

das epopeias dotado de coragem e bravura que natildeo desiste de viver mesmo depois da morte

persistindo no seu intuito de vencer Joatildeo ultrapassa o previsto e decide se vestir natildeo com as

roupas do rei Miacutesio mas de sua feacute estrateacutegia inconteste para alcanccedilar a intercessatildeo da matildee de

Jesus figura justa e poderosa capaz de levaacute-lo agrave absolviccedilatildeo PADRE

111

Acho que nosso caso eacute sem jeito Joatildeo Em Deus natildeo existe contradiccedilatildeo entre a justiccedila e a misericoacuterdia Jaacute fomos julgados pela justiccedila a misericoacuterdia diraacute a mesma coisa (ARIANO SUASSUNA 2005 p 142)

JOAtildeO GRILO E difiacutecil quer dizer sem jeito Sem jeito por quecirc Vocecircs satildeo mesmo uns pamonhas qualquer coisinha estatildeo arriando Natildeo vecirc que tiveram tudo na terra Se tivesse tido que aguentar o rojatildeo de Joatildeo Grilo passando fome e comendo macambira na seca garanto que tinha mais coragem Quer ver eu dar um jeito nisso Padre Joatildeo (ARIANO SUASSUNA 2005 p 142)

Autorizado ou natildeo por Suassuna em algumas passagens o certo eacute que tanto Joatildeo

Grilo como Chicoacute inconfundiacuteveis em seus quiprocoacutes nos convidam pelos tons acentos e

ritmos compassados do cordel a uma experiecircncia uacutenica de denuacutencia do social bem como

reveladora das caracteriacutesticas mais comuns aos habitantes de Taperoaacute espaccedilo universal da

recriaccedilatildeo promovida pelo bardo nordestino

52 2 A Voz a esperteza e a malandragem do poeta Nem tudo que eacute vivo morre

(Anti)Heroacutei ou Heroacutei Ser ou natildeo ser quem decide eacute o leitor O fato eacute que

ligado aos misteacuterios divinos por uma feacute inabalaacutevel Joatildeo Grilo mesmo diante de tantas adversidades busca forccedilas em suas oraccedilotildees e novamente cheio de esperteza e sabedoria invoca atraveacutes da voz do autor a Compadecida por meio dos versos de cordel de Canaacuterio Pardo para dar iniacutecio a sua defesa

JOAtildeO GRILO

Ah isso eacute comigo Vou fazer um chamado especial em verso Garanto que ela vem querem ver (ARIANO SUASSUNA 2005 p 142) Valha-me Nossa Senhora Matildee de Deus de Nazareacute A vaca mansa daacute leite A braba daacute quando quer A mansa daacute sossegada A braba levanta o peacute Jaacute fui barco fui navio Mas hoje sou escaler Jaacute fui menino fui homem Soacute me falta ser mulher () Valha-me Nossa Senhora Matildee de Deus de Nazareacuterdquo (ARIANO SUASSUNA 2005 p 144)

Usando de sua malandragem Joatildeo Grilo se garante por essa invocaccedilatildeo trazendo a

Compadecida para o julgamento que inicia um debate contra o Diabo para evitar sua

condenaccedilatildeo A COMPADECIDA

112

E para que foi que vocecirc me chamou Joatildeo JOAtildeO GRILO Eacute que esse filho de chocadeira quer levar a gente para o inferno Eu soacute podia me pegar com a senhora mesmo ENCOURADO As acusaccedilotildees satildeo graves Seu filho mesmo disse que haacute tempo natildeo via tanta coisa ruim junta A COMPADECIDA Ouvi as acusaccedilotildees Estaacute bem vou ver o que posso fazer JOAtildeO GRILO Estaacute vendo Isso aiacute eacute gente e gente boa natildeo eacute filha de chocadeira natildeo Gente como eu pobre filha de Joaquim e de Ana casada com um carpinteiro tudo gente boa MANUEL E agora noacutes Joatildeo Grilo Por que sugeriu o negoacutecio para os outros e ficou de fora JOAtildeO GRILO Porque modeacutestia agrave parte acho que meu caso eacute de salvaccedilatildeo direta ENCOURADO Era o que faltava E a histoacuteria que estava preparada para a mulher do padeiro MANUEL Eacute Joatildeo aquilo foi grave JOAtildeO GRILO E o senhor vai dar uma satisfaccedilatildeo a esse sujeito me desgraccedilando para o resto da vida Valha-me Nossa Senhora matildee de Deus de Nazareacute jaacute fui menino fui homem A COMPADECIDA Soacute lhe falta ser mulher Joatildeo jaacute sei Vou ver o que posso fazer Lembre-se de que Joatildeo estava se preparando para morrer quando o padre o interrompeu (ARIANO SUASSUNA 2005 p 146-158)

Como vemos eacute no cenaacuterio tragicocircmico do Agoacuten dos mortos que o Poeta de

forma moralizante se dirige agrave audiecircncia nas vozes de Jesus e da Compadecida para tratar das

questotildees ligadas agrave igreja e a seus representantes O mesmo natildeo se aplica a Joanes (o parvo)

que no cais do Purgatoacuterio indagado pelo Diabo na barca vicentina natildeo tem defensores ou

fiadores de sua graccedila em vida e contaraacute apenas com suas verdades ingecircnuas atitude que serve

para a quebra da seriedade comum ao julgamento e aos juiacutezes como refere Miranda (2001)

ao tratamento humoriacutestico empregado pelo autor

[hellip] a seriedade do tema eacute quebrada pelo tratamento que recebe ningueacutem pode chorar a sua sorte quando se depara com a prefiguraccedilatildeo de um juiacutezo final O modo como as personagens descobrem a sentenccedila que lhes foi determinada daacute- se de forma alegre e divertida pois o rigor da sentenccedila contrasta com o realismo grotesco de certos personagens e com o sarcasmo do interrogatoacuterio Disso decorre a comicidade da comeacutedia dos viacutecios (MIRANDA 2001 p61)

Mais adiante a Grande Voz - Gil Vicente ndash prepara seus leitores para o processo

de elaboraccedilatildeo e desenvolvimento da histoacuteria do parvo a partir do sentimento traacutegico gerado

pela morte que de iniacutecio natildeo eacute aceita e pelo elemento cocircmico presente no enfrentamento da

verdade do poacutes-morte num ritmo binaacuterio que permite o nivelamento de uma sociedade

estratificada

NarradorAutor

113

Vem Joane o Parvo e diz ao barqueiro do Inferno PARVO Oh desta DIABO Quem eacute PARVO Eu sou Eacute esta a nossa naviarra DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Ah Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Oh Pelo pesar do meu avocirc (dor choro) Resumindo Vim a adoecer E em maacute hora fui morrer E nela para mim soacute DIABO E de que morreste PARVO De quecirc Acho que de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Que maacute rabugem que te decirc (um insulto) DIABO Entra Potildee aqui o peacute PARVO Oacute paacute Que natildeo tombe o zambuco() (a barcaccedila) DIABO Entra tolo eunuco Que nos vai embora a mareacute PARVO Aguardai aguardai um pouco E aonde havemos noacutes de ir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-a-a DIABO Ao Inferno Entra caacute PARVO Ao Inferno Espera laacute Ui Ui Eacute a Barca do cornudo Pecircro de Vinagre Beiccediludo Lenhador de Alverca uh uh (GIL VICENTE p 34-38)

Ignorando a entrada no batel infernal Joanes se depara com outra realidade a

visita agrave nau que vai ao paraiacuteso Por que um bobo entraria na nau e seguiria para o descanso

dos justos Capricho ou natildeo do autor que encontra na ingenuidade e na astuacutecia as condiccedilotildees

de puniccedilatildeo daqueles que se julgavam acima das leis

114

Chega o Parvo ao batel do Anjo diz PARVO Oh da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Talvez algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres Porque em todos os teus afazeres Por maliacutecia natildeo erraste Da tua simpleza te bastastes Para gozar dos prazeres Espera no entanto aiacute Veremos se vem mais algueacutem Merecedor de tal bem Que deva entrar aqui (GIL VICENTE p 40-41)

A morte natildeo eacute o fim senatildeo o comeccedilo para o arrependimento das simbologias

hierarquizantes que permitem identificaccedilatildeo do homem com seu fazer terreno e com sua classe

social poliacutetica econocircmica e profissional

A morte acima de todos os entendimentos quebra a ordem dos elementos

igualando cada um dos protagonistas nas diferentes obras e gerando uma espeacutecie de

coletividade na qual do ponto de vista da justiccedila natildeo se concedem nem existem privileacutegios

pois cada um deveraacute responder por si soacute

Assim a resposta do poeta agraves injusticcedilas pelas quais se castiga a cidade viraacute com a

puniccedilatildeo dos infratores nas cenas que se revelam natildeo por uma accedilatildeo somente mas pelo

conjunto de mini-accedilotildees que adotam a estrutura gerada pela exposiccedilatildeo o conflito e o

desenlace e que agraves vezes nos apresentam a exposiccedilatildeo e o conflito dependentes um do outro

como no caso da comeacutedia aristofacircnica e dos autos de Ariano Suassuna e Gil Vicente

O fio que liga os enredos e conduz a nau vicentina ao inferno eacute o mesmo que

aguccedila a astuacutecia de Joatildeo Grilo ou que tranquiliza Chicoacute nos causos hercuacuteleos Em travessia

sobrenatural ou amarrado a um pirarucu espectadorleitor sente-se identificado com o

momento da histoacuteria quer pelas reminiscecircncias encontradas atraveacutes de elementos oriundos da

tradiccedilatildeo claacutessica quer pelos viacutenculos que retratam a realidade alegorizada e punitiva

Eacute o sentir sem sentir do poeta estar sem estar de uma realidade aparente natildeo

vivida mas experimentada simbolicamente seja nos autos ou na cena cocircmica aristofacircnica

115

que diante de um tribunal definido a partir dos valores humanos e da moralidade a verdade

vai se impor como instrumento para sentenciar as almas que uma a uma iratildeo entrar nos bateis

ou no purgatoacuterio do encourado

No palco construiacutedo pela comeacutedia ou pelo auto os conflitos se resolvem na

quebra da normalidade de um inferno agraves avessas lugar que se transforma em teatro de saacutetira

social de tipos que agem segundo a loacutegica da sua condiccedilatildeo de suas vivecircncias como bem

assinalado por Ariano Suassuna ao dar a Joatildeo Grilo as experiecircncias que lhe serviram de

argumento agrave Compadecida e contribuiacuteram decisivamente para a sua absolviccedilatildeo A COMPADECIDA Joatildeo foi um pobre como noacutes meu filho Teve de suportar as maiores dificuldades numa terra seca e pobre como a nossa Natildeo o condene deixe Joatildeo ir para o purgatoacuterio JOAtildeO GRILO Para o purgatoacuterio Natildeo natildeo faccedila isso assim natildeo Natildeo repare eu dizer isso mas eacute que o diabo eacute muito negociante e com esse povo a gente pede o mais para impressionar A senhora pede o ceacuteu porque aiacute o acordo fica mais faacutecil a respeito do purgatoacuterio A COMPADECIDA Isso daacute certo laacute no sertatildeo Joatildeo Aqui se passa tudo de outro jeito Que eacute isso Natildeo confia mais na sua advogada JOAtildeO GRILO Confio Nossa Senhora mas esse camarada enrolando noacutes dois A COMPADECIDA Deixe comigo Peccedilo-lhe entatildeo muito simplesmente que natildeo condene Joatildeo MANUEL O caso eacute duro Compreendo as circunstacircncias em que Joatildeo viveu mas isso tambeacutem tem um limite Afinal de contas o mandamento existe e foi transgredido Acho que natildeo posso salvaacute-lo A COMPADECIDA Decirc-lhe entatildeo outra oportunidade MANUEL Como A COMPADECIDA Deixe Joatildeo voltar MANUEL Vocecirc se daacute por satisfeito JOAtildeO GRILO Demais Para mim eacute ateacute melhor porque daqui para laacute eu tomo cuidado para a hora de morrer e natildeo passo nem pelo purgatoacuterio para natildeo dar gosto ao catildeo A COMPADECIDA Entatildeo fica satisfeito JOAtildeO GRILO Eu fico (ARIANO SUASSUNA 2005 p 146-158)

Se houve ou natildeo por parte do poeta a intenccedilatildeo de usar bufotildees palhaccedilos e o riso

para punir natildeo haacute duacutevidas Essas personagens promovem tanto na comeacutedia como no auto

uma reflexatildeo mais profunda sobre a existecircncia do homem na terra exercendo sobre as demais

que se julgam merecedoras de entrarem na barca do Anjo ou do perdatildeo divino uma saacutetira

viva e desestabilizadora

116

O certo eacute que mesmo apesar da situaccedilatildeo de marginalidade e abandono a que tem

estado sempre os outros cocircmicos autorizados pelo poeta eles mostram em Acarnenses no

Auto da Barca do Inferno e no Auto da Compadecida o discernimento necessaacuterio para por em

causa proacutepria todo o mundo social poliacutetico eacutetico e religioso

Observar o julgamento das almas o convencimento da assembleia ou a absolviccedilatildeo

de Joatildeo Grilo eacute justamente se inquietar com comportamento destoante dos personagens

diante do traacutegico anunciado seja pela sentenccedila no purgatoacuterio em que Suassuna provoca o riso

pelo absurdo da situaccedilatildeo seja pela morte tragicocircmica de Joanes que obteacutem o direito de

embarcar para o paraiacuteso ou mesmo pela negociaccedilatildeo que garantiu aos representantes da Igreja

e ao Cangaceiro o purgatoacuterio cabendo a Joatildeo Grilo o retorno agrave vida Portanto aleacutem de

garantir a absolviccedilatildeo haacute tambeacutem a realizaccedilatildeo de uma vinganccedila astuciosa que imprimindo o

castigo aos superiores reflete a inteligecircncia que se sobrepotildee a avareza e aos desmandos

Moralidade restabelecida Assim a cena cocircmica torna explicita a forte associaccedilatildeo

entre comeacutedia e auto na intecionalidade de uma justiccedila direta que quis aleacutem das palavras das

palavra-voz lapidada pelos a(u)tores impulsionadora de reflexotildees geradora de fissuras

abertas na selva de significados que de forma desconsertada passa a ser o guia de um leitor

carente da tomada de consciecircncia sobre o que eacute ou natildeo (in)justo pelo vibrar incorrigiacutevel da

cadeia de significados que se estabelece entre o dito e o leitorouvinte como afirma Zumthor

O texto vibra o leitor o estabiliza integrando-o agravequilo que eacute ele proacuteprio Entatildeo eacute ele que vibra de corpo e alma No eco da voz-texto natildeo haacute algo que a linguagem tenha criado nem estrutura nem sistema completamente fechados e as lacunas e os brancos que aiacute necessariamente subsistem constituem um espaccedilo de liberdade ilusoacuterio pelo fato de que soacute pode ser ocupado por um instante por mim por vocecirc leitores nocircmades por vocaccedilatildeo (ZUMTHOR 2014 p 53)

O heroacutei cocircmico eacute esse espaccedilo de liberdade de ousadia nem sempre vitorioso mas

que se constitui agraves vezes de um alter ego do autor que na qualidade de educador da cidade se

impotildee e legitima verdadeiramente justo uma vez que a justiccedila e a verdade satildeo suas

verdadeiras aliadas e componentes essenciais da criaccedilatildeo do autor

Comeacutedia e Auto concluem com sucesso as intenccedilotildees de seus autores garantindo a

todos o que eles merecem um final no qual a justiccedila a verdade e a puniccedilatildeo terminam

moralmente como (re)modeladoras da cidade

117

6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Nas obras que aqui foram analisadas (Acarnenses Ratildes Auto da Barca do inferno

e Auto da Compadecida) os respectivos autores parecem convidar o puacuteblico a tratar o duplo

poeacutetico e a voz como algo especialmente autorizado agrave tarefa de educar a cidade No entanto

cabe ressaltar que ldquoessa aparente autoridaderdquo eacute o instante singular no qual o poeta diz o que

pensa e quer pela boca de seus personagens reforccedilarcada vez mais a ilusatildeo de ser o que natildeo

se eacute de dizer para aleacutem do abrir e fechar das cortinas do palco teatral

No sertatildeo de chatildeo duro e quase impermeaacutevel agrave chuva do Auto da Compadecida a

palavra-performance fez sua morada na boca dos arremedos de Joatildeo Grilo fincou suas raiacutezes

em seus gestos fez dele sair seus brotos que se transformaram em galhos firmes de uma

aacutervore frondosa que eacute a cultura nordestina tatildeo bem cantada pela literatura de cordel pelo riso

mascarado e ao mesmo tempo denunciativo e desnudado do autor na representaccedilatildeo de sua

criatura Joatildeo Grilo eacute o muacuteltiplo poeacutetico defendido pelo proacuteprio autor numa caracterizaccedilatildeo

niacutetida e social Jaacute Diceoacutepolis em Acarnenses contudo tem uma identificaccedilatildeo claramente

problemaacutetica visto ser um personagem que assume muitas personagens e vozes (tais como

tanto o protagonista cocircmico ruacutestico e o traacutegico Teacutelefo) minando a seriedade com que um

leitor deve tomar suas reivindicaccedilotildees

No Auto da Barca do inferno Gil Vicente como criacutetico mordaz impotildee toda a sua

ironia para condenar os costumes praticados por uma sociedade permeada pela hipocrisia Agrave

guisa do pensamento vicentino a linguagem passa a ser seu principal instrumento pelo qual

se vai operar a zombaria para combater os excessos daqueles que ganham com a miseacuteria do

povo

Pelo vieacutes do desconserto a representaccedilatildeo teatral vicentina se constitui como um

conjunto (ou sistema) de signos de natureza diversa que revela um processo de comunicaccedilatildeo

em que haacute uma seacuterie complexa de transmissores uma seacuterie de mensagens um duplo emissor

assim como um (in)corrigiacutevel e muacuteltiplo receptor presentes no mesmo lugar ansiosos para

saber o que aleacutem do dito eacute ensinado pelo poeta

Esse jogo de diaacutelogosdidascaacutelias a princiacutepio consciente para o poeta permite um

percurso para a compreensatildeo dos diversos fios que compotildeem a tessitura cocircmica ndash moralizante

e dramaacutetica cabendo ao leitorespectador desvelar e revelar as mensagens proferidas pelas

vaacuterias vozes pelas quais se expressa o autor

Ao leitor atento nada escapa ao identificar no espaccedilo cecircnico as simbologias dos

espaccedilos socioculturais comuns agraves trecircs obras que compotildeem o corpus do nosso trabalho e de

118

forma particular a Gil Vicente que amarra elementos humanos e divinos burlescos e seacuterios

formais e corriqueiros sem perder sua atualidade uma vez que tecircm o meacuterito de apresentarem

as constantes lutas entre o bem e o mal que existem dentro de cada indiviacuteduo valendo-se de

uma comicidade aacutecida e palpitante inimiga dos desmando e excessos

Assim como Gil Vicente Ariano Suassuna soube como ningueacutem recriar a proacutepria

realidade em seus Autos atraveacutes dos textos orais nordestinos e interdiscursos culturais

medievos Sempre criacutetico sua literatura estaacute impregnada da heranccedila da tradiccedilatildeo popular

regional e de gecircneros medievais portugueses ibeacutericos e claacutessicos reforccedilando que tanto as

raiacutezes populares nordestinas quanto os gecircneros do teatro medievo alimentam seu fazer

poeacutetico

Como o educador da cidade Ariano Suassuna chega ao conhecimento da plateia

pelas vaacuterias frestas de uma accedilatildeo cocircmica e de recortes de um proacutelogo e de uma paraacutebase bem

ao estilo de Aristoacutefanes quando ao questionar metaforicamente os representantes da Igreja

pelo zelo da moralidade e da justiccedila social coloca em cheque tambeacutem toda a sociedade da

eacutepoca produzindo pelos jogos ciacutenicos circenses os novos significados de cidadania

Suassuna e Gil Vicente representam o fazer literaacuterio de um Aristoacutefanes que sob a

maciez do riso e da galhofa esconde o punhal e a foice da contestaccedilatildeo social o desejo de

recuperaccedilatildeo e de conversatildeo dos valores humanos Em Aristoacutefanes e diante de sua

representaccedilatildeo da polis estamos diante de uma realidade caoacutetica quase impassiacutevel de ser

alterada resultado da exploraccedilatildeo e da ambiccedilatildeo social fatos que permeiam a accedilatildeo de seus

personagens e quando o poeta traveste-se de Dioniso e decide descer ao infernos para buscar

um poeta genuiacuteno percebemos que natildeo eacute somente a arte ou os ensinamentos trazidos por ela

que Aristoacutefanes quer salvar mas o proacuteprio homem ndash em essecircncia ndash que jaacute se encontrava

seriamente corrompido fazendo mal agrave coletividade

No seu fazer de mentalidade coletiva Ariano Suassuna e Gil Vicente satildeo Aristoacutefanes

que em defesa da cidade lanccedilam-se num terreno movediccedilo do diaacutelogo literaacuterio e cultural

contrapondo o moderno e arcaico o regional ao erudito o miacutetico ao racional (re)construindo

suas histoacuterias a partir das vaacuterias histoacuterias alheias nas quais autor e personagens satildeo reflexos

maiores de uma sequecircncia de accedilotildees cocircmicas criacuteticas e a serviccedilo da ordem e da moralidade

Portanto por mais incorrigiacuteveis que possam parecer nas obras pesquisadas fica

claro que os autores e suas personagens agem na defesa de seus objetivos marcados por uma

devoccedilatildeo obstinada a uma causa proacutepria a defesa da cidade E no cenaacuterio-mundo que eacute o

teatro tanto Aristoacutefanes quanto Gil Vicente e Ariano Suassuna satildeo senhores da arte da

desconstruccedilatildeo

119

De caraacuteter universal a Comeacutedia e o Auto mostram um poeta autocircnomo que

brinca com a vontade e expectativas do leitorespectador levando-o a refletir sobre a realidade

atemporal apresentada pelo teatro em seu jogo cocircmico e moralizante Assim o duplo autoral

passa a conduzir o cecircnico no qual os ldquohome espectadorrdquo evocados por Diceoacutepolis em

Acarnenses ou os condenaacuteveis nos autos de Ariano Suassuna e Gil Vicente satildeo jogados no

labirinto das duacutevidas e incertezas promovidas pelas vozes muacuteltiplas que tambeacutem satildeo de

outrem e que afiadas atravessam o discurso cocircmico levando-o agrave reflexatildeo seacuteria da situaccedilatildeo na

qual se encontra a cidade E tudo aos olhos do leitor sob o desejo de um criador que se perde

e se acha nas criaturas que o representam nos a(u)tos matutos de Ariano Suassuna e

Aristoacutefanes ndash eacute possiacutevel ndash natildeo sei Soacute sei que foi assim

120

REFEREcircNCIAS

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ZUMTHOR Paul Performance recepccedilatildeo leitura 2 ed Trad Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich Satildeo Paulo Cosac Naify 2007

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARA CENTRO DE HUMANIDADES
  • PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM LETRAS
  • Prof Dr Lauro Inaacutecio de Moura Filho
  • Instituto Federal de Educaccedilatildeo Ciecircncia e Tecnologia do Cearaacute ndash (IFCE)
  • Prof Dr Francisco Wellington Rodrigues Lima
  • Instituto Federal de Educaccedilatildeo Ciecircncia e Tecnologia do Cearaacute ndash (IFCE)
  • COMPTON-ENGLE Gwendolyn Leigh Sudden glory Acharnians and the first comic hero
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DEDICATOacuteRIA

A Patriacutecia e Larissa Pelos inesqueciacuteveis momentos de profundo amor em famiacutelia pelo riso frouxo e desconcertado das horas de companheirismo A todos que um dia sonharam olhando para o ceacuteu e que hoje podem alcanccedilar as estrelas

AGRADECIMENTOS

Agradecer mexe com a memoacuteria e torna registrado o esquecimento Por natildeo ser

uma tarefa muito faacutecil eacute perigosa Natildeo pela dificuldade de lembrar mas pelo medo de deixar

de agradecer a algueacutem que mereccedila Eacute uma oportunidade uacutenica de demonstrar gratidatildeo por

tantos que tornaram este sonho uma realidade possiacutevel pela experiecircncia partilhada pela

dedicaccedilatildeo pelos conselhos ou simplesmente por terem sido ouvintes contadores de estoacuterias

e pacientes Como agradecer

Quem realiza um trabalho de pesquisa sabe o quatildeo solitaacuterias podem ser as

manhatildes tardes e noites de leituras e escritas Longos momentos onde o cursor e a tela satildeo as

uacutenicas testemunhas e companheiros Ao mesmo tempo em que eacute solitaacuterio eacute tambeacutem um

trabalho conjunto soacute me foi possiacutevel chegar ao fim de parte da jornada graccedilas ao esforccedilo de

tantos que vieram antes de mim Tantos outros que abriram e traccedilaram caminhos que depois

pude trilhar sozinho em romaria ou bebendo com Dioniso e com outros que bem antes

percorreram o sertatildeo e aportaram suas buscas na procura de mitos festejados e perpetuados

nos rituais cocircmico - religiosos presentes na literatura popular

O que apresento neste trabalho eacute fruto de uma pesquisa acompanhada de vaacuterios

olhares de muitas vivecircncias de viagens agraves feiras de conversas repletas de informaccedilotildees e

experiecircncias de sorrisos e de tristeza por ver na travessia um ponto de parada mesmo que

seja pelo instante do aprofundamento futuro

Mais que lembrar agradeccedilo a minha orientadora Professora Doutora Ana Maria

Ceacutesar Pompeu de forma bem especial Primeiro por ter ldquoapostadordquo em um projeto de

pesquisa com vaacuterias lacunas Segundo por ter sido uma orientadora no sentido mais amplo da

palavra atraveacutes de suas reflexotildees indicaccedilatildeo de bibliografias reuniotildees de orientaccedilatildeo e

conselhos foi possiacutevel que eu construiacutesse uma nova problemaacutetica do assunto e engendrasse a

pesquisa que agora apresento Terceiro pelo comprometimento acadecircmico em orientar-me

natildeo somente para a tarefa acadecircmica mas por me deixar aprender em suas palavras o sentido

das coisas quebrando a ilusatildeo sorrindo de forma contagiante orientando pela generosidade e

humildade para vida Foi um presente ouvi-la e aprender tambeacutem no silecircncio de suas reflexotildees

antes das orientaccedilotildees para que eu natildeo me perdesse durante a travessia atemporal

Tambeacutem agradeccedilo ao professor Steacutelio Torquato Lima do Departamento de

Literatura da UFC pela generosidade de pesquisador pelo comprometimento na indicaccedilatildeo de

novas fontes de pesquisas indispensaacuteveis agrave Dissertaccedilatildeo de Mestrado e que resultaram em

embriotildees da presente pesquisa de Doutorado me encorajando a ver nas entrelinhas de uma

literatura pujante dotada de vaacuterios significados oral ndash escrita ndash dupla

Ao professor Carlos Augusto Viana da Silva do Departamento de Estudos da

Liacutengua Inglesa suas Literaturas e Traduccedilatildeo da UFC pelo desafio que me levou a pensar a

literatura popular a partir da narrativa fiacutelmica que tatildeo bem impulsionou esta pesquisa

culminando com a anaacutelise do Auto da Compadecida de Ariano Suassuna em conjunto com

Acarnenses de Aristoacutefanes

Ao professor Roque Nascimento Albuquerque da Universidade de Integraccedilatildeo

Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB) que desde o iniacutecio acreditou na ideia

de pensar o cocircmico e o popular a partir de novas leituras desafiadoras e intrigantes

Ao professor Lauro Inaacutecio de Moura Filho meu agradecimento pela amizade por

ter dividido pesquisas sobre Aristoacutefanes e por fazer parte da minha Banca de Doutorado

Agrave professora Maria Inecircs Pinheiro Cardoso minha gratidatildeo pela presenccedila na minha

Banca de Doutorado e por seus valorosos estudos sobre a literatura do ldquobardo do sertatildeordquo

Ariano Suassuna em toda a sua magnitude popular

Ao professor Francisco Wellington Rodrigues Lima meu agradecimento pela

gentileza de fazer parte da minha Banca de Doutorado e por sua contribuiccedilatildeo agrave literatura

popular a partir de seus estudos sobre Gil Vicente e Ariano Suassuna

Para minha famiacutelia agradecimentos especiais Obrigado por terem me dado

oportunidade de chegar ateacute aqui por me ensinarem desde cedo a enfrentar os desafios de

frente com riso estampado no rosto

E por uacuteltimo obrigado as minhas maiores incentivadoras Com elas compreendi o

sentido de muitas coisas companheirismo afeto dedicaccedilatildeo amor Obrigado por entenderem

a importacircncia desta pesquisa na minha vida Sem vocecircs o caminho natildeo teria sido tatildeo animado

encantado e real Obrigado Patriacutecia e Larissa

Agrave FUNCAP e Agrave CAPES e ao CNPQ pelo apoio financeiro com a manutenccedilatildeo da

bolsa de auxiacutelio agrave pesquisa

Debaixo de minha mesa tem sempre um catildeo faminto -que me alimenta a tristeza Debaixo de minha cama tem sempre um fantasma vivo -que perturba quem me ama Debaixo de minha pele algueacutem me olha esquisito -pensando que eu sou ele Debaixo de minha escrita haacute sangue em lugar de tinta -e algueacutem calado que grita

(Affonso Romano de SantacuteAnna)

RESUMO

Por ser uma arte que permanece haacute tantos seacuteculos o teatro desperta curiosidade acerca de seus primoacuterdios existindo vaacuterias conjecturas e teorias sobre o surgimento da Comeacutedia Antiga como ambiente extremamente propiacutecio agrave formaccedilatildeo de duplos presente no mito e no culto do deus do teatro Dioniso no qual as vozes os gestos e as maacutescaras representam o duplo e satildeo sobrepostas como causa de equiacutevocos e componentes centrais das invectivas pessoais ou intrigas como observados em Acarnenses de Aristoacutefanes no Auto da Compadecida de Ariano Suassuna Entretanto haacute de se considerar de iniacutecio que alguns elementos responsaacuteveis pelo riso na obra de Aristoacutefanes tambeacutem encontra eco na literatura de Suassuna por apresentar uma tessitura textual atravessada pelas muacuteltiplas vozes de suas personagens constituindo-se em um fenocircmeno recorrente e natural que aponta para a tensatildeo de uma crise profunda denunciada pelo proacuteprio poeta em seus discursos A partir do estudo das correntes de alguns teoacutericos sobre o riso como Huizinga Pirandello Bergson e Vladimir Propp responderemos por meio da literatura comparada a alguns questionamentos como por exemplo qual a importacircncia da construccedilatildeo das personagens cocircmicas em Aristoacutefanes para a representaccedilatildeo do duplo poeacutetico e como essa criaccedilatildeo se reflete na obra de Ariano Suassuna sendo denunciadora das injusticcedilas a partir da cena cocircmica

Palabras-chave Teatro A(u)to A(u)tor Popular Duplo

RESUMEN Por ser un arte que permanece durante tantos siglos el teatro despierta curiosidad acerca de sus primordios existiendo varias conjeturas y teoriacuteas sobre el surgimiento de la Comedia Antigua como ambiente extremadamente propicio a la formacioacuten de dobles presente en el mito y en el culto del dios del teatro Dioniso en el que las voces los gestos y las maacutescaras representan el doble se superponen como causa de equiacutevocos y componentes centrales de las invectivas personales o intrigas como observados en Acarnienses de Aristoacutefanes en el Auto de la Compadecida de Ariano Suassuna Sin embargo hay que considerar de inicio que algunos elementos responsables de la risa en la obra de Aristoacutefanes tambieacuten encuentra eco en la literatura de Suassuna por presentar una tesitura textual atravesada por las muacuteltiples voces de sus personajes constituyeacutendose en un fenoacutemeno recurrente y natural que apunta para la tensioacuten de una crisis profunda denunciada por el propio poeta en sus discursos A partir del estudio de las corrientes de algunos teoacutericos sobre la risa como Huizinga Pirandello Bergson y Vladimir Propp responderemos por medio de la Literatura Comparada a algunos cuestionamientos como por ejemplo cuaacutel es la importancia de la construccioacuten de los personajes coacutemicos en Aristoacutefanes para la representacioacuten del doble poeacutetico y coacutemo esa creacioacuten se refleja en la obra de Ariano Suassuna siendo denunciadora de las injusticias a partir de la cena coacutemica

Palabras clave Teatro A(u)to A(u)tor Popular Doble

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO12

PRIMEIRO ATO18

1 O TEATRO UM DUPLO ARTIacuteSTICO ndash TRAGEacuteDIA E COMEacuteDIA19

11 A comeacutedia aristofacircnica28

12 Dioniso Matuto Justinoacutepolis um heroacutei embusteiro29

13 O (anti)heroacutei aristofacircnico32

14 Auto da Compadecida uma estoacuteria de outras estoacuterias34

15 Joatildeo Grilo um heroacutei popular e picaresco36

151 O (anti)heroacutei Suassuniano38

152 A tensatildeo tragicocircmica do (anti)heroacutei no Auto da Compadecida39

SEGUNDO ATO41

2 HUMOR E RISO ELEMENTOS INDISPENSAacuteVEIS Agrave CENA COcircMICA42

21 O riso seacuterio-cocircmico em Aristoacutefanes e Suassuna43

212 Riso e Comeacutedia43

213 Os elementos do risiacutevel no heroacutei suassuniano45

TERCEIRO ATO65

3 AS DUAS PECcedilAS ndash O POETA USA MAacuteSCARAS66

31 OS GESTOS ndash A vestimenta o corpo e o disfarce67

QUARTO ATO74

4 O AUTOR E SEUS OUTROS NA COMEacuteDIA E NO AUTO75

41 O par cocircmico na tradiccedilatildeo literaacuteria em Aristoacutefanes e em Ariano Suassuna76

QUINTO ATO84

5 O POETA VAI AO INFERNO85

51 Quem fala por quem86

511 Ao Hades e com riso frouxo97

52 O julgamento O riso a morte e o descanso do (in)justo105

521 Aqui eacute o inferno vocecirc pode brincar108

522 A Voz a esperteza e a malandragem do poeta Nem tudo que eacute vivo morre111

6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS117

REFEREcircNCIAS120

12

INTRODUCcedilAtildeO Num vatildeo ficaacute cum raiva homes espectador Se eu sendo um mendigo na frente dos ateniense Teja em tempo de falaacute sobre a cidade fazendo uma comeacutedia Pois o que eacute justo a comeacutedia tambeacutem conhece E eu vou falaacute coisas terriacuteve mas justa Pois desta vez num vai me caluniaacute Cleacuteon que Estrangeiros tando aqui eu falo mal da cidade Eacute que tamo soacute eacute o concurso das Leneia E os estrangeiro num tatildeo aqui nem os imposto Chega nem os aliado vem das cidade Mas tamo soacute noacutes agora soacute os miacute debuiado (POMPEU Dioniso MatutoARISTOacuteFANES Acarnenses vv497-507)

A Literatura Popular vem sendo cada vez mais estudada e reconhecida no acircmbito

acadecircmico ressaltando seu espaccedilo regional pela criaccedilatildeo e construccedilatildeo de uma nova vertente

literaacuteria que dialoga com outras artes e culturas Assim torna-se importante destacar que esse

tipo de literatura constitui-se tambeacutem como uma das vertentes da histoacuteria cultural tendo em

vista que reuacutene diversos tipos de textos para pensar sua escrita linguagem e (re)leitura pela

apropriaccedilatildeo cultural vivenciada pelo puacuteblico e pelo poeta que ouviu viu e viveu o produto

exposto nos versos como nos assegura Chartier (1990 p 27)

Nesse contexto permeado de apropriaccedilotildees recriaccedilotildees e (in)certezas eacute que

estudaremos o riso cocircmico no auto e na comeacutedia como leitoresjurados do julgamento

paroacutedico atraveacutes da accedilatildeo cocircmica do poeta representado por seus duplos na comeacutedia

Acarnenses1 (425 aC) de Aristoacutefanes no Auto da Compadecida (1956) de Suassuna numa

aproximaccedilatildeo atemporal que se reflete na palavra aacutecida do a(u)tor na gargalhada solta e na

quebra da normalidade literaacuteria reveladora das diversas maacutescaras vozes ndash linguagem matuta

e os gestos elementos que estatildeo a serviccedilo do poeta cocircmico e de seus duplos como porta-

vozes do discurso social

Assim para estudo e anaacutelise dos duetos (duplos) cocircmicos cordelescos

fomentadores do imaginaacuterio e da construccedilatildeo de (anti) heroacuteis cocircmicos populares presentes na

tradiccedilatildeo popular nordestina bebemos de fontes escritas e tambeacutem de uma modalidade

narrativa ateacute pouco tempo desprezada esquecida dada ao puacuteblico quase sempre em papel

ruacutestico e com maacute qualidade da impressatildeo e escrita sem a preocupaccedilatildeo dos autores com a

ldquocorreccedilatildeordquo linguiacutestica a Literatura de Cordel

1 No corpus do nosso trabalho optamos por usar a traduccedilatildeo de Acarnenses de Aristoacutefanes para o cearensecircs da professora Ana Maria Ceacutesar Pompeu Dioniso matuto uma abordagem antropoloacutegica do cocircmico na traduccedilatildeo de Acarnenses de Aristoacutefanes para o cearensecircs

13

Tradicionalmente comum a este tipo de literatura foi a presenccedila marcante da

oralidade o fato de ser vendida em feiras e o tipo de consumidor em geral pessoas de baixo

niacutevel escolar cuja identificaccedilatildeo com os folhetos se estabelecia por meio de variadas

temaacuteticas incluindo o diaacutelogo com outras fontes literaacuterias como a Comeacutedia Grega outro

objeto deste estudo

Com isso a importacircncia do cordel pelo meio acadecircmico daacute-se pela produccedilatildeo de

intelectuais como Ariano Suassuna que transpotildee episoacutedios inteiros do verso popular para a

prosa ou vice-versa num imenso caldeiratildeo de ideias consciente da forccedila que essa modalidade

literaacuteria deteacutem na representaccedilatildeo do imaginaacuterio do povo solidificando sua maneira de pensar e

de reagir ante os fenocircmenos sociais

Essas reaccedilotildees aos diferentes contextos sociais motivadas pelas experiecircncias

escritas auditivas e visuais preteacuteritas atribuem um valor positivo agrave figura do (anti)heroacutei

cocircmico e ou agrave conversatildeo do matuto do ruacutestico e satildeo responsaacuteveis pela sua construccedilatildeo miacutetica

a partir do documento linguiacutestico do falar matuto heranccedila cultural cearense como

apresentado por Pompeu em seu Dioniso Matuto (2014) Entretanto temos de considerar que

Aristoacutefanes natildeo faz distinccedilatildeo entre linguagem matuta e citadina apenas de aspectos dialetais

das cidades natildeo aacuteticas como afirma Andreas Willi

A comeacutedia tambeacutem se diferencia da trageacutedia por apresentar todos os estrangeiros a falar em seus dialetos nativos Embora se costume considerar a reproduccedilatildeo dos outros dialetos como deformaccedilatildeo risiacutevel Aristoacutefanes natildeo exagera as caracteriacutesticas dialetais nem as personagens atenienses escarnecem delas de maneira que eacute provaacutevel que o efeito cocircmico nasccedila ali natildeo do exagero mas do realismo linguiacutestico que natildeo tem equivalente em outro gecircnero (WILLI 2003 p268)

Sobre essa afirmativa e tomando como ponto de partida o pensamento de

Bogatyrev (1977) em relaccedilatildeo agraves variaccedilotildees dialetais nota-se que pelas falas produzidas

o espectador percebe ao mesmo tempo o ator e a personagem presentes nos contextos

nordestino e grego resultado de uma simbiose entre ldquocriador e criaturardquo

O corpo do presente trabalho estaacute dividido em Cinco Atos assim denominada a

divisatildeo da Comeacutedia Antiga que na Greacutecia evolui em trecircs fases distintas considerando-se a

comeacutedia2 antiga a comeacutedia mediana e a comeacutedia nova Relativamente ao periacuteodo da comeacutedia

antiga Aristoacutefanes eacute o seu grande representante estruturando-a com as seguintes partes o

proacutelogo o paacuterodo que consiste na entrada do coro e nas suas intervenccedilotildees ou disputa entre 2 EDMONDS J M The Fragments of Attiacutec Comedy II Uiacuteacircdle Cotnedy Leiden Brill 2010

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dois coros a paraacutebase isto eacute um interluacutedio coral que suspende parcialmente a ilusatildeo

dramaacutetica dirigindo-se diretamente ao auditoacuterio os episoacutedios ou seja as cenas dialogadas

pelas personagens e intercaladas por intervenccedilotildees do coro o ecircxodo concretizando-se no

desenlace final

A comeacutedia antiga caracteriza-se pelo tom de humor e de saacutetira com que se critica

assuntos da vida cotidiana aspectos poliacuteticos e sociais e figuras e instituiccedilotildees proeminentes

sendo a sua finalidade principal a diversatildeo para aleacutem do objetivo moralizante Emprega uma

linguagem luacutedica atraveacutes de jogos de palavras equiacutevocos ironia clichecircs e apresenta ainda

personagens de forma caricatural

Cabe ressaltar que na Introduccedilatildeo apresentamos uma panoracircmica histoacuterica acerca

da Comeacutedia Grega aristofacircnica ndash Acarnenses com direcionamento agrave comeacutedia suassuniana ndash

retratada no Auto da Compadecida Para tratar do Auto da Compadecida e da influecircncia que

sofreu da literatura de Gil Vicente decidimos optar pela apresentaccedilatildeo do Auto Vicentino visto

que O Auto da Compadecida constitui-se como uma peccedila teatral que resgata a comeacutedia

medieval e renascentista europeia bem como a comeacutedia popular nordestina Tal obra foi

elaborada a partir de vertentes distintas onde se encontram resquiacutecios de obras conhecidas e

consagradas mundialmente e tradiccedilatildeo popular impressa em folhetos

O caraacuteter cordelesco do Auto remonta agrave Idade Meacutedia que teve os uacuteltimos seacuteculos

tambeacutem conhecidos pelos historiadores como tempos embaralhados visto que levaram agraves

uacuteltimas consequecircncias uma visatildeo decadentista da vida O caraacuteter transitoacuterio do seacuteculo XV

tornou-se cada vez mais importante no desencadeamento da ideia de morte dentro da unidade

cristatilde fato que permeia as obras de Gil Vicente

O Auto da Barca do Inferno tambeacutem conhecido como Auto da Moralidade foi escrito em 1517 e representado ao rei Manuel I de Portugal e agrave rainha Lianor Eacute uma das mais significativas e famosas obras de Gil Vicente e que embora esteja na estrutura de uma trilogia Trilogia das Barcas que contempla tambeacutem o Auto da Barca do Purgatoacuterio e o Auto da Barca da Gloacuteria a peccedila conteacutem um uacutenico ato no qual eacute recorrente o uso da saacutetira do riso do ridiacuteculo e do achincalhe dotado de um tenso cunho didaacutetico

Jaacute no caso especiacutefico de Ariano Suassana o Auto da Compadecida se divide em

trecircs episoacutedios o primeiro intitulado o enterro do cachorro o segundo com o retorno do Major

Antocircnio Moraes junto com o Bispo e o terceiro episoacutedio compreendendo o julgamento dos

mortos Os atos satildeo entrecortados pela fala do palhaccedilo que representa o autor situando os

espectadores e antecedendo a mudanccedila de cenaacuterio Os personagens satildeo Joatildeo Grilo Chicoacute

major Antocircnio Moraes o padeiro e sua esposa o cangaceiro Severino de Aracajuacute e seu

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ajudante Bispo Sacristatildeo Padre Joatildeo e Frade Encourado democircnio Manuel e a

Compadecida mas a peccedila gira em torno de Joatildeo Grilo que eacute quem arma situaccedilotildees

conflituosas e quem concentra o foco dramaacutetico

Eacute nesse contexto que a literatura de cordel se apresenta como um importante

veiacuteculo de expressatildeo habilitado agrave aproximaccedilatildeo do popular e do erudito como tambeacutem

ferramenta de articulaccedilatildeo da comunicaccedilatildeo do sertatildeo desprezado e inculto com as referecircncias

gregas de narraccedilatildeo observadas em Aristoacutefanes Para tanto nos valemos da anaacutelise das obras

referidas por gravitarem em torno da temaacutetica proposta e abordarem de forma direta a

linguagem matuta e a construccedilatildeo dos duplos cocircmicos tendo como foco a figura do matuto

Em termos metodoloacutegicos nossa pesquisa se apoia em uma perspectiva

comparativista considerando o contiacutenuo uso da oralidade efetivado na Comeacutedia como voz

autorizada para a accedilatildeo contiacutenua do proacuteprio poetapersonagem Nesse contexto Segundo

Bakhtin o autor ldquoocupa uma posiccedilatildeo responsaacutevel no acontecimento do existir opera com

elementos desse acontecimento e por isso a sua obra eacute tambeacutem um momento desse

acontecimentordquo (BAKHTIN 2003 p176) Neste esteio Caetano Peixoto e Machado (2011)

nos afirmam que A posiccedilatildeo do autor-criador ou seja aquele que tem a funccedilatildeo esteacutetico-formal engendradora da obra natildeo estaacute dissociada do autor-pessoa isto eacute do escritor do artista A vida natildeo estaacute em dicotomia com a arte Elas se imbricam atraveacutes das vozes sociais e histoacutericas onde a dimensatildeo teoacuterica esteacutetica e eacutetica ndash o conhecimento os valores e o agir ndash convergem organizadas num sistema estiliacutestico harmonioso

Nas obras que constituem nossa pesquisa o autor e suas diversas vozes operam e

se estabelecem por meio de accedilotildees muacuteltiplas grotescas como forma de afastar-se do caraacuteter de

opressatildeo para a compreensatildeo e apreensatildeo de uma verdade pura muitas vezes advinda do

social e das situaccedilotildees de injusticcedila como defendida por DiceoacutepolisJustinoacutepolis em

Acarnenses e por Joatildeo Grilo no Auto da Compadecida

Eis que da multiplicidade das praacuteticas do discurso deriva-se o que se pode

reconhecer como uma tipicidade um modo totalmente particular de afirmaccedilatildeo do sujeito um

muacuteltiplo que ao mesmo tempo se torna iacutempar diferente dos demais na conduccedilatildeo do discurso

social Essa imagem e sua polifonia capazes de reunir habilidades estabelecedoras de um

valor cultural da literatura satildeo o que haacute de mais iacutentimo e intransferiacutevel nesse diaacutelogo proposto

entre as obras estudadas e seus autores por operarem um mecanismo narrativo simples e

divertido atraveacutes do diaacutelogo entre o discurso literaacuterio e o socioloacutegico

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Retornando agrave divisatildeo do trabalho acentuamos que no PRIMEIRO ATO tratamos

de questotildees inerentes agrave origem e estrutura da Comeacutedia e do Auto ressaltando ainda a

importacircncia desses gecircneros como elementos presentes e ativos no processo de construccedilatildeo da

heranccedila cultural erudita mas de origem popular com foco no discurso permeado de vaacuterias

vozes indispensaacuteveis na formaccedilatildeo do poeta-personagem e de seus (anti)heroacuteis

No SEGUNDO ATO discorremos sobre os elementos da Comeacutedia aristofacircnica e

do Auto suassuniano a partir do Humor e do Humorismo Para tanto recorremos agrave expressatildeo

ldquoriso seacuterio-cocircmico como elemento moralizanterdquo tomando como base os estudos de Huizinga

Pirandello Bergson e Vladimir Propp entre outros estudiosos

No TERCEIRO ATO apresentamos um breve histoacuterico da comeacutedia como duplo

da trageacutedia e escrevemos sobre as maacutescaras vozes e gestos como elementos fundantes do

outro do poeta na cena cocircmica tanto em Aristoacutefanes quanto em Suassuna

No QUARTO ATO aprofundamos nossos estudos sobre o duplo na literatura

tomando como base trabalhos sobre a ocorrecircncia do duplo e seu estranhamento na literatura

Ainda no mesmo Ato fazemos uso dos estudos de Bakhtin sobre polifonia do duplo e a

polifonia do discurso social com o fim de relacionar o discurso social de Joatildeo Grilo e

Diceoacutepolis em defesa do coletivo ndash da polis ndash duplos do poeta e porta-vozes dos discursos

sociais jaacute popularizados na Literatura de Cordel suas influecircncias e os diaacutelogos possiacuteveis com

a Comeacutedia Grega

Por fim desenvolvemos ao longo do QUINTO ATO a anaacutelise comparativa da

formaccedilatildeo dos duplos e presenccedila das vaacuterias vozes constitutivas do enredo da comeacutedia

Acarnenses de Aristoacutefanes do texto traduzido do original grego de 425 a C da versatildeo

Dioniso matuto uma abordagem antropoloacutegica do cocircmico na traduccedilatildeo de Acarnenses de

Aristoacutefanes para o cearensecircs da versatildeo jaacute citada da peccedila produzida por Ana Maria Ceacutesar

Pompeu texto que tambeacutem nos serviraacute tambeacutem como paradigma da Comeacutedia Antiga do Auto

da Compadecida de Ariano Suassuna com vistas a demonstrar a importacircncia de se entender

a partir da oralidade linguagem matuta tatildeo presente na obra de Suassuna a finalidade do uso

das vozes do ldquooutrordquo para a construccedilatildeo significativa do proacuteprio poeta Ainda no Quinto Ato

estudamos o riso e do duplo poeacutetico pela inclusatildeo e estudo de Ratildes de Aristoacutefanes do Auto da

Barca do Inferno (1531) de Gil Vicente tendo como foco a cena do julgamento das almas

comum tambeacutem ao Auto da Compadecida ndash momento no qual a personagem se funde ao

poeta educador da cidade com suas preferecircncias e invectivas

Em Aristoacutefanes somos ouvintes das criacuteticas do proacuteprio poeta que em meio ao

caos propiciado pela guerra decide comprar sua paz Em Gil Vicente provamos da

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moralidade cristatilde que de forma direta condena ou absolve os pecadores e falsos pregadores

E por uacuteltimo em Ariano Suassuna construtor de cenaacuterios (im)provaacuteveis nos quais ceacuteu e

inferno disputam os mortos por meio de uma seacuterie de accedilotildees cocircmicas onde a morte por vezes

perde seu caraacuteter traacutegico

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PRIMEIRO ATO

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1 O TEATRO UM DUPLO3 ARTIacuteSTICO ndash TRAGEacuteDIA E COMEacuteDIA

O teatro grego surgiu no contexto do culto religioso estando ligado

particularmente ao Deus Dioniso permanecendo ligado tambeacutem agrave religiatildeo A palavra teatro

segundo Pereira (2006 P24) tem sua origem no grego theacuteatron (έ) em que theacutea

(έ) quer dizer accedilatildeo de olhar de contemplar aspecto objeto de contemplaccedilatildeo espetaacuteculo

e em que o sufixo ndashtron (-) significa lsquoinstrumento dersquo e theacuteatron querer dizer

lsquomaacutequina de espetaacuteculosrsquo Theacutea e theacuteatron tecircm derivaccedilatildeo do verbo theaacuteomai (ά ou

ῶ) que significa ver contemplar considerar examinar ser espectador contemplar

pela inteligecircncia Entretanto o teatro teve em sua origem duas modalidades artiacutesticas

principais a trageacutedia e a comeacutedia

Pereira (2006) destaca que a palavra trageacutedia em grego (τραγῳδία) deriva de

tragos (τράγος) que significa bode puberdade os primeiros desejos do sentido lubricidade

(pois o bode simbolizava para os antigos pelas suas caracteriacutesticas o desejo sexual a

lubricidade) e de ode (ᾠή) que significa canto com acompanhamento de instrumentos

accedilatildeo de cantar

A palavra tragoidiacutea (τραγῳδία) de acordo com Fernandes (2006) significava em

grego ldquocanto do bode canto religioso com o qual se acompanhava o sacrifiacutecio de um bode nas

festas de Dioniso trageacutedia drama heroacuteico evento traacutegicordquo O tragoidoacutes (τραγῳδός) era

primordialmente aquele que danccedilava e cantava durante a imolaccedilatildeo de um bode nas festas de

Dioniso sendo que este termo significou tambeacutem em seguida lsquoaquele que danccedila e canta em

um coro traacutegico ator traacutegico membro do coro traacutegico poeta traacutegico Para alguns estudiosos o canto do bode era o canto dos companheiros de Dioniso em seus cortejos orgiaacuteticos dos saacutetiros os filhos de Sileno - que teria segundo uma tradiccedilatildeo sido um educador daquele deus (Sileno era famoso pela sua feiuacutera e sua sabedoria e suas formas eram em parte equinas) Poreacutem soacute muito tardiamente ndash a saber na eacutepoca heleniacutestica e romana da cultura grega - os saacutetiros foram representados como seres em que se misturavam formas humanas e formas caprinas tendo os membros inferiores ateacute mais ou menos a cintura em forma caprina e um chifre e feiccedilotildees que lembravam as feiccedilotildees caprinas No tempo aacuteureo das trageacutedias e mesmo pouco depois ndash a saber no seacuteculo V e IV a C - os saacutetiros apareciam como seres em que se misturavam as formas humanas com a equina tendo entatildeo os membros inferiores semelhantes agraves patas traseiras de um cavalo aleacutem de um rabo e orelhas de cavalo Esta hipoacutetese permaneceu poreacutem apoiada em passagens de textos do seacuteculo V (particularmente no fragmento 207 do Prometeu Pirceu de Eacutesquilo) em que saacutetiros satildeo chamados de bode natildeo pela sua forma mas

3 Nesta pesquisa trabalhamos com o conceito de Duplo estabelecido por Anna Beltrametti no artigo ldquoLe couple comique Des origines mythiques aux deacuterives philosophiques incluiacutedo na obra dirigida por Marie-Laurence Esclos Le rire des grecs anthropologie du rire en Gregravece ancienne (2000 p 215-226)

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hipoteticamente pela sua lasciacutevia ndash pois como jaacute dissemos o bode eacute caracterizado pela lubricidade (PEREIRA 2006 p7)

Outra hipoacutetese esta defendida por Lesky (1999) foi a de que o canto do bode era

o canto lamentoso da viacutetima sacrificada a Dioniso ndash que como vimos acima era um bode

Toda a trageacutedia se assemelha a um ritual de sacrifiacutecio No centro da orquestra no teatro

grego havia um altar a Dioniso (o thymeacutelendashθυμέλη) sugerindo que o destino traacutegico do heroacutei

e a representaccedilatildeo traacutegica eram como uma imolaccedilatildeo a Dioniso Na Greacutecia sobretudo nas

eacutepocas arcaicas eram praticados rituais de sacrifiacutecio dos chamados bodes expiatoacuterios (em

grego pharmakoacutesndashφαρμακός) em que um indiviacuteduo carregado de todas as impurezas da

comunidade era sacrificado

Em Atenas havia um ritual nas festas chamadas Targeacutelias4 dedicadas a Apolo e

Aacutertemis que remetia a este sacrifiacutecio Um homem e uma mulher eram surrados enquanto

eram conduzidos atraveacutes de toda a cidade Depois eram sacrificados fora das fronteiras da

cidade queimados e suas cinzas jogadas no mar Na eacutepoca claacutessica eram apenas jogados no

mar e depois expulsos para fora das fronteiras da cidade Eles eram chamados de pharmakoiacute5

bodes expiatoacuterios

O ritual de sacrifiacutecio era uma tradiccedilatildeo que existia em muitas outras civilizaccedilotildees

Nas Saacuteceas6 babilocircnicas por exemplo que satildeo mencionadas por Nietzsche em O nascimento

da trageacutedia um prisioneiro era sacrificado depois de ser nomeado rei da Babilocircnia por cinco

dias tempo em que tinha direito a desfrutar de todo o hareacutem do proacuteprio rei e de dar livre curso

a todos os seus apetites ateacute o momento de seu sacrifiacutecio Durante este tempo as orgias eram

celebradas em toda a cidade

Na Poeacutetica de Aristoacuteteles trageacutedia e comeacutedia assemelham-se quando satildeo

apresentadas como ldquomimesis7rdquo (1447a) e diferem porque autores cocircmicos ldquoimitamrdquo homens

4 Targeacutelia era um dos principais festivais atenienses realizados em honra a Apolo e Aacutertemis tal festival era celebrado no mecircs de Targeliatildeo (relativo ao periacuteodo de 15 de maio a 15 de junho) 5 Sacrificar (real ou simbolicamente) um bode expiatoacuterio para purificar a cidade era comum no mundo grego A pessoa sacrificada chamava-se pharmakoacutes Em Atenas o rito era parte das Targeacutelias festival em honra a Apolo Para ser pharmakoiacute as pessoas tinham que ser detentores de deficiecircncia fiacutesica e os considerados inuacuteteis 6 Festas que se celebravam na Peacutersia antiga e durante as quais os escravos mandavam nos amos 7 Como notado por GOLDEN Leon Aristotle on the Pleasure of Comedy In A O Rorty Essays on Aristotlersquos Poetics (1992 27) Do gr miacutemesis ldquoimitaccedilatildeordquo (imitatio em latim) designa a accedilatildeo ou faculdade de imitar coacutepia reproduccedilatildeo ou representaccedilatildeo da natureza o que constitui na filosofia aristoteacutelica o fundamento de 7Heroacutedoto foi o primeiro a utilizar o conceito e Aristoacutefanes em Tesmofoacuterias (411) jaacute o aplica O fenocircmeno natildeo eacute um exclusivo do processo artiacutestico pois toda atividade humana inclui procedimentos mimeacuteticos como a danccedila a aprendizagem de liacutenguas os rituais religiosos a praacutetica desportiva o domiacutenio das novas tecnologias etc Por esta razatildeo Aristoacuteteles defendia que era a miacutemesis que nos distinguia dos animais

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piores e os traacutegicos os ldquoimitamrdquo melhores do que satildeo na realidade (1448a) Sendo a mimesis

considerada pelo filoacutesofo como congecircnita agrave natureza humana ndash que com ela se compraz e

aprende ndash a poesia naturalmente tomou as formas da iacutendole particular dos poetas os de

acircnimo mais elevados mimetizavam accedilotildees nobres atraveacutes de hinos e encocircmios e os de mais

baixas inclinaccedilotildees compunham vitupeacuterios (1449a) Vinda agrave luz atraveacutes da poesia a mesma

distinccedilatildeo estendeu-se ao teatro dos ditirambos em honra a Dioniso originou-se a trageacutedia e

nos cantos faacutelicos ndash que tambeacutem evocavam o mesmo Deus ndash pode-se perceber as sementes da

comeacutedia

Na cena teatral segundo Aristoacuteteles (Poeacutetica 1448b) a comeacutedia apresentava o

que os homens tecircm de ridiacuteculo caracterizado como ldquodefeito torpeza anoacutedina e inocenterdquo a

maacutescara cocircmica era disforme mas natildeo possuiacutea expressatildeo de dor Por sua vez a trageacutedia aacutetica

mimetizava homens superiores em accedilotildees de caraacuteter elevado que suscitavam terror (phobos) e

compaixatildeo (eleas) e provocavam o prazer que eacute proacuteprio desses sentimentos

Sem desconsiderar que uma localizaccedilatildeo muito rigorosa das origens seria um erro

metodoloacutegico ressalto a origem comum da trageacutedia e da comeacutedia ndash nos coros dionisiacuteacos ndash

ainda que predominantemente a Filosofia demonstre muito menos apreccedilo por essa uacuteltima Se

a trageacutedia surgiu dos ditirambos a comeacutedia comeccedilou com os komoi uma espeacutecie de procissatildeo

jocosa das quais a mais famosa era realizada nas festas dionisiacuteacas para celebrar a fertilidade

da natureza atraveacutes de homenagens a reproduccedilotildees de falos descomunais ndash costume ainda vivo

em algumas regiotildees da Greacutecia e Japatildeo

Os comediantes (komoidoi) andavam de aldeia em aldeia por natildeo serem tolerados

na cidade registrou Aristoacuteteles (1448b) Oficialmente as representaccedilotildees cocircmicas tiveram

origem nas Dioniacutesias Urbanas (486aC) em Atenas mas cenas pintadas em vasos revelam

sua existecircncia bem antes da data oficial

ldquoA trageacutedia surgiu do coro traacutegicordquo Pode-se ler em O nascimento da trageacutedia

(NIETZSCHE 2007 p52) quando Nietzsche interpreta a origem da trageacutedia no coro dos

saacutetiros de um modo bastante especiacutefico tomando como arma a luta contra a ideia de

naturalismo na arte O coro mesmo eacute percebido ldquocomo uma muralha viva que a trageacutedia

estende agrave sua volta a fim de isolar-se do mundo real e de salvaguardar para si o seu chatildeo ideal

e a sua liberdade poeacuteticardquo (p54) E o faz preservando as semelhanccedilas com os antigos coros

satiacutericos gregos e sua erracircncia por terrenos mais elevados ldquomuito acima das sendas reais do

perambular dos mortaisrdquo (p54) O saacutetiro ndash ldquoser natural e fictiacuteciordquo ndash eacute percebido em relaccedilatildeo ao

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homem grego civilizado do mesmo modo que a muacutesica dionisiacuteaca em relaccedilatildeo agrave civilizaccedilatildeo O

coro satiacuterico suspende eleva e supera o grego civilizado da mesma forma como a claridade do

sol faz com as luzes das lacircmpadas escreve Nietzsche

Expressatildeo do proacuteprio desejo com sua erracircncia original o coro satiacuterico criava um

territoacuterio transcendente distanciado da realidade cotidiana natildeo apenas tolerado como

ldquoliberdade poeacuteticardquo e sim considerado pelo menos por Nietzsche a proacutepria ldquoessecircncia de toda

poesiardquo (p54) O mesmo filoacutesofo escreveu O ecircxtase do estado dionisiacuteaco com sua aniquilaccedilatildeo das usuais barreiras e limites da existecircncia conteacutem enquanto dura um elemento letaacutergico no qual imerge toda vivecircncia pessoal do passado Assim se separam um do outro atraveacutes desse abismo do esquecimento o mundo da realidade cotidiana e o da dionisiacuteaca (NIETZSCHE 2007 p55)

Devo advertir de iniacutecio que eacute difiacutecil dizer por que a partir de uma origem comum

ndash a experiecircncia dionisiacuteaca ndash o distanciamento arrebatador do mundo cotidiano prosaico gerou

expressotildees tatildeo diversas a ponto de constituiacuterem gecircneros ateacute hoje existentes como o cocircmico e

o traacutegico E segundo Nietzsche este uacuteltimo eacute com ajuda de Apolo a ldquodomesticaccedilatildeo artiacutestica

do horriacutevelrdquo enquanto o primeiro seria uma ldquodescarga da naacuteusea do absurdordquo (NIETZSCHE

2007 p56)

Ao longo da histoacuteria entretanto pode-se perceber que o entrelaccedilamento de ambos

no que ficou conhecido como ldquotragicocircmicordquo a ponto de tornar-se popular a ideia expressa

pelo ditado ldquoseria cocircmico se natildeo fosse traacutegicordquo Como tantos outros os termos originais

foram banalizados esvaziados de conteuacutedo tornados difusos

Se em sua origem o cocircmico era o outroduplo do traacutegico tambeacutem desde esses

tempos a saacutetira jaacute se fazia presente como companhia do texto cocircmico A chamada ldquoComeacutedia

Antigardquo (425-404 aC periacuteodo da produccedilatildeo de Aristoacutefanes que nos chegou) caracteriza-se

pela mordacidade caacuteustica na mimesis dos cidadatildeos proeminentes e das instituiccedilotildees dapolis8

seja pelos a(u)tores seja pela manifestaccedilatildeo das proacuteprias personagens que algumas vezes

representavam em cena o proacuteprio discurso revelador das injusticcedilas sociais tatildeo comuns na

Cidade

Nesse contexto o Duplo sempre foi um tema profundamente instigante da cultura

humana e sempre esteve essencialmente relacionado em vaacuterias aacutereas do conhecimento como

na Filosofia Psicologia Literatura e na Mitologia persistindo temporalmente como temaacutetica 8 Para a normatizaccedilatildeo de algumas palavras gregas em portuguecircs seguimos o Glossaacuterio elaborado pelo Laboratoacuterio de Estudos Sobre a Cidade Antiga Disponiacutevel em pdf no site wwwmaeuspbrlabeca aba glossaacuterio No caso de palavras jaacute dicionarizadas utilizamos a forma de acordo como que consta no Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa (2008)

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sempre revisitada e geradora de ambiguidades Na Antiguidade o Duplo era para a

sociedade a representaccedilatildeo ou o reflexo do idecircntico ou seja prevalecia a ideia de Duplo como

o homogecircneo manifestaccedilatildeo do igual

No entanto natildeo permaneceu dessa maneira tendo com o passar do tempo a partir

do seacuteculo XVIII se tornado heterogecircneo isto eacute o Duplo passa a representar o desigual ou em

outras palavras o oposto em Suassuna o arremedo cocircmico Este fato encontra comprovaccedilatildeo

quando procuramos as diferenccedilas existentes entre o traacutegico e o cocircmico tatildeo bem delineadas na

sociedade Greacutecia Claacutessica

Obscura como outros siacutembolos e projeccedilotildees coletivas a figura do duplo em

Acarnenses (Diceoacutepolis) e no Auto da Compadecida (Joatildeo Grilo) eacute cocircmica e criacutetica visto que

satildeo elementos que parodiam o serviccedilo divino cantando errado e fazendo sermotildees

moralizantes travestem-se usam maacutescaras passeiam com maestria nos mundos popular e

erudito representam coletivos pelo poder da gargalhada do riso seacuterio e da tolice formas mais

sutis para se levar ao conhecimento da audiecircncia o desdobramento da consciecircncia ao mesmo

tempo a do idiota e a do bufatildeo que a utiliza como maacutescara e a coloca em praacutetica na defesa do

cidadatildeo injusticcedilado

Cantando errado e fazendo sermotildees moralizantes os a(u)tores travestem-se de

heroacuteis cocircmicos satildeo porta-vozes da opiniatildeo de muitos se apoderam do grotesco usam

maacutescaras passeiam com maestria nos mundos popular e erudito representam coletivos pelo

poder da gargalhada do riso seacuterio e da tolice e encontram em seus outros as formas

mais(in)certas para criticar agravequeles que exploram a cidade e levar ao puacuteblico atraveacutes de

figuras idiotizadas os ensinamentos que ironicamente o poeta preocupado com o destino do

cidadatildeo executa diante de suas audiecircncia

Esta dualidade cocircmica estabelecida pelo poeta e seus duplos no espaccedilo cecircnico da

cidade eou do inframundo implica certa ambiguidade constitutiva na figura do heroacutei cocircmico

ou do juiz apresentado em Acarnenses no Auto da Compadecida e no Auto da Barca do

Inferno tendo em vista tambeacutem a accedilatildeo dos pares antagocircnicos estuacutepido e saacutebio grosseiro e

sutil escravo das pulsotildees e senhor de si mesmo menos e mais humano

Assim percebe-se que tanto no teatro aristofacircnico quanto no teatro popular de

Ariano Suassuna o autoconhecimento expresso pelas maacutescaras gestos e vozes cocircmicas

implica tambeacutem no conhecimento da condiccedilatildeo humana tatildeo bem levada a seacuterio pelos autores e

seus discursos criacuteticos sendo portanto uma nova forma de combinar velhos ingredientes

como o riso frouxo e a voz estridente educadora aacutecida da sociedade ateniense que encontra

espaccedilo semacircntico atraveacutes dos gestos e maacutescaras que se organizam em uma nova composiccedilatildeo

24

natildeo soacute da cena teatral mas da inteligecircncia de autores que pensam a sociedade para aleacutem das

mazelas das injusticcedilas vivenciadas impostas pelo estado de guerra

Nesse ambiente muacuteltiplopolifocircnico observamos que a ldquovoz do poetardquo os gestos

e as maacutescaras satildeo fundantes da estrutura do discurso educativo e denunciador formado a

partir da presenccedila de vaacuterias vozes como a do proacuteprio poeta que tem sido um tema de grande

interesse para muitos estudiosos e para todos que se deparam com a problemaacutetica da

identificaccedilatildeo desta quando articulada agrave formaccedilatildeo dos duplos do poeta dentro da Comeacutedia

Antiga perceptiacutevel nas peccedilas Acarnenses de Aristoacutefanes no Auto da Compadecida de

Ariano Suassuna e no Auto da barca do Inferno de Gil Vicente

Por ser uma arte que permanece haacute tantos seacuteculos o teatro desperta curiosidade

acerca de seus primoacuterdios existindo vaacuterias conjecturas e teorias sobre o surgimento da

Comeacutedia Antiga como ambiente extremamente propiacutecio agrave formaccedilatildeo de duplos a partir de

uma seacuterie de elementos presente no mito e culto do deus do teatro Dioniso no qual as vozes

os gestos e as maacutescaras satildeo sobrepostas como causa de equiacutevocos e componentes centrais das

invectivas pessoais ou intrigas transformando-se em acessoacuterios fundamentais para o discurso

moralizante e para alcanccedilar o objetivo maior do a(u)tor a obtenccedilatildeo da paz em Acarnenses de

Aristoacutefanes e a absolviccedilatildeo no Auto da Compadecida de Ariano Suassuna ou na condenaccedilatildeo

das almas em virtude de suas faltas e pecados em vida como esclarece Nemeacutesio (1941) num

ritmo sacral na abordagem vicentina no Auto da Barca do Inferno

Eacute notaacutevel contudo observar que esses elementos frequentemente utilizados por

Aristoacutefanes em suas peccedilas tambeacutem encontram eco na literatura popular de Suassuna Isso

decorre do fato de a obra do pernambucano tambeacutem apresentar uma tessitura textual

atravessada por muacuteltiplas vozes estas representadas pelas diferentes personagens Nesse

processo as obras dos dois autores evidenciam um fenocircmeno recorrente e natural marcado

pela tensatildeo de uma crise profunda denunciada pelos dramaturgos nos discursos de suas

personagens

Assim eacute pertinente que primeiro justifiquemos a escolha das obras citadas visto

que ambas trazem em seus enredos personagens que usam da autoridade conferida pelo poeta

para ressoar seus anseios e indignaccedilotildees atraveacutes do discurso Ao longo das peccedilas Aristoacutefanes e

Suassuna projetam seus duplos de forma que suas proacuteprias vozes possam ser ouvidas

indiretamente por traacutes de cada ato levando o puacuteblico a crer que ouve a voz direta do poeta

25

quer atraveacutes do coro do palhaccedilo coreuta da paraacutebase9 ou em personagens protagonistas

como Diceoacutepolis ou Joatildeo Grilo

Atraveacutes dessas personagensautores a voz do dramaturgo eacute projetada pelo riso da

mangofa10 pelos gestos performaacuteticos pelo arremedo poeacutetico eou pelo outro travestido de

a(u)tor accedilotildees perfeitamente justificaacuteveis visto que o cocircmico tem afinidade com a cultura

popular porque utiliza fatos do dia a dia como mateacuteria na representaccedilatildeo de algo atraindo

consequentemente a atenccedilatildeo do leitor ou ouvinte para a obra A verdade eacute que a conduccedilatildeo

cocircmica e moralizante encontra espaccedilo feacutertil em ambas as obras traduzida pela accedilatildeo do poeta a

partir das vozes de seus duplos Diceoacutepolis e Joatildeo Grilo figuras conturbadas em franco

desacordo com a situaccedilatildeo promovida pelos legisladores em Atenas ou na pacata cidade de

Taperoaacute interior nordestino Esses protagonistas descobrem-se em atitude de perfeita

rebeldia conscientes das mudanccedilas advindas de suas atitudes e como heroacuteis cocircmicos satildeo

tambeacutem autores de uma saiacuteda que nem sempre pode ser compartilhada socialmente ou

compreendida

Neste contexto a construccedilatildeo do duplo representa um transbordamento do proacuteprio

poeta um arremedo despadronizado o outro do autor uma imitaccedilatildeo de algo que se pretende

por muitas vezes deter e que retorna fazendo pressatildeo no sentido contraacuterio denunciando as

injusticcedilas e desmandos autorizados pelo poeta com toda a sua pujanccedila Quem natildeo recorda das

figuras ceacutelebres de Diceoacutepolis o duplo cocircmico (matuto) de os Acarnenses (Aristoacutefanes) e de

Joatildeo Grilo e Chicoacute sendo uma espeacutecie de duplo pois representa de forma autorizada a

proacutepria voz do poeta com todas as suas anedotas e os ndash Natildeo sei soacute sei que foi assim ou de

algum outro matuto astuto de nossa tradiccedilatildeo cinematograacutefica ou teatral recriado na literatura

de cordel a partir da influecircncia ibeacuterica ou grega

Diante dessa apropriaccedilatildeo e recuperaccedilatildeo dos mecanismos narrativos da comeacutedia e

de seu caraacuteter atemporal torna-se importante salientar que a Comeacutedia Antiga aleacutem de

construir ldquomuacuteltiplos cocircmicosrdquo apresenta personagens natildeo universais como os que satildeo

caricaturas de pessoas que viveram em Atenas em um momento especiacutefico A obra de

Aristoacutefanes potildee em cena nomes de figuras eminentes da Greacutecia antiga como o de poliacuteticos

9 A paraacutebase eacute uma seccedilatildeo de natureza puramente coral da comeacutedia antiga Na Paraacutebase o coro avanccedilaria em direccedilatildeo aos espectadores e pronunciaria os versos olhando para eles O verbo parabaino aparece doze vezes nas peccedilas de Aristoacutefanes Nas suas demais menccedilotildees significa transgredir um juramento (As Aves vv 331 447 461 Lisiacutestrata vv 235 236 As Mulheres que Celebram as Tesmofoacuterias v 357 Assembleia de Mulheres v 1049) Em As Vespas v 1529 o sentido eacute o de avanccedilar danccedilando mas o contexto em que eacute empregado natildeo eacute parabaacutetico DUARTE Adriane da Silva O dono da voz e a voz do dono a paraacutebase na comeacutedia de Aristoacutefanes Satildeo Paulo Humanitas FFLCH USP 2000308 10 Debique escaacuternio mangaccedilatildeo mangoaccedila mangoccedila mofa zombaria mangofa

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(Cleatildeo e Lacircmaco) pensadores (Soacutecrates) e poetas (Euriacutepides e Eacutesquilo)

A referecircncia a essas personalidades bem como o diaacutelogo com a mitologia a

histoacuteria e o teatro natildeo constituiacutea um problema para a plateia de Aristoacutefanes No entanto para

noacutes leitores de outras geraccedilotildees a percepccedilatildeo de tais referecircncias natildeo eacute assim tatildeo simples ainda

que seja fundamental para a compreensatildeo da comeacutedia

Em Aristoacutefanes Diceoacutepolis que atua na comeacutedia como Joatildeo Grilo no Auto da

Compadecida representa muitos cidadatildeos pois ele eacute a ldquoCidade Justardquo espectador do teatro

participante da assembleia ator ou personagem de Euriacutepides vendedor na sua aacutegora Eacute nesta

interaccedilatildeo criaccedilatildeo e recriaccedilatildeo de discursos que estabelecemos contato com o maior

entendimento da histoacuteria da comicidade a fim de entender os recursos que o comedioacutegrafo

utilizou ao compor seus (duplos) personagens que permanecem por seacuteculos em nossa

tradiccedilatildeo

Vale ressaltar que tudo que acontece na cidade tambeacutem eacute do conhecimento do

poeta que no Auto da Compadecida evidenciado por sua proacutepria construccedilatildeo que obedeceu a

uma ideologia antiga do autor de unir o nacional ao popular para operar as mudanccedilas sociais ndash

em Taperoaacute ndash ou por que natildeo dizer em seu mundo real versejado por suas andanccedilas Para ele

a arte que realmente expressa o paiacutes e o povo brasileiro eacute popular ou baseada no popular uma

arte erudita baseada no popular e em tal concepccedilatildeo de arte estaria a gecircnese de seu teatro no

qual desejava expressar suas raiacutezes e seu povo negando assim os modelos de teatro europeu

como se percebe em sua seguinte fala Queria fazer um teatro que expressasse meu paiacutes e meu povo Aiacute me vi muito naturalmente diante do folheto de cordel essa expressatildeo extraordinaacuteria que o povo brasileiro criou e que eacute o uacutenico espaccedilo cultural onde o povo brasileiro se expressou sem intervenccedilotildees nem deformaccedilotildees que lhe viessem de cima ou de fora O folheto de cordel eacute um universo extraordinaacuterio (SUASSUNA 2001 p 04)

Composto pela recriaccedilatildeo criacutetica e por possuir um enredo que proporciona ao

leitorespectador o riso a reflexatildeo e a dor Auto da Compadecida eacute uma mistura de trageacutedia e

comeacutedia como nos afirma Geraldo da Costa Matos Auto da Compadecida eacute misto um duplo pois participa da estrutura traacutegica pela oposiccedilatildeo muito radical dos personagens a ponto de natildeo haver acordo entre eles e da cocircmica pelos incidentes e desenlace com a salvaccedilatildeo de todos graccedilas agrave intervenccedilatildeo da Compadecida permanecendo no inferno apenas os democircnios cuja situaccedilatildeo jaacute se encontra definida ao aparecerem ao palco (SUASSUNA 2005 p82)

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Na verdade apesar de estarem diluiacutedos em toda a peccedila os elementos traacutegicos e

cocircmicos se intercalam com predominacircncia ora de um ora de outro O cocircmico tem presenccedila

mais marcante em torno das accedilotildees do protagonista Joatildeo Grilo e de seu duplo Chicoacute que

enganam os eclesiaacutesticos (Primeiro Ato) o padeiro e a mulher (Segundo Ato) atraveacutes das

mentiras que criam com o objetivo de ganhar algum trocado ou simplesmente para vingar-se

de seus exploradores

As marcas do traacutegico se tornam mais salientes a partir da metade do segundo ato

com a entrada de Severino do Aracaju travestido de mendigo e do Cangaceiro Estes dois se

opotildeem aos demais personagens uma vez que entram em cena para roubar e acabam

provocando a morte de todos que estatildeo na igreja Na cena do julgamento a oposiccedilatildeo entre as

personagens torna-se ainda mais brusca pois se veem de um lado as figuras celestiais e de

outro as figuras demoniacuteacas natildeo havendo acordo entre elas

Eacute justamente nesse abrir e fechar de cortinas que o teatro aristofacircnicosuassuniano

nos proporciona enquanto espectadores uma visatildeo amplamente criacutetica das accedilotildees humanas

seja pelo desejo pessoal injuacuteria ou pela proacutepria paroacutedia que tatildeo bem se propotildee ao

convencimento do puacuteblico Assim concordamos com Brait (1985) ao referir agrave teoria

desenvolvida por Aristoacuteteles em sua poeacutetica sobre os dois pontos essenciais dos personagens

uma vez que o primeiro ponto define o personagem como reflexo da pessoa humana e o outro

concebe o personagem como construccedilatildeo baseada em leis particulares preacute-existentes no texto

Se quisermos saber alguma coisa a respeito de personagens teremos de encarar frente a frente agrave construccedilatildeo do texto social a maneira que o autor encontrou para dar forma agraves suas criaturas e aiacute pinccedilar a independecircncia a autonomia e a ldquovidardquo desses seres de ficccedilatildeo (BRAIT 1985 p11)

Pode-se observar que esses dois pontos se completam estabelecendo bases para a

criaccedilatildeo das personagens Diceoacutepolis e Joatildeo Grilo tanto em Acarnenses como no Auto da

Compadecida a partir do olhar atento do(s) autor(es) jaacute que eles sofrem pela aplicaccedilatildeo das

leis preacute-existentes tanto na sociedade real quanto na ficccedilatildeo sem perder o caraacuteter denunciador

e intencional proposto pelo criador intriacutenseco agraves suas criaturas

Portanto tanto em Acarnenses quanto no Auto da Compadecida o vieacutes cocircmico

utiliza a irreverecircncia para tratar e relatar as dificuldades as opiniotildees e as injusticcedilas da

sociedade de maneira direta e aberta e deste modo se contrapotildee agraves regras sociais que exigem

boas maneiras ou padratildeo que jamais seraacute alvo da comeacutedia

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A comeacutedia eacute o oposto da trageacutedia pois se traduz no uso do riso que faz

ultrapassar os limites da seriedade criando novas e criacuteticas hipoacuteteses e questionamentos sobre

a realidade denunciando os viacutecios erros morais e atitudes irregulares de indiviacuteduos de uma

classe aleacutem de servir para criticar a sociedade dos corrompidos dos inferiores de maneira

camuflada e irreverente Desta forma pode-se afirmar que a performance cocircmica da qual o

riso a maacutescara o gesto e a voz fazem parte constitui-se de forma implacaacutevel em Aristoacutefanes

e Suassuna como arma para a exposiccedilatildeo ao ridiacuteculo e a exposiccedilatildeo de algo ou algueacutem ao

ridiacuteculo natildeo seraacute bem visto perante as regras e as pessoas da sociedade como o proacuteprio

dramturga citando Moliegravere afirmava ldquoNatildeo existe tirania que resista a gargalhadas que lhe

deem trecircs voltas em tornordquo

11 A comeacutedia aristofacircnica

Castigat ridendo mores 11

Devo de iniacutecio chamar a atenccedilatildeo do empenhado leitor que com grande causa e

sem gabaccedilatildeo deve compreender as peripeacutecias dos (anti)heroacuteis que ora apresento entre o curto

espaccedilo de fechar e abrir as cortinas do teatro-mundo cabe uma especial referecircncia agraves obras

postas em anaacutelise ligadas pelo riso denunciativas em suas eacutepocas separadas

cronologicamente e atemporalmente aqui em completude

Desde a Antiguidade o riso e a comeacutedia tecircm servido para manifestar os viacutecios e

as fraquezas humanas Segundo a perspectiva de Aristoacuteteles na sua Poeacutetica a comeacutedia era a

via por onde passava o homem inferior ndash o nosso anti-heroacutei aquele que natildeo era digno de se

prestar agraves trageacutedias e ser chamado de heroacutei Provavelmente foi na Greacutecia que para noacutes a

representaccedilatildeo do homem inferior surgiu Desde entatildeo aquilo que provoca o riso tem sido no

mais das vezes o que eacute condenaacutevel e baixo na humanidade Em ambas as peccedilas o riso eacute a

arma cocircmica que castiga os costumes que estavam em desacordo com a moral e a partir

disso o riso passa a ser um fenocircmeno sobretudo social e humano e que ocorre somente em

circunstacircncias em que de alguma forma a sociedade vecirc-se ameaccedilada a ponto de criar

situaccedilotildees absurdas rupturas para expurgar os males que decorrem dessa situaccedilatildeo de

encurralamento de total exploraccedilatildeo como demonstradas nas peccedilas a seguir

11 Locuccedilatildeo latina que significa rindo castiga-se os costumes

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12 Dioniso Matuto Justinoacutepolis um heroacutei embusteiro

Ana Maria Ceacutesar Pompeu (2011) nos esclarece que Acarnenses eacute a primeira

comeacutedia que nos chegou de Aristoacutefanes encenada em 425 aC Ela traccedila um retrato

caricatural da cidade de Atenas num periacuteodo de crise das instituiccedilotildees democraacuteticas

relacionado diretamente com a guerra do Peloponeso (431 aC -404aC) Eacute a primeira

comeacutedia que conservamos do seu autor como tambeacutem da Comeacutedia Antiga e define-se como

uma peccedila de tema poliacutetico no sentido moderno inspirada na administraccedilatildeo e na experiecircncia

coletiva de uma Atenas que vive plenamente o seu periacuteodo democraacutetico

O tiacutetulo da peccedila refere-se aos habitantes do demos 12 de Acarnas ex-combatentes de

Maratona que tinham apoiado a guerra contra Esparta por as suas terras terem sido saqueadas

pelos guerreiros lacedemocircnios O caraacuteter didaacutetico do texto eacute expresso pelo proacuteprio autor nos

versos 500-501 (p92) ldquoPois o que eacute justo a comeacutedia tambeacutem cunhece Eu vou falaacute coisas

terrive mas justardquo Aleacutem do caraacuteter didaacutetico da comeacutedia aristofacircnica percebe-se tambeacutem a

presenccedila de nomes de alguns personagens que tecircm uma significaccedilatildeo alegoacuterica Diceoacutepolis o

personagem principal significa cidade justa Anfiacuteteo eacute um nome divino e de alguns poliacuteticos e

legisladores da eacutepoca

O autor de Acarnenses constroacutei a sua peccedila a partir de Atenas pintada em funccedilatildeo

do proacuteprio fluir histoacuterico assolada pela guerra O eixo central da comeacutedia eacute a relaccedilatildeo entre o

puacuteblico e o privado alimentada pela disputa entre belicistas e pacifistas quanto agrave guerra pelo

que a sua mensagem eacute poliacutetica sendo o povo ateniense representado como um bando de

loucos e a democracia como uma farsa

A peccedila comeccedila com DiceoacutepolisJustinoacutepolis um camponecircs forccedilado a migrar para

a cidade onde vive em condiccedilotildees precaacuterias e que aguarda a reuniatildeo da asssembleia onde o

tema da discussatildeo de um tratado de paz vai ser deliberado Vendo a praccedila vazia lamenta a

natildeo participaccedilatildeo do povo na reuniatildeo da assembleia ficando a decisatildeo entregue nas matildeos de

poliacuteticos profissionais que por regra eram demagogos revelando uma contradiccedilatildeo do sistema

democraacutetico os destinos da comunidade cujo governo pertence a todos (puacuteblico) fica afinal

entregue ao cuidado de poucos (privado) deixando a porta aberta a todo o arbiacutetrio e

venalidade

12 Na Greacutecia Antiga o demo (em grego δῆμος) era uma subdivisatildeo da Aacutetica regiatildeo da Greacutecia em torno de Atenas Os demos jaacute existiam como meras subdivisotildees de terra nas aacutereas rurais desde o seacuteculo VI aC

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Comeccedilada a assembleia Ambiacutedeus faz a proposta de paz mas eacute rechaccedilado com

ordem de prisatildeo DiceoacutepolisJustinoacutepolis tenta reverter a situaccedilatildeo mas sem sucesso dizendo

Oacute priacutetanes vocecircs tatildeo fazendo mal pra assembleia Arrastando o homem que queria fazecirc treacuteguas Pra noacutes e dependuraacute os escudo (ARISTOacuteFANES POMPEU 2014 p67)

Este breve momento em que apenas dois indiviacuteduos se manifestam a favor da

discussatildeo de um problema central no contexto ateniense agindo no interesse do bem comum

da cidade eacute logo apagado abafado pelo conselho que desviaraacute a sua atenccedilatildeo para os

embaixadores que chegam da Peacutersia

DiceoacutepolisJustinoacutepolis protagoniza a voz da razatildeo numa sociedade dominada por

loucos e safados que teimam em alimentar a guerra com Esparta como pretexto para

enriquecerem agrave sua custa ficando ele cada vez mais miseraacutevel e pobre Diceoacutepolis

desmascara em seguida a funccedilatildeo das missotildees diplomaacuteticas persas na figura de

Pseudaacutertabas 13 como fraudes pois vem prometer ouro com a conivecircncia dos embaixadores

atenienses como manobra de diversatildeo apenas

Com efeito a sua ostentaccedilatildeo agrave custa do dinheiro puacuteblico que contrasta com a

pobreza da maioria dos cidadatildeos desmente a veracidade da proposta que fazem por isso eacute

com palavras acerbas - ldquocus molesrdquo- que os incita a natildeo caiacuterem no logro Diceoacutepolis eacute entatildeo

silenciado a reuniatildeo eacute suspensa e iraacute fazer-se agrave porta fechada no Conselho (Pritaneu) Com

este estratagema o direito de todos participarem na tomada de decisatildeo eacute abolido confinando

a decisatildeo poliacutetica ao segredo dos gabinetes Compreendendo que a guerra natildeo lhe conveacutem

DiceoacutepolisJustinoacutepolis conclui uma paz privada com o inimigo libertando-se da loucura da

cidade Assim fugindo de uma ordem puacuteblica corrompida procura um espaccedilo em que possa

ser o senhor absoluto de si proacuteprio Os acarnenses ficam enfurecidos ao descobrirem que

Diceoacutepolis fez um acordo de paz com os lacedemocircnios apedrejando-o

Entatildeo ele tenta com palavras sensatas expor suas razotildees defender-se das

acusaccedilotildees que lhe satildeo movidas mas o seu direito de defesa eacute contestado com ameaccedilas de

ainda maior violecircncia por parte do coro dos Acarnenses

13 ldquopseucircdosrdquo ldquofalsordquo artaacutebe ldquomedida persardquo Falsidacircmetro in Traduccedilatildeo Matuta Cearense de Dyscolos o Enfezado de Menandro POMPEU e SANTOS Cultura e Traduccedilatildeo v 5 n 1 (2017) ISSN 2238-9059 Disponiacutevel em httpperiodicosufpbbrojs2indexphpct 2017

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ldquoCoro Quero eacute morrecirc seu ti iscutaacute Diceoacutepolis Num faccedila isso natildeo oacute Acaacuternicos Coro Tu vai morrecirc fica sabenrsquoagorardquo (ARISTOacuteFANES POMPEU 2014 p81-82)

A democracia encontra-se subvertida na sua essecircncia quando a violecircncia

imperante impede que o criteacuterio de resoluccedilatildeo dos conflitos seja resolvido com recurso agrave livre

discussatildeo em condiccedilotildees igualitaacuterias no espaccedilo puacuteblico Eacute o que estaacute acontecendo primeiro

na assembleia depois eacute-lhe negado o direito de defesa contra as acusaccedilotildees dirigidas a um

cidadatildeo finalmente eacute silenciado e suspenso a sua proposta de discussatildeo

DiceoacutepolisJustinoacutepolis eacute o proacuteprio Aristoacutefanes criador e criatura autorizado a

assumir o risco de morte proclama o que julga ser justo para a cidade e denuncia a retoacuterica

fraudulenta dos oradores que conquistam o povo com o sortileacutegio encantatoacuterio do seu

discurso Taquioia este tronco aqui E o home que vai falaacute eacute deste tamanhin Tenha cuidado natildeo num vocirc me armaacute de iscudo Vocirc falaacute em favocirc dos lacedemocircmios o qrsquoeu acho Mas tenho muito que temecircPois os modo Dos lavradocirc conheccedilo eu eles fica muito alegre Se pra eles e pra cidade fizeacute elogio algum Home inrolatildeo com justiccedila ou sem ela E aiacute num se datildeo conta que tatildeo seno eacute vindido E dos veacuteio tambeacutem conheccedilo as alma que Num bota a vista noutra coisa mas soacute em mordecirc cum voto Euzin aqui sei o que sofri nas matildeo de Cleatildeo Por causa da cumeacutedia do ano passado Pois teno me arrastado pro tribunal Ele me caluniava e cuspia mintiras contra mim Era uma cachoecircra e me banhava que quase Murri afogado na cusparada de insultos Agora intatildeo antes de falaacutedecircxeprimecircro Qacuteeu me vista como o mais miserave de tudin (ARISTOacuteFANES POMPEU 2014 p84)

Na parte final da peccedila o Coro modula a sua posiccedilatildeo ao final da intriga vindo a

reconhecer o serviccedilo que o poeta prestou agrave comunidade e que o tratado de paz eacute o mais justo

para a cidade pois restabeleceraacute o valor da democracia para as cidades desmascarando os

maus costumes e seus legisladores exploradores do povo

Vale ressasltar que o poeta usa uma histoacuteria cocircmica e simples como enredo a

proacutepria histoacuteria passa a ser um mero pretexto para o desenvolvimento cocircmico em Acarnenses

jaacute que a saacutetira eacute um elemento importante e porque natildeo moralizante nesse contexto

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Tatildeo bem quanto Aristoacutefanes Suassuna elaborou seus personagens seguindo um

esterioacutetipo social No enredo da comeacutedia aristofacircnica encontramos dois elementos (1) o (anti)

heroacutei (2) o esquema fantaacutesticomoralizante

13 O (anti)heroacutei Aristofacircnico

A figura do heroacutei tanto na literatura quanto fora dela eacute laureada com uma

tragicidade iminente o traacutegico que no contexto da mitologia eacute muito mais do que a

encarnaccedilatildeo da perda do sofrimento e das incertezas humanas no fim o traacutegico eacute o

eminentemente humano contra o divino a lembranccedila irrestrita da pequenez ceacutelere e irasciacutevel

da existecircncia humana

Jaacute a comeacutedia grega sobretudo a de Aristoacutefanes nos remete da forma mais

evoluiacuteda a uma concepccedilatildeo de existecircncia que prevecirc de forma profeacutetica que nem tudo o que eacute

humano ou divino deve ser levado muito a seacuterio pois no final tudo eacute poacute a vida um suspiro no

vazio das eras portanto natildeo se pode levar nada muito a seacuterio numa clara conotaccedilatildeo Dioniacutesia

O camponecircs ateniense como sujeito histoacuterico e tambeacutem como personagem do

teatro cocircmico de Aristoacutefanes foi figura central e essencial no decorrer do seacuteculo V a C

desde que sua posiccedilatildeo eacutetico-social permaneceu intacta frente aos sofrimentos beacutelicos de

Atenas pelo que tomou um caraacutecter de idealizaccedilatildeo tanto em sua posiccedilatildeo de cidadatildeo como nas

personificaccedilotildees da comeacutedia aristofaacutenica

O heroacutei de Aristoacutefanes natildeo eacute limitado ao desejo do puacuteblico somente de riso ou

excessos ele tem a grandeza de contradizer o estabelecido de conduzir o ouvinte a um

caminho de excesso que educam de entendimento proferido por um agente que carregado de

um heroiacutesmo simples jamais seraacute unilateral ou submisso E toda essa inquietaccedilatildeo que

provoca a presenccedila desse duplo para a Comeacutedia Antiga eacute uma ferramenta que constroacutei o

heroacutei cocircmico aristofacircnico segundo Whitman (1969 p 25) Essa unidade de autoconceito e autoafirmaccedilatildeo confere ao espiacuterito heroacuteico uma espeacutecie de pureza mas dificilmente eacute o que poderiacuteamos chamar de coerecircncia pois a qualquer momento o heroacutei pode desrespeitar todas as expectativas em deferecircncia aos misteacuterios particulares de sua proacutepria vontade Ele eacute pode-se dizer consistente consigo mesmo mas como ele cria a si mesmo agrave medida que age o resultado natildeo pode ser conhecido de antematildeo nem mesmo por si mesmo O heroiacutesmo eacute como se pode dizer dirigido pelo seu interior e embora as direccedilotildees possam diferir o princiacutepio vale as aparecircncias agraves vezes ao contraacuterio nenhuma abstraccedilatildeo jamais poderaacute controla o heroacutei em busca da totalidade E eacute precisamente isso que os heroacuteis de Aristoacutefanes satildeo 14

14 14This unity of self-conception and self-assertion gives to the heroic spirit a kind of purity but hardly what we would call consistency for at any moment the hero may flout all expectation in deference to the private

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Aristoacutefanes como ningueacutem conferiu ao seu (anti)heroacutei a figura simples de um

homem rural idealmente eacutetico e poliacutetico que a polis ateniense precisava para se reconstruir e

se transformar Essa percepccedilatildeo do camponecircs em Aristoacutefanes daacute uma indicaccedilatildeo dos eventos

tanto do cidadatildeo quanto da cidade e daacute ao leitor uma leitura histoacuterica diferente dos eventos

que Atenas sofreu durante a Guerra do Peloponeso

O (anti)heroacutei aristofacircnico como DiceoacutepolisJustinoacutepolis eacute tipificadamente matuto

que se angustia diante de alguma caracteriacutestica perturbadora da sociedade contemporacircnea por

exemplo o prolongamento da guerra os poliacuteticos corruptos que dominam a ecclesia a

loucura das demos atenienses Incapaz de convencer os outros de sua loucura o heroacutei sai por

conta proacutepria colocando em praacutetica algum tipo de esquema fantaacutestico que pretende acertar as

coisas

Diceoacutepolis reconhece as consequecircncias que prejudicaram a cidade e que tambeacutem

foram percebidas por Aristoacutefanes que com sua poesia sua repercussatildeo e sinceridade

colocou em cena o Cidadatildeo-espectador viacutetima direta da decadecircncia e que teraacute discernimento

sobre as decisotildees dos estrategistas e governadores com os atos de guerra

Segundo Fisher (1993 p33) o (anti)heroacutei de Acarnenses tem sua accedilatildeo construiacuteda

nos vaacuterios lugares apresentados na peccedila o que levou Aristoacutefanes a estabelecer relaccedilatildeo com as

vaacuterias personalidades assumidas por DiceoacutepolisJustinoacutepolis dentre as quais ele cita a de

espectador de festivais dramaacuteticos e a de lavrador

Revelado para o puacuteblico Justinoacutepolis que vive vaacuterios outros papeacuteis representa o

justo da cidade ou o cidadatildeo justo Direto e conhecedor dos truques que o levariam a

convencer a assembleia apresenta-se a Euriacutepides pela proacutepria voz dizendo seu nome e o

demos a que pertence Mermo assim Pois num vocirc mimbora vocirc eacute bater na porta Euriacutepides Euripidizin Me ouve se alguma vez tu ocircviu um home Justinoacutepolis de Colides te chama eu (ARISTOacuteFANES POMPEU 2014 p86)

Entretanto rapidamente o espectador toma conhecimento da intenccedilatildeo de

Justinoacutepolis que eacute se transformar em outra pessoa Para isso ele pede ao tragedioacutegrafo um mysteries of his own will He is one might say consistent with himself but since he creates himself as he goes the result cannot be foreknown even perhaps by himself Heroism is one might say inner-directed and though the directions may differ the principle holds appearances sometimes to the contrary no abstraction ever controls the hero in quest of wholeness And that is precisely what Aristophanes heroe sare (Traduccedilatildeo nossa)

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trapo (= κιον) usado por atores que interpretam mendigos em suas trageacutedias pois ele vai fazer

um discurso ldquoPois tenho que falaacute pro coro um leriado grande Ele traz a morte sacuteeufalaacute malrdquo

(vv 426-427) E para convencer Diceoacutepolis acredita que ldquoEacute que tenho que achaacute que socirc um

ismoleu hojerdquo (vv440)

Portanto o espectador percebe que Justinoacutepolis se transforma em Teacutelefo

incorporando a personalidade de Teacutelefo mesmo que essa incorporaccedilatildeo seja planejada e usada

como arma argumentativa Assim como Teacutelefo Justinoacutepolis eacute o homem do convencimento

mesmo que para convencer ele pareccedila deixar de ser ele mesmo

Em Acarnenses o enredo eacute costurado pelas artimanhas do (anti)heroacutei quando faz

uma paz privada com os espartanos para que ele possa desfrutar das becircnccedilatildeos da paz que foram

perdidas com o iniacutecio da guerra

14 Auto da Compadecida Uma estoacuteria de outras estoacuterias

Os instrumentos culturais mais relevantes no enredo satildeo as crenccedilas e a literatura

de cordel da realidade regional brasileira mais precisamente da realidade regional nordestina

A narrativa do Auto da Compadecida eacute fundamentada em romances e narraccedilotildees populares

Composta de elementos que expotildeem a cultura popular do homem do Nordeste Ariano

Suassuna aborda assuntos universais atraveacutes de figuras populares que mostram integramente

a figura do povo nordestino um povo oprimido tanto por aspectos climaacuteticos quanto sociais

O autor faz ainda uso do humor e da criacutetica ao falar sobre a realidade do homem nordestino

O Auto da Compadecida (1955) de Ariano Suassuna eacute uma peccedila teatral em

forma de auto (gecircnero da literatura que trabalha com elementos cocircmicos e tem intenccedilatildeo

moralizadora) Eacute um drama nordestino apresentado em trecircs atos Esta antologia reuacutene trecircs

folhetos dos quais Ariano Suassuna tirou os motivos e peripeacutecias de seu Auto da

Compadecida Embora o autor paraibano tenha se utilizado de muitos temas populares em sua

peccedila estes poemas satildeo as fontes principais como nos assegura Tavares (2004 p191)

Disse um criacutetico

Como foi que o senhor teve aquela ideacuteia do gato que defeca dinheiro Ariano respondeu Eu achei num folheto de cordel O criacutetico E a histoacuteria da bexiga de sangue e da musiquinha que ressuscita a pessoa Ariano lsquoTirei de outro folhetorsquo O outro E o cachorro que morre e deixa dinheiro para fazer o enterro Ariano lsquoAquilo

35

ali eacute do folheto tambeacutem rsquo O sujeito impacientou-se e disseAgora danou-se mesmo Entatildeo o que foi que o senhor escreveu E Ariano lsquoOacute xente Escrevi foi a peccedilarsquo

De acordo com Braulio Tavares (TAVARES 2004 p 104) ldquoAriano escolheu o

folheto como a ceacutelula-matildee de uma nova maneira de fazer arte de enxergar o Nordeste de

enxergar o mundo e de recriar suas formasrdquo A utilizaccedilatildeo desse tipo de reescrita a partir de

textos populares compreende uma escrita mais aproximada do povo do Romanceiro

Nordestino transmitido oralmente eou atraveacutes dos folhetos de cordel

A grande importacircncia do folheto no meu entender eacute que o folheto eacute o uacutenico espaccedilo em que o povo brasileiro se expressou sem influecircncias e sem deformaccedilotildees que lhe viessem de cima de fora Aqui ele se expressou como ele eacute Aqui natildeo imitou a Franccedila natildeo imitou a Inglaterra nem os Estados Unidos O povo brasileiro aqui se expressou como ele eacute Entatildeo essa eacute a grande liccedilatildeo do folheto em feira (SUASSUNA apud TAVARES 2007 p 26)

Segundo Vassalo (1993) a obra se divide em trecircs episoacutedios e os folhetos

utilizados na construccedilatildeo arquitetocircnica da obra estatildeo distribuiacutedos de forma arquitetocircnica

O primeiro ato se baseia em O enterro do cachorro fragmento do folheto O dinheiro de Leandro Gomes de Barros o segundo na Histoacuteria do cavalo que defecava dinheiro do mesmo artista o terceiro amalgama O castigo da soberba de Anselmo Vieira de Souza e A peleja da Alma de Silvino Pirauaacute Lima ambos retomados pelo entremez de Suassuna O castigo da soberba Proveacutem ainda do romanceiro a cantiga de Canaacuterio Pardo utilizada como invocaccedilatildeo de Joatildeo Grilo a Maria o nome Compadecida e a estrofe com que o Palhaccedilo encerra o espetaacuteculo pedindo dinheiro satildeo tomados ao folheto O castigo da soberba(VASSALO In CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA 2000 p 156)

Liacutegia Vassalo aproxima no ensaio citado o teatro de Suassuna ao o teatro

medieval cabe ressaltar que mais adiante nos ocuparemos no ATO V do teatro de Gil

Vicente quando vamos tratar do julgamento das almas no inferno alegoacuterico em diaacutelogo

alinhado entre o autor portuguecircs e Ariano Suassuna

Sobre o auto de Suassuna vale ressaltar que conteacutem elementos do cordel

brasileiro e estaacute inserido no gecircnero da comeacutedia aproximando-se dos traccedilos do barroco

catoacutelico brasileiro O autor faz uso de uma linguagem que privilegia o regionalismo atraveacutes da

caracterizaccedilatildeo das particularidades do falar do homem do sertatildeo Nordeste

A peccedila foi escrita em 1955 e encenada pela primeira vez em 1956 Anos mais

tarde foi adaptada para a televisatildeo e para o cinema em 1999 e 2000 respectivamente

Na peccedila Ariano Suassuna trata de maneira leve e com humor do drama vivido

pelo povo nordestino acuado pela seca atormentado pelo medo da fome e em constante luta

contra a miseacuteria Traccedila o perfil dos sertanejos nordestinos que estatildeo submetidos agrave opressatildeo e

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subjugados por famiacutelias de poderosos coroneacuteis donos de terra Nesse contexto o personagem

de Joatildeo Grilo representa o povo oprimido que tenta sobreviver no sertatildeo utilizando a uacutenica

arma do pobre a palavra - astuacutecia

Fica evidente o cunho de saacutetira moralizante da peccedila atraveacutes das caracteriacutesticas de

seus personagens Assim como em Acarnenses de Aristoacutefanes figuras como padeiro e a

mulher que satildeo avarentos que deixam passar necessidade o empregado enquanto cuidam

demasiadamente de um cachorro de estimaccedilatildeo o padre e o bispo gananciosos que utilizam

da autoridade religiosa enquanto legisladores da Igreja para enriquecerem satildeo levados ao

conhecimento do puacuteblico

De forma bem cocircmica e sem as convenccedilotildees que soacute a comeacutedia sabe quebrar todos

estes satildeo condenados ao purgatoacuterio e passam a depender da ajuda astuciosa do roceiro Joatildeo

Grilo poeta travestido e da Compadecida na defesa do coletivo Na obra O riso Henri

Bergson (1987 p 19-21) salienta que o cocircmico eacute um fenocircmeno exclusivamente humano e

que este se dirige agrave inteligecircncia agrave denuacutencia

A partir dessa observaccedilatildeo Suassuna coloca o leitorespectador em contato com

seu outro o anti-heroacutei duplamente qualificado a defesa de seus algozes o arremedo cocircmico

resultado de uma apariccedilatildeo para a qual o proacuteprio autor emprestou seu discurso social No Auto

da Compadecida a dupla Joatildeo Grilo e Chicoacute em certa medida satildeo uma uacutenica personagem

ou seja uma personagem dupla Joatildeo Grilo eacute a representaccedilatildeo do intelecto o mentor de todas

as artimanhas eacute o autor presente na ausecircncia discursiva que por vezes permeia o texto

somente pelos gestos

Enquanto Chicoacute o duplo de Joatildeo Grilo eacute a forccedila fiacutesica o corpo ao mesmo tempo

bobo e bufatildeo o cuacutemplice perfeito o outro de Joatildeo ambos comparados agrave dupla Bom de Laacutebia

e Tudo Azul (na traduccedilatildeo de Adriane Duarte 2000) de As Aves de Aristoacutefanes e por que natildeo

dizer do proacuteprio poeta que acontece sem iniacutecio meio ou fim porque tudo que eacute justo tambeacutem

eacute de interesse da cidade e do poeta e da Comeacutedia como disse Diceoacutepolis no seu discurso em

Acarnenses Por quecirc Natildeo sei como diria Chicoacute Soacute sei que foi assim 15 Joatildeo Grilo um heroacutei popular e picaresco

O romance picaresco que segundo o proacuteprio Ariano Suassuna sempre o

influenciara surgiu na Espanha e infestou toda a Europa abrange um conjunto de textos

narrativos publicados na maioria dos casos entre 1552 e 1646 Eacute um gecircnero que reuacutene obras

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que refletem uma visatildeo irocircnica e pessimista do homem e uma perspectiva ceacutetica em relaccedilatildeo agrave

sociedade espanhola de sua eacutepoca

Segundo Gonzaacutelez (1994) todas as obras desse periacuteodo constituem o reflexo da

tensatildeo provocada pelo confronto entre o indiviacuteduo e uma sociedade extremamente opressora

Portanto para tornar mais clara a origem da picaresca eacute mister considerar o contexto

histoacuterico-poliacutetico-social em virtude de uma das maiores novidades apresentadas pelo gecircnero

a forte vinculaccedilatildeo da ficccedilatildeo com a histoacuteria

O estudo das circunstacircncias que rodeavam os autores deste gecircnero conduz

naturalmente a uma reflexatildeo sobre a sociedade barroca espanhola e portuguesa com atenccedilatildeo

aos autores Calderoacuten de La Barca (1600-1681) e Gil Vicente (1465-1536) Gonzaacutelez (1994 p

21) apresenta uma sociedade na qual predominam as injusticcedilas Apenas uma minoria - uma

nobreza de sangue corrupto e um clero igualmente decadente - teria acesso ao poder e a bens

materiais Sob essas circunstacircncias o povo ignorante supersticioso e fruto de abusos vivia

na miseacuteria

O romance picaresco surge pois como uma saacutetira mordaz que atinge todo o

sistema poliacutetico econocircmico social e moral Constituiacuteram uma rica fonte de material

romanesco situaccedilotildees iacutempares tais como a expulsatildeo dos mouros de Castela e de Leatildeo e a

questatildeo dos cristatildeos-novos considerados estrangeiros no seu proacuteprio paiacutes Os ataques contra

os viacutecios que infestavam a corte espanhola tecircm tambeacutem como alvo ldquoa honrardquo externa e social

ditada pelo poder do dinheiro Ironicamente o piacutecaro eacute o protoacutetipo do homem sem honra

enfim o entretenimento perfeito para os meandros das classes privilegiadas

A apariccedilatildeo da contestadora imagem do piacutecaro em princiacutepio reverte a imagem do

heroacutei das novelas de cavalaria - tem-se uma inversatildeo do modelo heroacuteico que passa a ser anti-

heroacuteico Gonzaacutelez (1994 p 56) assinala que o piacutecaro

Saindo de estratos baixos revela um aspecto pungente o da luta pela vida Solto no mundo tem de resolver por si mesmo os problemas o que o leva a tornar-se frequentemente ladratildeo Estando sempre exposto ao pior escapa das situaccedilotildees difiacuteceis por seu engenho e astuacutecia

Configura-se assim na novela picaresca um traccedilo permanente em Acarnenses e

no Auto da Compadecida a subversatildeo do (anti)heroacutei idealizado Entretanto cabe-nos aqui

salientar que haacute uma diferenccedila uma vez que na picaresca o piacutencaro natildeo tem qualquer projeto

social ao contraacuterio de Justinoacutepolis e Joatildeo Grilo

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151 O (anti)heroacutei Suassuniano

Joatildeo Grilo nasceu da cultura popular atraveacutes do produto oral e segundo o proacuteprio

Ariano Suassuna foi produto de vaacuterios produtos do que viu ouviu e leu nos folhetos de

cordel Nas palavras de Abreu (1999) a literatura de folhetos nordestinos eacute uma das

expressotildees mais brasileiras usual na regiatildeo Nordeste e em regiotildees que acomodam os

migrantes de origem nordestina

Com as grandes navegaccedilotildees atracaram no Brasil trovadores e artistas populares

que expuseram em seus pertences culturais as origens dessa literatura Eacute uma literatura aacutegil

que alcanccedila as mais diversas temaacuteticas com objetivos variados com ampla divulgaccedilatildeo e

anuecircncia social tanto em meios populares quanto nas academias

O folheto eacute um canal popular de cooperaccedilatildeo na vida do paiacutes que concede a naccedilatildeo

discutir a realidade expressar suas exigecircncias e anseios Conforme Zumthor (2000) embora

sejam impressos os folhetos designam-se por sua tradiccedilatildeo oral seus vestiacutegios de oralidade e

pela razatildeo de serem produzidos para serem proferidos lidos ou declamados cantados em voz

alta para um enorme nuacutemero de indiviacuteduos mesmo o iletrado os ignorantes aspectos comuns

agraves culturas que priorizam a oralidade

Foi num folheto de gracejo que Ariano Suassuna encontrou o personagem-

siacutembolo de sua dramaturgia As Proezas de Joatildeo Grilo (ver trecho abaixo) histoacuteria escrita em

1932 por Joatildeo Ferreira de Lima trazia como protagonista o ceacutelebre amarelinho oriundo dos

contos populares portugueses que no processo de aculturaccedilatildeo ganhou caracteriacutesticas

idecircnticas agraves de outro famoso espertalhatildeo de origem ibeacuterica Pedro Malazarte como se pode

perceber no cordel de Joatildeo Martins de Athayde (1951)

As Proezas de Joatildeo Grilo

Joatildeo Grilo foi um cristatildeo que nasceu antes do dia criou-se sem formosura mas tinha sabedoria e morreu depois da hora pelas artes que fazia

E nasceu de sete meses chorou no bucho da matildee quando ela pegou um gato ele gritou natildeo me arranhe natildeo jogue neste animal que talvez vocecirc natildeo ganhe Na noite que Joatildeo nasceu

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houve um eclipse na lua e detonou um vulcatildeo que ainda continua naquela noite correu um lobisome na rua Poreacutem Joatildeo Grilo criou-se pequeno magro e sambudo as pernas tortas e finas e boca grande e beiccediludo no siacutetio onde morava dava notiacutecia de tudo Joatildeo perdeu o seu pai com sete anos de idade morava perto de um rio Ia pescar toda tarde um dia fez uma cena que admirou a cidade (ATHAYDE 1951 p35)

Assim o heroacutei cordelesco forjado por Suassuna representado por Joatildeo Grilo eacute

tambeacutem um produto social e nesses termos eacute o piacutecaro descrito por Kothe (2000) como a

personagem com caracteriacutesticas daquilo que hoje se chama malandragem beira o traacutegico e se

assume como um eacutepico agraves avessas Como piacutecaro de Kothe Joatildeo Grilo no Auto da

Compadecida e Diceoacutepolis em Acarnenses satildeo de extraccedilatildeo social baixa e se comportam de

modo pouco elevado mas se elevam literariamente e contam ateacute mesmo com a complacecircncia

e a simpatia do leitor As duas personagens representam o modo pelo qual a classe baixa

consegue entrar no picadeiro da literatura

152 A tensatildeo tragicocircmica do (anti)heroacutei no Auto da Compadecida

Segundo Deserto (1995) a trageacutedia e a comeacutedia mantecircm entre si uma relaccedilatildeo de

alguma ambiguidade em que proximidade e afastamento parecem jogar em simultacircneo

importante papel Podemos evocar como representaccedilatildeo simboacutelica desta relaccedilatildeo a imagem

que o tempo veio a tornar quase emblema do proacuteprio teatro das duas maacutescaras a traacutegica e a

cocircmica denunciantes do sofrimento e do riso

O leitor atento percebe que a comeacutedia causada pelos quiprocoacutes 15e pelas confusotildees

no Auto da Compadecida natildeo representa a cura da trageacutedia vivenciada por Joatildeo Grilo nem a

15 Quid pro quo eacute uma expressatildeo latina que significa tomar uma coisa por outra Faz referecircncia no uso do portuguecircs e de todas as liacutenguas latinas a uma confusatildeo ou engano Tem origem medieval tendo sido usada na sua origem para se referir a um engano no uso de termos latinos num texto Tambeacutem pode significar isso por aquilo

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mera atenuaccedilatildeo futura de seus efeitos Joatildeo Grilo o heroacutei da peccedila eacute um misto de uma tensatildeo

que se identifica com o heroacutei cordelesco e desta forma natildeo estaacute atrelado somente aos

aspectos da proeza e da glorificaccedilatildeo uma vez que estaacute associado agrave ideia da fraqueza na

constituiccedilatildeo dos valores humano

Assim Joatildeo Grilo natildeo estaacute contemplado pela trajetoacuteria do heroacutei prodigioso e

honrado pois se orienta pela bandeira da transgressatildeo Joatildeo Grilo eacute a expressatildeo desesperada

do homem que luta contra todas as adversidades mas natildeo consegue evitar a desgraccedila que

vive numa sociedade abalizada pela constante oposiccedilatildeo de duas forccedilas o bem e o mau A

convergecircncia e accedilatildeo dessas forccedilas satildeo responsaacuteveis pela falecircncia do heroacutei fazendo com que

ele mergulhe no territoacuterio escorregadio dos valores

Aristoacuteteles em sua Arte Poeacutetica (2005) conceitua a trageacutedia como a imitaccedilatildeo de

pessoas superiores em accedilatildeo a comeacutedia como a imitaccedilatildeo de pessoas inferiores em accedilatildeo e o

drama como a representaccedilatildeo das pessoas em accedilatildeo Por pessoas superiores entendemos os

heroacuteis que estatildeo entre o humano e o divino possuindo algo de sobrenatural

Ariano Suassuna em sua Iniciaccedilatildeo agrave esteacutetica (2007c) reflete sobre os conceitos

de trageacutedia comeacutedia e drama pensados por Aristoacuteteles ressaltando que outras categorias

fazem parte da trageacutedia como o Belo e ateacute mesmo o Cocircmico Na leitura que faz da Poeacutetica o

escritor percebe o heroacutei como algueacutem dotado de uma alma grande mas natildeo pura Tal ldquoalma

granderdquo eacute percebida mais pelas accedilotildees do que pelas palavras em consonacircncia com o

pensamento aristoteacutelico e no caso de Joatildeo Grilo essa impureza reside em sua proacutepria

personalidade desenhada pela presenccedila de falhas cocircmicas tais como a ambiccedilatildeo a trapaccedila a

alcovitagem a avareza a inveja a vinganccedila e a usura

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SEGUNDO ATO

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2 HUMOR E O RISO ELEMENTOS INDISPENSAacuteVEIS Agrave CENA COcircMICA

ldquoEacute melhor escrever sobre risos do que sobre laacutegrimas pois o riso eacute o apanaacutegio do homemrdquo (Franccedilois Rabelais)

Para muitos antropoacutelogos o riso foi um fator coadjuvante agrave adaptaccedilatildeo da espeacutecie

sendo um ato instintivo e portador de equiliacutebrio frente a situaccedilotildees extremas de abatimento e

que dele depende a sobrevivecircncia da espeacutecie Vladimir Propp (1992) apresenta seis tipos de

riso e alerta para a existecircncia de outros Embora se debruccedilando basicamente sobre o que

chama de riso de zombaria por compreender que ldquoeacute o mais frequenterdquo sendo o ldquotipo

principal de riso humanordquo o teoacuterico atenta para o riso bom o riso maldoso ou ciacutenico o riso

alegre o riso ritual e o riso imoderado Antes de prosseguir nos cabe ressaltar que natildeo nos

ocuparemos das definiccedilotildees de Propp mas do riso como elemento indispensaacutevel agrave cena cocircmica

e de seus reflexos na Comeacutedia e no Auto

Rir eacute o melhor remeacutedio Por essa afirmativa percebemos o poder do riso na vida

da Humanidade Entretanto o humor e o riso satildeo fenocircmenos que ainda natildeo foram elucidados

completamente mas as coisas engraccediladas podem nos dizer muito do que eacute humano visto que

o homem eacute o uacutenico animal que ri

O cocircmico estaacute presente em situaccedilotildees reais de nossas vidasuma vez que todos noacutes

rimos sempre para qualquer situaccedilatildeo que nos leva quase incompreensiacuteveis para o riso

despertando nosso humor Haacute de se considerar que o riso eacute uma parte fundamental dos efeitos

produzidos pelo humor no ser humano e suas muacuteltiplas formas de expressatildeo vatildeo dizer

respeito ao grau de afetaccedilatildeo ou natildeo que tenha causado tal situaccedilatildeo real ou artiacutestica que

apresenta momentos cocircmicos

Em Histoacuteria do riso e do escaacuternio Minois (2003) esquematiza a histoacuteria do riso em

trecircs momentos o divino o diaboacutelico e o humano Os gregos antigos definiriam o riso a

partir de suas noccedilotildees de divindade

Rir eacute participar da recriaccedilatildeo do mundo nas festas dionisiacuteacas nas saturnais acompanhadas de ritos de inversatildeo simulando um retorno perioacutedico ao caos primitivo necessaacuterio agrave confirmaccedilatildeo e agrave estabilidade das normas sociais poliacuteticas e culturais Nas relaccedilotildees sociais o riso eacute vivido como elemento de coesatildeo e de forccedila diante do inimigo como o mostram os risos homeacutericos ou espartanos ele eacute tambeacutem um freio ao despotismo com as bufonarias rituais dos desfiles triunfais em Roma ou as saacutetiras poliacuteticas em Aristoacutefanes eacute por fim um instrumento de conhecimento que desmascara o erro e a mentira como no caso da ironia socraacutetica das zombarias dos ciacutenicos da derrisatildeo dos viacutecios em Plauto ou Terecircncio (MINOIS 2003 p 630)

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Sobre o riso como capacidade para criar o mundo a nossa volta Aristoacuteteles nos

transmite que somente uma democracia poderia tolerar a franqueza das velhas comeacutedias na

democracia o riso se caracteriza por sua forccedila criacutetica e sua accedilatildeo democratizadora Consoante

ao pensamento de Minois o riso busca se livrar do mundo cheio de injusticcedila e substituiacute-lo por

um mundo melhor Cria uma nova realidade que desloca a outra que natildeo pode mais ser

mantida porque perdeu seu significado O riso eacute entatildeo uma libertaccedilatildeo

Apesar de ter sido relegado na Antiguidade o riso continua a desempenhar um

papel de grande importacircncia na vida social O verdadeiro riso ambivalente e universal natildeo

exclui o seacuterio mas o purifica e o completa Purifica-o do dogmatismo da unilateralidade da

esclerose do fanatismo e do espiacuterito categoacuterico do medo e da intimidaccedilatildeo do didatismo do

engenho e das ilusotildees da fixaccedilatildeo sinistra em um uacutenico niacutevel e da exaustatildeo

21 O riso seacuterio-cocircmico em Aristoacutefanes e Suassuna

212 Riso e Comeacutedia

A Comeacutedia e o Auto satildeo gecircneros cujo sucesso eacute medido pela qualidade do humor

promovido pelas personagens em confronto com suas vivecircncias Humor eacute indispensaacutevel para

a arte cocircmica principalmente porque eacute altamente eficaz para convencer em grande parte pois

atrai a atenccedilatildeo e permite a possibilidade de persuasatildeo da plateia

O riso eacute uma reaccedilatildeo puramente fisioloacutegica que pode ser desencadeada por gatilhos

fiacutesicos e natildeo fiacutesicos e eacute observada em humanos desde a infacircncia Em termos de efeitos

somaacuteticos tem sido sugerido que o riso proporciona aliacutevio do estresse e reduz o desconforto e

ou dor liberando endorfinas produtoras de euforia encefalinas dopamina e adrenalina

todos contribuem para a sauacutede mental e fiacutesica geral Como resultado de suas propriedades

terapecircuticas o riso tem sido usado no contra-condicionamento das reaccedilotildees da raiva bem

como na dessensibilizaccedilatildeo sistemaacutetica ao medo

De acordo com Bakhtin (1999) o elo entre o seacuterio e o cocircmico jaacute existia desde os

primoacuterdios da humanidade na vida social Atraveacutes de investigaccedilotildees do folclore de povos

primitivos observou que os rituais seacuterios coadunavam com os rituais que parodiavam os

mitos os acontecimentos e os heroacuteis que as comunidades cultuavam

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A praacutetica do elogio e do escarnecimento fazia parte das cerimocircnias oficiais das

comunidades antigas Entretanto o seacuterio e o cocircmico passaram a ser dicotomizados com o

surgimento do regime de classes e de Estado Com a divisatildeo de classes iniciou-se um

processo que demarca a diferenccedila de direitos entre os indiviacuteduos na sociedade

Determinadas formas cocircmicas deixam de ser autorizadas soacute podendo ser

executadas em determinadas situaccedilotildees A partir daiacute se consubstanciou uma cultura oficial

delimitando as condiccedilotildees de realizaccedilatildeo do riso O espaccedilo da subversatildeo da gargalhada da

chacota tende a restringir-se aos momentos festivos A divisatildeo do riso e do seacuterio da cultura

popular e da cultura erudita comeccedilou a se intensificar fazendo com que a comicidade fosse

vista como uma expressatildeo menor inclusive no campo da cultura letrada

Segundo Huizinga no livro Homo Ludens (1938) o riso encontra nas situaccedilotildees

diaacuterias o seu proacuteprio espaccedilo as suas proacuteprias regras e o seu proacuteprio tempo e deve ser estudado

como fenocircmeno cultural uma vez que ele estaacute ligado agrave produccedilatildeo de situaccedilotildees que satildeo

proacuteprias do riso O autor nos convida a uma reflexatildeo sobre o poder que reside exatamente no

ato do riso De certo modo o riso segundo Huizinga pode ser visto como um tipo moderado

de ldquoloucurardquo tendo em vista que se realiza por meio de fatos cocircmicos que tambeacutem podem ser

entendidos como uma espeacutecie de ldquoloucurardquo porque neles corta-se o nexo do comum do tempo

do cotidiano

O elemento luacutedico tende a provocar o riso que por sua vez eacute um elemento da vida cotidiana estaacute sempre presente nas relaccedilotildees sociais seja para exprimir uma simpatia para desdramatizar uma situaccedilatildeo ou para exprimir a felicidade O risiacutevel eacute proacuteximo ao cocircmico ao jogo agraves brincadeiras agraves piadas ao luacutedico etc O cocircmico pode ser estudado com as formas as atitudes os gestos e os movimentos do corpo humano tambeacutem pode ser estudado pelo cocircmico de caraacuteter ou atraveacutes da fala do cocircmico de situaccedilotildees de palavras (HUIZINGA 1938 p54)

Para Pirandello o riso pode ser uma accedilatildeo subversiva e o proacuteprio autor assegura

que haacute ambivalecircncias na conceituaccedilatildeo do riso e do fenocircmeno cocircmico na tradiccedilatildeo ocidental

pois O riso pode ser compreendido como experiecircncia do natildeo-seacuterio a inversatildeo cocircmica pode revelar uma gravidade antes oculta certos contrastes inexprimiacuteveis pelo discurso mais cordato uma seriedade que o proacuteprio discurso seacuterio camufla O caraacuteter subversivo e anaacuterquico do riso Em diversos momentos o riso implica numa adesatildeo agrave ordem social estabelecida O riso eacute plural e encontra funccedilatildeo como corretivo social natildeo se restringindo a uma funccedilatildeo normativa tatildeo precisa visto que ele pode acometer um indiviacuteduo isoladamente pode prescindir da sociedade O riso guarda consigo o paradoxo da proacutepria accedilatildeo humana (PIRANDELLO 1957 p294)

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Para Bergson (1987) o riso aleacutem de ser um fenocircmeno social eacute um fenocircmeno

psiacutequico O sujeito ri de situaccedilotildees constrangedoras com as quais natildeo se envolve afetivamente

O cocircmico eacute provocado pela observaccedilatildeo das falhas humanas em uma perspectiva corretiva

diante dos olhos do observador Assim o cocircmico estaacute ligado agrave capacidade de explicitar e

identificar o ridiacuteculo humano manifestado no exagero caricaturado na representaccedilatildeo da

transgressatildeo social na encenaccedilatildeo de gestos automaacuteticos e na exploraccedilatildeo de clichecircs

desgastados

De acordo com Propp (1992) os caracteres cocircmicos natildeo existem por si soacute eles

tecircm relaccedilatildeo com as atividades do homem no mundo social Assumindo a mesma perspectiva

Bergson (1987) afirma que o riso eacute sempre grupal sendo determinado por um conjunto de

atitudes discriminadas e colocadas como engraccediladas perante uma comunidade

A identificaccedilatildeo daquilo que eacute engraccedilado ou humoriacutestico aponta para o

reconhecimento de gestos sociais que rompem com conduta ideal Esse desvio expresso no

comportamento fiacutesico ou moral dos seres sociais compotildee a trama das narrativas que satildeo

contadas com irreverecircncia e bom humor

213 Os elementos do risiacutevel no heroacutei suassuniano

Tenho duas armas para lutar contra o desespero a tristeza e ateacute a morte o riso a cavalo e o galope do sonho Eacute com isso que enfrento essa dura e fascinante tarefa de viver (ARIANO SUASSUNA)

Como jaacute visto estudos comprovam que o conceito claacutessico de heroacutei se origina na

Literatura Grega O termo designa um indiviacuteduo notabilizado por feitos extraordinaacuterios No

entanto com o passar do tempo essas figuras quase divinas jaacute natildeo correspondiam

adequadamente agrave vontade coletiva O heroacutei claacutessico foi sendo substituiacutedo pelo ldquoheroacutei

problemaacuteticordquo personagem cuja existecircncia e valores situam-no perante questotildees sobre as

quais natildeo eacute capaz de expressar consciecircncia clara e rigorosa

A construccedilatildeo desse novo enfoque da imagem do heroacutei eacute uma ideia atribuiacuteda aos

tempos modernos e a sua representatividade evidencia-se sobretudo no gecircnero romance

Contudo como mensageiro de uma criacutetica mordaz e bem-humorada da maacute sorte enfrentada

pelo nordestino em sua difiacutecil missatildeo pela sobrevivecircncia Ariano Suassuna na obra Auto da

Compadecida nos apresenta um heroacutei que ao inveacutes do nobre heroacutei claacutessico repleto de viacutecios

e defeitos

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Joatildeo Grilo eacute uma personagem que povoa o imaginaacuterio folcloacuterico brasileiro

sobretudo na regiatildeo Nordeste assumindo todas as caracteriacutesticas de um anti-heroacutei pois eacute

pequeno fraco franzino amarelo e desnutrido ou seja natildeo possui os atributos esteacuteticos e o

porte de um verdadeiro heroacutei cavalheiresco e romacircntico Joatildeo Joatildeo Joatildeo Morreu Ai meu Deus morreu o pobre de Joatildeo Grilo Tatildeo amarelo tatildeo safado e morrer assim Que eacute que eu faccedilo no mundo sem Joatildeo Joatildeo Joatildeo Natildeo tem mais jeito Joatildeo morreu Acabou-se o Grilo mais inteligente do mundo (SUASSUNA 2005 p 63)

Mas Joatildeo Grilo eacute infinitamente astuto e sua esperteza eacute tamanha que suplanta o

seu porte miuacutedo convertendo sua fragilidade em forccedila Com suas artimanhas ele se agiganta

Graccedilas as suas traquinagens enfrenta e afronta todas as instituiccedilotildees que se pretendem

poderosas e ditam as normas preceitos usos e costumes sociais de seu tempo e de seu

ambiente

Essa figura paradoxal assumida por Joatildeo Grilo o coloca como um anti-heroacutei que

faz do medo a sua arma da astuacutecia o seu escudo que vivendo num mundo hostil perseguido

escorraccedilado agraves voltas com a adversidade acaba sempre driblando o infortuacutenio com uma dose

exagerada de humor que aliaacutes eacute marca do enfrentamento do povo nordestino com as

adversidades sociais

Em Suassuna o termo humor estaacute relacionado agrave disposiccedilatildeo que o indiviacuteduo tem

para rir ou fazer sorrir Propp (1992) considera a priori que o riso eacute uma caracteriacutestica

pertinente do homem e somente a ele eacute dada a capacidade de rir o sorriso para o autor estaacute

ligado a outra esfera da razatildeo humana natildeo vinculada ao escaacuternio ou a derrisatildeo mas

compreende uma disposiccedilatildeo benevolente para com o interlocutor

Ainda nesse esteio para Aristoacuteteles a comicidade com efeito eacute um defeito e uma

feiuacutera sem dor nem destruiccedilatildeo Assim podemos pensar no Auto da Compadecida o riso

como decorrecircncia de uma penalidade um desajuste da conduta de Joatildeo Grilo que nos

surpreende nos atos com um comportamento inesperado

Para Bergson (1987) o riso natildeo eacute apenas uma reprimenda social mas vem de um

desajuste entre a natureza primeira do homem (que eacute mutaacutevel) e uma espeacutecie de rigidez e

mecanizaccedilatildeo Essa rigidez se manifestaria tanto no niacutevel fiacutesico como no caraacuteter ou seja no

acircmbito moral e psicoloacutegico caracteriacutesticas exploradas no personagem Joatildeo Grilo O risiacutevel e

o cocircmico seriam uma forma de desfazer a rigidez evidenciaacute-la corrigi-la

Para Suassuna (2008) o riso eacute como uma espeacutecie de puniccedilatildeo que a sociedade

confere a algo que a ameaccedila diz em seu livro Iniciaccedilatildeo agrave Esteacutetica Desta forma o risiacutevel estaacute

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na inadequaccedilatildeo do comportamento humano fiacutesicopsicoloacutegico uma vez que excede agrave

normalidade sem causas traacutegicas Suassuna no Auto da Compadecida nos deixa claro que ali

o cocircmico surge como um alerta sobre algo que natildeo estaacute funcionando bem nas sociedades

sendo tambeacutem um instrumento revelador dos problemas da sociedade como um todo

No contexto de tensatildeo do Auto eacute que encontramos Joatildeo Grilo um anti-heroacutei

oprimido e no plano da eacutetica eacute um legiacutetimo malandro que usa desse artifiacutecio como uma

forma autecircntica de sobrevivecircncia e de luta frente agraves adversidades sobretudo agravequelas impostas

pelos que detecircm o poder

A malandragem portanto no seu entender natildeo constitui um problema ou pecado

grave pois natildeo eacute utilizada para engrandecimento proacuteprio ou para ascensatildeo econocircmica mas

sim para a promoccedilatildeo da justiccedila social Sobre isto lecircem-se os seguintes versos do cordelista

Paulo Nunes Batista Grilo pra tudo no mundo Tinha uma definiccedilatildeo A sua filosofia Sempre lhe dava razatildeo Pois seguia este ditado Que diz ndash ldquoEstaacute perdoado Ladratildeo que rouba ladratildeordquo Vivendo embora do crime Joatildeo Grilo era caridoso Auxiliava a pobreza Soacute furtava o poderoso Roubava sempre dos nobres Matava a fome dos pobres Mostrando ser generoso (BATISTA 1958 p 28)

Ariano Suassuna como ningueacutem mergulhou na foacutermula do riso que sempre

esteve presente na Antiguidade e ligado aos deuses tendo um significado divino Presente nas

festas esse riso natildeo possuiacutea o sentido de diversatildeo como se conhece hoje ldquoAntes ele

correspondia aos preparativos de sacrifiacutecios e tinha uma relaccedilatildeo congruente com a morte O

riso e a morte fazem boa misturardquo (MINOIS 2003 p 29)

No campo do riso a comeacutedia gregandash da qual nos ocuparemos posteriormente ndash

surge como uma arte secundaacuteria cuja funccedilatildeo era descontrair os espectadores afinal era

apresentada nos intervalos das grandes peccedilas Procurava mostrar o homem rebaixado lidando

com figuras inferiores tanto no sentido moral quanto no acircmbito social Tendo como desiacutegnio

exagerar os defeitos humanos a comeacutedia explorava o ridiacuteculo

Nesse campo ao apresentar o Auto da Compadecida por meio dos contadores de

histoacuteria Chicoacute Joatildeo Grilo e do palhaccedilo o proacuteprio Suassuna admite a influecircncia da Comeacutedia

Antiga do Repente do Cordel dentre outros

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Eacute verdade que devo muito ao teatro grego (e a Homero e a Aristoacuteteles) ao latino ao italiano renascentista ao elisabetano ao francecircs barroco e sobretudo ao ibeacuterico Eacute verdade que devo ainda mais aos ensaiacutestas brasileiros que pesquisaram e publicaram as obras assim como salientaram a importacircncia do Romanceiro Popular do Nordeste principalmente a Joseacute de Alencar Siacutelvio Romero Leonardo Mota Rodrigues de Carvalho Euclides da Cunha Gustavo Barroso e mais modernamente Luiacutes Cacircmara Cascudo e Teacuteo Brandatildeo Mas a influecircncia decisiva mesmo em mim eacute a do proacuteprio Romanceiro Popular Nordestino com o qual tive estreito contato desde a minha infacircncia de menino criado no sertatildeo do Cariri da Paraiacuteba (SUASSUNA 2007 p 30)

O riso no Auto da Compadecida encontra suporte na carnavalizaccedilatildeo ideia

concebida por Mikhail Bakhtin (1993 p 7) que consiste na ldquosegunda vida do povo baseada

no princiacutepio do risordquo princiacutepio este que abole as relaccedilotildees hieraacuterquicas quando desloca os

sujeitos e subverte a ordem social estabelecida De acordo com Bakhtin O riso e a visatildeo de carnavalesca do mundo que estatildeo na base do grotesco destroem a seriedade unilateral e as pretensotildees de significaccedilatildeo incondicional e intemporal e liberam a consciecircncia o pensamento e a imaginaccedilatildeo humana que ficam assim disponiacuteveis pra o desenvolvimento de novas possibilidades Daiacute que uma certa carnavalizaccedilatildeo da consciecircncia precede e prepara sempre as grandes transformaccedilotildees mesmo no domiacutenio cientiacutefico (MIKHAIL BAKHTIN1993 p43)

No Primeiro Ato do Auto da Compadecida haacute o cruzamento da histoacuteria narrada

por Suassuna com a Literatura de Cordel precisamente com o Testamento do cachorro

publicado no folheto intitulado ldquoDinheirordquo escrito por Leandro Gomes de Barros (1909) fato

que desperta na plateia o riso frouxo natildeo simplesmente pelos causos propostos por Chicoacute e

Joatildeo Grilo mas pelo niacutevel de linguagem explorado e pelas artimanhas da dupla para

conseguir o intento de benzer a cachorra antes de enterraacute-la JOAtildeO GRILO Padre Joatildeo Padre Joatildeo PADRE aparecendo na igreja Que haacute Que gritaria eacute essa CHICOacute Mandaram avisar para o senhor natildeo sair porque vem uma pessoa aqui trazer um cachorro que estaacute se ultimando para o senhor benzer PADRE Para eu benzer CHICOacute Sim PADRE com desprezo Um cachorro CHICOacute Sim PADRE Que maluquice Que besteira JOAtildeO GRILO Cansei de dizer a ele que o senhor benzia Benze porque benze vim com ele PADRE Natildeo benzo de jeito nenhum

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CHICOacute Mas padre natildeo vejo nada de mal em se benzer o bicho JOAtildeO GRILO No dia em que chegou o motor novo do major Antocircnio Morais o senhor natildeo o benzeu PADRE Motor eacute diferente eacute uma coisa que todo mundo benze Cachorro eacute que eu nunca ouvi falar CHICOacute Eu acho cachorro uma coisa muito melhor do que motor PADRE Eacute mas quem vai ficar engraccedilado sou eu benzendo o cachorro Benzer motor eacute faacutecil todo mundo faz isso mas benzer cachorro (SUASSUNA 2005 p 21-23)

Tanto na visatildeo Suassuniana quanta na bakhtiniana a visatildeo carnavalesca de mundo

produz formas de linguagem que acabam com qualquer registro formal vocabular ou

dificuldade de aproximaccedilatildeo entre sujeitos enunciadores Dessa forma foi produzida uma

linguagem carnavalesca de muitos recursos tiacutepica da qual encontramos exemplos em vaacuterias

cenas do Auto da Compadecida como no enterro da cachorra um dos folhetos utilizados na

composiccedilatildeo da obra no Primeiro Ato quando o Palhaccedilo adverte ao puacuteblico sobre a histoacuteria

que se desenvolveria com a discussatildeo entre Joatildeo Grilo e Chicoacute para ver se o padre benzeria ou

natildeo o cachorro da mulher do padeiro

Por essa apropriaccedilatildeo da literatura popular percebemos que haacute um cruzamento da

histoacuteria de Suassuna com o cordel escrito por Leandro Gomes de Barros (1865 ndash 1918) ndash O

Testamento do cachorro publicado no folheto intitulado ldquoDinheirordquo que recebeu de Ariano o

seguinte comentaacuterio Quando publiquei o Auto da Compadecida Raimundo Magalhatildees Juacutenior em erudito e arguto artigo chamou atenccedilatildeo para o fato de que essa histoacuteria que eu julgava anocircnima e puramente nordestina jaacute fora usada numa versatildeo parecida por Le Sage no Gil Blaacutes de Santillana Punha ele em duacutevida a autoria popular da nossa versatildeo coisa em que se enganava como se vecirc porque como agora se sabe ela eacute de Leandro Gomes de Barros [] Por outro lado depois o Auto da Compadecida foi traduzido e encenado na Europa os professores Jean Girodon e Enrique Martiacutenez Loacutepez ndash um francecircs o outro espanhol ndash mostraram que a histoacuteria eacute muito mais antiga do que Le Sage vem do norte da Aacutefrica tendo passado agrave Peniacutensula Ibeacuterica com os aacuterabes e sendo muito comum nos fabulaacuterios e novelas picarescas ibeacutericasassim como na Franccedila por Ruteboeuf (SUASSUNA apud SANTIAGO 2007 p260)

Foi no cordel ldquoO Dinheiro ou O Testamento do Cachorrordquo escrito por Leandro

Gomes de Barros (1865 ndash 1918) com a narraccedilatildeo da histoacuteria do cachorro e de seu testamento

que Ariano Suassuna encontrou ideia e material como o proacuteprio afirmava para tambeacutem

escrever suas histoacuterias no Auto da Compadecida

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Eu vi narrar um fato Que fiquei admirado Um sertanejo me disse Que nesse seacuteculo passado Viu enterrar um cachorro Com honras de um potentado Um inglecircs tinha um cachorro De uma grande estimaccedilatildeo Morreu o dito cachorro E o inglecircs disse entatildeo Mim enterra esse cachorro Inda que gaste um milhatildeo Foi ao vigaacuterio e lhe disse Morreu cachorra de mim E urubu no Brasil Natildeo poderaacute dar-lhe fim - Cachorro deixou dinheiro Perguntou o vigaacuterio assim - Mim quer enterrar cachorro Disse o vigaacuterio Oh Inglecircs Vocecirc pensa que isto aqui Eacute o paiacutes de vocecircs Disse o inglecircs Oh Cachorro Gasta tudo esta vez Ele antes de morrer Um testamento aprontou Soacute quatro contos de reacuteis Para o vigaacuterio deixou Antes do inglecircs findar O vigaacuterio suspirou - Coitado Disse o vigaacuterio De que morreu esse pobre Que animal inteligente Que sentimento tatildeo nobre Antes de partir do mundo Fez-me presente do cobre Leve-o para o cemiteacuterio Que vou o encomendar Isto eacute traga o dinheiro Antes dele se enterrar Estes sufraacutegios fiados Eacute factiacutevel natildeo salvar E laacute chegou o cachorro O dinheiro foi na frente Teve momento o enterro Missa de corpo presente Ladainha e seu rancho Melhor do que certa gente

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Mandaram dar parte ao bispo Que o vigaacuterio tinha feito O enterro do cachorro Que natildeo era de direito O bispo aiacute falou muito Mostrou-se mal satisfeito Mandou chamar o vigaacuterio Pronto o vigaacuterio chegou As ordens sua excelecircncia O bispo lhe perguntou Entatildeo que cachorro foi Que seu vigaacuterio enterrou Foi um cachorro importante Animal de inteligecircncia Ele antes de morrer Deixou agrave vossa excelecircncia Dois contos de reacuteis em ouro Se errei tenha paciecircncia Natildeo foi erro sr Vigaacuterio Vocecirc eacute um bom pastor Desculpe eu incomodaacute-lo A culpa eacute do portador Um cachorro como este Jaacute vecirc que eacute merecedor (BARROS 2005 p 5)

Como fonte da recriaccedilatildeo tambeacutem operada na cena do Auto da Compadecida o

testamento do cachorro foi estudado como recurso para o riso visto que pelo uso do Latim

comum nas pregaccedilotildees dos padres por ocasiatildeo da despedida das almas e que equipara o

ldquobichinhordquo a um ser humano o poeta brinca com o puacuteblico e faz uma criacutetica agrave ganacircncia dos

legisladores episcopais JOAtildeO GRILO Estou dizendo que se eacute desse jeito vai ser difiacutecil cumprir o testamento do cachorro na parte do dinheiro que ele deixou para o padre e para o sacristatildeo SACRISTAtildeO Que eacute isso Cachorro com testamento JOAtildeO GRILO Esse era um cachorro inteligente Antes de morrer olhava para a torre da igreja toda vez que o sino batia Nesses uacuteltimos tempos jaacute doente pra morrer botava uns olhos bem compridos prrsquoos lados daqui latindo na maior tristeza Ateacute que meu patratildeo entendeu com a minha patroa eacute claro que ele queria ser abenccediloado pelo padre e morrer como cristatildeo Mas nem assim ele sossegou Foi preciso que o patratildeo prometesse que vinha encomendar a becircnccedilatildeo e que no caso dele morrer teria um enterro em latim Que em

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troca do enterro acrescentaria no testamento dele dez contos de reacuteis para o padre e trecircs para o sacristatildeo SACRISTAtildeO Que animal inteligente Que sentimento nobre E o testamento Onde estaacute [] SACRISTAtildeO Mas eu natildeo disse que fica tudo por minha conta PADRE Por sua conta como se o vigaacuterio sou eu SACRISTAtildeO O vigaacuterio eacute o senhor mas quem sabe quanto vale o testamento sou eu PADRE Hein O testamento SACRISTAtildeO Sim o testamento PADRE Mas que testamento eacute esse SACRISTAtildeO O testamento do cachorro PADRE E ele deixou testamento PADEIRO Soacute para o vigaacuterio deixou dez contos PADRE Que cachorro inteligente Que sentimento notaacutevel JOAtildeO GRILO E um cachorro desse ser comido pelos urubus Eacute a maior das injusticcedilas PADRE Comido ele De jeito nenhum Um cachorro desse natildeo pode ser comido pelos urubus PADRE Mas que jeito pode-se dar nisso Estou com tanto medo do bispo E tenho medo de cometer um sacrileacutegio SACRISTAtildeO Que eacute isso Natildeo se trata de nenhum sacrileacutegio Vamos enterrar uma pessoa altamente estimaacutevel nobre e generosa satisfazendo ao mesmo tempo duas outras pessoas altamente estimaacuteveis nobres e sobretudo generosas Natildeo vejo mal nenhum nisso [] SACRISTAtildeO Se eacute assim vamos ao enterro Como se chamava o cachorro MULHER Xareacuteu SACRISTAcircO Xareacuteu Absolve Domine animas omnium fidelium defunctorum abomni vinculi delictorum TODOS Ameacutem (SUASSUNA 2005 p 48 - 55)

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Diante dessa quebra estabelecida por Ariano Suassuna ao propor no Auto da

Compadecida o enterro do cachorro da mulher do padeiro em mais uma das malandragens de

Joatildeo Grilo cabe aqui uma referecircncia e um entrecruzamento de cenas pois na peccedila As Vespas

de Aristoacutefanes que foi apresentada pela primeira vez em 422 aC no contexto da Guerra do

Peloponeso haacute uma humanizaccedilatildeo de dois catildees que satildeo acusados de roubar comida e por isso

seratildeo julgados

Na peccedila as atitudes de Diceoacutepolis devem ser entendidas como a reaccedilatildeo de um

Aristoacutefanes que procura satirizar o mau funcionamento das instituiccedilotildees democraacuteticas

centrando-se sobretudo nos tribunais A criacutetica seraacute trabalhada a partir de Filocleacuteon filho de

Bdelicleacuteon um velho juiz que encontra nas atividades juriacutedicas sua fonte de rendimento

Recriando-se em cena um tribunal domeacutestico o que chama a atenccedilatildeo do leitor eacute o

julgamento de um catildeo acusado de roubo por outro catildeo ndash poreacutem representativos de dois

poliacuteticos da eacutepoca ndash que a peccedila manifesta a cada cena pela corrupccedilatildeo que domina as

instituiccedilotildees juriacutedicas atenienses

A comeacutedia inicia com um diaacutelogo entre Soacutesias e Xacircntias escravos de Filocleacuteon

que foram orientados a vigiar o velho juiz natildeo deixando que ele vaacute para o Tribunal Pelos

dois personagens o poeta explica aos espectadores a ldquodoenccedilardquo que ataca Filocleacuteon Afirma

Xantias Vocecircs estatildeo perdendo tempo nenhum de vocecircs vai esclarecer o caso Se vocecircs estatildeo ansiosos por saber faccedilam silecircncio vou dizer qual eacute mesmo a doenccedila de meu senhor eacute a paixatildeo pelos tribunais A paixatildeo dele eacute julgar ele fica desesperado se natildeo consegue ocupar o primeiro banco dos juiacutezes Agrave noite ele natildeo goza um instante de sono Se por acaso fecha os olhos seu proacuteprio espiacuterito fica olhando para a clepsidra A paixatildeo dele pelo voto no tribunal eacute tatildeo grande que faz ele acordar apertando trecircs de seus dedos como se oferecesse incenso aos deuses no dia da lua novaQuando ele vecirc escrito nos muros ldquoDemo encantador filho de Pirilampordquoescreve ao lado ldquoEncantadora urna de votosrdquo Se seu galo cantava durante a noite ele dizia que algum acusado sem duacutevida usava essa humilde ave para fazecirc-lo acordar mais tarde do que era necessaacuterio Logo depois do jantar ele pedia as sandaacutelias corria para o tribunal em plena noite e adormecia laacute colado a uma coluna como uma ostra agrave concha Sua severidade o levava a traccedilar sobre as plaquetas do voto a linhada condenaccedilatildeo e ficava com os dedos cheios de cera Com receio de natildeo teraacute pedrinha para o voto ele tinha no jardim de sua casa um canteiro de pedrinhas que renovava sem parar Esta era a sua loucura E as censuras deixavam o coroa excitadiacutessimoTambeacutem fechamos o ferrolho da porta principal para impedi-lo de sair pois esta ldquodoenccedilardquo deixava o filho desesperado No comeccedilo este usa a doccedilura lhe pede para natildeo ficar todo o tempo com o manto de sair e permanecer em casa Depois daacute um banho no pai e purifica ele mas tudo isto eacute inuacutetil Ele sujeita o pai aos exerciacutecios sagrados dos Coribantes opai foge com o tambor e corre para o tribunal querendo julgar Diante do fracasso dessas tentativas ele leva o paia Aacuteigina para se deitar de noite no templo de Ascleacutepio mas quando amanhece o dia laacute estaacute o velho no recinto reservado aos juiacutezes no tribunalFazemos o possiacutevel para impedi-lo de sair mas ele escapa pelas calhas e pelos canos de aacuteguas das chuvas onde aparecia um buraco noacutes tapaacutevamos e fechaacutevamos imediatamente todas as saiacutedas mas ele punha paus nos muros e saltava de um lado para o outro como se fosse um gato Afinal pusemos redes fechando todo o acesso ao jardim e ficaacutevamos de guarda O

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velho se chama Filoclecircon nenhum nome ficaria melhor nele O nome do filho dele eacute Bdeliclecircon ele faz tudo para dominar o gecircnio fogoso do pai (ARISTOacuteFANES As Vespas p38-41 ndash KURY 2004)

A cena ganha dinacircmica com o filho do velho Juiz assustado com a presenccedila dos

outros magistrados vestidos de vespas em sua casa

BDELICLEcircON Deus nosso senhor Vocecirc que preside a entrada de minha casa receba estes novos sacrifiacutecios que lhe oferecemos pela primeira vez em favor de meu pai Adoce o humor aacutespero e austero dele Deixe cair sobre o coraccedilatildeo dele algumas gotas de mel para que de hoje em diante ele seja clemente para com os homens mais benevolente para com o acusado que com o acusador enfim seja sensiacutevel agraves preces dirigidas a vocecirc Tire do caraacuteter dele todo o fel e todas as folhas de urtiga CORO Unidos de todo o coraccedilatildeo aos sentimentos que vocecirc expressou juntamos nossos votos aos seus neste cargo que vocecirc exerce de fato vocecirc se torna querido por todos noacutes depois que vimos vocecirc mais zeloso para com o povo que qualquer dos juiacutezes mais novos que vocecirc

Um criado traz dois personagens disfarccedilados de CACHORROS um dos disfarces reproduz as feiccedilotildees de Laques e o outro as de Cleacuteon

BDELICLEcircON Se algum juiz estaacute laacute fora que se apresse a entrar uma vez iniciadas as falas ningueacutem mais poderaacute entrar FILOCLEcircON Quem eacute este acusado A que pena ele estaacute sujeito XANTIAS Como se fosse o promotor Ouccedilam agora a acusaccedilatildeo ldquoO cachorro da vila de Cidateneacuteia acusa Labes da vila de Aixone de haver contra toda a justiccedila devorado sozinho um queijo da Siciacuteliardquo Que sua pena seja a de usar uma coleira bem apertada FILOCLEcircON Ou entatildeo uma morte de catildeo se ele for condenado BDELICLEcircON Aqui estaacute Labes o outro acusado FILOCLEcircON Ah Bandido Ele tem mesmo a pinta de

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um ladratildeo e se orgulha de me tapear rangendo os dentes Onde estaacute o queixoso o cachorro de Cidateneacuteia 1ordm CACHORRO Au Au BDELICLEcircON Aqui estaacute ele FILOCLEcircON Este eacute um outro Labes bom latidor e lambedor de panelas SOSIAS Como se fosse o arauto Silecircncio Todos sentados Vocecirc objeto da acusaccedilatildeo suba agrave tribuna FILOCLEcircON Durante a fala dele vou me servir de sopa e engoli-la rapidamente XANTIAS Como promotor Senhores juiacutezes Os senhores vatildeo ouvir minha acusaccedilatildeo contra este reacuteu Ele cometeu em relaccedilatildeo agrave cidade e agrave frota de Atenas um atentado indecoroso Ele se esgueirou para um canto depois de roubar um enorme queijo da Siciacutelia aproveitando-se das trevas FILOCLEcircON O roubo dele estaacute suficientemente comprovado o patife acaba de deixar cair no chatildeo um naco de queijo extremamente malcheiroso XANTIAS Pedi a ele que me deixasse provar um pedaccedilo do queijo mas ele natildeo me atendeu Quem vai querer ajudar vocecircs se seu cachorro fiel natildeo deixou nem um pouquinho para mim FILOCLEcircON Ele natildeo lhe deu nada mesmo XANTIAS Nadinha nem a mim nem a seu companheiro FILOCLEcircON Aiacute estaacute um trapalhatildeo que vai ferver mais que estas lentilhas BDELICLEcircON Em nome dos deuses meu pai natildeo profira a sentenccedila antes de ter ouvido as duas partes FILOCLEcircON Mas a coisa estaacute clara meu caro ela fala por si mesma BDELICLEcircON Mas preste atenccedilatildeo para natildeo absolver o acusado este cachorro eacute o mais guloso e o mais egoiacutesta que jaacute vi ele lambe num piscar de olhos todos os cantos de umahellip cidade e devora tudo FILOCLEcircON E natildeo tenho dinheiro nem para mandar

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consertar meu vasohellip 2ordm CACHORRO Entatildeo castigue o acusado uma uacutenica cozinha natildeo pode encher a barriga de dois ladrotildees Tomara que eu natildeo tenha latido no vazio e em vatildeo senatildeo nunca mais vou latir FILOCLEcircON Quanta falta de vergonha Aiacute estaacute um grande trapaceiro Que pensa vocecirc dele meu galo Para mim ele diz ldquosimrdquo Guarda do tribunal Onde estaacute vocecirc Que algueacutem me decirc um penico SOSIAS Fingindo ser o guarda do tribunal Pegue vocecirc mesmo o penico estou ocupado fazendo a citaccedilatildeo das testemunhas Apresentem-se as testemunhas de acusaccedilatildeo a Laques Um prato um pilatildeo uma focircrma de queijo uma grelha uma panela e outros utensiacutelios de cozinha Vocecirc ainda estaacute mijando Ainda natildeo acabou FILOCLEcircON Apontando para o acusado Ainda natildeo mas penso que aquele ali vai fazer coisa pior hoje ele vai se borrar BDELICLEcircON Dirigindo-se ao CACHORRO acusador Entatildeo vocecirc seraacute sempre tatildeo severo e intrataacutevel para com o acusado Por que esta ferocidade FILOCLEcircON Dirigindo-se ao acusado Suba agrave tribuna e defenda-se Por que este silecircncio Fale SOSIAS Com certeza ele nada tem a dizer BDELICLEcircON Vocecirc se engana acontece com ele o que aconteceu haacute muito tempo com Tuciacutedides quando acusou Peacutericles a surpresa da acusaccedilatildeo paralisou completamente as mandiacutebulas de Peacutericles Afaste-se vou assumir a sua defesa Eacute uma tarefa difiacutecil senhores juiacutezes defender um cachorro que eacute alvo de acusaccedilotildees extremamente odiosas poreacutem de qualquer maneira falarei Este cachorro eacute valente e caccedila lobos FILOCLEcircON Ele eacute um ladratildeo e um conspirador BDELICLEcircON Natildeo por Zeus Natildeo haacute um cachorro melhor no mundo Ele seria capaz de cuidar de um grande rebanho de carneiros

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FILOCLEcircON Que importa tudo isto se ele comeu o queijo BDELICLEcircON Que importa Ele luta para defender vocecirc guarda sua casa e aleacutem disto tem outras qualidades Se ele rouba uma coisinha vocecirc deve perdoaacute-lo Reconheccedilo que ele natildeo eacute um grande tocador de ciacutetara FILOCLEcircON Eu gostaria de que ele nem soubesse ler ele natildeo faria a apologia de seu crime BDELICLEcircON Ouccedila minhas testemunhas juiz imparcial Aproxime-se facatildeozinho e fale em voz alta entatildeo vocecirc que estava incumbido dos pagamentos responda com clareza vocecirc natildeo cortou as partes que deveriam ser distribuiacutedas aos soldados FILOCLEcircON Como vou suportar a ideacuteia de ter absolvido um acusado Que seraacute de mim Deuses veneraacuteveis Me perdoem Fiz isso tudo sem querer este natildeo eacute o meu haacutebito (ARISTOacuteFANES As Vespas p153-173 ndash KURY 2004)

Essa visatildeo criacutetica e carnavalesca de mundo que se opotildee ao mau serviccedilo das

instituiccedilotildees produzida nas cenas tanto da peccedila As Vespas quanto a partir dos folhetos de

cordel traz em si uma ideia de inacabamento de quebra imperfeiccedilatildeo e uma forma de

expressatildeo ambivalente por isso ela eacute dinacircmica e mutaacutevel

As formas e siacutembolos irreverentes da linguagem carnavalesca caracterizam-se

principalmente pela coerecircncia sequencial das coisas ldquoao avessordquo e pelas diversas formas de

paroacutedias degradaccedilotildees e atitudes burlescas instrumento que tanto permeiam Acarnenses o

auto de Suassuna e o auto de Gil Vicente do qual trataremos no Quinto Ato

Sobre a ideia de quebra na cena teatral Bakhtin (2002) alerta que a ideia

carnavalesca de que ele trata natildeo estaacute relacionada ao carnaval dos ldquotempos modernosrdquo mas a

uma cosmovisatildeo milenar e universalmente popular Segundo o autor a cultura do carnaval

compreende quatro grandes categorias que envolvemos festejos carnavalescos as obras

cocircmicas representadas nas praccedilas puacuteblicas os insultos os juramentos os folguedos populares

entre outros

Assim o rito do carnaval na perspectiva de Bakhtin eacute constituiacutedo pela vitoacuteria de

uma forma de libertaccedilatildeo momentacircnea da verdade predominante e do estatuto soacutecio-poliacutetico-

econocircmico vigente Desta forma eacute possiacutevel propor a carnavalizaccedilatildeo como dispositivo

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presente no texto que compotildee a nossa pesquisa E para isso relacionaremos carnavalizaccedilatildeo e

polifonia ideias propostas por Mikhail Bakhtin para designar um modo diferente de narrar

Na concepccedilatildeo do autor segundo Gomes (2014) o termo ldquopolifoniardquo natildeo pode ser

relacionado agrave realidade heterogecircnea da linguagem quando vista pelo acircngulo da pluralidade

das ldquoliacutenguassociaisrdquo e por isso natildeo deve ser confundido com os termos ldquoheteroglossiardquo ou

ldquoplurivocidaderdquo sendo a Polifonia para Bakhtin um universo no qual todas as vozes e

consciecircncias satildeo imisciacuteveis e equivalentes ou seja plenas de valor mantendo com outras

vozes do discurso uma relaccedilatildeo de plena igualdade realizaacuteveis para se contrapor ao

estabelecido De acordo com Bakhtin

A multiplicidade de vozes e consciecircncias independentes e imisciacuteveis e a autecircntica polifonia de vozes plenivalentes constituem de fato a peculiaridade fundamental dos romances de Dostoievski [] eacute precisamente a multiplicidade de consciecircncias equipolentes e seus mundos que aqui combinam numa unidade de acontecimento mantendo sua imiscibilidade (MIKHAIL BAKHTIN 2002 p4)

Dessa forma eacute importante ressaltar que os discursos que circulam na sociedade

tecircm pesos poliacuteticos diferenciados em funccedilatildeo dos jogos de poder e do proacuteprio jogo luacutedico

social defendido por Huizinga (1999) Portanto essas ldquovozesrdquo possiacuteveis de serem percebidas

as ironias os textos polifocircnicos aparecem em oposiccedilatildeo agraves vozes que tentam passar

despercebidas nos textos monofocircnicos produzindo um ldquoefeito de apagamentordquo em um

esforccedilo contiacutenuo de impor determinados discursos como centro das relaccedilotildees de poder E

nesse campo movediccedilo tanto Aristoacutefanes quanto Ariano Suassuna encontram espaccedilos para

confrontarem as falas das instituiccedilotildees e seus legisladores seja em Atenas ou Taperoaacute

Segundo Rodrigues (2010) a polifonia e a monofonia satildeo efeitos de sentido cuja

existecircncia eacute possiacutevel em virtude dos procedimentos discursivos Assim tomando como

premissa a afirmativa da autora entendemos que a multiplicidade de vozes autorais diluiacutedas

entre as personagens consolidadas em seus discursos bem como a carnavalizaccedilatildeo dos

personagens do Auto da Compadecida provoca o riso que subverte os poderes atraveacutes de

diversas estrateacutegias como as reproduccedilotildees moralizantes dos diaacutelogos que autorizam o uso da

moral e potencializam as cenas cocircmicas

Ainda de acordo com Rodrigues (2002 p 42)

As relaccedilotildees dialoacutegicas [] satildeo um fenocircmeno universal que penetra [] tudo o que tem sentido e importacircnciardquo Dessa forma o dialogismo eacute a de um princiacutepio constitutivo da linguagem natildeo sendo esse ldquodiaacutelogordquo necessariamente um ponto de

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convergecircncia mas sim um espaccedilo de lutas entre os sujeitos do discurso pois ldquoonde comeccedila a consciecircncia comeccedila o diaacutelogo

Assim a alteridade define o sujeito pois o outro eacute fundamental para a sua

constituiccedilatildeo A relaccedilatildeo existente entre os sujeitos e a alteridade propotildee um jogo de imagens

que interfere na produccedilatildeo dos discursos das identidades e consequentemente dos sujeitos O

dialogismo tem como sua forma maacutexima agrave polifonia

Elemento das cenas cocircmicas as falas segundo Rodrigues (2010 p 62) natildeo estatildeo apenas justapostas como se fossem peccedilas de um brinquedo de montar encontram-se em um estado de interaccedilatildeo e de embate ldquotensordquo e contiacutenuo como os dentes de uma engrenagem proporcionando jogos linguiacutesticos e discursivos provocados pelo desenvolvimento de uma situaccedilatildeo de qui pro quoacute no Auto da Compadecida em funccedilatildeo de um plano de Joatildeo Grilo deixam o Padre Joatildeo em maus lenccediloacuteis com o Major Antocircnio Moraes enquanto o Padre fala sobre benzer a cachorra o Major fala sobre seu filho que estaacute doente e vai para o Recife tratando-se aiacute de uma confusatildeo no plano da realizaccedilatildeo e entendimento da linguagem engenhosamente construiacuteda por Joatildeo Grilo

PADRE Eacute o que vivo dizendo do jeito que as coisas vatildeo eacute o fim do mundo Mas que coisa o trouxe aqui Jaacute sei natildeo diga o bichinho estaacute doente natildeo eacute ANTOcircNIO MORAES Eacute jaacute sabia PADRE Jaacute aqui tudo se espalha num instante Jaacute estaacute fedendo ANTOcircNIO MORAES Fedendo Quem PADRE O bichinho ANTOcircNIO MORAES Natildeo Que eacute que o senhor quer dizer PADRE Nada desculpe eacute um modo de falar ANTOcircNIO MORAES Pois o senhor anda com uns modos de falar muito esquisitos PADRE Peccedilo que desculpe um pobre padre sem muita instruccedilatildeo Qual eacute a doenccedila Rabugem ANTOcircNIO MORAES Rabugem PADRE Sim jaacute vi um morrer disso em poucos dias Comeccedilou pelo rabo e espalhou-se pelo resto do corpo ANTOcircNIO MORAES Pelo rabo PADRE Desculpe desculpe eu devia ter dito ldquopela caudardquo Deve-se respeito aos enfermos mesmo que sejam os de mais baixa qualidade ANTOcircNIO MORAES Baixa qualidade Padre Joatildeo veja com quem estaacute falando A Igreja eacute uma coisa respeitaacutevel como garantia da sociedade mas tudo tem limite PADRE

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Mas o que foi que eu disse ANTOcircNIO MORAES Baixa qualidade Meu nome todo eacute Antocircnio Noronha de Brito Moraes e esse Noronha de Brito veio do Conde dos Arcos ouviu Gente que veio nas caravelas ouviu PADRE Ah bem e na certa os antepassados do bichinho tambeacutem vieram nas caravelas natildeo eacute isso ANTOcircNIO MORAES Claro Se meus antepassados vieram eacute claro que os dele vieram tambeacutem Que o senhor que insinuar Que a matildee dele procedeu mal PADRE Mas uma cachorra ANTOcircNIO MORAES O quecirc PADRE Uma cachorra ANTOcircNIO MORAES Repita PADRE Natildeo vejo nada de mal em repetir natildeo eacute uma cachorra mesmo ANTOcircNIO MORAES Padre eu natildeo mato o senhor agora mesmo porque o senhor eacute padre e estaacute louco [] (SUASSUNA 2005 p 32 -34)

Ainda sobre as falas a mesma autora nos relembra que o proacuteprio Suassuna teceu

comentaacuterio sobre a existecircncia do caraacuteter polifocircnico instaurador do riso no Auto da

Compadecida Como observado pelo proacuteprio Suassuna o Auto da Compadecida trouxe o riso instaurado atraveacutes das polissemias e por meio da ldquofalhardquo nada linguagem O riso eacute provocado na cena descrita anteriormente em funccedilatildeo de as reacuteplicas dos diaacutelogos estarem situadas em contextos distintos causando um desacordo entre as falas dos personagens dessa forma a interaccedilatildeo verbal aconteceu de forma equivocada para os interlocutores para o Padre Joatildeo era a cachorra (animal) do Major que estava doente para Antocircnio Moraes sua mulher estava sendo ofendida pelo padre Portanto o ldquoencaixerdquo das falas faz o qui pro quoacute funcionar proporcionando efeitos de sentido diferentes para cada sujeito da cena enunciativa (RODRIGUES 2010 p 6)

Outra estrateacutegia importante para a compreensatildeo do discurso como revelador do social

encontra-se nas palavras de Bakhtin (2003 p48) ao afirmar que o discurso se efetiva pela

praacutetica contextualizada entre emissor e receptor fato recorrente no Auto da Compadecida e

em Acarnenses visto que em ambas as peccedilas a intenccedilatildeo do autor de colocar para o

leitorouvinte seus objetivos eacute muito clara e social

O diaacutelogo eacute um processo de relacionamento reciacuteproco entre as pessoas que satildeo coautores do que acontece no diaacutelogo Desta forma aqueles que participam do diaacutelogo tecircm uma compreensatildeo ativa e antecipatoacuteria do que foi dito e ouvido Portanto tudo o que eacute dito sempre tem um projeto e eacute sempre incompleto pois o entendimento estaacute ancorado em uma accedilatildeo social conjunta Assim trabalhar com essa

61

condiccedilatildeo dialoacutegica constitutiva do ser humano e seu potencial transformador afeta nossa compreensatildeo e as praacuteticas que dialogam como recurso fundamental em sua accedilatildeo e reflexatildeo Dado o exposto eacute possiacutevel entender como as praacuteticas dialoacutegicas generativa preservam troca dialoacutegica a singularidade de cada reuniatildeo a construccedilatildeo coordenada de significado emoccedilatildeo e presenccedila dos participantes priorizando como um dos seus objetivos e tarefa a criaccedilatildeo contextualizada de novas possibilidades discursivas 16

Rodrigues (2010) reforccedila que no jogo das desconstruccedilotildees promovidas pela

linguagem no texto de Ariano Suassuna atraveacutes dos causos que o autor engenhosamente

(des)constroacutei nas reflexotildees das personagens sobretudo de Chicoacute produzem a comicidade e

estabelecem o sentido do dito que estaacute a serviccedilo do social

Dessa forma as fronteiras da liacutengua e os seus lugares de transgressotildees podem assim ser observados atraveacutes de uma situaccedilatildeo de qui pro quoacute Ao estabelecer o deslizamento de sentidos como regra o qui pro quoacute coloca em cena a comicidade Nos jogos com a liacutengua esses niacuteveisquando acionados podem sofrer uma espeacutecie de mutaccedilatildeo por causa dos deslocamentos e descentramentos que tecircm como consequecircncia o riso (RODRIGUES 2010 p 7)

No Auto da Compadecida o caraacuteter polifocircnico eacute dinacircmico e se instaura tambeacutem

atraveacutes do entrecruzamento das artimanhas do Joatildeo Grilo e de Chicoacute fato concretizado por

exemplo pelo uso do latim na cena do enterro aqui jaacute citada o que forccedila de forma jaacute

esperada a participaccedilatildeo do puacuteblico visto que o caraacuteter religioso estaacute ligado agrave

cena(SUASSUNA 2005 p 48-55)

Pela apropriaccedilatildeo discursiva e pela sobreposiccedilatildeo de cenas cocircmicas (re)criadas pelo

posicionamento das personagens no Auto da Compadecida tem-se o reforccedilo de que o riso o

humor e a ironia tecircm sido grandes recursos na literatura de grandes autores que despertam na

audiecircncia no instante do abrir de cortinas a gargalhada assim como Ariano Suassuna que

usa do riso como ritual de escapismo e ou como criacutetica moralizante Leacutelia Parreira (2006 p

45) argumenta que a obra irocircnica eacute a siacutentese de noccedilotildees antiteacuteticas accedilatildeo e natildeo contemplaccedilatildeo

16 El diaacutelogo es un proceso de relacioacuten reciacuteproca entre personas quienes son coautores de aquello que sucede en el diaacutelogo De esta manera quienes participan en el diaacutelogo tienen una comprensioacuten activa y anticipatoria de lo dicho y lo escuchado Por ello todo lo que se dice tiene siempre un proyecto y siempre es incompleto ya que la comprensioacuten estaacute anclada en una accioacuten social conjunta Asiacute trabajar con esta condicioacuten dialoacutegica constitutiva del ser humano y su potencial transformativo incide en nuestra comprensioacuten y en las praacutecticas que tienen al diaacutelogo como recurso fundamental en su accioacuten y reflexioacuten A partir de lo anterior es posible entender como las praacutecticas dialoacutegicas generativas preservan el intercambio dialoacutegico la singularidad de cada encuentro la construccioacuten coordinada de significados la emocionalidad y la presencia encarnada de los participantes jerarquizando como uno de sus objetivos y tareas la creacioacuten contextuada de nuevas posibilidades (Traduccedilatildeo nossa)

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passiva alianccedila entre objetividade e subjetividade mistura do seacuterio e da brincadeira o sonho

e a realidade o sublime e o pateacutetico o real e o aparente

As accedilotildees de Ariano Suassuna em toda a trama do Auto nos revelam que eacute

justamente por meio da ironia que o homem ri de si mesmo de suas crenccedilas e ingenuidades

indicando o que existe de representaccedilatildeo e de fingimento nos sistemas e ideologias

Em Aristoacutefanes comeccedilaremos identificando os recursos cocircmicos que tecircm o

objetivo de desvalorizar Lacircmaco traduzido por Batalhatildeo efetivamente aos olhos do puacuteblico e

passaremos para a anaacutelise de seu valor estrateacutegico A cena em que o personagem aparece pela

primeira vez estaacute localizada apoacutes o confronto entre o heroacutei cocircmico Diceoacutepolis e o coro

camponecircs de Acarnes O coro persegue Diceoacutepolis para apedrejaacute-lo por ter realizado uma

treacutegua particular com os Peloponeacutesios

Diceopolis vestido com o disfarce de Teacutelefo que Euriacutepides lhe emprestou tenta

persuadir o coro com suas razotildees mas soacute consegue convencer uma parte dele O semicoro que

ainda se opotildee agrave paz privada do heroacutei pede entatildeo ajuda a Batalhatildeo e ele aparece pela primeira

vez em cena apelando ao seu chamado (vv 557-574)

COREUTA 1 Eacute verdade seu safado mundiccedila Tal coisa tu ismoleuse atreve a dizecirc pra noacutes E se teve um sicofanta22 tu ainda fala mal dele COREUTA 2 Por Poseidon as coisas que ele taacute dizeno Satildeo tudo justa e ninhuma delas eacute falsa COREUTA 1 Por elas ser justa era preciso ele taacute dizeno Mas ele num vai ficaacuterino por se atrevecirc a falaacute assim COREUTA 2 Eh tu vai correcirc pra donde Ficrsquo aiacute Se tu batecirc Neste home tu vai eacute vuaacute pelo ar bem ligerin COREUTA 1 Eh Bataiatildeo tu que solta faiacutesca pelos oacutei Vem me ajudaacute tu do penacho da Goacutergona aparece Eh Bataiatildeo oacute amigo oacute camarada E se tem aiacute um taxiarcaocirc general ocirc Defensor dos muro vem me ajudaacute Depressa pois tocirc metade dominado BATALHAtildeO De onde vem o grito de guerra que ouvi Aonde devo levar socorro Aonde devo lanccedilar o tumulto Quem despertou a Goacutergona do armaacuterio

Neste momento a linguagem de LacircmacoBatalhatildeo eacute caracterizada por seu tom

eacutepico O termo gritar tem na Iliacuteada em geral o sentido de um grito de guerra Da mesma

forma o kydoimoacutes (tumulto guerrero) eacute tambeacutem de origem homeacuterica O uso do leacutexico eacutepico

aqui eacute paroacutedico porque a cena se desenrola fora de um contexto de batalha e aleacutem disso o

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inimigo eacute um homem uacutenico e inofensivo o camponecircs DiceoacutepolisJustinoacutepolis A paroacutedia

eacutepica eacute entatildeo o primeiro recurso cocircmico usado para ridicularizar a LacircmacoBatalhatildeo

Em geral a paroacutedia costuma ter alvos intertextuais o modelo parodiado Mas

neste caso a paroacutedia eacutepica tem como alvo principal natildeo o intertexto homeacuterico mas o caraacuteter

partidaacuterio da guerra Aristoacutefanes usa um recurso tradicional da literatura cocircmica mas usa-a de

uma forma diferente natildeo mais para zombar do intertexto parodiado mas para servir a saacutetira

contra o seu alvo central A primeira cena apresenta outra seacuterie de recursos cocircmicos que tecircm a

funccedilatildeo de degradar o alvo aos olhos do puacuteblico A resposta de Justinoacutepolis a Batalhatildeo eacute na

verdade zombadora JUSTINOacutePOLIS

Oacute Bataiatildeo heroacutei dos penacho e das tropardquo(v 575)

A rima interna entre loacutephon 17 e loacutechon 18 gera um efeito zombeteiro humoriacutestico

que tambeacutem reduz o ridiacuteculo agrave denominaccedilatildeo eacutepica de heroacutei Este verso combina entatildeo

como recursos cocircmicos paroacutedia eacutepica e humor verbal atraveacutes da rima O efeito humoriacutestico

da rima eacute reforccedilado aleacutem disso pela aliteraccedilatildeo do lambda que liga o nome do personagem

aos dois termos rimados Por outro lado esse verso inaugura o motivo cocircmico do ridiacuteculo das

armas do personagem que se repetiraacute sempre nas cenas protagonizadas por Lacircmaco que eacute a

personificaccedilatildeo da batalha

A recepccedilatildeo de Diceoacutepolis revela o papel que o heroacutei cocircmico vai desempenhar em

relaccedilatildeo a Lacircmaco em todas as cenas em que se enfrentam seu papel seraacute o do zombador o

satirista Essa funccedilatildeo estaacute relacionada em si mesma agrave posiccedilatildeo do enunciador-autor e agrave proacutepria

atividade do autor o ridiacuteculo Ou seja Lacircmaco natildeo eacute apenas zombado no texto - por exemplo

por meio dos recursos paroacutedicos que acabamos de mencionar que satildeo colocados na boca do

mesmo Lacircmaco - mas eacute tambeacutem daquela zombaria que se reforccedila pela zombaria do proacuteprio

caraacuteter de Diceoacutepolis A degradaccedilatildeo cocircmica de Lacircmaco eacute entatildeo produzida a partir da instacircncia

17 Normalmente os capacetes eram enfeitados com phaacuteloi ldquopenachosrdquo feitos de caudas de cavalos hippoacutekomoikoacuterytheslamproicircsiphaacuteloisi- ldquocapacetes guarnecidos de cauda equumlina com brilhantes penachosrdquo(Il XIII 132) e koacuterythosphaacutelonhippodaseiacutees- ldquocapacete de penacho equumlinordquo (Il IV 459) O vocaacutebulo loacutephos tambeacutem eacute utilizado como ldquopenachordquo loacutephonhippiokhaiacutetenndash ldquopenacho com crina de cavalordquo (Il VI 469) Merece destaque o penacho da koacuterys do capacete de Aquiles que era koacuterytha kryacuteseonloacutephonndash ldquocapacete com penacho douradordquo (Il XVIII 611-2)Aleacutem da koacuterys existe um outro tipo de capacete a kyneacutee Odisseu tinha uma kyneacutee que eacute um capacete formado por pele de catildeo ou couro qualquer (Il X 257 261) A parte exterior do capacete de Odisseu tinha ldquoos dentes reluzentes de um javali com presas brancas dispostos em grande nuacutemero com arte e habilidaderdquo (Il X 261-5) Este tipo de capacete que Meriacuteone deu ao rei de Iacutetaca eacute mencionado uma uacutenica vez em HomeroIn Os equipamentos beacutelicos dos heroacuteis homeacutericos Prof Me Luciene de Lima Oliveira- wwwe-publicacoesuerj2012 18 Tropa armada

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enunciativa - os recursos cocircmicos usados pelo proacuteprio autor - e eacute duplicada da instacircncia

interna para a accedilatildeo dramaacutetica por meio do escaacuternio do personagem do heroacutei cocircmico

Diceoacutepolis eacute um alter ego do autor uma voz autorizada um duplo do proacuteprio

Aristoacutefanes um satiacuterico que ridiculariza dentro da cena o alvo cocircmico central da obra

ridiacuteculo das armas do guerreiro inaugurado no verso 575 com a referecircncia agrave tropa eacute retomado

em toda essa cena e mais tarde nas cenas posteriores protagonizadas por Diceoacutepolis e

Lacircmaco (vv 575-585) JUSTINOacutePOLIS Oacute Bataiatildeo heroacutei dos penacho e das tropa CORO Oacute Bataiatildeo acredita que este home faz eacute tempo Que insulta a nossa cidade todinha BATALHAtildeO Tal coisa tu mendigo te atreves a dizer JUSTINOacutePOLIS Oacute Bataiatildeo oacute heroacutei me perdoe Se seno ismoleu disse alguma bestecircra BATALHAtildeO E o que foi que tu disseste de noacutes Natildeo vais falar JUSTINOacutePOLIS Nem sei mais o que foi Tocirc eacute arripiadin de medo das arma Mas por favocirc afasta de mim esta marmota BATALHAtildeO Pronto JUSTINOacutePOLIS Virrsquo ela de costa pra mim BATALHAtildeO Estaacute virada JUSTINOacutePOLIS Vaiacute me daacute a pena do teu elmo BATALHAtildeO Toma a pluma JUSTINOacutePOLIS Segura a minha cabeccedila Que eu vocirc inguiaacute Tenho eacute nojo desses penacho aiacute

A verdade eacute que seja na comeacutedia aristofacircnica ou no auto suassuniano a estrutura

das cenas revela a construccedilatildeo estrateacutegica que ambos os autores utilizam para criticar e

moralizar atraveacutes de piadas ridicularizaccedilotildees polifonias discursivas e ironias que satildeo

facilmente recebidas e aceitas pelo puacuteblico que diante dos gestos e vozes das personagens

conseguem ser partiacutecipes da ideia gerando empatia e cumplicidade cocircmicas imediatas

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TERCEIRO ATO

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3 AS DUAS PECcedilAS ndash O POETA USA MAacuteSCARAS

Eacute fato que associado aos tempos aacuteureos do teatro grego da Eacutepoca Claacutessica estaacute

sem duacutevida o uso da maacutescara Vaacuterias tecircm sido as razotildees apontadas para justificar este fato

tais como a necessidade de melhorar a projeccedilatildeo vocal a possibilidade de facultar aos

espectadores uma visualizaccedilatildeo mais eficaz das personagens ou a exigecircncia do recurso a um

adereccedilo imprescindiacutevel num teatro onde natildeo representavam mulheres

O termo grego prosopon 19 segundo Castiajo (2012) significa lsquofacersquo ou lsquomaacutescararsquo

designava este indispensaacutevel adereccedilo confeccionado com fino linho estucado que era

composto por uma peruca de cabelo natural que podia ser curto ou comprido e de vaacuterias

cores e por um rosto que se ajustava agrave cabeccedila do ator e que possuiacutea apenas uma abertura

para os olhos e outra para a boca bastante alargadas para facilitar a visibilidade da audiecircncia

e para obviamente permitir as condiccedilotildees necessaacuterias ao desempenho do ator a visatildeo e a

emissatildeo vocal Eacute preciso lembrar aqui que como siacutembolo do teatro tatildeo conhecido a maacutescara

era um recurso usado para ampliar a voz do inteacuterprete especialmente na declamaccedilatildeo e ateacute

hoje usamos o termo ldquovoz na maacutescarardquo que corresponde ao aspecto da ressonacircncia superior

o elemento que amplifica a voz fator de grande importacircncia no trabalho do ator capaz de

impulsionar sua voz sem esforccedilo ou com um miacutenimo esforccedilo e ser ouvido plenamente por

todos os ouvintes presentes na plateia

Alguns estudiosos como Pickard-Cambridge (1953) defendem que as primeiras

maacutescaras usadas durante a Idade MeacutediaEacutepoca Claacutessica se caracterizavam por serem bem

mais individualizadas e a falta de expressividade que as feiccedilotildees da maacutescara assumiam

durante a encenaccedilatildeo despertava no entanto no puacuteblico significados muacuteltiplos quando o seu

uso era conjugado com os elementos que constituem o schemandash a postura e os movimentos ndash

a voz humana dos quais nos ocuparemos mais a frente mas que contribuiacuteam de forma

contundente para transmitir agrave audiecircncia sobretudo emoccedilotildees e estados de espiacuterito vividos pelas

personagens que o uso da maacutescara natildeo permitia que transparecessem

Ainda de acordo com Castiajo (2012) essas maacutescaras eram tiacutepicas da comeacutedia

chamadas de maacutescaras-retrato e atraveacutes delas cuja existecircncia eacute atestada pela tradiccedilatildeo

recorria-se a traccedilos comuns das figuras puacuteblicas para se efetivar as representaccedilotildees no espaccedilo

cecircnico

19 Marshall (1999 188) defende que o fato de etimologicamente o termo grego significar tanto lsquofacersquo como lsquomaacutescararsquo eacute um exemplo claro de como estes dois conceitos se imiscuiacuteam no pensamento grego In CASTIAJO Isabel O Teatro Grego em Contexto de Representaccedilatildeo IUCV Portugal Coimbra 2012

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De qualquer forma e apesar deste caraacuteter impessoal das maacutescaras e da distacircncia que separava atores e espectadores o sexo e a idade dos atores mascarados poderiam ser identificados pelo puacuteblico pois as maacutescaras brancas eram postas em cena para representar uma personagem feminina para uma masculina uma escura Em relaccedilatildeo agrave idade era possiacutevel distinguir trecircs geraccedilotildees diferentes jovens adultos e velhos Assim da combinaccedilatildeo destas duas variaacuteveis resultaram seis tipos convencionais de maacutescaras diferentes usadas tanto na trageacutedia como na comeacutedia a de homem velho (geron) cuja face era escura a barba e os cabelos brancos e com a particularidade de possivelmente ser calvo a de homem maduro (aner)[] (CASTIAJO 2012p8)

Certo eacute que parece legiacutetimo concordar com Marshall (1999) quando afirma que o

uso da maacutescara resulta mais do fato de o espaccedilo de performance ser apropriado para isso do

que da ideia de ser essencial representar mascarado para se transmitir a moral discursiva eou

a consciecircncia de um outro fato que sugere que o motivo subliminar que estaacute na base do uso

da maacutescara nos tempos mais remotos do teatro prende-se a um assunto seacuterio deixar para

traacutes o deus no santuaacuterio o outro ldquoeurdquo criado em sua honra para que este natildeo fosse transposto

para a sociedade real

Em Acarnenses a paroacutedia reveste o rosto da personagem a partir do Teacutelefo traacutegico

de Euriacutepides que em cena estaacute a serviccedilo do cocircmico mascarado como outro perfeito para a

realizaccedilatildeo de um objetivo maior a obtenccedilatildeo da paz

Em Suassuna a ldquoGrande Vozrdquo que inicia a peccedila eacute um Palhaccedilo ndash um mascarado ndash

que de forma carnavalesca apresenta agrave audiecircncia desde os elementos cecircnicos aos

personagens adiantando que o trabalho que seraacute posto em cena se trata de um julgamento

para o exerciacutecio e restabelecimento da moralidade e que ali os proacuteprios espectadores se

reconheceratildeo nos vaacuterios outros duplos que se disfarccedilaratildeo para alcanccedilar o objetivo do autor

que eacute moralizar pelo riso

31 Os gestos a vestimenta o corpo e o disfarce

A comeacutedia pautava-se por uma maior liberdade nas marcaccedilotildees cecircnicas nos

movimentos e nos gestos e por uma maior verossimilhanccedila com a realidade e segundo Pickard-

Cambridge (1953) embora houvesse tambeacutem alguns gestos tiacutepicos ndash como o gesto chamado de

ldquogansordquo executado atraveacutes das matildeos e que simulava o bico de um ganso usado para indicar que

estavam a ser proferidas palavras sem sentido Era tambeacutem comum assistir-se nas comeacutedias a

gestos praticados na trageacutedia mas sob a forma de paroacutedia

68

Apesar da quase inexistecircncia de indicaccedilotildees textuais do autor eacute possiacutevel

reconstruir a movimentaccedilatildeo cecircnica dos atores a partir de indicaccedilotildees dadas pelos proacuteprios de

referecircncias presentes em escoacutelios 20 das representaccedilotildees dos vasos e ainda levando em conta

uma forma de arte muito semelhante a oratoacuteria seguida do gesto por exemplo falar com

determinado tipo de pose colocando a matildeo por baixo da tuacutenica ndash como era tiacutepico da oratoacuteria e

como se pode visualizar em vasos gregos de representaccedilotildees teatrais ndash ou executar movimentos

circulares ndash situaccedilatildeo que se depreende ter acontecido natildeo soacute no contexto teatral como tambeacutem

na realidade dos tribunais

Sob o vieacutes da representaccedilatildeo cecircnica e da importacircncia de seus elementos para criar a

rede de significados junto ao puacuteblico Mate (2011) afirma sobre o gesto-gestual e o

gestualizaacutevel

Importante agrave execuccedilatildeo das cenas o gestual passa pelo corpo do ator que na condiccedilatildeo de ser social irradia complexa e muacuteltipla gama simboloacutegica Levando o puacuteblico a promover uma relaccedilatildeo fundamentada no jogo de decifraccedilatildeo de siacutembolos tanto enigmaacuteticos (mais difiacuteceis de serem traduzidos) e de alegorias (siacutembolos facilmente traduziacuteveis) A troca entre ambos (atores e puacuteblico) ocorre quando o texto que intermedia essa relaccedilatildeo na condiccedilatildeo de um ldquotecido simboacutelicordquo transforma-se em gesto Na condiccedilatildeo de uma fratura do cotidiano o espetaacuteculo que acontece no tempo e no espaccedilo compreende um grande arcabouccedilo de gestualizaccedilatildeo esteacutetico-social

De qualquer forma fosse qual fosse a natureza dos gestos estes necessitavam de

ser executados em grande escala de forma a serem perceptiacuteveis pelos espectadores mais

distantes e por isso eacute expectaacutevel na opiniatildeo de DrsquoArnott (1989) que eles tivessem mais um

cariz funcional do que legitimidade teatral ateacute porque eram resultado de um sem nuacutemero de

convenccedilotildees Em Acarnenses por exemplo a movimentaccedilatildeo acentuada pela dificuldade

estrateacutegica do mendigo resulta natildeo soacute no princiacutepio da pena junto a alguns espectadores e

acusadores como tambeacutem reforccedila na proacutepria audiecircncia a identificaccedilatildeo com a dor do

apresentado

No Auto da Compadecida apoacutes um toque de clarim o Palhaccedilo figura tiacutepica das

apresentaccedilotildees circenses entra e como ocorre durante todo o espetaacuteculo conduz com ajuda do

gestual a encenaccedilatildeo desempenhando a funccedilatildeo de narrador educador dos espectadores pois

20 Para a normatizaccedilatildeo de algumas palavras gregas jaacute dicionarizadas utilizamos a forma de acordo como que consta no Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa (2008) Escoacutelio (gr σχόλιον scholion comentaacuterio interpretaccedilatildeo) satildeo notas gramaticais ou de criacutetica aos autores antigos

69

no lugar do autor anuncia o caraacuteter moralizador e religioso da peccedila na qual haacute um combate

ao mundanismo visto pelo autor como uma praga de sua igreja Suassuna por considerar-se

digno de falar sobre tal tema deixa-se ser representado por um palhaccedilo para indicar que sabe

mais do que ningueacutem e por acreditar que o povo sofre e tem direito agrave defesa justa

Outro aspecto que deve ser observado durante boa parte da peccedila satildeo as matildeos

retraiacutedas de Joatildeo Grilo as incontaacuteveis viradas de cabeccedila e as baixadas de olhos revelam natildeo

tatildeo somente sua falta de posicionamento social visiacuteveis nos mais variados e longiacutenquos

lugares do sertatildeo brasileiro como abrem para o leitor-espectador a compreensatildeo do que seria

um instante uacutenico no qual o Grilo planeja minuciosamente sua estrateacutegia de convencimento

da audiecircncia e de seus acusadores e defensores

O leitor atento logo percebe que seja na comeacutedia aristofacircnica ou no auto de

Suassuna o gesto corresponde a uma determinada atitude do corpo (que incorpora as

determinaccedilotildees histoacuterico-sociais em seu sentido estrito e restrito) que no teatro efetiva-se por

meio de siacutembolos sonoros e duplamente gestuais intenccedilatildeo por meio da qual a palavra se

projeta traduzida gestualmente

Quem natildeo codificou os gestos propostos pelos olhos e cabeccedila de Chicoacute ao

procurar no bolso cigarro para contar agrave audiecircncia seus causos que ganham vida no

imaginaacuterio popular Eacute neste universo miacutemico que convidamos o leitor a beber e entender

como nos garante Stanford (1983) que estes gestos convencionais para traduzir a intenccedilatildeo do

autor executados pelos personagens dotados de sensaccedilotildees e por vezes reveladores de

estrateacutegias moralizantes satildeo atemporais e indispensaacuteveis agrave tessitura da obra para a

compreensatildeo dos que assistem e chegam a vivenciar o encenado

Segundo Jameson (1999) o gestus ao dividir a apreensatildeo do espectador provoca

um conjunto de reflexotildees Vecirc-se algo que ao expressar variadas e contraditoacuterias conotaccedilotildees

induz ao cotejamento agrave contraposiccedilatildeo de leituras O espectador afasta-se do que vecirc para

aproximar-se da vida que vive e a partir daiacute voltar agrave obra Em movimento dialeacutetico pode-se

ver aleacutem do aparentemente apreensiacutevel

[] gestus eacute o operador de um efeito de estranhamento no sentido proacuteprio e em particular que o estranhamento deriva da superposiccedilatildeo de cada um destes significados sobre os demais mostrando-nos por exemplo como um movimento involuntaacuterio de matildeo poderia em certas circunstacircncias [] contar como um fatiacutedico ato histoacuterico com consequumlecircncias seacuterias e irreversiacuteveis [] eacute uma superposiccedilatildeo e um estranhamento que natildeo apenas nos faz entender o elemento narrativo especiacutefico a uma luz nova e transformadora mas tambeacutem muda nossas ideias sobre o que eacute um simples gesto fiacutesico e sobre o que ao mesmo tempo conta como um acontecimento histoacuterico (JAMESON 1999 p110)

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Responsaacutevel tambeacutem pelo convencimento da audiecircncia e como defende

Pickard-Cambridge (1953) o vestuaacuterio estava a serviccedilo dos gestos desempenhando um

importante papel (se natildeo o mesmo) na determinaccedilatildeo pelo puacuteblico do estatuto social

representado pelas personagens cujas caracteriacutesticas podiam facilmente ser expressas atraveacutes

das cores texturas e designs No entanto eacute impossiacutevel determinar com exatidatildeo os figurinos

usados pelos atores nos primeiros tempos do teatro Este fato encontra comprovaccedilatildeo quando

nos lembramos do Teacutelefo de Acarnenses ou do ldquomendigordquo encenado por Severino para entrar

na cidade sem ser denunciado e que em ambos os casos o vestuaacuterio se caracteriza por uma

maior simplicidade e uma maior aproximaccedilatildeo agrave mendicacircncia

Em Acarnenses no momento em que eacute ameaccedilado pelos indignados habitantes de

Acarnas que constituem o Coro Diceoacutepolis necessita de um discurso forte o suficiente para

convencer aqueles homens das boas razotildees das suas treacuteguas privadas Nada como procurar

Euriacutepides e solicitar-lhe os andrajos que tatildeo bem serviram agrave eloquecircncia de Teacutelefo (vv 393-

479) E diante de uma longa lista de personagens andrajosas Diceoacutepolis encontra o seu

Teacutelefo Disfarce perfeito Eacute evidente aqui a noccedilatildeo de que a personagem dramaacutetica natildeo eacute

apenas um conjunto de palavras proferido agrave sombra de um nome mas eacute uma entidade sujeita a

uma construccedilatildeo que decorre das proacuteprias regras e exigecircncias do drama enquanto espetaacuteculo Acarnenses traz o enredo de acordo com a necessidade de defesa colocando o protagonista em maus lenccediloacuteis por ter feito treacuteguas com o inimigo espartano Teacutelefo era mesmo a personagem que melhor se encaixava como disfarce para a defesa do poeta e do protagonista O Teacutelefo de Aristoacutefanes quebra a ilusatildeo dramaacutetica e o paacutethos de que a trageacutedia depende pois enquanto o Teacutelefo de Euriacutepides natildeo se disfarccedila no palco mas parece entrar disfarccedilado de acordo com Foley (1996 135-7) o espectador de Aristoacutefanes vecirc Diceoacutepolis vestir os trapos de Teacutelefo e comeccedilar a se comportar como um mendigo jaacute na cena de aquisiccedilatildeo dos acessoacuterios do disfarce pelo exagero do detalhe e da atuaccedilatildeo de Diceoacutepolis torna-se demasiadamente realiacutestico e natildeo traacutegico Tambeacutem por expor o mecanismo do ekkyacuteklema (408) no momento em que Diceoacutepolis chama Euriacutepides para fora de casa pode sugerir que a comeacutedia desmascara o gecircnero seacuterio mostrando os bastidores do teatro traacutegico mas acrescentando o mesmo mecanismo a sua proacutepria ilusatildeo cocircmica Se o disfarce era para causar compaixatildeo aos acarnenses como ele poderaacute funcionar sem o paacutethos traacutegico (POMPEU 2004 p 83-98)

A escolha de Diceoacutepolis nos assegura que aliado aos gestos o disfarce traduz-se

na melhor estrateacutegia para convencer seus algozes

JUSTINOacutePOLIS Tu compotildee de peacute pra riba Podenotaacute de peacutes no chatildeo por isso tu compotildee os manco Mas por que tu taacute vestido cumrsquosmulambo da trageacutedia Rocircpas de daacute doacute Por isso tu compotildee os ismoleu Mas te imploro pelos teus joeio Euriacutepides Daacute pra mim um mulambo daquela peccedila antiga

71

Pois tenho que falaacute pro coro umleriado grande Ela traz a morte srsquoeufalaacute mal (vv 410-417)

Elemento indispensaacutevel aos planos do heroacutei camponecircs o disfarce se constituiraacute

como mateacuteria prima da accedilatildeo do protagonista ameaccedilado pelo coro Na cena transcrita a seguir

o proacuteprio Diceoacutepolis revela a importacircncia da indumentaacuteria do mendigo para que o torne mais

digno de pena e possa reforccedilar sua estrateacutegia de convencer o coro

EURIacutePIDES Quais trapos Acaso aqueles com que aqui Eneu O coitado do velho concorria JUSTINOacutePOLIS De Eneu natildeo era era de ocirctro mais miserave EURIacutePIDES Os de Fecircnix o ceguinho JUSTINOacutePOLIS Natildeo de Fecircnix natildeo Havia ocirctro mais miserave que Fecircnix EURIacutePIDES Que mantos esfarrapados o homem me pede Seraacute que falas dos de Filoctetes o mendigo JUSTINOacutePOLIS Dele natildeo de um muito muito mais ismoleu EURIacutePIDES Acaso queres os mantos sujos Que Belerofonte tinha este coxo aqui JUSTINOacutePOLIS Natildeo era Belerofonte Mas tambeacutem o tipo era Mancoismoleuquexudo bom de laacutebia EURIacutePIDES Sei quem eacute o homem o miacutesioTeacutelefo JUSTINOacutePOLIS Eacute isso Teacutelefo Dele me daacute eu te suplico os mulambo EURIacutePIDES Oacute rapaz daacute-lhe os trapos do Teacutelefo Estatildeo por cima dos trapos do Tiestes No meio dos de Ino Aqui tens toma laacute (vv 416-434)

Com base nos estudos de Mate (2011) sobre o gestual percebemos a intensidade

causada por este elemento da cena cocircmica durante todo o Auto da Compadecida nas atitudes

de Joatildeo Grilo no balanccedilar do corpo desconsertado nas matildeos que evidenciam a ansiedade de

vinganccedilas contra seus patrotildees ndash o padeiro e a mulher ndash nas viradas de ombro e cabeccedilas tatildeo

comuns na cena social dos longiacutenquos lugares do Nordeste 21 brasileiro Com isso puacuteblico e

personagem se reconhecem na compreensatildeo do que seria um momento para aleacutem do riso do

luacutedico mas plenamente do social que ali ganha vida e ao mesmo tempo se finda nas accedilotildees e

histoacuterias contadas recuperadas da tradiccedilatildeo oral

21 ALBUQUERQUE JUacuteNIOR Durval Muniz de A invenccedilatildeo do Nordeste e outras artes p 66

72

Eacute este o Nordeste universal de Ariano Suassuna lugar de profunda mistura onde o

profano e o sagrado se completam pelos recortes natildeo somente geograacuteficos mas humanos e

imagiacutesticos que servem de ferramentas para autores que voltam suas literaturas para falar da

condiccedilatildeo humana de sobreviver numa regiatildeo tatildeo contraditoacuteria nas incontaacuteveis Taperoaacute que

pulam dos livros e telas e se misturam agrave nossa realidade de forma tatildeo atualizada e recorrente

O Nordeste natildeo eacute um fato inerte na natureza Natildeo estaacute dado desde sempre Os recortes geograacuteficos as regiotildees satildeo fatos humanos satildeo pedaccedilos de histoacuteria magma de enfrentamentos que se cristalizaram satildeo ilusoacuterios ancoradouros da lava da luta social que um dia veio agrave tona e escorreu sobre este territoacuterio O Nordeste eacute uma espacialidade fundada historicamente originada por uma tradiccedilatildeo de pensamento uma imagiacutestica e textos que lhe deram realidade e presenccedila (ALBUQUERQUE2011 p63)

Portanto eacute nessa fonte muacuteltipla de (in)certezas que cortam o universo miacutemico que

Aristoacutefanes e Suassuna nos convidam a entender e deles beber como nos garante Stanford

(1983 85-87) que os gestos convencionais que abrem espaccedilo para a leitura social do autor

estatildeo perfeitamente ligados ao seu contexto fato que desperta no leitorouvinte a mesma teia

de sentidos e sensaccedilotildees vivenciadas pelo autor em seu jogo de enganar para ganhar como

acontece durante o julgamento de Diceoacutepolis pela assembleia em Acarnenses e com Joatildeo

Grilo e os demais no Auto da Compadecida considerandoeacute claroa troca simboacutelica de

conhecimento sobre o encenado que compreende natildeo soacute oral como tambeacutem o gestualizaacutevel

(in)visiacutevel

Assim como as maacutescaras e os gestos o vestuaacuterio constitui-se como um importante

papel (se natildeo mesmo o mais importante) na determinaccedilatildeo pelo puacuteblico do estatuto social

representado pelas personagens cujas caracteriacutesticas podiam facilmente ser expressas atraveacutes

das cores texturas e designs

Se haacute juiacutezes disfarccedilados de vespas um Teacutelefo aristofacircnico indumentado para o

convencimento dos juiacutezes da assembleia que veem Diceoacutepolis como real e ao mesmo tempo o

ilusoacuterio travestido de mendigo para ganhar natildeo perdatildeo de seus algozes mas apenas justificar

seus benefiacutecios Assim devemos pontuar a emergecircncia literaacuteria de Ariano Suassuna ao

colocar seu Teacutelefo em Taperoaacute quando para natildeo ser reconhecido Severino entra na cidade e

em nosso imaginaacuterio vestido tambeacutem de mendigo Em ambos os casos o poeta representou

seu projeto de enganar o mundo em cena pelo puacuteblico que assiste ao espetaacuteculo preso agrave cena

seguinte que alimentaraacute ao seu imaginaacuterio em consonacircncia com o dito pelo poeta romano

Petrocircnio (c 27-66 AD) Mundus vult decipi ergo decipiatur (O mundo quer ser enganado

portanto que seja enganado)

73

Mesmo sendo impossiacutevel determinar com exatidatildeo os figurinos usados pelos

atores nos primeiros tempos do teatro haacute registros que asseguram que figurinos traacutegicos se

baseavam no manto com que Dioniso era frequentemente representado e no que concerne agrave

comeacutedia o vestuaacuterio tiacutepico usado caracterizava-se pela carga grotescamente acentuada

visiacutevel quer na forma como o corpo aparecia enchumaccedilado quer no uso de uma tuacutenica ndash

chiton ndash justa e curta o suficiente para exibir o falo -phallos

O certo eacute que a vestimenta o corpo e o disfarce existem para o Teatro de uma

forma indissociaacutevel se reconstroem a cada cena e em unidade criam e recriam expectativas e

realidades na audiecircncia que assiste agrave peccedila e a vivencia

74

QUARTO ATO

75

4 O AUTOR E SEUS OUTROS NA COMEacuteDIA E NO AUTO

No Quarto Ato tanto em Acarnenses como no Auto da Compadecida

ressaltamos que a figura controversa do poeta esteve pautada pela multiplicidade apresentada

nas accedilotildees cecircnicas das personagens reforccedilando uma atitude dupla polifocircnica e multifacetada

A verdade eacute que a figura do duplo sempre foi e tem sido desde a Antiguidade

insistentemente tematizada sob a inspiraccedilatildeo da literatura aristofacircnica e mais precisamente nos

seacuteculos XVI e XX nos autos de Gil Vicente e de Ariano Suassuna lugar onde encontrou um

terreno feacutertil e vigoroso por ser o ldquoduplordquo revestido por uma aura de misteacuterio e ao esmo

tempo de moralidade No palco do (in)certo que nos revela o teatro analisamos o tema em

duas obras Acarnenses de Aristoacutefanes ndash versatildeo matuta de Ana Maria Ceacutesar Pompeu ndash e no

Auto da Compadecida de Ariano Suassuna tendo por meta ressaltar a partir da accedilatildeo cecircnica a

presenccedila do poeta e de seu discurso moralizante em defesa da cidade

Como tema relacionado agraves vaacuterias vivecircncias humanas o duplo persiste como

temaacutetica sempre pungente e revisitada A ideia do duplo tem estado presente na literatura

desde a Antiguidade retornando na contemporaneidade com ecos da tradiccedilatildeo claacutessica uma

vez que a humanidade vive cercada de elementos relacionados agrave duplicidade e que remetem a

questotildees acentuadamente marcantes como por exemplo o caraacuteter existencial ligado ao ser

masculinofeminino homemanimal espiacuteritocorpo vidamorte ou aos miacutesticos deusdiabo

anjodemocircnio ceacuteuinferno entre outros Desse modo eacute sabido que a praacutetica e a vivecircncia

dessas dualidades desde os primoacuterdios da civilizaccedilatildeo tem conduzido o homem se

(re)conhecer e debater-se sobre a anguacutestia e as dores do duplo

Segundo Mello (2000) a ideia de duplicidade do Eu eacute um conceito antigo e no

que se refere agrave literatura esse tema desperta algumas questotildees inquietantes capazes de nos

levar a reflexotildees sobre - Quem somos - o que a anguacutestia representa senatildeo a falta ndash ou o que

seremos depois da morte Um exemplo praacutetico da temaacutetica do duplo estaacute presente em

narrativas literaacuterias como Metamorfose de Kafka Noite na Taverna de Aacutelvares de Azevedo

O homem duplicado de Joseacute Saramago Don Quixote de La Mancha de Cervantes ou no

conto ldquoO espelhordquo de Machado de Assis e de forma mais especiacutefica em Acarnenses de

Aristoacutefanes e no Auto da Compadecida de Ariano Suassuna

Sob o vieacutes do duplo na literatura Mello ainda afirma que a noccedilatildeo da outra metade

do sujeito expressa para a literatura um novo pensar sobre a identidade pois o indiviacuteduo pode

reconhecer-se como o proacuteprio do que se trata atraveacutes de representaccedilotildees metafoacutericas assim o

desdobramento do eu adquire vocaccedilatildeo especial na literatura

76

A literatura tem uma vocaccedilatildeo especial para tematizar o duplo jaacute que no ato de criar o autor se desdobra em narrador e atraveacutes de seus heroacuteis libera partes aprisionadas em si mesmo que estatildeo sob a maacutescara de um Eu particular fixo no molde da personalidade (MELLO 2000 p 123)

Para uma maior aproximaccedilatildeo com o tragicocircmico no contexto cecircnico do duplo

retornamos ao teatro que na Greacutecia Antiga surgiu a partir de manifestaccedilotildees a Dioniso deus

do vinho da vegetaccedilatildeo do ecircxtase e das metamorfoses Pouco a pouco os rituais dionisiacuteacos

foram se modificando e se transformando em trageacutedias e comeacutedias Entretanto as diferenccedilas

entre o traacutegico e o cocircmico nunca foram tatildeo bem delineadas

Todavia cabe salientar que o Duplo sempre foi um tema profundamente

instigante da cultura humana e sempre esteve essencialmente relacionado vaacuterias aacutereas do

conhecimento como na Filosofia Psicologia Literatura e na Mitologia atuando como

geradora de ambiguidades Na Antiguidade o Duplo era para a sociedade a representaccedilatildeo ou

o reflexo do idecircntico ou seja prevalecia a ideia de Duplo como o homogecircneo manifestaccedilatildeo

do igual

No entanto natildeo permaneceu dessa maneira tendo com o passar do tempo a

partir do seacuteculo XVIII se tornado heterogecircneo isto eacute o Duplo passa a representar o desigual

ou em outras palavras o oposto em Suassuna o arremedo cocircmico Este fato encontra

comprovaccedilatildeo quando procuramos as diferenccedilas existentes entre o traacutegico e o cocircmico tatildeo bem

delineadas na sociedade Greacutecia Claacutessica

41 O par cocircmico na tradiccedilatildeo literaacuteria em Aristoacutefanes e Ariano Suassuna

Nossa pesquisa parte da hipoacutetese especiacutefica de que a dimensatildeo do duplo como o

outro do poeta em Aristoacutefanes e Ariano Suassuna estaacute estruturada a partir da loacutegica binaacuteria do

par cocircmico um par composto pelas intenccedilotildees das personagem e pelas manobras exercidas

pelo poeta para dizer por traacutes das cortinas o que deve ser de conhecimento de todos

Portanto nos propomos enquanto espectadores traccedilar a partir da comeacutedia e do auto diferentes

gecircneros literaacuterio o estudo do par cocircmico de forma a analisar a constituiccedilatildeo dos outros

poeacuteticos em cada uma das obras do corpus selecionado

Neste esteio haacute de se considerar um estudo significativo sobre o assunto

mencionado no trabalho de Beltrametti (2000) que analisa as caracteriacutesticas dos pares

cocircmicos em Aristoacutefanes nos diaacutelogos platocircnicos e no dramaturgo latino Plauto A autora

define em termos gerais a dupla cocircmica como 1) uma unidade dramaacutetica de dois elementos

77

inseparaacuteveis 2) um pivocirc estrutural 3) um noacute semacircntico que liga linhas mais importantes de

senttido

Da caracterizaccedilatildeo proposta por de Beltrametti redefinimos o par cocircmico

aristofacircnico e suassuniano como um esquema binaacuterio composto de dois poacutelos opostos e

complementares o zombador e o zombado o palhaccedilo e o tolo que compotildeem o noacute semacircntico

da accedilatildeo cecircnica que nas obras que compotildeem o corpus deste trabalho estatildeo ao nosso ver a

serviccedilo da voz autoral

Em primeiro lugar como fio de uma produccedilatildeo anterior reconhecemos os

antecedentes literaacuterios do par cocircmico aristofacircnico na Odisseia de Homero quando encontra o

seu modelo mais relevante no binocircmio de Ulisses e do Ciclope no Canto IX Em segundo

lugar traccedilamos a presenccedila da dupla cocircmica suassuniana no auto influenciado pela produccedilatildeo

grega e pela literatura de Gil Vicente de cuja obra nos ocuparemos no V Ato

Entretanto cabe ressaltar que o objetivo central desta parte do nosso estudo eacute

explorar os traccedilos distintivos da dupla cocircmica nesses diferentes gecircneros tendo como base o

duplo poeacutetico e a maneira pela qual os comedioacutegrafos manipulam as accedilotildees das personagens

para construir a interpretaccedilatildeo do puacuteblico

A comeacutedia Acarnenses a primeira do corpus aristofacircnico conservado coloca em

cena a polecircmica poliacutetica entre uma posiccedilatildeo de guerra que desejava a continuidade da guerra

contra Esparta e a posiccedilatildeo contraacuteria que era impulsionada pelo sentimento de paz defendida a

partir do discurso do heroacutei cocircmico Diceoacutepolis

De maneira estrateacutegica Aristoacutefanes age na peccedila de forma a esclarecer para a

audiecircncia sobre os efeitos negativos para a cidade caso a guerra natildeo tenha um fim fato que se

comprova nos estudos de Zumbrunnen (2004) ao analisar a dimensatildeo poliacutetica e persuasiva da

peccedila categorizando-a em uma linha usual as intenccedilotildees seacuterias para aconselhar e influenciar o

puacuteblico em favor do fim da guerra

Em nossa opiniatildeo e seguindo MacDowell (1995) as comeacutedias de Aristoacutefanes

tinham que ser claras e de faacutecil entretenimento para os atenienses comuns atitude que se

justifica pela posiccedilatildeo contraacuteria do proacuteprio autor em relaccedilatildeo agrave guerra estreitada e assegurada

pelo discurso poliacutetico pronunciado na assembleia

Partimos da hipoacutetese especiacutefica de que o par cocircmico na comeacutedia aristofacircnica

constitui um dos seus principais recursos de persuasatildeo cocircmica uma vez que estaacute associado agraves

expectativas do olhar do puacuteblico na interaccedilatildeo cecircnica ndash que tambeacutem se constitui como apartir

do trabalho proposto pelo autor Isso significa que o esquema binaacuterio defendido por

Beltrametti jaacute referido nesta pesquisa funciona por si soacute como uma interpretaccedilatildeo chave para

78

o puacuteblico os telespectadores podem antecipar que o duplo autoral - Diceoacutepolis - seraacute o

condutor central atacado e ridicularizado ndash zombador e acusador ao mesmo tempo no plano

interno da accedilatildeo dramaacutetica

Eacute importante ressaltar no entanto que tanto a comeacutedia de Aristoacutefanes como no

auto de Ariano Suassuna natildeo apresentam personagens idealizados nem absolutamente

indiferentem ao ridiacuteculo ao bobo ou ao piacutecaro As figuras do heroacutei Diceogravepolis e a do bobo

Joatildeo Grilo natildeo satildeo exceccedilotildees

Obscura como outros siacutembolos e projeccedilotildees coletivas a figura do duplo de

Diceoacutepolis em Acarnenses e de Joatildeo Grilo no Auto da Compadecida eacute cocircmica e criacutetica visto

que satildeo elementos que parodiam o serviccedilo divino cantando errado e fazendo sermotildees

moralizantes travestindo-se usando maacutescaras e passeando com maestria nos mundos popular

e erudito representando coletivos pelo poder da gargalhada do riso seacuterio e da tolice formas

mais sutis para se levar ao conhecimento da audiecircncia o desdobramento da consciecircncia ao

mesmo tempo a do idiota e a do bufatildeo que a utiliza como maacutescara e a coloca em praacutetica na

defesa do cidadatildeo injusticcedilado

Klein (1998) assegura que a dualidade implica certa ambiguidade constitutiva

na figura do heroacutei cocircmico e de seu discurso premissa apresentada em Acarnenses e por

extensatildeo aplicada por noacutes no Auto da Compadecida Em ambas as peccedilas o duplo poeacutetico eacute

estuacutepido e saacutebio grosseiro e sutil escravo das pulsotildees e senhor de si mesmo menos e mais

humano como nos afirma Pompeu (2004) ao citar Beltrametti quando a autora escreve que

no teatro de Aristoacutefanes haacute dinacircmicas de pares que satildeo mais complexas

Ela conclui que o teatro de Aristoacutefanes tem seus duplos que satildeo ldquoesses outros si mesmos que tecircm por funccedilatildeo instaurar uma tensatildeo com o si dos protagonistas das comeacutedias fazendo com que as perspectivas se entrelacem tatildeo estreitamente que acabem por se perderrdquo Beltrametti entende ser o par cocircmico ldquo1 Unidade dramaacutetica de dois elementos indissociaacuteveis 2 Princiacutepio e ao mesmo tempo base estrutural 3 Noacute semacircntico onde se ligam as mais importantes linhas do sentidordquo (POMPEU p12)

Assim percebe-se que tanto no teatro aristofacircnico quanto no teatro popular de

Ariano Suassuna o conhecimento eacute expresso natildeo somente pelas maacutescaras e gestos como

tambeacutem pelas vozes cocircmicas que conduzem a plateia ao conhecimento da condiccedilatildeo humana

tatildeo bem levada a seacuterio pelos autores em seus discursos criacuteticos sendo portanto uma nova

forma de combinar velhos ingredientes como o riso frouxo e estridente educador aacutecido da

sociedade que encontra espaccedilo semacircntico atraveacutes dos outros do poeta que se organizam em

uma nova composiccedilatildeo natildeo soacute marcada pela cena teatral mas pela inteligecircncia de um autor

79

que pensa a sociedade para aleacutem das mazelas das injusticcedilas vivenciadas impostas pelo estado

de guerra ou pela exploraccedilatildeo das instituiccedilotildees sociais

Neste ambiente duplicadopolifocircnico observamos que a atitude educadora do

poeta bem como as accedilotildees das personagens que satildeo formadoras da estrutura do discurso

moralizador e porque natildeo dizer denunciador formado a partir da presenccedila de vaacuterias vozes

como a do proacuteprio poeta Haacute de se pontuar pel afirmativa acima que este fato se deve porque

as ldquovozes autoraisrdquo tecircm sido um tema de grande interesse para muitos estudiosos e para todos

que se deparam com a problemaacutetica da identificaccedilatildeo desta quando articulada agrave formaccedilatildeo dos

duplos dentro da Comeacutedia Antiga ou no Auto

Como o Proacuteprio Ariano Suassuna bem jaacute colocou para a construccedilatildeo do Auto da

Compadecida recorreu a uma tradiccedilatildeo cocircmica bastante viva que eacute a literatura oral e popular

do Nordeste dando-lhe novas formas para preservar a autenticidade Condutor de uma seacuterie

de armaccedilotildees ao personagem Joatildeo Grilo o autor conferiu a tarefa de explorar os efeitos

cocircmicos das cenas A presenccedila de Chicoacute o duplo de Joatildeo Grilo tem a mesma importacircncia

para o desenrolar dos atos visto ser ele o mentor das histoacuterias sem peacute nem cabeccedila que

divertem o puacuteblico a ponto de tambeacutem participar da criaccedilatildeo de comicidade

Para Joatildeo Grilo por estrateacutegia do autor coube uma verdadeira consciecircncia de sua

posiccedilatildeo social e a Chicoacute personagem simploacuterio coube toda inocecircncia e imaginaccedilatildeo

JOAtildeO GRILO Vocecirc eacute tatildeo sem confianccedila CHICOacute Eu sem confianccedila Que eacute isso Joatildeo estaacute me desconhecendo Juro como ele vem Quer benzer o cachorro da mulher para ver se o bicho natildeo morre A dificuldade natildeo eacute ele vir eacute o padre benzer O bispo estaacute aiacute e tenho certeza de que o Padre Joatildeo natildeo vai querer benzer o cachorro JOAtildeO GRILO Natildeo vai benzer Por quecirc Que eacute que um cachorro tem de mais CHICOacute Bom eu digo assim porque sei como esse povo eacute cheio de coisas mas natildeo eacute nada de mais Eu mesmo jaacute tive um cavalo bento JOAtildeO GRILO Que eacute isso Chico Jaacute estou ficando por aqui com suas histoacuterias Eacute sempre uma coisa toda esquisita Quando se pede uma explicaccedilatildeo vem sempre com ldquonatildeo sei soacute sei que foi assimrdquo CHICOacute Mas se eu tive mesmo o cavalo meu filho o que eacute que eu vou fazer Vou mentir dizer que natildeo tive JOAtildeO GRILO Vocecirc vem com uma histoacuteria dessas e depois se queixa porque o povo diz que vocecirc eacute sem confianccedila CHICOacute Eu sem confianccedila Antocircnio Martinho estaacute para dar as provas do que eu digo JOAtildeO GRILO Antocircnio Martinho Faz trecircs anos que ele morreu

80

CHICOacute Mas era vivo quando eu tive o bicho JOAtildeO GRILO Quando vocecirc teve o bicho E foi vocecirc quem pariu o cavalo Chico CHICOacute Eu natildeo Mas do jeito que as coisas vatildeo natildeo me admiro mais de nada No mecircs passado uma mulher teve um na serra do Araripe para os lados do Cearaacute JOAtildeO GRILO Isso eacute coisa de seca Acaba nisso essa fome ningueacutem pode ter menino e haja cavalo no mundo A comida eacute mais barata e eacute coisa que se pode vender Mas seu cavalo como foi CHICOacute Foi uma velha que me vendeu barato porque ia se mudar mas recomendou todo cuidado porque o cavalo era bento E soacute podia ser mesmo porque cavalo bom como aquele eu nunca tinha visto Uma vez corremos atraacutes de uma garrota das seis da manhatilde ateacute agraves seis da tarde sem parar nem um momento eu a cavalo ele a peacute Fui derrubar a novilha jaacute de noitinha mas quando acabei o serviccedilo e enchocalhei ares olhei ao redor e natildeo conhecia o lugar onde estaacutevamos Tomei uma vereda que havia assim e aiacute tangendo o boi JOAtildeO GRILO O boi Natildeo era uma garrota CHICOacute Uma garrota e um boi JOAtildeO GRILO E vocecirc corria atraacutes do dois de uma vez CHICOacute Corria eacute proibido JOAtildeO GRILO Natildeo mas eu me admiro eacute eles correrem tanto tempo juntos sem se apartarem Como foi isso CHICOacute Natildeo sei soacute sei que foi assim Saiacute tangendo os bois e de repente avistei uma cidade Eacute uma histoacuteria que eu natildeo goste nem de contar (SUASSUNA 2005 p25-28)

Segundo Girondon (1960) para compor o Auto da Compadecida Suassuna

inspirou-se naturalmente na comeacutedia tradicional italiana no que concerne a certos

personagens Os personagens como Joatildeo Grilo e Chicoacute emprestam de muacuteltiplas fontes seus

traccedilos os mais divertidos Satildeo os personagens ldquoheroacuteisrdquo os condutores da accedilatildeo os criados os

zanni 22 dos Italianos Mas revestem igualmente caracteriacutesticas proacuteprias dos piacutecaros23

espanhoacuteis aos tricksters 24 ingleses ao renard do fabulaacuterio francecircs medieval e ao Pedro

Malasartes da literatura popular luso-brasileira

22 A definiccedilatildeo de zanni no dicionaacuterio estaacute no popular teatro do seacuteculo XV tipo do villano dos vales de Bergamo aacutespero pobre ignorante Zanni tambeacutem eacute um bufatildeo palhaccedilo In Alessandra Mignatti La maschera e il viaggio sullorigine dello Zanni Bergamo Moretti amp Vitali 2007 23 ABRAMS David amp SUTTON-SMITH Brian loc cit 24 ABRAMS David amp SUTTON-SMITH Brian The development of the trickster in childrenrsquos narratives Journal of American Folklore90 (355) 1977 23 24

81

Duplos Joatildeo Grilo e Chicoacute satildeo personagens transbordantes de vitalidade e de

artimanhas dotados de uma imensa energia na afirmaccedilatildeo de suas inclinaccedilotildees e de suas ideias

Entretanto na criaccedilatildeo literaacuteria do auto Ariano Suassuna revela todo o controle das accedilotildees

visto que nenhuma das personagens controla verdadeiramente o jogo pois satildeo arrastados pelo

processo cocircmico que se reproduz a cada cena

Assim como o duplo aristofacircnico o par Joatildeo Grilo e Chicoacute nos leva a perceber

que as paixotildees e ambiccedilotildees humanas provocam accedilotildees inconsequentes das quais os seres natildeo se

apercebem Eacute como se o autor quisesse aliar intimamente a bufonaria e a verdade humana

num todo Joatildeo Grilo eacute fanfarratildeo que se deleita sobre seu talento de conduzir bem suas

intrigas Contudo Joatildeo Grilo eacute o ldquomarginalrdquo inventivo que busca uma revanche pelas afrontas

que seus patrotildees o fazem sofrer

No plano teatral eacute justamente Joatildeo Grilo quem nos diz das intenccedilotildees do poeta

fazer rir o puacuteblico pela zombaria da proacutepria natureza humana cuja credulidade e ingenuidade

nos fazem perder a consciecircncia dos proacuteprios defeitos Atraveacutes do riso o homem toma

consciecircncia dele mesmo mitigando suas dores e angustias existenciais Todavia como poeta

cocircmico Ariano Suassuna tambeacutem quer nos fazer refletir uma vez que se o riso pode ser

determinante nas reaccedilotildees entatildeo eacute o pensamento que pode auxiliar a compreender a verdade

humana que se oculta atraacutes do riso

Joatildeo Grilo eacute o duplo poeacutetico que reverbera o pensamento de Suassuna contra as

injusticcedilas e nos ensina que de nada serve se deixar paralisar pelo medo e pela covardia eacute

preciso enfrentar as dificuldades No momento em que tudo parece perdido em que a

condenaccedilatildeo ao inferno parece inevitaacutevel ele revela uma feacute inalteraacutevel em si mesmo e se

permite um novo desafio Ele diz

Eacute difiacutecil quer dizer sem jeito Sem jeito Sem jeito por quecirc Vocecircs satildeo uns pamonhas qualquer coisinha estatildeo arriando Natildeo vecirc que tiveram tudo na terra Se tivessem tido que aguentar o rojatildeo de Joatildeo Grilo passando fome e comendo macambira na seca garanto que tinham mais coragem Quer ver eu dar um jeito nisso Padre Joatildeo (SUASSUNA 2005 p167)

Para Ariano Suassuna o palco do teatro eacute um lugar maacutegico onde as imagens

concretas se instalam na cena a cena em forma de quadros quadros dinacircmicos vivos Ao

lado destas imagens concretas ele instala imagens metafoacutericas que incorpora agrave realidade

cecircnica conduzindo o espectador para o entendimento de que o mundo encontra-se com o

teatro mas natildeo o mundo linear homogecircneo mas o mundo agraves avessas que soacute o teatro mostra e

que pode dar agrave realidade uma chance de impor-se pela ressonacircncia da gargalhada

82

Por conseguinte eacute notaacutevel contudo observar que o duplo cocircmico

frequentemente utilizado por Aristoacutefanes em suas peccedilas tambeacutem encontra eco na literatura

popular de Suassuna por apresentar uma tessitura textual atravessada pelas muacuteltiplas vozes de

seus personagens constituindo-se em um fenocircmeno recorrente e natural que aponta para a

tensatildeo de uma crise profunda denunciada pelo proacuteprio poeta em seus discursos De iniacutecio

esclarecemos que em toacutepico especiacutefico trataremos da voz cocircmica entretanto utilizaremos do

termo para nos referirmos ao duplo autoral a partir da identificaccedilatildeo da produccedilatildeo discursiva

Educadores e denunciadores tanto Aristoacutefanes quanto Ariano Suassuna

constroem em seus enredos personagens que usam da autoridade conferida pelo poeta para

ressoar seus anseios e indignaccedilotildees atraveacutes do discurso Ao longo das peccedilas eles projetam seus

duplos de forma que suas proacuteprias vozes possam ser ouvidas indiretamente por traacutes de cada

ato levando o puacuteblico a crer que ouve a voz direta do poeta quer atraveacutes do coro do palhaccedilo

coreuta da paraacutebase

Como justificativa do duplo satildeo em personagens como Diceoacutepolis ou Joatildeo Grilo

que realizam a intenccedilatildeo poeacutetica e eacute ressonante pelo riso da mangofa pelos gestos

performaacuteticos pelo arremedo poeacutetico eou pelo outro travestido de a(u)tor accedilotildees

perfeitamente justificaacuteveis visto que o duplo cocircmico passa a ser o noacute semacircntico entre as

culturas grega e popular utilizando fatos do dia a dia como mateacuteria na representaccedilatildeo de algo

identificado pelo autor atraindo consequentemente a atenccedilatildeo do leitor ou espectador para a

obra

A verdade eacute que a conduccedilatildeo cocircmica e moralizante levada ao espectador encontra

espaccedilo feacutertil em ambas as obras traduzida pela accedilatildeo do poeta a partir das vozes de seus

duplos Diceoacutepolis e Joatildeo Grilo figuras conturbadas em franco desacordo com a situaccedilatildeo

promovida pelos legisladores em Atenas ou na pacata cidade de Taperoaacute Relevantes para

todo o enredo esses protagonistas descobrem-se em atitude de perfeita rebeldia conscientes

das mudanccedilas advindas de suas atitudes e como heroacuteis cocircmicos satildeo tambeacutem autores de uma

saiacuteda que nem sempre pode ser compartilhada socialmente ou compreendida

O proacuteprio Suassuna admite a influecircncia muacuteltipla que sofreu de outros estilos e

gecircneros ao apresentar a peccedila por meio dos contadores de histoacuteria do Auto Portuguecircs e do

Cordel como Chicoacute Joatildeo Grilo e o palhaccedilo responsaacuteveis diretos pela orientaccedilatildeo da

audiecircncia

Diante dessa apropriaccedilatildeo e recuperaccedilatildeo dos mecanismos narrativos da Comeacutedia e

de outros gecircneros literaacuterios como o auto que apresentam um caraacuteter atemporal torna-se

importante salientar que aleacutem de construir ldquomuacuteltiplos cocircmicosrdquo ela apresenta personagens

83

natildeo universais como os que satildeo caricaturas de pessoas que viveram em Atenas em um

momento especiacutefico A obra de Aristoacutefanes potildee em cena nomes de figuras eminentes da

Greacutecia antiga como o de poliacuteticos (Cleatildeo e Lacircmaco) pensadores (Soacutecrates) e poetas

(Euriacutepides e Eacutesquilo) A referecircncia a essas personalidades bem como o diaacutelogo com a

mitologia a histoacuteria e o teatro natildeo constituiacutea um problema para a plateia de Aristoacutefanes No

entanto para noacutes leitores de outras geraccedilotildees a percepccedilatildeo de tais referecircncias natildeo eacute assim tatildeo

simples ainda que seja fundamental para a compreensatildeo da comeacutedia

Na comeacutedia aristofacircnica a simples presenccedila de Diceoacutepolis um camponecircs que vai agrave Pnix para falar contra os horrores e caos produzidos pela guerra jaacute se configura como um ato de quebra da normalidade estabelecido pelo autor que autoriza seu duplo agrave defesa da cidade O proacuteprio discurso do personagem que eacute tambeacutem em partes a fala do poeta nos revela uma intenccedilatildeo por traacutes das atitudes daquele que para ter sua paz e celebrar no campo as dioniacutesias rurais eacute marginal no plano da obediecircncia imposta pelos legisladores que lucram com o traacutegico da guerra

Indissociaacuteveis das peccedilas e da proposta autoral as marcas do traacutegico se tornam

modelos de uma tensatildeo que provoca o riso e ficam mais salientes a partir da metade do

Segundo Ato no Auto da Compadecida com a entrada do cangaceiro e de Severino do

Aracaju travestido de mendigo representando o duplo do bem o assassino impiedoso que se

disfarccedila para enganar a cidade a exemplo do que fez Diceoacutepolis em Acarnenses ao vestir-se

de Teacutelefo para tambeacutem burlar a assembleia para justificar seu acordo de paz

Marcados pela polifonia tanto o cangaceiro-mendigo quanto o agricultor-

mendigo se opotildeem aos demais personagens uma vez que entram no jogo cecircnico para roubar a

atenccedilatildeo de seus algozes No Auto da Compadecida Severino acaba provocando a morte de

todos que estatildeo na igreja Em Acarnenses Diceoacutepolis consegue convencer a assembleia Esse

caraacuteter muacuteltiplo torna-se ainda mais evidente na cena do julgamento que abordaremos no V

Ato uma vez que as accedilotildees do poeta e de seus outros cocircmicos tornam-se ainda mais bruscas

pois num inferno tragicocircmico o leitorouvinte pode perceber toda a desconstruccedilatildeo literaacuteria

tanto do espaccedilo ndash inferno ndash quanto das figuras celestiais e demoniacuteacas que sem chegar a um

acordo deixam de certa forma a cabo de espectador o ato de condenar eou absolver as almas

E nesse jogo luacutedico e didaacutetico encenado no abrir e fechar de cortinas que o teatro

aristofacircnicosuassuniano nos proporciona enquanto expectadores haacute uma visatildeo amplamente

criacutetica das accedilotildees humanas seja pelo desejo pessoal pela injuria ou pela proacutepria paroacutedia que

tatildeo bem se propotildee ao convencimento do puacuteblico

84

QUINTO ATO

85

5 O POETA VAI AO INFERNO 51 Quem fala por quem

Como esclarecido anteriormente neste ponto do corpus da tese aprofundaremos

nosso estudo para identificar as ocorrecircncias marcadas pela voz poeacutetica responsaacutevel pelas

vaacuterias atitudes didaacuteticas e criacuteticas indispensaacuteveis ao conhecimento do leitor Para tanto

faremos nossa viagem ao inframundo literaacuterio tomando como base Acarnenses e Ratildes de

Aristoacutefanes o Auto da Compadecida de Ariano Suassuna e o Auto de Barca do Inferno de

Gil Vicente por sua influecircncia na obra suassuniana

Em observaccedilatildeo importante ressalto que em Acarnenses o inferno ao qual nos

referimos seraacute estabelecido pelos horrores trazidos pela guerra cujos motivos seratildeo

questionados por Diceoacutepolis diante da Pnix 25

O caraacuteter didaacutetico do texto eacute expresso pelo proacuteprio autor no verso 499 ldquoO que eacute

justo tambeacutem eacute do conhecimento da comeacutedia Ora o que eu vou dizer pode ser caacuteustico mas

justo eacuterdquo Uma marca deste caraacuteter didaacutetico pode ser visto no discurso e nos nomes de alguns

personagens que tecircm uma significaccedilatildeo alegoacuterica como Diceoacutepolis o personagem principal

significa cidade justa

A peccedila comeccedila com Diceoacutepolis assim como Joatildeo Grilo um homem do campo

forccedilado a migrar para a cidade onde vive em condiccedilotildees precaacuterias qual aguarda a reuniatildeo da

assembleia onde o tema da discussatildeo de um tratado de paz vai ser deliberado que a nosso ver

disfarccedila-se de autor ndash evindencia-se aqui o duplo autoral ndash na Pnix ainda vazia esperando do

iniacutecio da Assembleacuteia Diceopolis explica sua experiecircncia sua dor traacutegica que se refere agrave

anguacutestia vivenciada pela falta de representaccedilatildeo de autores como Eacutesquilo considerado

obsoleto na eacutepoca da guerra com a imposiccedilatildeo da moda de Euriacutepides Na versatildeo matuta de

Pompeu a abertura do proacutelogo se reforccedila pela afirmaccedilatildeo de ali ser o momento no qual o

a(u)tor demonstra as alegrias e tristezas de Diceoacutepolis (Pompeu 2014 p01 vv 9-20)

Mas num eacute que de novo tive uma docirc de trageacutedia Na vez que eu tava abestaiadim esperando Eacutesquilo Aiacute o anunciadocirc disse ldquoTeoacutegnis faz entraacute o teu corordquo Pense numa sacudida grande no meu coraccedilatildeo Mas tive outra alegria na vez que em cima do Mosco Dexiacuteteo entrocirc e cantocirc uma beoacutecia Ainda neste ano quase morri e fiquei foi zaroim vendo

25 A Pnix eacute uma colina na parte interna da cidade de Atenas onde ocorriam as assembleias populares de entatildeo In Moura Filho Lauro Inaacutecio de Transtextualidade e hermenecircutica na comeacutedia de Aristoacutefanes O poeta como mestre da cidade 2012 166f ndash Dissertaccedilatildeo (Mestrado) ndash Universidade Federal do Cearaacute

86

Na vez que o Ceacuteris se entortocirc pra tocaacute o hino oacutertio Mas nunca desde que eu tomo banho Meus oacuteio ardero tanto cum sabatildeo Do jeito dacuteagora num dia de assembleia regulaacute De manhatildezinha oacute aiacute esta Pnix sem viva alma O pessoaacute na praccedila tagarela e pra cima e pra baixo

A Pnix sede da Assembleacuteia estava vazia e as pessoas conversando na aacutegora o

que era considera um testemunho da falta de interesse nas assembleias que o poeta atribui agrave

tendecircncia belicista do povo ateniense relutante em votar pela paz

O fato eacute que Aristoacutefanes parece se identificar com o caraacuteter de Diceopolis como

deduzido dos versos 440-445 quando ele se dirige aos espectadores apoacutes citar os versos do

telefone de Euriacutepedes personagem que ele argumentou a favor do fim da guerra diante da

Assembleia (Pompeu 2014 p16)

Eacute que tenho que achaacute que socirc um mendigo hoje Secirc quem socirc natildeo parececirc Os espectadocirc vatildeo sabecirc que socirc eu Mas os coreuta vatildeo ficaacute abestaiadim Pra eu troccedilaacute deles crsquouns palavreado EURIacutePIDES Eu dou pois com uma mente astuta tramas sultilezas

Para o autor em particular esta primeira cena na qual Diceoacutepolis deseja falar

sobre seus motivos para celebrar sua paz revela a importacircncia do campo na cidade de Atenas

O proacuteprio gecircnero da comeacutedia eacute entendido como um fenocircmeno urbano de origem agraacuteria

produto de o mesmo processo de formaccedilatildeo da polis em que este se tornou o centro

organizador do territoacuterio agraacuterio e exploradora de seus produtos

Em geral os problemas da guerra satildeo evidentes para os camponeses uma vez que

os campos aacuteticos foram devastados o que despertou o desejos para receber apoio dos

cavaleiros Assim o inferno promovido pela Guerra do Peloponeso (431-404) trazia era uma

condiccedilatildeo desoladora para a cidade e para o campo Este fato pode ser de acordo com

observaccedilatildeo de Plaacutecido (2007) percebido no discurso proferido por Peacutericles no qual satildeo

destadas as condiccedilotildees histoacutericas que diferenciaram Atenas e Esparta e justificaram taacuteticas

empregadas para a defesa

E se eles atacarem nosso territoacuterio por terra noacutes faremos uma expediccedilatildeo naval contra eles e natildeo seraacute o mesmo que uma parte do Peloponeso seja saqueada e que seja toda a Aacutetica eles natildeo seratildeo capazes de adquirir outras terras sem ter que lutar enquanto noacutes temos terras abundantes tanto nas ilhas como no continente Uma

87

grande coisa eacute com efeito o domiacutenio do mar a refletir se focircssemos ilheacuteus quem seria menos inexpugnaacutevel do que noacutes Bem agora eacute necessaacuterio que raciocinando da maneira mais semelhante como se vocecirc fosse um ilheacuteu vocecirc abandone o campo e suas casas e vai defender o mar e a cidade

Diceoacutepolis teria que impressionar os legisladores convececirc-los dos recursos

possiacuteveis para a paz Para tanto ele acusou os priacutetanes confabular para prender Anfiacuteteo um

imortal que ia tente a paz como nos mostra Pompeu (2014) nos versos 56-58

DICEOacutePOLIS Oacute priacutetanes vocecircs tatildeo fazendo mal pra assembleia Arrastando o homem que queria fazecirc treacuteguas Pra noacutes e dependuraacute os escudo

O que se percebe nos versos eacute que um dos temas responsaacuteveis pela situaccedilatildeo de

caos na cidade eacute a manipulaccedilatildeo da democracia do ponto de vista de Aristoacutefanes pelas

autoridades que de alguma forma ganham com acirramento do caraacuteter beacutelico A mesma

reclamaccedilatildeo aparece com respeito aos embaixadores que segundo ele zombam do sofrimento

da cidade conforme os versos 75-76

DICEOacutePOLIS Oacute cidade de Cracircnao Tu num sente natildeo a mangaccedilatildeo dos embaixadocirc

Diceoacutepolis queixa-se do tempo que tem sido incapaz de celebrar a dioniacutesias por

causa das invasotildees espartanas Entretanto ele estaacute convencido de que a paz eacute a garantia das

celebraccedilotildees no campo e para isso decide se livrar da guerra geradora de toda maacute sorte para a

cidade como percebemos pelos o versos (266-267 201-202)

DICEOacutePOLIS Depois de seis ano falo contigo e volto feliz pracuteo meu povoado Eu tando livre da guerra e das coisa ruim Vou eacute entraacute e celebraacute as Dioniacutesia matutardquo

O coro se recusa a ouvir longos discursos como aconteceu com o Soacutecrates

platocircnico no Protaacutegoras ou os espartanos que receberam a embaixada dos jocircnios na eacutepoca da

rebeliatildeo antes das Guerras Meacutedicas

Desta forma o laconicismo se espalha entre os atenienses hostis agraves praacuteticas

retoacutericas da democracia Apesar dos ataques do coro que o acusa de querer concordar com os

inimigos Diceoacutepolis defende que os espartanos natildeo satildeo culpados de tudo

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Diceoacutepolis entatildeo assumindo o risco de morte elabora o discurso do justo do que

possa ser justo para a cidade e denuncia a retoacuterica fraudulenta dos oradores que enganaram o

povo com o sortileacutegio encantatoacuterio de um discurso mentiroso como se percebe nos versos

(vv) 497-507 DICEOacutePOLIS Num vatildeo ficaacute cum raiva homes espectador Se eu sendo um mendigo na frente dos ateniense Teja em tempo de falaacute sobre a cidade fazendo uma comeacutedia Pois o que eacute justo a comeacutedia tambeacutem conhece E eu vou falaacute coisas terriacuteve mas justa Pois desta vez num vai me caluniaacute Cleacuteon que Estrangeiros tando aqui eu falo mal da cidade Eacute que tamo soacute eacute o concurso das Leneia E os estrangeiro num tatildeo aqui nem os imposto 505 Chega nem os aliado vem das cidade Mas tamo soacute noacutes agora soacute os miacutei debuiado (POMPEU 2014 p17)

Na parte final da peccedila Diceoacutepolis estaacute reconciliado com os acarnenses e seraacute

aclamado pelo Coro como vencedor detentor justo do desfrute dos prazeres do mundo

CORO O home vence cum as palavra e convence o povo a mudaacute De ideia sobre as treacutegua Mas vamo eacute tiraacute a roupa pra passaacute pros anapesto Desde quando dirige os coro de comeacutedia o nosso mestre Num foi pra perto dos espectadocirc pra dizecirc como eacute esperto Mas foi caluniado pelos inimigo no mei dos ateniense de decisatildeo-praacute-jaacute-jaacute De fazecirc comeacutedia cum a nossa cidade e maltrataacute o povo 631 Tem que respondecirc agora pros ateniense de decisatildeo-troca-troca Diz o poeta que fez muita coisa boa pra vocecircs Impedindo vocecircs de secirc enganado demais pelas fala dos estrangeiro De gostaacute de secirc adulado e de secirc uns cidadatildeo molenga 635 Antes os embaixadocirc das cidade pra enganaacute vocecircs Primeiro chamava vocecircs de ldquocoroados de violetardquo e era soacute dizecirc isto Que por causa das coroa sentava logo tudo de rabo em peacute E se algueacutem adulasse vocecircs chamando ldquoAtenas lustrosardquo Conseguia era tudo com o ldquolustrosardquo uma qualidade das sardinha Por isso tudo aiacute eacute que ele eacute responsaacuteve de muita coisa boa pra vocecircs E por tecirc mostrado pro povo nas cidade como eacute secirc democraacutetico Por isso mermo eacute que agora trazendo das cidade pra vocecircs o tributo Vatildeo chegaacute doidim pra vecirc o poeta danado de bom Que se arrisca para dizecirc na frente dos ateniense as coisa justa 645 E assim da ousadia dele jaacute chega eacute longe a fama Quando o Rei tava testando a embaixada dos lacedemocircnio Perguntou primeiro qual das duas cidade eacute mais forte em navios Depois pra qual das duas este poeta podia dizecirc mais palavra ruim Pois estes home ele disse satildeo muito mioacute E na guerra vatildeo vencecirc muito mais por tecirc ele como conseieiro 651 Eacute por isso que os lacedemocircnio propotildee pra vocecircs a paz Mas pede Egina e num eacute esta iacutea Que importa prrsquoeles mas eacute pra apanhaacute o tal poeta Vocecircs num deixe nunca ele partir pois vai fazecirc comeacutedia da justiccedila655 E diz que vai ensinaacute pra vocecircs muita coisa boa pra que sejam feliz Sem adulaacute nem prometecirc salaacuterio nem enganaacute nem um tiquim Sem secirc perverso nem enchendo de elogio mas ensinando o mioacute

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Depois disto Cleacuteon pode eacute maquinaacute E arquitetaacute tudo contra mim Pois o bem vai taacute eacute comigo e a justiccedila Vai secirc minha aliada e nunca vatildeo me pegaacute Pra cidade sendo igual a ele Medroso e escuiambado Vem caacute Musa chamuscada (POMPEU vv 624-664 p21)

Tatildeo importante quanto a presenccedila do ator em cena a voz do poeta se concretiza

pela (re)criaccedilatildeo da palavra que aleacutem de ser o territoacuterio comum ao locutor e interlocutor

possui tambeacutem uma dimensatildeo sonora e material ao ser emitida e uma dimensatildeo semacircntica

que se constroacutei e revela-se no exerciacutecio do discurso social carregado de sentido moralizante

levado ao leitorexpectador pelo autor atraveacutes do proacuteprio poeta e de seus outros

Nesta parte do nosso trabalho verificaremos como a voz autoral seraacute levada ao

puacuteblico e quais as reais intenccedilotildees do autor por traacutes desse empreacutestimo que eleva os

personagens fazendo com que eles estejam a serviccedilo da moralidade e da defesa dos anseios da

cidade Assim a transferecircncia ou a reproduccedilatildeo de palavras de uma boca para outra apontada

por Bakhtin (1982) gera mudanccedilas de tonalidade e teraacute intenccedilatildeo e possibilidade de

(re)criaccedilatildeo de uma produccedilatildeo cultural histoacuterica e social dando aos personagens ndash porta-vozes

dos autores uma dimensatildeo coletiva que se estabelece como um viacutenculo entre o poeta e seus

outros duplicados

A ldquovoz do poetardquo torna-se fundante da estrutura do discurso e encontra ressonacircncia

na presenccedila dos vaacuterios ecos irreverentes manifestados pelas personagens que articulados

com a vontade do proacuteprio poeta representam a tomada de consciecircncia e a tentativa de se

libertar da opressatildeo social agravada por situaccedilotildees e discursos tatildeo adversos percebidos na

comeacutedia aristofacircnica e nos autos de Ariano Suassuna e Gil Vicente

Assim acredito que faz-se necessaacuterio ressaltar para uma maior compreensatildeo do

leitor que a noccedilatildeo de voz do poeta na Comeacutedia Antiga e no Auto eacute um tema de interesse

para muitos estudiosos todos que se deparam com a questatildeo reconheceram a problemaacutetica de

identificar a voz do outro poeacutetico seus alcance e praacuteticas sociais

Apesar dessa barreira aparentemente intransponiacutevel para o estudo do voz do

poeta nossa pesquisa se norteou na identificaccedilatildeo dessa voz (audiacutevel ou visiacutevel) nas comeacutedias

de Aristoacutefanes e nos autos de Ariano Suassuna e Gil Vicente explorando algumas maneiras

pelas quais a mera noccedilatildeo da voz do poeta pode ser inestimaacutevel ao analisar a comeacutedia e o auto

enfocando seu uso como uma teacutecnica cocircmica manipulada pelo dramaturgo para a realizaccedilatildeo

de seu propoacutesito que aleacutem do riso eacute a tomada de consciecircncia da plateia

90

Eacute pertinente primeiro especificar o que se entende por voz do poeta nesse

contexto tatildeo distante e ao memso tempo tatildeo proacuteximo que tem como condutor o riso Ao

longo das peccedilas de Aristoacutefanes e dos autos de Ariano Suassuna e Gil Vicente uma voz

poeacutetica pode ser ouvida indiretamente por traacutes do drama revelando o mundo no qual o poeta e

seus duplos estatildeo inseridos

Em momentos cheios de misteacuterios o puacuteblico eacute levado a acreditar que a

personagem constantemente troca de lugar com o poeta seja atraveacutes da revelaccedilatildeo de algo

comum ao entendimento do poeta criacutetico e moralizador como por exemplo em Acarnenses

onde atraveacutes de Diceoacutepolis que autorizado por Aristoacutefanes se traveste de Teacutelefo ganha natildeo

somente a voz para por em praacutetica seu plano de enganar a assembleia ao Teacutelefo constituindo-

se tambeacutem como o outro do outro do poeta cocircmico

No Auto da Compadecida compete aos juizes Jesus Virgem Maria e ao Diabo

pares antagocircnicos a representaccedilatildeo do discurso do poeta No plano dinacircmico do enredo

Ariano Suassuna reservou ao cangaceiro Severeino o travestimento de mendigo ndash seu Teacutelefo ndash

como meio de entrar na cidade sem ser reconhecido A Joatildeo Grilo e Chicoacute criticar enganar os

legisladores e representantes da sociedade pela praacutetica do discurso mentiroso

No Auto da Barca do inferno o poeta se revela assim como nas obras citadas

pelas muacuteltiplas vozes que se renovam a cada cena seja atraveacutes dos embates entre o anjo

condutor da nau que leva ao paraiacuteso e os infratores das morais terrenas ou pelas investidas de

Joanes o parvo que espera ao lado do anjo pelas almas que na Terra o desprezaram dando-

lhes a garantia de contar ao juiz as fraquezas dos embarcantes

As maneiras pelas quais Aristoacutefanes Ariano Suassuna e o proacuteprio Gil Vicente

manipulam a noccedilatildeo da voz do poeta satildeo cruciais para entender e revelar a situaccedilatildeo vivenciada

pelas sociedades postas em cena Numa arquitetura perfeita que mistura versos e denuacutencias

tanto Aristoacutefanes e Arianos Suassuna quanto Gil Vicente propositadamente parecem

convidar o puacuteblico a supor que ele estaacute ouvindo a voz direta do poeta quando de fato estatildeo

ouvindo uma voz construiacuteda pelo poeta que submete o mundo a sua proacutepria organizaccedilatildeo

social atraveacutes da linguagem marcada para expor e instaurar uma realidae imaginaacuteria como

afirma Benveniste (1979) A linguagem reproduz o mundo mas submete-o a sua proacutepria organizaccedilatildeo Satildeo logos discurso e razatildeo ao mesmo tempo que os gregos o viam Eacute pelo proacuteprio fato de ser linguagem articulada constituiacuteda por um arranjo orgacircnico de partes uma classificaccedilatildeo formal de objetos e processos () Eacute de fato na e pela linguagem como um indiviacuteduo e sociedade satildeo mutuamente determinados O homem sempre sentiu - e os poetas cantaram com frequecircncia - o poder fundador da linguagem que

91

estabelece uma realidade imaginaacuteria dupla que anima as coisas inertes faz ver o que ainda natildeo eacute devolve os desaparecidos (Traduccedilatildeo nossa) 26

Zonin (2006) afirma que de um modo significativo o discurso literaacuterio apresenta

elementos linguiacutesticos para a produccedilatildeo de efeitos expressivos importantes de serem

resgatados na leitura por meio da construccedilatildeo interdiscursiva que eacute o lugar de incorporaccedilatildeo de

um discurso em outro instante em que se daacute o funcionamento polifocircnico marcado pelas

escolhas operadas pelo locutor sobre a liacutengua enquanto contrato coletivo defendido por

Bakhtin na obra Problemas da poeacutetica de Dostoievski

Eacute justamente por esse caraacuteter plural no qual natildeo se sabe quem fala por quem que

se apresentam os poetas e suas vozes autorais refletidos nas palavras que ora enunciam pela

boca do outro ldquonas vozes que espelham um eu possuiacutedo por uma alma alheiardquo (BAKHTIN

1990 p31) Com isso autor e ator se misturam num jogo de vozes no interior do discurso

terreno onde nenhuma palavra eacute particular uacutenica ao criador senatildeo tambeacutem repleta da voz do

outro da criatura

No plano teatral os termos morte e inferno nos datildeo a dimensatildeo do alegoacuterico

proposto tanto na Comeacutedia quanto no Auto Lugares (re)criados para a projeccedilatildeo do

pensamento do autor que se manifestaraacute por meio dos discursos oriundos das esferas social

religiosa e poliacutetica que dizem do sistema democraacutetico e que potencializam na atmosfera

romanesca ares inquietantes e contraditoacuterios de uma pluridiscursividade que se circunscreve

em torno da temaacutetica como afirma Zonin (2006)

No campo social das peccedilas a dramatizaccedilatildeo das outras vozes mostra-se pela voz

do poeta que eacute usada para desenvolver a accedilatildeo cecircnica das personagens dando-lhes a

capacidade de fazer ou dizer mais do que deveriam Ao usar a noccedilatildeo da voz do poeta para

permitir que os personagens falem fora dos limites de suas persoas literaacuterias Aristoacutefanes

Ariano Suassuna e Gil Vicente criam personagens que satildeo inerentemente polifocircnicos fato que

encontra jusitificativa na teoria bakhtiniana

As semelhanccedilas entre Diceoacutepolis e a voz do poeta satildeo deliberadamente criadas e

indiscutivelmente emitidas para incentivar a identificaccedilatildeo entre personagem e poeta uma vez

26 El lenguaje reproduce el mundo pero sometieacutendolo a su propia organizacioacuten Es logos discurso y razoacuten al mismo tiempo como lo vieron los griegos Lo es por el hecho mismo de ser lenguaje articulado consistente en una disposicioacuten orgaacutenica de partes en una clasificacioacuten formal de los objetos y los procesos () Es en efecto en y por La lengua como individuo y sociedad se determinan mutuamente El hombre ha sentido siempre - y los poetas a menudo lo han cantado- el poder fundador del lenguaje que instaura una realidad imaginaria doble que anima las cosas inertes hace ver lo que auacuten no es devuelve aquiacute lo desaparecido (1979 p58)

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que Diceoacutepolis em Acarnenses eacute o porta-voz de seu criador assim como satildeo Joatildeo Grilo no

Auto da Compadecida e Joanes (o bobo) no Auto da Barca do inferno

Um caso especiacutefico da natureza polifocircnica reside nas personagens aristofacircnicas que

permeiam algumas de suas obras e apresentam-se em outros lugares como na abertura de Ratildes

onde Dioniso eacute visto como ator espectador e leitor Dioniso

Natildeo me venhas com histoacuterias Porque eu como espectador De cada vez que assisto a habilidades dessas Satildeo anos de vida que me tiram ( Silva 2014 p36-37) Dioniso Pois estava eu na coberta do navio a ler caacute com os meus bototildees a Androcircmeda quando de repente uma nostalgia me bate ao coraccedilatildeo sabes laacute tu de que maneira (Silva 2014 p41)

Aristoacutefanes estaacute claramente pondo em cena a voz do poeta usando-a por sua vez

para dar sonoridade a outras vozes de tal maneira que a voz do poeta logicamente nos

conduziraacute a uma forma de dialogismo cocircmico

A presenccedila do poeta eacute bastante palpaacutevel natildeo necessariamente como um intrusivo eu mas muitas vezes na variedade interna natildeo homogeneizada de recursos linguiacutesticos organizados para dar voz a outras vozes e que pode ser vista como uma habilidade presente nos outros do poeta capacitados para operar de forma critica diante do contexto social (DOBROV 1995 p 35)

A noccedilatildeo da voz do poeta tambeacutem eacute uacutetil para entender as parabases aristofacircnicas

passagens onde o puacuteblico eacute diretamente abordado e o liacuteder do coro frequentemente e

temporariamente assume um papel quase-autorial como na paraacutebase das Nuvens (vv 518-

526) ou na abertura do Auto da Compadecida quando o Palhaccedilo justifica sua escolha pra

representar o poeta que naquele instante eacute tambeacutem chamado pelo autor de ldquoa grande vozrdquo

PARAacuteBASE

Espectadores vou dizer-vos com desassombro a verdade e que Dioniso que me criou natildeo deixe mentir Bem eu poderia ter vencido e ser considerado um talento no momento em que por vos ter na conta de espectadores de bom gosto vos dei a provar antes de quaisquer outros a mais perfeita das minhas comeacutedias que me custou os olhos da cara de resto Apesar disso vi-me batido e afastado por rivais casca grossa sem o ter merecido E eacute a vocecircs a gente culta por quem empreendi tatildeo dura tarefa que eu censuro (OLIVEIRA e SILVA 1991 p 73)

93

PALHACcedilO Ao escrever esta peccedila onde combate o mundanismo praga de sua igreja o autor quis ser representado por um palhaccedilo para indicar que sabe mais do que ningueacutem que sua alma eacute um velho catre cheio de insensatez e de soleacutercia Ele natildeo tinha o direito de tocar nesse tema mas ousou fazecirc-lo baseado no espiacuterito popular de sua gente porque acredita que esse povo sofre eacute um povo salvo e tem direito a certas intimidades (SUASSUNA 2005 p23)

Na abertura da peccedila Auto da Compadecida Ariano Suassuna de pronto jaacute adverte

ao leitor sobre o que ele testemunharaacute sobre sua preferecircncia de ser um porta-voz palhaccedilo que

entende e seraacute ao longo da explanaccedilatildeo a voz do poeta

PALHACcedilO grande voz Auto da Compadecida O julgamento de alguns canalhas entre os quais um sacristatildeo um padre e um bispo para exerciacutecio da moralidade (SUASSUNA 2005 p15)

Sobre a passagem acima e tomando como premissa a teoria de Bakhtin (1990)

percebemos que ele (o autor) eacute a concentraccedilatildeo de vozes multidiscursivas dentre as quais deve

ressoar a sua voz As vozes autorizadas criam o fundo necessaacuterio para a voz do poeta fora do

qual satildeo imperceptiacuteveis natildeo ressoam E analisando as obras propostas no presente trabalho

devemos partir do princiacutepio que ambos os textos estatildeo permeados de outros textos e vozes

ecoantes natildeo somente a do autor mas outras vozes como daqueles que desejam a paz diante

da situaccedilatildeo de guerra ou daqueles que usam dos mais variados meacutetodos de sobrevivecircncia

frente as dificuldades vividas em suas relaccedilotildees e (con)textos sociais no sertatildeo apropriando-se

da vez e da voz do outro em diaacutelogos que por vezes satildeo quase inaudiacuteveis

De acordo com Barros (1999) nessa interaccedilatildeo promovida pelo discurso social

nenhuma palavra eacute nossa pois ela traz a perspectiva de outra voz e por meio dela e de seus

ecos(duplos) contribuiacutemos na construccedilatildeo da sociedade Assim tanto o texto aristofacircnico

quanto o suassuniano marcam a formaccedilatildeo de vaacuterios diaacutelogos de cruzamento de vozes e de

aparecimentos de duplos que se originaram em praacuteticas de linguagem diversificada

socialmente essas vozes que podem tambeacutem ter origem no gestual de cada personagem por

sua vez polemizam as accedilotildees executadas em cena ou se completam ou respondem umas agraves

outras e aos desejos de seus a(u)tores

Os textos satildeo dialoacutegicos porque resultam do embate de muitas vozes sociais podem no entanto produzir efeitos de polifonia quando essas vozes ou algumas delas deixam-se escutar ou de monofonia quando o diaacutelogo eacute mascarado e uma voz apenas faz-se ouvir (BARROS 1999 p06)

94

Seguindo essa perspectiva entendemos a proposta de Barros (1999) ao afirmar

que todo texto eacute ldquotecido polifonicamente por fios dialoacutegicos de vozes que polemizam entre si

se completam ou respondem umas as outrasrdquo o que mostra que os textos escolhidos por mais

atemporais que possam parecer podem ser entrecruzados por outros textos e que se interligam

em uma ou mais vozes no mesmo texto ou seja a voz do autor interligando-se ou mesclando-

se com a voz do outro ou dos seus outros Tanto as palavras quanto agraves ideias que vecircm de outrem como condiccedilatildeo discursiva tecem o discurso individual de forma que as vozes ndash elaboradas citadas assimiladas ou simplesmente mascaradas ndash interpenetram-se de maneira a fazer-se ouvir ou a ficar nas sombras autoritaacuterias de um discurso social monologizado (BRAIT 1999 p 1415)

Assim fruto do ataque direto e pessoal tiacutepico da tonalidade vigorosa e didaacutectica

da comeacutedia aristofacircnicas a voz constitui-se como arma contra a animosidade de concorrentes

e rivais como forma de apresentar elementos indispensaacuteveis agrave educaccedilatildeo da cidade

Pretendendo obter a confianccedila do grande puacuteblico principalmente composto de verdadeiros acarnenses pois ele se disfarccedila de Teacutelefo diante dos espectadores tomando-os como cuacutemplices contra os supostos acarnenses do coro Diceoacutepolis se dirige ao puacuteblico e natildeo ao coro falando como mendigo e como poeta cocircmico (POMPEU p 30)

DICEOacutePOLIS Do mei de noacutes uns home ndash num tocirc falando da cidade Vecirc se lembram disso que num tocirc falando da cidade - Mas uns tipim imprestaacuteve de qualidade ruacuteim Sem valocirc da pioacute marca e estrangeirado hellip (ARISTOacuteFANES Acarnenses vv 515-518 ndash em versatildeo matuta para os personagens do campo POMPEU 2014)

A voz do poeta na comeacutedia de Aristoacutefanes confere ao personagem dando-lhe a

autoridade pretendida e a capacidade de fazer ou dizer mais do que o esperado A voz poeacutetica

em sua forccedila tambeacutem permite que Aristoacutefanes possa parodiar outras vozes para efeito cocircmico

criando um discurso carregado de ironia respaldado na capacidade de fazer dizer ou saber

algo que vai aleacutem da audiecircncia e que pode ser indispensaacutevel agrave Cidade

Ao usar a noccedilatildeo da voz do poeta para permitir que Diceoacutepolis fale fora dos limites

literaacuterio Aristoacutefanes cria um personagem inerentemente polifocircnico visto que assume

muacuteltiplas vozes e personagens como o Teacutelefo dramaacutetico de Euriacutepedes Diceoacutepolis passa

explicitamente a representar a voz direta do dramaturgo pondo em cena as palavras que saem

diretamente da boca de Aristoacutefanes

95

Diceoacutepolis eacute a voz e a forccedila do proacuteprio argumento aristofacircnico uma vez que ele

proacuteprio se identifica como um poeta cocircmico representando tambeacutem qualquer poeta que

sofreu ataques poliacuteticos incomodado pela exploraccedilatildeo da Cidade pois ldquomesmo a comeacutedia

sabe alguma coisa sobre a verdade e a justiccedila Ao atribuir o caraacuteter muacuteltiplo a Diceoacutepolis

Aristoacutefanes acentua ainda mais seu desejo de dizer aleacutem do que a cidade esperava atraveacutes de

seu porta-voz um roceiro o anti-heroacutei conhecedor das artimanhas dos legisladores que

exploram a Cidade elemento responsaacutevel pela dinacircmica central da comeacutedia pois leva ao

puacuteblico por meio do risiacutevel as verdades necessaacuterias ao discurso justo incentivando-o ou ao

proacuteprio leitor a questionar a validade e a veracidade do jogo diante deles

Para Bergson (1987) o riso natildeo eacute apenas uma reprimenda social mas vem de um

desajuste entre a natureza primeira do homem (que eacute mutaacutevel) e uma espeacutecie de rigidez e

mecanizaccedilatildeo Essa rigidez se manifestaria tanto no niacutevel fiacutesico como no caraacuteter ou seja no

acircmbito moral e psicoloacutegico caracteriacutesticas exploradas no personagem Joatildeo Grilo onde o

risiacutevel e o cocircmico seriam uma forma de desfazer a rigidez social na tentativa de evidenciaacute-la

corrigi-la Para Suassuna (2007) o riso eacute como uma espeacutecie de puniccedilatildeo que a sociedade

confere a algo que a ameaccedila diz em seu livro Iniciaccedilatildeo agrave Esteacutetica

Desta forma o risiacutevel estaacute na inadequaccedilatildeo do comportamento humano

fiacutesicopsicoloacutegico uma vez que excede a normalidade sem causas traacutegicas Suassuna no Auto

da Compadecida nos deixa claro que ali o cocircmico surge como um alerta sobre algo que natildeo

estaacute funcionando bem nas sociedades sendo tambeacutem um instrumento revelador dos

problemas da sociedade como um todo

Atitude bem semelhante eacute do Auto que no uacuteltimo paraacutegrafo fala no Auto da

Compadecida por possuir um enredo que proporciona ao leitorespectador o riso e a dor

numa mistura de trageacutedia e comeacutedia por meio da ldquopalavrardquo (voz do poeta) que eacute dotada de

forccedila e promove sempre encontros com o leitor-ouvinte ou ouvinte-leitor levando-o a

estabelecer uma imensa teia de significados e suas relaccedilotildees reconhecimentos e interaccedilotildees no

mundo-palco de Ariano Suassuna onde ele proacuteprio cria (re)vecirc conceitos recria imagens se

subverte ao ordenado na ressonacircncia das vozes que encontram em Joatildeo Grilo o canal para

torna-se real como afirma Zumthor (2014)

A voz eacute uma subversatildeo ou uma ruptura da clausura do corpo Mas ela atravessa o limite do corpo sem rompecirc-lo ela significa o lugar de um sujeito que natildeo se reduz agrave localizaccedilatildeo pessoal Nesse sentido a voz desaloja o homem de seu corpo Enquanto falo minha voz me faz habitar a minha linguagem Ao mesmo tempo me revela um limite e me libera dele (ZUMTHOR p 81)

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[] Outra tambeacutem importante para nosso raciociacutenio aqui eacute a seguinte Escutar um outro eacute ouvir no silecircncio de si mesmo sua voz que vem de outra parte Essa voz dirigindo-se a mim exige de mim uma atenccedilatildeo que se torna meu lugar pelo tempo dessa escuta Essas palavras natildeo definiriam igualmente bem o fato poeacutetico (ZUMTHOR p 81)

Assim como feito por Diceoacutepolis a palavra-forccedila eacute tomada por Joatildeo Grilo

quando da sua chegada ao que seria a entrada do inferno Assim como um dia os homens

roubaram o fogo dos deuses Joatildeo Grilo a voz dupla do poeta detentor da fala das camadas

populares apropria-se do discurso dos poderosos a fim de que fundidos os dois surja um

texto intenso imbuiacutedo de criacuteticas sociais permeado de escaacuternio e desejo de sobrevivecircncia

No contexto de tensatildeo em que eacute apresentado Joatildeo Grilo eacute convertido a um anti-

heroacutei oprimido e no plano da eacutetica eacute um legiacutetimo malandro que usa do artifiacutecio da

malandragem como uma ferramenta autecircntica de sobrevivecircncia e de luta frente agraves

adversidades sobretudo agravequelas impostas pelos que deteacutem o poder A malandragem portanto

no seu entender natildeo constitui um problema ou pecado grave pois natildeo eacute utilizada para

engrandecimento proacuteprio ou para ascensatildeo econocircmica mas sim para a promoccedilatildeo da justiccedila

social Como podemos ler nos versos do cordelista Paulo Nunes Batista Grilo pra tudo no mundo Tinha uma definiccedilatildeo A sua filosofia Sempre lhe dava razatildeo Pois seguia este ditado Que diz ndash ldquoEstaacute perdoado Ladratildeo que rouba ladratildeordquo Vivendo embora do crime Joatildeo Grilo era caridoso Auxiliava a pobreza Soacute furtava o poderoso Roubava sempre dos nobres Matava a fome dos pobres Mostrando ser generoso (BATISTA 1958 p 28)

Como personagens piacutecaros tanto Joatildeo Grilo como Diceoacutepolis representam os

heroacuteis das obras mas suas construccedilotildees e formaccedilotildees se datildeo agraves avessas uma vez que suas

caracteriacutesticas inversas agrave de um heroacutei dispotildeem de ser aventureiro materialista desleal e de

caraacuteter duvidoso O personagem piacutecaro apresenta algumas caracteriacutesticas singulares sempre estaacute com fome nunca se sente completamente seguro Eacute o mais mortal dos mortais Aparenta natildeo ter princiacutepios morais Aparenta cortejar os poderosos mas acaba por desnudaacute-los como que involuntariamente desmascarando-lhes as franquezas Observa-se que o personagem piacutecaro se envolve em aventuras particulares que representam com fidelidade a realidade da sua condiccedilatildeo social Desta forma revela sua opiniatildeo e suas ideias desafiando as regras sociais (KOTHE 1985 p49)

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As accedilotildees das personagens tanto no Auto quanto na Comeacutedia constituem-se num

instante de ressonacircncia no qual o eu autoral passa a ser polifocircnico se projeta no outro que

tambeacutem se projeta no eu do autor demonstrando ter total conhecimento da realidade numa

dimensatildeo sonora e material pelo exerciacutecio do discurso revelador levado ao leitorexpectador

pelo autor atraveacutes de suas personagens Essa realidade se concretiza pela transferecircncia de

palavras de uma boca para outra como apontada por Bakhtin com forccedila e capacidade de

promover mudanccedilas de tonalidade e de intenccedilatildeo discursiva

Essa atitude representa uma possibilidade de (re)criaccedilatildeo de uma produccedilatildeo

cultural histoacuterica e social que supera a proacutepria noccedilatildeo de oralidade que emerge como porta-

voz de uma dimensatildeo coletiva na qual a singularidade de cada sujeito falante lhe outorga ou

recebe autoridade para agir criando um conjunto de vozes polivalentes pelas quais podemos

afirmar que o narrador passa a atuar como um poeta da voz cuja poeacutetica se inspira nas praacuteticas

sociais e nas vivecircncias de seus atores

511 Ao Hades e com riso frouxo

Em trecircs das peccedilas citadas haacute uma cena de julgamento na qual o poeta moraliza a

accedilatildeo das instituiccedilotildees bem como dos legisladores acontece no inferno ou no Hades ndash Ratildes ndash

Auto da Compadecida e Auto da Barca do Inferno a exceccedilatildeo de Acarnenses cujo cenaacuterio eacute a

Assembleia

Em Ratildes que foi presentada nas Leneias de 405 aC Aristoacutefanes lanccedila matildeo de

artifiacutecios em sua maioria cocircmicos para trazer agrave tona discussotildees literaacuterias da eacutepoca bem como

sua criacutetica social e seu discurso moralizante atraveacutes do qual resgatando-se o poeta tambeacutem

salva a cidade Como bem afirmava Ariano Suassuna a Comeacutedia Grega e o Auto Vicentino o

abasteceram de vaacuterias composiccedilotildees e em Ratildes especificamente observamos que a estrutura

serviu de base para a construccedilatildeo da cena do julgamento tanto em Suassuna quanto em Gil

Vicente

Segundo KOPELMAN (2012 p) Depois de quase um seacuteculo de apogeu o ciclo traacutegico se encerra com a morte de Soacutefocles e Euriacutepides Enquanto instituiccedilatildeo social da cidade ateniense o drama traacutegico reflete os embates e os questionamentos da polis Objetivando o espaccedilo cecircnico o drama eacute avaliado e legitimado pelos cidadatildeos nos Festivais que patrocinam as representaccedilotildees

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Em Ratildes Aristoacutefanes nos apresenta o cenaacuterio da descida para o infernoHades de um

Dioniso bufatildeo em busca de Euriacutepides como forma de tambeacutem reviver a trageacutedia Entretanto

reforccedila com isso a paroacutedia da descida de Heacutercules

O argumento da peccedila pode ser resumido da seguinte forma Dioniso desce ao Hades

para encontrar Euriacutepides morto recentemente e trazecirc-lo para a terra Atenas estaacute com falta de

poetas e Dioniso estaacute convencido de que Euriacutepides eacute o homem certo Na teatralidade

apresentada o proacuteprio deus eacute uma figura cocircmica eacute acompanhado por um escravo cocircmico e

tenta se dar ares de grandeza no mundo subterracircneo

Depois de uma viagem perigosa ao submundo Dioniso estaacute laacute com uma crise

literaacuteria em pleno andamento Euriacutepides derrotou Eacutesquilo do trono da poesia no Hades e uma

grande discussatildeo surgiu sobre ele Nesta reside o principal da accedilatildeo na peccedila Dioniso eacute

chamado para julgar os dois poetas e a disputa que eacute o cerne da comeacutedia eacute a competiccedilatildeo de

Eacutesquilo e Euriacutepides pelo trono da poesia traacutegica no Hades

Em primeiro lugar para compreender a importacircncia do agoacuten entre Eacutesquilo e

Euriacutepides dois poetas traacutegicos da polis temos que voltar novamente ao contexto do seacuteculo V

a C de Atenas A justificativa do agoacuten encontra-se na situaccedilatildeo da polis a decadecircncia de

Atenas e a ausecircncia de bons poetas jaacute que todos morreram Assim Dioniso possiacutevel alter ego

do proacuteprio Aristoacutefanes quer remediar a situaccedilatildeo entatildeo ele vai para o infernoHades

convencido a trazer de laacute Euriacutepides fazendo do agoacuten uma parte inesperada da peccedila

Aristoacutefanes apresenta de forma brilhante como personagem o proacuteprio Dioniso um

deus meio idiotizado completamente medroso mentiroso e totalmente engraccedilado um

viajante vestido de amarelo de botas mas estranhamente revestido com a pele do leatildeo de

Nemeia e empunhando um cacete como o mais macho dos heroacuteis seu irmatildeo Heacutercules

Para dar iniacutecio a sua empreitada ao lado de seu escravo Xacircntias rumo ao Hades

Dioniso procura por Heacutercules para que este o informe por qual caminho ele poderaacute seguir ateacute

sua chegada ao inferno visto que o proacuteprio Heacutercules jaacute havia realizado o mesmo percurso

No proacutelogo Dioniso explica o motivo da sua viagem Pois tal eacute o desejo que me consome por Euriacutepides (v 66)

Dioniso

Sinto falta de um poeta de talento Eacute que uns jaacute natildeo existem e os que existem natildeo

prestam (vv 72-72)

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Nos versos seguintes Dioniso prepara com antecedecircncia uma funccedilatildeo de juiz uma

vez que emite sua opiniatildeo sobre os outros poetas Iofonte Agatatildeo Xecircnocles Soacutefocles

Euriacutepides e os jovens poetas (vv78-83) Dioniso Isso natildeo pelo menos antes de tomar Iofonte agrave parte a soacutes longe do Soacutefocles para testar de que eacute que ele eacute capaz Aliaacutes o Euriacutepides que eacute um aldrabatildeo haacute-de dar por paus e por pedras para se raspar comigo para aqui Enquanto o outro que caacute era um bonacheiratildeo haacute-de continuar laacute em baixo o mesmo bonacheiratildeo

Como qualquer heroacutei eacutepico Dioniso na peccedila eacute apresentado como um viajante eacutepico

capaz de feitos heroacuteicos seguido de seu escravo e companheiro Xacircntias que protagonizaraacute ao

lado de seu mestre boa parte das cenas cocircmicas como nos coloca Silva (2014 p 34-39) ao

descrever a cena na qual Dioniso a peacute estaacute acompanhado de um escravo Xacircntias montado

num burro e carregando ao ombro as bagagens vai agrave procura de Heacutercules

Xacircntias Oacute patratildeo e se eu mandasse uma daquelas bocas do costume que sempre fazem rir os espectadores Dioniso Agrave vontadinha a que quiseres menos lsquoestou apertadorsquo Dessa poupa-nos que ateacute jaacute daacute voacutemitos Xacircntias E se fosse entatildeo uma outra daquelas piadas finas Dioniso Desde que natildeo seja lsquoestou agrave rascarsquo Xacircntias Qual haacute-de ser entatildeo Uma de escachar a rir Dioniso Tudo bem vai em frente Haacute soacute aquela famosa livra-te de me vires para caacute com essa Xacircntias Ah natildeo nem por sombras Este que aqui tenho natildeo bolas Quem o carrega sou eu Dioniso Mas carregas como se tu proacuteprio eacutes carregado por outro Xacircntias Tanto natildeo sei Agora que aqui o meu ombro estaacute apertadinho de todo laacute isso estaacute Dioniso Pois entatildeo jaacute que dizes que o burro te natildeo serve para nada eacute a tua vez de seres tu a pegar no burro e a carregar com ele Dioniso Salta daiacute malandro Que depois desta caminhada caacute estou eu diante da porta aonde para comeccedilar me propunha vir Ei moccedilo Oacute moccedilo Moccedilo

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Heacutercules Quem eacute Seja laacute quem for mandou-se aos coices agrave porta que nem um centauro Ei Explica-me laacute Que raio de ideia vem a ser esta Dioniso Oacute amigo chega aqui Preciso de falar contigo Heacutercules Mas eacute que natildeo consigo espantar o riso ao ver uma pele de leatildeo por cima de um vestido amarelo Que ideia se te meteu na cabeccedila O que fazem juntos um par de botas de senhora e um cacete8 Por que paragens tens tu andado Dioniso Andei embarcado agraves ordens do Cliacutestenes Heacutercules E bateste-te no combate naval Dioniso Bati pois Navios inimigos metemos no fundo uma boa duacutezia deles Heacutercules Vocecircs os dois Dioniso Sim claro Xacircntias Esta ateacute me deixou de olhos arregalados Dioniso Pois estava eu na coberta do navio a ler caacute com os meus bototildees a Androacutemeda quando de repente uma nostalgia me bate ao coraccedilatildeo sabes laacute tu de que maneira Heacutercules Uma nostalgia te bate ao coraccedilatildeo De que dimensatildeo Dioniso Coisa pequena pela medida de Moacutelon Heacutercules Por uma mulher Dioniso Nada disso Heacutercules Por um rapazinho entatildeo Dioniso Nem pensar Heacutercules Por um homem se calhar Dioniso Ai ai Heacutercules Com que entatildeo de panelinha com o Cliacutestenes hem Dioniso Deixa-te de gozo mano que quem se vecirc nelas sou eu Tal eacute a paixatildeo que me devora Heacutercules Paixatildeo Que paixatildeo maninho Dioniso Nem te sei dizer Mas enfm vou tentar explicar-ta por analogia Jaacute alguma vez sentiste assim um desejo suacutebito de sopa Heacutercules

101

De sopa Bolas mil vezes na vida Dioniso E entatildeo faccedilo-me entender ou eacute preciso mais explicaccedilotildees Heacutercules Quanto agrave sopa natildeo Percebi perfeitamente Dioniso Pois tal eacute o desejo que me consome por Euriacutepides Heacutercules Como assim Por Euriacutepides o falecido Dioniso E natildeo haacute quem me tire da cabeccedila a ideia de ir agrave procura dele Heacutercules O quecirc Ao Hades laacute em baixo Dioniso Sim pois e mais abaixo ainda se um tal lugar existir Heacutercules Com que intenccedilatildeo Dioniso Sinto falta de um poeta de talento Eacute que uns jaacute natildeo existem e os que existem natildeo prestam Heacutercules Como assim Entatildeo o Iofonte natildeo estaacute vivo Dioniso Essa eacute ateacute a uacutenica coisa de jeito que por aiacute anda e mesmo assim tenho duacutevidas Porque ateacute sobre esse assunto me falta saber bem o que se passa Heacutercules E porque natildeo trazeres Soacutefocles de preferecircncia a Euriacutepides se tens de trazer algueacutem laacute de baixo Dioniso Isso natildeo pelo menos antes de tomar Iofonte agrave parte a soacutes longe do Soacutefocles para testar de que eacute que ele eacute capaz Aliaacutes o Euriacutepides que eacute um aldrabatildeo haacute-de dar por paus e por pedras para se raspar comigo para aqui Enquanto o outro que caacute era um bonacheiratildeo haacute-de continuar laacute em baixo o mesmo bonacheiratildeo Heacutercules E o Aacutegaton por onde anda ele Dioniso Pocircs-se a mexer foi um ar que lhe deu Um bom poeta que deixou saudades nos amiguinhos dele Heacutercules Para que canto do mundo coitado Heacutercules Ora deixa caacute ver por qual deles hei-de comeccedilar Qual haacute-de ser Haacute um que parte da corda e do banco Enforca-te Dioniso Vira essa boca para laacute Eacute um sufoco esse que dizes Heacutercules Haacute tambeacutem um outro um atalho a direito pisado que eacute um mimo que passa pelo almofariz Dioniso Eacute a cicuta que queres dizer

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Heacutercules Ora nem mais Dioniso Esse eacute frio de cortar agrave faca mesmo Faz logo enregelar as canelas Heacutercules Queres que te diga um raacutepido e sempre a descer Dioniso Corsquoos diabos esse sim que como andarilho sou um desastre Heacutercules Pois bem vai ateacute ao Ceramico Dioniso E depois Heacutercules Sobe agravequela torre alta que laacute estaacute Dioniso E o que eacute que eu faccedilo Heacutercules Assiste laacute do alto agrave largada da corrida dos archotes E depois quando o puacuteblico gritar lsquopartidarsquo tu partes laacute de cima tambeacutem Dioniso Para onde Heacutercules Caacute para baixo Dioniso Assim dou mas eacute cabo dos miolos Natildeo natildeo vou seguir por esse caminho de que falas Heacutercules Entatildeo qual haacute-de ser Dioniso Aquele mesmo por onde tambeacutem tu outrora laacute chegaste Heacutercules Soacute que esse eacute uma maccediladoria de marinharia Para comeccedilar vais dar a um lago enorme sem fundo Dioniso E depois como eacute que eu atravesso Heacutercules Num barquinho assim pequenininho um velho barqueiro vai-te atravessar por dois oacutebolos a passagem

Ao seguir as informaccedilotildees dadas por Heacutercules Dioniso encontra o barqueiro

Caronte que cobra dois oacutebolos para atravessaacute-lo pelo pacircntano Durante esta travessia Dioniso

discute com as Ratildes que habitam o ambiente porque o barulho recorrente de seus

brequequequequex coax coax o deixam irritado

No inferno Dioniso eacute ameaccedilado de morte pelo Eacuteaco (juiz dos mortos) que o

confunde com Heacutercules jaacute que Dioniso estava disfarccedilado e o acusa-o de ter levado o catildeo de

guarda do inferno(vv605-608)

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Eacuteaco Prendam-mo depressa este ladratildeo de catildees para que leve o corretivo que merece Vamos despachem-se Dioniso A coisa estaacute torta para algueacutem Xacircntias Vatildeo agravequela parte Alto laacute Eacuteaco Ai eacute queres luta Oacute Camelo oacute Macacatildeo oacute Peidoso Cheguem caacute e faccedilam frente a este gajo

Assim tem-se iniacutecio a algo que seria o agoacuten entre os poetas Euriacutepides e Eacutesquilo (vv 860-870)

Euriacutepides Pois por minha parte estou pronto ndash e longe de mim escusar-me ndash a morder ou a ser mordido primeiro como ele quiser nos diaacutelogos nos cantos nas fibras nevraacutelgicas da trageacutedia e ndash caramba ndash ateacute no Peleu no Eacuteolo no Meleagro e principalmente no Teacutelefo Dioniso (a Eacutesquilo) E tu o que pretendes fazer Diz laacute Eacutesquilo Eacutesquilo O que eu queria era natildeo estar metido nesta discussatildeo Porque um concurso entre noacutes os dois nunca eacute imparcial Dioniso Como assim Eacutesquilo Eacute que a minha poesia natildeo morreu comigo enquanto a dele bateu as botas com ele logo ele pode recitaacute-la aqui Mas enfim jaacute que assim o entendes natildeo haacute outra soluccedilatildeo Dioniso O incenso e o fogo vamos laacute Quero fazer uma prece antes de me assumir como aacuterbitro das vossas subtilezas para que atue com toda a competecircncia de que for capaz E vocecircs acompanhem-me com um canto agraves Musas A entrada do Coro acirra a tomada de decisatildeo por parte de Dioniso (vv875) Coro Donzelas nove filhas de Zeus Musas divinas que do alto olhais os espiacuteritos subtis e engenhosos dos poetas cinzeladores de sentenccedilas agora que eles se confrontam com golpes estudados e se digladiam com argumentos sinuosos observai a potecircncia 880 destas duas bocas tatildeo haacutebeis em produzir palavreado e serradura de versos Pois estaacute iminente o grande concurso do talento Dioniso (a ambos os poetas) (vv 885 - 895) Faccedilam tambeacutem a vossa oraccedilatildeo vocecircs os dois antes de recitarem os vossos versos Eacutesquilo Demeacuteter tu que alimentaste o meu espiacuterito faz com que eu seja digno dos teus misteacuterios Dioniso (a Euriacutepides) Agora tu toma laacute tambeacutem o incenso e faz uma oferenda Euriacutepides Natildeo obrigado Satildeo outros os deuses da minha devoccedilatildeo Dioniso Deuses exclusivos de cunhagem nova Euriacutepides Absolutamente

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Dioniso Pois bem invoca entatildeo os teus deuses privativos Euriacutepides Eacuteter que me alimentas Eixo da minha liacutengua Inteligecircncia e voacutes Narinas de faro penetrante fazei com que eu consiga refutar com eficaacutecia os argumentos que me surjam pela frente Coro (895-900) Pois bem tambeacutem noacutes estamos desejosos de ouvir estes dois geacutenios e de ver que batalha de argumentos vocecircs vatildeo esgrimir Vamos decircem iniacutecio agrave disputa A liacutengua de um e de outro eacute viperina o acircnimo natildeo lhes carece de audaacutecia nem o espiacuterito de agilidade Pode de um esperar-se que tenha uma tirada de espiacuterito limada com requinte do outro que arranque as palavras pela raiz que agarre nelas e desanque o inimigo levantando uma poeirada de versos Corifeu (aos dois poetas) (vv905 -912) Vamos depressa eacute hora de cada um se pronunciar Mas tratem de usar uma linguagem de bom gosto nada de floreados nem dessas patacoadas acessiacuteveis a qualquer um Euriacutepides Muito bem Quanto a mim e ao que valho como poeta eacute mateacuteria que deixo para depois Para jaacute vou desmascarar este sujeito como um parlapatatildeo e um vigarista e revelar por que processos ele fazia o ninho atraacutes da orelha de um puacuteblico de imbecis criado na escola de Friacutenico Antes de mais nada sentava uma personagem solitaacuteria coberta de veacuteus um Aquiles ou uma Nigraveobe por exemplo sem lhe mostrar a cara ndash um perfeito alarde de trageacutedia Quanto a tugir ou mugirnem poacute Dioniso (vv913) (a Eacutesquilo) Era isso sim era isso mesmo Dioniso (vv922- 930) Olha o safado Como ele fazia de mim parvo Porque te torces todo e me potildees essa cara de caso Euriacutepides Eacute por eu o desmascarar A seguir depois destas patacoadas quando a peccedila jaacute ia a meio saiacutea-se com uma duacutezia de mastodontes daquele palavreado de sobrolho e penacho uns papotildees de meter medo desconhecidos dos espectadores Eacutesquilo Com mil demoacutenios Dioniso Cala-te Euriacutepides Que se percebesse nem uma palavrinha para amostra Dioniso Natildeo ranjas os dentes Euriacutepides Eram soacute Escamandros trincheiras e gravadas nos escudos aacuteguias-grifos forjadas em bronze e palavras montadas a cavalo que natildeo era faacutecil digerir

Apoacutes estas discussotildees nas quais as obras literaacuterias e seus proacutelogos satildeo avaliados

Dioniso eacute forccedilado a decidir rapidamente sobre quem seraacute o vencedor do concurso e decide

pesar os versos de cada um na balanccedila O prato de Eacutesquilo pesou mais entatildeo Dioniso

105

novamente pressionado por Hades se pronunciou dizendo que resgataria do inferno Eacutesquilo

por sua visatildeo ciacutevica e educadora da cidade

No entanto o que foi realmente decisivo foi o efeito moral da poesia isto eacute a

capacidade do poeta de tornar as pessoas melhores E eacute esta dimensatildeo moral da poesia que fez

Dioniso escolher Eacutesquilo porque sua proposta era um plano de accedilatildeo contra o que

representava Euriacutepides A vitoacuteria de Eacutesquilo nos diz que a funccedilatildeo social da poesia eacute mais

importante do que qualquer outro aspecto para a polis Assim Aristoacutefanes buscou natildeo apenas

divertir o puacuteblico em sua representaccedilatildeo mas tambeacutem conscientizar as pessoas de que atraveacutes

de mudanccedilas no modelo poliacutetico o antigo esplendor poderia ser restaurado para Atenas

Importante notar que seja em Acarnenses Ratildes Auto da Compadecida ou no Auto

da Barca do Inferno os autores mantiveram uma unidade teatral atemporal o julgamento A

cena do julgamento nas peccedilas referidas marca sensivelmente a preocupaccedilatildeo dos autores em

salvar a cidade e moralizar suas instituiccedilotildees quer seja em Atenas Portugal ou Taperoaacute

Outro fato que deve ser considerado do ponto de vista literaacuterio eacute a divisatildeo das

peccedilas a partir da ideia de julgar para salvar visto que todas estatildeo dividas em duas partes

sendo a primeira burlesca e fantaacutestica tendo como mote a viagem ao mundo dos mortos ndash

encontro com o encourado ndash Barqueiroanjo democircnio ndash poetas mortos e a paroacutedia literaacuteria do

Teacutelefo de Euriacutepides na qual o teatro vai agrave cidade e a segunda com feiccedilatildeo moral e tambeacutem

literaacuteria seja pela retomada da consciecircncia das injusticcedilas (mesmos mortos) pela

condenaccedilatildeoabsolviccedilatildeo ou em Acarnenses pela delaccedilatildeo na Assembleia de toda a maacute sorte

pela qual passa o povo devido agrave guerra

52 O julgamento O riso a morte e o descanso do (in)justo

A ideia de justiccedila sem duacutevida ocupou um lugar privilegiado na ponderaccedilatildeo dos

antigos gregos Desvendando o seu significado determinando o seu alcance especificando o

seu papel - poliacutetico e ou social regulando a sua praacutetica esta foi sempre uma preocupaccedilatildeo

das mais genuiacutenas

Nesta parte do nosso trabalho refletiremos sobre como a ideia de justiccedila tambeacutem

encontra no Auto e na Comeacutedia grega uma expressatildeo proacutepria Atenta aos valores de natureza

social eacutetica e poliacutetica tanto a Comeacutedia quanto o Auto proclamam abertamente a prerrogativa

de saber o que eacute verdadeiramente justo

106

No Auto da Compadecida e no Auto da Barca do Inferno obras para agraves quais

voltaremos nossa atenccedilatildeo ceacuteu e inferno se misturam na promoccedilatildeo da justiccedila e encontram no

humano e no divino espaccedilos para a construccedilatildeo do que seria justo e bem medido ao ser

humano

Nesse cenaacuterio conturbado e perturbador morte e vida se apresentam natildeo de forma

antagocircnica mas dependentes ligadas ao natural do humano viver os prazeres sem a devida

preocupaccedilatildeo com o dia do juiacutezo final no qual todos seratildeo responsabilizados pelos atos

cometidos pendentes para o bem ou para o mal

A morte eacute um fato universal que desde tempos imemoriais tem preocupado a

humanidade Eacute possiacutevel que todas as culturas tenham dedicado rituais simboacutelicos para tentar

sobreviver agrave morte uma realidade tatildeo justa que afeta a todos igualmente Rico pobre

Soberanos e mendigos ningueacutem se livra de ser inerte Embora o corpo pereccedila muitas

sociedades tecircm sido obstinadas em tentar salvar a alma do falecido ou pelo menos

encomendaacute-las a um julgamento (in)justo

No Auto da Compadecida a morte vinculada a Joatildeo Grilo estaacute envolvida em um

clima de tensatildeo entre a comeacutedia e a trageacutedia Ateacute mesmo no momento da morte apoacutes o tira

dado pelo comparsa de Severino Joatildeo faz graccedila diante da morte ldquoDeixe de latomia Chicoacute

parece que nunca viu um homem morrer Nisso tudo eu soacute lamento eacute perder o testamento do

cachorro (SUASSUNA 1995 p133)

A cena do julgamento no Auto da Compadecida eacute uma recriaccedilatildeo advinda do

imaginaacuterio popular cordelesco que vecirc na morte a possibilidade de se encontrar com o divino

mesmo sabendo que a entrada para o ceacuteu purgatoacuterio ou inferno estaacute ligada a um acerto de

contas um julgamento Ariano Suassuna ao apresentar essa imagem resgata os grandes autos

medievais que tinham uma preocupaccedilatildeo religiosa como o Auto da Barca do Inferno de Gil

Vicente obra na qual se verifica que haacute embora de modo diferente da obra de Suassuna a

figura do Diabo acusando cada um daqueles que aparecem indicando para qual barca devem

ir

No Auto da Barca do Inferno tambeacutem conhecido como o Auto da Moralidade o

termo morte foi associado por Gil Vicente ao discernimento entre o Bem e o Mal que se

reflete como elemento necessaacuterio para a expiaccedilatildeo dos pecados Assim a locuccedilatildeo latina

castigat ridendo mores encontra base na temaacutetica da equitaccedilatildeo dos costumes do castigado

sendo representada na vida pelo teatro de forma a caracterizar certos aspectos da sociedade

portuguesa o que tambeacuterm favorece uma anaacutelise mais vivamente sagaz com visatildeo criacutetica de

107

alguns personagens tiacutepicos representantes de certos estratos sociais e espectros

socioeconocircmicos muito variados presentes em Aristoacutefanes e Ariano Suassuna

Aleacutem de grande influecircncia sobre da literatura de Ariano Suassuna a obra

vicentina representa o encontro entre a heranccedila medieval e o espiacuterito renascentista

sagazmente criacutetico revelador e delatoacuterio da imoralidade institucional e dos viacutecios da

sociedade incapaz de assumir a responsabilidade dos seus atos e da sua conduta como se

pode constatar no diaacutelogo inicial entre o Diabo e o Fidalgo na cena II no Auto da Barca do

Inferno na qual o autor nos prepara para o julgamento dos passageiros das naus

Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz

FIDALGO Esta barca para onde vai Que assim estaacute apercebida DIABO Vai para a ilha perdida E haacute de partir daqui a nada FIDALGO E para laacute vai a senhora DIABO Sou um senhor Ao vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isto um corticcedilo DIABO Porque a vedes daiacute de fora FIDALGO Pois sim e por que terra passais DIABO Para o inferno senhor FIDALGO Uma terra sem-sabor DIABO O quecirc Mas tambeacutem disso zombais FIDALGO E que passageiros achais Para tal embarcaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo Para ir no nosso caishellip FIDALGO Parece-te a ti assim DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que deixo na outra vida Quem reze sempre por mim DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi Tu que viveste a teu prazer

108

Pensando caacute guarnecer (salvares-te) Por aqueles que laacute rezam por ti Embarcai agora embarcai Que haveis de ir nas traseiras Mandai meter a cadeira Como tambeacutem passou o vosso pai (Gil Vicente p7-11)

Pela passagem acima fica clara a intenccedilatildeo do poeta em preparar o leitor para a

carga de zombaria que seraacute utilizada como recurso estiliacutestico necessaacuterio capaz de impor a

moralidade perante um conjunto significativo de tipos cocircmicos que post mortem requerem

suas entradas no ceacuteu Gil Vicente conhecedor das fragilidades de sua sociedade apresenta em

seu inferno cocircmico tipos caracteriacutesticos que podem perfeitamente ser ajustados agraves literaturas

mais atuais

Satildeo personagens como o fidalgo o onzeneiro o frade o sapateiro a alcoviteira o

judeu o corregedor ou o procurador entre outros os quais o poeta decide tornar natildeo soacute alvo

de galhofa geral mas tambeacutem um exemplo a natildeo seguir expondo-os explicitamente diante do

julgamento final despojados de todas as riquezas e possessotildees terrenas

521 Aqui eacute o inferno vocecirc pode brincar

Joatildeo Joatildeo Morreu Ai meu Deus morreu pobre de Joatildeo Grilo Tatildeo amarelo tatildeo safado e morrer assim Que eacute que eu faccedilo no mundo sem Joatildeo Joatildeo Joatildeo Natildeo tem mais jeito Joatildeo Grilo morreu Acabou-se o Grilo mais inteligente do mundo Cumpriu sua sentenccedila e encontrou-se com o uacutenico mal irremediaacutevel aquilo que eacute a marca de nosso estranho destino sobre a terra aquele fato sem explicaccedilatildeo que iguala tudo o que eacute vivo num soacute rebanho de condenados porque tudo o que eacute vivo morre (ARIANO SUASSUNA 2005 p113)

A cena transcrita na citaccedilatildeo eacute o iniacutecio do que consideramos como o argumento

teatral que motiva o riso no julgamento das almas diferente do resto da obra pois as situaccedilotildees

que satildeo abordadas neste ato revelam em primeiro plano um tom traacutegico mas ao contraacuterio

pelo desvio que encerra a representaccedilatildeo causam natildeo o temor ou pena mas o riso e a reflexatildeo

A exemplo de Aristoacutefanes e Gil Vicente Suassuna utiliza dos expedientes da

paraacutebase e do coro como seus proacuteprios lugares ideoloacutegicos representando o locus privilegiado

onde podemos traccedilar o efeito de suas poliacuteticas e particularmente o teor criacutetico que se

apresenta nos versos dedicados ao coro encenado pelo personagem-palhaccedilo Na verdade o

significado do discurso moralizante e humoriacutestico introduzido pelo coreuta circense eacute sempre

orientado para um corpo social ou para certos grupos e quando se expressa com tom poeacutetico

de uma comeacutedia eacute sempre uma expressatildeo dirigida a um grupo especiacutefico instituiccedilotildees de uma

dada realidade

109

No caso do tribunal celeste ou na travessia das naus essa realidade move e

denuncia as cenas que se desenvolvem pelo intenso debate entre o Anjo ou o Diabo com seus

hoacutespedes e no caso do Auto da Compadecida do anti-heroacutei Joatildeo Grilo com os mortos e seres

divinizados a partir do proacutelogo estabelecido pela entrada do Palhaccedilo que adverte ao puacuteblico

sobre o assunto posto justificando a dupla funccedilatildeo apresentar o argumento da peccedila e

estabelecer a captatio beneuolentiae 27 clamando pela atenccedilatildeo da plateia dando o tom cocircmico

desde o iniacutecio para prender a atenccedilatildeo da assistecircncia sobre os ensinamentos que ali seratildeo

apresentados PALHACcedilO Que bem precisada anda disso Saia e vaacute rezar laacute fora Muito bem com toda essa gente morta o espetaacuteculo continua e teratildeo oportunidade de assistir seu julgamento Espero que todos os presentes aproveitem os ensinamentos desta peccedila e reformem suas vidas se bem que eu tenha certeza de que todos os que estatildeo aqui satildeo uns verdadeiros santos praticantes da virtude do amor a Deus e ao proacuteximo sem maldade sem mesquinhez incapazes de julgar e de falar mal dos outros generosos sem avareza oacutetimos patrotildees excelentes empregados soacutebrios castos e pacientes E basta se bem que seja pouco Muacutesica (ARIANO SUASSUNA 2005 p117)

O desenvolvimento do julgamento traz elementos superiores e sobrenaturais

comuns na trageacutedia grega que Suassuna representa ao modo nordestino como o Diabo o

Encourado Jesus e Maria A presenccedila dessas divindades na obra que aliaacutes se apresentam a

partir do imaginaacuterio maacutescara do psicoloacutegico aleacutem de suscitar a reflexatildeo sobre os atos que o

homem comete em vida manifesta a denuacutencia que o autor imbrica no texto revelando que de

alguma forma a sociedade seraacute julgada e poderaacute sofrer puniccedilotildees apontando desta forma o

caraacuteter cocircmico e moralizador do auto como vemos abaixo DEMOcircNIO Calem-se todos Chegou a hora da verdade JOAtildeO GRILO Entatildeo jaacute sei que estou desgraccedilado porque comigo era na mentira DEMOcircNIO Vocecircs agora vatildeo pagar tudo o que fizeram ENCOURADO Vamos aos fatos Que vergonha Todos tremendo Tatildeo corajosos antes tatildeo covardes agora O Senhor Bispo tatildeo cheio de dignidade o padre o valente Severino E vocecirc o Grilo que enganava todo o mundo tremendo como qualquer safado JOAtildeO GRILO Que eacute que posso fazer Jaacute disse mais de cem vezes a mim que natildeo tremesse e tremo ENCOURADO

27 Captatio benevolentiae eacute uma categoria retoacuterica que visa capturar a boa vontade do puacuteblico no iniacutecio de um discurso (exoacuterdio prooemium) ou apelo No entanto o termo teacutecnico natildeo eacute encontrado nos manuais retoacutericos da Antiguidade Latinafoi usado pela primeira vez por Boeacutecio (falecido em 524 EC) em seu comentaacuterio sobre os escritos de Ciacutecero Literalmente significa atrair a benevolecircncia Refere-se a uma estrateacutegia usada quando o autor se dirige ao puacuteblico leitor visando conquistar a sua simpatia In E-Dicionaacuterio de Termos Literaacuterios (EDTL) coord de Carlos Ceia ISBN 989-20-0088-9 lthttpwwwedtlcomptgt consultado em 02-09-2018

110

E tem razatildeo porque o que vai lhe acontecer eacute coisa muito seacuteria Eacute engraccedilado como vocecircs empregam agraves vezes a palavra exata sem terem consciecircncia perfeita do fato O que vocecirc sentiu foi exatamente um arrepio de danado Leve a todos para dentro SEVERINO Ai meu Deus vou pagar minhas mortes no inferno BISPO Senhor democircnio tenha compaixatildeo de um pobre Bispo ENCOURADO Ah compaixatildeo Como pilheacuteria eacute boa Vamos todos para dentro Para dentro jaacute disse Todos para o fogo eterno para padecer comigo BISPO Ai Leve o Padre PADRE Ai Leve o sacristatildeo SACRISTAtildeO Ai Leve o Severino JOAtildeO GRILO Parem parem Acabem com essa molecagem JOAtildeO GRILO Acabem com essa molecagem Diabo dum barulho danado Eacute assim eacute Eacute assim eacute ENCOURADO Assim como JOAtildeO GRILO Eacute assim de vez Eacute soacute dizer ldquopra dentrordquo e vai tudo Que diabo de tribunal eacute esse que natildeo tem apelaccedilatildeo ENCOURADO Eacute assim mesmo e natildeo tem para onde fugir JOAtildeO GRILO Sai daiacute pai da mentira Sempre ouvi dizer que para se condenar uma pessoa ela tem de ser ouvida BISPO Eu tambeacutem Boa Joatildeo Grilo PADRE Boa Joatildeo Grilo MULHER Boa Joatildeo Grilo PADEIRO Vocecirc achou boa MULHER Achei PADEIRO Entatildeo eu tambeacutem achei Boa Joatildeo Grilo SEVERINO Eacute isso mesmo e eu vou apelar para Nosso Senhor Jesus Cristo que eacute quem pode saber ENCOURADO Besteira maluquice (ARIANO SUASSUNA 2005 p118-124)

Na defesa dos mortos Joatildeo Grilo reveste-se de autoridade e encarna o tiacutepico heroacutei

das epopeias dotado de coragem e bravura que natildeo desiste de viver mesmo depois da morte

persistindo no seu intuito de vencer Joatildeo ultrapassa o previsto e decide se vestir natildeo com as

roupas do rei Miacutesio mas de sua feacute estrateacutegia inconteste para alcanccedilar a intercessatildeo da matildee de

Jesus figura justa e poderosa capaz de levaacute-lo agrave absolviccedilatildeo PADRE

111

Acho que nosso caso eacute sem jeito Joatildeo Em Deus natildeo existe contradiccedilatildeo entre a justiccedila e a misericoacuterdia Jaacute fomos julgados pela justiccedila a misericoacuterdia diraacute a mesma coisa (ARIANO SUASSUNA 2005 p 142)

JOAtildeO GRILO E difiacutecil quer dizer sem jeito Sem jeito por quecirc Vocecircs satildeo mesmo uns pamonhas qualquer coisinha estatildeo arriando Natildeo vecirc que tiveram tudo na terra Se tivesse tido que aguentar o rojatildeo de Joatildeo Grilo passando fome e comendo macambira na seca garanto que tinha mais coragem Quer ver eu dar um jeito nisso Padre Joatildeo (ARIANO SUASSUNA 2005 p 142)

Autorizado ou natildeo por Suassuna em algumas passagens o certo eacute que tanto Joatildeo

Grilo como Chicoacute inconfundiacuteveis em seus quiprocoacutes nos convidam pelos tons acentos e

ritmos compassados do cordel a uma experiecircncia uacutenica de denuacutencia do social bem como

reveladora das caracteriacutesticas mais comuns aos habitantes de Taperoaacute espaccedilo universal da

recriaccedilatildeo promovida pelo bardo nordestino

52 2 A Voz a esperteza e a malandragem do poeta Nem tudo que eacute vivo morre

(Anti)Heroacutei ou Heroacutei Ser ou natildeo ser quem decide eacute o leitor O fato eacute que

ligado aos misteacuterios divinos por uma feacute inabalaacutevel Joatildeo Grilo mesmo diante de tantas adversidades busca forccedilas em suas oraccedilotildees e novamente cheio de esperteza e sabedoria invoca atraveacutes da voz do autor a Compadecida por meio dos versos de cordel de Canaacuterio Pardo para dar iniacutecio a sua defesa

JOAtildeO GRILO

Ah isso eacute comigo Vou fazer um chamado especial em verso Garanto que ela vem querem ver (ARIANO SUASSUNA 2005 p 142) Valha-me Nossa Senhora Matildee de Deus de Nazareacute A vaca mansa daacute leite A braba daacute quando quer A mansa daacute sossegada A braba levanta o peacute Jaacute fui barco fui navio Mas hoje sou escaler Jaacute fui menino fui homem Soacute me falta ser mulher () Valha-me Nossa Senhora Matildee de Deus de Nazareacuterdquo (ARIANO SUASSUNA 2005 p 144)

Usando de sua malandragem Joatildeo Grilo se garante por essa invocaccedilatildeo trazendo a

Compadecida para o julgamento que inicia um debate contra o Diabo para evitar sua

condenaccedilatildeo A COMPADECIDA

112

E para que foi que vocecirc me chamou Joatildeo JOAtildeO GRILO Eacute que esse filho de chocadeira quer levar a gente para o inferno Eu soacute podia me pegar com a senhora mesmo ENCOURADO As acusaccedilotildees satildeo graves Seu filho mesmo disse que haacute tempo natildeo via tanta coisa ruim junta A COMPADECIDA Ouvi as acusaccedilotildees Estaacute bem vou ver o que posso fazer JOAtildeO GRILO Estaacute vendo Isso aiacute eacute gente e gente boa natildeo eacute filha de chocadeira natildeo Gente como eu pobre filha de Joaquim e de Ana casada com um carpinteiro tudo gente boa MANUEL E agora noacutes Joatildeo Grilo Por que sugeriu o negoacutecio para os outros e ficou de fora JOAtildeO GRILO Porque modeacutestia agrave parte acho que meu caso eacute de salvaccedilatildeo direta ENCOURADO Era o que faltava E a histoacuteria que estava preparada para a mulher do padeiro MANUEL Eacute Joatildeo aquilo foi grave JOAtildeO GRILO E o senhor vai dar uma satisfaccedilatildeo a esse sujeito me desgraccedilando para o resto da vida Valha-me Nossa Senhora matildee de Deus de Nazareacute jaacute fui menino fui homem A COMPADECIDA Soacute lhe falta ser mulher Joatildeo jaacute sei Vou ver o que posso fazer Lembre-se de que Joatildeo estava se preparando para morrer quando o padre o interrompeu (ARIANO SUASSUNA 2005 p 146-158)

Como vemos eacute no cenaacuterio tragicocircmico do Agoacuten dos mortos que o Poeta de

forma moralizante se dirige agrave audiecircncia nas vozes de Jesus e da Compadecida para tratar das

questotildees ligadas agrave igreja e a seus representantes O mesmo natildeo se aplica a Joanes (o parvo)

que no cais do Purgatoacuterio indagado pelo Diabo na barca vicentina natildeo tem defensores ou

fiadores de sua graccedila em vida e contaraacute apenas com suas verdades ingecircnuas atitude que serve

para a quebra da seriedade comum ao julgamento e aos juiacutezes como refere Miranda (2001)

ao tratamento humoriacutestico empregado pelo autor

[hellip] a seriedade do tema eacute quebrada pelo tratamento que recebe ningueacutem pode chorar a sua sorte quando se depara com a prefiguraccedilatildeo de um juiacutezo final O modo como as personagens descobrem a sentenccedila que lhes foi determinada daacute- se de forma alegre e divertida pois o rigor da sentenccedila contrasta com o realismo grotesco de certos personagens e com o sarcasmo do interrogatoacuterio Disso decorre a comicidade da comeacutedia dos viacutecios (MIRANDA 2001 p61)

Mais adiante a Grande Voz - Gil Vicente ndash prepara seus leitores para o processo

de elaboraccedilatildeo e desenvolvimento da histoacuteria do parvo a partir do sentimento traacutegico gerado

pela morte que de iniacutecio natildeo eacute aceita e pelo elemento cocircmico presente no enfrentamento da

verdade do poacutes-morte num ritmo binaacuterio que permite o nivelamento de uma sociedade

estratificada

NarradorAutor

113

Vem Joane o Parvo e diz ao barqueiro do Inferno PARVO Oh desta DIABO Quem eacute PARVO Eu sou Eacute esta a nossa naviarra DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Ah Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Oh Pelo pesar do meu avocirc (dor choro) Resumindo Vim a adoecer E em maacute hora fui morrer E nela para mim soacute DIABO E de que morreste PARVO De quecirc Acho que de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Que maacute rabugem que te decirc (um insulto) DIABO Entra Potildee aqui o peacute PARVO Oacute paacute Que natildeo tombe o zambuco() (a barcaccedila) DIABO Entra tolo eunuco Que nos vai embora a mareacute PARVO Aguardai aguardai um pouco E aonde havemos noacutes de ir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-a-a DIABO Ao Inferno Entra caacute PARVO Ao Inferno Espera laacute Ui Ui Eacute a Barca do cornudo Pecircro de Vinagre Beiccediludo Lenhador de Alverca uh uh (GIL VICENTE p 34-38)

Ignorando a entrada no batel infernal Joanes se depara com outra realidade a

visita agrave nau que vai ao paraiacuteso Por que um bobo entraria na nau e seguiria para o descanso

dos justos Capricho ou natildeo do autor que encontra na ingenuidade e na astuacutecia as condiccedilotildees

de puniccedilatildeo daqueles que se julgavam acima das leis

114

Chega o Parvo ao batel do Anjo diz PARVO Oh da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Talvez algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres Porque em todos os teus afazeres Por maliacutecia natildeo erraste Da tua simpleza te bastastes Para gozar dos prazeres Espera no entanto aiacute Veremos se vem mais algueacutem Merecedor de tal bem Que deva entrar aqui (GIL VICENTE p 40-41)

A morte natildeo eacute o fim senatildeo o comeccedilo para o arrependimento das simbologias

hierarquizantes que permitem identificaccedilatildeo do homem com seu fazer terreno e com sua classe

social poliacutetica econocircmica e profissional

A morte acima de todos os entendimentos quebra a ordem dos elementos

igualando cada um dos protagonistas nas diferentes obras e gerando uma espeacutecie de

coletividade na qual do ponto de vista da justiccedila natildeo se concedem nem existem privileacutegios

pois cada um deveraacute responder por si soacute

Assim a resposta do poeta agraves injusticcedilas pelas quais se castiga a cidade viraacute com a

puniccedilatildeo dos infratores nas cenas que se revelam natildeo por uma accedilatildeo somente mas pelo

conjunto de mini-accedilotildees que adotam a estrutura gerada pela exposiccedilatildeo o conflito e o

desenlace e que agraves vezes nos apresentam a exposiccedilatildeo e o conflito dependentes um do outro

como no caso da comeacutedia aristofacircnica e dos autos de Ariano Suassuna e Gil Vicente

O fio que liga os enredos e conduz a nau vicentina ao inferno eacute o mesmo que

aguccedila a astuacutecia de Joatildeo Grilo ou que tranquiliza Chicoacute nos causos hercuacuteleos Em travessia

sobrenatural ou amarrado a um pirarucu espectadorleitor sente-se identificado com o

momento da histoacuteria quer pelas reminiscecircncias encontradas atraveacutes de elementos oriundos da

tradiccedilatildeo claacutessica quer pelos viacutenculos que retratam a realidade alegorizada e punitiva

Eacute o sentir sem sentir do poeta estar sem estar de uma realidade aparente natildeo

vivida mas experimentada simbolicamente seja nos autos ou na cena cocircmica aristofacircnica

115

que diante de um tribunal definido a partir dos valores humanos e da moralidade a verdade

vai se impor como instrumento para sentenciar as almas que uma a uma iratildeo entrar nos bateis

ou no purgatoacuterio do encourado

No palco construiacutedo pela comeacutedia ou pelo auto os conflitos se resolvem na

quebra da normalidade de um inferno agraves avessas lugar que se transforma em teatro de saacutetira

social de tipos que agem segundo a loacutegica da sua condiccedilatildeo de suas vivecircncias como bem

assinalado por Ariano Suassuna ao dar a Joatildeo Grilo as experiecircncias que lhe serviram de

argumento agrave Compadecida e contribuiacuteram decisivamente para a sua absolviccedilatildeo A COMPADECIDA Joatildeo foi um pobre como noacutes meu filho Teve de suportar as maiores dificuldades numa terra seca e pobre como a nossa Natildeo o condene deixe Joatildeo ir para o purgatoacuterio JOAtildeO GRILO Para o purgatoacuterio Natildeo natildeo faccedila isso assim natildeo Natildeo repare eu dizer isso mas eacute que o diabo eacute muito negociante e com esse povo a gente pede o mais para impressionar A senhora pede o ceacuteu porque aiacute o acordo fica mais faacutecil a respeito do purgatoacuterio A COMPADECIDA Isso daacute certo laacute no sertatildeo Joatildeo Aqui se passa tudo de outro jeito Que eacute isso Natildeo confia mais na sua advogada JOAtildeO GRILO Confio Nossa Senhora mas esse camarada enrolando noacutes dois A COMPADECIDA Deixe comigo Peccedilo-lhe entatildeo muito simplesmente que natildeo condene Joatildeo MANUEL O caso eacute duro Compreendo as circunstacircncias em que Joatildeo viveu mas isso tambeacutem tem um limite Afinal de contas o mandamento existe e foi transgredido Acho que natildeo posso salvaacute-lo A COMPADECIDA Decirc-lhe entatildeo outra oportunidade MANUEL Como A COMPADECIDA Deixe Joatildeo voltar MANUEL Vocecirc se daacute por satisfeito JOAtildeO GRILO Demais Para mim eacute ateacute melhor porque daqui para laacute eu tomo cuidado para a hora de morrer e natildeo passo nem pelo purgatoacuterio para natildeo dar gosto ao catildeo A COMPADECIDA Entatildeo fica satisfeito JOAtildeO GRILO Eu fico (ARIANO SUASSUNA 2005 p 146-158)

Se houve ou natildeo por parte do poeta a intenccedilatildeo de usar bufotildees palhaccedilos e o riso

para punir natildeo haacute duacutevidas Essas personagens promovem tanto na comeacutedia como no auto

uma reflexatildeo mais profunda sobre a existecircncia do homem na terra exercendo sobre as demais

que se julgam merecedoras de entrarem na barca do Anjo ou do perdatildeo divino uma saacutetira

viva e desestabilizadora

116

O certo eacute que mesmo apesar da situaccedilatildeo de marginalidade e abandono a que tem

estado sempre os outros cocircmicos autorizados pelo poeta eles mostram em Acarnenses no

Auto da Barca do Inferno e no Auto da Compadecida o discernimento necessaacuterio para por em

causa proacutepria todo o mundo social poliacutetico eacutetico e religioso

Observar o julgamento das almas o convencimento da assembleia ou a absolviccedilatildeo

de Joatildeo Grilo eacute justamente se inquietar com comportamento destoante dos personagens

diante do traacutegico anunciado seja pela sentenccedila no purgatoacuterio em que Suassuna provoca o riso

pelo absurdo da situaccedilatildeo seja pela morte tragicocircmica de Joanes que obteacutem o direito de

embarcar para o paraiacuteso ou mesmo pela negociaccedilatildeo que garantiu aos representantes da Igreja

e ao Cangaceiro o purgatoacuterio cabendo a Joatildeo Grilo o retorno agrave vida Portanto aleacutem de

garantir a absolviccedilatildeo haacute tambeacutem a realizaccedilatildeo de uma vinganccedila astuciosa que imprimindo o

castigo aos superiores reflete a inteligecircncia que se sobrepotildee a avareza e aos desmandos

Moralidade restabelecida Assim a cena cocircmica torna explicita a forte associaccedilatildeo

entre comeacutedia e auto na intecionalidade de uma justiccedila direta que quis aleacutem das palavras das

palavra-voz lapidada pelos a(u)tores impulsionadora de reflexotildees geradora de fissuras

abertas na selva de significados que de forma desconsertada passa a ser o guia de um leitor

carente da tomada de consciecircncia sobre o que eacute ou natildeo (in)justo pelo vibrar incorrigiacutevel da

cadeia de significados que se estabelece entre o dito e o leitorouvinte como afirma Zumthor

O texto vibra o leitor o estabiliza integrando-o agravequilo que eacute ele proacuteprio Entatildeo eacute ele que vibra de corpo e alma No eco da voz-texto natildeo haacute algo que a linguagem tenha criado nem estrutura nem sistema completamente fechados e as lacunas e os brancos que aiacute necessariamente subsistem constituem um espaccedilo de liberdade ilusoacuterio pelo fato de que soacute pode ser ocupado por um instante por mim por vocecirc leitores nocircmades por vocaccedilatildeo (ZUMTHOR 2014 p 53)

O heroacutei cocircmico eacute esse espaccedilo de liberdade de ousadia nem sempre vitorioso mas

que se constitui agraves vezes de um alter ego do autor que na qualidade de educador da cidade se

impotildee e legitima verdadeiramente justo uma vez que a justiccedila e a verdade satildeo suas

verdadeiras aliadas e componentes essenciais da criaccedilatildeo do autor

Comeacutedia e Auto concluem com sucesso as intenccedilotildees de seus autores garantindo a

todos o que eles merecem um final no qual a justiccedila a verdade e a puniccedilatildeo terminam

moralmente como (re)modeladoras da cidade

117

6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Nas obras que aqui foram analisadas (Acarnenses Ratildes Auto da Barca do inferno

e Auto da Compadecida) os respectivos autores parecem convidar o puacuteblico a tratar o duplo

poeacutetico e a voz como algo especialmente autorizado agrave tarefa de educar a cidade No entanto

cabe ressaltar que ldquoessa aparente autoridaderdquo eacute o instante singular no qual o poeta diz o que

pensa e quer pela boca de seus personagens reforccedilarcada vez mais a ilusatildeo de ser o que natildeo

se eacute de dizer para aleacutem do abrir e fechar das cortinas do palco teatral

No sertatildeo de chatildeo duro e quase impermeaacutevel agrave chuva do Auto da Compadecida a

palavra-performance fez sua morada na boca dos arremedos de Joatildeo Grilo fincou suas raiacutezes

em seus gestos fez dele sair seus brotos que se transformaram em galhos firmes de uma

aacutervore frondosa que eacute a cultura nordestina tatildeo bem cantada pela literatura de cordel pelo riso

mascarado e ao mesmo tempo denunciativo e desnudado do autor na representaccedilatildeo de sua

criatura Joatildeo Grilo eacute o muacuteltiplo poeacutetico defendido pelo proacuteprio autor numa caracterizaccedilatildeo

niacutetida e social Jaacute Diceoacutepolis em Acarnenses contudo tem uma identificaccedilatildeo claramente

problemaacutetica visto ser um personagem que assume muitas personagens e vozes (tais como

tanto o protagonista cocircmico ruacutestico e o traacutegico Teacutelefo) minando a seriedade com que um

leitor deve tomar suas reivindicaccedilotildees

No Auto da Barca do inferno Gil Vicente como criacutetico mordaz impotildee toda a sua

ironia para condenar os costumes praticados por uma sociedade permeada pela hipocrisia Agrave

guisa do pensamento vicentino a linguagem passa a ser seu principal instrumento pelo qual

se vai operar a zombaria para combater os excessos daqueles que ganham com a miseacuteria do

povo

Pelo vieacutes do desconserto a representaccedilatildeo teatral vicentina se constitui como um

conjunto (ou sistema) de signos de natureza diversa que revela um processo de comunicaccedilatildeo

em que haacute uma seacuterie complexa de transmissores uma seacuterie de mensagens um duplo emissor

assim como um (in)corrigiacutevel e muacuteltiplo receptor presentes no mesmo lugar ansiosos para

saber o que aleacutem do dito eacute ensinado pelo poeta

Esse jogo de diaacutelogosdidascaacutelias a princiacutepio consciente para o poeta permite um

percurso para a compreensatildeo dos diversos fios que compotildeem a tessitura cocircmica ndash moralizante

e dramaacutetica cabendo ao leitorespectador desvelar e revelar as mensagens proferidas pelas

vaacuterias vozes pelas quais se expressa o autor

Ao leitor atento nada escapa ao identificar no espaccedilo cecircnico as simbologias dos

espaccedilos socioculturais comuns agraves trecircs obras que compotildeem o corpus do nosso trabalho e de

118

forma particular a Gil Vicente que amarra elementos humanos e divinos burlescos e seacuterios

formais e corriqueiros sem perder sua atualidade uma vez que tecircm o meacuterito de apresentarem

as constantes lutas entre o bem e o mal que existem dentro de cada indiviacuteduo valendo-se de

uma comicidade aacutecida e palpitante inimiga dos desmando e excessos

Assim como Gil Vicente Ariano Suassuna soube como ningueacutem recriar a proacutepria

realidade em seus Autos atraveacutes dos textos orais nordestinos e interdiscursos culturais

medievos Sempre criacutetico sua literatura estaacute impregnada da heranccedila da tradiccedilatildeo popular

regional e de gecircneros medievais portugueses ibeacutericos e claacutessicos reforccedilando que tanto as

raiacutezes populares nordestinas quanto os gecircneros do teatro medievo alimentam seu fazer

poeacutetico

Como o educador da cidade Ariano Suassuna chega ao conhecimento da plateia

pelas vaacuterias frestas de uma accedilatildeo cocircmica e de recortes de um proacutelogo e de uma paraacutebase bem

ao estilo de Aristoacutefanes quando ao questionar metaforicamente os representantes da Igreja

pelo zelo da moralidade e da justiccedila social coloca em cheque tambeacutem toda a sociedade da

eacutepoca produzindo pelos jogos ciacutenicos circenses os novos significados de cidadania

Suassuna e Gil Vicente representam o fazer literaacuterio de um Aristoacutefanes que sob a

maciez do riso e da galhofa esconde o punhal e a foice da contestaccedilatildeo social o desejo de

recuperaccedilatildeo e de conversatildeo dos valores humanos Em Aristoacutefanes e diante de sua

representaccedilatildeo da polis estamos diante de uma realidade caoacutetica quase impassiacutevel de ser

alterada resultado da exploraccedilatildeo e da ambiccedilatildeo social fatos que permeiam a accedilatildeo de seus

personagens e quando o poeta traveste-se de Dioniso e decide descer ao infernos para buscar

um poeta genuiacuteno percebemos que natildeo eacute somente a arte ou os ensinamentos trazidos por ela

que Aristoacutefanes quer salvar mas o proacuteprio homem ndash em essecircncia ndash que jaacute se encontrava

seriamente corrompido fazendo mal agrave coletividade

No seu fazer de mentalidade coletiva Ariano Suassuna e Gil Vicente satildeo Aristoacutefanes

que em defesa da cidade lanccedilam-se num terreno movediccedilo do diaacutelogo literaacuterio e cultural

contrapondo o moderno e arcaico o regional ao erudito o miacutetico ao racional (re)construindo

suas histoacuterias a partir das vaacuterias histoacuterias alheias nas quais autor e personagens satildeo reflexos

maiores de uma sequecircncia de accedilotildees cocircmicas criacuteticas e a serviccedilo da ordem e da moralidade

Portanto por mais incorrigiacuteveis que possam parecer nas obras pesquisadas fica

claro que os autores e suas personagens agem na defesa de seus objetivos marcados por uma

devoccedilatildeo obstinada a uma causa proacutepria a defesa da cidade E no cenaacuterio-mundo que eacute o

teatro tanto Aristoacutefanes quanto Gil Vicente e Ariano Suassuna satildeo senhores da arte da

desconstruccedilatildeo

119

De caraacuteter universal a Comeacutedia e o Auto mostram um poeta autocircnomo que

brinca com a vontade e expectativas do leitorespectador levando-o a refletir sobre a realidade

atemporal apresentada pelo teatro em seu jogo cocircmico e moralizante Assim o duplo autoral

passa a conduzir o cecircnico no qual os ldquohome espectadorrdquo evocados por Diceoacutepolis em

Acarnenses ou os condenaacuteveis nos autos de Ariano Suassuna e Gil Vicente satildeo jogados no

labirinto das duacutevidas e incertezas promovidas pelas vozes muacuteltiplas que tambeacutem satildeo de

outrem e que afiadas atravessam o discurso cocircmico levando-o agrave reflexatildeo seacuteria da situaccedilatildeo na

qual se encontra a cidade E tudo aos olhos do leitor sob o desejo de um criador que se perde

e se acha nas criaturas que o representam nos a(u)tos matutos de Ariano Suassuna e

Aristoacutefanes ndash eacute possiacutevel ndash natildeo sei Soacute sei que foi assim

120

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARA CENTRO DE HUMANIDADES
  • PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM LETRAS
  • Prof Dr Lauro Inaacutecio de Moura Filho
  • Instituto Federal de Educaccedilatildeo Ciecircncia e Tecnologia do Cearaacute ndash (IFCE)
  • Prof Dr Francisco Wellington Rodrigues Lima
  • Instituto Federal de Educaccedilatildeo Ciecircncia e Tecnologia do Cearaacute ndash (IFCE)
  • COMPTON-ENGLE Gwendolyn Leigh Sudden glory Acharnians and the first comic hero
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AGRADECIMENTOS

Agradecer mexe com a memoacuteria e torna registrado o esquecimento Por natildeo ser

uma tarefa muito faacutecil eacute perigosa Natildeo pela dificuldade de lembrar mas pelo medo de deixar

de agradecer a algueacutem que mereccedila Eacute uma oportunidade uacutenica de demonstrar gratidatildeo por

tantos que tornaram este sonho uma realidade possiacutevel pela experiecircncia partilhada pela

dedicaccedilatildeo pelos conselhos ou simplesmente por terem sido ouvintes contadores de estoacuterias

e pacientes Como agradecer

Quem realiza um trabalho de pesquisa sabe o quatildeo solitaacuterias podem ser as

manhatildes tardes e noites de leituras e escritas Longos momentos onde o cursor e a tela satildeo as

uacutenicas testemunhas e companheiros Ao mesmo tempo em que eacute solitaacuterio eacute tambeacutem um

trabalho conjunto soacute me foi possiacutevel chegar ao fim de parte da jornada graccedilas ao esforccedilo de

tantos que vieram antes de mim Tantos outros que abriram e traccedilaram caminhos que depois

pude trilhar sozinho em romaria ou bebendo com Dioniso e com outros que bem antes

percorreram o sertatildeo e aportaram suas buscas na procura de mitos festejados e perpetuados

nos rituais cocircmico - religiosos presentes na literatura popular

O que apresento neste trabalho eacute fruto de uma pesquisa acompanhada de vaacuterios

olhares de muitas vivecircncias de viagens agraves feiras de conversas repletas de informaccedilotildees e

experiecircncias de sorrisos e de tristeza por ver na travessia um ponto de parada mesmo que

seja pelo instante do aprofundamento futuro

Mais que lembrar agradeccedilo a minha orientadora Professora Doutora Ana Maria

Ceacutesar Pompeu de forma bem especial Primeiro por ter ldquoapostadordquo em um projeto de

pesquisa com vaacuterias lacunas Segundo por ter sido uma orientadora no sentido mais amplo da

palavra atraveacutes de suas reflexotildees indicaccedilatildeo de bibliografias reuniotildees de orientaccedilatildeo e

conselhos foi possiacutevel que eu construiacutesse uma nova problemaacutetica do assunto e engendrasse a

pesquisa que agora apresento Terceiro pelo comprometimento acadecircmico em orientar-me

natildeo somente para a tarefa acadecircmica mas por me deixar aprender em suas palavras o sentido

das coisas quebrando a ilusatildeo sorrindo de forma contagiante orientando pela generosidade e

humildade para vida Foi um presente ouvi-la e aprender tambeacutem no silecircncio de suas reflexotildees

antes das orientaccedilotildees para que eu natildeo me perdesse durante a travessia atemporal

Tambeacutem agradeccedilo ao professor Steacutelio Torquato Lima do Departamento de

Literatura da UFC pela generosidade de pesquisador pelo comprometimento na indicaccedilatildeo de

novas fontes de pesquisas indispensaacuteveis agrave Dissertaccedilatildeo de Mestrado e que resultaram em

embriotildees da presente pesquisa de Doutorado me encorajando a ver nas entrelinhas de uma

literatura pujante dotada de vaacuterios significados oral ndash escrita ndash dupla

Ao professor Carlos Augusto Viana da Silva do Departamento de Estudos da

Liacutengua Inglesa suas Literaturas e Traduccedilatildeo da UFC pelo desafio que me levou a pensar a

literatura popular a partir da narrativa fiacutelmica que tatildeo bem impulsionou esta pesquisa

culminando com a anaacutelise do Auto da Compadecida de Ariano Suassuna em conjunto com

Acarnenses de Aristoacutefanes

Ao professor Roque Nascimento Albuquerque da Universidade de Integraccedilatildeo

Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB) que desde o iniacutecio acreditou na ideia

de pensar o cocircmico e o popular a partir de novas leituras desafiadoras e intrigantes

Ao professor Lauro Inaacutecio de Moura Filho meu agradecimento pela amizade por

ter dividido pesquisas sobre Aristoacutefanes e por fazer parte da minha Banca de Doutorado

Agrave professora Maria Inecircs Pinheiro Cardoso minha gratidatildeo pela presenccedila na minha

Banca de Doutorado e por seus valorosos estudos sobre a literatura do ldquobardo do sertatildeordquo

Ariano Suassuna em toda a sua magnitude popular

Ao professor Francisco Wellington Rodrigues Lima meu agradecimento pela

gentileza de fazer parte da minha Banca de Doutorado e por sua contribuiccedilatildeo agrave literatura

popular a partir de seus estudos sobre Gil Vicente e Ariano Suassuna

Para minha famiacutelia agradecimentos especiais Obrigado por terem me dado

oportunidade de chegar ateacute aqui por me ensinarem desde cedo a enfrentar os desafios de

frente com riso estampado no rosto

E por uacuteltimo obrigado as minhas maiores incentivadoras Com elas compreendi o

sentido de muitas coisas companheirismo afeto dedicaccedilatildeo amor Obrigado por entenderem

a importacircncia desta pesquisa na minha vida Sem vocecircs o caminho natildeo teria sido tatildeo animado

encantado e real Obrigado Patriacutecia e Larissa

Agrave FUNCAP e Agrave CAPES e ao CNPQ pelo apoio financeiro com a manutenccedilatildeo da

bolsa de auxiacutelio agrave pesquisa

Debaixo de minha mesa tem sempre um catildeo faminto -que me alimenta a tristeza Debaixo de minha cama tem sempre um fantasma vivo -que perturba quem me ama Debaixo de minha pele algueacutem me olha esquisito -pensando que eu sou ele Debaixo de minha escrita haacute sangue em lugar de tinta -e algueacutem calado que grita

(Affonso Romano de SantacuteAnna)

RESUMO

Por ser uma arte que permanece haacute tantos seacuteculos o teatro desperta curiosidade acerca de seus primoacuterdios existindo vaacuterias conjecturas e teorias sobre o surgimento da Comeacutedia Antiga como ambiente extremamente propiacutecio agrave formaccedilatildeo de duplos presente no mito e no culto do deus do teatro Dioniso no qual as vozes os gestos e as maacutescaras representam o duplo e satildeo sobrepostas como causa de equiacutevocos e componentes centrais das invectivas pessoais ou intrigas como observados em Acarnenses de Aristoacutefanes no Auto da Compadecida de Ariano Suassuna Entretanto haacute de se considerar de iniacutecio que alguns elementos responsaacuteveis pelo riso na obra de Aristoacutefanes tambeacutem encontra eco na literatura de Suassuna por apresentar uma tessitura textual atravessada pelas muacuteltiplas vozes de suas personagens constituindo-se em um fenocircmeno recorrente e natural que aponta para a tensatildeo de uma crise profunda denunciada pelo proacuteprio poeta em seus discursos A partir do estudo das correntes de alguns teoacutericos sobre o riso como Huizinga Pirandello Bergson e Vladimir Propp responderemos por meio da literatura comparada a alguns questionamentos como por exemplo qual a importacircncia da construccedilatildeo das personagens cocircmicas em Aristoacutefanes para a representaccedilatildeo do duplo poeacutetico e como essa criaccedilatildeo se reflete na obra de Ariano Suassuna sendo denunciadora das injusticcedilas a partir da cena cocircmica

Palabras-chave Teatro A(u)to A(u)tor Popular Duplo

RESUMEN Por ser un arte que permanece durante tantos siglos el teatro despierta curiosidad acerca de sus primordios existiendo varias conjeturas y teoriacuteas sobre el surgimiento de la Comedia Antigua como ambiente extremadamente propicio a la formacioacuten de dobles presente en el mito y en el culto del dios del teatro Dioniso en el que las voces los gestos y las maacutescaras representan el doble se superponen como causa de equiacutevocos y componentes centrales de las invectivas personales o intrigas como observados en Acarnienses de Aristoacutefanes en el Auto de la Compadecida de Ariano Suassuna Sin embargo hay que considerar de inicio que algunos elementos responsables de la risa en la obra de Aristoacutefanes tambieacuten encuentra eco en la literatura de Suassuna por presentar una tesitura textual atravesada por las muacuteltiples voces de sus personajes constituyeacutendose en un fenoacutemeno recurrente y natural que apunta para la tensioacuten de una crisis profunda denunciada por el propio poeta en sus discursos A partir del estudio de las corrientes de algunos teoacutericos sobre la risa como Huizinga Pirandello Bergson y Vladimir Propp responderemos por medio de la Literatura Comparada a algunos cuestionamientos como por ejemplo cuaacutel es la importancia de la construccioacuten de los personajes coacutemicos en Aristoacutefanes para la representacioacuten del doble poeacutetico y coacutemo esa creacioacuten se refleja en la obra de Ariano Suassuna siendo denunciadora de las injusticias a partir de la cena coacutemica

Palabras clave Teatro A(u)to A(u)tor Popular Doble

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO12

PRIMEIRO ATO18

1 O TEATRO UM DUPLO ARTIacuteSTICO ndash TRAGEacuteDIA E COMEacuteDIA19

11 A comeacutedia aristofacircnica28

12 Dioniso Matuto Justinoacutepolis um heroacutei embusteiro29

13 O (anti)heroacutei aristofacircnico32

14 Auto da Compadecida uma estoacuteria de outras estoacuterias34

15 Joatildeo Grilo um heroacutei popular e picaresco36

151 O (anti)heroacutei Suassuniano38

152 A tensatildeo tragicocircmica do (anti)heroacutei no Auto da Compadecida39

SEGUNDO ATO41

2 HUMOR E RISO ELEMENTOS INDISPENSAacuteVEIS Agrave CENA COcircMICA42

21 O riso seacuterio-cocircmico em Aristoacutefanes e Suassuna43

212 Riso e Comeacutedia43

213 Os elementos do risiacutevel no heroacutei suassuniano45

TERCEIRO ATO65

3 AS DUAS PECcedilAS ndash O POETA USA MAacuteSCARAS66

31 OS GESTOS ndash A vestimenta o corpo e o disfarce67

QUARTO ATO74

4 O AUTOR E SEUS OUTROS NA COMEacuteDIA E NO AUTO75

41 O par cocircmico na tradiccedilatildeo literaacuteria em Aristoacutefanes e em Ariano Suassuna76

QUINTO ATO84

5 O POETA VAI AO INFERNO85

51 Quem fala por quem86

511 Ao Hades e com riso frouxo97

52 O julgamento O riso a morte e o descanso do (in)justo105

521 Aqui eacute o inferno vocecirc pode brincar108

522 A Voz a esperteza e a malandragem do poeta Nem tudo que eacute vivo morre111

6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS117

REFEREcircNCIAS120

12

INTRODUCcedilAtildeO Num vatildeo ficaacute cum raiva homes espectador Se eu sendo um mendigo na frente dos ateniense Teja em tempo de falaacute sobre a cidade fazendo uma comeacutedia Pois o que eacute justo a comeacutedia tambeacutem conhece E eu vou falaacute coisas terriacuteve mas justa Pois desta vez num vai me caluniaacute Cleacuteon que Estrangeiros tando aqui eu falo mal da cidade Eacute que tamo soacute eacute o concurso das Leneia E os estrangeiro num tatildeo aqui nem os imposto Chega nem os aliado vem das cidade Mas tamo soacute noacutes agora soacute os miacute debuiado (POMPEU Dioniso MatutoARISTOacuteFANES Acarnenses vv497-507)

A Literatura Popular vem sendo cada vez mais estudada e reconhecida no acircmbito

acadecircmico ressaltando seu espaccedilo regional pela criaccedilatildeo e construccedilatildeo de uma nova vertente

literaacuteria que dialoga com outras artes e culturas Assim torna-se importante destacar que esse

tipo de literatura constitui-se tambeacutem como uma das vertentes da histoacuteria cultural tendo em

vista que reuacutene diversos tipos de textos para pensar sua escrita linguagem e (re)leitura pela

apropriaccedilatildeo cultural vivenciada pelo puacuteblico e pelo poeta que ouviu viu e viveu o produto

exposto nos versos como nos assegura Chartier (1990 p 27)

Nesse contexto permeado de apropriaccedilotildees recriaccedilotildees e (in)certezas eacute que

estudaremos o riso cocircmico no auto e na comeacutedia como leitoresjurados do julgamento

paroacutedico atraveacutes da accedilatildeo cocircmica do poeta representado por seus duplos na comeacutedia

Acarnenses1 (425 aC) de Aristoacutefanes no Auto da Compadecida (1956) de Suassuna numa

aproximaccedilatildeo atemporal que se reflete na palavra aacutecida do a(u)tor na gargalhada solta e na

quebra da normalidade literaacuteria reveladora das diversas maacutescaras vozes ndash linguagem matuta

e os gestos elementos que estatildeo a serviccedilo do poeta cocircmico e de seus duplos como porta-

vozes do discurso social

Assim para estudo e anaacutelise dos duetos (duplos) cocircmicos cordelescos

fomentadores do imaginaacuterio e da construccedilatildeo de (anti) heroacuteis cocircmicos populares presentes na

tradiccedilatildeo popular nordestina bebemos de fontes escritas e tambeacutem de uma modalidade

narrativa ateacute pouco tempo desprezada esquecida dada ao puacuteblico quase sempre em papel

ruacutestico e com maacute qualidade da impressatildeo e escrita sem a preocupaccedilatildeo dos autores com a

ldquocorreccedilatildeordquo linguiacutestica a Literatura de Cordel

1 No corpus do nosso trabalho optamos por usar a traduccedilatildeo de Acarnenses de Aristoacutefanes para o cearensecircs da professora Ana Maria Ceacutesar Pompeu Dioniso matuto uma abordagem antropoloacutegica do cocircmico na traduccedilatildeo de Acarnenses de Aristoacutefanes para o cearensecircs

13

Tradicionalmente comum a este tipo de literatura foi a presenccedila marcante da

oralidade o fato de ser vendida em feiras e o tipo de consumidor em geral pessoas de baixo

niacutevel escolar cuja identificaccedilatildeo com os folhetos se estabelecia por meio de variadas

temaacuteticas incluindo o diaacutelogo com outras fontes literaacuterias como a Comeacutedia Grega outro

objeto deste estudo

Com isso a importacircncia do cordel pelo meio acadecircmico daacute-se pela produccedilatildeo de

intelectuais como Ariano Suassuna que transpotildee episoacutedios inteiros do verso popular para a

prosa ou vice-versa num imenso caldeiratildeo de ideias consciente da forccedila que essa modalidade

literaacuteria deteacutem na representaccedilatildeo do imaginaacuterio do povo solidificando sua maneira de pensar e

de reagir ante os fenocircmenos sociais

Essas reaccedilotildees aos diferentes contextos sociais motivadas pelas experiecircncias

escritas auditivas e visuais preteacuteritas atribuem um valor positivo agrave figura do (anti)heroacutei

cocircmico e ou agrave conversatildeo do matuto do ruacutestico e satildeo responsaacuteveis pela sua construccedilatildeo miacutetica

a partir do documento linguiacutestico do falar matuto heranccedila cultural cearense como

apresentado por Pompeu em seu Dioniso Matuto (2014) Entretanto temos de considerar que

Aristoacutefanes natildeo faz distinccedilatildeo entre linguagem matuta e citadina apenas de aspectos dialetais

das cidades natildeo aacuteticas como afirma Andreas Willi

A comeacutedia tambeacutem se diferencia da trageacutedia por apresentar todos os estrangeiros a falar em seus dialetos nativos Embora se costume considerar a reproduccedilatildeo dos outros dialetos como deformaccedilatildeo risiacutevel Aristoacutefanes natildeo exagera as caracteriacutesticas dialetais nem as personagens atenienses escarnecem delas de maneira que eacute provaacutevel que o efeito cocircmico nasccedila ali natildeo do exagero mas do realismo linguiacutestico que natildeo tem equivalente em outro gecircnero (WILLI 2003 p268)

Sobre essa afirmativa e tomando como ponto de partida o pensamento de

Bogatyrev (1977) em relaccedilatildeo agraves variaccedilotildees dialetais nota-se que pelas falas produzidas

o espectador percebe ao mesmo tempo o ator e a personagem presentes nos contextos

nordestino e grego resultado de uma simbiose entre ldquocriador e criaturardquo

O corpo do presente trabalho estaacute dividido em Cinco Atos assim denominada a

divisatildeo da Comeacutedia Antiga que na Greacutecia evolui em trecircs fases distintas considerando-se a

comeacutedia2 antiga a comeacutedia mediana e a comeacutedia nova Relativamente ao periacuteodo da comeacutedia

antiga Aristoacutefanes eacute o seu grande representante estruturando-a com as seguintes partes o

proacutelogo o paacuterodo que consiste na entrada do coro e nas suas intervenccedilotildees ou disputa entre 2 EDMONDS J M The Fragments of Attiacutec Comedy II Uiacuteacircdle Cotnedy Leiden Brill 2010

14

dois coros a paraacutebase isto eacute um interluacutedio coral que suspende parcialmente a ilusatildeo

dramaacutetica dirigindo-se diretamente ao auditoacuterio os episoacutedios ou seja as cenas dialogadas

pelas personagens e intercaladas por intervenccedilotildees do coro o ecircxodo concretizando-se no

desenlace final

A comeacutedia antiga caracteriza-se pelo tom de humor e de saacutetira com que se critica

assuntos da vida cotidiana aspectos poliacuteticos e sociais e figuras e instituiccedilotildees proeminentes

sendo a sua finalidade principal a diversatildeo para aleacutem do objetivo moralizante Emprega uma

linguagem luacutedica atraveacutes de jogos de palavras equiacutevocos ironia clichecircs e apresenta ainda

personagens de forma caricatural

Cabe ressaltar que na Introduccedilatildeo apresentamos uma panoracircmica histoacuterica acerca

da Comeacutedia Grega aristofacircnica ndash Acarnenses com direcionamento agrave comeacutedia suassuniana ndash

retratada no Auto da Compadecida Para tratar do Auto da Compadecida e da influecircncia que

sofreu da literatura de Gil Vicente decidimos optar pela apresentaccedilatildeo do Auto Vicentino visto

que O Auto da Compadecida constitui-se como uma peccedila teatral que resgata a comeacutedia

medieval e renascentista europeia bem como a comeacutedia popular nordestina Tal obra foi

elaborada a partir de vertentes distintas onde se encontram resquiacutecios de obras conhecidas e

consagradas mundialmente e tradiccedilatildeo popular impressa em folhetos

O caraacuteter cordelesco do Auto remonta agrave Idade Meacutedia que teve os uacuteltimos seacuteculos

tambeacutem conhecidos pelos historiadores como tempos embaralhados visto que levaram agraves

uacuteltimas consequecircncias uma visatildeo decadentista da vida O caraacuteter transitoacuterio do seacuteculo XV

tornou-se cada vez mais importante no desencadeamento da ideia de morte dentro da unidade

cristatilde fato que permeia as obras de Gil Vicente

O Auto da Barca do Inferno tambeacutem conhecido como Auto da Moralidade foi escrito em 1517 e representado ao rei Manuel I de Portugal e agrave rainha Lianor Eacute uma das mais significativas e famosas obras de Gil Vicente e que embora esteja na estrutura de uma trilogia Trilogia das Barcas que contempla tambeacutem o Auto da Barca do Purgatoacuterio e o Auto da Barca da Gloacuteria a peccedila conteacutem um uacutenico ato no qual eacute recorrente o uso da saacutetira do riso do ridiacuteculo e do achincalhe dotado de um tenso cunho didaacutetico

Jaacute no caso especiacutefico de Ariano Suassana o Auto da Compadecida se divide em

trecircs episoacutedios o primeiro intitulado o enterro do cachorro o segundo com o retorno do Major

Antocircnio Moraes junto com o Bispo e o terceiro episoacutedio compreendendo o julgamento dos

mortos Os atos satildeo entrecortados pela fala do palhaccedilo que representa o autor situando os

espectadores e antecedendo a mudanccedila de cenaacuterio Os personagens satildeo Joatildeo Grilo Chicoacute

major Antocircnio Moraes o padeiro e sua esposa o cangaceiro Severino de Aracajuacute e seu

15

ajudante Bispo Sacristatildeo Padre Joatildeo e Frade Encourado democircnio Manuel e a

Compadecida mas a peccedila gira em torno de Joatildeo Grilo que eacute quem arma situaccedilotildees

conflituosas e quem concentra o foco dramaacutetico

Eacute nesse contexto que a literatura de cordel se apresenta como um importante

veiacuteculo de expressatildeo habilitado agrave aproximaccedilatildeo do popular e do erudito como tambeacutem

ferramenta de articulaccedilatildeo da comunicaccedilatildeo do sertatildeo desprezado e inculto com as referecircncias

gregas de narraccedilatildeo observadas em Aristoacutefanes Para tanto nos valemos da anaacutelise das obras

referidas por gravitarem em torno da temaacutetica proposta e abordarem de forma direta a

linguagem matuta e a construccedilatildeo dos duplos cocircmicos tendo como foco a figura do matuto

Em termos metodoloacutegicos nossa pesquisa se apoia em uma perspectiva

comparativista considerando o contiacutenuo uso da oralidade efetivado na Comeacutedia como voz

autorizada para a accedilatildeo contiacutenua do proacuteprio poetapersonagem Nesse contexto Segundo

Bakhtin o autor ldquoocupa uma posiccedilatildeo responsaacutevel no acontecimento do existir opera com

elementos desse acontecimento e por isso a sua obra eacute tambeacutem um momento desse

acontecimentordquo (BAKHTIN 2003 p176) Neste esteio Caetano Peixoto e Machado (2011)

nos afirmam que A posiccedilatildeo do autor-criador ou seja aquele que tem a funccedilatildeo esteacutetico-formal engendradora da obra natildeo estaacute dissociada do autor-pessoa isto eacute do escritor do artista A vida natildeo estaacute em dicotomia com a arte Elas se imbricam atraveacutes das vozes sociais e histoacutericas onde a dimensatildeo teoacuterica esteacutetica e eacutetica ndash o conhecimento os valores e o agir ndash convergem organizadas num sistema estiliacutestico harmonioso

Nas obras que constituem nossa pesquisa o autor e suas diversas vozes operam e

se estabelecem por meio de accedilotildees muacuteltiplas grotescas como forma de afastar-se do caraacuteter de

opressatildeo para a compreensatildeo e apreensatildeo de uma verdade pura muitas vezes advinda do

social e das situaccedilotildees de injusticcedila como defendida por DiceoacutepolisJustinoacutepolis em

Acarnenses e por Joatildeo Grilo no Auto da Compadecida

Eis que da multiplicidade das praacuteticas do discurso deriva-se o que se pode

reconhecer como uma tipicidade um modo totalmente particular de afirmaccedilatildeo do sujeito um

muacuteltiplo que ao mesmo tempo se torna iacutempar diferente dos demais na conduccedilatildeo do discurso

social Essa imagem e sua polifonia capazes de reunir habilidades estabelecedoras de um

valor cultural da literatura satildeo o que haacute de mais iacutentimo e intransferiacutevel nesse diaacutelogo proposto

entre as obras estudadas e seus autores por operarem um mecanismo narrativo simples e

divertido atraveacutes do diaacutelogo entre o discurso literaacuterio e o socioloacutegico

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Retornando agrave divisatildeo do trabalho acentuamos que no PRIMEIRO ATO tratamos

de questotildees inerentes agrave origem e estrutura da Comeacutedia e do Auto ressaltando ainda a

importacircncia desses gecircneros como elementos presentes e ativos no processo de construccedilatildeo da

heranccedila cultural erudita mas de origem popular com foco no discurso permeado de vaacuterias

vozes indispensaacuteveis na formaccedilatildeo do poeta-personagem e de seus (anti)heroacuteis

No SEGUNDO ATO discorremos sobre os elementos da Comeacutedia aristofacircnica e

do Auto suassuniano a partir do Humor e do Humorismo Para tanto recorremos agrave expressatildeo

ldquoriso seacuterio-cocircmico como elemento moralizanterdquo tomando como base os estudos de Huizinga

Pirandello Bergson e Vladimir Propp entre outros estudiosos

No TERCEIRO ATO apresentamos um breve histoacuterico da comeacutedia como duplo

da trageacutedia e escrevemos sobre as maacutescaras vozes e gestos como elementos fundantes do

outro do poeta na cena cocircmica tanto em Aristoacutefanes quanto em Suassuna

No QUARTO ATO aprofundamos nossos estudos sobre o duplo na literatura

tomando como base trabalhos sobre a ocorrecircncia do duplo e seu estranhamento na literatura

Ainda no mesmo Ato fazemos uso dos estudos de Bakhtin sobre polifonia do duplo e a

polifonia do discurso social com o fim de relacionar o discurso social de Joatildeo Grilo e

Diceoacutepolis em defesa do coletivo ndash da polis ndash duplos do poeta e porta-vozes dos discursos

sociais jaacute popularizados na Literatura de Cordel suas influecircncias e os diaacutelogos possiacuteveis com

a Comeacutedia Grega

Por fim desenvolvemos ao longo do QUINTO ATO a anaacutelise comparativa da

formaccedilatildeo dos duplos e presenccedila das vaacuterias vozes constitutivas do enredo da comeacutedia

Acarnenses de Aristoacutefanes do texto traduzido do original grego de 425 a C da versatildeo

Dioniso matuto uma abordagem antropoloacutegica do cocircmico na traduccedilatildeo de Acarnenses de

Aristoacutefanes para o cearensecircs da versatildeo jaacute citada da peccedila produzida por Ana Maria Ceacutesar

Pompeu texto que tambeacutem nos serviraacute tambeacutem como paradigma da Comeacutedia Antiga do Auto

da Compadecida de Ariano Suassuna com vistas a demonstrar a importacircncia de se entender

a partir da oralidade linguagem matuta tatildeo presente na obra de Suassuna a finalidade do uso

das vozes do ldquooutrordquo para a construccedilatildeo significativa do proacuteprio poeta Ainda no Quinto Ato

estudamos o riso e do duplo poeacutetico pela inclusatildeo e estudo de Ratildes de Aristoacutefanes do Auto da

Barca do Inferno (1531) de Gil Vicente tendo como foco a cena do julgamento das almas

comum tambeacutem ao Auto da Compadecida ndash momento no qual a personagem se funde ao

poeta educador da cidade com suas preferecircncias e invectivas

Em Aristoacutefanes somos ouvintes das criacuteticas do proacuteprio poeta que em meio ao

caos propiciado pela guerra decide comprar sua paz Em Gil Vicente provamos da

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moralidade cristatilde que de forma direta condena ou absolve os pecadores e falsos pregadores

E por uacuteltimo em Ariano Suassuna construtor de cenaacuterios (im)provaacuteveis nos quais ceacuteu e

inferno disputam os mortos por meio de uma seacuterie de accedilotildees cocircmicas onde a morte por vezes

perde seu caraacuteter traacutegico

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PRIMEIRO ATO

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1 O TEATRO UM DUPLO3 ARTIacuteSTICO ndash TRAGEacuteDIA E COMEacuteDIA

O teatro grego surgiu no contexto do culto religioso estando ligado

particularmente ao Deus Dioniso permanecendo ligado tambeacutem agrave religiatildeo A palavra teatro

segundo Pereira (2006 P24) tem sua origem no grego theacuteatron (έ) em que theacutea

(έ) quer dizer accedilatildeo de olhar de contemplar aspecto objeto de contemplaccedilatildeo espetaacuteculo

e em que o sufixo ndashtron (-) significa lsquoinstrumento dersquo e theacuteatron querer dizer

lsquomaacutequina de espetaacuteculosrsquo Theacutea e theacuteatron tecircm derivaccedilatildeo do verbo theaacuteomai (ά ou

ῶ) que significa ver contemplar considerar examinar ser espectador contemplar

pela inteligecircncia Entretanto o teatro teve em sua origem duas modalidades artiacutesticas

principais a trageacutedia e a comeacutedia

Pereira (2006) destaca que a palavra trageacutedia em grego (τραγῳδία) deriva de

tragos (τράγος) que significa bode puberdade os primeiros desejos do sentido lubricidade

(pois o bode simbolizava para os antigos pelas suas caracteriacutesticas o desejo sexual a

lubricidade) e de ode (ᾠή) que significa canto com acompanhamento de instrumentos

accedilatildeo de cantar

A palavra tragoidiacutea (τραγῳδία) de acordo com Fernandes (2006) significava em

grego ldquocanto do bode canto religioso com o qual se acompanhava o sacrifiacutecio de um bode nas

festas de Dioniso trageacutedia drama heroacuteico evento traacutegicordquo O tragoidoacutes (τραγῳδός) era

primordialmente aquele que danccedilava e cantava durante a imolaccedilatildeo de um bode nas festas de

Dioniso sendo que este termo significou tambeacutem em seguida lsquoaquele que danccedila e canta em

um coro traacutegico ator traacutegico membro do coro traacutegico poeta traacutegico Para alguns estudiosos o canto do bode era o canto dos companheiros de Dioniso em seus cortejos orgiaacuteticos dos saacutetiros os filhos de Sileno - que teria segundo uma tradiccedilatildeo sido um educador daquele deus (Sileno era famoso pela sua feiuacutera e sua sabedoria e suas formas eram em parte equinas) Poreacutem soacute muito tardiamente ndash a saber na eacutepoca heleniacutestica e romana da cultura grega - os saacutetiros foram representados como seres em que se misturavam formas humanas e formas caprinas tendo os membros inferiores ateacute mais ou menos a cintura em forma caprina e um chifre e feiccedilotildees que lembravam as feiccedilotildees caprinas No tempo aacuteureo das trageacutedias e mesmo pouco depois ndash a saber no seacuteculo V e IV a C - os saacutetiros apareciam como seres em que se misturavam as formas humanas com a equina tendo entatildeo os membros inferiores semelhantes agraves patas traseiras de um cavalo aleacutem de um rabo e orelhas de cavalo Esta hipoacutetese permaneceu poreacutem apoiada em passagens de textos do seacuteculo V (particularmente no fragmento 207 do Prometeu Pirceu de Eacutesquilo) em que saacutetiros satildeo chamados de bode natildeo pela sua forma mas

3 Nesta pesquisa trabalhamos com o conceito de Duplo estabelecido por Anna Beltrametti no artigo ldquoLe couple comique Des origines mythiques aux deacuterives philosophiques incluiacutedo na obra dirigida por Marie-Laurence Esclos Le rire des grecs anthropologie du rire en Gregravece ancienne (2000 p 215-226)

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hipoteticamente pela sua lasciacutevia ndash pois como jaacute dissemos o bode eacute caracterizado pela lubricidade (PEREIRA 2006 p7)

Outra hipoacutetese esta defendida por Lesky (1999) foi a de que o canto do bode era

o canto lamentoso da viacutetima sacrificada a Dioniso ndash que como vimos acima era um bode

Toda a trageacutedia se assemelha a um ritual de sacrifiacutecio No centro da orquestra no teatro

grego havia um altar a Dioniso (o thymeacutelendashθυμέλη) sugerindo que o destino traacutegico do heroacutei

e a representaccedilatildeo traacutegica eram como uma imolaccedilatildeo a Dioniso Na Greacutecia sobretudo nas

eacutepocas arcaicas eram praticados rituais de sacrifiacutecio dos chamados bodes expiatoacuterios (em

grego pharmakoacutesndashφαρμακός) em que um indiviacuteduo carregado de todas as impurezas da

comunidade era sacrificado

Em Atenas havia um ritual nas festas chamadas Targeacutelias4 dedicadas a Apolo e

Aacutertemis que remetia a este sacrifiacutecio Um homem e uma mulher eram surrados enquanto

eram conduzidos atraveacutes de toda a cidade Depois eram sacrificados fora das fronteiras da

cidade queimados e suas cinzas jogadas no mar Na eacutepoca claacutessica eram apenas jogados no

mar e depois expulsos para fora das fronteiras da cidade Eles eram chamados de pharmakoiacute5

bodes expiatoacuterios

O ritual de sacrifiacutecio era uma tradiccedilatildeo que existia em muitas outras civilizaccedilotildees

Nas Saacuteceas6 babilocircnicas por exemplo que satildeo mencionadas por Nietzsche em O nascimento

da trageacutedia um prisioneiro era sacrificado depois de ser nomeado rei da Babilocircnia por cinco

dias tempo em que tinha direito a desfrutar de todo o hareacutem do proacuteprio rei e de dar livre curso

a todos os seus apetites ateacute o momento de seu sacrifiacutecio Durante este tempo as orgias eram

celebradas em toda a cidade

Na Poeacutetica de Aristoacuteteles trageacutedia e comeacutedia assemelham-se quando satildeo

apresentadas como ldquomimesis7rdquo (1447a) e diferem porque autores cocircmicos ldquoimitamrdquo homens

4 Targeacutelia era um dos principais festivais atenienses realizados em honra a Apolo e Aacutertemis tal festival era celebrado no mecircs de Targeliatildeo (relativo ao periacuteodo de 15 de maio a 15 de junho) 5 Sacrificar (real ou simbolicamente) um bode expiatoacuterio para purificar a cidade era comum no mundo grego A pessoa sacrificada chamava-se pharmakoacutes Em Atenas o rito era parte das Targeacutelias festival em honra a Apolo Para ser pharmakoiacute as pessoas tinham que ser detentores de deficiecircncia fiacutesica e os considerados inuacuteteis 6 Festas que se celebravam na Peacutersia antiga e durante as quais os escravos mandavam nos amos 7 Como notado por GOLDEN Leon Aristotle on the Pleasure of Comedy In A O Rorty Essays on Aristotlersquos Poetics (1992 27) Do gr miacutemesis ldquoimitaccedilatildeordquo (imitatio em latim) designa a accedilatildeo ou faculdade de imitar coacutepia reproduccedilatildeo ou representaccedilatildeo da natureza o que constitui na filosofia aristoteacutelica o fundamento de 7Heroacutedoto foi o primeiro a utilizar o conceito e Aristoacutefanes em Tesmofoacuterias (411) jaacute o aplica O fenocircmeno natildeo eacute um exclusivo do processo artiacutestico pois toda atividade humana inclui procedimentos mimeacuteticos como a danccedila a aprendizagem de liacutenguas os rituais religiosos a praacutetica desportiva o domiacutenio das novas tecnologias etc Por esta razatildeo Aristoacuteteles defendia que era a miacutemesis que nos distinguia dos animais

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piores e os traacutegicos os ldquoimitamrdquo melhores do que satildeo na realidade (1448a) Sendo a mimesis

considerada pelo filoacutesofo como congecircnita agrave natureza humana ndash que com ela se compraz e

aprende ndash a poesia naturalmente tomou as formas da iacutendole particular dos poetas os de

acircnimo mais elevados mimetizavam accedilotildees nobres atraveacutes de hinos e encocircmios e os de mais

baixas inclinaccedilotildees compunham vitupeacuterios (1449a) Vinda agrave luz atraveacutes da poesia a mesma

distinccedilatildeo estendeu-se ao teatro dos ditirambos em honra a Dioniso originou-se a trageacutedia e

nos cantos faacutelicos ndash que tambeacutem evocavam o mesmo Deus ndash pode-se perceber as sementes da

comeacutedia

Na cena teatral segundo Aristoacuteteles (Poeacutetica 1448b) a comeacutedia apresentava o

que os homens tecircm de ridiacuteculo caracterizado como ldquodefeito torpeza anoacutedina e inocenterdquo a

maacutescara cocircmica era disforme mas natildeo possuiacutea expressatildeo de dor Por sua vez a trageacutedia aacutetica

mimetizava homens superiores em accedilotildees de caraacuteter elevado que suscitavam terror (phobos) e

compaixatildeo (eleas) e provocavam o prazer que eacute proacuteprio desses sentimentos

Sem desconsiderar que uma localizaccedilatildeo muito rigorosa das origens seria um erro

metodoloacutegico ressalto a origem comum da trageacutedia e da comeacutedia ndash nos coros dionisiacuteacos ndash

ainda que predominantemente a Filosofia demonstre muito menos apreccedilo por essa uacuteltima Se

a trageacutedia surgiu dos ditirambos a comeacutedia comeccedilou com os komoi uma espeacutecie de procissatildeo

jocosa das quais a mais famosa era realizada nas festas dionisiacuteacas para celebrar a fertilidade

da natureza atraveacutes de homenagens a reproduccedilotildees de falos descomunais ndash costume ainda vivo

em algumas regiotildees da Greacutecia e Japatildeo

Os comediantes (komoidoi) andavam de aldeia em aldeia por natildeo serem tolerados

na cidade registrou Aristoacuteteles (1448b) Oficialmente as representaccedilotildees cocircmicas tiveram

origem nas Dioniacutesias Urbanas (486aC) em Atenas mas cenas pintadas em vasos revelam

sua existecircncia bem antes da data oficial

ldquoA trageacutedia surgiu do coro traacutegicordquo Pode-se ler em O nascimento da trageacutedia

(NIETZSCHE 2007 p52) quando Nietzsche interpreta a origem da trageacutedia no coro dos

saacutetiros de um modo bastante especiacutefico tomando como arma a luta contra a ideia de

naturalismo na arte O coro mesmo eacute percebido ldquocomo uma muralha viva que a trageacutedia

estende agrave sua volta a fim de isolar-se do mundo real e de salvaguardar para si o seu chatildeo ideal

e a sua liberdade poeacuteticardquo (p54) E o faz preservando as semelhanccedilas com os antigos coros

satiacutericos gregos e sua erracircncia por terrenos mais elevados ldquomuito acima das sendas reais do

perambular dos mortaisrdquo (p54) O saacutetiro ndash ldquoser natural e fictiacuteciordquo ndash eacute percebido em relaccedilatildeo ao

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homem grego civilizado do mesmo modo que a muacutesica dionisiacuteaca em relaccedilatildeo agrave civilizaccedilatildeo O

coro satiacuterico suspende eleva e supera o grego civilizado da mesma forma como a claridade do

sol faz com as luzes das lacircmpadas escreve Nietzsche

Expressatildeo do proacuteprio desejo com sua erracircncia original o coro satiacuterico criava um

territoacuterio transcendente distanciado da realidade cotidiana natildeo apenas tolerado como

ldquoliberdade poeacuteticardquo e sim considerado pelo menos por Nietzsche a proacutepria ldquoessecircncia de toda

poesiardquo (p54) O mesmo filoacutesofo escreveu O ecircxtase do estado dionisiacuteaco com sua aniquilaccedilatildeo das usuais barreiras e limites da existecircncia conteacutem enquanto dura um elemento letaacutergico no qual imerge toda vivecircncia pessoal do passado Assim se separam um do outro atraveacutes desse abismo do esquecimento o mundo da realidade cotidiana e o da dionisiacuteaca (NIETZSCHE 2007 p55)

Devo advertir de iniacutecio que eacute difiacutecil dizer por que a partir de uma origem comum

ndash a experiecircncia dionisiacuteaca ndash o distanciamento arrebatador do mundo cotidiano prosaico gerou

expressotildees tatildeo diversas a ponto de constituiacuterem gecircneros ateacute hoje existentes como o cocircmico e

o traacutegico E segundo Nietzsche este uacuteltimo eacute com ajuda de Apolo a ldquodomesticaccedilatildeo artiacutestica

do horriacutevelrdquo enquanto o primeiro seria uma ldquodescarga da naacuteusea do absurdordquo (NIETZSCHE

2007 p56)

Ao longo da histoacuteria entretanto pode-se perceber que o entrelaccedilamento de ambos

no que ficou conhecido como ldquotragicocircmicordquo a ponto de tornar-se popular a ideia expressa

pelo ditado ldquoseria cocircmico se natildeo fosse traacutegicordquo Como tantos outros os termos originais

foram banalizados esvaziados de conteuacutedo tornados difusos

Se em sua origem o cocircmico era o outroduplo do traacutegico tambeacutem desde esses

tempos a saacutetira jaacute se fazia presente como companhia do texto cocircmico A chamada ldquoComeacutedia

Antigardquo (425-404 aC periacuteodo da produccedilatildeo de Aristoacutefanes que nos chegou) caracteriza-se

pela mordacidade caacuteustica na mimesis dos cidadatildeos proeminentes e das instituiccedilotildees dapolis8

seja pelos a(u)tores seja pela manifestaccedilatildeo das proacuteprias personagens que algumas vezes

representavam em cena o proacuteprio discurso revelador das injusticcedilas sociais tatildeo comuns na

Cidade

Nesse contexto o Duplo sempre foi um tema profundamente instigante da cultura

humana e sempre esteve essencialmente relacionado em vaacuterias aacutereas do conhecimento como

na Filosofia Psicologia Literatura e na Mitologia persistindo temporalmente como temaacutetica 8 Para a normatizaccedilatildeo de algumas palavras gregas em portuguecircs seguimos o Glossaacuterio elaborado pelo Laboratoacuterio de Estudos Sobre a Cidade Antiga Disponiacutevel em pdf no site wwwmaeuspbrlabeca aba glossaacuterio No caso de palavras jaacute dicionarizadas utilizamos a forma de acordo como que consta no Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa (2008)

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sempre revisitada e geradora de ambiguidades Na Antiguidade o Duplo era para a

sociedade a representaccedilatildeo ou o reflexo do idecircntico ou seja prevalecia a ideia de Duplo como

o homogecircneo manifestaccedilatildeo do igual

No entanto natildeo permaneceu dessa maneira tendo com o passar do tempo a partir

do seacuteculo XVIII se tornado heterogecircneo isto eacute o Duplo passa a representar o desigual ou em

outras palavras o oposto em Suassuna o arremedo cocircmico Este fato encontra comprovaccedilatildeo

quando procuramos as diferenccedilas existentes entre o traacutegico e o cocircmico tatildeo bem delineadas na

sociedade Greacutecia Claacutessica

Obscura como outros siacutembolos e projeccedilotildees coletivas a figura do duplo em

Acarnenses (Diceoacutepolis) e no Auto da Compadecida (Joatildeo Grilo) eacute cocircmica e criacutetica visto que

satildeo elementos que parodiam o serviccedilo divino cantando errado e fazendo sermotildees

moralizantes travestem-se usam maacutescaras passeiam com maestria nos mundos popular e

erudito representam coletivos pelo poder da gargalhada do riso seacuterio e da tolice formas mais

sutis para se levar ao conhecimento da audiecircncia o desdobramento da consciecircncia ao mesmo

tempo a do idiota e a do bufatildeo que a utiliza como maacutescara e a coloca em praacutetica na defesa do

cidadatildeo injusticcedilado

Cantando errado e fazendo sermotildees moralizantes os a(u)tores travestem-se de

heroacuteis cocircmicos satildeo porta-vozes da opiniatildeo de muitos se apoderam do grotesco usam

maacutescaras passeiam com maestria nos mundos popular e erudito representam coletivos pelo

poder da gargalhada do riso seacuterio e da tolice e encontram em seus outros as formas

mais(in)certas para criticar agravequeles que exploram a cidade e levar ao puacuteblico atraveacutes de

figuras idiotizadas os ensinamentos que ironicamente o poeta preocupado com o destino do

cidadatildeo executa diante de suas audiecircncia

Esta dualidade cocircmica estabelecida pelo poeta e seus duplos no espaccedilo cecircnico da

cidade eou do inframundo implica certa ambiguidade constitutiva na figura do heroacutei cocircmico

ou do juiz apresentado em Acarnenses no Auto da Compadecida e no Auto da Barca do

Inferno tendo em vista tambeacutem a accedilatildeo dos pares antagocircnicos estuacutepido e saacutebio grosseiro e

sutil escravo das pulsotildees e senhor de si mesmo menos e mais humano

Assim percebe-se que tanto no teatro aristofacircnico quanto no teatro popular de

Ariano Suassuna o autoconhecimento expresso pelas maacutescaras gestos e vozes cocircmicas

implica tambeacutem no conhecimento da condiccedilatildeo humana tatildeo bem levada a seacuterio pelos autores e

seus discursos criacuteticos sendo portanto uma nova forma de combinar velhos ingredientes

como o riso frouxo e a voz estridente educadora aacutecida da sociedade ateniense que encontra

espaccedilo semacircntico atraveacutes dos gestos e maacutescaras que se organizam em uma nova composiccedilatildeo

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natildeo soacute da cena teatral mas da inteligecircncia de autores que pensam a sociedade para aleacutem das

mazelas das injusticcedilas vivenciadas impostas pelo estado de guerra

Nesse ambiente muacuteltiplopolifocircnico observamos que a ldquovoz do poetardquo os gestos

e as maacutescaras satildeo fundantes da estrutura do discurso educativo e denunciador formado a

partir da presenccedila de vaacuterias vozes como a do proacuteprio poeta que tem sido um tema de grande

interesse para muitos estudiosos e para todos que se deparam com a problemaacutetica da

identificaccedilatildeo desta quando articulada agrave formaccedilatildeo dos duplos do poeta dentro da Comeacutedia

Antiga perceptiacutevel nas peccedilas Acarnenses de Aristoacutefanes no Auto da Compadecida de

Ariano Suassuna e no Auto da barca do Inferno de Gil Vicente

Por ser uma arte que permanece haacute tantos seacuteculos o teatro desperta curiosidade

acerca de seus primoacuterdios existindo vaacuterias conjecturas e teorias sobre o surgimento da

Comeacutedia Antiga como ambiente extremamente propiacutecio agrave formaccedilatildeo de duplos a partir de

uma seacuterie de elementos presente no mito e culto do deus do teatro Dioniso no qual as vozes

os gestos e as maacutescaras satildeo sobrepostas como causa de equiacutevocos e componentes centrais das

invectivas pessoais ou intrigas transformando-se em acessoacuterios fundamentais para o discurso

moralizante e para alcanccedilar o objetivo maior do a(u)tor a obtenccedilatildeo da paz em Acarnenses de

Aristoacutefanes e a absolviccedilatildeo no Auto da Compadecida de Ariano Suassuna ou na condenaccedilatildeo

das almas em virtude de suas faltas e pecados em vida como esclarece Nemeacutesio (1941) num

ritmo sacral na abordagem vicentina no Auto da Barca do Inferno

Eacute notaacutevel contudo observar que esses elementos frequentemente utilizados por

Aristoacutefanes em suas peccedilas tambeacutem encontram eco na literatura popular de Suassuna Isso

decorre do fato de a obra do pernambucano tambeacutem apresentar uma tessitura textual

atravessada por muacuteltiplas vozes estas representadas pelas diferentes personagens Nesse

processo as obras dos dois autores evidenciam um fenocircmeno recorrente e natural marcado

pela tensatildeo de uma crise profunda denunciada pelos dramaturgos nos discursos de suas

personagens

Assim eacute pertinente que primeiro justifiquemos a escolha das obras citadas visto

que ambas trazem em seus enredos personagens que usam da autoridade conferida pelo poeta

para ressoar seus anseios e indignaccedilotildees atraveacutes do discurso Ao longo das peccedilas Aristoacutefanes e

Suassuna projetam seus duplos de forma que suas proacuteprias vozes possam ser ouvidas

indiretamente por traacutes de cada ato levando o puacuteblico a crer que ouve a voz direta do poeta

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quer atraveacutes do coro do palhaccedilo coreuta da paraacutebase9 ou em personagens protagonistas

como Diceoacutepolis ou Joatildeo Grilo

Atraveacutes dessas personagensautores a voz do dramaturgo eacute projetada pelo riso da

mangofa10 pelos gestos performaacuteticos pelo arremedo poeacutetico eou pelo outro travestido de

a(u)tor accedilotildees perfeitamente justificaacuteveis visto que o cocircmico tem afinidade com a cultura

popular porque utiliza fatos do dia a dia como mateacuteria na representaccedilatildeo de algo atraindo

consequentemente a atenccedilatildeo do leitor ou ouvinte para a obra A verdade eacute que a conduccedilatildeo

cocircmica e moralizante encontra espaccedilo feacutertil em ambas as obras traduzida pela accedilatildeo do poeta a

partir das vozes de seus duplos Diceoacutepolis e Joatildeo Grilo figuras conturbadas em franco

desacordo com a situaccedilatildeo promovida pelos legisladores em Atenas ou na pacata cidade de

Taperoaacute interior nordestino Esses protagonistas descobrem-se em atitude de perfeita

rebeldia conscientes das mudanccedilas advindas de suas atitudes e como heroacuteis cocircmicos satildeo

tambeacutem autores de uma saiacuteda que nem sempre pode ser compartilhada socialmente ou

compreendida

Neste contexto a construccedilatildeo do duplo representa um transbordamento do proacuteprio

poeta um arremedo despadronizado o outro do autor uma imitaccedilatildeo de algo que se pretende

por muitas vezes deter e que retorna fazendo pressatildeo no sentido contraacuterio denunciando as

injusticcedilas e desmandos autorizados pelo poeta com toda a sua pujanccedila Quem natildeo recorda das

figuras ceacutelebres de Diceoacutepolis o duplo cocircmico (matuto) de os Acarnenses (Aristoacutefanes) e de

Joatildeo Grilo e Chicoacute sendo uma espeacutecie de duplo pois representa de forma autorizada a

proacutepria voz do poeta com todas as suas anedotas e os ndash Natildeo sei soacute sei que foi assim ou de

algum outro matuto astuto de nossa tradiccedilatildeo cinematograacutefica ou teatral recriado na literatura

de cordel a partir da influecircncia ibeacuterica ou grega

Diante dessa apropriaccedilatildeo e recuperaccedilatildeo dos mecanismos narrativos da comeacutedia e

de seu caraacuteter atemporal torna-se importante salientar que a Comeacutedia Antiga aleacutem de

construir ldquomuacuteltiplos cocircmicosrdquo apresenta personagens natildeo universais como os que satildeo

caricaturas de pessoas que viveram em Atenas em um momento especiacutefico A obra de

Aristoacutefanes potildee em cena nomes de figuras eminentes da Greacutecia antiga como o de poliacuteticos

9 A paraacutebase eacute uma seccedilatildeo de natureza puramente coral da comeacutedia antiga Na Paraacutebase o coro avanccedilaria em direccedilatildeo aos espectadores e pronunciaria os versos olhando para eles O verbo parabaino aparece doze vezes nas peccedilas de Aristoacutefanes Nas suas demais menccedilotildees significa transgredir um juramento (As Aves vv 331 447 461 Lisiacutestrata vv 235 236 As Mulheres que Celebram as Tesmofoacuterias v 357 Assembleia de Mulheres v 1049) Em As Vespas v 1529 o sentido eacute o de avanccedilar danccedilando mas o contexto em que eacute empregado natildeo eacute parabaacutetico DUARTE Adriane da Silva O dono da voz e a voz do dono a paraacutebase na comeacutedia de Aristoacutefanes Satildeo Paulo Humanitas FFLCH USP 2000308 10 Debique escaacuternio mangaccedilatildeo mangoaccedila mangoccedila mofa zombaria mangofa

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(Cleatildeo e Lacircmaco) pensadores (Soacutecrates) e poetas (Euriacutepides e Eacutesquilo)

A referecircncia a essas personalidades bem como o diaacutelogo com a mitologia a

histoacuteria e o teatro natildeo constituiacutea um problema para a plateia de Aristoacutefanes No entanto para

noacutes leitores de outras geraccedilotildees a percepccedilatildeo de tais referecircncias natildeo eacute assim tatildeo simples ainda

que seja fundamental para a compreensatildeo da comeacutedia

Em Aristoacutefanes Diceoacutepolis que atua na comeacutedia como Joatildeo Grilo no Auto da

Compadecida representa muitos cidadatildeos pois ele eacute a ldquoCidade Justardquo espectador do teatro

participante da assembleia ator ou personagem de Euriacutepides vendedor na sua aacutegora Eacute nesta

interaccedilatildeo criaccedilatildeo e recriaccedilatildeo de discursos que estabelecemos contato com o maior

entendimento da histoacuteria da comicidade a fim de entender os recursos que o comedioacutegrafo

utilizou ao compor seus (duplos) personagens que permanecem por seacuteculos em nossa

tradiccedilatildeo

Vale ressaltar que tudo que acontece na cidade tambeacutem eacute do conhecimento do

poeta que no Auto da Compadecida evidenciado por sua proacutepria construccedilatildeo que obedeceu a

uma ideologia antiga do autor de unir o nacional ao popular para operar as mudanccedilas sociais ndash

em Taperoaacute ndash ou por que natildeo dizer em seu mundo real versejado por suas andanccedilas Para ele

a arte que realmente expressa o paiacutes e o povo brasileiro eacute popular ou baseada no popular uma

arte erudita baseada no popular e em tal concepccedilatildeo de arte estaria a gecircnese de seu teatro no

qual desejava expressar suas raiacutezes e seu povo negando assim os modelos de teatro europeu

como se percebe em sua seguinte fala Queria fazer um teatro que expressasse meu paiacutes e meu povo Aiacute me vi muito naturalmente diante do folheto de cordel essa expressatildeo extraordinaacuteria que o povo brasileiro criou e que eacute o uacutenico espaccedilo cultural onde o povo brasileiro se expressou sem intervenccedilotildees nem deformaccedilotildees que lhe viessem de cima ou de fora O folheto de cordel eacute um universo extraordinaacuterio (SUASSUNA 2001 p 04)

Composto pela recriaccedilatildeo criacutetica e por possuir um enredo que proporciona ao

leitorespectador o riso a reflexatildeo e a dor Auto da Compadecida eacute uma mistura de trageacutedia e

comeacutedia como nos afirma Geraldo da Costa Matos Auto da Compadecida eacute misto um duplo pois participa da estrutura traacutegica pela oposiccedilatildeo muito radical dos personagens a ponto de natildeo haver acordo entre eles e da cocircmica pelos incidentes e desenlace com a salvaccedilatildeo de todos graccedilas agrave intervenccedilatildeo da Compadecida permanecendo no inferno apenas os democircnios cuja situaccedilatildeo jaacute se encontra definida ao aparecerem ao palco (SUASSUNA 2005 p82)

27

Na verdade apesar de estarem diluiacutedos em toda a peccedila os elementos traacutegicos e

cocircmicos se intercalam com predominacircncia ora de um ora de outro O cocircmico tem presenccedila

mais marcante em torno das accedilotildees do protagonista Joatildeo Grilo e de seu duplo Chicoacute que

enganam os eclesiaacutesticos (Primeiro Ato) o padeiro e a mulher (Segundo Ato) atraveacutes das

mentiras que criam com o objetivo de ganhar algum trocado ou simplesmente para vingar-se

de seus exploradores

As marcas do traacutegico se tornam mais salientes a partir da metade do segundo ato

com a entrada de Severino do Aracaju travestido de mendigo e do Cangaceiro Estes dois se

opotildeem aos demais personagens uma vez que entram em cena para roubar e acabam

provocando a morte de todos que estatildeo na igreja Na cena do julgamento a oposiccedilatildeo entre as

personagens torna-se ainda mais brusca pois se veem de um lado as figuras celestiais e de

outro as figuras demoniacuteacas natildeo havendo acordo entre elas

Eacute justamente nesse abrir e fechar de cortinas que o teatro aristofacircnicosuassuniano

nos proporciona enquanto espectadores uma visatildeo amplamente criacutetica das accedilotildees humanas

seja pelo desejo pessoal injuacuteria ou pela proacutepria paroacutedia que tatildeo bem se propotildee ao

convencimento do puacuteblico Assim concordamos com Brait (1985) ao referir agrave teoria

desenvolvida por Aristoacuteteles em sua poeacutetica sobre os dois pontos essenciais dos personagens

uma vez que o primeiro ponto define o personagem como reflexo da pessoa humana e o outro

concebe o personagem como construccedilatildeo baseada em leis particulares preacute-existentes no texto

Se quisermos saber alguma coisa a respeito de personagens teremos de encarar frente a frente agrave construccedilatildeo do texto social a maneira que o autor encontrou para dar forma agraves suas criaturas e aiacute pinccedilar a independecircncia a autonomia e a ldquovidardquo desses seres de ficccedilatildeo (BRAIT 1985 p11)

Pode-se observar que esses dois pontos se completam estabelecendo bases para a

criaccedilatildeo das personagens Diceoacutepolis e Joatildeo Grilo tanto em Acarnenses como no Auto da

Compadecida a partir do olhar atento do(s) autor(es) jaacute que eles sofrem pela aplicaccedilatildeo das

leis preacute-existentes tanto na sociedade real quanto na ficccedilatildeo sem perder o caraacuteter denunciador

e intencional proposto pelo criador intriacutenseco agraves suas criaturas

Portanto tanto em Acarnenses quanto no Auto da Compadecida o vieacutes cocircmico

utiliza a irreverecircncia para tratar e relatar as dificuldades as opiniotildees e as injusticcedilas da

sociedade de maneira direta e aberta e deste modo se contrapotildee agraves regras sociais que exigem

boas maneiras ou padratildeo que jamais seraacute alvo da comeacutedia

28

A comeacutedia eacute o oposto da trageacutedia pois se traduz no uso do riso que faz

ultrapassar os limites da seriedade criando novas e criacuteticas hipoacuteteses e questionamentos sobre

a realidade denunciando os viacutecios erros morais e atitudes irregulares de indiviacuteduos de uma

classe aleacutem de servir para criticar a sociedade dos corrompidos dos inferiores de maneira

camuflada e irreverente Desta forma pode-se afirmar que a performance cocircmica da qual o

riso a maacutescara o gesto e a voz fazem parte constitui-se de forma implacaacutevel em Aristoacutefanes

e Suassuna como arma para a exposiccedilatildeo ao ridiacuteculo e a exposiccedilatildeo de algo ou algueacutem ao

ridiacuteculo natildeo seraacute bem visto perante as regras e as pessoas da sociedade como o proacuteprio

dramturga citando Moliegravere afirmava ldquoNatildeo existe tirania que resista a gargalhadas que lhe

deem trecircs voltas em tornordquo

11 A comeacutedia aristofacircnica

Castigat ridendo mores 11

Devo de iniacutecio chamar a atenccedilatildeo do empenhado leitor que com grande causa e

sem gabaccedilatildeo deve compreender as peripeacutecias dos (anti)heroacuteis que ora apresento entre o curto

espaccedilo de fechar e abrir as cortinas do teatro-mundo cabe uma especial referecircncia agraves obras

postas em anaacutelise ligadas pelo riso denunciativas em suas eacutepocas separadas

cronologicamente e atemporalmente aqui em completude

Desde a Antiguidade o riso e a comeacutedia tecircm servido para manifestar os viacutecios e

as fraquezas humanas Segundo a perspectiva de Aristoacuteteles na sua Poeacutetica a comeacutedia era a

via por onde passava o homem inferior ndash o nosso anti-heroacutei aquele que natildeo era digno de se

prestar agraves trageacutedias e ser chamado de heroacutei Provavelmente foi na Greacutecia que para noacutes a

representaccedilatildeo do homem inferior surgiu Desde entatildeo aquilo que provoca o riso tem sido no

mais das vezes o que eacute condenaacutevel e baixo na humanidade Em ambas as peccedilas o riso eacute a

arma cocircmica que castiga os costumes que estavam em desacordo com a moral e a partir

disso o riso passa a ser um fenocircmeno sobretudo social e humano e que ocorre somente em

circunstacircncias em que de alguma forma a sociedade vecirc-se ameaccedilada a ponto de criar

situaccedilotildees absurdas rupturas para expurgar os males que decorrem dessa situaccedilatildeo de

encurralamento de total exploraccedilatildeo como demonstradas nas peccedilas a seguir

11 Locuccedilatildeo latina que significa rindo castiga-se os costumes

29

12 Dioniso Matuto Justinoacutepolis um heroacutei embusteiro

Ana Maria Ceacutesar Pompeu (2011) nos esclarece que Acarnenses eacute a primeira

comeacutedia que nos chegou de Aristoacutefanes encenada em 425 aC Ela traccedila um retrato

caricatural da cidade de Atenas num periacuteodo de crise das instituiccedilotildees democraacuteticas

relacionado diretamente com a guerra do Peloponeso (431 aC -404aC) Eacute a primeira

comeacutedia que conservamos do seu autor como tambeacutem da Comeacutedia Antiga e define-se como

uma peccedila de tema poliacutetico no sentido moderno inspirada na administraccedilatildeo e na experiecircncia

coletiva de uma Atenas que vive plenamente o seu periacuteodo democraacutetico

O tiacutetulo da peccedila refere-se aos habitantes do demos 12 de Acarnas ex-combatentes de

Maratona que tinham apoiado a guerra contra Esparta por as suas terras terem sido saqueadas

pelos guerreiros lacedemocircnios O caraacuteter didaacutetico do texto eacute expresso pelo proacuteprio autor nos

versos 500-501 (p92) ldquoPois o que eacute justo a comeacutedia tambeacutem cunhece Eu vou falaacute coisas

terrive mas justardquo Aleacutem do caraacuteter didaacutetico da comeacutedia aristofacircnica percebe-se tambeacutem a

presenccedila de nomes de alguns personagens que tecircm uma significaccedilatildeo alegoacuterica Diceoacutepolis o

personagem principal significa cidade justa Anfiacuteteo eacute um nome divino e de alguns poliacuteticos e

legisladores da eacutepoca

O autor de Acarnenses constroacutei a sua peccedila a partir de Atenas pintada em funccedilatildeo

do proacuteprio fluir histoacuterico assolada pela guerra O eixo central da comeacutedia eacute a relaccedilatildeo entre o

puacuteblico e o privado alimentada pela disputa entre belicistas e pacifistas quanto agrave guerra pelo

que a sua mensagem eacute poliacutetica sendo o povo ateniense representado como um bando de

loucos e a democracia como uma farsa

A peccedila comeccedila com DiceoacutepolisJustinoacutepolis um camponecircs forccedilado a migrar para

a cidade onde vive em condiccedilotildees precaacuterias e que aguarda a reuniatildeo da asssembleia onde o

tema da discussatildeo de um tratado de paz vai ser deliberado Vendo a praccedila vazia lamenta a

natildeo participaccedilatildeo do povo na reuniatildeo da assembleia ficando a decisatildeo entregue nas matildeos de

poliacuteticos profissionais que por regra eram demagogos revelando uma contradiccedilatildeo do sistema

democraacutetico os destinos da comunidade cujo governo pertence a todos (puacuteblico) fica afinal

entregue ao cuidado de poucos (privado) deixando a porta aberta a todo o arbiacutetrio e

venalidade

12 Na Greacutecia Antiga o demo (em grego δῆμος) era uma subdivisatildeo da Aacutetica regiatildeo da Greacutecia em torno de Atenas Os demos jaacute existiam como meras subdivisotildees de terra nas aacutereas rurais desde o seacuteculo VI aC

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Comeccedilada a assembleia Ambiacutedeus faz a proposta de paz mas eacute rechaccedilado com

ordem de prisatildeo DiceoacutepolisJustinoacutepolis tenta reverter a situaccedilatildeo mas sem sucesso dizendo

Oacute priacutetanes vocecircs tatildeo fazendo mal pra assembleia Arrastando o homem que queria fazecirc treacuteguas Pra noacutes e dependuraacute os escudo (ARISTOacuteFANES POMPEU 2014 p67)

Este breve momento em que apenas dois indiviacuteduos se manifestam a favor da

discussatildeo de um problema central no contexto ateniense agindo no interesse do bem comum

da cidade eacute logo apagado abafado pelo conselho que desviaraacute a sua atenccedilatildeo para os

embaixadores que chegam da Peacutersia

DiceoacutepolisJustinoacutepolis protagoniza a voz da razatildeo numa sociedade dominada por

loucos e safados que teimam em alimentar a guerra com Esparta como pretexto para

enriquecerem agrave sua custa ficando ele cada vez mais miseraacutevel e pobre Diceoacutepolis

desmascara em seguida a funccedilatildeo das missotildees diplomaacuteticas persas na figura de

Pseudaacutertabas 13 como fraudes pois vem prometer ouro com a conivecircncia dos embaixadores

atenienses como manobra de diversatildeo apenas

Com efeito a sua ostentaccedilatildeo agrave custa do dinheiro puacuteblico que contrasta com a

pobreza da maioria dos cidadatildeos desmente a veracidade da proposta que fazem por isso eacute

com palavras acerbas - ldquocus molesrdquo- que os incita a natildeo caiacuterem no logro Diceoacutepolis eacute entatildeo

silenciado a reuniatildeo eacute suspensa e iraacute fazer-se agrave porta fechada no Conselho (Pritaneu) Com

este estratagema o direito de todos participarem na tomada de decisatildeo eacute abolido confinando

a decisatildeo poliacutetica ao segredo dos gabinetes Compreendendo que a guerra natildeo lhe conveacutem

DiceoacutepolisJustinoacutepolis conclui uma paz privada com o inimigo libertando-se da loucura da

cidade Assim fugindo de uma ordem puacuteblica corrompida procura um espaccedilo em que possa

ser o senhor absoluto de si proacuteprio Os acarnenses ficam enfurecidos ao descobrirem que

Diceoacutepolis fez um acordo de paz com os lacedemocircnios apedrejando-o

Entatildeo ele tenta com palavras sensatas expor suas razotildees defender-se das

acusaccedilotildees que lhe satildeo movidas mas o seu direito de defesa eacute contestado com ameaccedilas de

ainda maior violecircncia por parte do coro dos Acarnenses

13 ldquopseucircdosrdquo ldquofalsordquo artaacutebe ldquomedida persardquo Falsidacircmetro in Traduccedilatildeo Matuta Cearense de Dyscolos o Enfezado de Menandro POMPEU e SANTOS Cultura e Traduccedilatildeo v 5 n 1 (2017) ISSN 2238-9059 Disponiacutevel em httpperiodicosufpbbrojs2indexphpct 2017

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ldquoCoro Quero eacute morrecirc seu ti iscutaacute Diceoacutepolis Num faccedila isso natildeo oacute Acaacuternicos Coro Tu vai morrecirc fica sabenrsquoagorardquo (ARISTOacuteFANES POMPEU 2014 p81-82)

A democracia encontra-se subvertida na sua essecircncia quando a violecircncia

imperante impede que o criteacuterio de resoluccedilatildeo dos conflitos seja resolvido com recurso agrave livre

discussatildeo em condiccedilotildees igualitaacuterias no espaccedilo puacuteblico Eacute o que estaacute acontecendo primeiro

na assembleia depois eacute-lhe negado o direito de defesa contra as acusaccedilotildees dirigidas a um

cidadatildeo finalmente eacute silenciado e suspenso a sua proposta de discussatildeo

DiceoacutepolisJustinoacutepolis eacute o proacuteprio Aristoacutefanes criador e criatura autorizado a

assumir o risco de morte proclama o que julga ser justo para a cidade e denuncia a retoacuterica

fraudulenta dos oradores que conquistam o povo com o sortileacutegio encantatoacuterio do seu

discurso Taquioia este tronco aqui E o home que vai falaacute eacute deste tamanhin Tenha cuidado natildeo num vocirc me armaacute de iscudo Vocirc falaacute em favocirc dos lacedemocircmios o qrsquoeu acho Mas tenho muito que temecircPois os modo Dos lavradocirc conheccedilo eu eles fica muito alegre Se pra eles e pra cidade fizeacute elogio algum Home inrolatildeo com justiccedila ou sem ela E aiacute num se datildeo conta que tatildeo seno eacute vindido E dos veacuteio tambeacutem conheccedilo as alma que Num bota a vista noutra coisa mas soacute em mordecirc cum voto Euzin aqui sei o que sofri nas matildeo de Cleatildeo Por causa da cumeacutedia do ano passado Pois teno me arrastado pro tribunal Ele me caluniava e cuspia mintiras contra mim Era uma cachoecircra e me banhava que quase Murri afogado na cusparada de insultos Agora intatildeo antes de falaacutedecircxeprimecircro Qacuteeu me vista como o mais miserave de tudin (ARISTOacuteFANES POMPEU 2014 p84)

Na parte final da peccedila o Coro modula a sua posiccedilatildeo ao final da intriga vindo a

reconhecer o serviccedilo que o poeta prestou agrave comunidade e que o tratado de paz eacute o mais justo

para a cidade pois restabeleceraacute o valor da democracia para as cidades desmascarando os

maus costumes e seus legisladores exploradores do povo

Vale ressasltar que o poeta usa uma histoacuteria cocircmica e simples como enredo a

proacutepria histoacuteria passa a ser um mero pretexto para o desenvolvimento cocircmico em Acarnenses

jaacute que a saacutetira eacute um elemento importante e porque natildeo moralizante nesse contexto

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Tatildeo bem quanto Aristoacutefanes Suassuna elaborou seus personagens seguindo um

esterioacutetipo social No enredo da comeacutedia aristofacircnica encontramos dois elementos (1) o (anti)

heroacutei (2) o esquema fantaacutesticomoralizante

13 O (anti)heroacutei Aristofacircnico

A figura do heroacutei tanto na literatura quanto fora dela eacute laureada com uma

tragicidade iminente o traacutegico que no contexto da mitologia eacute muito mais do que a

encarnaccedilatildeo da perda do sofrimento e das incertezas humanas no fim o traacutegico eacute o

eminentemente humano contra o divino a lembranccedila irrestrita da pequenez ceacutelere e irasciacutevel

da existecircncia humana

Jaacute a comeacutedia grega sobretudo a de Aristoacutefanes nos remete da forma mais

evoluiacuteda a uma concepccedilatildeo de existecircncia que prevecirc de forma profeacutetica que nem tudo o que eacute

humano ou divino deve ser levado muito a seacuterio pois no final tudo eacute poacute a vida um suspiro no

vazio das eras portanto natildeo se pode levar nada muito a seacuterio numa clara conotaccedilatildeo Dioniacutesia

O camponecircs ateniense como sujeito histoacuterico e tambeacutem como personagem do

teatro cocircmico de Aristoacutefanes foi figura central e essencial no decorrer do seacuteculo V a C

desde que sua posiccedilatildeo eacutetico-social permaneceu intacta frente aos sofrimentos beacutelicos de

Atenas pelo que tomou um caraacutecter de idealizaccedilatildeo tanto em sua posiccedilatildeo de cidadatildeo como nas

personificaccedilotildees da comeacutedia aristofaacutenica

O heroacutei de Aristoacutefanes natildeo eacute limitado ao desejo do puacuteblico somente de riso ou

excessos ele tem a grandeza de contradizer o estabelecido de conduzir o ouvinte a um

caminho de excesso que educam de entendimento proferido por um agente que carregado de

um heroiacutesmo simples jamais seraacute unilateral ou submisso E toda essa inquietaccedilatildeo que

provoca a presenccedila desse duplo para a Comeacutedia Antiga eacute uma ferramenta que constroacutei o

heroacutei cocircmico aristofacircnico segundo Whitman (1969 p 25) Essa unidade de autoconceito e autoafirmaccedilatildeo confere ao espiacuterito heroacuteico uma espeacutecie de pureza mas dificilmente eacute o que poderiacuteamos chamar de coerecircncia pois a qualquer momento o heroacutei pode desrespeitar todas as expectativas em deferecircncia aos misteacuterios particulares de sua proacutepria vontade Ele eacute pode-se dizer consistente consigo mesmo mas como ele cria a si mesmo agrave medida que age o resultado natildeo pode ser conhecido de antematildeo nem mesmo por si mesmo O heroiacutesmo eacute como se pode dizer dirigido pelo seu interior e embora as direccedilotildees possam diferir o princiacutepio vale as aparecircncias agraves vezes ao contraacuterio nenhuma abstraccedilatildeo jamais poderaacute controla o heroacutei em busca da totalidade E eacute precisamente isso que os heroacuteis de Aristoacutefanes satildeo 14

14 14This unity of self-conception and self-assertion gives to the heroic spirit a kind of purity but hardly what we would call consistency for at any moment the hero may flout all expectation in deference to the private

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Aristoacutefanes como ningueacutem conferiu ao seu (anti)heroacutei a figura simples de um

homem rural idealmente eacutetico e poliacutetico que a polis ateniense precisava para se reconstruir e

se transformar Essa percepccedilatildeo do camponecircs em Aristoacutefanes daacute uma indicaccedilatildeo dos eventos

tanto do cidadatildeo quanto da cidade e daacute ao leitor uma leitura histoacuterica diferente dos eventos

que Atenas sofreu durante a Guerra do Peloponeso

O (anti)heroacutei aristofacircnico como DiceoacutepolisJustinoacutepolis eacute tipificadamente matuto

que se angustia diante de alguma caracteriacutestica perturbadora da sociedade contemporacircnea por

exemplo o prolongamento da guerra os poliacuteticos corruptos que dominam a ecclesia a

loucura das demos atenienses Incapaz de convencer os outros de sua loucura o heroacutei sai por

conta proacutepria colocando em praacutetica algum tipo de esquema fantaacutestico que pretende acertar as

coisas

Diceoacutepolis reconhece as consequecircncias que prejudicaram a cidade e que tambeacutem

foram percebidas por Aristoacutefanes que com sua poesia sua repercussatildeo e sinceridade

colocou em cena o Cidadatildeo-espectador viacutetima direta da decadecircncia e que teraacute discernimento

sobre as decisotildees dos estrategistas e governadores com os atos de guerra

Segundo Fisher (1993 p33) o (anti)heroacutei de Acarnenses tem sua accedilatildeo construiacuteda

nos vaacuterios lugares apresentados na peccedila o que levou Aristoacutefanes a estabelecer relaccedilatildeo com as

vaacuterias personalidades assumidas por DiceoacutepolisJustinoacutepolis dentre as quais ele cita a de

espectador de festivais dramaacuteticos e a de lavrador

Revelado para o puacuteblico Justinoacutepolis que vive vaacuterios outros papeacuteis representa o

justo da cidade ou o cidadatildeo justo Direto e conhecedor dos truques que o levariam a

convencer a assembleia apresenta-se a Euriacutepides pela proacutepria voz dizendo seu nome e o

demos a que pertence Mermo assim Pois num vocirc mimbora vocirc eacute bater na porta Euriacutepides Euripidizin Me ouve se alguma vez tu ocircviu um home Justinoacutepolis de Colides te chama eu (ARISTOacuteFANES POMPEU 2014 p86)

Entretanto rapidamente o espectador toma conhecimento da intenccedilatildeo de

Justinoacutepolis que eacute se transformar em outra pessoa Para isso ele pede ao tragedioacutegrafo um mysteries of his own will He is one might say consistent with himself but since he creates himself as he goes the result cannot be foreknown even perhaps by himself Heroism is one might say inner-directed and though the directions may differ the principle holds appearances sometimes to the contrary no abstraction ever controls the hero in quest of wholeness And that is precisely what Aristophanes heroe sare (Traduccedilatildeo nossa)

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trapo (= κιον) usado por atores que interpretam mendigos em suas trageacutedias pois ele vai fazer

um discurso ldquoPois tenho que falaacute pro coro um leriado grande Ele traz a morte sacuteeufalaacute malrdquo

(vv 426-427) E para convencer Diceoacutepolis acredita que ldquoEacute que tenho que achaacute que socirc um

ismoleu hojerdquo (vv440)

Portanto o espectador percebe que Justinoacutepolis se transforma em Teacutelefo

incorporando a personalidade de Teacutelefo mesmo que essa incorporaccedilatildeo seja planejada e usada

como arma argumentativa Assim como Teacutelefo Justinoacutepolis eacute o homem do convencimento

mesmo que para convencer ele pareccedila deixar de ser ele mesmo

Em Acarnenses o enredo eacute costurado pelas artimanhas do (anti)heroacutei quando faz

uma paz privada com os espartanos para que ele possa desfrutar das becircnccedilatildeos da paz que foram

perdidas com o iniacutecio da guerra

14 Auto da Compadecida Uma estoacuteria de outras estoacuterias

Os instrumentos culturais mais relevantes no enredo satildeo as crenccedilas e a literatura

de cordel da realidade regional brasileira mais precisamente da realidade regional nordestina

A narrativa do Auto da Compadecida eacute fundamentada em romances e narraccedilotildees populares

Composta de elementos que expotildeem a cultura popular do homem do Nordeste Ariano

Suassuna aborda assuntos universais atraveacutes de figuras populares que mostram integramente

a figura do povo nordestino um povo oprimido tanto por aspectos climaacuteticos quanto sociais

O autor faz ainda uso do humor e da criacutetica ao falar sobre a realidade do homem nordestino

O Auto da Compadecida (1955) de Ariano Suassuna eacute uma peccedila teatral em

forma de auto (gecircnero da literatura que trabalha com elementos cocircmicos e tem intenccedilatildeo

moralizadora) Eacute um drama nordestino apresentado em trecircs atos Esta antologia reuacutene trecircs

folhetos dos quais Ariano Suassuna tirou os motivos e peripeacutecias de seu Auto da

Compadecida Embora o autor paraibano tenha se utilizado de muitos temas populares em sua

peccedila estes poemas satildeo as fontes principais como nos assegura Tavares (2004 p191)

Disse um criacutetico

Como foi que o senhor teve aquela ideacuteia do gato que defeca dinheiro Ariano respondeu Eu achei num folheto de cordel O criacutetico E a histoacuteria da bexiga de sangue e da musiquinha que ressuscita a pessoa Ariano lsquoTirei de outro folhetorsquo O outro E o cachorro que morre e deixa dinheiro para fazer o enterro Ariano lsquoAquilo

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ali eacute do folheto tambeacutem rsquo O sujeito impacientou-se e disseAgora danou-se mesmo Entatildeo o que foi que o senhor escreveu E Ariano lsquoOacute xente Escrevi foi a peccedilarsquo

De acordo com Braulio Tavares (TAVARES 2004 p 104) ldquoAriano escolheu o

folheto como a ceacutelula-matildee de uma nova maneira de fazer arte de enxergar o Nordeste de

enxergar o mundo e de recriar suas formasrdquo A utilizaccedilatildeo desse tipo de reescrita a partir de

textos populares compreende uma escrita mais aproximada do povo do Romanceiro

Nordestino transmitido oralmente eou atraveacutes dos folhetos de cordel

A grande importacircncia do folheto no meu entender eacute que o folheto eacute o uacutenico espaccedilo em que o povo brasileiro se expressou sem influecircncias e sem deformaccedilotildees que lhe viessem de cima de fora Aqui ele se expressou como ele eacute Aqui natildeo imitou a Franccedila natildeo imitou a Inglaterra nem os Estados Unidos O povo brasileiro aqui se expressou como ele eacute Entatildeo essa eacute a grande liccedilatildeo do folheto em feira (SUASSUNA apud TAVARES 2007 p 26)

Segundo Vassalo (1993) a obra se divide em trecircs episoacutedios e os folhetos

utilizados na construccedilatildeo arquitetocircnica da obra estatildeo distribuiacutedos de forma arquitetocircnica

O primeiro ato se baseia em O enterro do cachorro fragmento do folheto O dinheiro de Leandro Gomes de Barros o segundo na Histoacuteria do cavalo que defecava dinheiro do mesmo artista o terceiro amalgama O castigo da soberba de Anselmo Vieira de Souza e A peleja da Alma de Silvino Pirauaacute Lima ambos retomados pelo entremez de Suassuna O castigo da soberba Proveacutem ainda do romanceiro a cantiga de Canaacuterio Pardo utilizada como invocaccedilatildeo de Joatildeo Grilo a Maria o nome Compadecida e a estrofe com que o Palhaccedilo encerra o espetaacuteculo pedindo dinheiro satildeo tomados ao folheto O castigo da soberba(VASSALO In CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA 2000 p 156)

Liacutegia Vassalo aproxima no ensaio citado o teatro de Suassuna ao o teatro

medieval cabe ressaltar que mais adiante nos ocuparemos no ATO V do teatro de Gil

Vicente quando vamos tratar do julgamento das almas no inferno alegoacuterico em diaacutelogo

alinhado entre o autor portuguecircs e Ariano Suassuna

Sobre o auto de Suassuna vale ressaltar que conteacutem elementos do cordel

brasileiro e estaacute inserido no gecircnero da comeacutedia aproximando-se dos traccedilos do barroco

catoacutelico brasileiro O autor faz uso de uma linguagem que privilegia o regionalismo atraveacutes da

caracterizaccedilatildeo das particularidades do falar do homem do sertatildeo Nordeste

A peccedila foi escrita em 1955 e encenada pela primeira vez em 1956 Anos mais

tarde foi adaptada para a televisatildeo e para o cinema em 1999 e 2000 respectivamente

Na peccedila Ariano Suassuna trata de maneira leve e com humor do drama vivido

pelo povo nordestino acuado pela seca atormentado pelo medo da fome e em constante luta

contra a miseacuteria Traccedila o perfil dos sertanejos nordestinos que estatildeo submetidos agrave opressatildeo e

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subjugados por famiacutelias de poderosos coroneacuteis donos de terra Nesse contexto o personagem

de Joatildeo Grilo representa o povo oprimido que tenta sobreviver no sertatildeo utilizando a uacutenica

arma do pobre a palavra - astuacutecia

Fica evidente o cunho de saacutetira moralizante da peccedila atraveacutes das caracteriacutesticas de

seus personagens Assim como em Acarnenses de Aristoacutefanes figuras como padeiro e a

mulher que satildeo avarentos que deixam passar necessidade o empregado enquanto cuidam

demasiadamente de um cachorro de estimaccedilatildeo o padre e o bispo gananciosos que utilizam

da autoridade religiosa enquanto legisladores da Igreja para enriquecerem satildeo levados ao

conhecimento do puacuteblico

De forma bem cocircmica e sem as convenccedilotildees que soacute a comeacutedia sabe quebrar todos

estes satildeo condenados ao purgatoacuterio e passam a depender da ajuda astuciosa do roceiro Joatildeo

Grilo poeta travestido e da Compadecida na defesa do coletivo Na obra O riso Henri

Bergson (1987 p 19-21) salienta que o cocircmico eacute um fenocircmeno exclusivamente humano e

que este se dirige agrave inteligecircncia agrave denuacutencia

A partir dessa observaccedilatildeo Suassuna coloca o leitorespectador em contato com

seu outro o anti-heroacutei duplamente qualificado a defesa de seus algozes o arremedo cocircmico

resultado de uma apariccedilatildeo para a qual o proacuteprio autor emprestou seu discurso social No Auto

da Compadecida a dupla Joatildeo Grilo e Chicoacute em certa medida satildeo uma uacutenica personagem

ou seja uma personagem dupla Joatildeo Grilo eacute a representaccedilatildeo do intelecto o mentor de todas

as artimanhas eacute o autor presente na ausecircncia discursiva que por vezes permeia o texto

somente pelos gestos

Enquanto Chicoacute o duplo de Joatildeo Grilo eacute a forccedila fiacutesica o corpo ao mesmo tempo

bobo e bufatildeo o cuacutemplice perfeito o outro de Joatildeo ambos comparados agrave dupla Bom de Laacutebia

e Tudo Azul (na traduccedilatildeo de Adriane Duarte 2000) de As Aves de Aristoacutefanes e por que natildeo

dizer do proacuteprio poeta que acontece sem iniacutecio meio ou fim porque tudo que eacute justo tambeacutem

eacute de interesse da cidade e do poeta e da Comeacutedia como disse Diceoacutepolis no seu discurso em

Acarnenses Por quecirc Natildeo sei como diria Chicoacute Soacute sei que foi assim 15 Joatildeo Grilo um heroacutei popular e picaresco

O romance picaresco que segundo o proacuteprio Ariano Suassuna sempre o

influenciara surgiu na Espanha e infestou toda a Europa abrange um conjunto de textos

narrativos publicados na maioria dos casos entre 1552 e 1646 Eacute um gecircnero que reuacutene obras

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que refletem uma visatildeo irocircnica e pessimista do homem e uma perspectiva ceacutetica em relaccedilatildeo agrave

sociedade espanhola de sua eacutepoca

Segundo Gonzaacutelez (1994) todas as obras desse periacuteodo constituem o reflexo da

tensatildeo provocada pelo confronto entre o indiviacuteduo e uma sociedade extremamente opressora

Portanto para tornar mais clara a origem da picaresca eacute mister considerar o contexto

histoacuterico-poliacutetico-social em virtude de uma das maiores novidades apresentadas pelo gecircnero

a forte vinculaccedilatildeo da ficccedilatildeo com a histoacuteria

O estudo das circunstacircncias que rodeavam os autores deste gecircnero conduz

naturalmente a uma reflexatildeo sobre a sociedade barroca espanhola e portuguesa com atenccedilatildeo

aos autores Calderoacuten de La Barca (1600-1681) e Gil Vicente (1465-1536) Gonzaacutelez (1994 p

21) apresenta uma sociedade na qual predominam as injusticcedilas Apenas uma minoria - uma

nobreza de sangue corrupto e um clero igualmente decadente - teria acesso ao poder e a bens

materiais Sob essas circunstacircncias o povo ignorante supersticioso e fruto de abusos vivia

na miseacuteria

O romance picaresco surge pois como uma saacutetira mordaz que atinge todo o

sistema poliacutetico econocircmico social e moral Constituiacuteram uma rica fonte de material

romanesco situaccedilotildees iacutempares tais como a expulsatildeo dos mouros de Castela e de Leatildeo e a

questatildeo dos cristatildeos-novos considerados estrangeiros no seu proacuteprio paiacutes Os ataques contra

os viacutecios que infestavam a corte espanhola tecircm tambeacutem como alvo ldquoa honrardquo externa e social

ditada pelo poder do dinheiro Ironicamente o piacutecaro eacute o protoacutetipo do homem sem honra

enfim o entretenimento perfeito para os meandros das classes privilegiadas

A apariccedilatildeo da contestadora imagem do piacutecaro em princiacutepio reverte a imagem do

heroacutei das novelas de cavalaria - tem-se uma inversatildeo do modelo heroacuteico que passa a ser anti-

heroacuteico Gonzaacutelez (1994 p 56) assinala que o piacutecaro

Saindo de estratos baixos revela um aspecto pungente o da luta pela vida Solto no mundo tem de resolver por si mesmo os problemas o que o leva a tornar-se frequentemente ladratildeo Estando sempre exposto ao pior escapa das situaccedilotildees difiacuteceis por seu engenho e astuacutecia

Configura-se assim na novela picaresca um traccedilo permanente em Acarnenses e

no Auto da Compadecida a subversatildeo do (anti)heroacutei idealizado Entretanto cabe-nos aqui

salientar que haacute uma diferenccedila uma vez que na picaresca o piacutencaro natildeo tem qualquer projeto

social ao contraacuterio de Justinoacutepolis e Joatildeo Grilo

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151 O (anti)heroacutei Suassuniano

Joatildeo Grilo nasceu da cultura popular atraveacutes do produto oral e segundo o proacuteprio

Ariano Suassuna foi produto de vaacuterios produtos do que viu ouviu e leu nos folhetos de

cordel Nas palavras de Abreu (1999) a literatura de folhetos nordestinos eacute uma das

expressotildees mais brasileiras usual na regiatildeo Nordeste e em regiotildees que acomodam os

migrantes de origem nordestina

Com as grandes navegaccedilotildees atracaram no Brasil trovadores e artistas populares

que expuseram em seus pertences culturais as origens dessa literatura Eacute uma literatura aacutegil

que alcanccedila as mais diversas temaacuteticas com objetivos variados com ampla divulgaccedilatildeo e

anuecircncia social tanto em meios populares quanto nas academias

O folheto eacute um canal popular de cooperaccedilatildeo na vida do paiacutes que concede a naccedilatildeo

discutir a realidade expressar suas exigecircncias e anseios Conforme Zumthor (2000) embora

sejam impressos os folhetos designam-se por sua tradiccedilatildeo oral seus vestiacutegios de oralidade e

pela razatildeo de serem produzidos para serem proferidos lidos ou declamados cantados em voz

alta para um enorme nuacutemero de indiviacuteduos mesmo o iletrado os ignorantes aspectos comuns

agraves culturas que priorizam a oralidade

Foi num folheto de gracejo que Ariano Suassuna encontrou o personagem-

siacutembolo de sua dramaturgia As Proezas de Joatildeo Grilo (ver trecho abaixo) histoacuteria escrita em

1932 por Joatildeo Ferreira de Lima trazia como protagonista o ceacutelebre amarelinho oriundo dos

contos populares portugueses que no processo de aculturaccedilatildeo ganhou caracteriacutesticas

idecircnticas agraves de outro famoso espertalhatildeo de origem ibeacuterica Pedro Malazarte como se pode

perceber no cordel de Joatildeo Martins de Athayde (1951)

As Proezas de Joatildeo Grilo

Joatildeo Grilo foi um cristatildeo que nasceu antes do dia criou-se sem formosura mas tinha sabedoria e morreu depois da hora pelas artes que fazia

E nasceu de sete meses chorou no bucho da matildee quando ela pegou um gato ele gritou natildeo me arranhe natildeo jogue neste animal que talvez vocecirc natildeo ganhe Na noite que Joatildeo nasceu

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houve um eclipse na lua e detonou um vulcatildeo que ainda continua naquela noite correu um lobisome na rua Poreacutem Joatildeo Grilo criou-se pequeno magro e sambudo as pernas tortas e finas e boca grande e beiccediludo no siacutetio onde morava dava notiacutecia de tudo Joatildeo perdeu o seu pai com sete anos de idade morava perto de um rio Ia pescar toda tarde um dia fez uma cena que admirou a cidade (ATHAYDE 1951 p35)

Assim o heroacutei cordelesco forjado por Suassuna representado por Joatildeo Grilo eacute

tambeacutem um produto social e nesses termos eacute o piacutecaro descrito por Kothe (2000) como a

personagem com caracteriacutesticas daquilo que hoje se chama malandragem beira o traacutegico e se

assume como um eacutepico agraves avessas Como piacutecaro de Kothe Joatildeo Grilo no Auto da

Compadecida e Diceoacutepolis em Acarnenses satildeo de extraccedilatildeo social baixa e se comportam de

modo pouco elevado mas se elevam literariamente e contam ateacute mesmo com a complacecircncia

e a simpatia do leitor As duas personagens representam o modo pelo qual a classe baixa

consegue entrar no picadeiro da literatura

152 A tensatildeo tragicocircmica do (anti)heroacutei no Auto da Compadecida

Segundo Deserto (1995) a trageacutedia e a comeacutedia mantecircm entre si uma relaccedilatildeo de

alguma ambiguidade em que proximidade e afastamento parecem jogar em simultacircneo

importante papel Podemos evocar como representaccedilatildeo simboacutelica desta relaccedilatildeo a imagem

que o tempo veio a tornar quase emblema do proacuteprio teatro das duas maacutescaras a traacutegica e a

cocircmica denunciantes do sofrimento e do riso

O leitor atento percebe que a comeacutedia causada pelos quiprocoacutes 15e pelas confusotildees

no Auto da Compadecida natildeo representa a cura da trageacutedia vivenciada por Joatildeo Grilo nem a

15 Quid pro quo eacute uma expressatildeo latina que significa tomar uma coisa por outra Faz referecircncia no uso do portuguecircs e de todas as liacutenguas latinas a uma confusatildeo ou engano Tem origem medieval tendo sido usada na sua origem para se referir a um engano no uso de termos latinos num texto Tambeacutem pode significar isso por aquilo

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mera atenuaccedilatildeo futura de seus efeitos Joatildeo Grilo o heroacutei da peccedila eacute um misto de uma tensatildeo

que se identifica com o heroacutei cordelesco e desta forma natildeo estaacute atrelado somente aos

aspectos da proeza e da glorificaccedilatildeo uma vez que estaacute associado agrave ideia da fraqueza na

constituiccedilatildeo dos valores humano

Assim Joatildeo Grilo natildeo estaacute contemplado pela trajetoacuteria do heroacutei prodigioso e

honrado pois se orienta pela bandeira da transgressatildeo Joatildeo Grilo eacute a expressatildeo desesperada

do homem que luta contra todas as adversidades mas natildeo consegue evitar a desgraccedila que

vive numa sociedade abalizada pela constante oposiccedilatildeo de duas forccedilas o bem e o mau A

convergecircncia e accedilatildeo dessas forccedilas satildeo responsaacuteveis pela falecircncia do heroacutei fazendo com que

ele mergulhe no territoacuterio escorregadio dos valores

Aristoacuteteles em sua Arte Poeacutetica (2005) conceitua a trageacutedia como a imitaccedilatildeo de

pessoas superiores em accedilatildeo a comeacutedia como a imitaccedilatildeo de pessoas inferiores em accedilatildeo e o

drama como a representaccedilatildeo das pessoas em accedilatildeo Por pessoas superiores entendemos os

heroacuteis que estatildeo entre o humano e o divino possuindo algo de sobrenatural

Ariano Suassuna em sua Iniciaccedilatildeo agrave esteacutetica (2007c) reflete sobre os conceitos

de trageacutedia comeacutedia e drama pensados por Aristoacuteteles ressaltando que outras categorias

fazem parte da trageacutedia como o Belo e ateacute mesmo o Cocircmico Na leitura que faz da Poeacutetica o

escritor percebe o heroacutei como algueacutem dotado de uma alma grande mas natildeo pura Tal ldquoalma

granderdquo eacute percebida mais pelas accedilotildees do que pelas palavras em consonacircncia com o

pensamento aristoteacutelico e no caso de Joatildeo Grilo essa impureza reside em sua proacutepria

personalidade desenhada pela presenccedila de falhas cocircmicas tais como a ambiccedilatildeo a trapaccedila a

alcovitagem a avareza a inveja a vinganccedila e a usura

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SEGUNDO ATO

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2 HUMOR E O RISO ELEMENTOS INDISPENSAacuteVEIS Agrave CENA COcircMICA

ldquoEacute melhor escrever sobre risos do que sobre laacutegrimas pois o riso eacute o apanaacutegio do homemrdquo (Franccedilois Rabelais)

Para muitos antropoacutelogos o riso foi um fator coadjuvante agrave adaptaccedilatildeo da espeacutecie

sendo um ato instintivo e portador de equiliacutebrio frente a situaccedilotildees extremas de abatimento e

que dele depende a sobrevivecircncia da espeacutecie Vladimir Propp (1992) apresenta seis tipos de

riso e alerta para a existecircncia de outros Embora se debruccedilando basicamente sobre o que

chama de riso de zombaria por compreender que ldquoeacute o mais frequenterdquo sendo o ldquotipo

principal de riso humanordquo o teoacuterico atenta para o riso bom o riso maldoso ou ciacutenico o riso

alegre o riso ritual e o riso imoderado Antes de prosseguir nos cabe ressaltar que natildeo nos

ocuparemos das definiccedilotildees de Propp mas do riso como elemento indispensaacutevel agrave cena cocircmica

e de seus reflexos na Comeacutedia e no Auto

Rir eacute o melhor remeacutedio Por essa afirmativa percebemos o poder do riso na vida

da Humanidade Entretanto o humor e o riso satildeo fenocircmenos que ainda natildeo foram elucidados

completamente mas as coisas engraccediladas podem nos dizer muito do que eacute humano visto que

o homem eacute o uacutenico animal que ri

O cocircmico estaacute presente em situaccedilotildees reais de nossas vidasuma vez que todos noacutes

rimos sempre para qualquer situaccedilatildeo que nos leva quase incompreensiacuteveis para o riso

despertando nosso humor Haacute de se considerar que o riso eacute uma parte fundamental dos efeitos

produzidos pelo humor no ser humano e suas muacuteltiplas formas de expressatildeo vatildeo dizer

respeito ao grau de afetaccedilatildeo ou natildeo que tenha causado tal situaccedilatildeo real ou artiacutestica que

apresenta momentos cocircmicos

Em Histoacuteria do riso e do escaacuternio Minois (2003) esquematiza a histoacuteria do riso em

trecircs momentos o divino o diaboacutelico e o humano Os gregos antigos definiriam o riso a

partir de suas noccedilotildees de divindade

Rir eacute participar da recriaccedilatildeo do mundo nas festas dionisiacuteacas nas saturnais acompanhadas de ritos de inversatildeo simulando um retorno perioacutedico ao caos primitivo necessaacuterio agrave confirmaccedilatildeo e agrave estabilidade das normas sociais poliacuteticas e culturais Nas relaccedilotildees sociais o riso eacute vivido como elemento de coesatildeo e de forccedila diante do inimigo como o mostram os risos homeacutericos ou espartanos ele eacute tambeacutem um freio ao despotismo com as bufonarias rituais dos desfiles triunfais em Roma ou as saacutetiras poliacuteticas em Aristoacutefanes eacute por fim um instrumento de conhecimento que desmascara o erro e a mentira como no caso da ironia socraacutetica das zombarias dos ciacutenicos da derrisatildeo dos viacutecios em Plauto ou Terecircncio (MINOIS 2003 p 630)

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Sobre o riso como capacidade para criar o mundo a nossa volta Aristoacuteteles nos

transmite que somente uma democracia poderia tolerar a franqueza das velhas comeacutedias na

democracia o riso se caracteriza por sua forccedila criacutetica e sua accedilatildeo democratizadora Consoante

ao pensamento de Minois o riso busca se livrar do mundo cheio de injusticcedila e substituiacute-lo por

um mundo melhor Cria uma nova realidade que desloca a outra que natildeo pode mais ser

mantida porque perdeu seu significado O riso eacute entatildeo uma libertaccedilatildeo

Apesar de ter sido relegado na Antiguidade o riso continua a desempenhar um

papel de grande importacircncia na vida social O verdadeiro riso ambivalente e universal natildeo

exclui o seacuterio mas o purifica e o completa Purifica-o do dogmatismo da unilateralidade da

esclerose do fanatismo e do espiacuterito categoacuterico do medo e da intimidaccedilatildeo do didatismo do

engenho e das ilusotildees da fixaccedilatildeo sinistra em um uacutenico niacutevel e da exaustatildeo

21 O riso seacuterio-cocircmico em Aristoacutefanes e Suassuna

212 Riso e Comeacutedia

A Comeacutedia e o Auto satildeo gecircneros cujo sucesso eacute medido pela qualidade do humor

promovido pelas personagens em confronto com suas vivecircncias Humor eacute indispensaacutevel para

a arte cocircmica principalmente porque eacute altamente eficaz para convencer em grande parte pois

atrai a atenccedilatildeo e permite a possibilidade de persuasatildeo da plateia

O riso eacute uma reaccedilatildeo puramente fisioloacutegica que pode ser desencadeada por gatilhos

fiacutesicos e natildeo fiacutesicos e eacute observada em humanos desde a infacircncia Em termos de efeitos

somaacuteticos tem sido sugerido que o riso proporciona aliacutevio do estresse e reduz o desconforto e

ou dor liberando endorfinas produtoras de euforia encefalinas dopamina e adrenalina

todos contribuem para a sauacutede mental e fiacutesica geral Como resultado de suas propriedades

terapecircuticas o riso tem sido usado no contra-condicionamento das reaccedilotildees da raiva bem

como na dessensibilizaccedilatildeo sistemaacutetica ao medo

De acordo com Bakhtin (1999) o elo entre o seacuterio e o cocircmico jaacute existia desde os

primoacuterdios da humanidade na vida social Atraveacutes de investigaccedilotildees do folclore de povos

primitivos observou que os rituais seacuterios coadunavam com os rituais que parodiavam os

mitos os acontecimentos e os heroacuteis que as comunidades cultuavam

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A praacutetica do elogio e do escarnecimento fazia parte das cerimocircnias oficiais das

comunidades antigas Entretanto o seacuterio e o cocircmico passaram a ser dicotomizados com o

surgimento do regime de classes e de Estado Com a divisatildeo de classes iniciou-se um

processo que demarca a diferenccedila de direitos entre os indiviacuteduos na sociedade

Determinadas formas cocircmicas deixam de ser autorizadas soacute podendo ser

executadas em determinadas situaccedilotildees A partir daiacute se consubstanciou uma cultura oficial

delimitando as condiccedilotildees de realizaccedilatildeo do riso O espaccedilo da subversatildeo da gargalhada da

chacota tende a restringir-se aos momentos festivos A divisatildeo do riso e do seacuterio da cultura

popular e da cultura erudita comeccedilou a se intensificar fazendo com que a comicidade fosse

vista como uma expressatildeo menor inclusive no campo da cultura letrada

Segundo Huizinga no livro Homo Ludens (1938) o riso encontra nas situaccedilotildees

diaacuterias o seu proacuteprio espaccedilo as suas proacuteprias regras e o seu proacuteprio tempo e deve ser estudado

como fenocircmeno cultural uma vez que ele estaacute ligado agrave produccedilatildeo de situaccedilotildees que satildeo

proacuteprias do riso O autor nos convida a uma reflexatildeo sobre o poder que reside exatamente no

ato do riso De certo modo o riso segundo Huizinga pode ser visto como um tipo moderado

de ldquoloucurardquo tendo em vista que se realiza por meio de fatos cocircmicos que tambeacutem podem ser

entendidos como uma espeacutecie de ldquoloucurardquo porque neles corta-se o nexo do comum do tempo

do cotidiano

O elemento luacutedico tende a provocar o riso que por sua vez eacute um elemento da vida cotidiana estaacute sempre presente nas relaccedilotildees sociais seja para exprimir uma simpatia para desdramatizar uma situaccedilatildeo ou para exprimir a felicidade O risiacutevel eacute proacuteximo ao cocircmico ao jogo agraves brincadeiras agraves piadas ao luacutedico etc O cocircmico pode ser estudado com as formas as atitudes os gestos e os movimentos do corpo humano tambeacutem pode ser estudado pelo cocircmico de caraacuteter ou atraveacutes da fala do cocircmico de situaccedilotildees de palavras (HUIZINGA 1938 p54)

Para Pirandello o riso pode ser uma accedilatildeo subversiva e o proacuteprio autor assegura

que haacute ambivalecircncias na conceituaccedilatildeo do riso e do fenocircmeno cocircmico na tradiccedilatildeo ocidental

pois O riso pode ser compreendido como experiecircncia do natildeo-seacuterio a inversatildeo cocircmica pode revelar uma gravidade antes oculta certos contrastes inexprimiacuteveis pelo discurso mais cordato uma seriedade que o proacuteprio discurso seacuterio camufla O caraacuteter subversivo e anaacuterquico do riso Em diversos momentos o riso implica numa adesatildeo agrave ordem social estabelecida O riso eacute plural e encontra funccedilatildeo como corretivo social natildeo se restringindo a uma funccedilatildeo normativa tatildeo precisa visto que ele pode acometer um indiviacuteduo isoladamente pode prescindir da sociedade O riso guarda consigo o paradoxo da proacutepria accedilatildeo humana (PIRANDELLO 1957 p294)

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Para Bergson (1987) o riso aleacutem de ser um fenocircmeno social eacute um fenocircmeno

psiacutequico O sujeito ri de situaccedilotildees constrangedoras com as quais natildeo se envolve afetivamente

O cocircmico eacute provocado pela observaccedilatildeo das falhas humanas em uma perspectiva corretiva

diante dos olhos do observador Assim o cocircmico estaacute ligado agrave capacidade de explicitar e

identificar o ridiacuteculo humano manifestado no exagero caricaturado na representaccedilatildeo da

transgressatildeo social na encenaccedilatildeo de gestos automaacuteticos e na exploraccedilatildeo de clichecircs

desgastados

De acordo com Propp (1992) os caracteres cocircmicos natildeo existem por si soacute eles

tecircm relaccedilatildeo com as atividades do homem no mundo social Assumindo a mesma perspectiva

Bergson (1987) afirma que o riso eacute sempre grupal sendo determinado por um conjunto de

atitudes discriminadas e colocadas como engraccediladas perante uma comunidade

A identificaccedilatildeo daquilo que eacute engraccedilado ou humoriacutestico aponta para o

reconhecimento de gestos sociais que rompem com conduta ideal Esse desvio expresso no

comportamento fiacutesico ou moral dos seres sociais compotildee a trama das narrativas que satildeo

contadas com irreverecircncia e bom humor

213 Os elementos do risiacutevel no heroacutei suassuniano

Tenho duas armas para lutar contra o desespero a tristeza e ateacute a morte o riso a cavalo e o galope do sonho Eacute com isso que enfrento essa dura e fascinante tarefa de viver (ARIANO SUASSUNA)

Como jaacute visto estudos comprovam que o conceito claacutessico de heroacutei se origina na

Literatura Grega O termo designa um indiviacuteduo notabilizado por feitos extraordinaacuterios No

entanto com o passar do tempo essas figuras quase divinas jaacute natildeo correspondiam

adequadamente agrave vontade coletiva O heroacutei claacutessico foi sendo substituiacutedo pelo ldquoheroacutei

problemaacuteticordquo personagem cuja existecircncia e valores situam-no perante questotildees sobre as

quais natildeo eacute capaz de expressar consciecircncia clara e rigorosa

A construccedilatildeo desse novo enfoque da imagem do heroacutei eacute uma ideia atribuiacuteda aos

tempos modernos e a sua representatividade evidencia-se sobretudo no gecircnero romance

Contudo como mensageiro de uma criacutetica mordaz e bem-humorada da maacute sorte enfrentada

pelo nordestino em sua difiacutecil missatildeo pela sobrevivecircncia Ariano Suassuna na obra Auto da

Compadecida nos apresenta um heroacutei que ao inveacutes do nobre heroacutei claacutessico repleto de viacutecios

e defeitos

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Joatildeo Grilo eacute uma personagem que povoa o imaginaacuterio folcloacuterico brasileiro

sobretudo na regiatildeo Nordeste assumindo todas as caracteriacutesticas de um anti-heroacutei pois eacute

pequeno fraco franzino amarelo e desnutrido ou seja natildeo possui os atributos esteacuteticos e o

porte de um verdadeiro heroacutei cavalheiresco e romacircntico Joatildeo Joatildeo Joatildeo Morreu Ai meu Deus morreu o pobre de Joatildeo Grilo Tatildeo amarelo tatildeo safado e morrer assim Que eacute que eu faccedilo no mundo sem Joatildeo Joatildeo Joatildeo Natildeo tem mais jeito Joatildeo morreu Acabou-se o Grilo mais inteligente do mundo (SUASSUNA 2005 p 63)

Mas Joatildeo Grilo eacute infinitamente astuto e sua esperteza eacute tamanha que suplanta o

seu porte miuacutedo convertendo sua fragilidade em forccedila Com suas artimanhas ele se agiganta

Graccedilas as suas traquinagens enfrenta e afronta todas as instituiccedilotildees que se pretendem

poderosas e ditam as normas preceitos usos e costumes sociais de seu tempo e de seu

ambiente

Essa figura paradoxal assumida por Joatildeo Grilo o coloca como um anti-heroacutei que

faz do medo a sua arma da astuacutecia o seu escudo que vivendo num mundo hostil perseguido

escorraccedilado agraves voltas com a adversidade acaba sempre driblando o infortuacutenio com uma dose

exagerada de humor que aliaacutes eacute marca do enfrentamento do povo nordestino com as

adversidades sociais

Em Suassuna o termo humor estaacute relacionado agrave disposiccedilatildeo que o indiviacuteduo tem

para rir ou fazer sorrir Propp (1992) considera a priori que o riso eacute uma caracteriacutestica

pertinente do homem e somente a ele eacute dada a capacidade de rir o sorriso para o autor estaacute

ligado a outra esfera da razatildeo humana natildeo vinculada ao escaacuternio ou a derrisatildeo mas

compreende uma disposiccedilatildeo benevolente para com o interlocutor

Ainda nesse esteio para Aristoacuteteles a comicidade com efeito eacute um defeito e uma

feiuacutera sem dor nem destruiccedilatildeo Assim podemos pensar no Auto da Compadecida o riso

como decorrecircncia de uma penalidade um desajuste da conduta de Joatildeo Grilo que nos

surpreende nos atos com um comportamento inesperado

Para Bergson (1987) o riso natildeo eacute apenas uma reprimenda social mas vem de um

desajuste entre a natureza primeira do homem (que eacute mutaacutevel) e uma espeacutecie de rigidez e

mecanizaccedilatildeo Essa rigidez se manifestaria tanto no niacutevel fiacutesico como no caraacuteter ou seja no

acircmbito moral e psicoloacutegico caracteriacutesticas exploradas no personagem Joatildeo Grilo O risiacutevel e

o cocircmico seriam uma forma de desfazer a rigidez evidenciaacute-la corrigi-la

Para Suassuna (2008) o riso eacute como uma espeacutecie de puniccedilatildeo que a sociedade

confere a algo que a ameaccedila diz em seu livro Iniciaccedilatildeo agrave Esteacutetica Desta forma o risiacutevel estaacute

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na inadequaccedilatildeo do comportamento humano fiacutesicopsicoloacutegico uma vez que excede agrave

normalidade sem causas traacutegicas Suassuna no Auto da Compadecida nos deixa claro que ali

o cocircmico surge como um alerta sobre algo que natildeo estaacute funcionando bem nas sociedades

sendo tambeacutem um instrumento revelador dos problemas da sociedade como um todo

No contexto de tensatildeo do Auto eacute que encontramos Joatildeo Grilo um anti-heroacutei

oprimido e no plano da eacutetica eacute um legiacutetimo malandro que usa desse artifiacutecio como uma

forma autecircntica de sobrevivecircncia e de luta frente agraves adversidades sobretudo agravequelas impostas

pelos que detecircm o poder

A malandragem portanto no seu entender natildeo constitui um problema ou pecado

grave pois natildeo eacute utilizada para engrandecimento proacuteprio ou para ascensatildeo econocircmica mas

sim para a promoccedilatildeo da justiccedila social Sobre isto lecircem-se os seguintes versos do cordelista

Paulo Nunes Batista Grilo pra tudo no mundo Tinha uma definiccedilatildeo A sua filosofia Sempre lhe dava razatildeo Pois seguia este ditado Que diz ndash ldquoEstaacute perdoado Ladratildeo que rouba ladratildeordquo Vivendo embora do crime Joatildeo Grilo era caridoso Auxiliava a pobreza Soacute furtava o poderoso Roubava sempre dos nobres Matava a fome dos pobres Mostrando ser generoso (BATISTA 1958 p 28)

Ariano Suassuna como ningueacutem mergulhou na foacutermula do riso que sempre

esteve presente na Antiguidade e ligado aos deuses tendo um significado divino Presente nas

festas esse riso natildeo possuiacutea o sentido de diversatildeo como se conhece hoje ldquoAntes ele

correspondia aos preparativos de sacrifiacutecios e tinha uma relaccedilatildeo congruente com a morte O

riso e a morte fazem boa misturardquo (MINOIS 2003 p 29)

No campo do riso a comeacutedia gregandash da qual nos ocuparemos posteriormente ndash

surge como uma arte secundaacuteria cuja funccedilatildeo era descontrair os espectadores afinal era

apresentada nos intervalos das grandes peccedilas Procurava mostrar o homem rebaixado lidando

com figuras inferiores tanto no sentido moral quanto no acircmbito social Tendo como desiacutegnio

exagerar os defeitos humanos a comeacutedia explorava o ridiacuteculo

Nesse campo ao apresentar o Auto da Compadecida por meio dos contadores de

histoacuteria Chicoacute Joatildeo Grilo e do palhaccedilo o proacuteprio Suassuna admite a influecircncia da Comeacutedia

Antiga do Repente do Cordel dentre outros

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Eacute verdade que devo muito ao teatro grego (e a Homero e a Aristoacuteteles) ao latino ao italiano renascentista ao elisabetano ao francecircs barroco e sobretudo ao ibeacuterico Eacute verdade que devo ainda mais aos ensaiacutestas brasileiros que pesquisaram e publicaram as obras assim como salientaram a importacircncia do Romanceiro Popular do Nordeste principalmente a Joseacute de Alencar Siacutelvio Romero Leonardo Mota Rodrigues de Carvalho Euclides da Cunha Gustavo Barroso e mais modernamente Luiacutes Cacircmara Cascudo e Teacuteo Brandatildeo Mas a influecircncia decisiva mesmo em mim eacute a do proacuteprio Romanceiro Popular Nordestino com o qual tive estreito contato desde a minha infacircncia de menino criado no sertatildeo do Cariri da Paraiacuteba (SUASSUNA 2007 p 30)

O riso no Auto da Compadecida encontra suporte na carnavalizaccedilatildeo ideia

concebida por Mikhail Bakhtin (1993 p 7) que consiste na ldquosegunda vida do povo baseada

no princiacutepio do risordquo princiacutepio este que abole as relaccedilotildees hieraacuterquicas quando desloca os

sujeitos e subverte a ordem social estabelecida De acordo com Bakhtin O riso e a visatildeo de carnavalesca do mundo que estatildeo na base do grotesco destroem a seriedade unilateral e as pretensotildees de significaccedilatildeo incondicional e intemporal e liberam a consciecircncia o pensamento e a imaginaccedilatildeo humana que ficam assim disponiacuteveis pra o desenvolvimento de novas possibilidades Daiacute que uma certa carnavalizaccedilatildeo da consciecircncia precede e prepara sempre as grandes transformaccedilotildees mesmo no domiacutenio cientiacutefico (MIKHAIL BAKHTIN1993 p43)

No Primeiro Ato do Auto da Compadecida haacute o cruzamento da histoacuteria narrada

por Suassuna com a Literatura de Cordel precisamente com o Testamento do cachorro

publicado no folheto intitulado ldquoDinheirordquo escrito por Leandro Gomes de Barros (1909) fato

que desperta na plateia o riso frouxo natildeo simplesmente pelos causos propostos por Chicoacute e

Joatildeo Grilo mas pelo niacutevel de linguagem explorado e pelas artimanhas da dupla para

conseguir o intento de benzer a cachorra antes de enterraacute-la JOAtildeO GRILO Padre Joatildeo Padre Joatildeo PADRE aparecendo na igreja Que haacute Que gritaria eacute essa CHICOacute Mandaram avisar para o senhor natildeo sair porque vem uma pessoa aqui trazer um cachorro que estaacute se ultimando para o senhor benzer PADRE Para eu benzer CHICOacute Sim PADRE com desprezo Um cachorro CHICOacute Sim PADRE Que maluquice Que besteira JOAtildeO GRILO Cansei de dizer a ele que o senhor benzia Benze porque benze vim com ele PADRE Natildeo benzo de jeito nenhum

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CHICOacute Mas padre natildeo vejo nada de mal em se benzer o bicho JOAtildeO GRILO No dia em que chegou o motor novo do major Antocircnio Morais o senhor natildeo o benzeu PADRE Motor eacute diferente eacute uma coisa que todo mundo benze Cachorro eacute que eu nunca ouvi falar CHICOacute Eu acho cachorro uma coisa muito melhor do que motor PADRE Eacute mas quem vai ficar engraccedilado sou eu benzendo o cachorro Benzer motor eacute faacutecil todo mundo faz isso mas benzer cachorro (SUASSUNA 2005 p 21-23)

Tanto na visatildeo Suassuniana quanta na bakhtiniana a visatildeo carnavalesca de mundo

produz formas de linguagem que acabam com qualquer registro formal vocabular ou

dificuldade de aproximaccedilatildeo entre sujeitos enunciadores Dessa forma foi produzida uma

linguagem carnavalesca de muitos recursos tiacutepica da qual encontramos exemplos em vaacuterias

cenas do Auto da Compadecida como no enterro da cachorra um dos folhetos utilizados na

composiccedilatildeo da obra no Primeiro Ato quando o Palhaccedilo adverte ao puacuteblico sobre a histoacuteria

que se desenvolveria com a discussatildeo entre Joatildeo Grilo e Chicoacute para ver se o padre benzeria ou

natildeo o cachorro da mulher do padeiro

Por essa apropriaccedilatildeo da literatura popular percebemos que haacute um cruzamento da

histoacuteria de Suassuna com o cordel escrito por Leandro Gomes de Barros (1865 ndash 1918) ndash O

Testamento do cachorro publicado no folheto intitulado ldquoDinheirordquo que recebeu de Ariano o

seguinte comentaacuterio Quando publiquei o Auto da Compadecida Raimundo Magalhatildees Juacutenior em erudito e arguto artigo chamou atenccedilatildeo para o fato de que essa histoacuteria que eu julgava anocircnima e puramente nordestina jaacute fora usada numa versatildeo parecida por Le Sage no Gil Blaacutes de Santillana Punha ele em duacutevida a autoria popular da nossa versatildeo coisa em que se enganava como se vecirc porque como agora se sabe ela eacute de Leandro Gomes de Barros [] Por outro lado depois o Auto da Compadecida foi traduzido e encenado na Europa os professores Jean Girodon e Enrique Martiacutenez Loacutepez ndash um francecircs o outro espanhol ndash mostraram que a histoacuteria eacute muito mais antiga do que Le Sage vem do norte da Aacutefrica tendo passado agrave Peniacutensula Ibeacuterica com os aacuterabes e sendo muito comum nos fabulaacuterios e novelas picarescas ibeacutericasassim como na Franccedila por Ruteboeuf (SUASSUNA apud SANTIAGO 2007 p260)

Foi no cordel ldquoO Dinheiro ou O Testamento do Cachorrordquo escrito por Leandro

Gomes de Barros (1865 ndash 1918) com a narraccedilatildeo da histoacuteria do cachorro e de seu testamento

que Ariano Suassuna encontrou ideia e material como o proacuteprio afirmava para tambeacutem

escrever suas histoacuterias no Auto da Compadecida

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Eu vi narrar um fato Que fiquei admirado Um sertanejo me disse Que nesse seacuteculo passado Viu enterrar um cachorro Com honras de um potentado Um inglecircs tinha um cachorro De uma grande estimaccedilatildeo Morreu o dito cachorro E o inglecircs disse entatildeo Mim enterra esse cachorro Inda que gaste um milhatildeo Foi ao vigaacuterio e lhe disse Morreu cachorra de mim E urubu no Brasil Natildeo poderaacute dar-lhe fim - Cachorro deixou dinheiro Perguntou o vigaacuterio assim - Mim quer enterrar cachorro Disse o vigaacuterio Oh Inglecircs Vocecirc pensa que isto aqui Eacute o paiacutes de vocecircs Disse o inglecircs Oh Cachorro Gasta tudo esta vez Ele antes de morrer Um testamento aprontou Soacute quatro contos de reacuteis Para o vigaacuterio deixou Antes do inglecircs findar O vigaacuterio suspirou - Coitado Disse o vigaacuterio De que morreu esse pobre Que animal inteligente Que sentimento tatildeo nobre Antes de partir do mundo Fez-me presente do cobre Leve-o para o cemiteacuterio Que vou o encomendar Isto eacute traga o dinheiro Antes dele se enterrar Estes sufraacutegios fiados Eacute factiacutevel natildeo salvar E laacute chegou o cachorro O dinheiro foi na frente Teve momento o enterro Missa de corpo presente Ladainha e seu rancho Melhor do que certa gente

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Mandaram dar parte ao bispo Que o vigaacuterio tinha feito O enterro do cachorro Que natildeo era de direito O bispo aiacute falou muito Mostrou-se mal satisfeito Mandou chamar o vigaacuterio Pronto o vigaacuterio chegou As ordens sua excelecircncia O bispo lhe perguntou Entatildeo que cachorro foi Que seu vigaacuterio enterrou Foi um cachorro importante Animal de inteligecircncia Ele antes de morrer Deixou agrave vossa excelecircncia Dois contos de reacuteis em ouro Se errei tenha paciecircncia Natildeo foi erro sr Vigaacuterio Vocecirc eacute um bom pastor Desculpe eu incomodaacute-lo A culpa eacute do portador Um cachorro como este Jaacute vecirc que eacute merecedor (BARROS 2005 p 5)

Como fonte da recriaccedilatildeo tambeacutem operada na cena do Auto da Compadecida o

testamento do cachorro foi estudado como recurso para o riso visto que pelo uso do Latim

comum nas pregaccedilotildees dos padres por ocasiatildeo da despedida das almas e que equipara o

ldquobichinhordquo a um ser humano o poeta brinca com o puacuteblico e faz uma criacutetica agrave ganacircncia dos

legisladores episcopais JOAtildeO GRILO Estou dizendo que se eacute desse jeito vai ser difiacutecil cumprir o testamento do cachorro na parte do dinheiro que ele deixou para o padre e para o sacristatildeo SACRISTAtildeO Que eacute isso Cachorro com testamento JOAtildeO GRILO Esse era um cachorro inteligente Antes de morrer olhava para a torre da igreja toda vez que o sino batia Nesses uacuteltimos tempos jaacute doente pra morrer botava uns olhos bem compridos prrsquoos lados daqui latindo na maior tristeza Ateacute que meu patratildeo entendeu com a minha patroa eacute claro que ele queria ser abenccediloado pelo padre e morrer como cristatildeo Mas nem assim ele sossegou Foi preciso que o patratildeo prometesse que vinha encomendar a becircnccedilatildeo e que no caso dele morrer teria um enterro em latim Que em

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troca do enterro acrescentaria no testamento dele dez contos de reacuteis para o padre e trecircs para o sacristatildeo SACRISTAtildeO Que animal inteligente Que sentimento nobre E o testamento Onde estaacute [] SACRISTAtildeO Mas eu natildeo disse que fica tudo por minha conta PADRE Por sua conta como se o vigaacuterio sou eu SACRISTAtildeO O vigaacuterio eacute o senhor mas quem sabe quanto vale o testamento sou eu PADRE Hein O testamento SACRISTAtildeO Sim o testamento PADRE Mas que testamento eacute esse SACRISTAtildeO O testamento do cachorro PADRE E ele deixou testamento PADEIRO Soacute para o vigaacuterio deixou dez contos PADRE Que cachorro inteligente Que sentimento notaacutevel JOAtildeO GRILO E um cachorro desse ser comido pelos urubus Eacute a maior das injusticcedilas PADRE Comido ele De jeito nenhum Um cachorro desse natildeo pode ser comido pelos urubus PADRE Mas que jeito pode-se dar nisso Estou com tanto medo do bispo E tenho medo de cometer um sacrileacutegio SACRISTAtildeO Que eacute isso Natildeo se trata de nenhum sacrileacutegio Vamos enterrar uma pessoa altamente estimaacutevel nobre e generosa satisfazendo ao mesmo tempo duas outras pessoas altamente estimaacuteveis nobres e sobretudo generosas Natildeo vejo mal nenhum nisso [] SACRISTAtildeO Se eacute assim vamos ao enterro Como se chamava o cachorro MULHER Xareacuteu SACRISTAcircO Xareacuteu Absolve Domine animas omnium fidelium defunctorum abomni vinculi delictorum TODOS Ameacutem (SUASSUNA 2005 p 48 - 55)

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Diante dessa quebra estabelecida por Ariano Suassuna ao propor no Auto da

Compadecida o enterro do cachorro da mulher do padeiro em mais uma das malandragens de

Joatildeo Grilo cabe aqui uma referecircncia e um entrecruzamento de cenas pois na peccedila As Vespas

de Aristoacutefanes que foi apresentada pela primeira vez em 422 aC no contexto da Guerra do

Peloponeso haacute uma humanizaccedilatildeo de dois catildees que satildeo acusados de roubar comida e por isso

seratildeo julgados

Na peccedila as atitudes de Diceoacutepolis devem ser entendidas como a reaccedilatildeo de um

Aristoacutefanes que procura satirizar o mau funcionamento das instituiccedilotildees democraacuteticas

centrando-se sobretudo nos tribunais A criacutetica seraacute trabalhada a partir de Filocleacuteon filho de

Bdelicleacuteon um velho juiz que encontra nas atividades juriacutedicas sua fonte de rendimento

Recriando-se em cena um tribunal domeacutestico o que chama a atenccedilatildeo do leitor eacute o

julgamento de um catildeo acusado de roubo por outro catildeo ndash poreacutem representativos de dois

poliacuteticos da eacutepoca ndash que a peccedila manifesta a cada cena pela corrupccedilatildeo que domina as

instituiccedilotildees juriacutedicas atenienses

A comeacutedia inicia com um diaacutelogo entre Soacutesias e Xacircntias escravos de Filocleacuteon

que foram orientados a vigiar o velho juiz natildeo deixando que ele vaacute para o Tribunal Pelos

dois personagens o poeta explica aos espectadores a ldquodoenccedilardquo que ataca Filocleacuteon Afirma

Xantias Vocecircs estatildeo perdendo tempo nenhum de vocecircs vai esclarecer o caso Se vocecircs estatildeo ansiosos por saber faccedilam silecircncio vou dizer qual eacute mesmo a doenccedila de meu senhor eacute a paixatildeo pelos tribunais A paixatildeo dele eacute julgar ele fica desesperado se natildeo consegue ocupar o primeiro banco dos juiacutezes Agrave noite ele natildeo goza um instante de sono Se por acaso fecha os olhos seu proacuteprio espiacuterito fica olhando para a clepsidra A paixatildeo dele pelo voto no tribunal eacute tatildeo grande que faz ele acordar apertando trecircs de seus dedos como se oferecesse incenso aos deuses no dia da lua novaQuando ele vecirc escrito nos muros ldquoDemo encantador filho de Pirilampordquoescreve ao lado ldquoEncantadora urna de votosrdquo Se seu galo cantava durante a noite ele dizia que algum acusado sem duacutevida usava essa humilde ave para fazecirc-lo acordar mais tarde do que era necessaacuterio Logo depois do jantar ele pedia as sandaacutelias corria para o tribunal em plena noite e adormecia laacute colado a uma coluna como uma ostra agrave concha Sua severidade o levava a traccedilar sobre as plaquetas do voto a linhada condenaccedilatildeo e ficava com os dedos cheios de cera Com receio de natildeo teraacute pedrinha para o voto ele tinha no jardim de sua casa um canteiro de pedrinhas que renovava sem parar Esta era a sua loucura E as censuras deixavam o coroa excitadiacutessimoTambeacutem fechamos o ferrolho da porta principal para impedi-lo de sair pois esta ldquodoenccedilardquo deixava o filho desesperado No comeccedilo este usa a doccedilura lhe pede para natildeo ficar todo o tempo com o manto de sair e permanecer em casa Depois daacute um banho no pai e purifica ele mas tudo isto eacute inuacutetil Ele sujeita o pai aos exerciacutecios sagrados dos Coribantes opai foge com o tambor e corre para o tribunal querendo julgar Diante do fracasso dessas tentativas ele leva o paia Aacuteigina para se deitar de noite no templo de Ascleacutepio mas quando amanhece o dia laacute estaacute o velho no recinto reservado aos juiacutezes no tribunalFazemos o possiacutevel para impedi-lo de sair mas ele escapa pelas calhas e pelos canos de aacuteguas das chuvas onde aparecia um buraco noacutes tapaacutevamos e fechaacutevamos imediatamente todas as saiacutedas mas ele punha paus nos muros e saltava de um lado para o outro como se fosse um gato Afinal pusemos redes fechando todo o acesso ao jardim e ficaacutevamos de guarda O

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velho se chama Filoclecircon nenhum nome ficaria melhor nele O nome do filho dele eacute Bdeliclecircon ele faz tudo para dominar o gecircnio fogoso do pai (ARISTOacuteFANES As Vespas p38-41 ndash KURY 2004)

A cena ganha dinacircmica com o filho do velho Juiz assustado com a presenccedila dos

outros magistrados vestidos de vespas em sua casa

BDELICLEcircON Deus nosso senhor Vocecirc que preside a entrada de minha casa receba estes novos sacrifiacutecios que lhe oferecemos pela primeira vez em favor de meu pai Adoce o humor aacutespero e austero dele Deixe cair sobre o coraccedilatildeo dele algumas gotas de mel para que de hoje em diante ele seja clemente para com os homens mais benevolente para com o acusado que com o acusador enfim seja sensiacutevel agraves preces dirigidas a vocecirc Tire do caraacuteter dele todo o fel e todas as folhas de urtiga CORO Unidos de todo o coraccedilatildeo aos sentimentos que vocecirc expressou juntamos nossos votos aos seus neste cargo que vocecirc exerce de fato vocecirc se torna querido por todos noacutes depois que vimos vocecirc mais zeloso para com o povo que qualquer dos juiacutezes mais novos que vocecirc

Um criado traz dois personagens disfarccedilados de CACHORROS um dos disfarces reproduz as feiccedilotildees de Laques e o outro as de Cleacuteon

BDELICLEcircON Se algum juiz estaacute laacute fora que se apresse a entrar uma vez iniciadas as falas ningueacutem mais poderaacute entrar FILOCLEcircON Quem eacute este acusado A que pena ele estaacute sujeito XANTIAS Como se fosse o promotor Ouccedilam agora a acusaccedilatildeo ldquoO cachorro da vila de Cidateneacuteia acusa Labes da vila de Aixone de haver contra toda a justiccedila devorado sozinho um queijo da Siciacuteliardquo Que sua pena seja a de usar uma coleira bem apertada FILOCLEcircON Ou entatildeo uma morte de catildeo se ele for condenado BDELICLEcircON Aqui estaacute Labes o outro acusado FILOCLEcircON Ah Bandido Ele tem mesmo a pinta de

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um ladratildeo e se orgulha de me tapear rangendo os dentes Onde estaacute o queixoso o cachorro de Cidateneacuteia 1ordm CACHORRO Au Au BDELICLEcircON Aqui estaacute ele FILOCLEcircON Este eacute um outro Labes bom latidor e lambedor de panelas SOSIAS Como se fosse o arauto Silecircncio Todos sentados Vocecirc objeto da acusaccedilatildeo suba agrave tribuna FILOCLEcircON Durante a fala dele vou me servir de sopa e engoli-la rapidamente XANTIAS Como promotor Senhores juiacutezes Os senhores vatildeo ouvir minha acusaccedilatildeo contra este reacuteu Ele cometeu em relaccedilatildeo agrave cidade e agrave frota de Atenas um atentado indecoroso Ele se esgueirou para um canto depois de roubar um enorme queijo da Siciacutelia aproveitando-se das trevas FILOCLEcircON O roubo dele estaacute suficientemente comprovado o patife acaba de deixar cair no chatildeo um naco de queijo extremamente malcheiroso XANTIAS Pedi a ele que me deixasse provar um pedaccedilo do queijo mas ele natildeo me atendeu Quem vai querer ajudar vocecircs se seu cachorro fiel natildeo deixou nem um pouquinho para mim FILOCLEcircON Ele natildeo lhe deu nada mesmo XANTIAS Nadinha nem a mim nem a seu companheiro FILOCLEcircON Aiacute estaacute um trapalhatildeo que vai ferver mais que estas lentilhas BDELICLEcircON Em nome dos deuses meu pai natildeo profira a sentenccedila antes de ter ouvido as duas partes FILOCLEcircON Mas a coisa estaacute clara meu caro ela fala por si mesma BDELICLEcircON Mas preste atenccedilatildeo para natildeo absolver o acusado este cachorro eacute o mais guloso e o mais egoiacutesta que jaacute vi ele lambe num piscar de olhos todos os cantos de umahellip cidade e devora tudo FILOCLEcircON E natildeo tenho dinheiro nem para mandar

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consertar meu vasohellip 2ordm CACHORRO Entatildeo castigue o acusado uma uacutenica cozinha natildeo pode encher a barriga de dois ladrotildees Tomara que eu natildeo tenha latido no vazio e em vatildeo senatildeo nunca mais vou latir FILOCLEcircON Quanta falta de vergonha Aiacute estaacute um grande trapaceiro Que pensa vocecirc dele meu galo Para mim ele diz ldquosimrdquo Guarda do tribunal Onde estaacute vocecirc Que algueacutem me decirc um penico SOSIAS Fingindo ser o guarda do tribunal Pegue vocecirc mesmo o penico estou ocupado fazendo a citaccedilatildeo das testemunhas Apresentem-se as testemunhas de acusaccedilatildeo a Laques Um prato um pilatildeo uma focircrma de queijo uma grelha uma panela e outros utensiacutelios de cozinha Vocecirc ainda estaacute mijando Ainda natildeo acabou FILOCLEcircON Apontando para o acusado Ainda natildeo mas penso que aquele ali vai fazer coisa pior hoje ele vai se borrar BDELICLEcircON Dirigindo-se ao CACHORRO acusador Entatildeo vocecirc seraacute sempre tatildeo severo e intrataacutevel para com o acusado Por que esta ferocidade FILOCLEcircON Dirigindo-se ao acusado Suba agrave tribuna e defenda-se Por que este silecircncio Fale SOSIAS Com certeza ele nada tem a dizer BDELICLEcircON Vocecirc se engana acontece com ele o que aconteceu haacute muito tempo com Tuciacutedides quando acusou Peacutericles a surpresa da acusaccedilatildeo paralisou completamente as mandiacutebulas de Peacutericles Afaste-se vou assumir a sua defesa Eacute uma tarefa difiacutecil senhores juiacutezes defender um cachorro que eacute alvo de acusaccedilotildees extremamente odiosas poreacutem de qualquer maneira falarei Este cachorro eacute valente e caccedila lobos FILOCLEcircON Ele eacute um ladratildeo e um conspirador BDELICLEcircON Natildeo por Zeus Natildeo haacute um cachorro melhor no mundo Ele seria capaz de cuidar de um grande rebanho de carneiros

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FILOCLEcircON Que importa tudo isto se ele comeu o queijo BDELICLEcircON Que importa Ele luta para defender vocecirc guarda sua casa e aleacutem disto tem outras qualidades Se ele rouba uma coisinha vocecirc deve perdoaacute-lo Reconheccedilo que ele natildeo eacute um grande tocador de ciacutetara FILOCLEcircON Eu gostaria de que ele nem soubesse ler ele natildeo faria a apologia de seu crime BDELICLEcircON Ouccedila minhas testemunhas juiz imparcial Aproxime-se facatildeozinho e fale em voz alta entatildeo vocecirc que estava incumbido dos pagamentos responda com clareza vocecirc natildeo cortou as partes que deveriam ser distribuiacutedas aos soldados FILOCLEcircON Como vou suportar a ideacuteia de ter absolvido um acusado Que seraacute de mim Deuses veneraacuteveis Me perdoem Fiz isso tudo sem querer este natildeo eacute o meu haacutebito (ARISTOacuteFANES As Vespas p153-173 ndash KURY 2004)

Essa visatildeo criacutetica e carnavalesca de mundo que se opotildee ao mau serviccedilo das

instituiccedilotildees produzida nas cenas tanto da peccedila As Vespas quanto a partir dos folhetos de

cordel traz em si uma ideia de inacabamento de quebra imperfeiccedilatildeo e uma forma de

expressatildeo ambivalente por isso ela eacute dinacircmica e mutaacutevel

As formas e siacutembolos irreverentes da linguagem carnavalesca caracterizam-se

principalmente pela coerecircncia sequencial das coisas ldquoao avessordquo e pelas diversas formas de

paroacutedias degradaccedilotildees e atitudes burlescas instrumento que tanto permeiam Acarnenses o

auto de Suassuna e o auto de Gil Vicente do qual trataremos no Quinto Ato

Sobre a ideia de quebra na cena teatral Bakhtin (2002) alerta que a ideia

carnavalesca de que ele trata natildeo estaacute relacionada ao carnaval dos ldquotempos modernosrdquo mas a

uma cosmovisatildeo milenar e universalmente popular Segundo o autor a cultura do carnaval

compreende quatro grandes categorias que envolvemos festejos carnavalescos as obras

cocircmicas representadas nas praccedilas puacuteblicas os insultos os juramentos os folguedos populares

entre outros

Assim o rito do carnaval na perspectiva de Bakhtin eacute constituiacutedo pela vitoacuteria de

uma forma de libertaccedilatildeo momentacircnea da verdade predominante e do estatuto soacutecio-poliacutetico-

econocircmico vigente Desta forma eacute possiacutevel propor a carnavalizaccedilatildeo como dispositivo

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presente no texto que compotildee a nossa pesquisa E para isso relacionaremos carnavalizaccedilatildeo e

polifonia ideias propostas por Mikhail Bakhtin para designar um modo diferente de narrar

Na concepccedilatildeo do autor segundo Gomes (2014) o termo ldquopolifoniardquo natildeo pode ser

relacionado agrave realidade heterogecircnea da linguagem quando vista pelo acircngulo da pluralidade

das ldquoliacutenguassociaisrdquo e por isso natildeo deve ser confundido com os termos ldquoheteroglossiardquo ou

ldquoplurivocidaderdquo sendo a Polifonia para Bakhtin um universo no qual todas as vozes e

consciecircncias satildeo imisciacuteveis e equivalentes ou seja plenas de valor mantendo com outras

vozes do discurso uma relaccedilatildeo de plena igualdade realizaacuteveis para se contrapor ao

estabelecido De acordo com Bakhtin

A multiplicidade de vozes e consciecircncias independentes e imisciacuteveis e a autecircntica polifonia de vozes plenivalentes constituem de fato a peculiaridade fundamental dos romances de Dostoievski [] eacute precisamente a multiplicidade de consciecircncias equipolentes e seus mundos que aqui combinam numa unidade de acontecimento mantendo sua imiscibilidade (MIKHAIL BAKHTIN 2002 p4)

Dessa forma eacute importante ressaltar que os discursos que circulam na sociedade

tecircm pesos poliacuteticos diferenciados em funccedilatildeo dos jogos de poder e do proacuteprio jogo luacutedico

social defendido por Huizinga (1999) Portanto essas ldquovozesrdquo possiacuteveis de serem percebidas

as ironias os textos polifocircnicos aparecem em oposiccedilatildeo agraves vozes que tentam passar

despercebidas nos textos monofocircnicos produzindo um ldquoefeito de apagamentordquo em um

esforccedilo contiacutenuo de impor determinados discursos como centro das relaccedilotildees de poder E

nesse campo movediccedilo tanto Aristoacutefanes quanto Ariano Suassuna encontram espaccedilos para

confrontarem as falas das instituiccedilotildees e seus legisladores seja em Atenas ou Taperoaacute

Segundo Rodrigues (2010) a polifonia e a monofonia satildeo efeitos de sentido cuja

existecircncia eacute possiacutevel em virtude dos procedimentos discursivos Assim tomando como

premissa a afirmativa da autora entendemos que a multiplicidade de vozes autorais diluiacutedas

entre as personagens consolidadas em seus discursos bem como a carnavalizaccedilatildeo dos

personagens do Auto da Compadecida provoca o riso que subverte os poderes atraveacutes de

diversas estrateacutegias como as reproduccedilotildees moralizantes dos diaacutelogos que autorizam o uso da

moral e potencializam as cenas cocircmicas

Ainda de acordo com Rodrigues (2002 p 42)

As relaccedilotildees dialoacutegicas [] satildeo um fenocircmeno universal que penetra [] tudo o que tem sentido e importacircnciardquo Dessa forma o dialogismo eacute a de um princiacutepio constitutivo da linguagem natildeo sendo esse ldquodiaacutelogordquo necessariamente um ponto de

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convergecircncia mas sim um espaccedilo de lutas entre os sujeitos do discurso pois ldquoonde comeccedila a consciecircncia comeccedila o diaacutelogo

Assim a alteridade define o sujeito pois o outro eacute fundamental para a sua

constituiccedilatildeo A relaccedilatildeo existente entre os sujeitos e a alteridade propotildee um jogo de imagens

que interfere na produccedilatildeo dos discursos das identidades e consequentemente dos sujeitos O

dialogismo tem como sua forma maacutexima agrave polifonia

Elemento das cenas cocircmicas as falas segundo Rodrigues (2010 p 62) natildeo estatildeo apenas justapostas como se fossem peccedilas de um brinquedo de montar encontram-se em um estado de interaccedilatildeo e de embate ldquotensordquo e contiacutenuo como os dentes de uma engrenagem proporcionando jogos linguiacutesticos e discursivos provocados pelo desenvolvimento de uma situaccedilatildeo de qui pro quoacute no Auto da Compadecida em funccedilatildeo de um plano de Joatildeo Grilo deixam o Padre Joatildeo em maus lenccediloacuteis com o Major Antocircnio Moraes enquanto o Padre fala sobre benzer a cachorra o Major fala sobre seu filho que estaacute doente e vai para o Recife tratando-se aiacute de uma confusatildeo no plano da realizaccedilatildeo e entendimento da linguagem engenhosamente construiacuteda por Joatildeo Grilo

PADRE Eacute o que vivo dizendo do jeito que as coisas vatildeo eacute o fim do mundo Mas que coisa o trouxe aqui Jaacute sei natildeo diga o bichinho estaacute doente natildeo eacute ANTOcircNIO MORAES Eacute jaacute sabia PADRE Jaacute aqui tudo se espalha num instante Jaacute estaacute fedendo ANTOcircNIO MORAES Fedendo Quem PADRE O bichinho ANTOcircNIO MORAES Natildeo Que eacute que o senhor quer dizer PADRE Nada desculpe eacute um modo de falar ANTOcircNIO MORAES Pois o senhor anda com uns modos de falar muito esquisitos PADRE Peccedilo que desculpe um pobre padre sem muita instruccedilatildeo Qual eacute a doenccedila Rabugem ANTOcircNIO MORAES Rabugem PADRE Sim jaacute vi um morrer disso em poucos dias Comeccedilou pelo rabo e espalhou-se pelo resto do corpo ANTOcircNIO MORAES Pelo rabo PADRE Desculpe desculpe eu devia ter dito ldquopela caudardquo Deve-se respeito aos enfermos mesmo que sejam os de mais baixa qualidade ANTOcircNIO MORAES Baixa qualidade Padre Joatildeo veja com quem estaacute falando A Igreja eacute uma coisa respeitaacutevel como garantia da sociedade mas tudo tem limite PADRE

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Mas o que foi que eu disse ANTOcircNIO MORAES Baixa qualidade Meu nome todo eacute Antocircnio Noronha de Brito Moraes e esse Noronha de Brito veio do Conde dos Arcos ouviu Gente que veio nas caravelas ouviu PADRE Ah bem e na certa os antepassados do bichinho tambeacutem vieram nas caravelas natildeo eacute isso ANTOcircNIO MORAES Claro Se meus antepassados vieram eacute claro que os dele vieram tambeacutem Que o senhor que insinuar Que a matildee dele procedeu mal PADRE Mas uma cachorra ANTOcircNIO MORAES O quecirc PADRE Uma cachorra ANTOcircNIO MORAES Repita PADRE Natildeo vejo nada de mal em repetir natildeo eacute uma cachorra mesmo ANTOcircNIO MORAES Padre eu natildeo mato o senhor agora mesmo porque o senhor eacute padre e estaacute louco [] (SUASSUNA 2005 p 32 -34)

Ainda sobre as falas a mesma autora nos relembra que o proacuteprio Suassuna teceu

comentaacuterio sobre a existecircncia do caraacuteter polifocircnico instaurador do riso no Auto da

Compadecida Como observado pelo proacuteprio Suassuna o Auto da Compadecida trouxe o riso instaurado atraveacutes das polissemias e por meio da ldquofalhardquo nada linguagem O riso eacute provocado na cena descrita anteriormente em funccedilatildeo de as reacuteplicas dos diaacutelogos estarem situadas em contextos distintos causando um desacordo entre as falas dos personagens dessa forma a interaccedilatildeo verbal aconteceu de forma equivocada para os interlocutores para o Padre Joatildeo era a cachorra (animal) do Major que estava doente para Antocircnio Moraes sua mulher estava sendo ofendida pelo padre Portanto o ldquoencaixerdquo das falas faz o qui pro quoacute funcionar proporcionando efeitos de sentido diferentes para cada sujeito da cena enunciativa (RODRIGUES 2010 p 6)

Outra estrateacutegia importante para a compreensatildeo do discurso como revelador do social

encontra-se nas palavras de Bakhtin (2003 p48) ao afirmar que o discurso se efetiva pela

praacutetica contextualizada entre emissor e receptor fato recorrente no Auto da Compadecida e

em Acarnenses visto que em ambas as peccedilas a intenccedilatildeo do autor de colocar para o

leitorouvinte seus objetivos eacute muito clara e social

O diaacutelogo eacute um processo de relacionamento reciacuteproco entre as pessoas que satildeo coautores do que acontece no diaacutelogo Desta forma aqueles que participam do diaacutelogo tecircm uma compreensatildeo ativa e antecipatoacuteria do que foi dito e ouvido Portanto tudo o que eacute dito sempre tem um projeto e eacute sempre incompleto pois o entendimento estaacute ancorado em uma accedilatildeo social conjunta Assim trabalhar com essa

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condiccedilatildeo dialoacutegica constitutiva do ser humano e seu potencial transformador afeta nossa compreensatildeo e as praacuteticas que dialogam como recurso fundamental em sua accedilatildeo e reflexatildeo Dado o exposto eacute possiacutevel entender como as praacuteticas dialoacutegicas generativa preservam troca dialoacutegica a singularidade de cada reuniatildeo a construccedilatildeo coordenada de significado emoccedilatildeo e presenccedila dos participantes priorizando como um dos seus objetivos e tarefa a criaccedilatildeo contextualizada de novas possibilidades discursivas 16

Rodrigues (2010) reforccedila que no jogo das desconstruccedilotildees promovidas pela

linguagem no texto de Ariano Suassuna atraveacutes dos causos que o autor engenhosamente

(des)constroacutei nas reflexotildees das personagens sobretudo de Chicoacute produzem a comicidade e

estabelecem o sentido do dito que estaacute a serviccedilo do social

Dessa forma as fronteiras da liacutengua e os seus lugares de transgressotildees podem assim ser observados atraveacutes de uma situaccedilatildeo de qui pro quoacute Ao estabelecer o deslizamento de sentidos como regra o qui pro quoacute coloca em cena a comicidade Nos jogos com a liacutengua esses niacuteveisquando acionados podem sofrer uma espeacutecie de mutaccedilatildeo por causa dos deslocamentos e descentramentos que tecircm como consequecircncia o riso (RODRIGUES 2010 p 7)

No Auto da Compadecida o caraacuteter polifocircnico eacute dinacircmico e se instaura tambeacutem

atraveacutes do entrecruzamento das artimanhas do Joatildeo Grilo e de Chicoacute fato concretizado por

exemplo pelo uso do latim na cena do enterro aqui jaacute citada o que forccedila de forma jaacute

esperada a participaccedilatildeo do puacuteblico visto que o caraacuteter religioso estaacute ligado agrave

cena(SUASSUNA 2005 p 48-55)

Pela apropriaccedilatildeo discursiva e pela sobreposiccedilatildeo de cenas cocircmicas (re)criadas pelo

posicionamento das personagens no Auto da Compadecida tem-se o reforccedilo de que o riso o

humor e a ironia tecircm sido grandes recursos na literatura de grandes autores que despertam na

audiecircncia no instante do abrir de cortinas a gargalhada assim como Ariano Suassuna que

usa do riso como ritual de escapismo e ou como criacutetica moralizante Leacutelia Parreira (2006 p

45) argumenta que a obra irocircnica eacute a siacutentese de noccedilotildees antiteacuteticas accedilatildeo e natildeo contemplaccedilatildeo

16 El diaacutelogo es un proceso de relacioacuten reciacuteproca entre personas quienes son coautores de aquello que sucede en el diaacutelogo De esta manera quienes participan en el diaacutelogo tienen una comprensioacuten activa y anticipatoria de lo dicho y lo escuchado Por ello todo lo que se dice tiene siempre un proyecto y siempre es incompleto ya que la comprensioacuten estaacute anclada en una accioacuten social conjunta Asiacute trabajar con esta condicioacuten dialoacutegica constitutiva del ser humano y su potencial transformativo incide en nuestra comprensioacuten y en las praacutecticas que tienen al diaacutelogo como recurso fundamental en su accioacuten y reflexioacuten A partir de lo anterior es posible entender como las praacutecticas dialoacutegicas generativas preservan el intercambio dialoacutegico la singularidad de cada encuentro la construccioacuten coordinada de significados la emocionalidad y la presencia encarnada de los participantes jerarquizando como uno de sus objetivos y tareas la creacioacuten contextuada de nuevas posibilidades (Traduccedilatildeo nossa)

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passiva alianccedila entre objetividade e subjetividade mistura do seacuterio e da brincadeira o sonho

e a realidade o sublime e o pateacutetico o real e o aparente

As accedilotildees de Ariano Suassuna em toda a trama do Auto nos revelam que eacute

justamente por meio da ironia que o homem ri de si mesmo de suas crenccedilas e ingenuidades

indicando o que existe de representaccedilatildeo e de fingimento nos sistemas e ideologias

Em Aristoacutefanes comeccedilaremos identificando os recursos cocircmicos que tecircm o

objetivo de desvalorizar Lacircmaco traduzido por Batalhatildeo efetivamente aos olhos do puacuteblico e

passaremos para a anaacutelise de seu valor estrateacutegico A cena em que o personagem aparece pela

primeira vez estaacute localizada apoacutes o confronto entre o heroacutei cocircmico Diceoacutepolis e o coro

camponecircs de Acarnes O coro persegue Diceoacutepolis para apedrejaacute-lo por ter realizado uma

treacutegua particular com os Peloponeacutesios

Diceopolis vestido com o disfarce de Teacutelefo que Euriacutepides lhe emprestou tenta

persuadir o coro com suas razotildees mas soacute consegue convencer uma parte dele O semicoro que

ainda se opotildee agrave paz privada do heroacutei pede entatildeo ajuda a Batalhatildeo e ele aparece pela primeira

vez em cena apelando ao seu chamado (vv 557-574)

COREUTA 1 Eacute verdade seu safado mundiccedila Tal coisa tu ismoleuse atreve a dizecirc pra noacutes E se teve um sicofanta22 tu ainda fala mal dele COREUTA 2 Por Poseidon as coisas que ele taacute dizeno Satildeo tudo justa e ninhuma delas eacute falsa COREUTA 1 Por elas ser justa era preciso ele taacute dizeno Mas ele num vai ficaacuterino por se atrevecirc a falaacute assim COREUTA 2 Eh tu vai correcirc pra donde Ficrsquo aiacute Se tu batecirc Neste home tu vai eacute vuaacute pelo ar bem ligerin COREUTA 1 Eh Bataiatildeo tu que solta faiacutesca pelos oacutei Vem me ajudaacute tu do penacho da Goacutergona aparece Eh Bataiatildeo oacute amigo oacute camarada E se tem aiacute um taxiarcaocirc general ocirc Defensor dos muro vem me ajudaacute Depressa pois tocirc metade dominado BATALHAtildeO De onde vem o grito de guerra que ouvi Aonde devo levar socorro Aonde devo lanccedilar o tumulto Quem despertou a Goacutergona do armaacuterio

Neste momento a linguagem de LacircmacoBatalhatildeo eacute caracterizada por seu tom

eacutepico O termo gritar tem na Iliacuteada em geral o sentido de um grito de guerra Da mesma

forma o kydoimoacutes (tumulto guerrero) eacute tambeacutem de origem homeacuterica O uso do leacutexico eacutepico

aqui eacute paroacutedico porque a cena se desenrola fora de um contexto de batalha e aleacutem disso o

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inimigo eacute um homem uacutenico e inofensivo o camponecircs DiceoacutepolisJustinoacutepolis A paroacutedia

eacutepica eacute entatildeo o primeiro recurso cocircmico usado para ridicularizar a LacircmacoBatalhatildeo

Em geral a paroacutedia costuma ter alvos intertextuais o modelo parodiado Mas

neste caso a paroacutedia eacutepica tem como alvo principal natildeo o intertexto homeacuterico mas o caraacuteter

partidaacuterio da guerra Aristoacutefanes usa um recurso tradicional da literatura cocircmica mas usa-a de

uma forma diferente natildeo mais para zombar do intertexto parodiado mas para servir a saacutetira

contra o seu alvo central A primeira cena apresenta outra seacuterie de recursos cocircmicos que tecircm a

funccedilatildeo de degradar o alvo aos olhos do puacuteblico A resposta de Justinoacutepolis a Batalhatildeo eacute na

verdade zombadora JUSTINOacutePOLIS

Oacute Bataiatildeo heroacutei dos penacho e das tropardquo(v 575)

A rima interna entre loacutephon 17 e loacutechon 18 gera um efeito zombeteiro humoriacutestico

que tambeacutem reduz o ridiacuteculo agrave denominaccedilatildeo eacutepica de heroacutei Este verso combina entatildeo

como recursos cocircmicos paroacutedia eacutepica e humor verbal atraveacutes da rima O efeito humoriacutestico

da rima eacute reforccedilado aleacutem disso pela aliteraccedilatildeo do lambda que liga o nome do personagem

aos dois termos rimados Por outro lado esse verso inaugura o motivo cocircmico do ridiacuteculo das

armas do personagem que se repetiraacute sempre nas cenas protagonizadas por Lacircmaco que eacute a

personificaccedilatildeo da batalha

A recepccedilatildeo de Diceoacutepolis revela o papel que o heroacutei cocircmico vai desempenhar em

relaccedilatildeo a Lacircmaco em todas as cenas em que se enfrentam seu papel seraacute o do zombador o

satirista Essa funccedilatildeo estaacute relacionada em si mesma agrave posiccedilatildeo do enunciador-autor e agrave proacutepria

atividade do autor o ridiacuteculo Ou seja Lacircmaco natildeo eacute apenas zombado no texto - por exemplo

por meio dos recursos paroacutedicos que acabamos de mencionar que satildeo colocados na boca do

mesmo Lacircmaco - mas eacute tambeacutem daquela zombaria que se reforccedila pela zombaria do proacuteprio

caraacuteter de Diceoacutepolis A degradaccedilatildeo cocircmica de Lacircmaco eacute entatildeo produzida a partir da instacircncia

17 Normalmente os capacetes eram enfeitados com phaacuteloi ldquopenachosrdquo feitos de caudas de cavalos hippoacutekomoikoacuterytheslamproicircsiphaacuteloisi- ldquocapacetes guarnecidos de cauda equumlina com brilhantes penachosrdquo(Il XIII 132) e koacuterythosphaacutelonhippodaseiacutees- ldquocapacete de penacho equumlinordquo (Il IV 459) O vocaacutebulo loacutephos tambeacutem eacute utilizado como ldquopenachordquo loacutephonhippiokhaiacutetenndash ldquopenacho com crina de cavalordquo (Il VI 469) Merece destaque o penacho da koacuterys do capacete de Aquiles que era koacuterytha kryacuteseonloacutephonndash ldquocapacete com penacho douradordquo (Il XVIII 611-2)Aleacutem da koacuterys existe um outro tipo de capacete a kyneacutee Odisseu tinha uma kyneacutee que eacute um capacete formado por pele de catildeo ou couro qualquer (Il X 257 261) A parte exterior do capacete de Odisseu tinha ldquoos dentes reluzentes de um javali com presas brancas dispostos em grande nuacutemero com arte e habilidaderdquo (Il X 261-5) Este tipo de capacete que Meriacuteone deu ao rei de Iacutetaca eacute mencionado uma uacutenica vez em HomeroIn Os equipamentos beacutelicos dos heroacuteis homeacutericos Prof Me Luciene de Lima Oliveira- wwwe-publicacoesuerj2012 18 Tropa armada

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enunciativa - os recursos cocircmicos usados pelo proacuteprio autor - e eacute duplicada da instacircncia

interna para a accedilatildeo dramaacutetica por meio do escaacuternio do personagem do heroacutei cocircmico

Diceoacutepolis eacute um alter ego do autor uma voz autorizada um duplo do proacuteprio

Aristoacutefanes um satiacuterico que ridiculariza dentro da cena o alvo cocircmico central da obra

ridiacuteculo das armas do guerreiro inaugurado no verso 575 com a referecircncia agrave tropa eacute retomado

em toda essa cena e mais tarde nas cenas posteriores protagonizadas por Diceoacutepolis e

Lacircmaco (vv 575-585) JUSTINOacutePOLIS Oacute Bataiatildeo heroacutei dos penacho e das tropa CORO Oacute Bataiatildeo acredita que este home faz eacute tempo Que insulta a nossa cidade todinha BATALHAtildeO Tal coisa tu mendigo te atreves a dizer JUSTINOacutePOLIS Oacute Bataiatildeo oacute heroacutei me perdoe Se seno ismoleu disse alguma bestecircra BATALHAtildeO E o que foi que tu disseste de noacutes Natildeo vais falar JUSTINOacutePOLIS Nem sei mais o que foi Tocirc eacute arripiadin de medo das arma Mas por favocirc afasta de mim esta marmota BATALHAtildeO Pronto JUSTINOacutePOLIS Virrsquo ela de costa pra mim BATALHAtildeO Estaacute virada JUSTINOacutePOLIS Vaiacute me daacute a pena do teu elmo BATALHAtildeO Toma a pluma JUSTINOacutePOLIS Segura a minha cabeccedila Que eu vocirc inguiaacute Tenho eacute nojo desses penacho aiacute

A verdade eacute que seja na comeacutedia aristofacircnica ou no auto suassuniano a estrutura

das cenas revela a construccedilatildeo estrateacutegica que ambos os autores utilizam para criticar e

moralizar atraveacutes de piadas ridicularizaccedilotildees polifonias discursivas e ironias que satildeo

facilmente recebidas e aceitas pelo puacuteblico que diante dos gestos e vozes das personagens

conseguem ser partiacutecipes da ideia gerando empatia e cumplicidade cocircmicas imediatas

65

TERCEIRO ATO

66

3 AS DUAS PECcedilAS ndash O POETA USA MAacuteSCARAS

Eacute fato que associado aos tempos aacuteureos do teatro grego da Eacutepoca Claacutessica estaacute

sem duacutevida o uso da maacutescara Vaacuterias tecircm sido as razotildees apontadas para justificar este fato

tais como a necessidade de melhorar a projeccedilatildeo vocal a possibilidade de facultar aos

espectadores uma visualizaccedilatildeo mais eficaz das personagens ou a exigecircncia do recurso a um

adereccedilo imprescindiacutevel num teatro onde natildeo representavam mulheres

O termo grego prosopon 19 segundo Castiajo (2012) significa lsquofacersquo ou lsquomaacutescararsquo

designava este indispensaacutevel adereccedilo confeccionado com fino linho estucado que era

composto por uma peruca de cabelo natural que podia ser curto ou comprido e de vaacuterias

cores e por um rosto que se ajustava agrave cabeccedila do ator e que possuiacutea apenas uma abertura

para os olhos e outra para a boca bastante alargadas para facilitar a visibilidade da audiecircncia

e para obviamente permitir as condiccedilotildees necessaacuterias ao desempenho do ator a visatildeo e a

emissatildeo vocal Eacute preciso lembrar aqui que como siacutembolo do teatro tatildeo conhecido a maacutescara

era um recurso usado para ampliar a voz do inteacuterprete especialmente na declamaccedilatildeo e ateacute

hoje usamos o termo ldquovoz na maacutescarardquo que corresponde ao aspecto da ressonacircncia superior

o elemento que amplifica a voz fator de grande importacircncia no trabalho do ator capaz de

impulsionar sua voz sem esforccedilo ou com um miacutenimo esforccedilo e ser ouvido plenamente por

todos os ouvintes presentes na plateia

Alguns estudiosos como Pickard-Cambridge (1953) defendem que as primeiras

maacutescaras usadas durante a Idade MeacutediaEacutepoca Claacutessica se caracterizavam por serem bem

mais individualizadas e a falta de expressividade que as feiccedilotildees da maacutescara assumiam

durante a encenaccedilatildeo despertava no entanto no puacuteblico significados muacuteltiplos quando o seu

uso era conjugado com os elementos que constituem o schemandash a postura e os movimentos ndash

a voz humana dos quais nos ocuparemos mais a frente mas que contribuiacuteam de forma

contundente para transmitir agrave audiecircncia sobretudo emoccedilotildees e estados de espiacuterito vividos pelas

personagens que o uso da maacutescara natildeo permitia que transparecessem

Ainda de acordo com Castiajo (2012) essas maacutescaras eram tiacutepicas da comeacutedia

chamadas de maacutescaras-retrato e atraveacutes delas cuja existecircncia eacute atestada pela tradiccedilatildeo

recorria-se a traccedilos comuns das figuras puacuteblicas para se efetivar as representaccedilotildees no espaccedilo

cecircnico

19 Marshall (1999 188) defende que o fato de etimologicamente o termo grego significar tanto lsquofacersquo como lsquomaacutescararsquo eacute um exemplo claro de como estes dois conceitos se imiscuiacuteam no pensamento grego In CASTIAJO Isabel O Teatro Grego em Contexto de Representaccedilatildeo IUCV Portugal Coimbra 2012

67

De qualquer forma e apesar deste caraacuteter impessoal das maacutescaras e da distacircncia que separava atores e espectadores o sexo e a idade dos atores mascarados poderiam ser identificados pelo puacuteblico pois as maacutescaras brancas eram postas em cena para representar uma personagem feminina para uma masculina uma escura Em relaccedilatildeo agrave idade era possiacutevel distinguir trecircs geraccedilotildees diferentes jovens adultos e velhos Assim da combinaccedilatildeo destas duas variaacuteveis resultaram seis tipos convencionais de maacutescaras diferentes usadas tanto na trageacutedia como na comeacutedia a de homem velho (geron) cuja face era escura a barba e os cabelos brancos e com a particularidade de possivelmente ser calvo a de homem maduro (aner)[] (CASTIAJO 2012p8)

Certo eacute que parece legiacutetimo concordar com Marshall (1999) quando afirma que o

uso da maacutescara resulta mais do fato de o espaccedilo de performance ser apropriado para isso do

que da ideia de ser essencial representar mascarado para se transmitir a moral discursiva eou

a consciecircncia de um outro fato que sugere que o motivo subliminar que estaacute na base do uso

da maacutescara nos tempos mais remotos do teatro prende-se a um assunto seacuterio deixar para

traacutes o deus no santuaacuterio o outro ldquoeurdquo criado em sua honra para que este natildeo fosse transposto

para a sociedade real

Em Acarnenses a paroacutedia reveste o rosto da personagem a partir do Teacutelefo traacutegico

de Euriacutepides que em cena estaacute a serviccedilo do cocircmico mascarado como outro perfeito para a

realizaccedilatildeo de um objetivo maior a obtenccedilatildeo da paz

Em Suassuna a ldquoGrande Vozrdquo que inicia a peccedila eacute um Palhaccedilo ndash um mascarado ndash

que de forma carnavalesca apresenta agrave audiecircncia desde os elementos cecircnicos aos

personagens adiantando que o trabalho que seraacute posto em cena se trata de um julgamento

para o exerciacutecio e restabelecimento da moralidade e que ali os proacuteprios espectadores se

reconheceratildeo nos vaacuterios outros duplos que se disfarccedilaratildeo para alcanccedilar o objetivo do autor

que eacute moralizar pelo riso

31 Os gestos a vestimenta o corpo e o disfarce

A comeacutedia pautava-se por uma maior liberdade nas marcaccedilotildees cecircnicas nos

movimentos e nos gestos e por uma maior verossimilhanccedila com a realidade e segundo Pickard-

Cambridge (1953) embora houvesse tambeacutem alguns gestos tiacutepicos ndash como o gesto chamado de

ldquogansordquo executado atraveacutes das matildeos e que simulava o bico de um ganso usado para indicar que

estavam a ser proferidas palavras sem sentido Era tambeacutem comum assistir-se nas comeacutedias a

gestos praticados na trageacutedia mas sob a forma de paroacutedia

68

Apesar da quase inexistecircncia de indicaccedilotildees textuais do autor eacute possiacutevel

reconstruir a movimentaccedilatildeo cecircnica dos atores a partir de indicaccedilotildees dadas pelos proacuteprios de

referecircncias presentes em escoacutelios 20 das representaccedilotildees dos vasos e ainda levando em conta

uma forma de arte muito semelhante a oratoacuteria seguida do gesto por exemplo falar com

determinado tipo de pose colocando a matildeo por baixo da tuacutenica ndash como era tiacutepico da oratoacuteria e

como se pode visualizar em vasos gregos de representaccedilotildees teatrais ndash ou executar movimentos

circulares ndash situaccedilatildeo que se depreende ter acontecido natildeo soacute no contexto teatral como tambeacutem

na realidade dos tribunais

Sob o vieacutes da representaccedilatildeo cecircnica e da importacircncia de seus elementos para criar a

rede de significados junto ao puacuteblico Mate (2011) afirma sobre o gesto-gestual e o

gestualizaacutevel

Importante agrave execuccedilatildeo das cenas o gestual passa pelo corpo do ator que na condiccedilatildeo de ser social irradia complexa e muacuteltipla gama simboloacutegica Levando o puacuteblico a promover uma relaccedilatildeo fundamentada no jogo de decifraccedilatildeo de siacutembolos tanto enigmaacuteticos (mais difiacuteceis de serem traduzidos) e de alegorias (siacutembolos facilmente traduziacuteveis) A troca entre ambos (atores e puacuteblico) ocorre quando o texto que intermedia essa relaccedilatildeo na condiccedilatildeo de um ldquotecido simboacutelicordquo transforma-se em gesto Na condiccedilatildeo de uma fratura do cotidiano o espetaacuteculo que acontece no tempo e no espaccedilo compreende um grande arcabouccedilo de gestualizaccedilatildeo esteacutetico-social

De qualquer forma fosse qual fosse a natureza dos gestos estes necessitavam de

ser executados em grande escala de forma a serem perceptiacuteveis pelos espectadores mais

distantes e por isso eacute expectaacutevel na opiniatildeo de DrsquoArnott (1989) que eles tivessem mais um

cariz funcional do que legitimidade teatral ateacute porque eram resultado de um sem nuacutemero de

convenccedilotildees Em Acarnenses por exemplo a movimentaccedilatildeo acentuada pela dificuldade

estrateacutegica do mendigo resulta natildeo soacute no princiacutepio da pena junto a alguns espectadores e

acusadores como tambeacutem reforccedila na proacutepria audiecircncia a identificaccedilatildeo com a dor do

apresentado

No Auto da Compadecida apoacutes um toque de clarim o Palhaccedilo figura tiacutepica das

apresentaccedilotildees circenses entra e como ocorre durante todo o espetaacuteculo conduz com ajuda do

gestual a encenaccedilatildeo desempenhando a funccedilatildeo de narrador educador dos espectadores pois

20 Para a normatizaccedilatildeo de algumas palavras gregas jaacute dicionarizadas utilizamos a forma de acordo como que consta no Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa (2008) Escoacutelio (gr σχόλιον scholion comentaacuterio interpretaccedilatildeo) satildeo notas gramaticais ou de criacutetica aos autores antigos

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no lugar do autor anuncia o caraacuteter moralizador e religioso da peccedila na qual haacute um combate

ao mundanismo visto pelo autor como uma praga de sua igreja Suassuna por considerar-se

digno de falar sobre tal tema deixa-se ser representado por um palhaccedilo para indicar que sabe

mais do que ningueacutem e por acreditar que o povo sofre e tem direito agrave defesa justa

Outro aspecto que deve ser observado durante boa parte da peccedila satildeo as matildeos

retraiacutedas de Joatildeo Grilo as incontaacuteveis viradas de cabeccedila e as baixadas de olhos revelam natildeo

tatildeo somente sua falta de posicionamento social visiacuteveis nos mais variados e longiacutenquos

lugares do sertatildeo brasileiro como abrem para o leitor-espectador a compreensatildeo do que seria

um instante uacutenico no qual o Grilo planeja minuciosamente sua estrateacutegia de convencimento

da audiecircncia e de seus acusadores e defensores

O leitor atento logo percebe que seja na comeacutedia aristofacircnica ou no auto de

Suassuna o gesto corresponde a uma determinada atitude do corpo (que incorpora as

determinaccedilotildees histoacuterico-sociais em seu sentido estrito e restrito) que no teatro efetiva-se por

meio de siacutembolos sonoros e duplamente gestuais intenccedilatildeo por meio da qual a palavra se

projeta traduzida gestualmente

Quem natildeo codificou os gestos propostos pelos olhos e cabeccedila de Chicoacute ao

procurar no bolso cigarro para contar agrave audiecircncia seus causos que ganham vida no

imaginaacuterio popular Eacute neste universo miacutemico que convidamos o leitor a beber e entender

como nos garante Stanford (1983) que estes gestos convencionais para traduzir a intenccedilatildeo do

autor executados pelos personagens dotados de sensaccedilotildees e por vezes reveladores de

estrateacutegias moralizantes satildeo atemporais e indispensaacuteveis agrave tessitura da obra para a

compreensatildeo dos que assistem e chegam a vivenciar o encenado

Segundo Jameson (1999) o gestus ao dividir a apreensatildeo do espectador provoca

um conjunto de reflexotildees Vecirc-se algo que ao expressar variadas e contraditoacuterias conotaccedilotildees

induz ao cotejamento agrave contraposiccedilatildeo de leituras O espectador afasta-se do que vecirc para

aproximar-se da vida que vive e a partir daiacute voltar agrave obra Em movimento dialeacutetico pode-se

ver aleacutem do aparentemente apreensiacutevel

[] gestus eacute o operador de um efeito de estranhamento no sentido proacuteprio e em particular que o estranhamento deriva da superposiccedilatildeo de cada um destes significados sobre os demais mostrando-nos por exemplo como um movimento involuntaacuterio de matildeo poderia em certas circunstacircncias [] contar como um fatiacutedico ato histoacuterico com consequumlecircncias seacuterias e irreversiacuteveis [] eacute uma superposiccedilatildeo e um estranhamento que natildeo apenas nos faz entender o elemento narrativo especiacutefico a uma luz nova e transformadora mas tambeacutem muda nossas ideias sobre o que eacute um simples gesto fiacutesico e sobre o que ao mesmo tempo conta como um acontecimento histoacuterico (JAMESON 1999 p110)

70

Responsaacutevel tambeacutem pelo convencimento da audiecircncia e como defende

Pickard-Cambridge (1953) o vestuaacuterio estava a serviccedilo dos gestos desempenhando um

importante papel (se natildeo o mesmo) na determinaccedilatildeo pelo puacuteblico do estatuto social

representado pelas personagens cujas caracteriacutesticas podiam facilmente ser expressas atraveacutes

das cores texturas e designs No entanto eacute impossiacutevel determinar com exatidatildeo os figurinos

usados pelos atores nos primeiros tempos do teatro Este fato encontra comprovaccedilatildeo quando

nos lembramos do Teacutelefo de Acarnenses ou do ldquomendigordquo encenado por Severino para entrar

na cidade sem ser denunciado e que em ambos os casos o vestuaacuterio se caracteriza por uma

maior simplicidade e uma maior aproximaccedilatildeo agrave mendicacircncia

Em Acarnenses no momento em que eacute ameaccedilado pelos indignados habitantes de

Acarnas que constituem o Coro Diceoacutepolis necessita de um discurso forte o suficiente para

convencer aqueles homens das boas razotildees das suas treacuteguas privadas Nada como procurar

Euriacutepides e solicitar-lhe os andrajos que tatildeo bem serviram agrave eloquecircncia de Teacutelefo (vv 393-

479) E diante de uma longa lista de personagens andrajosas Diceoacutepolis encontra o seu

Teacutelefo Disfarce perfeito Eacute evidente aqui a noccedilatildeo de que a personagem dramaacutetica natildeo eacute

apenas um conjunto de palavras proferido agrave sombra de um nome mas eacute uma entidade sujeita a

uma construccedilatildeo que decorre das proacuteprias regras e exigecircncias do drama enquanto espetaacuteculo Acarnenses traz o enredo de acordo com a necessidade de defesa colocando o protagonista em maus lenccediloacuteis por ter feito treacuteguas com o inimigo espartano Teacutelefo era mesmo a personagem que melhor se encaixava como disfarce para a defesa do poeta e do protagonista O Teacutelefo de Aristoacutefanes quebra a ilusatildeo dramaacutetica e o paacutethos de que a trageacutedia depende pois enquanto o Teacutelefo de Euriacutepides natildeo se disfarccedila no palco mas parece entrar disfarccedilado de acordo com Foley (1996 135-7) o espectador de Aristoacutefanes vecirc Diceoacutepolis vestir os trapos de Teacutelefo e comeccedilar a se comportar como um mendigo jaacute na cena de aquisiccedilatildeo dos acessoacuterios do disfarce pelo exagero do detalhe e da atuaccedilatildeo de Diceoacutepolis torna-se demasiadamente realiacutestico e natildeo traacutegico Tambeacutem por expor o mecanismo do ekkyacuteklema (408) no momento em que Diceoacutepolis chama Euriacutepides para fora de casa pode sugerir que a comeacutedia desmascara o gecircnero seacuterio mostrando os bastidores do teatro traacutegico mas acrescentando o mesmo mecanismo a sua proacutepria ilusatildeo cocircmica Se o disfarce era para causar compaixatildeo aos acarnenses como ele poderaacute funcionar sem o paacutethos traacutegico (POMPEU 2004 p 83-98)

A escolha de Diceoacutepolis nos assegura que aliado aos gestos o disfarce traduz-se

na melhor estrateacutegia para convencer seus algozes

JUSTINOacutePOLIS Tu compotildee de peacute pra riba Podenotaacute de peacutes no chatildeo por isso tu compotildee os manco Mas por que tu taacute vestido cumrsquosmulambo da trageacutedia Rocircpas de daacute doacute Por isso tu compotildee os ismoleu Mas te imploro pelos teus joeio Euriacutepides Daacute pra mim um mulambo daquela peccedila antiga

71

Pois tenho que falaacute pro coro umleriado grande Ela traz a morte srsquoeufalaacute mal (vv 410-417)

Elemento indispensaacutevel aos planos do heroacutei camponecircs o disfarce se constituiraacute

como mateacuteria prima da accedilatildeo do protagonista ameaccedilado pelo coro Na cena transcrita a seguir

o proacuteprio Diceoacutepolis revela a importacircncia da indumentaacuteria do mendigo para que o torne mais

digno de pena e possa reforccedilar sua estrateacutegia de convencer o coro

EURIacutePIDES Quais trapos Acaso aqueles com que aqui Eneu O coitado do velho concorria JUSTINOacutePOLIS De Eneu natildeo era era de ocirctro mais miserave EURIacutePIDES Os de Fecircnix o ceguinho JUSTINOacutePOLIS Natildeo de Fecircnix natildeo Havia ocirctro mais miserave que Fecircnix EURIacutePIDES Que mantos esfarrapados o homem me pede Seraacute que falas dos de Filoctetes o mendigo JUSTINOacutePOLIS Dele natildeo de um muito muito mais ismoleu EURIacutePIDES Acaso queres os mantos sujos Que Belerofonte tinha este coxo aqui JUSTINOacutePOLIS Natildeo era Belerofonte Mas tambeacutem o tipo era Mancoismoleuquexudo bom de laacutebia EURIacutePIDES Sei quem eacute o homem o miacutesioTeacutelefo JUSTINOacutePOLIS Eacute isso Teacutelefo Dele me daacute eu te suplico os mulambo EURIacutePIDES Oacute rapaz daacute-lhe os trapos do Teacutelefo Estatildeo por cima dos trapos do Tiestes No meio dos de Ino Aqui tens toma laacute (vv 416-434)

Com base nos estudos de Mate (2011) sobre o gestual percebemos a intensidade

causada por este elemento da cena cocircmica durante todo o Auto da Compadecida nas atitudes

de Joatildeo Grilo no balanccedilar do corpo desconsertado nas matildeos que evidenciam a ansiedade de

vinganccedilas contra seus patrotildees ndash o padeiro e a mulher ndash nas viradas de ombro e cabeccedilas tatildeo

comuns na cena social dos longiacutenquos lugares do Nordeste 21 brasileiro Com isso puacuteblico e

personagem se reconhecem na compreensatildeo do que seria um momento para aleacutem do riso do

luacutedico mas plenamente do social que ali ganha vida e ao mesmo tempo se finda nas accedilotildees e

histoacuterias contadas recuperadas da tradiccedilatildeo oral

21 ALBUQUERQUE JUacuteNIOR Durval Muniz de A invenccedilatildeo do Nordeste e outras artes p 66

72

Eacute este o Nordeste universal de Ariano Suassuna lugar de profunda mistura onde o

profano e o sagrado se completam pelos recortes natildeo somente geograacuteficos mas humanos e

imagiacutesticos que servem de ferramentas para autores que voltam suas literaturas para falar da

condiccedilatildeo humana de sobreviver numa regiatildeo tatildeo contraditoacuteria nas incontaacuteveis Taperoaacute que

pulam dos livros e telas e se misturam agrave nossa realidade de forma tatildeo atualizada e recorrente

O Nordeste natildeo eacute um fato inerte na natureza Natildeo estaacute dado desde sempre Os recortes geograacuteficos as regiotildees satildeo fatos humanos satildeo pedaccedilos de histoacuteria magma de enfrentamentos que se cristalizaram satildeo ilusoacuterios ancoradouros da lava da luta social que um dia veio agrave tona e escorreu sobre este territoacuterio O Nordeste eacute uma espacialidade fundada historicamente originada por uma tradiccedilatildeo de pensamento uma imagiacutestica e textos que lhe deram realidade e presenccedila (ALBUQUERQUE2011 p63)

Portanto eacute nessa fonte muacuteltipla de (in)certezas que cortam o universo miacutemico que

Aristoacutefanes e Suassuna nos convidam a entender e deles beber como nos garante Stanford

(1983 85-87) que os gestos convencionais que abrem espaccedilo para a leitura social do autor

estatildeo perfeitamente ligados ao seu contexto fato que desperta no leitorouvinte a mesma teia

de sentidos e sensaccedilotildees vivenciadas pelo autor em seu jogo de enganar para ganhar como

acontece durante o julgamento de Diceoacutepolis pela assembleia em Acarnenses e com Joatildeo

Grilo e os demais no Auto da Compadecida considerandoeacute claroa troca simboacutelica de

conhecimento sobre o encenado que compreende natildeo soacute oral como tambeacutem o gestualizaacutevel

(in)visiacutevel

Assim como as maacutescaras e os gestos o vestuaacuterio constitui-se como um importante

papel (se natildeo mesmo o mais importante) na determinaccedilatildeo pelo puacuteblico do estatuto social

representado pelas personagens cujas caracteriacutesticas podiam facilmente ser expressas atraveacutes

das cores texturas e designs

Se haacute juiacutezes disfarccedilados de vespas um Teacutelefo aristofacircnico indumentado para o

convencimento dos juiacutezes da assembleia que veem Diceoacutepolis como real e ao mesmo tempo o

ilusoacuterio travestido de mendigo para ganhar natildeo perdatildeo de seus algozes mas apenas justificar

seus benefiacutecios Assim devemos pontuar a emergecircncia literaacuteria de Ariano Suassuna ao

colocar seu Teacutelefo em Taperoaacute quando para natildeo ser reconhecido Severino entra na cidade e

em nosso imaginaacuterio vestido tambeacutem de mendigo Em ambos os casos o poeta representou

seu projeto de enganar o mundo em cena pelo puacuteblico que assiste ao espetaacuteculo preso agrave cena

seguinte que alimentaraacute ao seu imaginaacuterio em consonacircncia com o dito pelo poeta romano

Petrocircnio (c 27-66 AD) Mundus vult decipi ergo decipiatur (O mundo quer ser enganado

portanto que seja enganado)

73

Mesmo sendo impossiacutevel determinar com exatidatildeo os figurinos usados pelos

atores nos primeiros tempos do teatro haacute registros que asseguram que figurinos traacutegicos se

baseavam no manto com que Dioniso era frequentemente representado e no que concerne agrave

comeacutedia o vestuaacuterio tiacutepico usado caracterizava-se pela carga grotescamente acentuada

visiacutevel quer na forma como o corpo aparecia enchumaccedilado quer no uso de uma tuacutenica ndash

chiton ndash justa e curta o suficiente para exibir o falo -phallos

O certo eacute que a vestimenta o corpo e o disfarce existem para o Teatro de uma

forma indissociaacutevel se reconstroem a cada cena e em unidade criam e recriam expectativas e

realidades na audiecircncia que assiste agrave peccedila e a vivencia

74

QUARTO ATO

75

4 O AUTOR E SEUS OUTROS NA COMEacuteDIA E NO AUTO

No Quarto Ato tanto em Acarnenses como no Auto da Compadecida

ressaltamos que a figura controversa do poeta esteve pautada pela multiplicidade apresentada

nas accedilotildees cecircnicas das personagens reforccedilando uma atitude dupla polifocircnica e multifacetada

A verdade eacute que a figura do duplo sempre foi e tem sido desde a Antiguidade

insistentemente tematizada sob a inspiraccedilatildeo da literatura aristofacircnica e mais precisamente nos

seacuteculos XVI e XX nos autos de Gil Vicente e de Ariano Suassuna lugar onde encontrou um

terreno feacutertil e vigoroso por ser o ldquoduplordquo revestido por uma aura de misteacuterio e ao esmo

tempo de moralidade No palco do (in)certo que nos revela o teatro analisamos o tema em

duas obras Acarnenses de Aristoacutefanes ndash versatildeo matuta de Ana Maria Ceacutesar Pompeu ndash e no

Auto da Compadecida de Ariano Suassuna tendo por meta ressaltar a partir da accedilatildeo cecircnica a

presenccedila do poeta e de seu discurso moralizante em defesa da cidade

Como tema relacionado agraves vaacuterias vivecircncias humanas o duplo persiste como

temaacutetica sempre pungente e revisitada A ideia do duplo tem estado presente na literatura

desde a Antiguidade retornando na contemporaneidade com ecos da tradiccedilatildeo claacutessica uma

vez que a humanidade vive cercada de elementos relacionados agrave duplicidade e que remetem a

questotildees acentuadamente marcantes como por exemplo o caraacuteter existencial ligado ao ser

masculinofeminino homemanimal espiacuteritocorpo vidamorte ou aos miacutesticos deusdiabo

anjodemocircnio ceacuteuinferno entre outros Desse modo eacute sabido que a praacutetica e a vivecircncia

dessas dualidades desde os primoacuterdios da civilizaccedilatildeo tem conduzido o homem se

(re)conhecer e debater-se sobre a anguacutestia e as dores do duplo

Segundo Mello (2000) a ideia de duplicidade do Eu eacute um conceito antigo e no

que se refere agrave literatura esse tema desperta algumas questotildees inquietantes capazes de nos

levar a reflexotildees sobre - Quem somos - o que a anguacutestia representa senatildeo a falta ndash ou o que

seremos depois da morte Um exemplo praacutetico da temaacutetica do duplo estaacute presente em

narrativas literaacuterias como Metamorfose de Kafka Noite na Taverna de Aacutelvares de Azevedo

O homem duplicado de Joseacute Saramago Don Quixote de La Mancha de Cervantes ou no

conto ldquoO espelhordquo de Machado de Assis e de forma mais especiacutefica em Acarnenses de

Aristoacutefanes e no Auto da Compadecida de Ariano Suassuna

Sob o vieacutes do duplo na literatura Mello ainda afirma que a noccedilatildeo da outra metade

do sujeito expressa para a literatura um novo pensar sobre a identidade pois o indiviacuteduo pode

reconhecer-se como o proacuteprio do que se trata atraveacutes de representaccedilotildees metafoacutericas assim o

desdobramento do eu adquire vocaccedilatildeo especial na literatura

76

A literatura tem uma vocaccedilatildeo especial para tematizar o duplo jaacute que no ato de criar o autor se desdobra em narrador e atraveacutes de seus heroacuteis libera partes aprisionadas em si mesmo que estatildeo sob a maacutescara de um Eu particular fixo no molde da personalidade (MELLO 2000 p 123)

Para uma maior aproximaccedilatildeo com o tragicocircmico no contexto cecircnico do duplo

retornamos ao teatro que na Greacutecia Antiga surgiu a partir de manifestaccedilotildees a Dioniso deus

do vinho da vegetaccedilatildeo do ecircxtase e das metamorfoses Pouco a pouco os rituais dionisiacuteacos

foram se modificando e se transformando em trageacutedias e comeacutedias Entretanto as diferenccedilas

entre o traacutegico e o cocircmico nunca foram tatildeo bem delineadas

Todavia cabe salientar que o Duplo sempre foi um tema profundamente

instigante da cultura humana e sempre esteve essencialmente relacionado vaacuterias aacutereas do

conhecimento como na Filosofia Psicologia Literatura e na Mitologia atuando como

geradora de ambiguidades Na Antiguidade o Duplo era para a sociedade a representaccedilatildeo ou

o reflexo do idecircntico ou seja prevalecia a ideia de Duplo como o homogecircneo manifestaccedilatildeo

do igual

No entanto natildeo permaneceu dessa maneira tendo com o passar do tempo a

partir do seacuteculo XVIII se tornado heterogecircneo isto eacute o Duplo passa a representar o desigual

ou em outras palavras o oposto em Suassuna o arremedo cocircmico Este fato encontra

comprovaccedilatildeo quando procuramos as diferenccedilas existentes entre o traacutegico e o cocircmico tatildeo bem

delineadas na sociedade Greacutecia Claacutessica

41 O par cocircmico na tradiccedilatildeo literaacuteria em Aristoacutefanes e Ariano Suassuna

Nossa pesquisa parte da hipoacutetese especiacutefica de que a dimensatildeo do duplo como o

outro do poeta em Aristoacutefanes e Ariano Suassuna estaacute estruturada a partir da loacutegica binaacuteria do

par cocircmico um par composto pelas intenccedilotildees das personagem e pelas manobras exercidas

pelo poeta para dizer por traacutes das cortinas o que deve ser de conhecimento de todos

Portanto nos propomos enquanto espectadores traccedilar a partir da comeacutedia e do auto diferentes

gecircneros literaacuterio o estudo do par cocircmico de forma a analisar a constituiccedilatildeo dos outros

poeacuteticos em cada uma das obras do corpus selecionado

Neste esteio haacute de se considerar um estudo significativo sobre o assunto

mencionado no trabalho de Beltrametti (2000) que analisa as caracteriacutesticas dos pares

cocircmicos em Aristoacutefanes nos diaacutelogos platocircnicos e no dramaturgo latino Plauto A autora

define em termos gerais a dupla cocircmica como 1) uma unidade dramaacutetica de dois elementos

77

inseparaacuteveis 2) um pivocirc estrutural 3) um noacute semacircntico que liga linhas mais importantes de

senttido

Da caracterizaccedilatildeo proposta por de Beltrametti redefinimos o par cocircmico

aristofacircnico e suassuniano como um esquema binaacuterio composto de dois poacutelos opostos e

complementares o zombador e o zombado o palhaccedilo e o tolo que compotildeem o noacute semacircntico

da accedilatildeo cecircnica que nas obras que compotildeem o corpus deste trabalho estatildeo ao nosso ver a

serviccedilo da voz autoral

Em primeiro lugar como fio de uma produccedilatildeo anterior reconhecemos os

antecedentes literaacuterios do par cocircmico aristofacircnico na Odisseia de Homero quando encontra o

seu modelo mais relevante no binocircmio de Ulisses e do Ciclope no Canto IX Em segundo

lugar traccedilamos a presenccedila da dupla cocircmica suassuniana no auto influenciado pela produccedilatildeo

grega e pela literatura de Gil Vicente de cuja obra nos ocuparemos no V Ato

Entretanto cabe ressaltar que o objetivo central desta parte do nosso estudo eacute

explorar os traccedilos distintivos da dupla cocircmica nesses diferentes gecircneros tendo como base o

duplo poeacutetico e a maneira pela qual os comedioacutegrafos manipulam as accedilotildees das personagens

para construir a interpretaccedilatildeo do puacuteblico

A comeacutedia Acarnenses a primeira do corpus aristofacircnico conservado coloca em

cena a polecircmica poliacutetica entre uma posiccedilatildeo de guerra que desejava a continuidade da guerra

contra Esparta e a posiccedilatildeo contraacuteria que era impulsionada pelo sentimento de paz defendida a

partir do discurso do heroacutei cocircmico Diceoacutepolis

De maneira estrateacutegica Aristoacutefanes age na peccedila de forma a esclarecer para a

audiecircncia sobre os efeitos negativos para a cidade caso a guerra natildeo tenha um fim fato que se

comprova nos estudos de Zumbrunnen (2004) ao analisar a dimensatildeo poliacutetica e persuasiva da

peccedila categorizando-a em uma linha usual as intenccedilotildees seacuterias para aconselhar e influenciar o

puacuteblico em favor do fim da guerra

Em nossa opiniatildeo e seguindo MacDowell (1995) as comeacutedias de Aristoacutefanes

tinham que ser claras e de faacutecil entretenimento para os atenienses comuns atitude que se

justifica pela posiccedilatildeo contraacuteria do proacuteprio autor em relaccedilatildeo agrave guerra estreitada e assegurada

pelo discurso poliacutetico pronunciado na assembleia

Partimos da hipoacutetese especiacutefica de que o par cocircmico na comeacutedia aristofacircnica

constitui um dos seus principais recursos de persuasatildeo cocircmica uma vez que estaacute associado agraves

expectativas do olhar do puacuteblico na interaccedilatildeo cecircnica ndash que tambeacutem se constitui como apartir

do trabalho proposto pelo autor Isso significa que o esquema binaacuterio defendido por

Beltrametti jaacute referido nesta pesquisa funciona por si soacute como uma interpretaccedilatildeo chave para

78

o puacuteblico os telespectadores podem antecipar que o duplo autoral - Diceoacutepolis - seraacute o

condutor central atacado e ridicularizado ndash zombador e acusador ao mesmo tempo no plano

interno da accedilatildeo dramaacutetica

Eacute importante ressaltar no entanto que tanto a comeacutedia de Aristoacutefanes como no

auto de Ariano Suassuna natildeo apresentam personagens idealizados nem absolutamente

indiferentem ao ridiacuteculo ao bobo ou ao piacutecaro As figuras do heroacutei Diceogravepolis e a do bobo

Joatildeo Grilo natildeo satildeo exceccedilotildees

Obscura como outros siacutembolos e projeccedilotildees coletivas a figura do duplo de

Diceoacutepolis em Acarnenses e de Joatildeo Grilo no Auto da Compadecida eacute cocircmica e criacutetica visto

que satildeo elementos que parodiam o serviccedilo divino cantando errado e fazendo sermotildees

moralizantes travestindo-se usando maacutescaras e passeando com maestria nos mundos popular

e erudito representando coletivos pelo poder da gargalhada do riso seacuterio e da tolice formas

mais sutis para se levar ao conhecimento da audiecircncia o desdobramento da consciecircncia ao

mesmo tempo a do idiota e a do bufatildeo que a utiliza como maacutescara e a coloca em praacutetica na

defesa do cidadatildeo injusticcedilado

Klein (1998) assegura que a dualidade implica certa ambiguidade constitutiva

na figura do heroacutei cocircmico e de seu discurso premissa apresentada em Acarnenses e por

extensatildeo aplicada por noacutes no Auto da Compadecida Em ambas as peccedilas o duplo poeacutetico eacute

estuacutepido e saacutebio grosseiro e sutil escravo das pulsotildees e senhor de si mesmo menos e mais

humano como nos afirma Pompeu (2004) ao citar Beltrametti quando a autora escreve que

no teatro de Aristoacutefanes haacute dinacircmicas de pares que satildeo mais complexas

Ela conclui que o teatro de Aristoacutefanes tem seus duplos que satildeo ldquoesses outros si mesmos que tecircm por funccedilatildeo instaurar uma tensatildeo com o si dos protagonistas das comeacutedias fazendo com que as perspectivas se entrelacem tatildeo estreitamente que acabem por se perderrdquo Beltrametti entende ser o par cocircmico ldquo1 Unidade dramaacutetica de dois elementos indissociaacuteveis 2 Princiacutepio e ao mesmo tempo base estrutural 3 Noacute semacircntico onde se ligam as mais importantes linhas do sentidordquo (POMPEU p12)

Assim percebe-se que tanto no teatro aristofacircnico quanto no teatro popular de

Ariano Suassuna o conhecimento eacute expresso natildeo somente pelas maacutescaras e gestos como

tambeacutem pelas vozes cocircmicas que conduzem a plateia ao conhecimento da condiccedilatildeo humana

tatildeo bem levada a seacuterio pelos autores em seus discursos criacuteticos sendo portanto uma nova

forma de combinar velhos ingredientes como o riso frouxo e estridente educador aacutecido da

sociedade que encontra espaccedilo semacircntico atraveacutes dos outros do poeta que se organizam em

uma nova composiccedilatildeo natildeo soacute marcada pela cena teatral mas pela inteligecircncia de um autor

79

que pensa a sociedade para aleacutem das mazelas das injusticcedilas vivenciadas impostas pelo estado

de guerra ou pela exploraccedilatildeo das instituiccedilotildees sociais

Neste ambiente duplicadopolifocircnico observamos que a atitude educadora do

poeta bem como as accedilotildees das personagens que satildeo formadoras da estrutura do discurso

moralizador e porque natildeo dizer denunciador formado a partir da presenccedila de vaacuterias vozes

como a do proacuteprio poeta Haacute de se pontuar pel afirmativa acima que este fato se deve porque

as ldquovozes autoraisrdquo tecircm sido um tema de grande interesse para muitos estudiosos e para todos

que se deparam com a problemaacutetica da identificaccedilatildeo desta quando articulada agrave formaccedilatildeo dos

duplos dentro da Comeacutedia Antiga ou no Auto

Como o Proacuteprio Ariano Suassuna bem jaacute colocou para a construccedilatildeo do Auto da

Compadecida recorreu a uma tradiccedilatildeo cocircmica bastante viva que eacute a literatura oral e popular

do Nordeste dando-lhe novas formas para preservar a autenticidade Condutor de uma seacuterie

de armaccedilotildees ao personagem Joatildeo Grilo o autor conferiu a tarefa de explorar os efeitos

cocircmicos das cenas A presenccedila de Chicoacute o duplo de Joatildeo Grilo tem a mesma importacircncia

para o desenrolar dos atos visto ser ele o mentor das histoacuterias sem peacute nem cabeccedila que

divertem o puacuteblico a ponto de tambeacutem participar da criaccedilatildeo de comicidade

Para Joatildeo Grilo por estrateacutegia do autor coube uma verdadeira consciecircncia de sua

posiccedilatildeo social e a Chicoacute personagem simploacuterio coube toda inocecircncia e imaginaccedilatildeo

JOAtildeO GRILO Vocecirc eacute tatildeo sem confianccedila CHICOacute Eu sem confianccedila Que eacute isso Joatildeo estaacute me desconhecendo Juro como ele vem Quer benzer o cachorro da mulher para ver se o bicho natildeo morre A dificuldade natildeo eacute ele vir eacute o padre benzer O bispo estaacute aiacute e tenho certeza de que o Padre Joatildeo natildeo vai querer benzer o cachorro JOAtildeO GRILO Natildeo vai benzer Por quecirc Que eacute que um cachorro tem de mais CHICOacute Bom eu digo assim porque sei como esse povo eacute cheio de coisas mas natildeo eacute nada de mais Eu mesmo jaacute tive um cavalo bento JOAtildeO GRILO Que eacute isso Chico Jaacute estou ficando por aqui com suas histoacuterias Eacute sempre uma coisa toda esquisita Quando se pede uma explicaccedilatildeo vem sempre com ldquonatildeo sei soacute sei que foi assimrdquo CHICOacute Mas se eu tive mesmo o cavalo meu filho o que eacute que eu vou fazer Vou mentir dizer que natildeo tive JOAtildeO GRILO Vocecirc vem com uma histoacuteria dessas e depois se queixa porque o povo diz que vocecirc eacute sem confianccedila CHICOacute Eu sem confianccedila Antocircnio Martinho estaacute para dar as provas do que eu digo JOAtildeO GRILO Antocircnio Martinho Faz trecircs anos que ele morreu

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CHICOacute Mas era vivo quando eu tive o bicho JOAtildeO GRILO Quando vocecirc teve o bicho E foi vocecirc quem pariu o cavalo Chico CHICOacute Eu natildeo Mas do jeito que as coisas vatildeo natildeo me admiro mais de nada No mecircs passado uma mulher teve um na serra do Araripe para os lados do Cearaacute JOAtildeO GRILO Isso eacute coisa de seca Acaba nisso essa fome ningueacutem pode ter menino e haja cavalo no mundo A comida eacute mais barata e eacute coisa que se pode vender Mas seu cavalo como foi CHICOacute Foi uma velha que me vendeu barato porque ia se mudar mas recomendou todo cuidado porque o cavalo era bento E soacute podia ser mesmo porque cavalo bom como aquele eu nunca tinha visto Uma vez corremos atraacutes de uma garrota das seis da manhatilde ateacute agraves seis da tarde sem parar nem um momento eu a cavalo ele a peacute Fui derrubar a novilha jaacute de noitinha mas quando acabei o serviccedilo e enchocalhei ares olhei ao redor e natildeo conhecia o lugar onde estaacutevamos Tomei uma vereda que havia assim e aiacute tangendo o boi JOAtildeO GRILO O boi Natildeo era uma garrota CHICOacute Uma garrota e um boi JOAtildeO GRILO E vocecirc corria atraacutes do dois de uma vez CHICOacute Corria eacute proibido JOAtildeO GRILO Natildeo mas eu me admiro eacute eles correrem tanto tempo juntos sem se apartarem Como foi isso CHICOacute Natildeo sei soacute sei que foi assim Saiacute tangendo os bois e de repente avistei uma cidade Eacute uma histoacuteria que eu natildeo goste nem de contar (SUASSUNA 2005 p25-28)

Segundo Girondon (1960) para compor o Auto da Compadecida Suassuna

inspirou-se naturalmente na comeacutedia tradicional italiana no que concerne a certos

personagens Os personagens como Joatildeo Grilo e Chicoacute emprestam de muacuteltiplas fontes seus

traccedilos os mais divertidos Satildeo os personagens ldquoheroacuteisrdquo os condutores da accedilatildeo os criados os

zanni 22 dos Italianos Mas revestem igualmente caracteriacutesticas proacuteprias dos piacutecaros23

espanhoacuteis aos tricksters 24 ingleses ao renard do fabulaacuterio francecircs medieval e ao Pedro

Malasartes da literatura popular luso-brasileira

22 A definiccedilatildeo de zanni no dicionaacuterio estaacute no popular teatro do seacuteculo XV tipo do villano dos vales de Bergamo aacutespero pobre ignorante Zanni tambeacutem eacute um bufatildeo palhaccedilo In Alessandra Mignatti La maschera e il viaggio sullorigine dello Zanni Bergamo Moretti amp Vitali 2007 23 ABRAMS David amp SUTTON-SMITH Brian loc cit 24 ABRAMS David amp SUTTON-SMITH Brian The development of the trickster in childrenrsquos narratives Journal of American Folklore90 (355) 1977 23 24

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Duplos Joatildeo Grilo e Chicoacute satildeo personagens transbordantes de vitalidade e de

artimanhas dotados de uma imensa energia na afirmaccedilatildeo de suas inclinaccedilotildees e de suas ideias

Entretanto na criaccedilatildeo literaacuteria do auto Ariano Suassuna revela todo o controle das accedilotildees

visto que nenhuma das personagens controla verdadeiramente o jogo pois satildeo arrastados pelo

processo cocircmico que se reproduz a cada cena

Assim como o duplo aristofacircnico o par Joatildeo Grilo e Chicoacute nos leva a perceber

que as paixotildees e ambiccedilotildees humanas provocam accedilotildees inconsequentes das quais os seres natildeo se

apercebem Eacute como se o autor quisesse aliar intimamente a bufonaria e a verdade humana

num todo Joatildeo Grilo eacute fanfarratildeo que se deleita sobre seu talento de conduzir bem suas

intrigas Contudo Joatildeo Grilo eacute o ldquomarginalrdquo inventivo que busca uma revanche pelas afrontas

que seus patrotildees o fazem sofrer

No plano teatral eacute justamente Joatildeo Grilo quem nos diz das intenccedilotildees do poeta

fazer rir o puacuteblico pela zombaria da proacutepria natureza humana cuja credulidade e ingenuidade

nos fazem perder a consciecircncia dos proacuteprios defeitos Atraveacutes do riso o homem toma

consciecircncia dele mesmo mitigando suas dores e angustias existenciais Todavia como poeta

cocircmico Ariano Suassuna tambeacutem quer nos fazer refletir uma vez que se o riso pode ser

determinante nas reaccedilotildees entatildeo eacute o pensamento que pode auxiliar a compreender a verdade

humana que se oculta atraacutes do riso

Joatildeo Grilo eacute o duplo poeacutetico que reverbera o pensamento de Suassuna contra as

injusticcedilas e nos ensina que de nada serve se deixar paralisar pelo medo e pela covardia eacute

preciso enfrentar as dificuldades No momento em que tudo parece perdido em que a

condenaccedilatildeo ao inferno parece inevitaacutevel ele revela uma feacute inalteraacutevel em si mesmo e se

permite um novo desafio Ele diz

Eacute difiacutecil quer dizer sem jeito Sem jeito Sem jeito por quecirc Vocecircs satildeo uns pamonhas qualquer coisinha estatildeo arriando Natildeo vecirc que tiveram tudo na terra Se tivessem tido que aguentar o rojatildeo de Joatildeo Grilo passando fome e comendo macambira na seca garanto que tinham mais coragem Quer ver eu dar um jeito nisso Padre Joatildeo (SUASSUNA 2005 p167)

Para Ariano Suassuna o palco do teatro eacute um lugar maacutegico onde as imagens

concretas se instalam na cena a cena em forma de quadros quadros dinacircmicos vivos Ao

lado destas imagens concretas ele instala imagens metafoacutericas que incorpora agrave realidade

cecircnica conduzindo o espectador para o entendimento de que o mundo encontra-se com o

teatro mas natildeo o mundo linear homogecircneo mas o mundo agraves avessas que soacute o teatro mostra e

que pode dar agrave realidade uma chance de impor-se pela ressonacircncia da gargalhada

82

Por conseguinte eacute notaacutevel contudo observar que o duplo cocircmico

frequentemente utilizado por Aristoacutefanes em suas peccedilas tambeacutem encontra eco na literatura

popular de Suassuna por apresentar uma tessitura textual atravessada pelas muacuteltiplas vozes de

seus personagens constituindo-se em um fenocircmeno recorrente e natural que aponta para a

tensatildeo de uma crise profunda denunciada pelo proacuteprio poeta em seus discursos De iniacutecio

esclarecemos que em toacutepico especiacutefico trataremos da voz cocircmica entretanto utilizaremos do

termo para nos referirmos ao duplo autoral a partir da identificaccedilatildeo da produccedilatildeo discursiva

Educadores e denunciadores tanto Aristoacutefanes quanto Ariano Suassuna

constroem em seus enredos personagens que usam da autoridade conferida pelo poeta para

ressoar seus anseios e indignaccedilotildees atraveacutes do discurso Ao longo das peccedilas eles projetam seus

duplos de forma que suas proacuteprias vozes possam ser ouvidas indiretamente por traacutes de cada

ato levando o puacuteblico a crer que ouve a voz direta do poeta quer atraveacutes do coro do palhaccedilo

coreuta da paraacutebase

Como justificativa do duplo satildeo em personagens como Diceoacutepolis ou Joatildeo Grilo

que realizam a intenccedilatildeo poeacutetica e eacute ressonante pelo riso da mangofa pelos gestos

performaacuteticos pelo arremedo poeacutetico eou pelo outro travestido de a(u)tor accedilotildees

perfeitamente justificaacuteveis visto que o duplo cocircmico passa a ser o noacute semacircntico entre as

culturas grega e popular utilizando fatos do dia a dia como mateacuteria na representaccedilatildeo de algo

identificado pelo autor atraindo consequentemente a atenccedilatildeo do leitor ou espectador para a

obra

A verdade eacute que a conduccedilatildeo cocircmica e moralizante levada ao espectador encontra

espaccedilo feacutertil em ambas as obras traduzida pela accedilatildeo do poeta a partir das vozes de seus

duplos Diceoacutepolis e Joatildeo Grilo figuras conturbadas em franco desacordo com a situaccedilatildeo

promovida pelos legisladores em Atenas ou na pacata cidade de Taperoaacute Relevantes para

todo o enredo esses protagonistas descobrem-se em atitude de perfeita rebeldia conscientes

das mudanccedilas advindas de suas atitudes e como heroacuteis cocircmicos satildeo tambeacutem autores de uma

saiacuteda que nem sempre pode ser compartilhada socialmente ou compreendida

O proacuteprio Suassuna admite a influecircncia muacuteltipla que sofreu de outros estilos e

gecircneros ao apresentar a peccedila por meio dos contadores de histoacuteria do Auto Portuguecircs e do

Cordel como Chicoacute Joatildeo Grilo e o palhaccedilo responsaacuteveis diretos pela orientaccedilatildeo da

audiecircncia

Diante dessa apropriaccedilatildeo e recuperaccedilatildeo dos mecanismos narrativos da Comeacutedia e

de outros gecircneros literaacuterios como o auto que apresentam um caraacuteter atemporal torna-se

importante salientar que aleacutem de construir ldquomuacuteltiplos cocircmicosrdquo ela apresenta personagens

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natildeo universais como os que satildeo caricaturas de pessoas que viveram em Atenas em um

momento especiacutefico A obra de Aristoacutefanes potildee em cena nomes de figuras eminentes da

Greacutecia antiga como o de poliacuteticos (Cleatildeo e Lacircmaco) pensadores (Soacutecrates) e poetas

(Euriacutepides e Eacutesquilo) A referecircncia a essas personalidades bem como o diaacutelogo com a

mitologia a histoacuteria e o teatro natildeo constituiacutea um problema para a plateia de Aristoacutefanes No

entanto para noacutes leitores de outras geraccedilotildees a percepccedilatildeo de tais referecircncias natildeo eacute assim tatildeo

simples ainda que seja fundamental para a compreensatildeo da comeacutedia

Na comeacutedia aristofacircnica a simples presenccedila de Diceoacutepolis um camponecircs que vai agrave Pnix para falar contra os horrores e caos produzidos pela guerra jaacute se configura como um ato de quebra da normalidade estabelecido pelo autor que autoriza seu duplo agrave defesa da cidade O proacuteprio discurso do personagem que eacute tambeacutem em partes a fala do poeta nos revela uma intenccedilatildeo por traacutes das atitudes daquele que para ter sua paz e celebrar no campo as dioniacutesias rurais eacute marginal no plano da obediecircncia imposta pelos legisladores que lucram com o traacutegico da guerra

Indissociaacuteveis das peccedilas e da proposta autoral as marcas do traacutegico se tornam

modelos de uma tensatildeo que provoca o riso e ficam mais salientes a partir da metade do

Segundo Ato no Auto da Compadecida com a entrada do cangaceiro e de Severino do

Aracaju travestido de mendigo representando o duplo do bem o assassino impiedoso que se

disfarccedila para enganar a cidade a exemplo do que fez Diceoacutepolis em Acarnenses ao vestir-se

de Teacutelefo para tambeacutem burlar a assembleia para justificar seu acordo de paz

Marcados pela polifonia tanto o cangaceiro-mendigo quanto o agricultor-

mendigo se opotildeem aos demais personagens uma vez que entram no jogo cecircnico para roubar a

atenccedilatildeo de seus algozes No Auto da Compadecida Severino acaba provocando a morte de

todos que estatildeo na igreja Em Acarnenses Diceoacutepolis consegue convencer a assembleia Esse

caraacuteter muacuteltiplo torna-se ainda mais evidente na cena do julgamento que abordaremos no V

Ato uma vez que as accedilotildees do poeta e de seus outros cocircmicos tornam-se ainda mais bruscas

pois num inferno tragicocircmico o leitorouvinte pode perceber toda a desconstruccedilatildeo literaacuteria

tanto do espaccedilo ndash inferno ndash quanto das figuras celestiais e demoniacuteacas que sem chegar a um

acordo deixam de certa forma a cabo de espectador o ato de condenar eou absolver as almas

E nesse jogo luacutedico e didaacutetico encenado no abrir e fechar de cortinas que o teatro

aristofacircnicosuassuniano nos proporciona enquanto expectadores haacute uma visatildeo amplamente

criacutetica das accedilotildees humanas seja pelo desejo pessoal pela injuria ou pela proacutepria paroacutedia que

tatildeo bem se propotildee ao convencimento do puacuteblico

84

QUINTO ATO

85

5 O POETA VAI AO INFERNO 51 Quem fala por quem

Como esclarecido anteriormente neste ponto do corpus da tese aprofundaremos

nosso estudo para identificar as ocorrecircncias marcadas pela voz poeacutetica responsaacutevel pelas

vaacuterias atitudes didaacuteticas e criacuteticas indispensaacuteveis ao conhecimento do leitor Para tanto

faremos nossa viagem ao inframundo literaacuterio tomando como base Acarnenses e Ratildes de

Aristoacutefanes o Auto da Compadecida de Ariano Suassuna e o Auto de Barca do Inferno de

Gil Vicente por sua influecircncia na obra suassuniana

Em observaccedilatildeo importante ressalto que em Acarnenses o inferno ao qual nos

referimos seraacute estabelecido pelos horrores trazidos pela guerra cujos motivos seratildeo

questionados por Diceoacutepolis diante da Pnix 25

O caraacuteter didaacutetico do texto eacute expresso pelo proacuteprio autor no verso 499 ldquoO que eacute

justo tambeacutem eacute do conhecimento da comeacutedia Ora o que eu vou dizer pode ser caacuteustico mas

justo eacuterdquo Uma marca deste caraacuteter didaacutetico pode ser visto no discurso e nos nomes de alguns

personagens que tecircm uma significaccedilatildeo alegoacuterica como Diceoacutepolis o personagem principal

significa cidade justa

A peccedila comeccedila com Diceoacutepolis assim como Joatildeo Grilo um homem do campo

forccedilado a migrar para a cidade onde vive em condiccedilotildees precaacuterias qual aguarda a reuniatildeo da

assembleia onde o tema da discussatildeo de um tratado de paz vai ser deliberado que a nosso ver

disfarccedila-se de autor ndash evindencia-se aqui o duplo autoral ndash na Pnix ainda vazia esperando do

iniacutecio da Assembleacuteia Diceopolis explica sua experiecircncia sua dor traacutegica que se refere agrave

anguacutestia vivenciada pela falta de representaccedilatildeo de autores como Eacutesquilo considerado

obsoleto na eacutepoca da guerra com a imposiccedilatildeo da moda de Euriacutepides Na versatildeo matuta de

Pompeu a abertura do proacutelogo se reforccedila pela afirmaccedilatildeo de ali ser o momento no qual o

a(u)tor demonstra as alegrias e tristezas de Diceoacutepolis (Pompeu 2014 p01 vv 9-20)

Mas num eacute que de novo tive uma docirc de trageacutedia Na vez que eu tava abestaiadim esperando Eacutesquilo Aiacute o anunciadocirc disse ldquoTeoacutegnis faz entraacute o teu corordquo Pense numa sacudida grande no meu coraccedilatildeo Mas tive outra alegria na vez que em cima do Mosco Dexiacuteteo entrocirc e cantocirc uma beoacutecia Ainda neste ano quase morri e fiquei foi zaroim vendo

25 A Pnix eacute uma colina na parte interna da cidade de Atenas onde ocorriam as assembleias populares de entatildeo In Moura Filho Lauro Inaacutecio de Transtextualidade e hermenecircutica na comeacutedia de Aristoacutefanes O poeta como mestre da cidade 2012 166f ndash Dissertaccedilatildeo (Mestrado) ndash Universidade Federal do Cearaacute

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Na vez que o Ceacuteris se entortocirc pra tocaacute o hino oacutertio Mas nunca desde que eu tomo banho Meus oacuteio ardero tanto cum sabatildeo Do jeito dacuteagora num dia de assembleia regulaacute De manhatildezinha oacute aiacute esta Pnix sem viva alma O pessoaacute na praccedila tagarela e pra cima e pra baixo

A Pnix sede da Assembleacuteia estava vazia e as pessoas conversando na aacutegora o

que era considera um testemunho da falta de interesse nas assembleias que o poeta atribui agrave

tendecircncia belicista do povo ateniense relutante em votar pela paz

O fato eacute que Aristoacutefanes parece se identificar com o caraacuteter de Diceopolis como

deduzido dos versos 440-445 quando ele se dirige aos espectadores apoacutes citar os versos do

telefone de Euriacutepedes personagem que ele argumentou a favor do fim da guerra diante da

Assembleia (Pompeu 2014 p16)

Eacute que tenho que achaacute que socirc um mendigo hoje Secirc quem socirc natildeo parececirc Os espectadocirc vatildeo sabecirc que socirc eu Mas os coreuta vatildeo ficaacute abestaiadim Pra eu troccedilaacute deles crsquouns palavreado EURIacutePIDES Eu dou pois com uma mente astuta tramas sultilezas

Para o autor em particular esta primeira cena na qual Diceoacutepolis deseja falar

sobre seus motivos para celebrar sua paz revela a importacircncia do campo na cidade de Atenas

O proacuteprio gecircnero da comeacutedia eacute entendido como um fenocircmeno urbano de origem agraacuteria

produto de o mesmo processo de formaccedilatildeo da polis em que este se tornou o centro

organizador do territoacuterio agraacuterio e exploradora de seus produtos

Em geral os problemas da guerra satildeo evidentes para os camponeses uma vez que

os campos aacuteticos foram devastados o que despertou o desejos para receber apoio dos

cavaleiros Assim o inferno promovido pela Guerra do Peloponeso (431-404) trazia era uma

condiccedilatildeo desoladora para a cidade e para o campo Este fato pode ser de acordo com

observaccedilatildeo de Plaacutecido (2007) percebido no discurso proferido por Peacutericles no qual satildeo

destadas as condiccedilotildees histoacutericas que diferenciaram Atenas e Esparta e justificaram taacuteticas

empregadas para a defesa

E se eles atacarem nosso territoacuterio por terra noacutes faremos uma expediccedilatildeo naval contra eles e natildeo seraacute o mesmo que uma parte do Peloponeso seja saqueada e que seja toda a Aacutetica eles natildeo seratildeo capazes de adquirir outras terras sem ter que lutar enquanto noacutes temos terras abundantes tanto nas ilhas como no continente Uma

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grande coisa eacute com efeito o domiacutenio do mar a refletir se focircssemos ilheacuteus quem seria menos inexpugnaacutevel do que noacutes Bem agora eacute necessaacuterio que raciocinando da maneira mais semelhante como se vocecirc fosse um ilheacuteu vocecirc abandone o campo e suas casas e vai defender o mar e a cidade

Diceoacutepolis teria que impressionar os legisladores convececirc-los dos recursos

possiacuteveis para a paz Para tanto ele acusou os priacutetanes confabular para prender Anfiacuteteo um

imortal que ia tente a paz como nos mostra Pompeu (2014) nos versos 56-58

DICEOacutePOLIS Oacute priacutetanes vocecircs tatildeo fazendo mal pra assembleia Arrastando o homem que queria fazecirc treacuteguas Pra noacutes e dependuraacute os escudo

O que se percebe nos versos eacute que um dos temas responsaacuteveis pela situaccedilatildeo de

caos na cidade eacute a manipulaccedilatildeo da democracia do ponto de vista de Aristoacutefanes pelas

autoridades que de alguma forma ganham com acirramento do caraacuteter beacutelico A mesma

reclamaccedilatildeo aparece com respeito aos embaixadores que segundo ele zombam do sofrimento

da cidade conforme os versos 75-76

DICEOacutePOLIS Oacute cidade de Cracircnao Tu num sente natildeo a mangaccedilatildeo dos embaixadocirc

Diceoacutepolis queixa-se do tempo que tem sido incapaz de celebrar a dioniacutesias por

causa das invasotildees espartanas Entretanto ele estaacute convencido de que a paz eacute a garantia das

celebraccedilotildees no campo e para isso decide se livrar da guerra geradora de toda maacute sorte para a

cidade como percebemos pelos o versos (266-267 201-202)

DICEOacutePOLIS Depois de seis ano falo contigo e volto feliz pracuteo meu povoado Eu tando livre da guerra e das coisa ruim Vou eacute entraacute e celebraacute as Dioniacutesia matutardquo

O coro se recusa a ouvir longos discursos como aconteceu com o Soacutecrates

platocircnico no Protaacutegoras ou os espartanos que receberam a embaixada dos jocircnios na eacutepoca da

rebeliatildeo antes das Guerras Meacutedicas

Desta forma o laconicismo se espalha entre os atenienses hostis agraves praacuteticas

retoacutericas da democracia Apesar dos ataques do coro que o acusa de querer concordar com os

inimigos Diceoacutepolis defende que os espartanos natildeo satildeo culpados de tudo

88

Diceoacutepolis entatildeo assumindo o risco de morte elabora o discurso do justo do que

possa ser justo para a cidade e denuncia a retoacuterica fraudulenta dos oradores que enganaram o

povo com o sortileacutegio encantatoacuterio de um discurso mentiroso como se percebe nos versos

(vv) 497-507 DICEOacutePOLIS Num vatildeo ficaacute cum raiva homes espectador Se eu sendo um mendigo na frente dos ateniense Teja em tempo de falaacute sobre a cidade fazendo uma comeacutedia Pois o que eacute justo a comeacutedia tambeacutem conhece E eu vou falaacute coisas terriacuteve mas justa Pois desta vez num vai me caluniaacute Cleacuteon que Estrangeiros tando aqui eu falo mal da cidade Eacute que tamo soacute eacute o concurso das Leneia E os estrangeiro num tatildeo aqui nem os imposto 505 Chega nem os aliado vem das cidade Mas tamo soacute noacutes agora soacute os miacutei debuiado (POMPEU 2014 p17)

Na parte final da peccedila Diceoacutepolis estaacute reconciliado com os acarnenses e seraacute

aclamado pelo Coro como vencedor detentor justo do desfrute dos prazeres do mundo

CORO O home vence cum as palavra e convence o povo a mudaacute De ideia sobre as treacutegua Mas vamo eacute tiraacute a roupa pra passaacute pros anapesto Desde quando dirige os coro de comeacutedia o nosso mestre Num foi pra perto dos espectadocirc pra dizecirc como eacute esperto Mas foi caluniado pelos inimigo no mei dos ateniense de decisatildeo-praacute-jaacute-jaacute De fazecirc comeacutedia cum a nossa cidade e maltrataacute o povo 631 Tem que respondecirc agora pros ateniense de decisatildeo-troca-troca Diz o poeta que fez muita coisa boa pra vocecircs Impedindo vocecircs de secirc enganado demais pelas fala dos estrangeiro De gostaacute de secirc adulado e de secirc uns cidadatildeo molenga 635 Antes os embaixadocirc das cidade pra enganaacute vocecircs Primeiro chamava vocecircs de ldquocoroados de violetardquo e era soacute dizecirc isto Que por causa das coroa sentava logo tudo de rabo em peacute E se algueacutem adulasse vocecircs chamando ldquoAtenas lustrosardquo Conseguia era tudo com o ldquolustrosardquo uma qualidade das sardinha Por isso tudo aiacute eacute que ele eacute responsaacuteve de muita coisa boa pra vocecircs E por tecirc mostrado pro povo nas cidade como eacute secirc democraacutetico Por isso mermo eacute que agora trazendo das cidade pra vocecircs o tributo Vatildeo chegaacute doidim pra vecirc o poeta danado de bom Que se arrisca para dizecirc na frente dos ateniense as coisa justa 645 E assim da ousadia dele jaacute chega eacute longe a fama Quando o Rei tava testando a embaixada dos lacedemocircnio Perguntou primeiro qual das duas cidade eacute mais forte em navios Depois pra qual das duas este poeta podia dizecirc mais palavra ruim Pois estes home ele disse satildeo muito mioacute E na guerra vatildeo vencecirc muito mais por tecirc ele como conseieiro 651 Eacute por isso que os lacedemocircnio propotildee pra vocecircs a paz Mas pede Egina e num eacute esta iacutea Que importa prrsquoeles mas eacute pra apanhaacute o tal poeta Vocecircs num deixe nunca ele partir pois vai fazecirc comeacutedia da justiccedila655 E diz que vai ensinaacute pra vocecircs muita coisa boa pra que sejam feliz Sem adulaacute nem prometecirc salaacuterio nem enganaacute nem um tiquim Sem secirc perverso nem enchendo de elogio mas ensinando o mioacute

89

Depois disto Cleacuteon pode eacute maquinaacute E arquitetaacute tudo contra mim Pois o bem vai taacute eacute comigo e a justiccedila Vai secirc minha aliada e nunca vatildeo me pegaacute Pra cidade sendo igual a ele Medroso e escuiambado Vem caacute Musa chamuscada (POMPEU vv 624-664 p21)

Tatildeo importante quanto a presenccedila do ator em cena a voz do poeta se concretiza

pela (re)criaccedilatildeo da palavra que aleacutem de ser o territoacuterio comum ao locutor e interlocutor

possui tambeacutem uma dimensatildeo sonora e material ao ser emitida e uma dimensatildeo semacircntica

que se constroacutei e revela-se no exerciacutecio do discurso social carregado de sentido moralizante

levado ao leitorexpectador pelo autor atraveacutes do proacuteprio poeta e de seus outros

Nesta parte do nosso trabalho verificaremos como a voz autoral seraacute levada ao

puacuteblico e quais as reais intenccedilotildees do autor por traacutes desse empreacutestimo que eleva os

personagens fazendo com que eles estejam a serviccedilo da moralidade e da defesa dos anseios da

cidade Assim a transferecircncia ou a reproduccedilatildeo de palavras de uma boca para outra apontada

por Bakhtin (1982) gera mudanccedilas de tonalidade e teraacute intenccedilatildeo e possibilidade de

(re)criaccedilatildeo de uma produccedilatildeo cultural histoacuterica e social dando aos personagens ndash porta-vozes

dos autores uma dimensatildeo coletiva que se estabelece como um viacutenculo entre o poeta e seus

outros duplicados

A ldquovoz do poetardquo torna-se fundante da estrutura do discurso e encontra ressonacircncia

na presenccedila dos vaacuterios ecos irreverentes manifestados pelas personagens que articulados

com a vontade do proacuteprio poeta representam a tomada de consciecircncia e a tentativa de se

libertar da opressatildeo social agravada por situaccedilotildees e discursos tatildeo adversos percebidos na

comeacutedia aristofacircnica e nos autos de Ariano Suassuna e Gil Vicente

Assim acredito que faz-se necessaacuterio ressaltar para uma maior compreensatildeo do

leitor que a noccedilatildeo de voz do poeta na Comeacutedia Antiga e no Auto eacute um tema de interesse

para muitos estudiosos todos que se deparam com a questatildeo reconheceram a problemaacutetica de

identificar a voz do outro poeacutetico seus alcance e praacuteticas sociais

Apesar dessa barreira aparentemente intransponiacutevel para o estudo do voz do

poeta nossa pesquisa se norteou na identificaccedilatildeo dessa voz (audiacutevel ou visiacutevel) nas comeacutedias

de Aristoacutefanes e nos autos de Ariano Suassuna e Gil Vicente explorando algumas maneiras

pelas quais a mera noccedilatildeo da voz do poeta pode ser inestimaacutevel ao analisar a comeacutedia e o auto

enfocando seu uso como uma teacutecnica cocircmica manipulada pelo dramaturgo para a realizaccedilatildeo

de seu propoacutesito que aleacutem do riso eacute a tomada de consciecircncia da plateia

90

Eacute pertinente primeiro especificar o que se entende por voz do poeta nesse

contexto tatildeo distante e ao memso tempo tatildeo proacuteximo que tem como condutor o riso Ao

longo das peccedilas de Aristoacutefanes e dos autos de Ariano Suassuna e Gil Vicente uma voz

poeacutetica pode ser ouvida indiretamente por traacutes do drama revelando o mundo no qual o poeta e

seus duplos estatildeo inseridos

Em momentos cheios de misteacuterios o puacuteblico eacute levado a acreditar que a

personagem constantemente troca de lugar com o poeta seja atraveacutes da revelaccedilatildeo de algo

comum ao entendimento do poeta criacutetico e moralizador como por exemplo em Acarnenses

onde atraveacutes de Diceoacutepolis que autorizado por Aristoacutefanes se traveste de Teacutelefo ganha natildeo

somente a voz para por em praacutetica seu plano de enganar a assembleia ao Teacutelefo constituindo-

se tambeacutem como o outro do outro do poeta cocircmico

No Auto da Compadecida compete aos juizes Jesus Virgem Maria e ao Diabo

pares antagocircnicos a representaccedilatildeo do discurso do poeta No plano dinacircmico do enredo

Ariano Suassuna reservou ao cangaceiro Severeino o travestimento de mendigo ndash seu Teacutelefo ndash

como meio de entrar na cidade sem ser reconhecido A Joatildeo Grilo e Chicoacute criticar enganar os

legisladores e representantes da sociedade pela praacutetica do discurso mentiroso

No Auto da Barca do inferno o poeta se revela assim como nas obras citadas

pelas muacuteltiplas vozes que se renovam a cada cena seja atraveacutes dos embates entre o anjo

condutor da nau que leva ao paraiacuteso e os infratores das morais terrenas ou pelas investidas de

Joanes o parvo que espera ao lado do anjo pelas almas que na Terra o desprezaram dando-

lhes a garantia de contar ao juiz as fraquezas dos embarcantes

As maneiras pelas quais Aristoacutefanes Ariano Suassuna e o proacuteprio Gil Vicente

manipulam a noccedilatildeo da voz do poeta satildeo cruciais para entender e revelar a situaccedilatildeo vivenciada

pelas sociedades postas em cena Numa arquitetura perfeita que mistura versos e denuacutencias

tanto Aristoacutefanes e Arianos Suassuna quanto Gil Vicente propositadamente parecem

convidar o puacuteblico a supor que ele estaacute ouvindo a voz direta do poeta quando de fato estatildeo

ouvindo uma voz construiacuteda pelo poeta que submete o mundo a sua proacutepria organizaccedilatildeo

social atraveacutes da linguagem marcada para expor e instaurar uma realidae imaginaacuteria como

afirma Benveniste (1979) A linguagem reproduz o mundo mas submete-o a sua proacutepria organizaccedilatildeo Satildeo logos discurso e razatildeo ao mesmo tempo que os gregos o viam Eacute pelo proacuteprio fato de ser linguagem articulada constituiacuteda por um arranjo orgacircnico de partes uma classificaccedilatildeo formal de objetos e processos () Eacute de fato na e pela linguagem como um indiviacuteduo e sociedade satildeo mutuamente determinados O homem sempre sentiu - e os poetas cantaram com frequecircncia - o poder fundador da linguagem que

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estabelece uma realidade imaginaacuteria dupla que anima as coisas inertes faz ver o que ainda natildeo eacute devolve os desaparecidos (Traduccedilatildeo nossa) 26

Zonin (2006) afirma que de um modo significativo o discurso literaacuterio apresenta

elementos linguiacutesticos para a produccedilatildeo de efeitos expressivos importantes de serem

resgatados na leitura por meio da construccedilatildeo interdiscursiva que eacute o lugar de incorporaccedilatildeo de

um discurso em outro instante em que se daacute o funcionamento polifocircnico marcado pelas

escolhas operadas pelo locutor sobre a liacutengua enquanto contrato coletivo defendido por

Bakhtin na obra Problemas da poeacutetica de Dostoievski

Eacute justamente por esse caraacuteter plural no qual natildeo se sabe quem fala por quem que

se apresentam os poetas e suas vozes autorais refletidos nas palavras que ora enunciam pela

boca do outro ldquonas vozes que espelham um eu possuiacutedo por uma alma alheiardquo (BAKHTIN

1990 p31) Com isso autor e ator se misturam num jogo de vozes no interior do discurso

terreno onde nenhuma palavra eacute particular uacutenica ao criador senatildeo tambeacutem repleta da voz do

outro da criatura

No plano teatral os termos morte e inferno nos datildeo a dimensatildeo do alegoacuterico

proposto tanto na Comeacutedia quanto no Auto Lugares (re)criados para a projeccedilatildeo do

pensamento do autor que se manifestaraacute por meio dos discursos oriundos das esferas social

religiosa e poliacutetica que dizem do sistema democraacutetico e que potencializam na atmosfera

romanesca ares inquietantes e contraditoacuterios de uma pluridiscursividade que se circunscreve

em torno da temaacutetica como afirma Zonin (2006)

No campo social das peccedilas a dramatizaccedilatildeo das outras vozes mostra-se pela voz

do poeta que eacute usada para desenvolver a accedilatildeo cecircnica das personagens dando-lhes a

capacidade de fazer ou dizer mais do que deveriam Ao usar a noccedilatildeo da voz do poeta para

permitir que os personagens falem fora dos limites de suas persoas literaacuterias Aristoacutefanes

Ariano Suassuna e Gil Vicente criam personagens que satildeo inerentemente polifocircnicos fato que

encontra jusitificativa na teoria bakhtiniana

As semelhanccedilas entre Diceoacutepolis e a voz do poeta satildeo deliberadamente criadas e

indiscutivelmente emitidas para incentivar a identificaccedilatildeo entre personagem e poeta uma vez

26 El lenguaje reproduce el mundo pero sometieacutendolo a su propia organizacioacuten Es logos discurso y razoacuten al mismo tiempo como lo vieron los griegos Lo es por el hecho mismo de ser lenguaje articulado consistente en una disposicioacuten orgaacutenica de partes en una clasificacioacuten formal de los objetos y los procesos () Es en efecto en y por La lengua como individuo y sociedad se determinan mutuamente El hombre ha sentido siempre - y los poetas a menudo lo han cantado- el poder fundador del lenguaje que instaura una realidad imaginaria doble que anima las cosas inertes hace ver lo que auacuten no es devuelve aquiacute lo desaparecido (1979 p58)

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que Diceoacutepolis em Acarnenses eacute o porta-voz de seu criador assim como satildeo Joatildeo Grilo no

Auto da Compadecida e Joanes (o bobo) no Auto da Barca do inferno

Um caso especiacutefico da natureza polifocircnica reside nas personagens aristofacircnicas que

permeiam algumas de suas obras e apresentam-se em outros lugares como na abertura de Ratildes

onde Dioniso eacute visto como ator espectador e leitor Dioniso

Natildeo me venhas com histoacuterias Porque eu como espectador De cada vez que assisto a habilidades dessas Satildeo anos de vida que me tiram ( Silva 2014 p36-37) Dioniso Pois estava eu na coberta do navio a ler caacute com os meus bototildees a Androcircmeda quando de repente uma nostalgia me bate ao coraccedilatildeo sabes laacute tu de que maneira (Silva 2014 p41)

Aristoacutefanes estaacute claramente pondo em cena a voz do poeta usando-a por sua vez

para dar sonoridade a outras vozes de tal maneira que a voz do poeta logicamente nos

conduziraacute a uma forma de dialogismo cocircmico

A presenccedila do poeta eacute bastante palpaacutevel natildeo necessariamente como um intrusivo eu mas muitas vezes na variedade interna natildeo homogeneizada de recursos linguiacutesticos organizados para dar voz a outras vozes e que pode ser vista como uma habilidade presente nos outros do poeta capacitados para operar de forma critica diante do contexto social (DOBROV 1995 p 35)

A noccedilatildeo da voz do poeta tambeacutem eacute uacutetil para entender as parabases aristofacircnicas

passagens onde o puacuteblico eacute diretamente abordado e o liacuteder do coro frequentemente e

temporariamente assume um papel quase-autorial como na paraacutebase das Nuvens (vv 518-

526) ou na abertura do Auto da Compadecida quando o Palhaccedilo justifica sua escolha pra

representar o poeta que naquele instante eacute tambeacutem chamado pelo autor de ldquoa grande vozrdquo

PARAacuteBASE

Espectadores vou dizer-vos com desassombro a verdade e que Dioniso que me criou natildeo deixe mentir Bem eu poderia ter vencido e ser considerado um talento no momento em que por vos ter na conta de espectadores de bom gosto vos dei a provar antes de quaisquer outros a mais perfeita das minhas comeacutedias que me custou os olhos da cara de resto Apesar disso vi-me batido e afastado por rivais casca grossa sem o ter merecido E eacute a vocecircs a gente culta por quem empreendi tatildeo dura tarefa que eu censuro (OLIVEIRA e SILVA 1991 p 73)

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PALHACcedilO Ao escrever esta peccedila onde combate o mundanismo praga de sua igreja o autor quis ser representado por um palhaccedilo para indicar que sabe mais do que ningueacutem que sua alma eacute um velho catre cheio de insensatez e de soleacutercia Ele natildeo tinha o direito de tocar nesse tema mas ousou fazecirc-lo baseado no espiacuterito popular de sua gente porque acredita que esse povo sofre eacute um povo salvo e tem direito a certas intimidades (SUASSUNA 2005 p23)

Na abertura da peccedila Auto da Compadecida Ariano Suassuna de pronto jaacute adverte

ao leitor sobre o que ele testemunharaacute sobre sua preferecircncia de ser um porta-voz palhaccedilo que

entende e seraacute ao longo da explanaccedilatildeo a voz do poeta

PALHACcedilO grande voz Auto da Compadecida O julgamento de alguns canalhas entre os quais um sacristatildeo um padre e um bispo para exerciacutecio da moralidade (SUASSUNA 2005 p15)

Sobre a passagem acima e tomando como premissa a teoria de Bakhtin (1990)

percebemos que ele (o autor) eacute a concentraccedilatildeo de vozes multidiscursivas dentre as quais deve

ressoar a sua voz As vozes autorizadas criam o fundo necessaacuterio para a voz do poeta fora do

qual satildeo imperceptiacuteveis natildeo ressoam E analisando as obras propostas no presente trabalho

devemos partir do princiacutepio que ambos os textos estatildeo permeados de outros textos e vozes

ecoantes natildeo somente a do autor mas outras vozes como daqueles que desejam a paz diante

da situaccedilatildeo de guerra ou daqueles que usam dos mais variados meacutetodos de sobrevivecircncia

frente as dificuldades vividas em suas relaccedilotildees e (con)textos sociais no sertatildeo apropriando-se

da vez e da voz do outro em diaacutelogos que por vezes satildeo quase inaudiacuteveis

De acordo com Barros (1999) nessa interaccedilatildeo promovida pelo discurso social

nenhuma palavra eacute nossa pois ela traz a perspectiva de outra voz e por meio dela e de seus

ecos(duplos) contribuiacutemos na construccedilatildeo da sociedade Assim tanto o texto aristofacircnico

quanto o suassuniano marcam a formaccedilatildeo de vaacuterios diaacutelogos de cruzamento de vozes e de

aparecimentos de duplos que se originaram em praacuteticas de linguagem diversificada

socialmente essas vozes que podem tambeacutem ter origem no gestual de cada personagem por

sua vez polemizam as accedilotildees executadas em cena ou se completam ou respondem umas agraves

outras e aos desejos de seus a(u)tores

Os textos satildeo dialoacutegicos porque resultam do embate de muitas vozes sociais podem no entanto produzir efeitos de polifonia quando essas vozes ou algumas delas deixam-se escutar ou de monofonia quando o diaacutelogo eacute mascarado e uma voz apenas faz-se ouvir (BARROS 1999 p06)

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Seguindo essa perspectiva entendemos a proposta de Barros (1999) ao afirmar

que todo texto eacute ldquotecido polifonicamente por fios dialoacutegicos de vozes que polemizam entre si

se completam ou respondem umas as outrasrdquo o que mostra que os textos escolhidos por mais

atemporais que possam parecer podem ser entrecruzados por outros textos e que se interligam

em uma ou mais vozes no mesmo texto ou seja a voz do autor interligando-se ou mesclando-

se com a voz do outro ou dos seus outros Tanto as palavras quanto agraves ideias que vecircm de outrem como condiccedilatildeo discursiva tecem o discurso individual de forma que as vozes ndash elaboradas citadas assimiladas ou simplesmente mascaradas ndash interpenetram-se de maneira a fazer-se ouvir ou a ficar nas sombras autoritaacuterias de um discurso social monologizado (BRAIT 1999 p 1415)

Assim fruto do ataque direto e pessoal tiacutepico da tonalidade vigorosa e didaacutectica

da comeacutedia aristofacircnicas a voz constitui-se como arma contra a animosidade de concorrentes

e rivais como forma de apresentar elementos indispensaacuteveis agrave educaccedilatildeo da cidade

Pretendendo obter a confianccedila do grande puacuteblico principalmente composto de verdadeiros acarnenses pois ele se disfarccedila de Teacutelefo diante dos espectadores tomando-os como cuacutemplices contra os supostos acarnenses do coro Diceoacutepolis se dirige ao puacuteblico e natildeo ao coro falando como mendigo e como poeta cocircmico (POMPEU p 30)

DICEOacutePOLIS Do mei de noacutes uns home ndash num tocirc falando da cidade Vecirc se lembram disso que num tocirc falando da cidade - Mas uns tipim imprestaacuteve de qualidade ruacuteim Sem valocirc da pioacute marca e estrangeirado hellip (ARISTOacuteFANES Acarnenses vv 515-518 ndash em versatildeo matuta para os personagens do campo POMPEU 2014)

A voz do poeta na comeacutedia de Aristoacutefanes confere ao personagem dando-lhe a

autoridade pretendida e a capacidade de fazer ou dizer mais do que o esperado A voz poeacutetica

em sua forccedila tambeacutem permite que Aristoacutefanes possa parodiar outras vozes para efeito cocircmico

criando um discurso carregado de ironia respaldado na capacidade de fazer dizer ou saber

algo que vai aleacutem da audiecircncia e que pode ser indispensaacutevel agrave Cidade

Ao usar a noccedilatildeo da voz do poeta para permitir que Diceoacutepolis fale fora dos limites

literaacuterio Aristoacutefanes cria um personagem inerentemente polifocircnico visto que assume

muacuteltiplas vozes e personagens como o Teacutelefo dramaacutetico de Euriacutepedes Diceoacutepolis passa

explicitamente a representar a voz direta do dramaturgo pondo em cena as palavras que saem

diretamente da boca de Aristoacutefanes

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Diceoacutepolis eacute a voz e a forccedila do proacuteprio argumento aristofacircnico uma vez que ele

proacuteprio se identifica como um poeta cocircmico representando tambeacutem qualquer poeta que

sofreu ataques poliacuteticos incomodado pela exploraccedilatildeo da Cidade pois ldquomesmo a comeacutedia

sabe alguma coisa sobre a verdade e a justiccedila Ao atribuir o caraacuteter muacuteltiplo a Diceoacutepolis

Aristoacutefanes acentua ainda mais seu desejo de dizer aleacutem do que a cidade esperava atraveacutes de

seu porta-voz um roceiro o anti-heroacutei conhecedor das artimanhas dos legisladores que

exploram a Cidade elemento responsaacutevel pela dinacircmica central da comeacutedia pois leva ao

puacuteblico por meio do risiacutevel as verdades necessaacuterias ao discurso justo incentivando-o ou ao

proacuteprio leitor a questionar a validade e a veracidade do jogo diante deles

Para Bergson (1987) o riso natildeo eacute apenas uma reprimenda social mas vem de um

desajuste entre a natureza primeira do homem (que eacute mutaacutevel) e uma espeacutecie de rigidez e

mecanizaccedilatildeo Essa rigidez se manifestaria tanto no niacutevel fiacutesico como no caraacuteter ou seja no

acircmbito moral e psicoloacutegico caracteriacutesticas exploradas no personagem Joatildeo Grilo onde o

risiacutevel e o cocircmico seriam uma forma de desfazer a rigidez social na tentativa de evidenciaacute-la

corrigi-la Para Suassuna (2007) o riso eacute como uma espeacutecie de puniccedilatildeo que a sociedade

confere a algo que a ameaccedila diz em seu livro Iniciaccedilatildeo agrave Esteacutetica

Desta forma o risiacutevel estaacute na inadequaccedilatildeo do comportamento humano

fiacutesicopsicoloacutegico uma vez que excede a normalidade sem causas traacutegicas Suassuna no Auto

da Compadecida nos deixa claro que ali o cocircmico surge como um alerta sobre algo que natildeo

estaacute funcionando bem nas sociedades sendo tambeacutem um instrumento revelador dos

problemas da sociedade como um todo

Atitude bem semelhante eacute do Auto que no uacuteltimo paraacutegrafo fala no Auto da

Compadecida por possuir um enredo que proporciona ao leitorespectador o riso e a dor

numa mistura de trageacutedia e comeacutedia por meio da ldquopalavrardquo (voz do poeta) que eacute dotada de

forccedila e promove sempre encontros com o leitor-ouvinte ou ouvinte-leitor levando-o a

estabelecer uma imensa teia de significados e suas relaccedilotildees reconhecimentos e interaccedilotildees no

mundo-palco de Ariano Suassuna onde ele proacuteprio cria (re)vecirc conceitos recria imagens se

subverte ao ordenado na ressonacircncia das vozes que encontram em Joatildeo Grilo o canal para

torna-se real como afirma Zumthor (2014)

A voz eacute uma subversatildeo ou uma ruptura da clausura do corpo Mas ela atravessa o limite do corpo sem rompecirc-lo ela significa o lugar de um sujeito que natildeo se reduz agrave localizaccedilatildeo pessoal Nesse sentido a voz desaloja o homem de seu corpo Enquanto falo minha voz me faz habitar a minha linguagem Ao mesmo tempo me revela um limite e me libera dele (ZUMTHOR p 81)

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[] Outra tambeacutem importante para nosso raciociacutenio aqui eacute a seguinte Escutar um outro eacute ouvir no silecircncio de si mesmo sua voz que vem de outra parte Essa voz dirigindo-se a mim exige de mim uma atenccedilatildeo que se torna meu lugar pelo tempo dessa escuta Essas palavras natildeo definiriam igualmente bem o fato poeacutetico (ZUMTHOR p 81)

Assim como feito por Diceoacutepolis a palavra-forccedila eacute tomada por Joatildeo Grilo

quando da sua chegada ao que seria a entrada do inferno Assim como um dia os homens

roubaram o fogo dos deuses Joatildeo Grilo a voz dupla do poeta detentor da fala das camadas

populares apropria-se do discurso dos poderosos a fim de que fundidos os dois surja um

texto intenso imbuiacutedo de criacuteticas sociais permeado de escaacuternio e desejo de sobrevivecircncia

No contexto de tensatildeo em que eacute apresentado Joatildeo Grilo eacute convertido a um anti-

heroacutei oprimido e no plano da eacutetica eacute um legiacutetimo malandro que usa do artifiacutecio da

malandragem como uma ferramenta autecircntica de sobrevivecircncia e de luta frente agraves

adversidades sobretudo agravequelas impostas pelos que deteacutem o poder A malandragem portanto

no seu entender natildeo constitui um problema ou pecado grave pois natildeo eacute utilizada para

engrandecimento proacuteprio ou para ascensatildeo econocircmica mas sim para a promoccedilatildeo da justiccedila

social Como podemos ler nos versos do cordelista Paulo Nunes Batista Grilo pra tudo no mundo Tinha uma definiccedilatildeo A sua filosofia Sempre lhe dava razatildeo Pois seguia este ditado Que diz ndash ldquoEstaacute perdoado Ladratildeo que rouba ladratildeordquo Vivendo embora do crime Joatildeo Grilo era caridoso Auxiliava a pobreza Soacute furtava o poderoso Roubava sempre dos nobres Matava a fome dos pobres Mostrando ser generoso (BATISTA 1958 p 28)

Como personagens piacutecaros tanto Joatildeo Grilo como Diceoacutepolis representam os

heroacuteis das obras mas suas construccedilotildees e formaccedilotildees se datildeo agraves avessas uma vez que suas

caracteriacutesticas inversas agrave de um heroacutei dispotildeem de ser aventureiro materialista desleal e de

caraacuteter duvidoso O personagem piacutecaro apresenta algumas caracteriacutesticas singulares sempre estaacute com fome nunca se sente completamente seguro Eacute o mais mortal dos mortais Aparenta natildeo ter princiacutepios morais Aparenta cortejar os poderosos mas acaba por desnudaacute-los como que involuntariamente desmascarando-lhes as franquezas Observa-se que o personagem piacutecaro se envolve em aventuras particulares que representam com fidelidade a realidade da sua condiccedilatildeo social Desta forma revela sua opiniatildeo e suas ideias desafiando as regras sociais (KOTHE 1985 p49)

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As accedilotildees das personagens tanto no Auto quanto na Comeacutedia constituem-se num

instante de ressonacircncia no qual o eu autoral passa a ser polifocircnico se projeta no outro que

tambeacutem se projeta no eu do autor demonstrando ter total conhecimento da realidade numa

dimensatildeo sonora e material pelo exerciacutecio do discurso revelador levado ao leitorexpectador

pelo autor atraveacutes de suas personagens Essa realidade se concretiza pela transferecircncia de

palavras de uma boca para outra como apontada por Bakhtin com forccedila e capacidade de

promover mudanccedilas de tonalidade e de intenccedilatildeo discursiva

Essa atitude representa uma possibilidade de (re)criaccedilatildeo de uma produccedilatildeo

cultural histoacuterica e social que supera a proacutepria noccedilatildeo de oralidade que emerge como porta-

voz de uma dimensatildeo coletiva na qual a singularidade de cada sujeito falante lhe outorga ou

recebe autoridade para agir criando um conjunto de vozes polivalentes pelas quais podemos

afirmar que o narrador passa a atuar como um poeta da voz cuja poeacutetica se inspira nas praacuteticas

sociais e nas vivecircncias de seus atores

511 Ao Hades e com riso frouxo

Em trecircs das peccedilas citadas haacute uma cena de julgamento na qual o poeta moraliza a

accedilatildeo das instituiccedilotildees bem como dos legisladores acontece no inferno ou no Hades ndash Ratildes ndash

Auto da Compadecida e Auto da Barca do Inferno a exceccedilatildeo de Acarnenses cujo cenaacuterio eacute a

Assembleia

Em Ratildes que foi presentada nas Leneias de 405 aC Aristoacutefanes lanccedila matildeo de

artifiacutecios em sua maioria cocircmicos para trazer agrave tona discussotildees literaacuterias da eacutepoca bem como

sua criacutetica social e seu discurso moralizante atraveacutes do qual resgatando-se o poeta tambeacutem

salva a cidade Como bem afirmava Ariano Suassuna a Comeacutedia Grega e o Auto Vicentino o

abasteceram de vaacuterias composiccedilotildees e em Ratildes especificamente observamos que a estrutura

serviu de base para a construccedilatildeo da cena do julgamento tanto em Suassuna quanto em Gil

Vicente

Segundo KOPELMAN (2012 p) Depois de quase um seacuteculo de apogeu o ciclo traacutegico se encerra com a morte de Soacutefocles e Euriacutepides Enquanto instituiccedilatildeo social da cidade ateniense o drama traacutegico reflete os embates e os questionamentos da polis Objetivando o espaccedilo cecircnico o drama eacute avaliado e legitimado pelos cidadatildeos nos Festivais que patrocinam as representaccedilotildees

98

Em Ratildes Aristoacutefanes nos apresenta o cenaacuterio da descida para o infernoHades de um

Dioniso bufatildeo em busca de Euriacutepides como forma de tambeacutem reviver a trageacutedia Entretanto

reforccedila com isso a paroacutedia da descida de Heacutercules

O argumento da peccedila pode ser resumido da seguinte forma Dioniso desce ao Hades

para encontrar Euriacutepides morto recentemente e trazecirc-lo para a terra Atenas estaacute com falta de

poetas e Dioniso estaacute convencido de que Euriacutepides eacute o homem certo Na teatralidade

apresentada o proacuteprio deus eacute uma figura cocircmica eacute acompanhado por um escravo cocircmico e

tenta se dar ares de grandeza no mundo subterracircneo

Depois de uma viagem perigosa ao submundo Dioniso estaacute laacute com uma crise

literaacuteria em pleno andamento Euriacutepides derrotou Eacutesquilo do trono da poesia no Hades e uma

grande discussatildeo surgiu sobre ele Nesta reside o principal da accedilatildeo na peccedila Dioniso eacute

chamado para julgar os dois poetas e a disputa que eacute o cerne da comeacutedia eacute a competiccedilatildeo de

Eacutesquilo e Euriacutepides pelo trono da poesia traacutegica no Hades

Em primeiro lugar para compreender a importacircncia do agoacuten entre Eacutesquilo e

Euriacutepides dois poetas traacutegicos da polis temos que voltar novamente ao contexto do seacuteculo V

a C de Atenas A justificativa do agoacuten encontra-se na situaccedilatildeo da polis a decadecircncia de

Atenas e a ausecircncia de bons poetas jaacute que todos morreram Assim Dioniso possiacutevel alter ego

do proacuteprio Aristoacutefanes quer remediar a situaccedilatildeo entatildeo ele vai para o infernoHades

convencido a trazer de laacute Euriacutepides fazendo do agoacuten uma parte inesperada da peccedila

Aristoacutefanes apresenta de forma brilhante como personagem o proacuteprio Dioniso um

deus meio idiotizado completamente medroso mentiroso e totalmente engraccedilado um

viajante vestido de amarelo de botas mas estranhamente revestido com a pele do leatildeo de

Nemeia e empunhando um cacete como o mais macho dos heroacuteis seu irmatildeo Heacutercules

Para dar iniacutecio a sua empreitada ao lado de seu escravo Xacircntias rumo ao Hades

Dioniso procura por Heacutercules para que este o informe por qual caminho ele poderaacute seguir ateacute

sua chegada ao inferno visto que o proacuteprio Heacutercules jaacute havia realizado o mesmo percurso

No proacutelogo Dioniso explica o motivo da sua viagem Pois tal eacute o desejo que me consome por Euriacutepides (v 66)

Dioniso

Sinto falta de um poeta de talento Eacute que uns jaacute natildeo existem e os que existem natildeo

prestam (vv 72-72)

99

Nos versos seguintes Dioniso prepara com antecedecircncia uma funccedilatildeo de juiz uma

vez que emite sua opiniatildeo sobre os outros poetas Iofonte Agatatildeo Xecircnocles Soacutefocles

Euriacutepides e os jovens poetas (vv78-83) Dioniso Isso natildeo pelo menos antes de tomar Iofonte agrave parte a soacutes longe do Soacutefocles para testar de que eacute que ele eacute capaz Aliaacutes o Euriacutepides que eacute um aldrabatildeo haacute-de dar por paus e por pedras para se raspar comigo para aqui Enquanto o outro que caacute era um bonacheiratildeo haacute-de continuar laacute em baixo o mesmo bonacheiratildeo

Como qualquer heroacutei eacutepico Dioniso na peccedila eacute apresentado como um viajante eacutepico

capaz de feitos heroacuteicos seguido de seu escravo e companheiro Xacircntias que protagonizaraacute ao

lado de seu mestre boa parte das cenas cocircmicas como nos coloca Silva (2014 p 34-39) ao

descrever a cena na qual Dioniso a peacute estaacute acompanhado de um escravo Xacircntias montado

num burro e carregando ao ombro as bagagens vai agrave procura de Heacutercules

Xacircntias Oacute patratildeo e se eu mandasse uma daquelas bocas do costume que sempre fazem rir os espectadores Dioniso Agrave vontadinha a que quiseres menos lsquoestou apertadorsquo Dessa poupa-nos que ateacute jaacute daacute voacutemitos Xacircntias E se fosse entatildeo uma outra daquelas piadas finas Dioniso Desde que natildeo seja lsquoestou agrave rascarsquo Xacircntias Qual haacute-de ser entatildeo Uma de escachar a rir Dioniso Tudo bem vai em frente Haacute soacute aquela famosa livra-te de me vires para caacute com essa Xacircntias Ah natildeo nem por sombras Este que aqui tenho natildeo bolas Quem o carrega sou eu Dioniso Mas carregas como se tu proacuteprio eacutes carregado por outro Xacircntias Tanto natildeo sei Agora que aqui o meu ombro estaacute apertadinho de todo laacute isso estaacute Dioniso Pois entatildeo jaacute que dizes que o burro te natildeo serve para nada eacute a tua vez de seres tu a pegar no burro e a carregar com ele Dioniso Salta daiacute malandro Que depois desta caminhada caacute estou eu diante da porta aonde para comeccedilar me propunha vir Ei moccedilo Oacute moccedilo Moccedilo

100

Heacutercules Quem eacute Seja laacute quem for mandou-se aos coices agrave porta que nem um centauro Ei Explica-me laacute Que raio de ideia vem a ser esta Dioniso Oacute amigo chega aqui Preciso de falar contigo Heacutercules Mas eacute que natildeo consigo espantar o riso ao ver uma pele de leatildeo por cima de um vestido amarelo Que ideia se te meteu na cabeccedila O que fazem juntos um par de botas de senhora e um cacete8 Por que paragens tens tu andado Dioniso Andei embarcado agraves ordens do Cliacutestenes Heacutercules E bateste-te no combate naval Dioniso Bati pois Navios inimigos metemos no fundo uma boa duacutezia deles Heacutercules Vocecircs os dois Dioniso Sim claro Xacircntias Esta ateacute me deixou de olhos arregalados Dioniso Pois estava eu na coberta do navio a ler caacute com os meus bototildees a Androacutemeda quando de repente uma nostalgia me bate ao coraccedilatildeo sabes laacute tu de que maneira Heacutercules Uma nostalgia te bate ao coraccedilatildeo De que dimensatildeo Dioniso Coisa pequena pela medida de Moacutelon Heacutercules Por uma mulher Dioniso Nada disso Heacutercules Por um rapazinho entatildeo Dioniso Nem pensar Heacutercules Por um homem se calhar Dioniso Ai ai Heacutercules Com que entatildeo de panelinha com o Cliacutestenes hem Dioniso Deixa-te de gozo mano que quem se vecirc nelas sou eu Tal eacute a paixatildeo que me devora Heacutercules Paixatildeo Que paixatildeo maninho Dioniso Nem te sei dizer Mas enfm vou tentar explicar-ta por analogia Jaacute alguma vez sentiste assim um desejo suacutebito de sopa Heacutercules

101

De sopa Bolas mil vezes na vida Dioniso E entatildeo faccedilo-me entender ou eacute preciso mais explicaccedilotildees Heacutercules Quanto agrave sopa natildeo Percebi perfeitamente Dioniso Pois tal eacute o desejo que me consome por Euriacutepides Heacutercules Como assim Por Euriacutepides o falecido Dioniso E natildeo haacute quem me tire da cabeccedila a ideia de ir agrave procura dele Heacutercules O quecirc Ao Hades laacute em baixo Dioniso Sim pois e mais abaixo ainda se um tal lugar existir Heacutercules Com que intenccedilatildeo Dioniso Sinto falta de um poeta de talento Eacute que uns jaacute natildeo existem e os que existem natildeo prestam Heacutercules Como assim Entatildeo o Iofonte natildeo estaacute vivo Dioniso Essa eacute ateacute a uacutenica coisa de jeito que por aiacute anda e mesmo assim tenho duacutevidas Porque ateacute sobre esse assunto me falta saber bem o que se passa Heacutercules E porque natildeo trazeres Soacutefocles de preferecircncia a Euriacutepides se tens de trazer algueacutem laacute de baixo Dioniso Isso natildeo pelo menos antes de tomar Iofonte agrave parte a soacutes longe do Soacutefocles para testar de que eacute que ele eacute capaz Aliaacutes o Euriacutepides que eacute um aldrabatildeo haacute-de dar por paus e por pedras para se raspar comigo para aqui Enquanto o outro que caacute era um bonacheiratildeo haacute-de continuar laacute em baixo o mesmo bonacheiratildeo Heacutercules E o Aacutegaton por onde anda ele Dioniso Pocircs-se a mexer foi um ar que lhe deu Um bom poeta que deixou saudades nos amiguinhos dele Heacutercules Para que canto do mundo coitado Heacutercules Ora deixa caacute ver por qual deles hei-de comeccedilar Qual haacute-de ser Haacute um que parte da corda e do banco Enforca-te Dioniso Vira essa boca para laacute Eacute um sufoco esse que dizes Heacutercules Haacute tambeacutem um outro um atalho a direito pisado que eacute um mimo que passa pelo almofariz Dioniso Eacute a cicuta que queres dizer

102

Heacutercules Ora nem mais Dioniso Esse eacute frio de cortar agrave faca mesmo Faz logo enregelar as canelas Heacutercules Queres que te diga um raacutepido e sempre a descer Dioniso Corsquoos diabos esse sim que como andarilho sou um desastre Heacutercules Pois bem vai ateacute ao Ceramico Dioniso E depois Heacutercules Sobe agravequela torre alta que laacute estaacute Dioniso E o que eacute que eu faccedilo Heacutercules Assiste laacute do alto agrave largada da corrida dos archotes E depois quando o puacuteblico gritar lsquopartidarsquo tu partes laacute de cima tambeacutem Dioniso Para onde Heacutercules Caacute para baixo Dioniso Assim dou mas eacute cabo dos miolos Natildeo natildeo vou seguir por esse caminho de que falas Heacutercules Entatildeo qual haacute-de ser Dioniso Aquele mesmo por onde tambeacutem tu outrora laacute chegaste Heacutercules Soacute que esse eacute uma maccediladoria de marinharia Para comeccedilar vais dar a um lago enorme sem fundo Dioniso E depois como eacute que eu atravesso Heacutercules Num barquinho assim pequenininho um velho barqueiro vai-te atravessar por dois oacutebolos a passagem

Ao seguir as informaccedilotildees dadas por Heacutercules Dioniso encontra o barqueiro

Caronte que cobra dois oacutebolos para atravessaacute-lo pelo pacircntano Durante esta travessia Dioniso

discute com as Ratildes que habitam o ambiente porque o barulho recorrente de seus

brequequequequex coax coax o deixam irritado

No inferno Dioniso eacute ameaccedilado de morte pelo Eacuteaco (juiz dos mortos) que o

confunde com Heacutercules jaacute que Dioniso estava disfarccedilado e o acusa-o de ter levado o catildeo de

guarda do inferno(vv605-608)

103

Eacuteaco Prendam-mo depressa este ladratildeo de catildees para que leve o corretivo que merece Vamos despachem-se Dioniso A coisa estaacute torta para algueacutem Xacircntias Vatildeo agravequela parte Alto laacute Eacuteaco Ai eacute queres luta Oacute Camelo oacute Macacatildeo oacute Peidoso Cheguem caacute e faccedilam frente a este gajo

Assim tem-se iniacutecio a algo que seria o agoacuten entre os poetas Euriacutepides e Eacutesquilo (vv 860-870)

Euriacutepides Pois por minha parte estou pronto ndash e longe de mim escusar-me ndash a morder ou a ser mordido primeiro como ele quiser nos diaacutelogos nos cantos nas fibras nevraacutelgicas da trageacutedia e ndash caramba ndash ateacute no Peleu no Eacuteolo no Meleagro e principalmente no Teacutelefo Dioniso (a Eacutesquilo) E tu o que pretendes fazer Diz laacute Eacutesquilo Eacutesquilo O que eu queria era natildeo estar metido nesta discussatildeo Porque um concurso entre noacutes os dois nunca eacute imparcial Dioniso Como assim Eacutesquilo Eacute que a minha poesia natildeo morreu comigo enquanto a dele bateu as botas com ele logo ele pode recitaacute-la aqui Mas enfim jaacute que assim o entendes natildeo haacute outra soluccedilatildeo Dioniso O incenso e o fogo vamos laacute Quero fazer uma prece antes de me assumir como aacuterbitro das vossas subtilezas para que atue com toda a competecircncia de que for capaz E vocecircs acompanhem-me com um canto agraves Musas A entrada do Coro acirra a tomada de decisatildeo por parte de Dioniso (vv875) Coro Donzelas nove filhas de Zeus Musas divinas que do alto olhais os espiacuteritos subtis e engenhosos dos poetas cinzeladores de sentenccedilas agora que eles se confrontam com golpes estudados e se digladiam com argumentos sinuosos observai a potecircncia 880 destas duas bocas tatildeo haacutebeis em produzir palavreado e serradura de versos Pois estaacute iminente o grande concurso do talento Dioniso (a ambos os poetas) (vv 885 - 895) Faccedilam tambeacutem a vossa oraccedilatildeo vocecircs os dois antes de recitarem os vossos versos Eacutesquilo Demeacuteter tu que alimentaste o meu espiacuterito faz com que eu seja digno dos teus misteacuterios Dioniso (a Euriacutepides) Agora tu toma laacute tambeacutem o incenso e faz uma oferenda Euriacutepides Natildeo obrigado Satildeo outros os deuses da minha devoccedilatildeo Dioniso Deuses exclusivos de cunhagem nova Euriacutepides Absolutamente

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Dioniso Pois bem invoca entatildeo os teus deuses privativos Euriacutepides Eacuteter que me alimentas Eixo da minha liacutengua Inteligecircncia e voacutes Narinas de faro penetrante fazei com que eu consiga refutar com eficaacutecia os argumentos que me surjam pela frente Coro (895-900) Pois bem tambeacutem noacutes estamos desejosos de ouvir estes dois geacutenios e de ver que batalha de argumentos vocecircs vatildeo esgrimir Vamos decircem iniacutecio agrave disputa A liacutengua de um e de outro eacute viperina o acircnimo natildeo lhes carece de audaacutecia nem o espiacuterito de agilidade Pode de um esperar-se que tenha uma tirada de espiacuterito limada com requinte do outro que arranque as palavras pela raiz que agarre nelas e desanque o inimigo levantando uma poeirada de versos Corifeu (aos dois poetas) (vv905 -912) Vamos depressa eacute hora de cada um se pronunciar Mas tratem de usar uma linguagem de bom gosto nada de floreados nem dessas patacoadas acessiacuteveis a qualquer um Euriacutepides Muito bem Quanto a mim e ao que valho como poeta eacute mateacuteria que deixo para depois Para jaacute vou desmascarar este sujeito como um parlapatatildeo e um vigarista e revelar por que processos ele fazia o ninho atraacutes da orelha de um puacuteblico de imbecis criado na escola de Friacutenico Antes de mais nada sentava uma personagem solitaacuteria coberta de veacuteus um Aquiles ou uma Nigraveobe por exemplo sem lhe mostrar a cara ndash um perfeito alarde de trageacutedia Quanto a tugir ou mugirnem poacute Dioniso (vv913) (a Eacutesquilo) Era isso sim era isso mesmo Dioniso (vv922- 930) Olha o safado Como ele fazia de mim parvo Porque te torces todo e me potildees essa cara de caso Euriacutepides Eacute por eu o desmascarar A seguir depois destas patacoadas quando a peccedila jaacute ia a meio saiacutea-se com uma duacutezia de mastodontes daquele palavreado de sobrolho e penacho uns papotildees de meter medo desconhecidos dos espectadores Eacutesquilo Com mil demoacutenios Dioniso Cala-te Euriacutepides Que se percebesse nem uma palavrinha para amostra Dioniso Natildeo ranjas os dentes Euriacutepides Eram soacute Escamandros trincheiras e gravadas nos escudos aacuteguias-grifos forjadas em bronze e palavras montadas a cavalo que natildeo era faacutecil digerir

Apoacutes estas discussotildees nas quais as obras literaacuterias e seus proacutelogos satildeo avaliados

Dioniso eacute forccedilado a decidir rapidamente sobre quem seraacute o vencedor do concurso e decide

pesar os versos de cada um na balanccedila O prato de Eacutesquilo pesou mais entatildeo Dioniso

105

novamente pressionado por Hades se pronunciou dizendo que resgataria do inferno Eacutesquilo

por sua visatildeo ciacutevica e educadora da cidade

No entanto o que foi realmente decisivo foi o efeito moral da poesia isto eacute a

capacidade do poeta de tornar as pessoas melhores E eacute esta dimensatildeo moral da poesia que fez

Dioniso escolher Eacutesquilo porque sua proposta era um plano de accedilatildeo contra o que

representava Euriacutepides A vitoacuteria de Eacutesquilo nos diz que a funccedilatildeo social da poesia eacute mais

importante do que qualquer outro aspecto para a polis Assim Aristoacutefanes buscou natildeo apenas

divertir o puacuteblico em sua representaccedilatildeo mas tambeacutem conscientizar as pessoas de que atraveacutes

de mudanccedilas no modelo poliacutetico o antigo esplendor poderia ser restaurado para Atenas

Importante notar que seja em Acarnenses Ratildes Auto da Compadecida ou no Auto

da Barca do Inferno os autores mantiveram uma unidade teatral atemporal o julgamento A

cena do julgamento nas peccedilas referidas marca sensivelmente a preocupaccedilatildeo dos autores em

salvar a cidade e moralizar suas instituiccedilotildees quer seja em Atenas Portugal ou Taperoaacute

Outro fato que deve ser considerado do ponto de vista literaacuterio eacute a divisatildeo das

peccedilas a partir da ideia de julgar para salvar visto que todas estatildeo dividas em duas partes

sendo a primeira burlesca e fantaacutestica tendo como mote a viagem ao mundo dos mortos ndash

encontro com o encourado ndash Barqueiroanjo democircnio ndash poetas mortos e a paroacutedia literaacuteria do

Teacutelefo de Euriacutepides na qual o teatro vai agrave cidade e a segunda com feiccedilatildeo moral e tambeacutem

literaacuteria seja pela retomada da consciecircncia das injusticcedilas (mesmos mortos) pela

condenaccedilatildeoabsolviccedilatildeo ou em Acarnenses pela delaccedilatildeo na Assembleia de toda a maacute sorte

pela qual passa o povo devido agrave guerra

52 O julgamento O riso a morte e o descanso do (in)justo

A ideia de justiccedila sem duacutevida ocupou um lugar privilegiado na ponderaccedilatildeo dos

antigos gregos Desvendando o seu significado determinando o seu alcance especificando o

seu papel - poliacutetico e ou social regulando a sua praacutetica esta foi sempre uma preocupaccedilatildeo

das mais genuiacutenas

Nesta parte do nosso trabalho refletiremos sobre como a ideia de justiccedila tambeacutem

encontra no Auto e na Comeacutedia grega uma expressatildeo proacutepria Atenta aos valores de natureza

social eacutetica e poliacutetica tanto a Comeacutedia quanto o Auto proclamam abertamente a prerrogativa

de saber o que eacute verdadeiramente justo

106

No Auto da Compadecida e no Auto da Barca do Inferno obras para agraves quais

voltaremos nossa atenccedilatildeo ceacuteu e inferno se misturam na promoccedilatildeo da justiccedila e encontram no

humano e no divino espaccedilos para a construccedilatildeo do que seria justo e bem medido ao ser

humano

Nesse cenaacuterio conturbado e perturbador morte e vida se apresentam natildeo de forma

antagocircnica mas dependentes ligadas ao natural do humano viver os prazeres sem a devida

preocupaccedilatildeo com o dia do juiacutezo final no qual todos seratildeo responsabilizados pelos atos

cometidos pendentes para o bem ou para o mal

A morte eacute um fato universal que desde tempos imemoriais tem preocupado a

humanidade Eacute possiacutevel que todas as culturas tenham dedicado rituais simboacutelicos para tentar

sobreviver agrave morte uma realidade tatildeo justa que afeta a todos igualmente Rico pobre

Soberanos e mendigos ningueacutem se livra de ser inerte Embora o corpo pereccedila muitas

sociedades tecircm sido obstinadas em tentar salvar a alma do falecido ou pelo menos

encomendaacute-las a um julgamento (in)justo

No Auto da Compadecida a morte vinculada a Joatildeo Grilo estaacute envolvida em um

clima de tensatildeo entre a comeacutedia e a trageacutedia Ateacute mesmo no momento da morte apoacutes o tira

dado pelo comparsa de Severino Joatildeo faz graccedila diante da morte ldquoDeixe de latomia Chicoacute

parece que nunca viu um homem morrer Nisso tudo eu soacute lamento eacute perder o testamento do

cachorro (SUASSUNA 1995 p133)

A cena do julgamento no Auto da Compadecida eacute uma recriaccedilatildeo advinda do

imaginaacuterio popular cordelesco que vecirc na morte a possibilidade de se encontrar com o divino

mesmo sabendo que a entrada para o ceacuteu purgatoacuterio ou inferno estaacute ligada a um acerto de

contas um julgamento Ariano Suassuna ao apresentar essa imagem resgata os grandes autos

medievais que tinham uma preocupaccedilatildeo religiosa como o Auto da Barca do Inferno de Gil

Vicente obra na qual se verifica que haacute embora de modo diferente da obra de Suassuna a

figura do Diabo acusando cada um daqueles que aparecem indicando para qual barca devem

ir

No Auto da Barca do Inferno tambeacutem conhecido como o Auto da Moralidade o

termo morte foi associado por Gil Vicente ao discernimento entre o Bem e o Mal que se

reflete como elemento necessaacuterio para a expiaccedilatildeo dos pecados Assim a locuccedilatildeo latina

castigat ridendo mores encontra base na temaacutetica da equitaccedilatildeo dos costumes do castigado

sendo representada na vida pelo teatro de forma a caracterizar certos aspectos da sociedade

portuguesa o que tambeacuterm favorece uma anaacutelise mais vivamente sagaz com visatildeo criacutetica de

107

alguns personagens tiacutepicos representantes de certos estratos sociais e espectros

socioeconocircmicos muito variados presentes em Aristoacutefanes e Ariano Suassuna

Aleacutem de grande influecircncia sobre da literatura de Ariano Suassuna a obra

vicentina representa o encontro entre a heranccedila medieval e o espiacuterito renascentista

sagazmente criacutetico revelador e delatoacuterio da imoralidade institucional e dos viacutecios da

sociedade incapaz de assumir a responsabilidade dos seus atos e da sua conduta como se

pode constatar no diaacutelogo inicial entre o Diabo e o Fidalgo na cena II no Auto da Barca do

Inferno na qual o autor nos prepara para o julgamento dos passageiros das naus

Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz

FIDALGO Esta barca para onde vai Que assim estaacute apercebida DIABO Vai para a ilha perdida E haacute de partir daqui a nada FIDALGO E para laacute vai a senhora DIABO Sou um senhor Ao vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isto um corticcedilo DIABO Porque a vedes daiacute de fora FIDALGO Pois sim e por que terra passais DIABO Para o inferno senhor FIDALGO Uma terra sem-sabor DIABO O quecirc Mas tambeacutem disso zombais FIDALGO E que passageiros achais Para tal embarcaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo Para ir no nosso caishellip FIDALGO Parece-te a ti assim DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que deixo na outra vida Quem reze sempre por mim DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi Tu que viveste a teu prazer

108

Pensando caacute guarnecer (salvares-te) Por aqueles que laacute rezam por ti Embarcai agora embarcai Que haveis de ir nas traseiras Mandai meter a cadeira Como tambeacutem passou o vosso pai (Gil Vicente p7-11)

Pela passagem acima fica clara a intenccedilatildeo do poeta em preparar o leitor para a

carga de zombaria que seraacute utilizada como recurso estiliacutestico necessaacuterio capaz de impor a

moralidade perante um conjunto significativo de tipos cocircmicos que post mortem requerem

suas entradas no ceacuteu Gil Vicente conhecedor das fragilidades de sua sociedade apresenta em

seu inferno cocircmico tipos caracteriacutesticos que podem perfeitamente ser ajustados agraves literaturas

mais atuais

Satildeo personagens como o fidalgo o onzeneiro o frade o sapateiro a alcoviteira o

judeu o corregedor ou o procurador entre outros os quais o poeta decide tornar natildeo soacute alvo

de galhofa geral mas tambeacutem um exemplo a natildeo seguir expondo-os explicitamente diante do

julgamento final despojados de todas as riquezas e possessotildees terrenas

521 Aqui eacute o inferno vocecirc pode brincar

Joatildeo Joatildeo Morreu Ai meu Deus morreu pobre de Joatildeo Grilo Tatildeo amarelo tatildeo safado e morrer assim Que eacute que eu faccedilo no mundo sem Joatildeo Joatildeo Joatildeo Natildeo tem mais jeito Joatildeo Grilo morreu Acabou-se o Grilo mais inteligente do mundo Cumpriu sua sentenccedila e encontrou-se com o uacutenico mal irremediaacutevel aquilo que eacute a marca de nosso estranho destino sobre a terra aquele fato sem explicaccedilatildeo que iguala tudo o que eacute vivo num soacute rebanho de condenados porque tudo o que eacute vivo morre (ARIANO SUASSUNA 2005 p113)

A cena transcrita na citaccedilatildeo eacute o iniacutecio do que consideramos como o argumento

teatral que motiva o riso no julgamento das almas diferente do resto da obra pois as situaccedilotildees

que satildeo abordadas neste ato revelam em primeiro plano um tom traacutegico mas ao contraacuterio

pelo desvio que encerra a representaccedilatildeo causam natildeo o temor ou pena mas o riso e a reflexatildeo

A exemplo de Aristoacutefanes e Gil Vicente Suassuna utiliza dos expedientes da

paraacutebase e do coro como seus proacuteprios lugares ideoloacutegicos representando o locus privilegiado

onde podemos traccedilar o efeito de suas poliacuteticas e particularmente o teor criacutetico que se

apresenta nos versos dedicados ao coro encenado pelo personagem-palhaccedilo Na verdade o

significado do discurso moralizante e humoriacutestico introduzido pelo coreuta circense eacute sempre

orientado para um corpo social ou para certos grupos e quando se expressa com tom poeacutetico

de uma comeacutedia eacute sempre uma expressatildeo dirigida a um grupo especiacutefico instituiccedilotildees de uma

dada realidade

109

No caso do tribunal celeste ou na travessia das naus essa realidade move e

denuncia as cenas que se desenvolvem pelo intenso debate entre o Anjo ou o Diabo com seus

hoacutespedes e no caso do Auto da Compadecida do anti-heroacutei Joatildeo Grilo com os mortos e seres

divinizados a partir do proacutelogo estabelecido pela entrada do Palhaccedilo que adverte ao puacuteblico

sobre o assunto posto justificando a dupla funccedilatildeo apresentar o argumento da peccedila e

estabelecer a captatio beneuolentiae 27 clamando pela atenccedilatildeo da plateia dando o tom cocircmico

desde o iniacutecio para prender a atenccedilatildeo da assistecircncia sobre os ensinamentos que ali seratildeo

apresentados PALHACcedilO Que bem precisada anda disso Saia e vaacute rezar laacute fora Muito bem com toda essa gente morta o espetaacuteculo continua e teratildeo oportunidade de assistir seu julgamento Espero que todos os presentes aproveitem os ensinamentos desta peccedila e reformem suas vidas se bem que eu tenha certeza de que todos os que estatildeo aqui satildeo uns verdadeiros santos praticantes da virtude do amor a Deus e ao proacuteximo sem maldade sem mesquinhez incapazes de julgar e de falar mal dos outros generosos sem avareza oacutetimos patrotildees excelentes empregados soacutebrios castos e pacientes E basta se bem que seja pouco Muacutesica (ARIANO SUASSUNA 2005 p117)

O desenvolvimento do julgamento traz elementos superiores e sobrenaturais

comuns na trageacutedia grega que Suassuna representa ao modo nordestino como o Diabo o

Encourado Jesus e Maria A presenccedila dessas divindades na obra que aliaacutes se apresentam a

partir do imaginaacuterio maacutescara do psicoloacutegico aleacutem de suscitar a reflexatildeo sobre os atos que o

homem comete em vida manifesta a denuacutencia que o autor imbrica no texto revelando que de

alguma forma a sociedade seraacute julgada e poderaacute sofrer puniccedilotildees apontando desta forma o

caraacuteter cocircmico e moralizador do auto como vemos abaixo DEMOcircNIO Calem-se todos Chegou a hora da verdade JOAtildeO GRILO Entatildeo jaacute sei que estou desgraccedilado porque comigo era na mentira DEMOcircNIO Vocecircs agora vatildeo pagar tudo o que fizeram ENCOURADO Vamos aos fatos Que vergonha Todos tremendo Tatildeo corajosos antes tatildeo covardes agora O Senhor Bispo tatildeo cheio de dignidade o padre o valente Severino E vocecirc o Grilo que enganava todo o mundo tremendo como qualquer safado JOAtildeO GRILO Que eacute que posso fazer Jaacute disse mais de cem vezes a mim que natildeo tremesse e tremo ENCOURADO

27 Captatio benevolentiae eacute uma categoria retoacuterica que visa capturar a boa vontade do puacuteblico no iniacutecio de um discurso (exoacuterdio prooemium) ou apelo No entanto o termo teacutecnico natildeo eacute encontrado nos manuais retoacutericos da Antiguidade Latinafoi usado pela primeira vez por Boeacutecio (falecido em 524 EC) em seu comentaacuterio sobre os escritos de Ciacutecero Literalmente significa atrair a benevolecircncia Refere-se a uma estrateacutegia usada quando o autor se dirige ao puacuteblico leitor visando conquistar a sua simpatia In E-Dicionaacuterio de Termos Literaacuterios (EDTL) coord de Carlos Ceia ISBN 989-20-0088-9 lthttpwwwedtlcomptgt consultado em 02-09-2018

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E tem razatildeo porque o que vai lhe acontecer eacute coisa muito seacuteria Eacute engraccedilado como vocecircs empregam agraves vezes a palavra exata sem terem consciecircncia perfeita do fato O que vocecirc sentiu foi exatamente um arrepio de danado Leve a todos para dentro SEVERINO Ai meu Deus vou pagar minhas mortes no inferno BISPO Senhor democircnio tenha compaixatildeo de um pobre Bispo ENCOURADO Ah compaixatildeo Como pilheacuteria eacute boa Vamos todos para dentro Para dentro jaacute disse Todos para o fogo eterno para padecer comigo BISPO Ai Leve o Padre PADRE Ai Leve o sacristatildeo SACRISTAtildeO Ai Leve o Severino JOAtildeO GRILO Parem parem Acabem com essa molecagem JOAtildeO GRILO Acabem com essa molecagem Diabo dum barulho danado Eacute assim eacute Eacute assim eacute ENCOURADO Assim como JOAtildeO GRILO Eacute assim de vez Eacute soacute dizer ldquopra dentrordquo e vai tudo Que diabo de tribunal eacute esse que natildeo tem apelaccedilatildeo ENCOURADO Eacute assim mesmo e natildeo tem para onde fugir JOAtildeO GRILO Sai daiacute pai da mentira Sempre ouvi dizer que para se condenar uma pessoa ela tem de ser ouvida BISPO Eu tambeacutem Boa Joatildeo Grilo PADRE Boa Joatildeo Grilo MULHER Boa Joatildeo Grilo PADEIRO Vocecirc achou boa MULHER Achei PADEIRO Entatildeo eu tambeacutem achei Boa Joatildeo Grilo SEVERINO Eacute isso mesmo e eu vou apelar para Nosso Senhor Jesus Cristo que eacute quem pode saber ENCOURADO Besteira maluquice (ARIANO SUASSUNA 2005 p118-124)

Na defesa dos mortos Joatildeo Grilo reveste-se de autoridade e encarna o tiacutepico heroacutei

das epopeias dotado de coragem e bravura que natildeo desiste de viver mesmo depois da morte

persistindo no seu intuito de vencer Joatildeo ultrapassa o previsto e decide se vestir natildeo com as

roupas do rei Miacutesio mas de sua feacute estrateacutegia inconteste para alcanccedilar a intercessatildeo da matildee de

Jesus figura justa e poderosa capaz de levaacute-lo agrave absolviccedilatildeo PADRE

111

Acho que nosso caso eacute sem jeito Joatildeo Em Deus natildeo existe contradiccedilatildeo entre a justiccedila e a misericoacuterdia Jaacute fomos julgados pela justiccedila a misericoacuterdia diraacute a mesma coisa (ARIANO SUASSUNA 2005 p 142)

JOAtildeO GRILO E difiacutecil quer dizer sem jeito Sem jeito por quecirc Vocecircs satildeo mesmo uns pamonhas qualquer coisinha estatildeo arriando Natildeo vecirc que tiveram tudo na terra Se tivesse tido que aguentar o rojatildeo de Joatildeo Grilo passando fome e comendo macambira na seca garanto que tinha mais coragem Quer ver eu dar um jeito nisso Padre Joatildeo (ARIANO SUASSUNA 2005 p 142)

Autorizado ou natildeo por Suassuna em algumas passagens o certo eacute que tanto Joatildeo

Grilo como Chicoacute inconfundiacuteveis em seus quiprocoacutes nos convidam pelos tons acentos e

ritmos compassados do cordel a uma experiecircncia uacutenica de denuacutencia do social bem como

reveladora das caracteriacutesticas mais comuns aos habitantes de Taperoaacute espaccedilo universal da

recriaccedilatildeo promovida pelo bardo nordestino

52 2 A Voz a esperteza e a malandragem do poeta Nem tudo que eacute vivo morre

(Anti)Heroacutei ou Heroacutei Ser ou natildeo ser quem decide eacute o leitor O fato eacute que

ligado aos misteacuterios divinos por uma feacute inabalaacutevel Joatildeo Grilo mesmo diante de tantas adversidades busca forccedilas em suas oraccedilotildees e novamente cheio de esperteza e sabedoria invoca atraveacutes da voz do autor a Compadecida por meio dos versos de cordel de Canaacuterio Pardo para dar iniacutecio a sua defesa

JOAtildeO GRILO

Ah isso eacute comigo Vou fazer um chamado especial em verso Garanto que ela vem querem ver (ARIANO SUASSUNA 2005 p 142) Valha-me Nossa Senhora Matildee de Deus de Nazareacute A vaca mansa daacute leite A braba daacute quando quer A mansa daacute sossegada A braba levanta o peacute Jaacute fui barco fui navio Mas hoje sou escaler Jaacute fui menino fui homem Soacute me falta ser mulher () Valha-me Nossa Senhora Matildee de Deus de Nazareacuterdquo (ARIANO SUASSUNA 2005 p 144)

Usando de sua malandragem Joatildeo Grilo se garante por essa invocaccedilatildeo trazendo a

Compadecida para o julgamento que inicia um debate contra o Diabo para evitar sua

condenaccedilatildeo A COMPADECIDA

112

E para que foi que vocecirc me chamou Joatildeo JOAtildeO GRILO Eacute que esse filho de chocadeira quer levar a gente para o inferno Eu soacute podia me pegar com a senhora mesmo ENCOURADO As acusaccedilotildees satildeo graves Seu filho mesmo disse que haacute tempo natildeo via tanta coisa ruim junta A COMPADECIDA Ouvi as acusaccedilotildees Estaacute bem vou ver o que posso fazer JOAtildeO GRILO Estaacute vendo Isso aiacute eacute gente e gente boa natildeo eacute filha de chocadeira natildeo Gente como eu pobre filha de Joaquim e de Ana casada com um carpinteiro tudo gente boa MANUEL E agora noacutes Joatildeo Grilo Por que sugeriu o negoacutecio para os outros e ficou de fora JOAtildeO GRILO Porque modeacutestia agrave parte acho que meu caso eacute de salvaccedilatildeo direta ENCOURADO Era o que faltava E a histoacuteria que estava preparada para a mulher do padeiro MANUEL Eacute Joatildeo aquilo foi grave JOAtildeO GRILO E o senhor vai dar uma satisfaccedilatildeo a esse sujeito me desgraccedilando para o resto da vida Valha-me Nossa Senhora matildee de Deus de Nazareacute jaacute fui menino fui homem A COMPADECIDA Soacute lhe falta ser mulher Joatildeo jaacute sei Vou ver o que posso fazer Lembre-se de que Joatildeo estava se preparando para morrer quando o padre o interrompeu (ARIANO SUASSUNA 2005 p 146-158)

Como vemos eacute no cenaacuterio tragicocircmico do Agoacuten dos mortos que o Poeta de

forma moralizante se dirige agrave audiecircncia nas vozes de Jesus e da Compadecida para tratar das

questotildees ligadas agrave igreja e a seus representantes O mesmo natildeo se aplica a Joanes (o parvo)

que no cais do Purgatoacuterio indagado pelo Diabo na barca vicentina natildeo tem defensores ou

fiadores de sua graccedila em vida e contaraacute apenas com suas verdades ingecircnuas atitude que serve

para a quebra da seriedade comum ao julgamento e aos juiacutezes como refere Miranda (2001)

ao tratamento humoriacutestico empregado pelo autor

[hellip] a seriedade do tema eacute quebrada pelo tratamento que recebe ningueacutem pode chorar a sua sorte quando se depara com a prefiguraccedilatildeo de um juiacutezo final O modo como as personagens descobrem a sentenccedila que lhes foi determinada daacute- se de forma alegre e divertida pois o rigor da sentenccedila contrasta com o realismo grotesco de certos personagens e com o sarcasmo do interrogatoacuterio Disso decorre a comicidade da comeacutedia dos viacutecios (MIRANDA 2001 p61)

Mais adiante a Grande Voz - Gil Vicente ndash prepara seus leitores para o processo

de elaboraccedilatildeo e desenvolvimento da histoacuteria do parvo a partir do sentimento traacutegico gerado

pela morte que de iniacutecio natildeo eacute aceita e pelo elemento cocircmico presente no enfrentamento da

verdade do poacutes-morte num ritmo binaacuterio que permite o nivelamento de uma sociedade

estratificada

NarradorAutor

113

Vem Joane o Parvo e diz ao barqueiro do Inferno PARVO Oh desta DIABO Quem eacute PARVO Eu sou Eacute esta a nossa naviarra DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Ah Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Oh Pelo pesar do meu avocirc (dor choro) Resumindo Vim a adoecer E em maacute hora fui morrer E nela para mim soacute DIABO E de que morreste PARVO De quecirc Acho que de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Que maacute rabugem que te decirc (um insulto) DIABO Entra Potildee aqui o peacute PARVO Oacute paacute Que natildeo tombe o zambuco() (a barcaccedila) DIABO Entra tolo eunuco Que nos vai embora a mareacute PARVO Aguardai aguardai um pouco E aonde havemos noacutes de ir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-a-a DIABO Ao Inferno Entra caacute PARVO Ao Inferno Espera laacute Ui Ui Eacute a Barca do cornudo Pecircro de Vinagre Beiccediludo Lenhador de Alverca uh uh (GIL VICENTE p 34-38)

Ignorando a entrada no batel infernal Joanes se depara com outra realidade a

visita agrave nau que vai ao paraiacuteso Por que um bobo entraria na nau e seguiria para o descanso

dos justos Capricho ou natildeo do autor que encontra na ingenuidade e na astuacutecia as condiccedilotildees

de puniccedilatildeo daqueles que se julgavam acima das leis

114

Chega o Parvo ao batel do Anjo diz PARVO Oh da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Talvez algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres Porque em todos os teus afazeres Por maliacutecia natildeo erraste Da tua simpleza te bastastes Para gozar dos prazeres Espera no entanto aiacute Veremos se vem mais algueacutem Merecedor de tal bem Que deva entrar aqui (GIL VICENTE p 40-41)

A morte natildeo eacute o fim senatildeo o comeccedilo para o arrependimento das simbologias

hierarquizantes que permitem identificaccedilatildeo do homem com seu fazer terreno e com sua classe

social poliacutetica econocircmica e profissional

A morte acima de todos os entendimentos quebra a ordem dos elementos

igualando cada um dos protagonistas nas diferentes obras e gerando uma espeacutecie de

coletividade na qual do ponto de vista da justiccedila natildeo se concedem nem existem privileacutegios

pois cada um deveraacute responder por si soacute

Assim a resposta do poeta agraves injusticcedilas pelas quais se castiga a cidade viraacute com a

puniccedilatildeo dos infratores nas cenas que se revelam natildeo por uma accedilatildeo somente mas pelo

conjunto de mini-accedilotildees que adotam a estrutura gerada pela exposiccedilatildeo o conflito e o

desenlace e que agraves vezes nos apresentam a exposiccedilatildeo e o conflito dependentes um do outro

como no caso da comeacutedia aristofacircnica e dos autos de Ariano Suassuna e Gil Vicente

O fio que liga os enredos e conduz a nau vicentina ao inferno eacute o mesmo que

aguccedila a astuacutecia de Joatildeo Grilo ou que tranquiliza Chicoacute nos causos hercuacuteleos Em travessia

sobrenatural ou amarrado a um pirarucu espectadorleitor sente-se identificado com o

momento da histoacuteria quer pelas reminiscecircncias encontradas atraveacutes de elementos oriundos da

tradiccedilatildeo claacutessica quer pelos viacutenculos que retratam a realidade alegorizada e punitiva

Eacute o sentir sem sentir do poeta estar sem estar de uma realidade aparente natildeo

vivida mas experimentada simbolicamente seja nos autos ou na cena cocircmica aristofacircnica

115

que diante de um tribunal definido a partir dos valores humanos e da moralidade a verdade

vai se impor como instrumento para sentenciar as almas que uma a uma iratildeo entrar nos bateis

ou no purgatoacuterio do encourado

No palco construiacutedo pela comeacutedia ou pelo auto os conflitos se resolvem na

quebra da normalidade de um inferno agraves avessas lugar que se transforma em teatro de saacutetira

social de tipos que agem segundo a loacutegica da sua condiccedilatildeo de suas vivecircncias como bem

assinalado por Ariano Suassuna ao dar a Joatildeo Grilo as experiecircncias que lhe serviram de

argumento agrave Compadecida e contribuiacuteram decisivamente para a sua absolviccedilatildeo A COMPADECIDA Joatildeo foi um pobre como noacutes meu filho Teve de suportar as maiores dificuldades numa terra seca e pobre como a nossa Natildeo o condene deixe Joatildeo ir para o purgatoacuterio JOAtildeO GRILO Para o purgatoacuterio Natildeo natildeo faccedila isso assim natildeo Natildeo repare eu dizer isso mas eacute que o diabo eacute muito negociante e com esse povo a gente pede o mais para impressionar A senhora pede o ceacuteu porque aiacute o acordo fica mais faacutecil a respeito do purgatoacuterio A COMPADECIDA Isso daacute certo laacute no sertatildeo Joatildeo Aqui se passa tudo de outro jeito Que eacute isso Natildeo confia mais na sua advogada JOAtildeO GRILO Confio Nossa Senhora mas esse camarada enrolando noacutes dois A COMPADECIDA Deixe comigo Peccedilo-lhe entatildeo muito simplesmente que natildeo condene Joatildeo MANUEL O caso eacute duro Compreendo as circunstacircncias em que Joatildeo viveu mas isso tambeacutem tem um limite Afinal de contas o mandamento existe e foi transgredido Acho que natildeo posso salvaacute-lo A COMPADECIDA Decirc-lhe entatildeo outra oportunidade MANUEL Como A COMPADECIDA Deixe Joatildeo voltar MANUEL Vocecirc se daacute por satisfeito JOAtildeO GRILO Demais Para mim eacute ateacute melhor porque daqui para laacute eu tomo cuidado para a hora de morrer e natildeo passo nem pelo purgatoacuterio para natildeo dar gosto ao catildeo A COMPADECIDA Entatildeo fica satisfeito JOAtildeO GRILO Eu fico (ARIANO SUASSUNA 2005 p 146-158)

Se houve ou natildeo por parte do poeta a intenccedilatildeo de usar bufotildees palhaccedilos e o riso

para punir natildeo haacute duacutevidas Essas personagens promovem tanto na comeacutedia como no auto

uma reflexatildeo mais profunda sobre a existecircncia do homem na terra exercendo sobre as demais

que se julgam merecedoras de entrarem na barca do Anjo ou do perdatildeo divino uma saacutetira

viva e desestabilizadora

116

O certo eacute que mesmo apesar da situaccedilatildeo de marginalidade e abandono a que tem

estado sempre os outros cocircmicos autorizados pelo poeta eles mostram em Acarnenses no

Auto da Barca do Inferno e no Auto da Compadecida o discernimento necessaacuterio para por em

causa proacutepria todo o mundo social poliacutetico eacutetico e religioso

Observar o julgamento das almas o convencimento da assembleia ou a absolviccedilatildeo

de Joatildeo Grilo eacute justamente se inquietar com comportamento destoante dos personagens

diante do traacutegico anunciado seja pela sentenccedila no purgatoacuterio em que Suassuna provoca o riso

pelo absurdo da situaccedilatildeo seja pela morte tragicocircmica de Joanes que obteacutem o direito de

embarcar para o paraiacuteso ou mesmo pela negociaccedilatildeo que garantiu aos representantes da Igreja

e ao Cangaceiro o purgatoacuterio cabendo a Joatildeo Grilo o retorno agrave vida Portanto aleacutem de

garantir a absolviccedilatildeo haacute tambeacutem a realizaccedilatildeo de uma vinganccedila astuciosa que imprimindo o

castigo aos superiores reflete a inteligecircncia que se sobrepotildee a avareza e aos desmandos

Moralidade restabelecida Assim a cena cocircmica torna explicita a forte associaccedilatildeo

entre comeacutedia e auto na intecionalidade de uma justiccedila direta que quis aleacutem das palavras das

palavra-voz lapidada pelos a(u)tores impulsionadora de reflexotildees geradora de fissuras

abertas na selva de significados que de forma desconsertada passa a ser o guia de um leitor

carente da tomada de consciecircncia sobre o que eacute ou natildeo (in)justo pelo vibrar incorrigiacutevel da

cadeia de significados que se estabelece entre o dito e o leitorouvinte como afirma Zumthor

O texto vibra o leitor o estabiliza integrando-o agravequilo que eacute ele proacuteprio Entatildeo eacute ele que vibra de corpo e alma No eco da voz-texto natildeo haacute algo que a linguagem tenha criado nem estrutura nem sistema completamente fechados e as lacunas e os brancos que aiacute necessariamente subsistem constituem um espaccedilo de liberdade ilusoacuterio pelo fato de que soacute pode ser ocupado por um instante por mim por vocecirc leitores nocircmades por vocaccedilatildeo (ZUMTHOR 2014 p 53)

O heroacutei cocircmico eacute esse espaccedilo de liberdade de ousadia nem sempre vitorioso mas

que se constitui agraves vezes de um alter ego do autor que na qualidade de educador da cidade se

impotildee e legitima verdadeiramente justo uma vez que a justiccedila e a verdade satildeo suas

verdadeiras aliadas e componentes essenciais da criaccedilatildeo do autor

Comeacutedia e Auto concluem com sucesso as intenccedilotildees de seus autores garantindo a

todos o que eles merecem um final no qual a justiccedila a verdade e a puniccedilatildeo terminam

moralmente como (re)modeladoras da cidade

117

6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Nas obras que aqui foram analisadas (Acarnenses Ratildes Auto da Barca do inferno

e Auto da Compadecida) os respectivos autores parecem convidar o puacuteblico a tratar o duplo

poeacutetico e a voz como algo especialmente autorizado agrave tarefa de educar a cidade No entanto

cabe ressaltar que ldquoessa aparente autoridaderdquo eacute o instante singular no qual o poeta diz o que

pensa e quer pela boca de seus personagens reforccedilarcada vez mais a ilusatildeo de ser o que natildeo

se eacute de dizer para aleacutem do abrir e fechar das cortinas do palco teatral

No sertatildeo de chatildeo duro e quase impermeaacutevel agrave chuva do Auto da Compadecida a

palavra-performance fez sua morada na boca dos arremedos de Joatildeo Grilo fincou suas raiacutezes

em seus gestos fez dele sair seus brotos que se transformaram em galhos firmes de uma

aacutervore frondosa que eacute a cultura nordestina tatildeo bem cantada pela literatura de cordel pelo riso

mascarado e ao mesmo tempo denunciativo e desnudado do autor na representaccedilatildeo de sua

criatura Joatildeo Grilo eacute o muacuteltiplo poeacutetico defendido pelo proacuteprio autor numa caracterizaccedilatildeo

niacutetida e social Jaacute Diceoacutepolis em Acarnenses contudo tem uma identificaccedilatildeo claramente

problemaacutetica visto ser um personagem que assume muitas personagens e vozes (tais como

tanto o protagonista cocircmico ruacutestico e o traacutegico Teacutelefo) minando a seriedade com que um

leitor deve tomar suas reivindicaccedilotildees

No Auto da Barca do inferno Gil Vicente como criacutetico mordaz impotildee toda a sua

ironia para condenar os costumes praticados por uma sociedade permeada pela hipocrisia Agrave

guisa do pensamento vicentino a linguagem passa a ser seu principal instrumento pelo qual

se vai operar a zombaria para combater os excessos daqueles que ganham com a miseacuteria do

povo

Pelo vieacutes do desconserto a representaccedilatildeo teatral vicentina se constitui como um

conjunto (ou sistema) de signos de natureza diversa que revela um processo de comunicaccedilatildeo

em que haacute uma seacuterie complexa de transmissores uma seacuterie de mensagens um duplo emissor

assim como um (in)corrigiacutevel e muacuteltiplo receptor presentes no mesmo lugar ansiosos para

saber o que aleacutem do dito eacute ensinado pelo poeta

Esse jogo de diaacutelogosdidascaacutelias a princiacutepio consciente para o poeta permite um

percurso para a compreensatildeo dos diversos fios que compotildeem a tessitura cocircmica ndash moralizante

e dramaacutetica cabendo ao leitorespectador desvelar e revelar as mensagens proferidas pelas

vaacuterias vozes pelas quais se expressa o autor

Ao leitor atento nada escapa ao identificar no espaccedilo cecircnico as simbologias dos

espaccedilos socioculturais comuns agraves trecircs obras que compotildeem o corpus do nosso trabalho e de

118

forma particular a Gil Vicente que amarra elementos humanos e divinos burlescos e seacuterios

formais e corriqueiros sem perder sua atualidade uma vez que tecircm o meacuterito de apresentarem

as constantes lutas entre o bem e o mal que existem dentro de cada indiviacuteduo valendo-se de

uma comicidade aacutecida e palpitante inimiga dos desmando e excessos

Assim como Gil Vicente Ariano Suassuna soube como ningueacutem recriar a proacutepria

realidade em seus Autos atraveacutes dos textos orais nordestinos e interdiscursos culturais

medievos Sempre criacutetico sua literatura estaacute impregnada da heranccedila da tradiccedilatildeo popular

regional e de gecircneros medievais portugueses ibeacutericos e claacutessicos reforccedilando que tanto as

raiacutezes populares nordestinas quanto os gecircneros do teatro medievo alimentam seu fazer

poeacutetico

Como o educador da cidade Ariano Suassuna chega ao conhecimento da plateia

pelas vaacuterias frestas de uma accedilatildeo cocircmica e de recortes de um proacutelogo e de uma paraacutebase bem

ao estilo de Aristoacutefanes quando ao questionar metaforicamente os representantes da Igreja

pelo zelo da moralidade e da justiccedila social coloca em cheque tambeacutem toda a sociedade da

eacutepoca produzindo pelos jogos ciacutenicos circenses os novos significados de cidadania

Suassuna e Gil Vicente representam o fazer literaacuterio de um Aristoacutefanes que sob a

maciez do riso e da galhofa esconde o punhal e a foice da contestaccedilatildeo social o desejo de

recuperaccedilatildeo e de conversatildeo dos valores humanos Em Aristoacutefanes e diante de sua

representaccedilatildeo da polis estamos diante de uma realidade caoacutetica quase impassiacutevel de ser

alterada resultado da exploraccedilatildeo e da ambiccedilatildeo social fatos que permeiam a accedilatildeo de seus

personagens e quando o poeta traveste-se de Dioniso e decide descer ao infernos para buscar

um poeta genuiacuteno percebemos que natildeo eacute somente a arte ou os ensinamentos trazidos por ela

que Aristoacutefanes quer salvar mas o proacuteprio homem ndash em essecircncia ndash que jaacute se encontrava

seriamente corrompido fazendo mal agrave coletividade

No seu fazer de mentalidade coletiva Ariano Suassuna e Gil Vicente satildeo Aristoacutefanes

que em defesa da cidade lanccedilam-se num terreno movediccedilo do diaacutelogo literaacuterio e cultural

contrapondo o moderno e arcaico o regional ao erudito o miacutetico ao racional (re)construindo

suas histoacuterias a partir das vaacuterias histoacuterias alheias nas quais autor e personagens satildeo reflexos

maiores de uma sequecircncia de accedilotildees cocircmicas criacuteticas e a serviccedilo da ordem e da moralidade

Portanto por mais incorrigiacuteveis que possam parecer nas obras pesquisadas fica

claro que os autores e suas personagens agem na defesa de seus objetivos marcados por uma

devoccedilatildeo obstinada a uma causa proacutepria a defesa da cidade E no cenaacuterio-mundo que eacute o

teatro tanto Aristoacutefanes quanto Gil Vicente e Ariano Suassuna satildeo senhores da arte da

desconstruccedilatildeo

119

De caraacuteter universal a Comeacutedia e o Auto mostram um poeta autocircnomo que

brinca com a vontade e expectativas do leitorespectador levando-o a refletir sobre a realidade

atemporal apresentada pelo teatro em seu jogo cocircmico e moralizante Assim o duplo autoral

passa a conduzir o cecircnico no qual os ldquohome espectadorrdquo evocados por Diceoacutepolis em

Acarnenses ou os condenaacuteveis nos autos de Ariano Suassuna e Gil Vicente satildeo jogados no

labirinto das duacutevidas e incertezas promovidas pelas vozes muacuteltiplas que tambeacutem satildeo de

outrem e que afiadas atravessam o discurso cocircmico levando-o agrave reflexatildeo seacuteria da situaccedilatildeo na

qual se encontra a cidade E tudo aos olhos do leitor sob o desejo de um criador que se perde

e se acha nas criaturas que o representam nos a(u)tos matutos de Ariano Suassuna e

Aristoacutefanes ndash eacute possiacutevel ndash natildeo sei Soacute sei que foi assim

120

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ZONIN Carina Dartora Polifonia e discurso literaacuterio outras vozes que habitam a voz do narrador na obra Ensaio sobre a Lucidez de Joseacute Saramago Revista Eletrocircnica de Criacutetica e Teoria de Literaturas Dossiecirc Saramago Porto Alegre v 02 n 02 juldez 2006 ZUMBRUNNEN John Aristophanic comedy and the challenge of democratic citizenship Rochester NY University of Rochester Press 2012

ZUMTHOR Paul Performance recepccedilatildeo leitura 2 ed Trad Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich Satildeo Paulo Cosac Naify 2007

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARA CENTRO DE HUMANIDADES
  • PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM LETRAS
  • Prof Dr Lauro Inaacutecio de Moura Filho
  • Instituto Federal de Educaccedilatildeo Ciecircncia e Tecnologia do Cearaacute ndash (IFCE)
  • Prof Dr Francisco Wellington Rodrigues Lima
  • Instituto Federal de Educaccedilatildeo Ciecircncia e Tecnologia do Cearaacute ndash (IFCE)
  • COMPTON-ENGLE Gwendolyn Leigh Sudden glory Acharnians and the first comic hero
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Ao professor Carlos Augusto Viana da Silva do Departamento de Estudos da

Liacutengua Inglesa suas Literaturas e Traduccedilatildeo da UFC pelo desafio que me levou a pensar a

literatura popular a partir da narrativa fiacutelmica que tatildeo bem impulsionou esta pesquisa

culminando com a anaacutelise do Auto da Compadecida de Ariano Suassuna em conjunto com

Acarnenses de Aristoacutefanes

Ao professor Roque Nascimento Albuquerque da Universidade de Integraccedilatildeo

Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB) que desde o iniacutecio acreditou na ideia

de pensar o cocircmico e o popular a partir de novas leituras desafiadoras e intrigantes

Ao professor Lauro Inaacutecio de Moura Filho meu agradecimento pela amizade por

ter dividido pesquisas sobre Aristoacutefanes e por fazer parte da minha Banca de Doutorado

Agrave professora Maria Inecircs Pinheiro Cardoso minha gratidatildeo pela presenccedila na minha

Banca de Doutorado e por seus valorosos estudos sobre a literatura do ldquobardo do sertatildeordquo

Ariano Suassuna em toda a sua magnitude popular

Ao professor Francisco Wellington Rodrigues Lima meu agradecimento pela

gentileza de fazer parte da minha Banca de Doutorado e por sua contribuiccedilatildeo agrave literatura

popular a partir de seus estudos sobre Gil Vicente e Ariano Suassuna

Para minha famiacutelia agradecimentos especiais Obrigado por terem me dado

oportunidade de chegar ateacute aqui por me ensinarem desde cedo a enfrentar os desafios de

frente com riso estampado no rosto

E por uacuteltimo obrigado as minhas maiores incentivadoras Com elas compreendi o

sentido de muitas coisas companheirismo afeto dedicaccedilatildeo amor Obrigado por entenderem

a importacircncia desta pesquisa na minha vida Sem vocecircs o caminho natildeo teria sido tatildeo animado

encantado e real Obrigado Patriacutecia e Larissa

Agrave FUNCAP e Agrave CAPES e ao CNPQ pelo apoio financeiro com a manutenccedilatildeo da

bolsa de auxiacutelio agrave pesquisa

Debaixo de minha mesa tem sempre um catildeo faminto -que me alimenta a tristeza Debaixo de minha cama tem sempre um fantasma vivo -que perturba quem me ama Debaixo de minha pele algueacutem me olha esquisito -pensando que eu sou ele Debaixo de minha escrita haacute sangue em lugar de tinta -e algueacutem calado que grita

(Affonso Romano de SantacuteAnna)

RESUMO

Por ser uma arte que permanece haacute tantos seacuteculos o teatro desperta curiosidade acerca de seus primoacuterdios existindo vaacuterias conjecturas e teorias sobre o surgimento da Comeacutedia Antiga como ambiente extremamente propiacutecio agrave formaccedilatildeo de duplos presente no mito e no culto do deus do teatro Dioniso no qual as vozes os gestos e as maacutescaras representam o duplo e satildeo sobrepostas como causa de equiacutevocos e componentes centrais das invectivas pessoais ou intrigas como observados em Acarnenses de Aristoacutefanes no Auto da Compadecida de Ariano Suassuna Entretanto haacute de se considerar de iniacutecio que alguns elementos responsaacuteveis pelo riso na obra de Aristoacutefanes tambeacutem encontra eco na literatura de Suassuna por apresentar uma tessitura textual atravessada pelas muacuteltiplas vozes de suas personagens constituindo-se em um fenocircmeno recorrente e natural que aponta para a tensatildeo de uma crise profunda denunciada pelo proacuteprio poeta em seus discursos A partir do estudo das correntes de alguns teoacutericos sobre o riso como Huizinga Pirandello Bergson e Vladimir Propp responderemos por meio da literatura comparada a alguns questionamentos como por exemplo qual a importacircncia da construccedilatildeo das personagens cocircmicas em Aristoacutefanes para a representaccedilatildeo do duplo poeacutetico e como essa criaccedilatildeo se reflete na obra de Ariano Suassuna sendo denunciadora das injusticcedilas a partir da cena cocircmica

Palabras-chave Teatro A(u)to A(u)tor Popular Duplo

RESUMEN Por ser un arte que permanece durante tantos siglos el teatro despierta curiosidad acerca de sus primordios existiendo varias conjeturas y teoriacuteas sobre el surgimiento de la Comedia Antigua como ambiente extremadamente propicio a la formacioacuten de dobles presente en el mito y en el culto del dios del teatro Dioniso en el que las voces los gestos y las maacutescaras representan el doble se superponen como causa de equiacutevocos y componentes centrales de las invectivas personales o intrigas como observados en Acarnienses de Aristoacutefanes en el Auto de la Compadecida de Ariano Suassuna Sin embargo hay que considerar de inicio que algunos elementos responsables de la risa en la obra de Aristoacutefanes tambieacuten encuentra eco en la literatura de Suassuna por presentar una tesitura textual atravesada por las muacuteltiples voces de sus personajes constituyeacutendose en un fenoacutemeno recurrente y natural que apunta para la tensioacuten de una crisis profunda denunciada por el propio poeta en sus discursos A partir del estudio de las corrientes de algunos teoacutericos sobre la risa como Huizinga Pirandello Bergson y Vladimir Propp responderemos por medio de la Literatura Comparada a algunos cuestionamientos como por ejemplo cuaacutel es la importancia de la construccioacuten de los personajes coacutemicos en Aristoacutefanes para la representacioacuten del doble poeacutetico y coacutemo esa creacioacuten se refleja en la obra de Ariano Suassuna siendo denunciadora de las injusticias a partir de la cena coacutemica

Palabras clave Teatro A(u)to A(u)tor Popular Doble

SUMAacuteRIO

INTRODUCcedilAtildeO12

PRIMEIRO ATO18

1 O TEATRO UM DUPLO ARTIacuteSTICO ndash TRAGEacuteDIA E COMEacuteDIA19

11 A comeacutedia aristofacircnica28

12 Dioniso Matuto Justinoacutepolis um heroacutei embusteiro29

13 O (anti)heroacutei aristofacircnico32

14 Auto da Compadecida uma estoacuteria de outras estoacuterias34

15 Joatildeo Grilo um heroacutei popular e picaresco36

151 O (anti)heroacutei Suassuniano38

152 A tensatildeo tragicocircmica do (anti)heroacutei no Auto da Compadecida39

SEGUNDO ATO41

2 HUMOR E RISO ELEMENTOS INDISPENSAacuteVEIS Agrave CENA COcircMICA42

21 O riso seacuterio-cocircmico em Aristoacutefanes e Suassuna43

212 Riso e Comeacutedia43

213 Os elementos do risiacutevel no heroacutei suassuniano45

TERCEIRO ATO65

3 AS DUAS PECcedilAS ndash O POETA USA MAacuteSCARAS66

31 OS GESTOS ndash A vestimenta o corpo e o disfarce67

QUARTO ATO74

4 O AUTOR E SEUS OUTROS NA COMEacuteDIA E NO AUTO75

41 O par cocircmico na tradiccedilatildeo literaacuteria em Aristoacutefanes e em Ariano Suassuna76

QUINTO ATO84

5 O POETA VAI AO INFERNO85

51 Quem fala por quem86

511 Ao Hades e com riso frouxo97

52 O julgamento O riso a morte e o descanso do (in)justo105

521 Aqui eacute o inferno vocecirc pode brincar108

522 A Voz a esperteza e a malandragem do poeta Nem tudo que eacute vivo morre111

6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS117

REFEREcircNCIAS120

12

INTRODUCcedilAtildeO Num vatildeo ficaacute cum raiva homes espectador Se eu sendo um mendigo na frente dos ateniense Teja em tempo de falaacute sobre a cidade fazendo uma comeacutedia Pois o que eacute justo a comeacutedia tambeacutem conhece E eu vou falaacute coisas terriacuteve mas justa Pois desta vez num vai me caluniaacute Cleacuteon que Estrangeiros tando aqui eu falo mal da cidade Eacute que tamo soacute eacute o concurso das Leneia E os estrangeiro num tatildeo aqui nem os imposto Chega nem os aliado vem das cidade Mas tamo soacute noacutes agora soacute os miacute debuiado (POMPEU Dioniso MatutoARISTOacuteFANES Acarnenses vv497-507)

A Literatura Popular vem sendo cada vez mais estudada e reconhecida no acircmbito

acadecircmico ressaltando seu espaccedilo regional pela criaccedilatildeo e construccedilatildeo de uma nova vertente

literaacuteria que dialoga com outras artes e culturas Assim torna-se importante destacar que esse

tipo de literatura constitui-se tambeacutem como uma das vertentes da histoacuteria cultural tendo em

vista que reuacutene diversos tipos de textos para pensar sua escrita linguagem e (re)leitura pela

apropriaccedilatildeo cultural vivenciada pelo puacuteblico e pelo poeta que ouviu viu e viveu o produto

exposto nos versos como nos assegura Chartier (1990 p 27)

Nesse contexto permeado de apropriaccedilotildees recriaccedilotildees e (in)certezas eacute que

estudaremos o riso cocircmico no auto e na comeacutedia como leitoresjurados do julgamento

paroacutedico atraveacutes da accedilatildeo cocircmica do poeta representado por seus duplos na comeacutedia

Acarnenses1 (425 aC) de Aristoacutefanes no Auto da Compadecida (1956) de Suassuna numa

aproximaccedilatildeo atemporal que se reflete na palavra aacutecida do a(u)tor na gargalhada solta e na

quebra da normalidade literaacuteria reveladora das diversas maacutescaras vozes ndash linguagem matuta

e os gestos elementos que estatildeo a serviccedilo do poeta cocircmico e de seus duplos como porta-

vozes do discurso social

Assim para estudo e anaacutelise dos duetos (duplos) cocircmicos cordelescos

fomentadores do imaginaacuterio e da construccedilatildeo de (anti) heroacuteis cocircmicos populares presentes na

tradiccedilatildeo popular nordestina bebemos de fontes escritas e tambeacutem de uma modalidade

narrativa ateacute pouco tempo desprezada esquecida dada ao puacuteblico quase sempre em papel

ruacutestico e com maacute qualidade da impressatildeo e escrita sem a preocupaccedilatildeo dos autores com a

ldquocorreccedilatildeordquo linguiacutestica a Literatura de Cordel

1 No corpus do nosso trabalho optamos por usar a traduccedilatildeo de Acarnenses de Aristoacutefanes para o cearensecircs da professora Ana Maria Ceacutesar Pompeu Dioniso matuto uma abordagem antropoloacutegica do cocircmico na traduccedilatildeo de Acarnenses de Aristoacutefanes para o cearensecircs

13

Tradicionalmente comum a este tipo de literatura foi a presenccedila marcante da

oralidade o fato de ser vendida em feiras e o tipo de consumidor em geral pessoas de baixo

niacutevel escolar cuja identificaccedilatildeo com os folhetos se estabelecia por meio de variadas

temaacuteticas incluindo o diaacutelogo com outras fontes literaacuterias como a Comeacutedia Grega outro

objeto deste estudo

Com isso a importacircncia do cordel pelo meio acadecircmico daacute-se pela produccedilatildeo de

intelectuais como Ariano Suassuna que transpotildee episoacutedios inteiros do verso popular para a

prosa ou vice-versa num imenso caldeiratildeo de ideias consciente da forccedila que essa modalidade

literaacuteria deteacutem na representaccedilatildeo do imaginaacuterio do povo solidificando sua maneira de pensar e

de reagir ante os fenocircmenos sociais

Essas reaccedilotildees aos diferentes contextos sociais motivadas pelas experiecircncias

escritas auditivas e visuais preteacuteritas atribuem um valor positivo agrave figura do (anti)heroacutei

cocircmico e ou agrave conversatildeo do matuto do ruacutestico e satildeo responsaacuteveis pela sua construccedilatildeo miacutetica

a partir do documento linguiacutestico do falar matuto heranccedila cultural cearense como

apresentado por Pompeu em seu Dioniso Matuto (2014) Entretanto temos de considerar que

Aristoacutefanes natildeo faz distinccedilatildeo entre linguagem matuta e citadina apenas de aspectos dialetais

das cidades natildeo aacuteticas como afirma Andreas Willi

A comeacutedia tambeacutem se diferencia da trageacutedia por apresentar todos os estrangeiros a falar em seus dialetos nativos Embora se costume considerar a reproduccedilatildeo dos outros dialetos como deformaccedilatildeo risiacutevel Aristoacutefanes natildeo exagera as caracteriacutesticas dialetais nem as personagens atenienses escarnecem delas de maneira que eacute provaacutevel que o efeito cocircmico nasccedila ali natildeo do exagero mas do realismo linguiacutestico que natildeo tem equivalente em outro gecircnero (WILLI 2003 p268)

Sobre essa afirmativa e tomando como ponto de partida o pensamento de

Bogatyrev (1977) em relaccedilatildeo agraves variaccedilotildees dialetais nota-se que pelas falas produzidas

o espectador percebe ao mesmo tempo o ator e a personagem presentes nos contextos

nordestino e grego resultado de uma simbiose entre ldquocriador e criaturardquo

O corpo do presente trabalho estaacute dividido em Cinco Atos assim denominada a

divisatildeo da Comeacutedia Antiga que na Greacutecia evolui em trecircs fases distintas considerando-se a

comeacutedia2 antiga a comeacutedia mediana e a comeacutedia nova Relativamente ao periacuteodo da comeacutedia

antiga Aristoacutefanes eacute o seu grande representante estruturando-a com as seguintes partes o

proacutelogo o paacuterodo que consiste na entrada do coro e nas suas intervenccedilotildees ou disputa entre 2 EDMONDS J M The Fragments of Attiacutec Comedy II Uiacuteacircdle Cotnedy Leiden Brill 2010

14

dois coros a paraacutebase isto eacute um interluacutedio coral que suspende parcialmente a ilusatildeo

dramaacutetica dirigindo-se diretamente ao auditoacuterio os episoacutedios ou seja as cenas dialogadas

pelas personagens e intercaladas por intervenccedilotildees do coro o ecircxodo concretizando-se no

desenlace final

A comeacutedia antiga caracteriza-se pelo tom de humor e de saacutetira com que se critica

assuntos da vida cotidiana aspectos poliacuteticos e sociais e figuras e instituiccedilotildees proeminentes

sendo a sua finalidade principal a diversatildeo para aleacutem do objetivo moralizante Emprega uma

linguagem luacutedica atraveacutes de jogos de palavras equiacutevocos ironia clichecircs e apresenta ainda

personagens de forma caricatural

Cabe ressaltar que na Introduccedilatildeo apresentamos uma panoracircmica histoacuterica acerca

da Comeacutedia Grega aristofacircnica ndash Acarnenses com direcionamento agrave comeacutedia suassuniana ndash

retratada no Auto da Compadecida Para tratar do Auto da Compadecida e da influecircncia que

sofreu da literatura de Gil Vicente decidimos optar pela apresentaccedilatildeo do Auto Vicentino visto

que O Auto da Compadecida constitui-se como uma peccedila teatral que resgata a comeacutedia

medieval e renascentista europeia bem como a comeacutedia popular nordestina Tal obra foi

elaborada a partir de vertentes distintas onde se encontram resquiacutecios de obras conhecidas e

consagradas mundialmente e tradiccedilatildeo popular impressa em folhetos

O caraacuteter cordelesco do Auto remonta agrave Idade Meacutedia que teve os uacuteltimos seacuteculos

tambeacutem conhecidos pelos historiadores como tempos embaralhados visto que levaram agraves

uacuteltimas consequecircncias uma visatildeo decadentista da vida O caraacuteter transitoacuterio do seacuteculo XV

tornou-se cada vez mais importante no desencadeamento da ideia de morte dentro da unidade

cristatilde fato que permeia as obras de Gil Vicente

O Auto da Barca do Inferno tambeacutem conhecido como Auto da Moralidade foi escrito em 1517 e representado ao rei Manuel I de Portugal e agrave rainha Lianor Eacute uma das mais significativas e famosas obras de Gil Vicente e que embora esteja na estrutura de uma trilogia Trilogia das Barcas que contempla tambeacutem o Auto da Barca do Purgatoacuterio e o Auto da Barca da Gloacuteria a peccedila conteacutem um uacutenico ato no qual eacute recorrente o uso da saacutetira do riso do ridiacuteculo e do achincalhe dotado de um tenso cunho didaacutetico

Jaacute no caso especiacutefico de Ariano Suassana o Auto da Compadecida se divide em

trecircs episoacutedios o primeiro intitulado o enterro do cachorro o segundo com o retorno do Major

Antocircnio Moraes junto com o Bispo e o terceiro episoacutedio compreendendo o julgamento dos

mortos Os atos satildeo entrecortados pela fala do palhaccedilo que representa o autor situando os

espectadores e antecedendo a mudanccedila de cenaacuterio Os personagens satildeo Joatildeo Grilo Chicoacute

major Antocircnio Moraes o padeiro e sua esposa o cangaceiro Severino de Aracajuacute e seu

15

ajudante Bispo Sacristatildeo Padre Joatildeo e Frade Encourado democircnio Manuel e a

Compadecida mas a peccedila gira em torno de Joatildeo Grilo que eacute quem arma situaccedilotildees

conflituosas e quem concentra o foco dramaacutetico

Eacute nesse contexto que a literatura de cordel se apresenta como um importante

veiacuteculo de expressatildeo habilitado agrave aproximaccedilatildeo do popular e do erudito como tambeacutem

ferramenta de articulaccedilatildeo da comunicaccedilatildeo do sertatildeo desprezado e inculto com as referecircncias

gregas de narraccedilatildeo observadas em Aristoacutefanes Para tanto nos valemos da anaacutelise das obras

referidas por gravitarem em torno da temaacutetica proposta e abordarem de forma direta a

linguagem matuta e a construccedilatildeo dos duplos cocircmicos tendo como foco a figura do matuto

Em termos metodoloacutegicos nossa pesquisa se apoia em uma perspectiva

comparativista considerando o contiacutenuo uso da oralidade efetivado na Comeacutedia como voz

autorizada para a accedilatildeo contiacutenua do proacuteprio poetapersonagem Nesse contexto Segundo

Bakhtin o autor ldquoocupa uma posiccedilatildeo responsaacutevel no acontecimento do existir opera com

elementos desse acontecimento e por isso a sua obra eacute tambeacutem um momento desse

acontecimentordquo (BAKHTIN 2003 p176) Neste esteio Caetano Peixoto e Machado (2011)

nos afirmam que A posiccedilatildeo do autor-criador ou seja aquele que tem a funccedilatildeo esteacutetico-formal engendradora da obra natildeo estaacute dissociada do autor-pessoa isto eacute do escritor do artista A vida natildeo estaacute em dicotomia com a arte Elas se imbricam atraveacutes das vozes sociais e histoacutericas onde a dimensatildeo teoacuterica esteacutetica e eacutetica ndash o conhecimento os valores e o agir ndash convergem organizadas num sistema estiliacutestico harmonioso

Nas obras que constituem nossa pesquisa o autor e suas diversas vozes operam e

se estabelecem por meio de accedilotildees muacuteltiplas grotescas como forma de afastar-se do caraacuteter de

opressatildeo para a compreensatildeo e apreensatildeo de uma verdade pura muitas vezes advinda do

social e das situaccedilotildees de injusticcedila como defendida por DiceoacutepolisJustinoacutepolis em

Acarnenses e por Joatildeo Grilo no Auto da Compadecida

Eis que da multiplicidade das praacuteticas do discurso deriva-se o que se pode

reconhecer como uma tipicidade um modo totalmente particular de afirmaccedilatildeo do sujeito um

muacuteltiplo que ao mesmo tempo se torna iacutempar diferente dos demais na conduccedilatildeo do discurso

social Essa imagem e sua polifonia capazes de reunir habilidades estabelecedoras de um

valor cultural da literatura satildeo o que haacute de mais iacutentimo e intransferiacutevel nesse diaacutelogo proposto

entre as obras estudadas e seus autores por operarem um mecanismo narrativo simples e

divertido atraveacutes do diaacutelogo entre o discurso literaacuterio e o socioloacutegico

16

Retornando agrave divisatildeo do trabalho acentuamos que no PRIMEIRO ATO tratamos

de questotildees inerentes agrave origem e estrutura da Comeacutedia e do Auto ressaltando ainda a

importacircncia desses gecircneros como elementos presentes e ativos no processo de construccedilatildeo da

heranccedila cultural erudita mas de origem popular com foco no discurso permeado de vaacuterias

vozes indispensaacuteveis na formaccedilatildeo do poeta-personagem e de seus (anti)heroacuteis

No SEGUNDO ATO discorremos sobre os elementos da Comeacutedia aristofacircnica e

do Auto suassuniano a partir do Humor e do Humorismo Para tanto recorremos agrave expressatildeo

ldquoriso seacuterio-cocircmico como elemento moralizanterdquo tomando como base os estudos de Huizinga

Pirandello Bergson e Vladimir Propp entre outros estudiosos

No TERCEIRO ATO apresentamos um breve histoacuterico da comeacutedia como duplo

da trageacutedia e escrevemos sobre as maacutescaras vozes e gestos como elementos fundantes do

outro do poeta na cena cocircmica tanto em Aristoacutefanes quanto em Suassuna

No QUARTO ATO aprofundamos nossos estudos sobre o duplo na literatura

tomando como base trabalhos sobre a ocorrecircncia do duplo e seu estranhamento na literatura

Ainda no mesmo Ato fazemos uso dos estudos de Bakhtin sobre polifonia do duplo e a

polifonia do discurso social com o fim de relacionar o discurso social de Joatildeo Grilo e

Diceoacutepolis em defesa do coletivo ndash da polis ndash duplos do poeta e porta-vozes dos discursos

sociais jaacute popularizados na Literatura de Cordel suas influecircncias e os diaacutelogos possiacuteveis com

a Comeacutedia Grega

Por fim desenvolvemos ao longo do QUINTO ATO a anaacutelise comparativa da

formaccedilatildeo dos duplos e presenccedila das vaacuterias vozes constitutivas do enredo da comeacutedia

Acarnenses de Aristoacutefanes do texto traduzido do original grego de 425 a C da versatildeo

Dioniso matuto uma abordagem antropoloacutegica do cocircmico na traduccedilatildeo de Acarnenses de

Aristoacutefanes para o cearensecircs da versatildeo jaacute citada da peccedila produzida por Ana Maria Ceacutesar

Pompeu texto que tambeacutem nos serviraacute tambeacutem como paradigma da Comeacutedia Antiga do Auto

da Compadecida de Ariano Suassuna com vistas a demonstrar a importacircncia de se entender

a partir da oralidade linguagem matuta tatildeo presente na obra de Suassuna a finalidade do uso

das vozes do ldquooutrordquo para a construccedilatildeo significativa do proacuteprio poeta Ainda no Quinto Ato

estudamos o riso e do duplo poeacutetico pela inclusatildeo e estudo de Ratildes de Aristoacutefanes do Auto da

Barca do Inferno (1531) de Gil Vicente tendo como foco a cena do julgamento das almas

comum tambeacutem ao Auto da Compadecida ndash momento no qual a personagem se funde ao

poeta educador da cidade com suas preferecircncias e invectivas

Em Aristoacutefanes somos ouvintes das criacuteticas do proacuteprio poeta que em meio ao

caos propiciado pela guerra decide comprar sua paz Em Gil Vicente provamos da

17

moralidade cristatilde que de forma direta condena ou absolve os pecadores e falsos pregadores

E por uacuteltimo em Ariano Suassuna construtor de cenaacuterios (im)provaacuteveis nos quais ceacuteu e

inferno disputam os mortos por meio de uma seacuterie de accedilotildees cocircmicas onde a morte por vezes

perde seu caraacuteter traacutegico

18

PRIMEIRO ATO

19

1 O TEATRO UM DUPLO3 ARTIacuteSTICO ndash TRAGEacuteDIA E COMEacuteDIA

O teatro grego surgiu no contexto do culto religioso estando ligado

particularmente ao Deus Dioniso permanecendo ligado tambeacutem agrave religiatildeo A palavra teatro

segundo Pereira (2006 P24) tem sua origem no grego theacuteatron (έ) em que theacutea

(έ) quer dizer accedilatildeo de olhar de contemplar aspecto objeto de contemplaccedilatildeo espetaacuteculo

e em que o sufixo ndashtron (-) significa lsquoinstrumento dersquo e theacuteatron querer dizer

lsquomaacutequina de espetaacuteculosrsquo Theacutea e theacuteatron tecircm derivaccedilatildeo do verbo theaacuteomai (ά ou

ῶ) que significa ver contemplar considerar examinar ser espectador contemplar

pela inteligecircncia Entretanto o teatro teve em sua origem duas modalidades artiacutesticas

principais a trageacutedia e a comeacutedia

Pereira (2006) destaca que a palavra trageacutedia em grego (τραγῳδία) deriva de

tragos (τράγος) que significa bode puberdade os primeiros desejos do sentido lubricidade

(pois o bode simbolizava para os antigos pelas suas caracteriacutesticas o desejo sexual a

lubricidade) e de ode (ᾠή) que significa canto com acompanhamento de instrumentos

accedilatildeo de cantar

A palavra tragoidiacutea (τραγῳδία) de acordo com Fernandes (2006) significava em

grego ldquocanto do bode canto religioso com o qual se acompanhava o sacrifiacutecio de um bode nas

festas de Dioniso trageacutedia drama heroacuteico evento traacutegicordquo O tragoidoacutes (τραγῳδός) era

primordialmente aquele que danccedilava e cantava durante a imolaccedilatildeo de um bode nas festas de

Dioniso sendo que este termo significou tambeacutem em seguida lsquoaquele que danccedila e canta em

um coro traacutegico ator traacutegico membro do coro traacutegico poeta traacutegico Para alguns estudiosos o canto do bode era o canto dos companheiros de Dioniso em seus cortejos orgiaacuteticos dos saacutetiros os filhos de Sileno - que teria segundo uma tradiccedilatildeo sido um educador daquele deus (Sileno era famoso pela sua feiuacutera e sua sabedoria e suas formas eram em parte equinas) Poreacutem soacute muito tardiamente ndash a saber na eacutepoca heleniacutestica e romana da cultura grega - os saacutetiros foram representados como seres em que se misturavam formas humanas e formas caprinas tendo os membros inferiores ateacute mais ou menos a cintura em forma caprina e um chifre e feiccedilotildees que lembravam as feiccedilotildees caprinas No tempo aacuteureo das trageacutedias e mesmo pouco depois ndash a saber no seacuteculo V e IV a C - os saacutetiros apareciam como seres em que se misturavam as formas humanas com a equina tendo entatildeo os membros inferiores semelhantes agraves patas traseiras de um cavalo aleacutem de um rabo e orelhas de cavalo Esta hipoacutetese permaneceu poreacutem apoiada em passagens de textos do seacuteculo V (particularmente no fragmento 207 do Prometeu Pirceu de Eacutesquilo) em que saacutetiros satildeo chamados de bode natildeo pela sua forma mas

3 Nesta pesquisa trabalhamos com o conceito de Duplo estabelecido por Anna Beltrametti no artigo ldquoLe couple comique Des origines mythiques aux deacuterives philosophiques incluiacutedo na obra dirigida por Marie-Laurence Esclos Le rire des grecs anthropologie du rire en Gregravece ancienne (2000 p 215-226)

20

hipoteticamente pela sua lasciacutevia ndash pois como jaacute dissemos o bode eacute caracterizado pela lubricidade (PEREIRA 2006 p7)

Outra hipoacutetese esta defendida por Lesky (1999) foi a de que o canto do bode era

o canto lamentoso da viacutetima sacrificada a Dioniso ndash que como vimos acima era um bode

Toda a trageacutedia se assemelha a um ritual de sacrifiacutecio No centro da orquestra no teatro

grego havia um altar a Dioniso (o thymeacutelendashθυμέλη) sugerindo que o destino traacutegico do heroacutei

e a representaccedilatildeo traacutegica eram como uma imolaccedilatildeo a Dioniso Na Greacutecia sobretudo nas

eacutepocas arcaicas eram praticados rituais de sacrifiacutecio dos chamados bodes expiatoacuterios (em

grego pharmakoacutesndashφαρμακός) em que um indiviacuteduo carregado de todas as impurezas da

comunidade era sacrificado

Em Atenas havia um ritual nas festas chamadas Targeacutelias4 dedicadas a Apolo e

Aacutertemis que remetia a este sacrifiacutecio Um homem e uma mulher eram surrados enquanto

eram conduzidos atraveacutes de toda a cidade Depois eram sacrificados fora das fronteiras da

cidade queimados e suas cinzas jogadas no mar Na eacutepoca claacutessica eram apenas jogados no

mar e depois expulsos para fora das fronteiras da cidade Eles eram chamados de pharmakoiacute5

bodes expiatoacuterios

O ritual de sacrifiacutecio era uma tradiccedilatildeo que existia em muitas outras civilizaccedilotildees

Nas Saacuteceas6 babilocircnicas por exemplo que satildeo mencionadas por Nietzsche em O nascimento

da trageacutedia um prisioneiro era sacrificado depois de ser nomeado rei da Babilocircnia por cinco

dias tempo em que tinha direito a desfrutar de todo o hareacutem do proacuteprio rei e de dar livre curso

a todos os seus apetites ateacute o momento de seu sacrifiacutecio Durante este tempo as orgias eram

celebradas em toda a cidade

Na Poeacutetica de Aristoacuteteles trageacutedia e comeacutedia assemelham-se quando satildeo

apresentadas como ldquomimesis7rdquo (1447a) e diferem porque autores cocircmicos ldquoimitamrdquo homens

4 Targeacutelia era um dos principais festivais atenienses realizados em honra a Apolo e Aacutertemis tal festival era celebrado no mecircs de Targeliatildeo (relativo ao periacuteodo de 15 de maio a 15 de junho) 5 Sacrificar (real ou simbolicamente) um bode expiatoacuterio para purificar a cidade era comum no mundo grego A pessoa sacrificada chamava-se pharmakoacutes Em Atenas o rito era parte das Targeacutelias festival em honra a Apolo Para ser pharmakoiacute as pessoas tinham que ser detentores de deficiecircncia fiacutesica e os considerados inuacuteteis 6 Festas que se celebravam na Peacutersia antiga e durante as quais os escravos mandavam nos amos 7 Como notado por GOLDEN Leon Aristotle on the Pleasure of Comedy In A O Rorty Essays on Aristotlersquos Poetics (1992 27) Do gr miacutemesis ldquoimitaccedilatildeordquo (imitatio em latim) designa a accedilatildeo ou faculdade de imitar coacutepia reproduccedilatildeo ou representaccedilatildeo da natureza o que constitui na filosofia aristoteacutelica o fundamento de 7Heroacutedoto foi o primeiro a utilizar o conceito e Aristoacutefanes em Tesmofoacuterias (411) jaacute o aplica O fenocircmeno natildeo eacute um exclusivo do processo artiacutestico pois toda atividade humana inclui procedimentos mimeacuteticos como a danccedila a aprendizagem de liacutenguas os rituais religiosos a praacutetica desportiva o domiacutenio das novas tecnologias etc Por esta razatildeo Aristoacuteteles defendia que era a miacutemesis que nos distinguia dos animais

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piores e os traacutegicos os ldquoimitamrdquo melhores do que satildeo na realidade (1448a) Sendo a mimesis

considerada pelo filoacutesofo como congecircnita agrave natureza humana ndash que com ela se compraz e

aprende ndash a poesia naturalmente tomou as formas da iacutendole particular dos poetas os de

acircnimo mais elevados mimetizavam accedilotildees nobres atraveacutes de hinos e encocircmios e os de mais

baixas inclinaccedilotildees compunham vitupeacuterios (1449a) Vinda agrave luz atraveacutes da poesia a mesma

distinccedilatildeo estendeu-se ao teatro dos ditirambos em honra a Dioniso originou-se a trageacutedia e

nos cantos faacutelicos ndash que tambeacutem evocavam o mesmo Deus ndash pode-se perceber as sementes da

comeacutedia

Na cena teatral segundo Aristoacuteteles (Poeacutetica 1448b) a comeacutedia apresentava o

que os homens tecircm de ridiacuteculo caracterizado como ldquodefeito torpeza anoacutedina e inocenterdquo a

maacutescara cocircmica era disforme mas natildeo possuiacutea expressatildeo de dor Por sua vez a trageacutedia aacutetica

mimetizava homens superiores em accedilotildees de caraacuteter elevado que suscitavam terror (phobos) e

compaixatildeo (eleas) e provocavam o prazer que eacute proacuteprio desses sentimentos

Sem desconsiderar que uma localizaccedilatildeo muito rigorosa das origens seria um erro

metodoloacutegico ressalto a origem comum da trageacutedia e da comeacutedia ndash nos coros dionisiacuteacos ndash

ainda que predominantemente a Filosofia demonstre muito menos apreccedilo por essa uacuteltima Se

a trageacutedia surgiu dos ditirambos a comeacutedia comeccedilou com os komoi uma espeacutecie de procissatildeo

jocosa das quais a mais famosa era realizada nas festas dionisiacuteacas para celebrar a fertilidade

da natureza atraveacutes de homenagens a reproduccedilotildees de falos descomunais ndash costume ainda vivo

em algumas regiotildees da Greacutecia e Japatildeo

Os comediantes (komoidoi) andavam de aldeia em aldeia por natildeo serem tolerados

na cidade registrou Aristoacuteteles (1448b) Oficialmente as representaccedilotildees cocircmicas tiveram

origem nas Dioniacutesias Urbanas (486aC) em Atenas mas cenas pintadas em vasos revelam

sua existecircncia bem antes da data oficial

ldquoA trageacutedia surgiu do coro traacutegicordquo Pode-se ler em O nascimento da trageacutedia

(NIETZSCHE 2007 p52) quando Nietzsche interpreta a origem da trageacutedia no coro dos

saacutetiros de um modo bastante especiacutefico tomando como arma a luta contra a ideia de

naturalismo na arte O coro mesmo eacute percebido ldquocomo uma muralha viva que a trageacutedia

estende agrave sua volta a fim de isolar-se do mundo real e de salvaguardar para si o seu chatildeo ideal

e a sua liberdade poeacuteticardquo (p54) E o faz preservando as semelhanccedilas com os antigos coros

satiacutericos gregos e sua erracircncia por terrenos mais elevados ldquomuito acima das sendas reais do

perambular dos mortaisrdquo (p54) O saacutetiro ndash ldquoser natural e fictiacuteciordquo ndash eacute percebido em relaccedilatildeo ao

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homem grego civilizado do mesmo modo que a muacutesica dionisiacuteaca em relaccedilatildeo agrave civilizaccedilatildeo O

coro satiacuterico suspende eleva e supera o grego civilizado da mesma forma como a claridade do

sol faz com as luzes das lacircmpadas escreve Nietzsche

Expressatildeo do proacuteprio desejo com sua erracircncia original o coro satiacuterico criava um

territoacuterio transcendente distanciado da realidade cotidiana natildeo apenas tolerado como

ldquoliberdade poeacuteticardquo e sim considerado pelo menos por Nietzsche a proacutepria ldquoessecircncia de toda

poesiardquo (p54) O mesmo filoacutesofo escreveu O ecircxtase do estado dionisiacuteaco com sua aniquilaccedilatildeo das usuais barreiras e limites da existecircncia conteacutem enquanto dura um elemento letaacutergico no qual imerge toda vivecircncia pessoal do passado Assim se separam um do outro atraveacutes desse abismo do esquecimento o mundo da realidade cotidiana e o da dionisiacuteaca (NIETZSCHE 2007 p55)

Devo advertir de iniacutecio que eacute difiacutecil dizer por que a partir de uma origem comum

ndash a experiecircncia dionisiacuteaca ndash o distanciamento arrebatador do mundo cotidiano prosaico gerou

expressotildees tatildeo diversas a ponto de constituiacuterem gecircneros ateacute hoje existentes como o cocircmico e

o traacutegico E segundo Nietzsche este uacuteltimo eacute com ajuda de Apolo a ldquodomesticaccedilatildeo artiacutestica

do horriacutevelrdquo enquanto o primeiro seria uma ldquodescarga da naacuteusea do absurdordquo (NIETZSCHE

2007 p56)

Ao longo da histoacuteria entretanto pode-se perceber que o entrelaccedilamento de ambos

no que ficou conhecido como ldquotragicocircmicordquo a ponto de tornar-se popular a ideia expressa

pelo ditado ldquoseria cocircmico se natildeo fosse traacutegicordquo Como tantos outros os termos originais

foram banalizados esvaziados de conteuacutedo tornados difusos

Se em sua origem o cocircmico era o outroduplo do traacutegico tambeacutem desde esses

tempos a saacutetira jaacute se fazia presente como companhia do texto cocircmico A chamada ldquoComeacutedia

Antigardquo (425-404 aC periacuteodo da produccedilatildeo de Aristoacutefanes que nos chegou) caracteriza-se

pela mordacidade caacuteustica na mimesis dos cidadatildeos proeminentes e das instituiccedilotildees dapolis8

seja pelos a(u)tores seja pela manifestaccedilatildeo das proacuteprias personagens que algumas vezes

representavam em cena o proacuteprio discurso revelador das injusticcedilas sociais tatildeo comuns na

Cidade

Nesse contexto o Duplo sempre foi um tema profundamente instigante da cultura

humana e sempre esteve essencialmente relacionado em vaacuterias aacutereas do conhecimento como

na Filosofia Psicologia Literatura e na Mitologia persistindo temporalmente como temaacutetica 8 Para a normatizaccedilatildeo de algumas palavras gregas em portuguecircs seguimos o Glossaacuterio elaborado pelo Laboratoacuterio de Estudos Sobre a Cidade Antiga Disponiacutevel em pdf no site wwwmaeuspbrlabeca aba glossaacuterio No caso de palavras jaacute dicionarizadas utilizamos a forma de acordo como que consta no Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa (2008)

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sempre revisitada e geradora de ambiguidades Na Antiguidade o Duplo era para a

sociedade a representaccedilatildeo ou o reflexo do idecircntico ou seja prevalecia a ideia de Duplo como

o homogecircneo manifestaccedilatildeo do igual

No entanto natildeo permaneceu dessa maneira tendo com o passar do tempo a partir

do seacuteculo XVIII se tornado heterogecircneo isto eacute o Duplo passa a representar o desigual ou em

outras palavras o oposto em Suassuna o arremedo cocircmico Este fato encontra comprovaccedilatildeo

quando procuramos as diferenccedilas existentes entre o traacutegico e o cocircmico tatildeo bem delineadas na

sociedade Greacutecia Claacutessica

Obscura como outros siacutembolos e projeccedilotildees coletivas a figura do duplo em

Acarnenses (Diceoacutepolis) e no Auto da Compadecida (Joatildeo Grilo) eacute cocircmica e criacutetica visto que

satildeo elementos que parodiam o serviccedilo divino cantando errado e fazendo sermotildees

moralizantes travestem-se usam maacutescaras passeiam com maestria nos mundos popular e

erudito representam coletivos pelo poder da gargalhada do riso seacuterio e da tolice formas mais

sutis para se levar ao conhecimento da audiecircncia o desdobramento da consciecircncia ao mesmo

tempo a do idiota e a do bufatildeo que a utiliza como maacutescara e a coloca em praacutetica na defesa do

cidadatildeo injusticcedilado

Cantando errado e fazendo sermotildees moralizantes os a(u)tores travestem-se de

heroacuteis cocircmicos satildeo porta-vozes da opiniatildeo de muitos se apoderam do grotesco usam

maacutescaras passeiam com maestria nos mundos popular e erudito representam coletivos pelo

poder da gargalhada do riso seacuterio e da tolice e encontram em seus outros as formas

mais(in)certas para criticar agravequeles que exploram a cidade e levar ao puacuteblico atraveacutes de

figuras idiotizadas os ensinamentos que ironicamente o poeta preocupado com o destino do

cidadatildeo executa diante de suas audiecircncia

Esta dualidade cocircmica estabelecida pelo poeta e seus duplos no espaccedilo cecircnico da

cidade eou do inframundo implica certa ambiguidade constitutiva na figura do heroacutei cocircmico

ou do juiz apresentado em Acarnenses no Auto da Compadecida e no Auto da Barca do

Inferno tendo em vista tambeacutem a accedilatildeo dos pares antagocircnicos estuacutepido e saacutebio grosseiro e

sutil escravo das pulsotildees e senhor de si mesmo menos e mais humano

Assim percebe-se que tanto no teatro aristofacircnico quanto no teatro popular de

Ariano Suassuna o autoconhecimento expresso pelas maacutescaras gestos e vozes cocircmicas

implica tambeacutem no conhecimento da condiccedilatildeo humana tatildeo bem levada a seacuterio pelos autores e

seus discursos criacuteticos sendo portanto uma nova forma de combinar velhos ingredientes

como o riso frouxo e a voz estridente educadora aacutecida da sociedade ateniense que encontra

espaccedilo semacircntico atraveacutes dos gestos e maacutescaras que se organizam em uma nova composiccedilatildeo

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natildeo soacute da cena teatral mas da inteligecircncia de autores que pensam a sociedade para aleacutem das

mazelas das injusticcedilas vivenciadas impostas pelo estado de guerra

Nesse ambiente muacuteltiplopolifocircnico observamos que a ldquovoz do poetardquo os gestos

e as maacutescaras satildeo fundantes da estrutura do discurso educativo e denunciador formado a

partir da presenccedila de vaacuterias vozes como a do proacuteprio poeta que tem sido um tema de grande

interesse para muitos estudiosos e para todos que se deparam com a problemaacutetica da

identificaccedilatildeo desta quando articulada agrave formaccedilatildeo dos duplos do poeta dentro da Comeacutedia

Antiga perceptiacutevel nas peccedilas Acarnenses de Aristoacutefanes no Auto da Compadecida de

Ariano Suassuna e no Auto da barca do Inferno de Gil Vicente

Por ser uma arte que permanece haacute tantos seacuteculos o teatro desperta curiosidade

acerca de seus primoacuterdios existindo vaacuterias conjecturas e teorias sobre o surgimento da

Comeacutedia Antiga como ambiente extremamente propiacutecio agrave formaccedilatildeo de duplos a partir de

uma seacuterie de elementos presente no mito e culto do deus do teatro Dioniso no qual as vozes

os gestos e as maacutescaras satildeo sobrepostas como causa de equiacutevocos e componentes centrais das

invectivas pessoais ou intrigas transformando-se em acessoacuterios fundamentais para o discurso

moralizante e para alcanccedilar o objetivo maior do a(u)tor a obtenccedilatildeo da paz em Acarnenses de

Aristoacutefanes e a absolviccedilatildeo no Auto da Compadecida de Ariano Suassuna ou na condenaccedilatildeo

das almas em virtude de suas faltas e pecados em vida como esclarece Nemeacutesio (1941) num

ritmo sacral na abordagem vicentina no Auto da Barca do Inferno

Eacute notaacutevel contudo observar que esses elementos frequentemente utilizados por

Aristoacutefanes em suas peccedilas tambeacutem encontram eco na literatura popular de Suassuna Isso

decorre do fato de a obra do pernambucano tambeacutem apresentar uma tessitura textual

atravessada por muacuteltiplas vozes estas representadas pelas diferentes personagens Nesse

processo as obras dos dois autores evidenciam um fenocircmeno recorrente e natural marcado

pela tensatildeo de uma crise profunda denunciada pelos dramaturgos nos discursos de suas

personagens

Assim eacute pertinente que primeiro justifiquemos a escolha das obras citadas visto

que ambas trazem em seus enredos personagens que usam da autoridade conferida pelo poeta

para ressoar seus anseios e indignaccedilotildees atraveacutes do discurso Ao longo das peccedilas Aristoacutefanes e

Suassuna projetam seus duplos de forma que suas proacuteprias vozes possam ser ouvidas

indiretamente por traacutes de cada ato levando o puacuteblico a crer que ouve a voz direta do poeta

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quer atraveacutes do coro do palhaccedilo coreuta da paraacutebase9 ou em personagens protagonistas

como Diceoacutepolis ou Joatildeo Grilo

Atraveacutes dessas personagensautores a voz do dramaturgo eacute projetada pelo riso da

mangofa10 pelos gestos performaacuteticos pelo arremedo poeacutetico eou pelo outro travestido de

a(u)tor accedilotildees perfeitamente justificaacuteveis visto que o cocircmico tem afinidade com a cultura

popular porque utiliza fatos do dia a dia como mateacuteria na representaccedilatildeo de algo atraindo

consequentemente a atenccedilatildeo do leitor ou ouvinte para a obra A verdade eacute que a conduccedilatildeo

cocircmica e moralizante encontra espaccedilo feacutertil em ambas as obras traduzida pela accedilatildeo do poeta a

partir das vozes de seus duplos Diceoacutepolis e Joatildeo Grilo figuras conturbadas em franco

desacordo com a situaccedilatildeo promovida pelos legisladores em Atenas ou na pacata cidade de

Taperoaacute interior nordestino Esses protagonistas descobrem-se em atitude de perfeita

rebeldia conscientes das mudanccedilas advindas de suas atitudes e como heroacuteis cocircmicos satildeo

tambeacutem autores de uma saiacuteda que nem sempre pode ser compartilhada socialmente ou

compreendida

Neste contexto a construccedilatildeo do duplo representa um transbordamento do proacuteprio

poeta um arremedo despadronizado o outro do autor uma imitaccedilatildeo de algo que se pretende

por muitas vezes deter e que retorna fazendo pressatildeo no sentido contraacuterio denunciando as

injusticcedilas e desmandos autorizados pelo poeta com toda a sua pujanccedila Quem natildeo recorda das

figuras ceacutelebres de Diceoacutepolis o duplo cocircmico (matuto) de os Acarnenses (Aristoacutefanes) e de

Joatildeo Grilo e Chicoacute sendo uma espeacutecie de duplo pois representa de forma autorizada a

proacutepria voz do poeta com todas as suas anedotas e os ndash Natildeo sei soacute sei que foi assim ou de

algum outro matuto astuto de nossa tradiccedilatildeo cinematograacutefica ou teatral recriado na literatura

de cordel a partir da influecircncia ibeacuterica ou grega

Diante dessa apropriaccedilatildeo e recuperaccedilatildeo dos mecanismos narrativos da comeacutedia e

de seu caraacuteter atemporal torna-se importante salientar que a Comeacutedia Antiga aleacutem de

construir ldquomuacuteltiplos cocircmicosrdquo apresenta personagens natildeo universais como os que satildeo

caricaturas de pessoas que viveram em Atenas em um momento especiacutefico A obra de

Aristoacutefanes potildee em cena nomes de figuras eminentes da Greacutecia antiga como o de poliacuteticos

9 A paraacutebase eacute uma seccedilatildeo de natureza puramente coral da comeacutedia antiga Na Paraacutebase o coro avanccedilaria em direccedilatildeo aos espectadores e pronunciaria os versos olhando para eles O verbo parabaino aparece doze vezes nas peccedilas de Aristoacutefanes Nas suas demais menccedilotildees significa transgredir um juramento (As Aves vv 331 447 461 Lisiacutestrata vv 235 236 As Mulheres que Celebram as Tesmofoacuterias v 357 Assembleia de Mulheres v 1049) Em As Vespas v 1529 o sentido eacute o de avanccedilar danccedilando mas o contexto em que eacute empregado natildeo eacute parabaacutetico DUARTE Adriane da Silva O dono da voz e a voz do dono a paraacutebase na comeacutedia de Aristoacutefanes Satildeo Paulo Humanitas FFLCH USP 2000308 10 Debique escaacuternio mangaccedilatildeo mangoaccedila mangoccedila mofa zombaria mangofa

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(Cleatildeo e Lacircmaco) pensadores (Soacutecrates) e poetas (Euriacutepides e Eacutesquilo)

A referecircncia a essas personalidades bem como o diaacutelogo com a mitologia a

histoacuteria e o teatro natildeo constituiacutea um problema para a plateia de Aristoacutefanes No entanto para

noacutes leitores de outras geraccedilotildees a percepccedilatildeo de tais referecircncias natildeo eacute assim tatildeo simples ainda

que seja fundamental para a compreensatildeo da comeacutedia

Em Aristoacutefanes Diceoacutepolis que atua na comeacutedia como Joatildeo Grilo no Auto da

Compadecida representa muitos cidadatildeos pois ele eacute a ldquoCidade Justardquo espectador do teatro

participante da assembleia ator ou personagem de Euriacutepides vendedor na sua aacutegora Eacute nesta

interaccedilatildeo criaccedilatildeo e recriaccedilatildeo de discursos que estabelecemos contato com o maior

entendimento da histoacuteria da comicidade a fim de entender os recursos que o comedioacutegrafo

utilizou ao compor seus (duplos) personagens que permanecem por seacuteculos em nossa

tradiccedilatildeo

Vale ressaltar que tudo que acontece na cidade tambeacutem eacute do conhecimento do

poeta que no Auto da Compadecida evidenciado por sua proacutepria construccedilatildeo que obedeceu a

uma ideologia antiga do autor de unir o nacional ao popular para operar as mudanccedilas sociais ndash

em Taperoaacute ndash ou por que natildeo dizer em seu mundo real versejado por suas andanccedilas Para ele

a arte que realmente expressa o paiacutes e o povo brasileiro eacute popular ou baseada no popular uma

arte erudita baseada no popular e em tal concepccedilatildeo de arte estaria a gecircnese de seu teatro no

qual desejava expressar suas raiacutezes e seu povo negando assim os modelos de teatro europeu

como se percebe em sua seguinte fala Queria fazer um teatro que expressasse meu paiacutes e meu povo Aiacute me vi muito naturalmente diante do folheto de cordel essa expressatildeo extraordinaacuteria que o povo brasileiro criou e que eacute o uacutenico espaccedilo cultural onde o povo brasileiro se expressou sem intervenccedilotildees nem deformaccedilotildees que lhe viessem de cima ou de fora O folheto de cordel eacute um universo extraordinaacuterio (SUASSUNA 2001 p 04)

Composto pela recriaccedilatildeo criacutetica e por possuir um enredo que proporciona ao

leitorespectador o riso a reflexatildeo e a dor Auto da Compadecida eacute uma mistura de trageacutedia e

comeacutedia como nos afirma Geraldo da Costa Matos Auto da Compadecida eacute misto um duplo pois participa da estrutura traacutegica pela oposiccedilatildeo muito radical dos personagens a ponto de natildeo haver acordo entre eles e da cocircmica pelos incidentes e desenlace com a salvaccedilatildeo de todos graccedilas agrave intervenccedilatildeo da Compadecida permanecendo no inferno apenas os democircnios cuja situaccedilatildeo jaacute se encontra definida ao aparecerem ao palco (SUASSUNA 2005 p82)

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Na verdade apesar de estarem diluiacutedos em toda a peccedila os elementos traacutegicos e

cocircmicos se intercalam com predominacircncia ora de um ora de outro O cocircmico tem presenccedila

mais marcante em torno das accedilotildees do protagonista Joatildeo Grilo e de seu duplo Chicoacute que

enganam os eclesiaacutesticos (Primeiro Ato) o padeiro e a mulher (Segundo Ato) atraveacutes das

mentiras que criam com o objetivo de ganhar algum trocado ou simplesmente para vingar-se

de seus exploradores

As marcas do traacutegico se tornam mais salientes a partir da metade do segundo ato

com a entrada de Severino do Aracaju travestido de mendigo e do Cangaceiro Estes dois se

opotildeem aos demais personagens uma vez que entram em cena para roubar e acabam

provocando a morte de todos que estatildeo na igreja Na cena do julgamento a oposiccedilatildeo entre as

personagens torna-se ainda mais brusca pois se veem de um lado as figuras celestiais e de

outro as figuras demoniacuteacas natildeo havendo acordo entre elas

Eacute justamente nesse abrir e fechar de cortinas que o teatro aristofacircnicosuassuniano

nos proporciona enquanto espectadores uma visatildeo amplamente criacutetica das accedilotildees humanas

seja pelo desejo pessoal injuacuteria ou pela proacutepria paroacutedia que tatildeo bem se propotildee ao

convencimento do puacuteblico Assim concordamos com Brait (1985) ao referir agrave teoria

desenvolvida por Aristoacuteteles em sua poeacutetica sobre os dois pontos essenciais dos personagens

uma vez que o primeiro ponto define o personagem como reflexo da pessoa humana e o outro

concebe o personagem como construccedilatildeo baseada em leis particulares preacute-existentes no texto

Se quisermos saber alguma coisa a respeito de personagens teremos de encarar frente a frente agrave construccedilatildeo do texto social a maneira que o autor encontrou para dar forma agraves suas criaturas e aiacute pinccedilar a independecircncia a autonomia e a ldquovidardquo desses seres de ficccedilatildeo (BRAIT 1985 p11)

Pode-se observar que esses dois pontos se completam estabelecendo bases para a

criaccedilatildeo das personagens Diceoacutepolis e Joatildeo Grilo tanto em Acarnenses como no Auto da

Compadecida a partir do olhar atento do(s) autor(es) jaacute que eles sofrem pela aplicaccedilatildeo das

leis preacute-existentes tanto na sociedade real quanto na ficccedilatildeo sem perder o caraacuteter denunciador

e intencional proposto pelo criador intriacutenseco agraves suas criaturas

Portanto tanto em Acarnenses quanto no Auto da Compadecida o vieacutes cocircmico

utiliza a irreverecircncia para tratar e relatar as dificuldades as opiniotildees e as injusticcedilas da

sociedade de maneira direta e aberta e deste modo se contrapotildee agraves regras sociais que exigem

boas maneiras ou padratildeo que jamais seraacute alvo da comeacutedia

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A comeacutedia eacute o oposto da trageacutedia pois se traduz no uso do riso que faz

ultrapassar os limites da seriedade criando novas e criacuteticas hipoacuteteses e questionamentos sobre

a realidade denunciando os viacutecios erros morais e atitudes irregulares de indiviacuteduos de uma

classe aleacutem de servir para criticar a sociedade dos corrompidos dos inferiores de maneira

camuflada e irreverente Desta forma pode-se afirmar que a performance cocircmica da qual o

riso a maacutescara o gesto e a voz fazem parte constitui-se de forma implacaacutevel em Aristoacutefanes

e Suassuna como arma para a exposiccedilatildeo ao ridiacuteculo e a exposiccedilatildeo de algo ou algueacutem ao

ridiacuteculo natildeo seraacute bem visto perante as regras e as pessoas da sociedade como o proacuteprio

dramturga citando Moliegravere afirmava ldquoNatildeo existe tirania que resista a gargalhadas que lhe

deem trecircs voltas em tornordquo

11 A comeacutedia aristofacircnica

Castigat ridendo mores 11

Devo de iniacutecio chamar a atenccedilatildeo do empenhado leitor que com grande causa e

sem gabaccedilatildeo deve compreender as peripeacutecias dos (anti)heroacuteis que ora apresento entre o curto

espaccedilo de fechar e abrir as cortinas do teatro-mundo cabe uma especial referecircncia agraves obras

postas em anaacutelise ligadas pelo riso denunciativas em suas eacutepocas separadas

cronologicamente e atemporalmente aqui em completude

Desde a Antiguidade o riso e a comeacutedia tecircm servido para manifestar os viacutecios e

as fraquezas humanas Segundo a perspectiva de Aristoacuteteles na sua Poeacutetica a comeacutedia era a

via por onde passava o homem inferior ndash o nosso anti-heroacutei aquele que natildeo era digno de se

prestar agraves trageacutedias e ser chamado de heroacutei Provavelmente foi na Greacutecia que para noacutes a

representaccedilatildeo do homem inferior surgiu Desde entatildeo aquilo que provoca o riso tem sido no

mais das vezes o que eacute condenaacutevel e baixo na humanidade Em ambas as peccedilas o riso eacute a

arma cocircmica que castiga os costumes que estavam em desacordo com a moral e a partir

disso o riso passa a ser um fenocircmeno sobretudo social e humano e que ocorre somente em

circunstacircncias em que de alguma forma a sociedade vecirc-se ameaccedilada a ponto de criar

situaccedilotildees absurdas rupturas para expurgar os males que decorrem dessa situaccedilatildeo de

encurralamento de total exploraccedilatildeo como demonstradas nas peccedilas a seguir

11 Locuccedilatildeo latina que significa rindo castiga-se os costumes

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12 Dioniso Matuto Justinoacutepolis um heroacutei embusteiro

Ana Maria Ceacutesar Pompeu (2011) nos esclarece que Acarnenses eacute a primeira

comeacutedia que nos chegou de Aristoacutefanes encenada em 425 aC Ela traccedila um retrato

caricatural da cidade de Atenas num periacuteodo de crise das instituiccedilotildees democraacuteticas

relacionado diretamente com a guerra do Peloponeso (431 aC -404aC) Eacute a primeira

comeacutedia que conservamos do seu autor como tambeacutem da Comeacutedia Antiga e define-se como

uma peccedila de tema poliacutetico no sentido moderno inspirada na administraccedilatildeo e na experiecircncia

coletiva de uma Atenas que vive plenamente o seu periacuteodo democraacutetico

O tiacutetulo da peccedila refere-se aos habitantes do demos 12 de Acarnas ex-combatentes de

Maratona que tinham apoiado a guerra contra Esparta por as suas terras terem sido saqueadas

pelos guerreiros lacedemocircnios O caraacuteter didaacutetico do texto eacute expresso pelo proacuteprio autor nos

versos 500-501 (p92) ldquoPois o que eacute justo a comeacutedia tambeacutem cunhece Eu vou falaacute coisas

terrive mas justardquo Aleacutem do caraacuteter didaacutetico da comeacutedia aristofacircnica percebe-se tambeacutem a

presenccedila de nomes de alguns personagens que tecircm uma significaccedilatildeo alegoacuterica Diceoacutepolis o

personagem principal significa cidade justa Anfiacuteteo eacute um nome divino e de alguns poliacuteticos e

legisladores da eacutepoca

O autor de Acarnenses constroacutei a sua peccedila a partir de Atenas pintada em funccedilatildeo

do proacuteprio fluir histoacuterico assolada pela guerra O eixo central da comeacutedia eacute a relaccedilatildeo entre o

puacuteblico e o privado alimentada pela disputa entre belicistas e pacifistas quanto agrave guerra pelo

que a sua mensagem eacute poliacutetica sendo o povo ateniense representado como um bando de

loucos e a democracia como uma farsa

A peccedila comeccedila com DiceoacutepolisJustinoacutepolis um camponecircs forccedilado a migrar para

a cidade onde vive em condiccedilotildees precaacuterias e que aguarda a reuniatildeo da asssembleia onde o

tema da discussatildeo de um tratado de paz vai ser deliberado Vendo a praccedila vazia lamenta a

natildeo participaccedilatildeo do povo na reuniatildeo da assembleia ficando a decisatildeo entregue nas matildeos de

poliacuteticos profissionais que por regra eram demagogos revelando uma contradiccedilatildeo do sistema

democraacutetico os destinos da comunidade cujo governo pertence a todos (puacuteblico) fica afinal

entregue ao cuidado de poucos (privado) deixando a porta aberta a todo o arbiacutetrio e

venalidade

12 Na Greacutecia Antiga o demo (em grego δῆμος) era uma subdivisatildeo da Aacutetica regiatildeo da Greacutecia em torno de Atenas Os demos jaacute existiam como meras subdivisotildees de terra nas aacutereas rurais desde o seacuteculo VI aC

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Comeccedilada a assembleia Ambiacutedeus faz a proposta de paz mas eacute rechaccedilado com

ordem de prisatildeo DiceoacutepolisJustinoacutepolis tenta reverter a situaccedilatildeo mas sem sucesso dizendo

Oacute priacutetanes vocecircs tatildeo fazendo mal pra assembleia Arrastando o homem que queria fazecirc treacuteguas Pra noacutes e dependuraacute os escudo (ARISTOacuteFANES POMPEU 2014 p67)

Este breve momento em que apenas dois indiviacuteduos se manifestam a favor da

discussatildeo de um problema central no contexto ateniense agindo no interesse do bem comum

da cidade eacute logo apagado abafado pelo conselho que desviaraacute a sua atenccedilatildeo para os

embaixadores que chegam da Peacutersia

DiceoacutepolisJustinoacutepolis protagoniza a voz da razatildeo numa sociedade dominada por

loucos e safados que teimam em alimentar a guerra com Esparta como pretexto para

enriquecerem agrave sua custa ficando ele cada vez mais miseraacutevel e pobre Diceoacutepolis

desmascara em seguida a funccedilatildeo das missotildees diplomaacuteticas persas na figura de

Pseudaacutertabas 13 como fraudes pois vem prometer ouro com a conivecircncia dos embaixadores

atenienses como manobra de diversatildeo apenas

Com efeito a sua ostentaccedilatildeo agrave custa do dinheiro puacuteblico que contrasta com a

pobreza da maioria dos cidadatildeos desmente a veracidade da proposta que fazem por isso eacute

com palavras acerbas - ldquocus molesrdquo- que os incita a natildeo caiacuterem no logro Diceoacutepolis eacute entatildeo

silenciado a reuniatildeo eacute suspensa e iraacute fazer-se agrave porta fechada no Conselho (Pritaneu) Com

este estratagema o direito de todos participarem na tomada de decisatildeo eacute abolido confinando

a decisatildeo poliacutetica ao segredo dos gabinetes Compreendendo que a guerra natildeo lhe conveacutem

DiceoacutepolisJustinoacutepolis conclui uma paz privada com o inimigo libertando-se da loucura da

cidade Assim fugindo de uma ordem puacuteblica corrompida procura um espaccedilo em que possa

ser o senhor absoluto de si proacuteprio Os acarnenses ficam enfurecidos ao descobrirem que

Diceoacutepolis fez um acordo de paz com os lacedemocircnios apedrejando-o

Entatildeo ele tenta com palavras sensatas expor suas razotildees defender-se das

acusaccedilotildees que lhe satildeo movidas mas o seu direito de defesa eacute contestado com ameaccedilas de

ainda maior violecircncia por parte do coro dos Acarnenses

13 ldquopseucircdosrdquo ldquofalsordquo artaacutebe ldquomedida persardquo Falsidacircmetro in Traduccedilatildeo Matuta Cearense de Dyscolos o Enfezado de Menandro POMPEU e SANTOS Cultura e Traduccedilatildeo v 5 n 1 (2017) ISSN 2238-9059 Disponiacutevel em httpperiodicosufpbbrojs2indexphpct 2017

31

ldquoCoro Quero eacute morrecirc seu ti iscutaacute Diceoacutepolis Num faccedila isso natildeo oacute Acaacuternicos Coro Tu vai morrecirc fica sabenrsquoagorardquo (ARISTOacuteFANES POMPEU 2014 p81-82)

A democracia encontra-se subvertida na sua essecircncia quando a violecircncia

imperante impede que o criteacuterio de resoluccedilatildeo dos conflitos seja resolvido com recurso agrave livre

discussatildeo em condiccedilotildees igualitaacuterias no espaccedilo puacuteblico Eacute o que estaacute acontecendo primeiro

na assembleia depois eacute-lhe negado o direito de defesa contra as acusaccedilotildees dirigidas a um

cidadatildeo finalmente eacute silenciado e suspenso a sua proposta de discussatildeo

DiceoacutepolisJustinoacutepolis eacute o proacuteprio Aristoacutefanes criador e criatura autorizado a

assumir o risco de morte proclama o que julga ser justo para a cidade e denuncia a retoacuterica

fraudulenta dos oradores que conquistam o povo com o sortileacutegio encantatoacuterio do seu

discurso Taquioia este tronco aqui E o home que vai falaacute eacute deste tamanhin Tenha cuidado natildeo num vocirc me armaacute de iscudo Vocirc falaacute em favocirc dos lacedemocircmios o qrsquoeu acho Mas tenho muito que temecircPois os modo Dos lavradocirc conheccedilo eu eles fica muito alegre Se pra eles e pra cidade fizeacute elogio algum Home inrolatildeo com justiccedila ou sem ela E aiacute num se datildeo conta que tatildeo seno eacute vindido E dos veacuteio tambeacutem conheccedilo as alma que Num bota a vista noutra coisa mas soacute em mordecirc cum voto Euzin aqui sei o que sofri nas matildeo de Cleatildeo Por causa da cumeacutedia do ano passado Pois teno me arrastado pro tribunal Ele me caluniava e cuspia mintiras contra mim Era uma cachoecircra e me banhava que quase Murri afogado na cusparada de insultos Agora intatildeo antes de falaacutedecircxeprimecircro Qacuteeu me vista como o mais miserave de tudin (ARISTOacuteFANES POMPEU 2014 p84)

Na parte final da peccedila o Coro modula a sua posiccedilatildeo ao final da intriga vindo a

reconhecer o serviccedilo que o poeta prestou agrave comunidade e que o tratado de paz eacute o mais justo

para a cidade pois restabeleceraacute o valor da democracia para as cidades desmascarando os

maus costumes e seus legisladores exploradores do povo

Vale ressasltar que o poeta usa uma histoacuteria cocircmica e simples como enredo a

proacutepria histoacuteria passa a ser um mero pretexto para o desenvolvimento cocircmico em Acarnenses

jaacute que a saacutetira eacute um elemento importante e porque natildeo moralizante nesse contexto

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Tatildeo bem quanto Aristoacutefanes Suassuna elaborou seus personagens seguindo um

esterioacutetipo social No enredo da comeacutedia aristofacircnica encontramos dois elementos (1) o (anti)

heroacutei (2) o esquema fantaacutesticomoralizante

13 O (anti)heroacutei Aristofacircnico

A figura do heroacutei tanto na literatura quanto fora dela eacute laureada com uma

tragicidade iminente o traacutegico que no contexto da mitologia eacute muito mais do que a

encarnaccedilatildeo da perda do sofrimento e das incertezas humanas no fim o traacutegico eacute o

eminentemente humano contra o divino a lembranccedila irrestrita da pequenez ceacutelere e irasciacutevel

da existecircncia humana

Jaacute a comeacutedia grega sobretudo a de Aristoacutefanes nos remete da forma mais

evoluiacuteda a uma concepccedilatildeo de existecircncia que prevecirc de forma profeacutetica que nem tudo o que eacute

humano ou divino deve ser levado muito a seacuterio pois no final tudo eacute poacute a vida um suspiro no

vazio das eras portanto natildeo se pode levar nada muito a seacuterio numa clara conotaccedilatildeo Dioniacutesia

O camponecircs ateniense como sujeito histoacuterico e tambeacutem como personagem do

teatro cocircmico de Aristoacutefanes foi figura central e essencial no decorrer do seacuteculo V a C

desde que sua posiccedilatildeo eacutetico-social permaneceu intacta frente aos sofrimentos beacutelicos de

Atenas pelo que tomou um caraacutecter de idealizaccedilatildeo tanto em sua posiccedilatildeo de cidadatildeo como nas

personificaccedilotildees da comeacutedia aristofaacutenica

O heroacutei de Aristoacutefanes natildeo eacute limitado ao desejo do puacuteblico somente de riso ou

excessos ele tem a grandeza de contradizer o estabelecido de conduzir o ouvinte a um

caminho de excesso que educam de entendimento proferido por um agente que carregado de

um heroiacutesmo simples jamais seraacute unilateral ou submisso E toda essa inquietaccedilatildeo que

provoca a presenccedila desse duplo para a Comeacutedia Antiga eacute uma ferramenta que constroacutei o

heroacutei cocircmico aristofacircnico segundo Whitman (1969 p 25) Essa unidade de autoconceito e autoafirmaccedilatildeo confere ao espiacuterito heroacuteico uma espeacutecie de pureza mas dificilmente eacute o que poderiacuteamos chamar de coerecircncia pois a qualquer momento o heroacutei pode desrespeitar todas as expectativas em deferecircncia aos misteacuterios particulares de sua proacutepria vontade Ele eacute pode-se dizer consistente consigo mesmo mas como ele cria a si mesmo agrave medida que age o resultado natildeo pode ser conhecido de antematildeo nem mesmo por si mesmo O heroiacutesmo eacute como se pode dizer dirigido pelo seu interior e embora as direccedilotildees possam diferir o princiacutepio vale as aparecircncias agraves vezes ao contraacuterio nenhuma abstraccedilatildeo jamais poderaacute controla o heroacutei em busca da totalidade E eacute precisamente isso que os heroacuteis de Aristoacutefanes satildeo 14

14 14This unity of self-conception and self-assertion gives to the heroic spirit a kind of purity but hardly what we would call consistency for at any moment the hero may flout all expectation in deference to the private

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Aristoacutefanes como ningueacutem conferiu ao seu (anti)heroacutei a figura simples de um

homem rural idealmente eacutetico e poliacutetico que a polis ateniense precisava para se reconstruir e

se transformar Essa percepccedilatildeo do camponecircs em Aristoacutefanes daacute uma indicaccedilatildeo dos eventos

tanto do cidadatildeo quanto da cidade e daacute ao leitor uma leitura histoacuterica diferente dos eventos

que Atenas sofreu durante a Guerra do Peloponeso

O (anti)heroacutei aristofacircnico como DiceoacutepolisJustinoacutepolis eacute tipificadamente matuto

que se angustia diante de alguma caracteriacutestica perturbadora da sociedade contemporacircnea por

exemplo o prolongamento da guerra os poliacuteticos corruptos que dominam a ecclesia a

loucura das demos atenienses Incapaz de convencer os outros de sua loucura o heroacutei sai por

conta proacutepria colocando em praacutetica algum tipo de esquema fantaacutestico que pretende acertar as

coisas

Diceoacutepolis reconhece as consequecircncias que prejudicaram a cidade e que tambeacutem

foram percebidas por Aristoacutefanes que com sua poesia sua repercussatildeo e sinceridade

colocou em cena o Cidadatildeo-espectador viacutetima direta da decadecircncia e que teraacute discernimento

sobre as decisotildees dos estrategistas e governadores com os atos de guerra

Segundo Fisher (1993 p33) o (anti)heroacutei de Acarnenses tem sua accedilatildeo construiacuteda

nos vaacuterios lugares apresentados na peccedila o que levou Aristoacutefanes a estabelecer relaccedilatildeo com as

vaacuterias personalidades assumidas por DiceoacutepolisJustinoacutepolis dentre as quais ele cita a de

espectador de festivais dramaacuteticos e a de lavrador

Revelado para o puacuteblico Justinoacutepolis que vive vaacuterios outros papeacuteis representa o

justo da cidade ou o cidadatildeo justo Direto e conhecedor dos truques que o levariam a

convencer a assembleia apresenta-se a Euriacutepides pela proacutepria voz dizendo seu nome e o

demos a que pertence Mermo assim Pois num vocirc mimbora vocirc eacute bater na porta Euriacutepides Euripidizin Me ouve se alguma vez tu ocircviu um home Justinoacutepolis de Colides te chama eu (ARISTOacuteFANES POMPEU 2014 p86)

Entretanto rapidamente o espectador toma conhecimento da intenccedilatildeo de

Justinoacutepolis que eacute se transformar em outra pessoa Para isso ele pede ao tragedioacutegrafo um mysteries of his own will He is one might say consistent with himself but since he creates himself as he goes the result cannot be foreknown even perhaps by himself Heroism is one might say inner-directed and though the directions may differ the principle holds appearances sometimes to the contrary no abstraction ever controls the hero in quest of wholeness And that is precisely what Aristophanes heroe sare (Traduccedilatildeo nossa)

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trapo (= κιον) usado por atores que interpretam mendigos em suas trageacutedias pois ele vai fazer

um discurso ldquoPois tenho que falaacute pro coro um leriado grande Ele traz a morte sacuteeufalaacute malrdquo

(vv 426-427) E para convencer Diceoacutepolis acredita que ldquoEacute que tenho que achaacute que socirc um

ismoleu hojerdquo (vv440)

Portanto o espectador percebe que Justinoacutepolis se transforma em Teacutelefo

incorporando a personalidade de Teacutelefo mesmo que essa incorporaccedilatildeo seja planejada e usada

como arma argumentativa Assim como Teacutelefo Justinoacutepolis eacute o homem do convencimento

mesmo que para convencer ele pareccedila deixar de ser ele mesmo

Em Acarnenses o enredo eacute costurado pelas artimanhas do (anti)heroacutei quando faz

uma paz privada com os espartanos para que ele possa desfrutar das becircnccedilatildeos da paz que foram

perdidas com o iniacutecio da guerra

14 Auto da Compadecida Uma estoacuteria de outras estoacuterias

Os instrumentos culturais mais relevantes no enredo satildeo as crenccedilas e a literatura

de cordel da realidade regional brasileira mais precisamente da realidade regional nordestina

A narrativa do Auto da Compadecida eacute fundamentada em romances e narraccedilotildees populares

Composta de elementos que expotildeem a cultura popular do homem do Nordeste Ariano

Suassuna aborda assuntos universais atraveacutes de figuras populares que mostram integramente

a figura do povo nordestino um povo oprimido tanto por aspectos climaacuteticos quanto sociais

O autor faz ainda uso do humor e da criacutetica ao falar sobre a realidade do homem nordestino

O Auto da Compadecida (1955) de Ariano Suassuna eacute uma peccedila teatral em

forma de auto (gecircnero da literatura que trabalha com elementos cocircmicos e tem intenccedilatildeo

moralizadora) Eacute um drama nordestino apresentado em trecircs atos Esta antologia reuacutene trecircs

folhetos dos quais Ariano Suassuna tirou os motivos e peripeacutecias de seu Auto da

Compadecida Embora o autor paraibano tenha se utilizado de muitos temas populares em sua

peccedila estes poemas satildeo as fontes principais como nos assegura Tavares (2004 p191)

Disse um criacutetico

Como foi que o senhor teve aquela ideacuteia do gato que defeca dinheiro Ariano respondeu Eu achei num folheto de cordel O criacutetico E a histoacuteria da bexiga de sangue e da musiquinha que ressuscita a pessoa Ariano lsquoTirei de outro folhetorsquo O outro E o cachorro que morre e deixa dinheiro para fazer o enterro Ariano lsquoAquilo

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ali eacute do folheto tambeacutem rsquo O sujeito impacientou-se e disseAgora danou-se mesmo Entatildeo o que foi que o senhor escreveu E Ariano lsquoOacute xente Escrevi foi a peccedilarsquo

De acordo com Braulio Tavares (TAVARES 2004 p 104) ldquoAriano escolheu o

folheto como a ceacutelula-matildee de uma nova maneira de fazer arte de enxergar o Nordeste de

enxergar o mundo e de recriar suas formasrdquo A utilizaccedilatildeo desse tipo de reescrita a partir de

textos populares compreende uma escrita mais aproximada do povo do Romanceiro

Nordestino transmitido oralmente eou atraveacutes dos folhetos de cordel

A grande importacircncia do folheto no meu entender eacute que o folheto eacute o uacutenico espaccedilo em que o povo brasileiro se expressou sem influecircncias e sem deformaccedilotildees que lhe viessem de cima de fora Aqui ele se expressou como ele eacute Aqui natildeo imitou a Franccedila natildeo imitou a Inglaterra nem os Estados Unidos O povo brasileiro aqui se expressou como ele eacute Entatildeo essa eacute a grande liccedilatildeo do folheto em feira (SUASSUNA apud TAVARES 2007 p 26)

Segundo Vassalo (1993) a obra se divide em trecircs episoacutedios e os folhetos

utilizados na construccedilatildeo arquitetocircnica da obra estatildeo distribuiacutedos de forma arquitetocircnica

O primeiro ato se baseia em O enterro do cachorro fragmento do folheto O dinheiro de Leandro Gomes de Barros o segundo na Histoacuteria do cavalo que defecava dinheiro do mesmo artista o terceiro amalgama O castigo da soberba de Anselmo Vieira de Souza e A peleja da Alma de Silvino Pirauaacute Lima ambos retomados pelo entremez de Suassuna O castigo da soberba Proveacutem ainda do romanceiro a cantiga de Canaacuterio Pardo utilizada como invocaccedilatildeo de Joatildeo Grilo a Maria o nome Compadecida e a estrofe com que o Palhaccedilo encerra o espetaacuteculo pedindo dinheiro satildeo tomados ao folheto O castigo da soberba(VASSALO In CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA 2000 p 156)

Liacutegia Vassalo aproxima no ensaio citado o teatro de Suassuna ao o teatro

medieval cabe ressaltar que mais adiante nos ocuparemos no ATO V do teatro de Gil

Vicente quando vamos tratar do julgamento das almas no inferno alegoacuterico em diaacutelogo

alinhado entre o autor portuguecircs e Ariano Suassuna

Sobre o auto de Suassuna vale ressaltar que conteacutem elementos do cordel

brasileiro e estaacute inserido no gecircnero da comeacutedia aproximando-se dos traccedilos do barroco

catoacutelico brasileiro O autor faz uso de uma linguagem que privilegia o regionalismo atraveacutes da

caracterizaccedilatildeo das particularidades do falar do homem do sertatildeo Nordeste

A peccedila foi escrita em 1955 e encenada pela primeira vez em 1956 Anos mais

tarde foi adaptada para a televisatildeo e para o cinema em 1999 e 2000 respectivamente

Na peccedila Ariano Suassuna trata de maneira leve e com humor do drama vivido

pelo povo nordestino acuado pela seca atormentado pelo medo da fome e em constante luta

contra a miseacuteria Traccedila o perfil dos sertanejos nordestinos que estatildeo submetidos agrave opressatildeo e

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subjugados por famiacutelias de poderosos coroneacuteis donos de terra Nesse contexto o personagem

de Joatildeo Grilo representa o povo oprimido que tenta sobreviver no sertatildeo utilizando a uacutenica

arma do pobre a palavra - astuacutecia

Fica evidente o cunho de saacutetira moralizante da peccedila atraveacutes das caracteriacutesticas de

seus personagens Assim como em Acarnenses de Aristoacutefanes figuras como padeiro e a

mulher que satildeo avarentos que deixam passar necessidade o empregado enquanto cuidam

demasiadamente de um cachorro de estimaccedilatildeo o padre e o bispo gananciosos que utilizam

da autoridade religiosa enquanto legisladores da Igreja para enriquecerem satildeo levados ao

conhecimento do puacuteblico

De forma bem cocircmica e sem as convenccedilotildees que soacute a comeacutedia sabe quebrar todos

estes satildeo condenados ao purgatoacuterio e passam a depender da ajuda astuciosa do roceiro Joatildeo

Grilo poeta travestido e da Compadecida na defesa do coletivo Na obra O riso Henri

Bergson (1987 p 19-21) salienta que o cocircmico eacute um fenocircmeno exclusivamente humano e

que este se dirige agrave inteligecircncia agrave denuacutencia

A partir dessa observaccedilatildeo Suassuna coloca o leitorespectador em contato com

seu outro o anti-heroacutei duplamente qualificado a defesa de seus algozes o arremedo cocircmico

resultado de uma apariccedilatildeo para a qual o proacuteprio autor emprestou seu discurso social No Auto

da Compadecida a dupla Joatildeo Grilo e Chicoacute em certa medida satildeo uma uacutenica personagem

ou seja uma personagem dupla Joatildeo Grilo eacute a representaccedilatildeo do intelecto o mentor de todas

as artimanhas eacute o autor presente na ausecircncia discursiva que por vezes permeia o texto

somente pelos gestos

Enquanto Chicoacute o duplo de Joatildeo Grilo eacute a forccedila fiacutesica o corpo ao mesmo tempo

bobo e bufatildeo o cuacutemplice perfeito o outro de Joatildeo ambos comparados agrave dupla Bom de Laacutebia

e Tudo Azul (na traduccedilatildeo de Adriane Duarte 2000) de As Aves de Aristoacutefanes e por que natildeo

dizer do proacuteprio poeta que acontece sem iniacutecio meio ou fim porque tudo que eacute justo tambeacutem

eacute de interesse da cidade e do poeta e da Comeacutedia como disse Diceoacutepolis no seu discurso em

Acarnenses Por quecirc Natildeo sei como diria Chicoacute Soacute sei que foi assim 15 Joatildeo Grilo um heroacutei popular e picaresco

O romance picaresco que segundo o proacuteprio Ariano Suassuna sempre o

influenciara surgiu na Espanha e infestou toda a Europa abrange um conjunto de textos

narrativos publicados na maioria dos casos entre 1552 e 1646 Eacute um gecircnero que reuacutene obras

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que refletem uma visatildeo irocircnica e pessimista do homem e uma perspectiva ceacutetica em relaccedilatildeo agrave

sociedade espanhola de sua eacutepoca

Segundo Gonzaacutelez (1994) todas as obras desse periacuteodo constituem o reflexo da

tensatildeo provocada pelo confronto entre o indiviacuteduo e uma sociedade extremamente opressora

Portanto para tornar mais clara a origem da picaresca eacute mister considerar o contexto

histoacuterico-poliacutetico-social em virtude de uma das maiores novidades apresentadas pelo gecircnero

a forte vinculaccedilatildeo da ficccedilatildeo com a histoacuteria

O estudo das circunstacircncias que rodeavam os autores deste gecircnero conduz

naturalmente a uma reflexatildeo sobre a sociedade barroca espanhola e portuguesa com atenccedilatildeo

aos autores Calderoacuten de La Barca (1600-1681) e Gil Vicente (1465-1536) Gonzaacutelez (1994 p

21) apresenta uma sociedade na qual predominam as injusticcedilas Apenas uma minoria - uma

nobreza de sangue corrupto e um clero igualmente decadente - teria acesso ao poder e a bens

materiais Sob essas circunstacircncias o povo ignorante supersticioso e fruto de abusos vivia

na miseacuteria

O romance picaresco surge pois como uma saacutetira mordaz que atinge todo o

sistema poliacutetico econocircmico social e moral Constituiacuteram uma rica fonte de material

romanesco situaccedilotildees iacutempares tais como a expulsatildeo dos mouros de Castela e de Leatildeo e a

questatildeo dos cristatildeos-novos considerados estrangeiros no seu proacuteprio paiacutes Os ataques contra

os viacutecios que infestavam a corte espanhola tecircm tambeacutem como alvo ldquoa honrardquo externa e social

ditada pelo poder do dinheiro Ironicamente o piacutecaro eacute o protoacutetipo do homem sem honra

enfim o entretenimento perfeito para os meandros das classes privilegiadas

A apariccedilatildeo da contestadora imagem do piacutecaro em princiacutepio reverte a imagem do

heroacutei das novelas de cavalaria - tem-se uma inversatildeo do modelo heroacuteico que passa a ser anti-

heroacuteico Gonzaacutelez (1994 p 56) assinala que o piacutecaro

Saindo de estratos baixos revela um aspecto pungente o da luta pela vida Solto no mundo tem de resolver por si mesmo os problemas o que o leva a tornar-se frequentemente ladratildeo Estando sempre exposto ao pior escapa das situaccedilotildees difiacuteceis por seu engenho e astuacutecia

Configura-se assim na novela picaresca um traccedilo permanente em Acarnenses e

no Auto da Compadecida a subversatildeo do (anti)heroacutei idealizado Entretanto cabe-nos aqui

salientar que haacute uma diferenccedila uma vez que na picaresca o piacutencaro natildeo tem qualquer projeto

social ao contraacuterio de Justinoacutepolis e Joatildeo Grilo

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151 O (anti)heroacutei Suassuniano

Joatildeo Grilo nasceu da cultura popular atraveacutes do produto oral e segundo o proacuteprio

Ariano Suassuna foi produto de vaacuterios produtos do que viu ouviu e leu nos folhetos de

cordel Nas palavras de Abreu (1999) a literatura de folhetos nordestinos eacute uma das

expressotildees mais brasileiras usual na regiatildeo Nordeste e em regiotildees que acomodam os

migrantes de origem nordestina

Com as grandes navegaccedilotildees atracaram no Brasil trovadores e artistas populares

que expuseram em seus pertences culturais as origens dessa literatura Eacute uma literatura aacutegil

que alcanccedila as mais diversas temaacuteticas com objetivos variados com ampla divulgaccedilatildeo e

anuecircncia social tanto em meios populares quanto nas academias

O folheto eacute um canal popular de cooperaccedilatildeo na vida do paiacutes que concede a naccedilatildeo

discutir a realidade expressar suas exigecircncias e anseios Conforme Zumthor (2000) embora

sejam impressos os folhetos designam-se por sua tradiccedilatildeo oral seus vestiacutegios de oralidade e

pela razatildeo de serem produzidos para serem proferidos lidos ou declamados cantados em voz

alta para um enorme nuacutemero de indiviacuteduos mesmo o iletrado os ignorantes aspectos comuns

agraves culturas que priorizam a oralidade

Foi num folheto de gracejo que Ariano Suassuna encontrou o personagem-

siacutembolo de sua dramaturgia As Proezas de Joatildeo Grilo (ver trecho abaixo) histoacuteria escrita em

1932 por Joatildeo Ferreira de Lima trazia como protagonista o ceacutelebre amarelinho oriundo dos

contos populares portugueses que no processo de aculturaccedilatildeo ganhou caracteriacutesticas

idecircnticas agraves de outro famoso espertalhatildeo de origem ibeacuterica Pedro Malazarte como se pode

perceber no cordel de Joatildeo Martins de Athayde (1951)

As Proezas de Joatildeo Grilo

Joatildeo Grilo foi um cristatildeo que nasceu antes do dia criou-se sem formosura mas tinha sabedoria e morreu depois da hora pelas artes que fazia

E nasceu de sete meses chorou no bucho da matildee quando ela pegou um gato ele gritou natildeo me arranhe natildeo jogue neste animal que talvez vocecirc natildeo ganhe Na noite que Joatildeo nasceu

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houve um eclipse na lua e detonou um vulcatildeo que ainda continua naquela noite correu um lobisome na rua Poreacutem Joatildeo Grilo criou-se pequeno magro e sambudo as pernas tortas e finas e boca grande e beiccediludo no siacutetio onde morava dava notiacutecia de tudo Joatildeo perdeu o seu pai com sete anos de idade morava perto de um rio Ia pescar toda tarde um dia fez uma cena que admirou a cidade (ATHAYDE 1951 p35)

Assim o heroacutei cordelesco forjado por Suassuna representado por Joatildeo Grilo eacute

tambeacutem um produto social e nesses termos eacute o piacutecaro descrito por Kothe (2000) como a

personagem com caracteriacutesticas daquilo que hoje se chama malandragem beira o traacutegico e se

assume como um eacutepico agraves avessas Como piacutecaro de Kothe Joatildeo Grilo no Auto da

Compadecida e Diceoacutepolis em Acarnenses satildeo de extraccedilatildeo social baixa e se comportam de

modo pouco elevado mas se elevam literariamente e contam ateacute mesmo com a complacecircncia

e a simpatia do leitor As duas personagens representam o modo pelo qual a classe baixa

consegue entrar no picadeiro da literatura

152 A tensatildeo tragicocircmica do (anti)heroacutei no Auto da Compadecida

Segundo Deserto (1995) a trageacutedia e a comeacutedia mantecircm entre si uma relaccedilatildeo de

alguma ambiguidade em que proximidade e afastamento parecem jogar em simultacircneo

importante papel Podemos evocar como representaccedilatildeo simboacutelica desta relaccedilatildeo a imagem

que o tempo veio a tornar quase emblema do proacuteprio teatro das duas maacutescaras a traacutegica e a

cocircmica denunciantes do sofrimento e do riso

O leitor atento percebe que a comeacutedia causada pelos quiprocoacutes 15e pelas confusotildees

no Auto da Compadecida natildeo representa a cura da trageacutedia vivenciada por Joatildeo Grilo nem a

15 Quid pro quo eacute uma expressatildeo latina que significa tomar uma coisa por outra Faz referecircncia no uso do portuguecircs e de todas as liacutenguas latinas a uma confusatildeo ou engano Tem origem medieval tendo sido usada na sua origem para se referir a um engano no uso de termos latinos num texto Tambeacutem pode significar isso por aquilo

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mera atenuaccedilatildeo futura de seus efeitos Joatildeo Grilo o heroacutei da peccedila eacute um misto de uma tensatildeo

que se identifica com o heroacutei cordelesco e desta forma natildeo estaacute atrelado somente aos

aspectos da proeza e da glorificaccedilatildeo uma vez que estaacute associado agrave ideia da fraqueza na

constituiccedilatildeo dos valores humano

Assim Joatildeo Grilo natildeo estaacute contemplado pela trajetoacuteria do heroacutei prodigioso e

honrado pois se orienta pela bandeira da transgressatildeo Joatildeo Grilo eacute a expressatildeo desesperada

do homem que luta contra todas as adversidades mas natildeo consegue evitar a desgraccedila que

vive numa sociedade abalizada pela constante oposiccedilatildeo de duas forccedilas o bem e o mau A

convergecircncia e accedilatildeo dessas forccedilas satildeo responsaacuteveis pela falecircncia do heroacutei fazendo com que

ele mergulhe no territoacuterio escorregadio dos valores

Aristoacuteteles em sua Arte Poeacutetica (2005) conceitua a trageacutedia como a imitaccedilatildeo de

pessoas superiores em accedilatildeo a comeacutedia como a imitaccedilatildeo de pessoas inferiores em accedilatildeo e o

drama como a representaccedilatildeo das pessoas em accedilatildeo Por pessoas superiores entendemos os

heroacuteis que estatildeo entre o humano e o divino possuindo algo de sobrenatural

Ariano Suassuna em sua Iniciaccedilatildeo agrave esteacutetica (2007c) reflete sobre os conceitos

de trageacutedia comeacutedia e drama pensados por Aristoacuteteles ressaltando que outras categorias

fazem parte da trageacutedia como o Belo e ateacute mesmo o Cocircmico Na leitura que faz da Poeacutetica o

escritor percebe o heroacutei como algueacutem dotado de uma alma grande mas natildeo pura Tal ldquoalma

granderdquo eacute percebida mais pelas accedilotildees do que pelas palavras em consonacircncia com o

pensamento aristoteacutelico e no caso de Joatildeo Grilo essa impureza reside em sua proacutepria

personalidade desenhada pela presenccedila de falhas cocircmicas tais como a ambiccedilatildeo a trapaccedila a

alcovitagem a avareza a inveja a vinganccedila e a usura

41

SEGUNDO ATO

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2 HUMOR E O RISO ELEMENTOS INDISPENSAacuteVEIS Agrave CENA COcircMICA

ldquoEacute melhor escrever sobre risos do que sobre laacutegrimas pois o riso eacute o apanaacutegio do homemrdquo (Franccedilois Rabelais)

Para muitos antropoacutelogos o riso foi um fator coadjuvante agrave adaptaccedilatildeo da espeacutecie

sendo um ato instintivo e portador de equiliacutebrio frente a situaccedilotildees extremas de abatimento e

que dele depende a sobrevivecircncia da espeacutecie Vladimir Propp (1992) apresenta seis tipos de

riso e alerta para a existecircncia de outros Embora se debruccedilando basicamente sobre o que

chama de riso de zombaria por compreender que ldquoeacute o mais frequenterdquo sendo o ldquotipo

principal de riso humanordquo o teoacuterico atenta para o riso bom o riso maldoso ou ciacutenico o riso

alegre o riso ritual e o riso imoderado Antes de prosseguir nos cabe ressaltar que natildeo nos

ocuparemos das definiccedilotildees de Propp mas do riso como elemento indispensaacutevel agrave cena cocircmica

e de seus reflexos na Comeacutedia e no Auto

Rir eacute o melhor remeacutedio Por essa afirmativa percebemos o poder do riso na vida

da Humanidade Entretanto o humor e o riso satildeo fenocircmenos que ainda natildeo foram elucidados

completamente mas as coisas engraccediladas podem nos dizer muito do que eacute humano visto que

o homem eacute o uacutenico animal que ri

O cocircmico estaacute presente em situaccedilotildees reais de nossas vidasuma vez que todos noacutes

rimos sempre para qualquer situaccedilatildeo que nos leva quase incompreensiacuteveis para o riso

despertando nosso humor Haacute de se considerar que o riso eacute uma parte fundamental dos efeitos

produzidos pelo humor no ser humano e suas muacuteltiplas formas de expressatildeo vatildeo dizer

respeito ao grau de afetaccedilatildeo ou natildeo que tenha causado tal situaccedilatildeo real ou artiacutestica que

apresenta momentos cocircmicos

Em Histoacuteria do riso e do escaacuternio Minois (2003) esquematiza a histoacuteria do riso em

trecircs momentos o divino o diaboacutelico e o humano Os gregos antigos definiriam o riso a

partir de suas noccedilotildees de divindade

Rir eacute participar da recriaccedilatildeo do mundo nas festas dionisiacuteacas nas saturnais acompanhadas de ritos de inversatildeo simulando um retorno perioacutedico ao caos primitivo necessaacuterio agrave confirmaccedilatildeo e agrave estabilidade das normas sociais poliacuteticas e culturais Nas relaccedilotildees sociais o riso eacute vivido como elemento de coesatildeo e de forccedila diante do inimigo como o mostram os risos homeacutericos ou espartanos ele eacute tambeacutem um freio ao despotismo com as bufonarias rituais dos desfiles triunfais em Roma ou as saacutetiras poliacuteticas em Aristoacutefanes eacute por fim um instrumento de conhecimento que desmascara o erro e a mentira como no caso da ironia socraacutetica das zombarias dos ciacutenicos da derrisatildeo dos viacutecios em Plauto ou Terecircncio (MINOIS 2003 p 630)

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Sobre o riso como capacidade para criar o mundo a nossa volta Aristoacuteteles nos

transmite que somente uma democracia poderia tolerar a franqueza das velhas comeacutedias na

democracia o riso se caracteriza por sua forccedila criacutetica e sua accedilatildeo democratizadora Consoante

ao pensamento de Minois o riso busca se livrar do mundo cheio de injusticcedila e substituiacute-lo por

um mundo melhor Cria uma nova realidade que desloca a outra que natildeo pode mais ser

mantida porque perdeu seu significado O riso eacute entatildeo uma libertaccedilatildeo

Apesar de ter sido relegado na Antiguidade o riso continua a desempenhar um

papel de grande importacircncia na vida social O verdadeiro riso ambivalente e universal natildeo

exclui o seacuterio mas o purifica e o completa Purifica-o do dogmatismo da unilateralidade da

esclerose do fanatismo e do espiacuterito categoacuterico do medo e da intimidaccedilatildeo do didatismo do

engenho e das ilusotildees da fixaccedilatildeo sinistra em um uacutenico niacutevel e da exaustatildeo

21 O riso seacuterio-cocircmico em Aristoacutefanes e Suassuna

212 Riso e Comeacutedia

A Comeacutedia e o Auto satildeo gecircneros cujo sucesso eacute medido pela qualidade do humor

promovido pelas personagens em confronto com suas vivecircncias Humor eacute indispensaacutevel para

a arte cocircmica principalmente porque eacute altamente eficaz para convencer em grande parte pois

atrai a atenccedilatildeo e permite a possibilidade de persuasatildeo da plateia

O riso eacute uma reaccedilatildeo puramente fisioloacutegica que pode ser desencadeada por gatilhos

fiacutesicos e natildeo fiacutesicos e eacute observada em humanos desde a infacircncia Em termos de efeitos

somaacuteticos tem sido sugerido que o riso proporciona aliacutevio do estresse e reduz o desconforto e

ou dor liberando endorfinas produtoras de euforia encefalinas dopamina e adrenalina

todos contribuem para a sauacutede mental e fiacutesica geral Como resultado de suas propriedades

terapecircuticas o riso tem sido usado no contra-condicionamento das reaccedilotildees da raiva bem

como na dessensibilizaccedilatildeo sistemaacutetica ao medo

De acordo com Bakhtin (1999) o elo entre o seacuterio e o cocircmico jaacute existia desde os

primoacuterdios da humanidade na vida social Atraveacutes de investigaccedilotildees do folclore de povos

primitivos observou que os rituais seacuterios coadunavam com os rituais que parodiavam os

mitos os acontecimentos e os heroacuteis que as comunidades cultuavam

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A praacutetica do elogio e do escarnecimento fazia parte das cerimocircnias oficiais das

comunidades antigas Entretanto o seacuterio e o cocircmico passaram a ser dicotomizados com o

surgimento do regime de classes e de Estado Com a divisatildeo de classes iniciou-se um

processo que demarca a diferenccedila de direitos entre os indiviacuteduos na sociedade

Determinadas formas cocircmicas deixam de ser autorizadas soacute podendo ser

executadas em determinadas situaccedilotildees A partir daiacute se consubstanciou uma cultura oficial

delimitando as condiccedilotildees de realizaccedilatildeo do riso O espaccedilo da subversatildeo da gargalhada da

chacota tende a restringir-se aos momentos festivos A divisatildeo do riso e do seacuterio da cultura

popular e da cultura erudita comeccedilou a se intensificar fazendo com que a comicidade fosse

vista como uma expressatildeo menor inclusive no campo da cultura letrada

Segundo Huizinga no livro Homo Ludens (1938) o riso encontra nas situaccedilotildees

diaacuterias o seu proacuteprio espaccedilo as suas proacuteprias regras e o seu proacuteprio tempo e deve ser estudado

como fenocircmeno cultural uma vez que ele estaacute ligado agrave produccedilatildeo de situaccedilotildees que satildeo

proacuteprias do riso O autor nos convida a uma reflexatildeo sobre o poder que reside exatamente no

ato do riso De certo modo o riso segundo Huizinga pode ser visto como um tipo moderado

de ldquoloucurardquo tendo em vista que se realiza por meio de fatos cocircmicos que tambeacutem podem ser

entendidos como uma espeacutecie de ldquoloucurardquo porque neles corta-se o nexo do comum do tempo

do cotidiano

O elemento luacutedico tende a provocar o riso que por sua vez eacute um elemento da vida cotidiana estaacute sempre presente nas relaccedilotildees sociais seja para exprimir uma simpatia para desdramatizar uma situaccedilatildeo ou para exprimir a felicidade O risiacutevel eacute proacuteximo ao cocircmico ao jogo agraves brincadeiras agraves piadas ao luacutedico etc O cocircmico pode ser estudado com as formas as atitudes os gestos e os movimentos do corpo humano tambeacutem pode ser estudado pelo cocircmico de caraacuteter ou atraveacutes da fala do cocircmico de situaccedilotildees de palavras (HUIZINGA 1938 p54)

Para Pirandello o riso pode ser uma accedilatildeo subversiva e o proacuteprio autor assegura

que haacute ambivalecircncias na conceituaccedilatildeo do riso e do fenocircmeno cocircmico na tradiccedilatildeo ocidental

pois O riso pode ser compreendido como experiecircncia do natildeo-seacuterio a inversatildeo cocircmica pode revelar uma gravidade antes oculta certos contrastes inexprimiacuteveis pelo discurso mais cordato uma seriedade que o proacuteprio discurso seacuterio camufla O caraacuteter subversivo e anaacuterquico do riso Em diversos momentos o riso implica numa adesatildeo agrave ordem social estabelecida O riso eacute plural e encontra funccedilatildeo como corretivo social natildeo se restringindo a uma funccedilatildeo normativa tatildeo precisa visto que ele pode acometer um indiviacuteduo isoladamente pode prescindir da sociedade O riso guarda consigo o paradoxo da proacutepria accedilatildeo humana (PIRANDELLO 1957 p294)

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Para Bergson (1987) o riso aleacutem de ser um fenocircmeno social eacute um fenocircmeno

psiacutequico O sujeito ri de situaccedilotildees constrangedoras com as quais natildeo se envolve afetivamente

O cocircmico eacute provocado pela observaccedilatildeo das falhas humanas em uma perspectiva corretiva

diante dos olhos do observador Assim o cocircmico estaacute ligado agrave capacidade de explicitar e

identificar o ridiacuteculo humano manifestado no exagero caricaturado na representaccedilatildeo da

transgressatildeo social na encenaccedilatildeo de gestos automaacuteticos e na exploraccedilatildeo de clichecircs

desgastados

De acordo com Propp (1992) os caracteres cocircmicos natildeo existem por si soacute eles

tecircm relaccedilatildeo com as atividades do homem no mundo social Assumindo a mesma perspectiva

Bergson (1987) afirma que o riso eacute sempre grupal sendo determinado por um conjunto de

atitudes discriminadas e colocadas como engraccediladas perante uma comunidade

A identificaccedilatildeo daquilo que eacute engraccedilado ou humoriacutestico aponta para o

reconhecimento de gestos sociais que rompem com conduta ideal Esse desvio expresso no

comportamento fiacutesico ou moral dos seres sociais compotildee a trama das narrativas que satildeo

contadas com irreverecircncia e bom humor

213 Os elementos do risiacutevel no heroacutei suassuniano

Tenho duas armas para lutar contra o desespero a tristeza e ateacute a morte o riso a cavalo e o galope do sonho Eacute com isso que enfrento essa dura e fascinante tarefa de viver (ARIANO SUASSUNA)

Como jaacute visto estudos comprovam que o conceito claacutessico de heroacutei se origina na

Literatura Grega O termo designa um indiviacuteduo notabilizado por feitos extraordinaacuterios No

entanto com o passar do tempo essas figuras quase divinas jaacute natildeo correspondiam

adequadamente agrave vontade coletiva O heroacutei claacutessico foi sendo substituiacutedo pelo ldquoheroacutei

problemaacuteticordquo personagem cuja existecircncia e valores situam-no perante questotildees sobre as

quais natildeo eacute capaz de expressar consciecircncia clara e rigorosa

A construccedilatildeo desse novo enfoque da imagem do heroacutei eacute uma ideia atribuiacuteda aos

tempos modernos e a sua representatividade evidencia-se sobretudo no gecircnero romance

Contudo como mensageiro de uma criacutetica mordaz e bem-humorada da maacute sorte enfrentada

pelo nordestino em sua difiacutecil missatildeo pela sobrevivecircncia Ariano Suassuna na obra Auto da

Compadecida nos apresenta um heroacutei que ao inveacutes do nobre heroacutei claacutessico repleto de viacutecios

e defeitos

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Joatildeo Grilo eacute uma personagem que povoa o imaginaacuterio folcloacuterico brasileiro

sobretudo na regiatildeo Nordeste assumindo todas as caracteriacutesticas de um anti-heroacutei pois eacute

pequeno fraco franzino amarelo e desnutrido ou seja natildeo possui os atributos esteacuteticos e o

porte de um verdadeiro heroacutei cavalheiresco e romacircntico Joatildeo Joatildeo Joatildeo Morreu Ai meu Deus morreu o pobre de Joatildeo Grilo Tatildeo amarelo tatildeo safado e morrer assim Que eacute que eu faccedilo no mundo sem Joatildeo Joatildeo Joatildeo Natildeo tem mais jeito Joatildeo morreu Acabou-se o Grilo mais inteligente do mundo (SUASSUNA 2005 p 63)

Mas Joatildeo Grilo eacute infinitamente astuto e sua esperteza eacute tamanha que suplanta o

seu porte miuacutedo convertendo sua fragilidade em forccedila Com suas artimanhas ele se agiganta

Graccedilas as suas traquinagens enfrenta e afronta todas as instituiccedilotildees que se pretendem

poderosas e ditam as normas preceitos usos e costumes sociais de seu tempo e de seu

ambiente

Essa figura paradoxal assumida por Joatildeo Grilo o coloca como um anti-heroacutei que

faz do medo a sua arma da astuacutecia o seu escudo que vivendo num mundo hostil perseguido

escorraccedilado agraves voltas com a adversidade acaba sempre driblando o infortuacutenio com uma dose

exagerada de humor que aliaacutes eacute marca do enfrentamento do povo nordestino com as

adversidades sociais

Em Suassuna o termo humor estaacute relacionado agrave disposiccedilatildeo que o indiviacuteduo tem

para rir ou fazer sorrir Propp (1992) considera a priori que o riso eacute uma caracteriacutestica

pertinente do homem e somente a ele eacute dada a capacidade de rir o sorriso para o autor estaacute

ligado a outra esfera da razatildeo humana natildeo vinculada ao escaacuternio ou a derrisatildeo mas

compreende uma disposiccedilatildeo benevolente para com o interlocutor

Ainda nesse esteio para Aristoacuteteles a comicidade com efeito eacute um defeito e uma

feiuacutera sem dor nem destruiccedilatildeo Assim podemos pensar no Auto da Compadecida o riso

como decorrecircncia de uma penalidade um desajuste da conduta de Joatildeo Grilo que nos

surpreende nos atos com um comportamento inesperado

Para Bergson (1987) o riso natildeo eacute apenas uma reprimenda social mas vem de um

desajuste entre a natureza primeira do homem (que eacute mutaacutevel) e uma espeacutecie de rigidez e

mecanizaccedilatildeo Essa rigidez se manifestaria tanto no niacutevel fiacutesico como no caraacuteter ou seja no

acircmbito moral e psicoloacutegico caracteriacutesticas exploradas no personagem Joatildeo Grilo O risiacutevel e

o cocircmico seriam uma forma de desfazer a rigidez evidenciaacute-la corrigi-la

Para Suassuna (2008) o riso eacute como uma espeacutecie de puniccedilatildeo que a sociedade

confere a algo que a ameaccedila diz em seu livro Iniciaccedilatildeo agrave Esteacutetica Desta forma o risiacutevel estaacute

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na inadequaccedilatildeo do comportamento humano fiacutesicopsicoloacutegico uma vez que excede agrave

normalidade sem causas traacutegicas Suassuna no Auto da Compadecida nos deixa claro que ali

o cocircmico surge como um alerta sobre algo que natildeo estaacute funcionando bem nas sociedades

sendo tambeacutem um instrumento revelador dos problemas da sociedade como um todo

No contexto de tensatildeo do Auto eacute que encontramos Joatildeo Grilo um anti-heroacutei

oprimido e no plano da eacutetica eacute um legiacutetimo malandro que usa desse artifiacutecio como uma

forma autecircntica de sobrevivecircncia e de luta frente agraves adversidades sobretudo agravequelas impostas

pelos que detecircm o poder

A malandragem portanto no seu entender natildeo constitui um problema ou pecado

grave pois natildeo eacute utilizada para engrandecimento proacuteprio ou para ascensatildeo econocircmica mas

sim para a promoccedilatildeo da justiccedila social Sobre isto lecircem-se os seguintes versos do cordelista

Paulo Nunes Batista Grilo pra tudo no mundo Tinha uma definiccedilatildeo A sua filosofia Sempre lhe dava razatildeo Pois seguia este ditado Que diz ndash ldquoEstaacute perdoado Ladratildeo que rouba ladratildeordquo Vivendo embora do crime Joatildeo Grilo era caridoso Auxiliava a pobreza Soacute furtava o poderoso Roubava sempre dos nobres Matava a fome dos pobres Mostrando ser generoso (BATISTA 1958 p 28)

Ariano Suassuna como ningueacutem mergulhou na foacutermula do riso que sempre

esteve presente na Antiguidade e ligado aos deuses tendo um significado divino Presente nas

festas esse riso natildeo possuiacutea o sentido de diversatildeo como se conhece hoje ldquoAntes ele

correspondia aos preparativos de sacrifiacutecios e tinha uma relaccedilatildeo congruente com a morte O

riso e a morte fazem boa misturardquo (MINOIS 2003 p 29)

No campo do riso a comeacutedia gregandash da qual nos ocuparemos posteriormente ndash

surge como uma arte secundaacuteria cuja funccedilatildeo era descontrair os espectadores afinal era

apresentada nos intervalos das grandes peccedilas Procurava mostrar o homem rebaixado lidando

com figuras inferiores tanto no sentido moral quanto no acircmbito social Tendo como desiacutegnio

exagerar os defeitos humanos a comeacutedia explorava o ridiacuteculo

Nesse campo ao apresentar o Auto da Compadecida por meio dos contadores de

histoacuteria Chicoacute Joatildeo Grilo e do palhaccedilo o proacuteprio Suassuna admite a influecircncia da Comeacutedia

Antiga do Repente do Cordel dentre outros

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Eacute verdade que devo muito ao teatro grego (e a Homero e a Aristoacuteteles) ao latino ao italiano renascentista ao elisabetano ao francecircs barroco e sobretudo ao ibeacuterico Eacute verdade que devo ainda mais aos ensaiacutestas brasileiros que pesquisaram e publicaram as obras assim como salientaram a importacircncia do Romanceiro Popular do Nordeste principalmente a Joseacute de Alencar Siacutelvio Romero Leonardo Mota Rodrigues de Carvalho Euclides da Cunha Gustavo Barroso e mais modernamente Luiacutes Cacircmara Cascudo e Teacuteo Brandatildeo Mas a influecircncia decisiva mesmo em mim eacute a do proacuteprio Romanceiro Popular Nordestino com o qual tive estreito contato desde a minha infacircncia de menino criado no sertatildeo do Cariri da Paraiacuteba (SUASSUNA 2007 p 30)

O riso no Auto da Compadecida encontra suporte na carnavalizaccedilatildeo ideia

concebida por Mikhail Bakhtin (1993 p 7) que consiste na ldquosegunda vida do povo baseada

no princiacutepio do risordquo princiacutepio este que abole as relaccedilotildees hieraacuterquicas quando desloca os

sujeitos e subverte a ordem social estabelecida De acordo com Bakhtin O riso e a visatildeo de carnavalesca do mundo que estatildeo na base do grotesco destroem a seriedade unilateral e as pretensotildees de significaccedilatildeo incondicional e intemporal e liberam a consciecircncia o pensamento e a imaginaccedilatildeo humana que ficam assim disponiacuteveis pra o desenvolvimento de novas possibilidades Daiacute que uma certa carnavalizaccedilatildeo da consciecircncia precede e prepara sempre as grandes transformaccedilotildees mesmo no domiacutenio cientiacutefico (MIKHAIL BAKHTIN1993 p43)

No Primeiro Ato do Auto da Compadecida haacute o cruzamento da histoacuteria narrada

por Suassuna com a Literatura de Cordel precisamente com o Testamento do cachorro

publicado no folheto intitulado ldquoDinheirordquo escrito por Leandro Gomes de Barros (1909) fato

que desperta na plateia o riso frouxo natildeo simplesmente pelos causos propostos por Chicoacute e

Joatildeo Grilo mas pelo niacutevel de linguagem explorado e pelas artimanhas da dupla para

conseguir o intento de benzer a cachorra antes de enterraacute-la JOAtildeO GRILO Padre Joatildeo Padre Joatildeo PADRE aparecendo na igreja Que haacute Que gritaria eacute essa CHICOacute Mandaram avisar para o senhor natildeo sair porque vem uma pessoa aqui trazer um cachorro que estaacute se ultimando para o senhor benzer PADRE Para eu benzer CHICOacute Sim PADRE com desprezo Um cachorro CHICOacute Sim PADRE Que maluquice Que besteira JOAtildeO GRILO Cansei de dizer a ele que o senhor benzia Benze porque benze vim com ele PADRE Natildeo benzo de jeito nenhum

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CHICOacute Mas padre natildeo vejo nada de mal em se benzer o bicho JOAtildeO GRILO No dia em que chegou o motor novo do major Antocircnio Morais o senhor natildeo o benzeu PADRE Motor eacute diferente eacute uma coisa que todo mundo benze Cachorro eacute que eu nunca ouvi falar CHICOacute Eu acho cachorro uma coisa muito melhor do que motor PADRE Eacute mas quem vai ficar engraccedilado sou eu benzendo o cachorro Benzer motor eacute faacutecil todo mundo faz isso mas benzer cachorro (SUASSUNA 2005 p 21-23)

Tanto na visatildeo Suassuniana quanta na bakhtiniana a visatildeo carnavalesca de mundo

produz formas de linguagem que acabam com qualquer registro formal vocabular ou

dificuldade de aproximaccedilatildeo entre sujeitos enunciadores Dessa forma foi produzida uma

linguagem carnavalesca de muitos recursos tiacutepica da qual encontramos exemplos em vaacuterias

cenas do Auto da Compadecida como no enterro da cachorra um dos folhetos utilizados na

composiccedilatildeo da obra no Primeiro Ato quando o Palhaccedilo adverte ao puacuteblico sobre a histoacuteria

que se desenvolveria com a discussatildeo entre Joatildeo Grilo e Chicoacute para ver se o padre benzeria ou

natildeo o cachorro da mulher do padeiro

Por essa apropriaccedilatildeo da literatura popular percebemos que haacute um cruzamento da

histoacuteria de Suassuna com o cordel escrito por Leandro Gomes de Barros (1865 ndash 1918) ndash O

Testamento do cachorro publicado no folheto intitulado ldquoDinheirordquo que recebeu de Ariano o

seguinte comentaacuterio Quando publiquei o Auto da Compadecida Raimundo Magalhatildees Juacutenior em erudito e arguto artigo chamou atenccedilatildeo para o fato de que essa histoacuteria que eu julgava anocircnima e puramente nordestina jaacute fora usada numa versatildeo parecida por Le Sage no Gil Blaacutes de Santillana Punha ele em duacutevida a autoria popular da nossa versatildeo coisa em que se enganava como se vecirc porque como agora se sabe ela eacute de Leandro Gomes de Barros [] Por outro lado depois o Auto da Compadecida foi traduzido e encenado na Europa os professores Jean Girodon e Enrique Martiacutenez Loacutepez ndash um francecircs o outro espanhol ndash mostraram que a histoacuteria eacute muito mais antiga do que Le Sage vem do norte da Aacutefrica tendo passado agrave Peniacutensula Ibeacuterica com os aacuterabes e sendo muito comum nos fabulaacuterios e novelas picarescas ibeacutericasassim como na Franccedila por Ruteboeuf (SUASSUNA apud SANTIAGO 2007 p260)

Foi no cordel ldquoO Dinheiro ou O Testamento do Cachorrordquo escrito por Leandro

Gomes de Barros (1865 ndash 1918) com a narraccedilatildeo da histoacuteria do cachorro e de seu testamento

que Ariano Suassuna encontrou ideia e material como o proacuteprio afirmava para tambeacutem

escrever suas histoacuterias no Auto da Compadecida

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Eu vi narrar um fato Que fiquei admirado Um sertanejo me disse Que nesse seacuteculo passado Viu enterrar um cachorro Com honras de um potentado Um inglecircs tinha um cachorro De uma grande estimaccedilatildeo Morreu o dito cachorro E o inglecircs disse entatildeo Mim enterra esse cachorro Inda que gaste um milhatildeo Foi ao vigaacuterio e lhe disse Morreu cachorra de mim E urubu no Brasil Natildeo poderaacute dar-lhe fim - Cachorro deixou dinheiro Perguntou o vigaacuterio assim - Mim quer enterrar cachorro Disse o vigaacuterio Oh Inglecircs Vocecirc pensa que isto aqui Eacute o paiacutes de vocecircs Disse o inglecircs Oh Cachorro Gasta tudo esta vez Ele antes de morrer Um testamento aprontou Soacute quatro contos de reacuteis Para o vigaacuterio deixou Antes do inglecircs findar O vigaacuterio suspirou - Coitado Disse o vigaacuterio De que morreu esse pobre Que animal inteligente Que sentimento tatildeo nobre Antes de partir do mundo Fez-me presente do cobre Leve-o para o cemiteacuterio Que vou o encomendar Isto eacute traga o dinheiro Antes dele se enterrar Estes sufraacutegios fiados Eacute factiacutevel natildeo salvar E laacute chegou o cachorro O dinheiro foi na frente Teve momento o enterro Missa de corpo presente Ladainha e seu rancho Melhor do que certa gente

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Mandaram dar parte ao bispo Que o vigaacuterio tinha feito O enterro do cachorro Que natildeo era de direito O bispo aiacute falou muito Mostrou-se mal satisfeito Mandou chamar o vigaacuterio Pronto o vigaacuterio chegou As ordens sua excelecircncia O bispo lhe perguntou Entatildeo que cachorro foi Que seu vigaacuterio enterrou Foi um cachorro importante Animal de inteligecircncia Ele antes de morrer Deixou agrave vossa excelecircncia Dois contos de reacuteis em ouro Se errei tenha paciecircncia Natildeo foi erro sr Vigaacuterio Vocecirc eacute um bom pastor Desculpe eu incomodaacute-lo A culpa eacute do portador Um cachorro como este Jaacute vecirc que eacute merecedor (BARROS 2005 p 5)

Como fonte da recriaccedilatildeo tambeacutem operada na cena do Auto da Compadecida o

testamento do cachorro foi estudado como recurso para o riso visto que pelo uso do Latim

comum nas pregaccedilotildees dos padres por ocasiatildeo da despedida das almas e que equipara o

ldquobichinhordquo a um ser humano o poeta brinca com o puacuteblico e faz uma criacutetica agrave ganacircncia dos

legisladores episcopais JOAtildeO GRILO Estou dizendo que se eacute desse jeito vai ser difiacutecil cumprir o testamento do cachorro na parte do dinheiro que ele deixou para o padre e para o sacristatildeo SACRISTAtildeO Que eacute isso Cachorro com testamento JOAtildeO GRILO Esse era um cachorro inteligente Antes de morrer olhava para a torre da igreja toda vez que o sino batia Nesses uacuteltimos tempos jaacute doente pra morrer botava uns olhos bem compridos prrsquoos lados daqui latindo na maior tristeza Ateacute que meu patratildeo entendeu com a minha patroa eacute claro que ele queria ser abenccediloado pelo padre e morrer como cristatildeo Mas nem assim ele sossegou Foi preciso que o patratildeo prometesse que vinha encomendar a becircnccedilatildeo e que no caso dele morrer teria um enterro em latim Que em

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troca do enterro acrescentaria no testamento dele dez contos de reacuteis para o padre e trecircs para o sacristatildeo SACRISTAtildeO Que animal inteligente Que sentimento nobre E o testamento Onde estaacute [] SACRISTAtildeO Mas eu natildeo disse que fica tudo por minha conta PADRE Por sua conta como se o vigaacuterio sou eu SACRISTAtildeO O vigaacuterio eacute o senhor mas quem sabe quanto vale o testamento sou eu PADRE Hein O testamento SACRISTAtildeO Sim o testamento PADRE Mas que testamento eacute esse SACRISTAtildeO O testamento do cachorro PADRE E ele deixou testamento PADEIRO Soacute para o vigaacuterio deixou dez contos PADRE Que cachorro inteligente Que sentimento notaacutevel JOAtildeO GRILO E um cachorro desse ser comido pelos urubus Eacute a maior das injusticcedilas PADRE Comido ele De jeito nenhum Um cachorro desse natildeo pode ser comido pelos urubus PADRE Mas que jeito pode-se dar nisso Estou com tanto medo do bispo E tenho medo de cometer um sacrileacutegio SACRISTAtildeO Que eacute isso Natildeo se trata de nenhum sacrileacutegio Vamos enterrar uma pessoa altamente estimaacutevel nobre e generosa satisfazendo ao mesmo tempo duas outras pessoas altamente estimaacuteveis nobres e sobretudo generosas Natildeo vejo mal nenhum nisso [] SACRISTAtildeO Se eacute assim vamos ao enterro Como se chamava o cachorro MULHER Xareacuteu SACRISTAcircO Xareacuteu Absolve Domine animas omnium fidelium defunctorum abomni vinculi delictorum TODOS Ameacutem (SUASSUNA 2005 p 48 - 55)

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Diante dessa quebra estabelecida por Ariano Suassuna ao propor no Auto da

Compadecida o enterro do cachorro da mulher do padeiro em mais uma das malandragens de

Joatildeo Grilo cabe aqui uma referecircncia e um entrecruzamento de cenas pois na peccedila As Vespas

de Aristoacutefanes que foi apresentada pela primeira vez em 422 aC no contexto da Guerra do

Peloponeso haacute uma humanizaccedilatildeo de dois catildees que satildeo acusados de roubar comida e por isso

seratildeo julgados

Na peccedila as atitudes de Diceoacutepolis devem ser entendidas como a reaccedilatildeo de um

Aristoacutefanes que procura satirizar o mau funcionamento das instituiccedilotildees democraacuteticas

centrando-se sobretudo nos tribunais A criacutetica seraacute trabalhada a partir de Filocleacuteon filho de

Bdelicleacuteon um velho juiz que encontra nas atividades juriacutedicas sua fonte de rendimento

Recriando-se em cena um tribunal domeacutestico o que chama a atenccedilatildeo do leitor eacute o

julgamento de um catildeo acusado de roubo por outro catildeo ndash poreacutem representativos de dois

poliacuteticos da eacutepoca ndash que a peccedila manifesta a cada cena pela corrupccedilatildeo que domina as

instituiccedilotildees juriacutedicas atenienses

A comeacutedia inicia com um diaacutelogo entre Soacutesias e Xacircntias escravos de Filocleacuteon

que foram orientados a vigiar o velho juiz natildeo deixando que ele vaacute para o Tribunal Pelos

dois personagens o poeta explica aos espectadores a ldquodoenccedilardquo que ataca Filocleacuteon Afirma

Xantias Vocecircs estatildeo perdendo tempo nenhum de vocecircs vai esclarecer o caso Se vocecircs estatildeo ansiosos por saber faccedilam silecircncio vou dizer qual eacute mesmo a doenccedila de meu senhor eacute a paixatildeo pelos tribunais A paixatildeo dele eacute julgar ele fica desesperado se natildeo consegue ocupar o primeiro banco dos juiacutezes Agrave noite ele natildeo goza um instante de sono Se por acaso fecha os olhos seu proacuteprio espiacuterito fica olhando para a clepsidra A paixatildeo dele pelo voto no tribunal eacute tatildeo grande que faz ele acordar apertando trecircs de seus dedos como se oferecesse incenso aos deuses no dia da lua novaQuando ele vecirc escrito nos muros ldquoDemo encantador filho de Pirilampordquoescreve ao lado ldquoEncantadora urna de votosrdquo Se seu galo cantava durante a noite ele dizia que algum acusado sem duacutevida usava essa humilde ave para fazecirc-lo acordar mais tarde do que era necessaacuterio Logo depois do jantar ele pedia as sandaacutelias corria para o tribunal em plena noite e adormecia laacute colado a uma coluna como uma ostra agrave concha Sua severidade o levava a traccedilar sobre as plaquetas do voto a linhada condenaccedilatildeo e ficava com os dedos cheios de cera Com receio de natildeo teraacute pedrinha para o voto ele tinha no jardim de sua casa um canteiro de pedrinhas que renovava sem parar Esta era a sua loucura E as censuras deixavam o coroa excitadiacutessimoTambeacutem fechamos o ferrolho da porta principal para impedi-lo de sair pois esta ldquodoenccedilardquo deixava o filho desesperado No comeccedilo este usa a doccedilura lhe pede para natildeo ficar todo o tempo com o manto de sair e permanecer em casa Depois daacute um banho no pai e purifica ele mas tudo isto eacute inuacutetil Ele sujeita o pai aos exerciacutecios sagrados dos Coribantes opai foge com o tambor e corre para o tribunal querendo julgar Diante do fracasso dessas tentativas ele leva o paia Aacuteigina para se deitar de noite no templo de Ascleacutepio mas quando amanhece o dia laacute estaacute o velho no recinto reservado aos juiacutezes no tribunalFazemos o possiacutevel para impedi-lo de sair mas ele escapa pelas calhas e pelos canos de aacuteguas das chuvas onde aparecia um buraco noacutes tapaacutevamos e fechaacutevamos imediatamente todas as saiacutedas mas ele punha paus nos muros e saltava de um lado para o outro como se fosse um gato Afinal pusemos redes fechando todo o acesso ao jardim e ficaacutevamos de guarda O

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velho se chama Filoclecircon nenhum nome ficaria melhor nele O nome do filho dele eacute Bdeliclecircon ele faz tudo para dominar o gecircnio fogoso do pai (ARISTOacuteFANES As Vespas p38-41 ndash KURY 2004)

A cena ganha dinacircmica com o filho do velho Juiz assustado com a presenccedila dos

outros magistrados vestidos de vespas em sua casa

BDELICLEcircON Deus nosso senhor Vocecirc que preside a entrada de minha casa receba estes novos sacrifiacutecios que lhe oferecemos pela primeira vez em favor de meu pai Adoce o humor aacutespero e austero dele Deixe cair sobre o coraccedilatildeo dele algumas gotas de mel para que de hoje em diante ele seja clemente para com os homens mais benevolente para com o acusado que com o acusador enfim seja sensiacutevel agraves preces dirigidas a vocecirc Tire do caraacuteter dele todo o fel e todas as folhas de urtiga CORO Unidos de todo o coraccedilatildeo aos sentimentos que vocecirc expressou juntamos nossos votos aos seus neste cargo que vocecirc exerce de fato vocecirc se torna querido por todos noacutes depois que vimos vocecirc mais zeloso para com o povo que qualquer dos juiacutezes mais novos que vocecirc

Um criado traz dois personagens disfarccedilados de CACHORROS um dos disfarces reproduz as feiccedilotildees de Laques e o outro as de Cleacuteon

BDELICLEcircON Se algum juiz estaacute laacute fora que se apresse a entrar uma vez iniciadas as falas ningueacutem mais poderaacute entrar FILOCLEcircON Quem eacute este acusado A que pena ele estaacute sujeito XANTIAS Como se fosse o promotor Ouccedilam agora a acusaccedilatildeo ldquoO cachorro da vila de Cidateneacuteia acusa Labes da vila de Aixone de haver contra toda a justiccedila devorado sozinho um queijo da Siciacuteliardquo Que sua pena seja a de usar uma coleira bem apertada FILOCLEcircON Ou entatildeo uma morte de catildeo se ele for condenado BDELICLEcircON Aqui estaacute Labes o outro acusado FILOCLEcircON Ah Bandido Ele tem mesmo a pinta de

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um ladratildeo e se orgulha de me tapear rangendo os dentes Onde estaacute o queixoso o cachorro de Cidateneacuteia 1ordm CACHORRO Au Au BDELICLEcircON Aqui estaacute ele FILOCLEcircON Este eacute um outro Labes bom latidor e lambedor de panelas SOSIAS Como se fosse o arauto Silecircncio Todos sentados Vocecirc objeto da acusaccedilatildeo suba agrave tribuna FILOCLEcircON Durante a fala dele vou me servir de sopa e engoli-la rapidamente XANTIAS Como promotor Senhores juiacutezes Os senhores vatildeo ouvir minha acusaccedilatildeo contra este reacuteu Ele cometeu em relaccedilatildeo agrave cidade e agrave frota de Atenas um atentado indecoroso Ele se esgueirou para um canto depois de roubar um enorme queijo da Siciacutelia aproveitando-se das trevas FILOCLEcircON O roubo dele estaacute suficientemente comprovado o patife acaba de deixar cair no chatildeo um naco de queijo extremamente malcheiroso XANTIAS Pedi a ele que me deixasse provar um pedaccedilo do queijo mas ele natildeo me atendeu Quem vai querer ajudar vocecircs se seu cachorro fiel natildeo deixou nem um pouquinho para mim FILOCLEcircON Ele natildeo lhe deu nada mesmo XANTIAS Nadinha nem a mim nem a seu companheiro FILOCLEcircON Aiacute estaacute um trapalhatildeo que vai ferver mais que estas lentilhas BDELICLEcircON Em nome dos deuses meu pai natildeo profira a sentenccedila antes de ter ouvido as duas partes FILOCLEcircON Mas a coisa estaacute clara meu caro ela fala por si mesma BDELICLEcircON Mas preste atenccedilatildeo para natildeo absolver o acusado este cachorro eacute o mais guloso e o mais egoiacutesta que jaacute vi ele lambe num piscar de olhos todos os cantos de umahellip cidade e devora tudo FILOCLEcircON E natildeo tenho dinheiro nem para mandar

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consertar meu vasohellip 2ordm CACHORRO Entatildeo castigue o acusado uma uacutenica cozinha natildeo pode encher a barriga de dois ladrotildees Tomara que eu natildeo tenha latido no vazio e em vatildeo senatildeo nunca mais vou latir FILOCLEcircON Quanta falta de vergonha Aiacute estaacute um grande trapaceiro Que pensa vocecirc dele meu galo Para mim ele diz ldquosimrdquo Guarda do tribunal Onde estaacute vocecirc Que algueacutem me decirc um penico SOSIAS Fingindo ser o guarda do tribunal Pegue vocecirc mesmo o penico estou ocupado fazendo a citaccedilatildeo das testemunhas Apresentem-se as testemunhas de acusaccedilatildeo a Laques Um prato um pilatildeo uma focircrma de queijo uma grelha uma panela e outros utensiacutelios de cozinha Vocecirc ainda estaacute mijando Ainda natildeo acabou FILOCLEcircON Apontando para o acusado Ainda natildeo mas penso que aquele ali vai fazer coisa pior hoje ele vai se borrar BDELICLEcircON Dirigindo-se ao CACHORRO acusador Entatildeo vocecirc seraacute sempre tatildeo severo e intrataacutevel para com o acusado Por que esta ferocidade FILOCLEcircON Dirigindo-se ao acusado Suba agrave tribuna e defenda-se Por que este silecircncio Fale SOSIAS Com certeza ele nada tem a dizer BDELICLEcircON Vocecirc se engana acontece com ele o que aconteceu haacute muito tempo com Tuciacutedides quando acusou Peacutericles a surpresa da acusaccedilatildeo paralisou completamente as mandiacutebulas de Peacutericles Afaste-se vou assumir a sua defesa Eacute uma tarefa difiacutecil senhores juiacutezes defender um cachorro que eacute alvo de acusaccedilotildees extremamente odiosas poreacutem de qualquer maneira falarei Este cachorro eacute valente e caccedila lobos FILOCLEcircON Ele eacute um ladratildeo e um conspirador BDELICLEcircON Natildeo por Zeus Natildeo haacute um cachorro melhor no mundo Ele seria capaz de cuidar de um grande rebanho de carneiros

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FILOCLEcircON Que importa tudo isto se ele comeu o queijo BDELICLEcircON Que importa Ele luta para defender vocecirc guarda sua casa e aleacutem disto tem outras qualidades Se ele rouba uma coisinha vocecirc deve perdoaacute-lo Reconheccedilo que ele natildeo eacute um grande tocador de ciacutetara FILOCLEcircON Eu gostaria de que ele nem soubesse ler ele natildeo faria a apologia de seu crime BDELICLEcircON Ouccedila minhas testemunhas juiz imparcial Aproxime-se facatildeozinho e fale em voz alta entatildeo vocecirc que estava incumbido dos pagamentos responda com clareza vocecirc natildeo cortou as partes que deveriam ser distribuiacutedas aos soldados FILOCLEcircON Como vou suportar a ideacuteia de ter absolvido um acusado Que seraacute de mim Deuses veneraacuteveis Me perdoem Fiz isso tudo sem querer este natildeo eacute o meu haacutebito (ARISTOacuteFANES As Vespas p153-173 ndash KURY 2004)

Essa visatildeo criacutetica e carnavalesca de mundo que se opotildee ao mau serviccedilo das

instituiccedilotildees produzida nas cenas tanto da peccedila As Vespas quanto a partir dos folhetos de

cordel traz em si uma ideia de inacabamento de quebra imperfeiccedilatildeo e uma forma de

expressatildeo ambivalente por isso ela eacute dinacircmica e mutaacutevel

As formas e siacutembolos irreverentes da linguagem carnavalesca caracterizam-se

principalmente pela coerecircncia sequencial das coisas ldquoao avessordquo e pelas diversas formas de

paroacutedias degradaccedilotildees e atitudes burlescas instrumento que tanto permeiam Acarnenses o

auto de Suassuna e o auto de Gil Vicente do qual trataremos no Quinto Ato

Sobre a ideia de quebra na cena teatral Bakhtin (2002) alerta que a ideia

carnavalesca de que ele trata natildeo estaacute relacionada ao carnaval dos ldquotempos modernosrdquo mas a

uma cosmovisatildeo milenar e universalmente popular Segundo o autor a cultura do carnaval

compreende quatro grandes categorias que envolvemos festejos carnavalescos as obras

cocircmicas representadas nas praccedilas puacuteblicas os insultos os juramentos os folguedos populares

entre outros

Assim o rito do carnaval na perspectiva de Bakhtin eacute constituiacutedo pela vitoacuteria de

uma forma de libertaccedilatildeo momentacircnea da verdade predominante e do estatuto soacutecio-poliacutetico-

econocircmico vigente Desta forma eacute possiacutevel propor a carnavalizaccedilatildeo como dispositivo

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presente no texto que compotildee a nossa pesquisa E para isso relacionaremos carnavalizaccedilatildeo e

polifonia ideias propostas por Mikhail Bakhtin para designar um modo diferente de narrar

Na concepccedilatildeo do autor segundo Gomes (2014) o termo ldquopolifoniardquo natildeo pode ser

relacionado agrave realidade heterogecircnea da linguagem quando vista pelo acircngulo da pluralidade

das ldquoliacutenguassociaisrdquo e por isso natildeo deve ser confundido com os termos ldquoheteroglossiardquo ou

ldquoplurivocidaderdquo sendo a Polifonia para Bakhtin um universo no qual todas as vozes e

consciecircncias satildeo imisciacuteveis e equivalentes ou seja plenas de valor mantendo com outras

vozes do discurso uma relaccedilatildeo de plena igualdade realizaacuteveis para se contrapor ao

estabelecido De acordo com Bakhtin

A multiplicidade de vozes e consciecircncias independentes e imisciacuteveis e a autecircntica polifonia de vozes plenivalentes constituem de fato a peculiaridade fundamental dos romances de Dostoievski [] eacute precisamente a multiplicidade de consciecircncias equipolentes e seus mundos que aqui combinam numa unidade de acontecimento mantendo sua imiscibilidade (MIKHAIL BAKHTIN 2002 p4)

Dessa forma eacute importante ressaltar que os discursos que circulam na sociedade

tecircm pesos poliacuteticos diferenciados em funccedilatildeo dos jogos de poder e do proacuteprio jogo luacutedico

social defendido por Huizinga (1999) Portanto essas ldquovozesrdquo possiacuteveis de serem percebidas

as ironias os textos polifocircnicos aparecem em oposiccedilatildeo agraves vozes que tentam passar

despercebidas nos textos monofocircnicos produzindo um ldquoefeito de apagamentordquo em um

esforccedilo contiacutenuo de impor determinados discursos como centro das relaccedilotildees de poder E

nesse campo movediccedilo tanto Aristoacutefanes quanto Ariano Suassuna encontram espaccedilos para

confrontarem as falas das instituiccedilotildees e seus legisladores seja em Atenas ou Taperoaacute

Segundo Rodrigues (2010) a polifonia e a monofonia satildeo efeitos de sentido cuja

existecircncia eacute possiacutevel em virtude dos procedimentos discursivos Assim tomando como

premissa a afirmativa da autora entendemos que a multiplicidade de vozes autorais diluiacutedas

entre as personagens consolidadas em seus discursos bem como a carnavalizaccedilatildeo dos

personagens do Auto da Compadecida provoca o riso que subverte os poderes atraveacutes de

diversas estrateacutegias como as reproduccedilotildees moralizantes dos diaacutelogos que autorizam o uso da

moral e potencializam as cenas cocircmicas

Ainda de acordo com Rodrigues (2002 p 42)

As relaccedilotildees dialoacutegicas [] satildeo um fenocircmeno universal que penetra [] tudo o que tem sentido e importacircnciardquo Dessa forma o dialogismo eacute a de um princiacutepio constitutivo da linguagem natildeo sendo esse ldquodiaacutelogordquo necessariamente um ponto de

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convergecircncia mas sim um espaccedilo de lutas entre os sujeitos do discurso pois ldquoonde comeccedila a consciecircncia comeccedila o diaacutelogo

Assim a alteridade define o sujeito pois o outro eacute fundamental para a sua

constituiccedilatildeo A relaccedilatildeo existente entre os sujeitos e a alteridade propotildee um jogo de imagens

que interfere na produccedilatildeo dos discursos das identidades e consequentemente dos sujeitos O

dialogismo tem como sua forma maacutexima agrave polifonia

Elemento das cenas cocircmicas as falas segundo Rodrigues (2010 p 62) natildeo estatildeo apenas justapostas como se fossem peccedilas de um brinquedo de montar encontram-se em um estado de interaccedilatildeo e de embate ldquotensordquo e contiacutenuo como os dentes de uma engrenagem proporcionando jogos linguiacutesticos e discursivos provocados pelo desenvolvimento de uma situaccedilatildeo de qui pro quoacute no Auto da Compadecida em funccedilatildeo de um plano de Joatildeo Grilo deixam o Padre Joatildeo em maus lenccediloacuteis com o Major Antocircnio Moraes enquanto o Padre fala sobre benzer a cachorra o Major fala sobre seu filho que estaacute doente e vai para o Recife tratando-se aiacute de uma confusatildeo no plano da realizaccedilatildeo e entendimento da linguagem engenhosamente construiacuteda por Joatildeo Grilo

PADRE Eacute o que vivo dizendo do jeito que as coisas vatildeo eacute o fim do mundo Mas que coisa o trouxe aqui Jaacute sei natildeo diga o bichinho estaacute doente natildeo eacute ANTOcircNIO MORAES Eacute jaacute sabia PADRE Jaacute aqui tudo se espalha num instante Jaacute estaacute fedendo ANTOcircNIO MORAES Fedendo Quem PADRE O bichinho ANTOcircNIO MORAES Natildeo Que eacute que o senhor quer dizer PADRE Nada desculpe eacute um modo de falar ANTOcircNIO MORAES Pois o senhor anda com uns modos de falar muito esquisitos PADRE Peccedilo que desculpe um pobre padre sem muita instruccedilatildeo Qual eacute a doenccedila Rabugem ANTOcircNIO MORAES Rabugem PADRE Sim jaacute vi um morrer disso em poucos dias Comeccedilou pelo rabo e espalhou-se pelo resto do corpo ANTOcircNIO MORAES Pelo rabo PADRE Desculpe desculpe eu devia ter dito ldquopela caudardquo Deve-se respeito aos enfermos mesmo que sejam os de mais baixa qualidade ANTOcircNIO MORAES Baixa qualidade Padre Joatildeo veja com quem estaacute falando A Igreja eacute uma coisa respeitaacutevel como garantia da sociedade mas tudo tem limite PADRE

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Mas o que foi que eu disse ANTOcircNIO MORAES Baixa qualidade Meu nome todo eacute Antocircnio Noronha de Brito Moraes e esse Noronha de Brito veio do Conde dos Arcos ouviu Gente que veio nas caravelas ouviu PADRE Ah bem e na certa os antepassados do bichinho tambeacutem vieram nas caravelas natildeo eacute isso ANTOcircNIO MORAES Claro Se meus antepassados vieram eacute claro que os dele vieram tambeacutem Que o senhor que insinuar Que a matildee dele procedeu mal PADRE Mas uma cachorra ANTOcircNIO MORAES O quecirc PADRE Uma cachorra ANTOcircNIO MORAES Repita PADRE Natildeo vejo nada de mal em repetir natildeo eacute uma cachorra mesmo ANTOcircNIO MORAES Padre eu natildeo mato o senhor agora mesmo porque o senhor eacute padre e estaacute louco [] (SUASSUNA 2005 p 32 -34)

Ainda sobre as falas a mesma autora nos relembra que o proacuteprio Suassuna teceu

comentaacuterio sobre a existecircncia do caraacuteter polifocircnico instaurador do riso no Auto da

Compadecida Como observado pelo proacuteprio Suassuna o Auto da Compadecida trouxe o riso instaurado atraveacutes das polissemias e por meio da ldquofalhardquo nada linguagem O riso eacute provocado na cena descrita anteriormente em funccedilatildeo de as reacuteplicas dos diaacutelogos estarem situadas em contextos distintos causando um desacordo entre as falas dos personagens dessa forma a interaccedilatildeo verbal aconteceu de forma equivocada para os interlocutores para o Padre Joatildeo era a cachorra (animal) do Major que estava doente para Antocircnio Moraes sua mulher estava sendo ofendida pelo padre Portanto o ldquoencaixerdquo das falas faz o qui pro quoacute funcionar proporcionando efeitos de sentido diferentes para cada sujeito da cena enunciativa (RODRIGUES 2010 p 6)

Outra estrateacutegia importante para a compreensatildeo do discurso como revelador do social

encontra-se nas palavras de Bakhtin (2003 p48) ao afirmar que o discurso se efetiva pela

praacutetica contextualizada entre emissor e receptor fato recorrente no Auto da Compadecida e

em Acarnenses visto que em ambas as peccedilas a intenccedilatildeo do autor de colocar para o

leitorouvinte seus objetivos eacute muito clara e social

O diaacutelogo eacute um processo de relacionamento reciacuteproco entre as pessoas que satildeo coautores do que acontece no diaacutelogo Desta forma aqueles que participam do diaacutelogo tecircm uma compreensatildeo ativa e antecipatoacuteria do que foi dito e ouvido Portanto tudo o que eacute dito sempre tem um projeto e eacute sempre incompleto pois o entendimento estaacute ancorado em uma accedilatildeo social conjunta Assim trabalhar com essa

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condiccedilatildeo dialoacutegica constitutiva do ser humano e seu potencial transformador afeta nossa compreensatildeo e as praacuteticas que dialogam como recurso fundamental em sua accedilatildeo e reflexatildeo Dado o exposto eacute possiacutevel entender como as praacuteticas dialoacutegicas generativa preservam troca dialoacutegica a singularidade de cada reuniatildeo a construccedilatildeo coordenada de significado emoccedilatildeo e presenccedila dos participantes priorizando como um dos seus objetivos e tarefa a criaccedilatildeo contextualizada de novas possibilidades discursivas 16

Rodrigues (2010) reforccedila que no jogo das desconstruccedilotildees promovidas pela

linguagem no texto de Ariano Suassuna atraveacutes dos causos que o autor engenhosamente

(des)constroacutei nas reflexotildees das personagens sobretudo de Chicoacute produzem a comicidade e

estabelecem o sentido do dito que estaacute a serviccedilo do social

Dessa forma as fronteiras da liacutengua e os seus lugares de transgressotildees podem assim ser observados atraveacutes de uma situaccedilatildeo de qui pro quoacute Ao estabelecer o deslizamento de sentidos como regra o qui pro quoacute coloca em cena a comicidade Nos jogos com a liacutengua esses niacuteveisquando acionados podem sofrer uma espeacutecie de mutaccedilatildeo por causa dos deslocamentos e descentramentos que tecircm como consequecircncia o riso (RODRIGUES 2010 p 7)

No Auto da Compadecida o caraacuteter polifocircnico eacute dinacircmico e se instaura tambeacutem

atraveacutes do entrecruzamento das artimanhas do Joatildeo Grilo e de Chicoacute fato concretizado por

exemplo pelo uso do latim na cena do enterro aqui jaacute citada o que forccedila de forma jaacute

esperada a participaccedilatildeo do puacuteblico visto que o caraacuteter religioso estaacute ligado agrave

cena(SUASSUNA 2005 p 48-55)

Pela apropriaccedilatildeo discursiva e pela sobreposiccedilatildeo de cenas cocircmicas (re)criadas pelo

posicionamento das personagens no Auto da Compadecida tem-se o reforccedilo de que o riso o

humor e a ironia tecircm sido grandes recursos na literatura de grandes autores que despertam na

audiecircncia no instante do abrir de cortinas a gargalhada assim como Ariano Suassuna que

usa do riso como ritual de escapismo e ou como criacutetica moralizante Leacutelia Parreira (2006 p

45) argumenta que a obra irocircnica eacute a siacutentese de noccedilotildees antiteacuteticas accedilatildeo e natildeo contemplaccedilatildeo

16 El diaacutelogo es un proceso de relacioacuten reciacuteproca entre personas quienes son coautores de aquello que sucede en el diaacutelogo De esta manera quienes participan en el diaacutelogo tienen una comprensioacuten activa y anticipatoria de lo dicho y lo escuchado Por ello todo lo que se dice tiene siempre un proyecto y siempre es incompleto ya que la comprensioacuten estaacute anclada en una accioacuten social conjunta Asiacute trabajar con esta condicioacuten dialoacutegica constitutiva del ser humano y su potencial transformativo incide en nuestra comprensioacuten y en las praacutecticas que tienen al diaacutelogo como recurso fundamental en su accioacuten y reflexioacuten A partir de lo anterior es posible entender como las praacutecticas dialoacutegicas generativas preservan el intercambio dialoacutegico la singularidad de cada encuentro la construccioacuten coordinada de significados la emocionalidad y la presencia encarnada de los participantes jerarquizando como uno de sus objetivos y tareas la creacioacuten contextuada de nuevas posibilidades (Traduccedilatildeo nossa)

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passiva alianccedila entre objetividade e subjetividade mistura do seacuterio e da brincadeira o sonho

e a realidade o sublime e o pateacutetico o real e o aparente

As accedilotildees de Ariano Suassuna em toda a trama do Auto nos revelam que eacute

justamente por meio da ironia que o homem ri de si mesmo de suas crenccedilas e ingenuidades

indicando o que existe de representaccedilatildeo e de fingimento nos sistemas e ideologias

Em Aristoacutefanes comeccedilaremos identificando os recursos cocircmicos que tecircm o

objetivo de desvalorizar Lacircmaco traduzido por Batalhatildeo efetivamente aos olhos do puacuteblico e

passaremos para a anaacutelise de seu valor estrateacutegico A cena em que o personagem aparece pela

primeira vez estaacute localizada apoacutes o confronto entre o heroacutei cocircmico Diceoacutepolis e o coro

camponecircs de Acarnes O coro persegue Diceoacutepolis para apedrejaacute-lo por ter realizado uma

treacutegua particular com os Peloponeacutesios

Diceopolis vestido com o disfarce de Teacutelefo que Euriacutepides lhe emprestou tenta

persuadir o coro com suas razotildees mas soacute consegue convencer uma parte dele O semicoro que

ainda se opotildee agrave paz privada do heroacutei pede entatildeo ajuda a Batalhatildeo e ele aparece pela primeira

vez em cena apelando ao seu chamado (vv 557-574)

COREUTA 1 Eacute verdade seu safado mundiccedila Tal coisa tu ismoleuse atreve a dizecirc pra noacutes E se teve um sicofanta22 tu ainda fala mal dele COREUTA 2 Por Poseidon as coisas que ele taacute dizeno Satildeo tudo justa e ninhuma delas eacute falsa COREUTA 1 Por elas ser justa era preciso ele taacute dizeno Mas ele num vai ficaacuterino por se atrevecirc a falaacute assim COREUTA 2 Eh tu vai correcirc pra donde Ficrsquo aiacute Se tu batecirc Neste home tu vai eacute vuaacute pelo ar bem ligerin COREUTA 1 Eh Bataiatildeo tu que solta faiacutesca pelos oacutei Vem me ajudaacute tu do penacho da Goacutergona aparece Eh Bataiatildeo oacute amigo oacute camarada E se tem aiacute um taxiarcaocirc general ocirc Defensor dos muro vem me ajudaacute Depressa pois tocirc metade dominado BATALHAtildeO De onde vem o grito de guerra que ouvi Aonde devo levar socorro Aonde devo lanccedilar o tumulto Quem despertou a Goacutergona do armaacuterio

Neste momento a linguagem de LacircmacoBatalhatildeo eacute caracterizada por seu tom

eacutepico O termo gritar tem na Iliacuteada em geral o sentido de um grito de guerra Da mesma

forma o kydoimoacutes (tumulto guerrero) eacute tambeacutem de origem homeacuterica O uso do leacutexico eacutepico

aqui eacute paroacutedico porque a cena se desenrola fora de um contexto de batalha e aleacutem disso o

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inimigo eacute um homem uacutenico e inofensivo o camponecircs DiceoacutepolisJustinoacutepolis A paroacutedia

eacutepica eacute entatildeo o primeiro recurso cocircmico usado para ridicularizar a LacircmacoBatalhatildeo

Em geral a paroacutedia costuma ter alvos intertextuais o modelo parodiado Mas

neste caso a paroacutedia eacutepica tem como alvo principal natildeo o intertexto homeacuterico mas o caraacuteter

partidaacuterio da guerra Aristoacutefanes usa um recurso tradicional da literatura cocircmica mas usa-a de

uma forma diferente natildeo mais para zombar do intertexto parodiado mas para servir a saacutetira

contra o seu alvo central A primeira cena apresenta outra seacuterie de recursos cocircmicos que tecircm a

funccedilatildeo de degradar o alvo aos olhos do puacuteblico A resposta de Justinoacutepolis a Batalhatildeo eacute na

verdade zombadora JUSTINOacutePOLIS

Oacute Bataiatildeo heroacutei dos penacho e das tropardquo(v 575)

A rima interna entre loacutephon 17 e loacutechon 18 gera um efeito zombeteiro humoriacutestico

que tambeacutem reduz o ridiacuteculo agrave denominaccedilatildeo eacutepica de heroacutei Este verso combina entatildeo

como recursos cocircmicos paroacutedia eacutepica e humor verbal atraveacutes da rima O efeito humoriacutestico

da rima eacute reforccedilado aleacutem disso pela aliteraccedilatildeo do lambda que liga o nome do personagem

aos dois termos rimados Por outro lado esse verso inaugura o motivo cocircmico do ridiacuteculo das

armas do personagem que se repetiraacute sempre nas cenas protagonizadas por Lacircmaco que eacute a

personificaccedilatildeo da batalha

A recepccedilatildeo de Diceoacutepolis revela o papel que o heroacutei cocircmico vai desempenhar em

relaccedilatildeo a Lacircmaco em todas as cenas em que se enfrentam seu papel seraacute o do zombador o

satirista Essa funccedilatildeo estaacute relacionada em si mesma agrave posiccedilatildeo do enunciador-autor e agrave proacutepria

atividade do autor o ridiacuteculo Ou seja Lacircmaco natildeo eacute apenas zombado no texto - por exemplo

por meio dos recursos paroacutedicos que acabamos de mencionar que satildeo colocados na boca do

mesmo Lacircmaco - mas eacute tambeacutem daquela zombaria que se reforccedila pela zombaria do proacuteprio

caraacuteter de Diceoacutepolis A degradaccedilatildeo cocircmica de Lacircmaco eacute entatildeo produzida a partir da instacircncia

17 Normalmente os capacetes eram enfeitados com phaacuteloi ldquopenachosrdquo feitos de caudas de cavalos hippoacutekomoikoacuterytheslamproicircsiphaacuteloisi- ldquocapacetes guarnecidos de cauda equumlina com brilhantes penachosrdquo(Il XIII 132) e koacuterythosphaacutelonhippodaseiacutees- ldquocapacete de penacho equumlinordquo (Il IV 459) O vocaacutebulo loacutephos tambeacutem eacute utilizado como ldquopenachordquo loacutephonhippiokhaiacutetenndash ldquopenacho com crina de cavalordquo (Il VI 469) Merece destaque o penacho da koacuterys do capacete de Aquiles que era koacuterytha kryacuteseonloacutephonndash ldquocapacete com penacho douradordquo (Il XVIII 611-2)Aleacutem da koacuterys existe um outro tipo de capacete a kyneacutee Odisseu tinha uma kyneacutee que eacute um capacete formado por pele de catildeo ou couro qualquer (Il X 257 261) A parte exterior do capacete de Odisseu tinha ldquoos dentes reluzentes de um javali com presas brancas dispostos em grande nuacutemero com arte e habilidaderdquo (Il X 261-5) Este tipo de capacete que Meriacuteone deu ao rei de Iacutetaca eacute mencionado uma uacutenica vez em HomeroIn Os equipamentos beacutelicos dos heroacuteis homeacutericos Prof Me Luciene de Lima Oliveira- wwwe-publicacoesuerj2012 18 Tropa armada

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enunciativa - os recursos cocircmicos usados pelo proacuteprio autor - e eacute duplicada da instacircncia

interna para a accedilatildeo dramaacutetica por meio do escaacuternio do personagem do heroacutei cocircmico

Diceoacutepolis eacute um alter ego do autor uma voz autorizada um duplo do proacuteprio

Aristoacutefanes um satiacuterico que ridiculariza dentro da cena o alvo cocircmico central da obra

ridiacuteculo das armas do guerreiro inaugurado no verso 575 com a referecircncia agrave tropa eacute retomado

em toda essa cena e mais tarde nas cenas posteriores protagonizadas por Diceoacutepolis e

Lacircmaco (vv 575-585) JUSTINOacutePOLIS Oacute Bataiatildeo heroacutei dos penacho e das tropa CORO Oacute Bataiatildeo acredita que este home faz eacute tempo Que insulta a nossa cidade todinha BATALHAtildeO Tal coisa tu mendigo te atreves a dizer JUSTINOacutePOLIS Oacute Bataiatildeo oacute heroacutei me perdoe Se seno ismoleu disse alguma bestecircra BATALHAtildeO E o que foi que tu disseste de noacutes Natildeo vais falar JUSTINOacutePOLIS Nem sei mais o que foi Tocirc eacute arripiadin de medo das arma Mas por favocirc afasta de mim esta marmota BATALHAtildeO Pronto JUSTINOacutePOLIS Virrsquo ela de costa pra mim BATALHAtildeO Estaacute virada JUSTINOacutePOLIS Vaiacute me daacute a pena do teu elmo BATALHAtildeO Toma a pluma JUSTINOacutePOLIS Segura a minha cabeccedila Que eu vocirc inguiaacute Tenho eacute nojo desses penacho aiacute

A verdade eacute que seja na comeacutedia aristofacircnica ou no auto suassuniano a estrutura

das cenas revela a construccedilatildeo estrateacutegica que ambos os autores utilizam para criticar e

moralizar atraveacutes de piadas ridicularizaccedilotildees polifonias discursivas e ironias que satildeo

facilmente recebidas e aceitas pelo puacuteblico que diante dos gestos e vozes das personagens

conseguem ser partiacutecipes da ideia gerando empatia e cumplicidade cocircmicas imediatas

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TERCEIRO ATO

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3 AS DUAS PECcedilAS ndash O POETA USA MAacuteSCARAS

Eacute fato que associado aos tempos aacuteureos do teatro grego da Eacutepoca Claacutessica estaacute

sem duacutevida o uso da maacutescara Vaacuterias tecircm sido as razotildees apontadas para justificar este fato

tais como a necessidade de melhorar a projeccedilatildeo vocal a possibilidade de facultar aos

espectadores uma visualizaccedilatildeo mais eficaz das personagens ou a exigecircncia do recurso a um

adereccedilo imprescindiacutevel num teatro onde natildeo representavam mulheres

O termo grego prosopon 19 segundo Castiajo (2012) significa lsquofacersquo ou lsquomaacutescararsquo

designava este indispensaacutevel adereccedilo confeccionado com fino linho estucado que era

composto por uma peruca de cabelo natural que podia ser curto ou comprido e de vaacuterias

cores e por um rosto que se ajustava agrave cabeccedila do ator e que possuiacutea apenas uma abertura

para os olhos e outra para a boca bastante alargadas para facilitar a visibilidade da audiecircncia

e para obviamente permitir as condiccedilotildees necessaacuterias ao desempenho do ator a visatildeo e a

emissatildeo vocal Eacute preciso lembrar aqui que como siacutembolo do teatro tatildeo conhecido a maacutescara

era um recurso usado para ampliar a voz do inteacuterprete especialmente na declamaccedilatildeo e ateacute

hoje usamos o termo ldquovoz na maacutescarardquo que corresponde ao aspecto da ressonacircncia superior

o elemento que amplifica a voz fator de grande importacircncia no trabalho do ator capaz de

impulsionar sua voz sem esforccedilo ou com um miacutenimo esforccedilo e ser ouvido plenamente por

todos os ouvintes presentes na plateia

Alguns estudiosos como Pickard-Cambridge (1953) defendem que as primeiras

maacutescaras usadas durante a Idade MeacutediaEacutepoca Claacutessica se caracterizavam por serem bem

mais individualizadas e a falta de expressividade que as feiccedilotildees da maacutescara assumiam

durante a encenaccedilatildeo despertava no entanto no puacuteblico significados muacuteltiplos quando o seu

uso era conjugado com os elementos que constituem o schemandash a postura e os movimentos ndash

a voz humana dos quais nos ocuparemos mais a frente mas que contribuiacuteam de forma

contundente para transmitir agrave audiecircncia sobretudo emoccedilotildees e estados de espiacuterito vividos pelas

personagens que o uso da maacutescara natildeo permitia que transparecessem

Ainda de acordo com Castiajo (2012) essas maacutescaras eram tiacutepicas da comeacutedia

chamadas de maacutescaras-retrato e atraveacutes delas cuja existecircncia eacute atestada pela tradiccedilatildeo

recorria-se a traccedilos comuns das figuras puacuteblicas para se efetivar as representaccedilotildees no espaccedilo

cecircnico

19 Marshall (1999 188) defende que o fato de etimologicamente o termo grego significar tanto lsquofacersquo como lsquomaacutescararsquo eacute um exemplo claro de como estes dois conceitos se imiscuiacuteam no pensamento grego In CASTIAJO Isabel O Teatro Grego em Contexto de Representaccedilatildeo IUCV Portugal Coimbra 2012

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De qualquer forma e apesar deste caraacuteter impessoal das maacutescaras e da distacircncia que separava atores e espectadores o sexo e a idade dos atores mascarados poderiam ser identificados pelo puacuteblico pois as maacutescaras brancas eram postas em cena para representar uma personagem feminina para uma masculina uma escura Em relaccedilatildeo agrave idade era possiacutevel distinguir trecircs geraccedilotildees diferentes jovens adultos e velhos Assim da combinaccedilatildeo destas duas variaacuteveis resultaram seis tipos convencionais de maacutescaras diferentes usadas tanto na trageacutedia como na comeacutedia a de homem velho (geron) cuja face era escura a barba e os cabelos brancos e com a particularidade de possivelmente ser calvo a de homem maduro (aner)[] (CASTIAJO 2012p8)

Certo eacute que parece legiacutetimo concordar com Marshall (1999) quando afirma que o

uso da maacutescara resulta mais do fato de o espaccedilo de performance ser apropriado para isso do

que da ideia de ser essencial representar mascarado para se transmitir a moral discursiva eou

a consciecircncia de um outro fato que sugere que o motivo subliminar que estaacute na base do uso

da maacutescara nos tempos mais remotos do teatro prende-se a um assunto seacuterio deixar para

traacutes o deus no santuaacuterio o outro ldquoeurdquo criado em sua honra para que este natildeo fosse transposto

para a sociedade real

Em Acarnenses a paroacutedia reveste o rosto da personagem a partir do Teacutelefo traacutegico

de Euriacutepides que em cena estaacute a serviccedilo do cocircmico mascarado como outro perfeito para a

realizaccedilatildeo de um objetivo maior a obtenccedilatildeo da paz

Em Suassuna a ldquoGrande Vozrdquo que inicia a peccedila eacute um Palhaccedilo ndash um mascarado ndash

que de forma carnavalesca apresenta agrave audiecircncia desde os elementos cecircnicos aos

personagens adiantando que o trabalho que seraacute posto em cena se trata de um julgamento

para o exerciacutecio e restabelecimento da moralidade e que ali os proacuteprios espectadores se

reconheceratildeo nos vaacuterios outros duplos que se disfarccedilaratildeo para alcanccedilar o objetivo do autor

que eacute moralizar pelo riso

31 Os gestos a vestimenta o corpo e o disfarce

A comeacutedia pautava-se por uma maior liberdade nas marcaccedilotildees cecircnicas nos

movimentos e nos gestos e por uma maior verossimilhanccedila com a realidade e segundo Pickard-

Cambridge (1953) embora houvesse tambeacutem alguns gestos tiacutepicos ndash como o gesto chamado de

ldquogansordquo executado atraveacutes das matildeos e que simulava o bico de um ganso usado para indicar que

estavam a ser proferidas palavras sem sentido Era tambeacutem comum assistir-se nas comeacutedias a

gestos praticados na trageacutedia mas sob a forma de paroacutedia

68

Apesar da quase inexistecircncia de indicaccedilotildees textuais do autor eacute possiacutevel

reconstruir a movimentaccedilatildeo cecircnica dos atores a partir de indicaccedilotildees dadas pelos proacuteprios de

referecircncias presentes em escoacutelios 20 das representaccedilotildees dos vasos e ainda levando em conta

uma forma de arte muito semelhante a oratoacuteria seguida do gesto por exemplo falar com

determinado tipo de pose colocando a matildeo por baixo da tuacutenica ndash como era tiacutepico da oratoacuteria e

como se pode visualizar em vasos gregos de representaccedilotildees teatrais ndash ou executar movimentos

circulares ndash situaccedilatildeo que se depreende ter acontecido natildeo soacute no contexto teatral como tambeacutem

na realidade dos tribunais

Sob o vieacutes da representaccedilatildeo cecircnica e da importacircncia de seus elementos para criar a

rede de significados junto ao puacuteblico Mate (2011) afirma sobre o gesto-gestual e o

gestualizaacutevel

Importante agrave execuccedilatildeo das cenas o gestual passa pelo corpo do ator que na condiccedilatildeo de ser social irradia complexa e muacuteltipla gama simboloacutegica Levando o puacuteblico a promover uma relaccedilatildeo fundamentada no jogo de decifraccedilatildeo de siacutembolos tanto enigmaacuteticos (mais difiacuteceis de serem traduzidos) e de alegorias (siacutembolos facilmente traduziacuteveis) A troca entre ambos (atores e puacuteblico) ocorre quando o texto que intermedia essa relaccedilatildeo na condiccedilatildeo de um ldquotecido simboacutelicordquo transforma-se em gesto Na condiccedilatildeo de uma fratura do cotidiano o espetaacuteculo que acontece no tempo e no espaccedilo compreende um grande arcabouccedilo de gestualizaccedilatildeo esteacutetico-social

De qualquer forma fosse qual fosse a natureza dos gestos estes necessitavam de

ser executados em grande escala de forma a serem perceptiacuteveis pelos espectadores mais

distantes e por isso eacute expectaacutevel na opiniatildeo de DrsquoArnott (1989) que eles tivessem mais um

cariz funcional do que legitimidade teatral ateacute porque eram resultado de um sem nuacutemero de

convenccedilotildees Em Acarnenses por exemplo a movimentaccedilatildeo acentuada pela dificuldade

estrateacutegica do mendigo resulta natildeo soacute no princiacutepio da pena junto a alguns espectadores e

acusadores como tambeacutem reforccedila na proacutepria audiecircncia a identificaccedilatildeo com a dor do

apresentado

No Auto da Compadecida apoacutes um toque de clarim o Palhaccedilo figura tiacutepica das

apresentaccedilotildees circenses entra e como ocorre durante todo o espetaacuteculo conduz com ajuda do

gestual a encenaccedilatildeo desempenhando a funccedilatildeo de narrador educador dos espectadores pois

20 Para a normatizaccedilatildeo de algumas palavras gregas jaacute dicionarizadas utilizamos a forma de acordo como que consta no Grande Dicionaacuterio Houaiss da Liacutengua Portuguesa (2008) Escoacutelio (gr σχόλιον scholion comentaacuterio interpretaccedilatildeo) satildeo notas gramaticais ou de criacutetica aos autores antigos

69

no lugar do autor anuncia o caraacuteter moralizador e religioso da peccedila na qual haacute um combate

ao mundanismo visto pelo autor como uma praga de sua igreja Suassuna por considerar-se

digno de falar sobre tal tema deixa-se ser representado por um palhaccedilo para indicar que sabe

mais do que ningueacutem e por acreditar que o povo sofre e tem direito agrave defesa justa

Outro aspecto que deve ser observado durante boa parte da peccedila satildeo as matildeos

retraiacutedas de Joatildeo Grilo as incontaacuteveis viradas de cabeccedila e as baixadas de olhos revelam natildeo

tatildeo somente sua falta de posicionamento social visiacuteveis nos mais variados e longiacutenquos

lugares do sertatildeo brasileiro como abrem para o leitor-espectador a compreensatildeo do que seria

um instante uacutenico no qual o Grilo planeja minuciosamente sua estrateacutegia de convencimento

da audiecircncia e de seus acusadores e defensores

O leitor atento logo percebe que seja na comeacutedia aristofacircnica ou no auto de

Suassuna o gesto corresponde a uma determinada atitude do corpo (que incorpora as

determinaccedilotildees histoacuterico-sociais em seu sentido estrito e restrito) que no teatro efetiva-se por

meio de siacutembolos sonoros e duplamente gestuais intenccedilatildeo por meio da qual a palavra se

projeta traduzida gestualmente

Quem natildeo codificou os gestos propostos pelos olhos e cabeccedila de Chicoacute ao

procurar no bolso cigarro para contar agrave audiecircncia seus causos que ganham vida no

imaginaacuterio popular Eacute neste universo miacutemico que convidamos o leitor a beber e entender

como nos garante Stanford (1983) que estes gestos convencionais para traduzir a intenccedilatildeo do

autor executados pelos personagens dotados de sensaccedilotildees e por vezes reveladores de

estrateacutegias moralizantes satildeo atemporais e indispensaacuteveis agrave tessitura da obra para a

compreensatildeo dos que assistem e chegam a vivenciar o encenado

Segundo Jameson (1999) o gestus ao dividir a apreensatildeo do espectador provoca

um conjunto de reflexotildees Vecirc-se algo que ao expressar variadas e contraditoacuterias conotaccedilotildees

induz ao cotejamento agrave contraposiccedilatildeo de leituras O espectador afasta-se do que vecirc para

aproximar-se da vida que vive e a partir daiacute voltar agrave obra Em movimento dialeacutetico pode-se

ver aleacutem do aparentemente apreensiacutevel

[] gestus eacute o operador de um efeito de estranhamento no sentido proacuteprio e em particular que o estranhamento deriva da superposiccedilatildeo de cada um destes significados sobre os demais mostrando-nos por exemplo como um movimento involuntaacuterio de matildeo poderia em certas circunstacircncias [] contar como um fatiacutedico ato histoacuterico com consequumlecircncias seacuterias e irreversiacuteveis [] eacute uma superposiccedilatildeo e um estranhamento que natildeo apenas nos faz entender o elemento narrativo especiacutefico a uma luz nova e transformadora mas tambeacutem muda nossas ideias sobre o que eacute um simples gesto fiacutesico e sobre o que ao mesmo tempo conta como um acontecimento histoacuterico (JAMESON 1999 p110)

70

Responsaacutevel tambeacutem pelo convencimento da audiecircncia e como defende

Pickard-Cambridge (1953) o vestuaacuterio estava a serviccedilo dos gestos desempenhando um

importante papel (se natildeo o mesmo) na determinaccedilatildeo pelo puacuteblico do estatuto social

representado pelas personagens cujas caracteriacutesticas podiam facilmente ser expressas atraveacutes

das cores texturas e designs No entanto eacute impossiacutevel determinar com exatidatildeo os figurinos

usados pelos atores nos primeiros tempos do teatro Este fato encontra comprovaccedilatildeo quando

nos lembramos do Teacutelefo de Acarnenses ou do ldquomendigordquo encenado por Severino para entrar

na cidade sem ser denunciado e que em ambos os casos o vestuaacuterio se caracteriza por uma

maior simplicidade e uma maior aproximaccedilatildeo agrave mendicacircncia

Em Acarnenses no momento em que eacute ameaccedilado pelos indignados habitantes de

Acarnas que constituem o Coro Diceoacutepolis necessita de um discurso forte o suficiente para

convencer aqueles homens das boas razotildees das suas treacuteguas privadas Nada como procurar

Euriacutepides e solicitar-lhe os andrajos que tatildeo bem serviram agrave eloquecircncia de Teacutelefo (vv 393-

479) E diante de uma longa lista de personagens andrajosas Diceoacutepolis encontra o seu

Teacutelefo Disfarce perfeito Eacute evidente aqui a noccedilatildeo de que a personagem dramaacutetica natildeo eacute

apenas um conjunto de palavras proferido agrave sombra de um nome mas eacute uma entidade sujeita a

uma construccedilatildeo que decorre das proacuteprias regras e exigecircncias do drama enquanto espetaacuteculo Acarnenses traz o enredo de acordo com a necessidade de defesa colocando o protagonista em maus lenccediloacuteis por ter feito treacuteguas com o inimigo espartano Teacutelefo era mesmo a personagem que melhor se encaixava como disfarce para a defesa do poeta e do protagonista O Teacutelefo de Aristoacutefanes quebra a ilusatildeo dramaacutetica e o paacutethos de que a trageacutedia depende pois enquanto o Teacutelefo de Euriacutepides natildeo se disfarccedila no palco mas parece entrar disfarccedilado de acordo com Foley (1996 135-7) o espectador de Aristoacutefanes vecirc Diceoacutepolis vestir os trapos de Teacutelefo e comeccedilar a se comportar como um mendigo jaacute na cena de aquisiccedilatildeo dos acessoacuterios do disfarce pelo exagero do detalhe e da atuaccedilatildeo de Diceoacutepolis torna-se demasiadamente realiacutestico e natildeo traacutegico Tambeacutem por expor o mecanismo do ekkyacuteklema (408) no momento em que Diceoacutepolis chama Euriacutepides para fora de casa pode sugerir que a comeacutedia desmascara o gecircnero seacuterio mostrando os bastidores do teatro traacutegico mas acrescentando o mesmo mecanismo a sua proacutepria ilusatildeo cocircmica Se o disfarce era para causar compaixatildeo aos acarnenses como ele poderaacute funcionar sem o paacutethos traacutegico (POMPEU 2004 p 83-98)

A escolha de Diceoacutepolis nos assegura que aliado aos gestos o disfarce traduz-se

na melhor estrateacutegia para convencer seus algozes

JUSTINOacutePOLIS Tu compotildee de peacute pra riba Podenotaacute de peacutes no chatildeo por isso tu compotildee os manco Mas por que tu taacute vestido cumrsquosmulambo da trageacutedia Rocircpas de daacute doacute Por isso tu compotildee os ismoleu Mas te imploro pelos teus joeio Euriacutepides Daacute pra mim um mulambo daquela peccedila antiga

71

Pois tenho que falaacute pro coro umleriado grande Ela traz a morte srsquoeufalaacute mal (vv 410-417)

Elemento indispensaacutevel aos planos do heroacutei camponecircs o disfarce se constituiraacute

como mateacuteria prima da accedilatildeo do protagonista ameaccedilado pelo coro Na cena transcrita a seguir

o proacuteprio Diceoacutepolis revela a importacircncia da indumentaacuteria do mendigo para que o torne mais

digno de pena e possa reforccedilar sua estrateacutegia de convencer o coro

EURIacutePIDES Quais trapos Acaso aqueles com que aqui Eneu O coitado do velho concorria JUSTINOacutePOLIS De Eneu natildeo era era de ocirctro mais miserave EURIacutePIDES Os de Fecircnix o ceguinho JUSTINOacutePOLIS Natildeo de Fecircnix natildeo Havia ocirctro mais miserave que Fecircnix EURIacutePIDES Que mantos esfarrapados o homem me pede Seraacute que falas dos de Filoctetes o mendigo JUSTINOacutePOLIS Dele natildeo de um muito muito mais ismoleu EURIacutePIDES Acaso queres os mantos sujos Que Belerofonte tinha este coxo aqui JUSTINOacutePOLIS Natildeo era Belerofonte Mas tambeacutem o tipo era Mancoismoleuquexudo bom de laacutebia EURIacutePIDES Sei quem eacute o homem o miacutesioTeacutelefo JUSTINOacutePOLIS Eacute isso Teacutelefo Dele me daacute eu te suplico os mulambo EURIacutePIDES Oacute rapaz daacute-lhe os trapos do Teacutelefo Estatildeo por cima dos trapos do Tiestes No meio dos de Ino Aqui tens toma laacute (vv 416-434)

Com base nos estudos de Mate (2011) sobre o gestual percebemos a intensidade

causada por este elemento da cena cocircmica durante todo o Auto da Compadecida nas atitudes

de Joatildeo Grilo no balanccedilar do corpo desconsertado nas matildeos que evidenciam a ansiedade de

vinganccedilas contra seus patrotildees ndash o padeiro e a mulher ndash nas viradas de ombro e cabeccedilas tatildeo

comuns na cena social dos longiacutenquos lugares do Nordeste 21 brasileiro Com isso puacuteblico e

personagem se reconhecem na compreensatildeo do que seria um momento para aleacutem do riso do

luacutedico mas plenamente do social que ali ganha vida e ao mesmo tempo se finda nas accedilotildees e

histoacuterias contadas recuperadas da tradiccedilatildeo oral

21 ALBUQUERQUE JUacuteNIOR Durval Muniz de A invenccedilatildeo do Nordeste e outras artes p 66

72

Eacute este o Nordeste universal de Ariano Suassuna lugar de profunda mistura onde o

profano e o sagrado se completam pelos recortes natildeo somente geograacuteficos mas humanos e

imagiacutesticos que servem de ferramentas para autores que voltam suas literaturas para falar da

condiccedilatildeo humana de sobreviver numa regiatildeo tatildeo contraditoacuteria nas incontaacuteveis Taperoaacute que

pulam dos livros e telas e se misturam agrave nossa realidade de forma tatildeo atualizada e recorrente

O Nordeste natildeo eacute um fato inerte na natureza Natildeo estaacute dado desde sempre Os recortes geograacuteficos as regiotildees satildeo fatos humanos satildeo pedaccedilos de histoacuteria magma de enfrentamentos que se cristalizaram satildeo ilusoacuterios ancoradouros da lava da luta social que um dia veio agrave tona e escorreu sobre este territoacuterio O Nordeste eacute uma espacialidade fundada historicamente originada por uma tradiccedilatildeo de pensamento uma imagiacutestica e textos que lhe deram realidade e presenccedila (ALBUQUERQUE2011 p63)

Portanto eacute nessa fonte muacuteltipla de (in)certezas que cortam o universo miacutemico que

Aristoacutefanes e Suassuna nos convidam a entender e deles beber como nos garante Stanford

(1983 85-87) que os gestos convencionais que abrem espaccedilo para a leitura social do autor

estatildeo perfeitamente ligados ao seu contexto fato que desperta no leitorouvinte a mesma teia

de sentidos e sensaccedilotildees vivenciadas pelo autor em seu jogo de enganar para ganhar como

acontece durante o julgamento de Diceoacutepolis pela assembleia em Acarnenses e com Joatildeo

Grilo e os demais no Auto da Compadecida considerandoeacute claroa troca simboacutelica de

conhecimento sobre o encenado que compreende natildeo soacute oral como tambeacutem o gestualizaacutevel

(in)visiacutevel

Assim como as maacutescaras e os gestos o vestuaacuterio constitui-se como um importante

papel (se natildeo mesmo o mais importante) na determinaccedilatildeo pelo puacuteblico do estatuto social

representado pelas personagens cujas caracteriacutesticas podiam facilmente ser expressas atraveacutes

das cores texturas e designs

Se haacute juiacutezes disfarccedilados de vespas um Teacutelefo aristofacircnico indumentado para o

convencimento dos juiacutezes da assembleia que veem Diceoacutepolis como real e ao mesmo tempo o

ilusoacuterio travestido de mendigo para ganhar natildeo perdatildeo de seus algozes mas apenas justificar

seus benefiacutecios Assim devemos pontuar a emergecircncia literaacuteria de Ariano Suassuna ao

colocar seu Teacutelefo em Taperoaacute quando para natildeo ser reconhecido Severino entra na cidade e

em nosso imaginaacuterio vestido tambeacutem de mendigo Em ambos os casos o poeta representou

seu projeto de enganar o mundo em cena pelo puacuteblico que assiste ao espetaacuteculo preso agrave cena

seguinte que alimentaraacute ao seu imaginaacuterio em consonacircncia com o dito pelo poeta romano

Petrocircnio (c 27-66 AD) Mundus vult decipi ergo decipiatur (O mundo quer ser enganado

portanto que seja enganado)

73

Mesmo sendo impossiacutevel determinar com exatidatildeo os figurinos usados pelos

atores nos primeiros tempos do teatro haacute registros que asseguram que figurinos traacutegicos se

baseavam no manto com que Dioniso era frequentemente representado e no que concerne agrave

comeacutedia o vestuaacuterio tiacutepico usado caracterizava-se pela carga grotescamente acentuada

visiacutevel quer na forma como o corpo aparecia enchumaccedilado quer no uso de uma tuacutenica ndash

chiton ndash justa e curta o suficiente para exibir o falo -phallos

O certo eacute que a vestimenta o corpo e o disfarce existem para o Teatro de uma

forma indissociaacutevel se reconstroem a cada cena e em unidade criam e recriam expectativas e

realidades na audiecircncia que assiste agrave peccedila e a vivencia

74

QUARTO ATO

75

4 O AUTOR E SEUS OUTROS NA COMEacuteDIA E NO AUTO

No Quarto Ato tanto em Acarnenses como no Auto da Compadecida

ressaltamos que a figura controversa do poeta esteve pautada pela multiplicidade apresentada

nas accedilotildees cecircnicas das personagens reforccedilando uma atitude dupla polifocircnica e multifacetada

A verdade eacute que a figura do duplo sempre foi e tem sido desde a Antiguidade

insistentemente tematizada sob a inspiraccedilatildeo da literatura aristofacircnica e mais precisamente nos

seacuteculos XVI e XX nos autos de Gil Vicente e de Ariano Suassuna lugar onde encontrou um

terreno feacutertil e vigoroso por ser o ldquoduplordquo revestido por uma aura de misteacuterio e ao esmo

tempo de moralidade No palco do (in)certo que nos revela o teatro analisamos o tema em

duas obras Acarnenses de Aristoacutefanes ndash versatildeo matuta de Ana Maria Ceacutesar Pompeu ndash e no

Auto da Compadecida de Ariano Suassuna tendo por meta ressaltar a partir da accedilatildeo cecircnica a

presenccedila do poeta e de seu discurso moralizante em defesa da cidade

Como tema relacionado agraves vaacuterias vivecircncias humanas o duplo persiste como

temaacutetica sempre pungente e revisitada A ideia do duplo tem estado presente na literatura

desde a Antiguidade retornando na contemporaneidade com ecos da tradiccedilatildeo claacutessica uma

vez que a humanidade vive cercada de elementos relacionados agrave duplicidade e que remetem a

questotildees acentuadamente marcantes como por exemplo o caraacuteter existencial ligado ao ser

masculinofeminino homemanimal espiacuteritocorpo vidamorte ou aos miacutesticos deusdiabo

anjodemocircnio ceacuteuinferno entre outros Desse modo eacute sabido que a praacutetica e a vivecircncia

dessas dualidades desde os primoacuterdios da civilizaccedilatildeo tem conduzido o homem se

(re)conhecer e debater-se sobre a anguacutestia e as dores do duplo

Segundo Mello (2000) a ideia de duplicidade do Eu eacute um conceito antigo e no

que se refere agrave literatura esse tema desperta algumas questotildees inquietantes capazes de nos

levar a reflexotildees sobre - Quem somos - o que a anguacutestia representa senatildeo a falta ndash ou o que

seremos depois da morte Um exemplo praacutetico da temaacutetica do duplo estaacute presente em

narrativas literaacuterias como Metamorfose de Kafka Noite na Taverna de Aacutelvares de Azevedo

O homem duplicado de Joseacute Saramago Don Quixote de La Mancha de Cervantes ou no

conto ldquoO espelhordquo de Machado de Assis e de forma mais especiacutefica em Acarnenses de

Aristoacutefanes e no Auto da Compadecida de Ariano Suassuna

Sob o vieacutes do duplo na literatura Mello ainda afirma que a noccedilatildeo da outra metade

do sujeito expressa para a literatura um novo pensar sobre a identidade pois o indiviacuteduo pode

reconhecer-se como o proacuteprio do que se trata atraveacutes de representaccedilotildees metafoacutericas assim o

desdobramento do eu adquire vocaccedilatildeo especial na literatura

76

A literatura tem uma vocaccedilatildeo especial para tematizar o duplo jaacute que no ato de criar o autor se desdobra em narrador e atraveacutes de seus heroacuteis libera partes aprisionadas em si mesmo que estatildeo sob a maacutescara de um Eu particular fixo no molde da personalidade (MELLO 2000 p 123)

Para uma maior aproximaccedilatildeo com o tragicocircmico no contexto cecircnico do duplo

retornamos ao teatro que na Greacutecia Antiga surgiu a partir de manifestaccedilotildees a Dioniso deus

do vinho da vegetaccedilatildeo do ecircxtase e das metamorfoses Pouco a pouco os rituais dionisiacuteacos

foram se modificando e se transformando em trageacutedias e comeacutedias Entretanto as diferenccedilas

entre o traacutegico e o cocircmico nunca foram tatildeo bem delineadas

Todavia cabe salientar que o Duplo sempre foi um tema profundamente

instigante da cultura humana e sempre esteve essencialmente relacionado vaacuterias aacutereas do

conhecimento como na Filosofia Psicologia Literatura e na Mitologia atuando como

geradora de ambiguidades Na Antiguidade o Duplo era para a sociedade a representaccedilatildeo ou

o reflexo do idecircntico ou seja prevalecia a ideia de Duplo como o homogecircneo manifestaccedilatildeo

do igual

No entanto natildeo permaneceu dessa maneira tendo com o passar do tempo a

partir do seacuteculo XVIII se tornado heterogecircneo isto eacute o Duplo passa a representar o desigual

ou em outras palavras o oposto em Suassuna o arremedo cocircmico Este fato encontra

comprovaccedilatildeo quando procuramos as diferenccedilas existentes entre o traacutegico e o cocircmico tatildeo bem

delineadas na sociedade Greacutecia Claacutessica

41 O par cocircmico na tradiccedilatildeo literaacuteria em Aristoacutefanes e Ariano Suassuna

Nossa pesquisa parte da hipoacutetese especiacutefica de que a dimensatildeo do duplo como o

outro do poeta em Aristoacutefanes e Ariano Suassuna estaacute estruturada a partir da loacutegica binaacuteria do

par cocircmico um par composto pelas intenccedilotildees das personagem e pelas manobras exercidas

pelo poeta para dizer por traacutes das cortinas o que deve ser de conhecimento de todos

Portanto nos propomos enquanto espectadores traccedilar a partir da comeacutedia e do auto diferentes

gecircneros literaacuterio o estudo do par cocircmico de forma a analisar a constituiccedilatildeo dos outros

poeacuteticos em cada uma das obras do corpus selecionado

Neste esteio haacute de se considerar um estudo significativo sobre o assunto

mencionado no trabalho de Beltrametti (2000) que analisa as caracteriacutesticas dos pares

cocircmicos em Aristoacutefanes nos diaacutelogos platocircnicos e no dramaturgo latino Plauto A autora

define em termos gerais a dupla cocircmica como 1) uma unidade dramaacutetica de dois elementos

77

inseparaacuteveis 2) um pivocirc estrutural 3) um noacute semacircntico que liga linhas mais importantes de

senttido

Da caracterizaccedilatildeo proposta por de Beltrametti redefinimos o par cocircmico

aristofacircnico e suassuniano como um esquema binaacuterio composto de dois poacutelos opostos e

complementares o zombador e o zombado o palhaccedilo e o tolo que compotildeem o noacute semacircntico

da accedilatildeo cecircnica que nas obras que compotildeem o corpus deste trabalho estatildeo ao nosso ver a

serviccedilo da voz autoral

Em primeiro lugar como fio de uma produccedilatildeo anterior reconhecemos os

antecedentes literaacuterios do par cocircmico aristofacircnico na Odisseia de Homero quando encontra o

seu modelo mais relevante no binocircmio de Ulisses e do Ciclope no Canto IX Em segundo

lugar traccedilamos a presenccedila da dupla cocircmica suassuniana no auto influenciado pela produccedilatildeo

grega e pela literatura de Gil Vicente de cuja obra nos ocuparemos no V Ato

Entretanto cabe ressaltar que o objetivo central desta parte do nosso estudo eacute

explorar os traccedilos distintivos da dupla cocircmica nesses diferentes gecircneros tendo como base o

duplo poeacutetico e a maneira pela qual os comedioacutegrafos manipulam as accedilotildees das personagens

para construir a interpretaccedilatildeo do puacuteblico

A comeacutedia Acarnenses a primeira do corpus aristofacircnico conservado coloca em

cena a polecircmica poliacutetica entre uma posiccedilatildeo de guerra que desejava a continuidade da guerra

contra Esparta e a posiccedilatildeo contraacuteria que era impulsionada pelo sentimento de paz defendida a

partir do discurso do heroacutei cocircmico Diceoacutepolis

De maneira estrateacutegica Aristoacutefanes age na peccedila de forma a esclarecer para a

audiecircncia sobre os efeitos negativos para a cidade caso a guerra natildeo tenha um fim fato que se

comprova nos estudos de Zumbrunnen (2004) ao analisar a dimensatildeo poliacutetica e persuasiva da

peccedila categorizando-a em uma linha usual as intenccedilotildees seacuterias para aconselhar e influenciar o

puacuteblico em favor do fim da guerra

Em nossa opiniatildeo e seguindo MacDowell (1995) as comeacutedias de Aristoacutefanes

tinham que ser claras e de faacutecil entretenimento para os atenienses comuns atitude que se

justifica pela posiccedilatildeo contraacuteria do proacuteprio autor em relaccedilatildeo agrave guerra estreitada e assegurada

pelo discurso poliacutetico pronunciado na assembleia

Partimos da hipoacutetese especiacutefica de que o par cocircmico na comeacutedia aristofacircnica

constitui um dos seus principais recursos de persuasatildeo cocircmica uma vez que estaacute associado agraves

expectativas do olhar do puacuteblico na interaccedilatildeo cecircnica ndash que tambeacutem se constitui como apartir

do trabalho proposto pelo autor Isso significa que o esquema binaacuterio defendido por

Beltrametti jaacute referido nesta pesquisa funciona por si soacute como uma interpretaccedilatildeo chave para

78

o puacuteblico os telespectadores podem antecipar que o duplo autoral - Diceoacutepolis - seraacute o

condutor central atacado e ridicularizado ndash zombador e acusador ao mesmo tempo no plano

interno da accedilatildeo dramaacutetica

Eacute importante ressaltar no entanto que tanto a comeacutedia de Aristoacutefanes como no

auto de Ariano Suassuna natildeo apresentam personagens idealizados nem absolutamente

indiferentem ao ridiacuteculo ao bobo ou ao piacutecaro As figuras do heroacutei Diceogravepolis e a do bobo

Joatildeo Grilo natildeo satildeo exceccedilotildees

Obscura como outros siacutembolos e projeccedilotildees coletivas a figura do duplo de

Diceoacutepolis em Acarnenses e de Joatildeo Grilo no Auto da Compadecida eacute cocircmica e criacutetica visto

que satildeo elementos que parodiam o serviccedilo divino cantando errado e fazendo sermotildees

moralizantes travestindo-se usando maacutescaras e passeando com maestria nos mundos popular

e erudito representando coletivos pelo poder da gargalhada do riso seacuterio e da tolice formas

mais sutis para se levar ao conhecimento da audiecircncia o desdobramento da consciecircncia ao

mesmo tempo a do idiota e a do bufatildeo que a utiliza como maacutescara e a coloca em praacutetica na

defesa do cidadatildeo injusticcedilado

Klein (1998) assegura que a dualidade implica certa ambiguidade constitutiva

na figura do heroacutei cocircmico e de seu discurso premissa apresentada em Acarnenses e por

extensatildeo aplicada por noacutes no Auto da Compadecida Em ambas as peccedilas o duplo poeacutetico eacute

estuacutepido e saacutebio grosseiro e sutil escravo das pulsotildees e senhor de si mesmo menos e mais

humano como nos afirma Pompeu (2004) ao citar Beltrametti quando a autora escreve que

no teatro de Aristoacutefanes haacute dinacircmicas de pares que satildeo mais complexas

Ela conclui que o teatro de Aristoacutefanes tem seus duplos que satildeo ldquoesses outros si mesmos que tecircm por funccedilatildeo instaurar uma tensatildeo com o si dos protagonistas das comeacutedias fazendo com que as perspectivas se entrelacem tatildeo estreitamente que acabem por se perderrdquo Beltrametti entende ser o par cocircmico ldquo1 Unidade dramaacutetica de dois elementos indissociaacuteveis 2 Princiacutepio e ao mesmo tempo base estrutural 3 Noacute semacircntico onde se ligam as mais importantes linhas do sentidordquo (POMPEU p12)

Assim percebe-se que tanto no teatro aristofacircnico quanto no teatro popular de

Ariano Suassuna o conhecimento eacute expresso natildeo somente pelas maacutescaras e gestos como

tambeacutem pelas vozes cocircmicas que conduzem a plateia ao conhecimento da condiccedilatildeo humana

tatildeo bem levada a seacuterio pelos autores em seus discursos criacuteticos sendo portanto uma nova

forma de combinar velhos ingredientes como o riso frouxo e estridente educador aacutecido da

sociedade que encontra espaccedilo semacircntico atraveacutes dos outros do poeta que se organizam em

uma nova composiccedilatildeo natildeo soacute marcada pela cena teatral mas pela inteligecircncia de um autor

79

que pensa a sociedade para aleacutem das mazelas das injusticcedilas vivenciadas impostas pelo estado

de guerra ou pela exploraccedilatildeo das instituiccedilotildees sociais

Neste ambiente duplicadopolifocircnico observamos que a atitude educadora do

poeta bem como as accedilotildees das personagens que satildeo formadoras da estrutura do discurso

moralizador e porque natildeo dizer denunciador formado a partir da presenccedila de vaacuterias vozes

como a do proacuteprio poeta Haacute de se pontuar pel afirmativa acima que este fato se deve porque

as ldquovozes autoraisrdquo tecircm sido um tema de grande interesse para muitos estudiosos e para todos

que se deparam com a problemaacutetica da identificaccedilatildeo desta quando articulada agrave formaccedilatildeo dos

duplos dentro da Comeacutedia Antiga ou no Auto

Como o Proacuteprio Ariano Suassuna bem jaacute colocou para a construccedilatildeo do Auto da

Compadecida recorreu a uma tradiccedilatildeo cocircmica bastante viva que eacute a literatura oral e popular

do Nordeste dando-lhe novas formas para preservar a autenticidade Condutor de uma seacuterie

de armaccedilotildees ao personagem Joatildeo Grilo o autor conferiu a tarefa de explorar os efeitos

cocircmicos das cenas A presenccedila de Chicoacute o duplo de Joatildeo Grilo tem a mesma importacircncia

para o desenrolar dos atos visto ser ele o mentor das histoacuterias sem peacute nem cabeccedila que

divertem o puacuteblico a ponto de tambeacutem participar da criaccedilatildeo de comicidade

Para Joatildeo Grilo por estrateacutegia do autor coube uma verdadeira consciecircncia de sua

posiccedilatildeo social e a Chicoacute personagem simploacuterio coube toda inocecircncia e imaginaccedilatildeo

JOAtildeO GRILO Vocecirc eacute tatildeo sem confianccedila CHICOacute Eu sem confianccedila Que eacute isso Joatildeo estaacute me desconhecendo Juro como ele vem Quer benzer o cachorro da mulher para ver se o bicho natildeo morre A dificuldade natildeo eacute ele vir eacute o padre benzer O bispo estaacute aiacute e tenho certeza de que o Padre Joatildeo natildeo vai querer benzer o cachorro JOAtildeO GRILO Natildeo vai benzer Por quecirc Que eacute que um cachorro tem de mais CHICOacute Bom eu digo assim porque sei como esse povo eacute cheio de coisas mas natildeo eacute nada de mais Eu mesmo jaacute tive um cavalo bento JOAtildeO GRILO Que eacute isso Chico Jaacute estou ficando por aqui com suas histoacuterias Eacute sempre uma coisa toda esquisita Quando se pede uma explicaccedilatildeo vem sempre com ldquonatildeo sei soacute sei que foi assimrdquo CHICOacute Mas se eu tive mesmo o cavalo meu filho o que eacute que eu vou fazer Vou mentir dizer que natildeo tive JOAtildeO GRILO Vocecirc vem com uma histoacuteria dessas e depois se queixa porque o povo diz que vocecirc eacute sem confianccedila CHICOacute Eu sem confianccedila Antocircnio Martinho estaacute para dar as provas do que eu digo JOAtildeO GRILO Antocircnio Martinho Faz trecircs anos que ele morreu

80

CHICOacute Mas era vivo quando eu tive o bicho JOAtildeO GRILO Quando vocecirc teve o bicho E foi vocecirc quem pariu o cavalo Chico CHICOacute Eu natildeo Mas do jeito que as coisas vatildeo natildeo me admiro mais de nada No mecircs passado uma mulher teve um na serra do Araripe para os lados do Cearaacute JOAtildeO GRILO Isso eacute coisa de seca Acaba nisso essa fome ningueacutem pode ter menino e haja cavalo no mundo A comida eacute mais barata e eacute coisa que se pode vender Mas seu cavalo como foi CHICOacute Foi uma velha que me vendeu barato porque ia se mudar mas recomendou todo cuidado porque o cavalo era bento E soacute podia ser mesmo porque cavalo bom como aquele eu nunca tinha visto Uma vez corremos atraacutes de uma garrota das seis da manhatilde ateacute agraves seis da tarde sem parar nem um momento eu a cavalo ele a peacute Fui derrubar a novilha jaacute de noitinha mas quando acabei o serviccedilo e enchocalhei ares olhei ao redor e natildeo conhecia o lugar onde estaacutevamos Tomei uma vereda que havia assim e aiacute tangendo o boi JOAtildeO GRILO O boi Natildeo era uma garrota CHICOacute Uma garrota e um boi JOAtildeO GRILO E vocecirc corria atraacutes do dois de uma vez CHICOacute Corria eacute proibido JOAtildeO GRILO Natildeo mas eu me admiro eacute eles correrem tanto tempo juntos sem se apartarem Como foi isso CHICOacute Natildeo sei soacute sei que foi assim Saiacute tangendo os bois e de repente avistei uma cidade Eacute uma histoacuteria que eu natildeo goste nem de contar (SUASSUNA 2005 p25-28)

Segundo Girondon (1960) para compor o Auto da Compadecida Suassuna

inspirou-se naturalmente na comeacutedia tradicional italiana no que concerne a certos

personagens Os personagens como Joatildeo Grilo e Chicoacute emprestam de muacuteltiplas fontes seus

traccedilos os mais divertidos Satildeo os personagens ldquoheroacuteisrdquo os condutores da accedilatildeo os criados os

zanni 22 dos Italianos Mas revestem igualmente caracteriacutesticas proacuteprias dos piacutecaros23

espanhoacuteis aos tricksters 24 ingleses ao renard do fabulaacuterio francecircs medieval e ao Pedro

Malasartes da literatura popular luso-brasileira

22 A definiccedilatildeo de zanni no dicionaacuterio estaacute no popular teatro do seacuteculo XV tipo do villano dos vales de Bergamo aacutespero pobre ignorante Zanni tambeacutem eacute um bufatildeo palhaccedilo In Alessandra Mignatti La maschera e il viaggio sullorigine dello Zanni Bergamo Moretti amp Vitali 2007 23 ABRAMS David amp SUTTON-SMITH Brian loc cit 24 ABRAMS David amp SUTTON-SMITH Brian The development of the trickster in childrenrsquos narratives Journal of American Folklore90 (355) 1977 23 24

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Duplos Joatildeo Grilo e Chicoacute satildeo personagens transbordantes de vitalidade e de

artimanhas dotados de uma imensa energia na afirmaccedilatildeo de suas inclinaccedilotildees e de suas ideias

Entretanto na criaccedilatildeo literaacuteria do auto Ariano Suassuna revela todo o controle das accedilotildees

visto que nenhuma das personagens controla verdadeiramente o jogo pois satildeo arrastados pelo

processo cocircmico que se reproduz a cada cena

Assim como o duplo aristofacircnico o par Joatildeo Grilo e Chicoacute nos leva a perceber

que as paixotildees e ambiccedilotildees humanas provocam accedilotildees inconsequentes das quais os seres natildeo se

apercebem Eacute como se o autor quisesse aliar intimamente a bufonaria e a verdade humana

num todo Joatildeo Grilo eacute fanfarratildeo que se deleita sobre seu talento de conduzir bem suas

intrigas Contudo Joatildeo Grilo eacute o ldquomarginalrdquo inventivo que busca uma revanche pelas afrontas

que seus patrotildees o fazem sofrer

No plano teatral eacute justamente Joatildeo Grilo quem nos diz das intenccedilotildees do poeta

fazer rir o puacuteblico pela zombaria da proacutepria natureza humana cuja credulidade e ingenuidade

nos fazem perder a consciecircncia dos proacuteprios defeitos Atraveacutes do riso o homem toma

consciecircncia dele mesmo mitigando suas dores e angustias existenciais Todavia como poeta

cocircmico Ariano Suassuna tambeacutem quer nos fazer refletir uma vez que se o riso pode ser

determinante nas reaccedilotildees entatildeo eacute o pensamento que pode auxiliar a compreender a verdade

humana que se oculta atraacutes do riso

Joatildeo Grilo eacute o duplo poeacutetico que reverbera o pensamento de Suassuna contra as

injusticcedilas e nos ensina que de nada serve se deixar paralisar pelo medo e pela covardia eacute

preciso enfrentar as dificuldades No momento em que tudo parece perdido em que a

condenaccedilatildeo ao inferno parece inevitaacutevel ele revela uma feacute inalteraacutevel em si mesmo e se

permite um novo desafio Ele diz

Eacute difiacutecil quer dizer sem jeito Sem jeito Sem jeito por quecirc Vocecircs satildeo uns pamonhas qualquer coisinha estatildeo arriando Natildeo vecirc que tiveram tudo na terra Se tivessem tido que aguentar o rojatildeo de Joatildeo Grilo passando fome e comendo macambira na seca garanto que tinham mais coragem Quer ver eu dar um jeito nisso Padre Joatildeo (SUASSUNA 2005 p167)

Para Ariano Suassuna o palco do teatro eacute um lugar maacutegico onde as imagens

concretas se instalam na cena a cena em forma de quadros quadros dinacircmicos vivos Ao

lado destas imagens concretas ele instala imagens metafoacutericas que incorpora agrave realidade

cecircnica conduzindo o espectador para o entendimento de que o mundo encontra-se com o

teatro mas natildeo o mundo linear homogecircneo mas o mundo agraves avessas que soacute o teatro mostra e

que pode dar agrave realidade uma chance de impor-se pela ressonacircncia da gargalhada

82

Por conseguinte eacute notaacutevel contudo observar que o duplo cocircmico

frequentemente utilizado por Aristoacutefanes em suas peccedilas tambeacutem encontra eco na literatura

popular de Suassuna por apresentar uma tessitura textual atravessada pelas muacuteltiplas vozes de

seus personagens constituindo-se em um fenocircmeno recorrente e natural que aponta para a

tensatildeo de uma crise profunda denunciada pelo proacuteprio poeta em seus discursos De iniacutecio

esclarecemos que em toacutepico especiacutefico trataremos da voz cocircmica entretanto utilizaremos do

termo para nos referirmos ao duplo autoral a partir da identificaccedilatildeo da produccedilatildeo discursiva

Educadores e denunciadores tanto Aristoacutefanes quanto Ariano Suassuna

constroem em seus enredos personagens que usam da autoridade conferida pelo poeta para

ressoar seus anseios e indignaccedilotildees atraveacutes do discurso Ao longo das peccedilas eles projetam seus

duplos de forma que suas proacuteprias vozes possam ser ouvidas indiretamente por traacutes de cada

ato levando o puacuteblico a crer que ouve a voz direta do poeta quer atraveacutes do coro do palhaccedilo

coreuta da paraacutebase

Como justificativa do duplo satildeo em personagens como Diceoacutepolis ou Joatildeo Grilo

que realizam a intenccedilatildeo poeacutetica e eacute ressonante pelo riso da mangofa pelos gestos

performaacuteticos pelo arremedo poeacutetico eou pelo outro travestido de a(u)tor accedilotildees

perfeitamente justificaacuteveis visto que o duplo cocircmico passa a ser o noacute semacircntico entre as

culturas grega e popular utilizando fatos do dia a dia como mateacuteria na representaccedilatildeo de algo

identificado pelo autor atraindo consequentemente a atenccedilatildeo do leitor ou espectador para a

obra

A verdade eacute que a conduccedilatildeo cocircmica e moralizante levada ao espectador encontra

espaccedilo feacutertil em ambas as obras traduzida pela accedilatildeo do poeta a partir das vozes de seus

duplos Diceoacutepolis e Joatildeo Grilo figuras conturbadas em franco desacordo com a situaccedilatildeo

promovida pelos legisladores em Atenas ou na pacata cidade de Taperoaacute Relevantes para

todo o enredo esses protagonistas descobrem-se em atitude de perfeita rebeldia conscientes

das mudanccedilas advindas de suas atitudes e como heroacuteis cocircmicos satildeo tambeacutem autores de uma

saiacuteda que nem sempre pode ser compartilhada socialmente ou compreendida

O proacuteprio Suassuna admite a influecircncia muacuteltipla que sofreu de outros estilos e

gecircneros ao apresentar a peccedila por meio dos contadores de histoacuteria do Auto Portuguecircs e do

Cordel como Chicoacute Joatildeo Grilo e o palhaccedilo responsaacuteveis diretos pela orientaccedilatildeo da

audiecircncia

Diante dessa apropriaccedilatildeo e recuperaccedilatildeo dos mecanismos narrativos da Comeacutedia e

de outros gecircneros literaacuterios como o auto que apresentam um caraacuteter atemporal torna-se

importante salientar que aleacutem de construir ldquomuacuteltiplos cocircmicosrdquo ela apresenta personagens

83

natildeo universais como os que satildeo caricaturas de pessoas que viveram em Atenas em um

momento especiacutefico A obra de Aristoacutefanes potildee em cena nomes de figuras eminentes da

Greacutecia antiga como o de poliacuteticos (Cleatildeo e Lacircmaco) pensadores (Soacutecrates) e poetas

(Euriacutepides e Eacutesquilo) A referecircncia a essas personalidades bem como o diaacutelogo com a

mitologia a histoacuteria e o teatro natildeo constituiacutea um problema para a plateia de Aristoacutefanes No

entanto para noacutes leitores de outras geraccedilotildees a percepccedilatildeo de tais referecircncias natildeo eacute assim tatildeo

simples ainda que seja fundamental para a compreensatildeo da comeacutedia

Na comeacutedia aristofacircnica a simples presenccedila de Diceoacutepolis um camponecircs que vai agrave Pnix para falar contra os horrores e caos produzidos pela guerra jaacute se configura como um ato de quebra da normalidade estabelecido pelo autor que autoriza seu duplo agrave defesa da cidade O proacuteprio discurso do personagem que eacute tambeacutem em partes a fala do poeta nos revela uma intenccedilatildeo por traacutes das atitudes daquele que para ter sua paz e celebrar no campo as dioniacutesias rurais eacute marginal no plano da obediecircncia imposta pelos legisladores que lucram com o traacutegico da guerra

Indissociaacuteveis das peccedilas e da proposta autoral as marcas do traacutegico se tornam

modelos de uma tensatildeo que provoca o riso e ficam mais salientes a partir da metade do

Segundo Ato no Auto da Compadecida com a entrada do cangaceiro e de Severino do

Aracaju travestido de mendigo representando o duplo do bem o assassino impiedoso que se

disfarccedila para enganar a cidade a exemplo do que fez Diceoacutepolis em Acarnenses ao vestir-se

de Teacutelefo para tambeacutem burlar a assembleia para justificar seu acordo de paz

Marcados pela polifonia tanto o cangaceiro-mendigo quanto o agricultor-

mendigo se opotildeem aos demais personagens uma vez que entram no jogo cecircnico para roubar a

atenccedilatildeo de seus algozes No Auto da Compadecida Severino acaba provocando a morte de

todos que estatildeo na igreja Em Acarnenses Diceoacutepolis consegue convencer a assembleia Esse

caraacuteter muacuteltiplo torna-se ainda mais evidente na cena do julgamento que abordaremos no V

Ato uma vez que as accedilotildees do poeta e de seus outros cocircmicos tornam-se ainda mais bruscas

pois num inferno tragicocircmico o leitorouvinte pode perceber toda a desconstruccedilatildeo literaacuteria

tanto do espaccedilo ndash inferno ndash quanto das figuras celestiais e demoniacuteacas que sem chegar a um

acordo deixam de certa forma a cabo de espectador o ato de condenar eou absolver as almas

E nesse jogo luacutedico e didaacutetico encenado no abrir e fechar de cortinas que o teatro

aristofacircnicosuassuniano nos proporciona enquanto expectadores haacute uma visatildeo amplamente

criacutetica das accedilotildees humanas seja pelo desejo pessoal pela injuria ou pela proacutepria paroacutedia que

tatildeo bem se propotildee ao convencimento do puacuteblico

84

QUINTO ATO

85

5 O POETA VAI AO INFERNO 51 Quem fala por quem

Como esclarecido anteriormente neste ponto do corpus da tese aprofundaremos

nosso estudo para identificar as ocorrecircncias marcadas pela voz poeacutetica responsaacutevel pelas

vaacuterias atitudes didaacuteticas e criacuteticas indispensaacuteveis ao conhecimento do leitor Para tanto

faremos nossa viagem ao inframundo literaacuterio tomando como base Acarnenses e Ratildes de

Aristoacutefanes o Auto da Compadecida de Ariano Suassuna e o Auto de Barca do Inferno de

Gil Vicente por sua influecircncia na obra suassuniana

Em observaccedilatildeo importante ressalto que em Acarnenses o inferno ao qual nos

referimos seraacute estabelecido pelos horrores trazidos pela guerra cujos motivos seratildeo

questionados por Diceoacutepolis diante da Pnix 25

O caraacuteter didaacutetico do texto eacute expresso pelo proacuteprio autor no verso 499 ldquoO que eacute

justo tambeacutem eacute do conhecimento da comeacutedia Ora o que eu vou dizer pode ser caacuteustico mas

justo eacuterdquo Uma marca deste caraacuteter didaacutetico pode ser visto no discurso e nos nomes de alguns

personagens que tecircm uma significaccedilatildeo alegoacuterica como Diceoacutepolis o personagem principal

significa cidade justa

A peccedila comeccedila com Diceoacutepolis assim como Joatildeo Grilo um homem do campo

forccedilado a migrar para a cidade onde vive em condiccedilotildees precaacuterias qual aguarda a reuniatildeo da

assembleia onde o tema da discussatildeo de um tratado de paz vai ser deliberado que a nosso ver

disfarccedila-se de autor ndash evindencia-se aqui o duplo autoral ndash na Pnix ainda vazia esperando do

iniacutecio da Assembleacuteia Diceopolis explica sua experiecircncia sua dor traacutegica que se refere agrave

anguacutestia vivenciada pela falta de representaccedilatildeo de autores como Eacutesquilo considerado

obsoleto na eacutepoca da guerra com a imposiccedilatildeo da moda de Euriacutepides Na versatildeo matuta de

Pompeu a abertura do proacutelogo se reforccedila pela afirmaccedilatildeo de ali ser o momento no qual o

a(u)tor demonstra as alegrias e tristezas de Diceoacutepolis (Pompeu 2014 p01 vv 9-20)

Mas num eacute que de novo tive uma docirc de trageacutedia Na vez que eu tava abestaiadim esperando Eacutesquilo Aiacute o anunciadocirc disse ldquoTeoacutegnis faz entraacute o teu corordquo Pense numa sacudida grande no meu coraccedilatildeo Mas tive outra alegria na vez que em cima do Mosco Dexiacuteteo entrocirc e cantocirc uma beoacutecia Ainda neste ano quase morri e fiquei foi zaroim vendo

25 A Pnix eacute uma colina na parte interna da cidade de Atenas onde ocorriam as assembleias populares de entatildeo In Moura Filho Lauro Inaacutecio de Transtextualidade e hermenecircutica na comeacutedia de Aristoacutefanes O poeta como mestre da cidade 2012 166f ndash Dissertaccedilatildeo (Mestrado) ndash Universidade Federal do Cearaacute

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Na vez que o Ceacuteris se entortocirc pra tocaacute o hino oacutertio Mas nunca desde que eu tomo banho Meus oacuteio ardero tanto cum sabatildeo Do jeito dacuteagora num dia de assembleia regulaacute De manhatildezinha oacute aiacute esta Pnix sem viva alma O pessoaacute na praccedila tagarela e pra cima e pra baixo

A Pnix sede da Assembleacuteia estava vazia e as pessoas conversando na aacutegora o

que era considera um testemunho da falta de interesse nas assembleias que o poeta atribui agrave

tendecircncia belicista do povo ateniense relutante em votar pela paz

O fato eacute que Aristoacutefanes parece se identificar com o caraacuteter de Diceopolis como

deduzido dos versos 440-445 quando ele se dirige aos espectadores apoacutes citar os versos do

telefone de Euriacutepedes personagem que ele argumentou a favor do fim da guerra diante da

Assembleia (Pompeu 2014 p16)

Eacute que tenho que achaacute que socirc um mendigo hoje Secirc quem socirc natildeo parececirc Os espectadocirc vatildeo sabecirc que socirc eu Mas os coreuta vatildeo ficaacute abestaiadim Pra eu troccedilaacute deles crsquouns palavreado EURIacutePIDES Eu dou pois com uma mente astuta tramas sultilezas

Para o autor em particular esta primeira cena na qual Diceoacutepolis deseja falar

sobre seus motivos para celebrar sua paz revela a importacircncia do campo na cidade de Atenas

O proacuteprio gecircnero da comeacutedia eacute entendido como um fenocircmeno urbano de origem agraacuteria

produto de o mesmo processo de formaccedilatildeo da polis em que este se tornou o centro

organizador do territoacuterio agraacuterio e exploradora de seus produtos

Em geral os problemas da guerra satildeo evidentes para os camponeses uma vez que

os campos aacuteticos foram devastados o que despertou o desejos para receber apoio dos

cavaleiros Assim o inferno promovido pela Guerra do Peloponeso (431-404) trazia era uma

condiccedilatildeo desoladora para a cidade e para o campo Este fato pode ser de acordo com

observaccedilatildeo de Plaacutecido (2007) percebido no discurso proferido por Peacutericles no qual satildeo

destadas as condiccedilotildees histoacutericas que diferenciaram Atenas e Esparta e justificaram taacuteticas

empregadas para a defesa

E se eles atacarem nosso territoacuterio por terra noacutes faremos uma expediccedilatildeo naval contra eles e natildeo seraacute o mesmo que uma parte do Peloponeso seja saqueada e que seja toda a Aacutetica eles natildeo seratildeo capazes de adquirir outras terras sem ter que lutar enquanto noacutes temos terras abundantes tanto nas ilhas como no continente Uma

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grande coisa eacute com efeito o domiacutenio do mar a refletir se focircssemos ilheacuteus quem seria menos inexpugnaacutevel do que noacutes Bem agora eacute necessaacuterio que raciocinando da maneira mais semelhante como se vocecirc fosse um ilheacuteu vocecirc abandone o campo e suas casas e vai defender o mar e a cidade

Diceoacutepolis teria que impressionar os legisladores convececirc-los dos recursos

possiacuteveis para a paz Para tanto ele acusou os priacutetanes confabular para prender Anfiacuteteo um

imortal que ia tente a paz como nos mostra Pompeu (2014) nos versos 56-58

DICEOacutePOLIS Oacute priacutetanes vocecircs tatildeo fazendo mal pra assembleia Arrastando o homem que queria fazecirc treacuteguas Pra noacutes e dependuraacute os escudo

O que se percebe nos versos eacute que um dos temas responsaacuteveis pela situaccedilatildeo de

caos na cidade eacute a manipulaccedilatildeo da democracia do ponto de vista de Aristoacutefanes pelas

autoridades que de alguma forma ganham com acirramento do caraacuteter beacutelico A mesma

reclamaccedilatildeo aparece com respeito aos embaixadores que segundo ele zombam do sofrimento

da cidade conforme os versos 75-76

DICEOacutePOLIS Oacute cidade de Cracircnao Tu num sente natildeo a mangaccedilatildeo dos embaixadocirc

Diceoacutepolis queixa-se do tempo que tem sido incapaz de celebrar a dioniacutesias por

causa das invasotildees espartanas Entretanto ele estaacute convencido de que a paz eacute a garantia das

celebraccedilotildees no campo e para isso decide se livrar da guerra geradora de toda maacute sorte para a

cidade como percebemos pelos o versos (266-267 201-202)

DICEOacutePOLIS Depois de seis ano falo contigo e volto feliz pracuteo meu povoado Eu tando livre da guerra e das coisa ruim Vou eacute entraacute e celebraacute as Dioniacutesia matutardquo

O coro se recusa a ouvir longos discursos como aconteceu com o Soacutecrates

platocircnico no Protaacutegoras ou os espartanos que receberam a embaixada dos jocircnios na eacutepoca da

rebeliatildeo antes das Guerras Meacutedicas

Desta forma o laconicismo se espalha entre os atenienses hostis agraves praacuteticas

retoacutericas da democracia Apesar dos ataques do coro que o acusa de querer concordar com os

inimigos Diceoacutepolis defende que os espartanos natildeo satildeo culpados de tudo

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Diceoacutepolis entatildeo assumindo o risco de morte elabora o discurso do justo do que

possa ser justo para a cidade e denuncia a retoacuterica fraudulenta dos oradores que enganaram o

povo com o sortileacutegio encantatoacuterio de um discurso mentiroso como se percebe nos versos

(vv) 497-507 DICEOacutePOLIS Num vatildeo ficaacute cum raiva homes espectador Se eu sendo um mendigo na frente dos ateniense Teja em tempo de falaacute sobre a cidade fazendo uma comeacutedia Pois o que eacute justo a comeacutedia tambeacutem conhece E eu vou falaacute coisas terriacuteve mas justa Pois desta vez num vai me caluniaacute Cleacuteon que Estrangeiros tando aqui eu falo mal da cidade Eacute que tamo soacute eacute o concurso das Leneia E os estrangeiro num tatildeo aqui nem os imposto 505 Chega nem os aliado vem das cidade Mas tamo soacute noacutes agora soacute os miacutei debuiado (POMPEU 2014 p17)

Na parte final da peccedila Diceoacutepolis estaacute reconciliado com os acarnenses e seraacute

aclamado pelo Coro como vencedor detentor justo do desfrute dos prazeres do mundo

CORO O home vence cum as palavra e convence o povo a mudaacute De ideia sobre as treacutegua Mas vamo eacute tiraacute a roupa pra passaacute pros anapesto Desde quando dirige os coro de comeacutedia o nosso mestre Num foi pra perto dos espectadocirc pra dizecirc como eacute esperto Mas foi caluniado pelos inimigo no mei dos ateniense de decisatildeo-praacute-jaacute-jaacute De fazecirc comeacutedia cum a nossa cidade e maltrataacute o povo 631 Tem que respondecirc agora pros ateniense de decisatildeo-troca-troca Diz o poeta que fez muita coisa boa pra vocecircs Impedindo vocecircs de secirc enganado demais pelas fala dos estrangeiro De gostaacute de secirc adulado e de secirc uns cidadatildeo molenga 635 Antes os embaixadocirc das cidade pra enganaacute vocecircs Primeiro chamava vocecircs de ldquocoroados de violetardquo e era soacute dizecirc isto Que por causa das coroa sentava logo tudo de rabo em peacute E se algueacutem adulasse vocecircs chamando ldquoAtenas lustrosardquo Conseguia era tudo com o ldquolustrosardquo uma qualidade das sardinha Por isso tudo aiacute eacute que ele eacute responsaacuteve de muita coisa boa pra vocecircs E por tecirc mostrado pro povo nas cidade como eacute secirc democraacutetico Por isso mermo eacute que agora trazendo das cidade pra vocecircs o tributo Vatildeo chegaacute doidim pra vecirc o poeta danado de bom Que se arrisca para dizecirc na frente dos ateniense as coisa justa 645 E assim da ousadia dele jaacute chega eacute longe a fama Quando o Rei tava testando a embaixada dos lacedemocircnio Perguntou primeiro qual das duas cidade eacute mais forte em navios Depois pra qual das duas este poeta podia dizecirc mais palavra ruim Pois estes home ele disse satildeo muito mioacute E na guerra vatildeo vencecirc muito mais por tecirc ele como conseieiro 651 Eacute por isso que os lacedemocircnio propotildee pra vocecircs a paz Mas pede Egina e num eacute esta iacutea Que importa prrsquoeles mas eacute pra apanhaacute o tal poeta Vocecircs num deixe nunca ele partir pois vai fazecirc comeacutedia da justiccedila655 E diz que vai ensinaacute pra vocecircs muita coisa boa pra que sejam feliz Sem adulaacute nem prometecirc salaacuterio nem enganaacute nem um tiquim Sem secirc perverso nem enchendo de elogio mas ensinando o mioacute

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Depois disto Cleacuteon pode eacute maquinaacute E arquitetaacute tudo contra mim Pois o bem vai taacute eacute comigo e a justiccedila Vai secirc minha aliada e nunca vatildeo me pegaacute Pra cidade sendo igual a ele Medroso e escuiambado Vem caacute Musa chamuscada (POMPEU vv 624-664 p21)

Tatildeo importante quanto a presenccedila do ator em cena a voz do poeta se concretiza

pela (re)criaccedilatildeo da palavra que aleacutem de ser o territoacuterio comum ao locutor e interlocutor

possui tambeacutem uma dimensatildeo sonora e material ao ser emitida e uma dimensatildeo semacircntica

que se constroacutei e revela-se no exerciacutecio do discurso social carregado de sentido moralizante

levado ao leitorexpectador pelo autor atraveacutes do proacuteprio poeta e de seus outros

Nesta parte do nosso trabalho verificaremos como a voz autoral seraacute levada ao

puacuteblico e quais as reais intenccedilotildees do autor por traacutes desse empreacutestimo que eleva os

personagens fazendo com que eles estejam a serviccedilo da moralidade e da defesa dos anseios da

cidade Assim a transferecircncia ou a reproduccedilatildeo de palavras de uma boca para outra apontada

por Bakhtin (1982) gera mudanccedilas de tonalidade e teraacute intenccedilatildeo e possibilidade de

(re)criaccedilatildeo de uma produccedilatildeo cultural histoacuterica e social dando aos personagens ndash porta-vozes

dos autores uma dimensatildeo coletiva que se estabelece como um viacutenculo entre o poeta e seus

outros duplicados

A ldquovoz do poetardquo torna-se fundante da estrutura do discurso e encontra ressonacircncia

na presenccedila dos vaacuterios ecos irreverentes manifestados pelas personagens que articulados

com a vontade do proacuteprio poeta representam a tomada de consciecircncia e a tentativa de se

libertar da opressatildeo social agravada por situaccedilotildees e discursos tatildeo adversos percebidos na

comeacutedia aristofacircnica e nos autos de Ariano Suassuna e Gil Vicente

Assim acredito que faz-se necessaacuterio ressaltar para uma maior compreensatildeo do

leitor que a noccedilatildeo de voz do poeta na Comeacutedia Antiga e no Auto eacute um tema de interesse

para muitos estudiosos todos que se deparam com a questatildeo reconheceram a problemaacutetica de

identificar a voz do outro poeacutetico seus alcance e praacuteticas sociais

Apesar dessa barreira aparentemente intransponiacutevel para o estudo do voz do

poeta nossa pesquisa se norteou na identificaccedilatildeo dessa voz (audiacutevel ou visiacutevel) nas comeacutedias

de Aristoacutefanes e nos autos de Ariano Suassuna e Gil Vicente explorando algumas maneiras

pelas quais a mera noccedilatildeo da voz do poeta pode ser inestimaacutevel ao analisar a comeacutedia e o auto

enfocando seu uso como uma teacutecnica cocircmica manipulada pelo dramaturgo para a realizaccedilatildeo

de seu propoacutesito que aleacutem do riso eacute a tomada de consciecircncia da plateia

90

Eacute pertinente primeiro especificar o que se entende por voz do poeta nesse

contexto tatildeo distante e ao memso tempo tatildeo proacuteximo que tem como condutor o riso Ao

longo das peccedilas de Aristoacutefanes e dos autos de Ariano Suassuna e Gil Vicente uma voz

poeacutetica pode ser ouvida indiretamente por traacutes do drama revelando o mundo no qual o poeta e

seus duplos estatildeo inseridos

Em momentos cheios de misteacuterios o puacuteblico eacute levado a acreditar que a

personagem constantemente troca de lugar com o poeta seja atraveacutes da revelaccedilatildeo de algo

comum ao entendimento do poeta criacutetico e moralizador como por exemplo em Acarnenses

onde atraveacutes de Diceoacutepolis que autorizado por Aristoacutefanes se traveste de Teacutelefo ganha natildeo

somente a voz para por em praacutetica seu plano de enganar a assembleia ao Teacutelefo constituindo-

se tambeacutem como o outro do outro do poeta cocircmico

No Auto da Compadecida compete aos juizes Jesus Virgem Maria e ao Diabo

pares antagocircnicos a representaccedilatildeo do discurso do poeta No plano dinacircmico do enredo

Ariano Suassuna reservou ao cangaceiro Severeino o travestimento de mendigo ndash seu Teacutelefo ndash

como meio de entrar na cidade sem ser reconhecido A Joatildeo Grilo e Chicoacute criticar enganar os

legisladores e representantes da sociedade pela praacutetica do discurso mentiroso

No Auto da Barca do inferno o poeta se revela assim como nas obras citadas

pelas muacuteltiplas vozes que se renovam a cada cena seja atraveacutes dos embates entre o anjo

condutor da nau que leva ao paraiacuteso e os infratores das morais terrenas ou pelas investidas de

Joanes o parvo que espera ao lado do anjo pelas almas que na Terra o desprezaram dando-

lhes a garantia de contar ao juiz as fraquezas dos embarcantes

As maneiras pelas quais Aristoacutefanes Ariano Suassuna e o proacuteprio Gil Vicente

manipulam a noccedilatildeo da voz do poeta satildeo cruciais para entender e revelar a situaccedilatildeo vivenciada

pelas sociedades postas em cena Numa arquitetura perfeita que mistura versos e denuacutencias

tanto Aristoacutefanes e Arianos Suassuna quanto Gil Vicente propositadamente parecem

convidar o puacuteblico a supor que ele estaacute ouvindo a voz direta do poeta quando de fato estatildeo

ouvindo uma voz construiacuteda pelo poeta que submete o mundo a sua proacutepria organizaccedilatildeo

social atraveacutes da linguagem marcada para expor e instaurar uma realidae imaginaacuteria como

afirma Benveniste (1979) A linguagem reproduz o mundo mas submete-o a sua proacutepria organizaccedilatildeo Satildeo logos discurso e razatildeo ao mesmo tempo que os gregos o viam Eacute pelo proacuteprio fato de ser linguagem articulada constituiacuteda por um arranjo orgacircnico de partes uma classificaccedilatildeo formal de objetos e processos () Eacute de fato na e pela linguagem como um indiviacuteduo e sociedade satildeo mutuamente determinados O homem sempre sentiu - e os poetas cantaram com frequecircncia - o poder fundador da linguagem que

91

estabelece uma realidade imaginaacuteria dupla que anima as coisas inertes faz ver o que ainda natildeo eacute devolve os desaparecidos (Traduccedilatildeo nossa) 26

Zonin (2006) afirma que de um modo significativo o discurso literaacuterio apresenta

elementos linguiacutesticos para a produccedilatildeo de efeitos expressivos importantes de serem

resgatados na leitura por meio da construccedilatildeo interdiscursiva que eacute o lugar de incorporaccedilatildeo de

um discurso em outro instante em que se daacute o funcionamento polifocircnico marcado pelas

escolhas operadas pelo locutor sobre a liacutengua enquanto contrato coletivo defendido por

Bakhtin na obra Problemas da poeacutetica de Dostoievski

Eacute justamente por esse caraacuteter plural no qual natildeo se sabe quem fala por quem que

se apresentam os poetas e suas vozes autorais refletidos nas palavras que ora enunciam pela

boca do outro ldquonas vozes que espelham um eu possuiacutedo por uma alma alheiardquo (BAKHTIN

1990 p31) Com isso autor e ator se misturam num jogo de vozes no interior do discurso

terreno onde nenhuma palavra eacute particular uacutenica ao criador senatildeo tambeacutem repleta da voz do

outro da criatura

No plano teatral os termos morte e inferno nos datildeo a dimensatildeo do alegoacuterico

proposto tanto na Comeacutedia quanto no Auto Lugares (re)criados para a projeccedilatildeo do

pensamento do autor que se manifestaraacute por meio dos discursos oriundos das esferas social

religiosa e poliacutetica que dizem do sistema democraacutetico e que potencializam na atmosfera

romanesca ares inquietantes e contraditoacuterios de uma pluridiscursividade que se circunscreve

em torno da temaacutetica como afirma Zonin (2006)

No campo social das peccedilas a dramatizaccedilatildeo das outras vozes mostra-se pela voz

do poeta que eacute usada para desenvolver a accedilatildeo cecircnica das personagens dando-lhes a

capacidade de fazer ou dizer mais do que deveriam Ao usar a noccedilatildeo da voz do poeta para

permitir que os personagens falem fora dos limites de suas persoas literaacuterias Aristoacutefanes

Ariano Suassuna e Gil Vicente criam personagens que satildeo inerentemente polifocircnicos fato que

encontra jusitificativa na teoria bakhtiniana

As semelhanccedilas entre Diceoacutepolis e a voz do poeta satildeo deliberadamente criadas e

indiscutivelmente emitidas para incentivar a identificaccedilatildeo entre personagem e poeta uma vez

26 El lenguaje reproduce el mundo pero sometieacutendolo a su propia organizacioacuten Es logos discurso y razoacuten al mismo tiempo como lo vieron los griegos Lo es por el hecho mismo de ser lenguaje articulado consistente en una disposicioacuten orgaacutenica de partes en una clasificacioacuten formal de los objetos y los procesos () Es en efecto en y por La lengua como individuo y sociedad se determinan mutuamente El hombre ha sentido siempre - y los poetas a menudo lo han cantado- el poder fundador del lenguaje que instaura una realidad imaginaria doble que anima las cosas inertes hace ver lo que auacuten no es devuelve aquiacute lo desaparecido (1979 p58)

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que Diceoacutepolis em Acarnenses eacute o porta-voz de seu criador assim como satildeo Joatildeo Grilo no

Auto da Compadecida e Joanes (o bobo) no Auto da Barca do inferno

Um caso especiacutefico da natureza polifocircnica reside nas personagens aristofacircnicas que

permeiam algumas de suas obras e apresentam-se em outros lugares como na abertura de Ratildes

onde Dioniso eacute visto como ator espectador e leitor Dioniso

Natildeo me venhas com histoacuterias Porque eu como espectador De cada vez que assisto a habilidades dessas Satildeo anos de vida que me tiram ( Silva 2014 p36-37) Dioniso Pois estava eu na coberta do navio a ler caacute com os meus bototildees a Androcircmeda quando de repente uma nostalgia me bate ao coraccedilatildeo sabes laacute tu de que maneira (Silva 2014 p41)

Aristoacutefanes estaacute claramente pondo em cena a voz do poeta usando-a por sua vez

para dar sonoridade a outras vozes de tal maneira que a voz do poeta logicamente nos

conduziraacute a uma forma de dialogismo cocircmico

A presenccedila do poeta eacute bastante palpaacutevel natildeo necessariamente como um intrusivo eu mas muitas vezes na variedade interna natildeo homogeneizada de recursos linguiacutesticos organizados para dar voz a outras vozes e que pode ser vista como uma habilidade presente nos outros do poeta capacitados para operar de forma critica diante do contexto social (DOBROV 1995 p 35)

A noccedilatildeo da voz do poeta tambeacutem eacute uacutetil para entender as parabases aristofacircnicas

passagens onde o puacuteblico eacute diretamente abordado e o liacuteder do coro frequentemente e

temporariamente assume um papel quase-autorial como na paraacutebase das Nuvens (vv 518-

526) ou na abertura do Auto da Compadecida quando o Palhaccedilo justifica sua escolha pra

representar o poeta que naquele instante eacute tambeacutem chamado pelo autor de ldquoa grande vozrdquo

PARAacuteBASE

Espectadores vou dizer-vos com desassombro a verdade e que Dioniso que me criou natildeo deixe mentir Bem eu poderia ter vencido e ser considerado um talento no momento em que por vos ter na conta de espectadores de bom gosto vos dei a provar antes de quaisquer outros a mais perfeita das minhas comeacutedias que me custou os olhos da cara de resto Apesar disso vi-me batido e afastado por rivais casca grossa sem o ter merecido E eacute a vocecircs a gente culta por quem empreendi tatildeo dura tarefa que eu censuro (OLIVEIRA e SILVA 1991 p 73)

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PALHACcedilO Ao escrever esta peccedila onde combate o mundanismo praga de sua igreja o autor quis ser representado por um palhaccedilo para indicar que sabe mais do que ningueacutem que sua alma eacute um velho catre cheio de insensatez e de soleacutercia Ele natildeo tinha o direito de tocar nesse tema mas ousou fazecirc-lo baseado no espiacuterito popular de sua gente porque acredita que esse povo sofre eacute um povo salvo e tem direito a certas intimidades (SUASSUNA 2005 p23)

Na abertura da peccedila Auto da Compadecida Ariano Suassuna de pronto jaacute adverte

ao leitor sobre o que ele testemunharaacute sobre sua preferecircncia de ser um porta-voz palhaccedilo que

entende e seraacute ao longo da explanaccedilatildeo a voz do poeta

PALHACcedilO grande voz Auto da Compadecida O julgamento de alguns canalhas entre os quais um sacristatildeo um padre e um bispo para exerciacutecio da moralidade (SUASSUNA 2005 p15)

Sobre a passagem acima e tomando como premissa a teoria de Bakhtin (1990)

percebemos que ele (o autor) eacute a concentraccedilatildeo de vozes multidiscursivas dentre as quais deve

ressoar a sua voz As vozes autorizadas criam o fundo necessaacuterio para a voz do poeta fora do

qual satildeo imperceptiacuteveis natildeo ressoam E analisando as obras propostas no presente trabalho

devemos partir do princiacutepio que ambos os textos estatildeo permeados de outros textos e vozes

ecoantes natildeo somente a do autor mas outras vozes como daqueles que desejam a paz diante

da situaccedilatildeo de guerra ou daqueles que usam dos mais variados meacutetodos de sobrevivecircncia

frente as dificuldades vividas em suas relaccedilotildees e (con)textos sociais no sertatildeo apropriando-se

da vez e da voz do outro em diaacutelogos que por vezes satildeo quase inaudiacuteveis

De acordo com Barros (1999) nessa interaccedilatildeo promovida pelo discurso social

nenhuma palavra eacute nossa pois ela traz a perspectiva de outra voz e por meio dela e de seus

ecos(duplos) contribuiacutemos na construccedilatildeo da sociedade Assim tanto o texto aristofacircnico

quanto o suassuniano marcam a formaccedilatildeo de vaacuterios diaacutelogos de cruzamento de vozes e de

aparecimentos de duplos que se originaram em praacuteticas de linguagem diversificada

socialmente essas vozes que podem tambeacutem ter origem no gestual de cada personagem por

sua vez polemizam as accedilotildees executadas em cena ou se completam ou respondem umas agraves

outras e aos desejos de seus a(u)tores

Os textos satildeo dialoacutegicos porque resultam do embate de muitas vozes sociais podem no entanto produzir efeitos de polifonia quando essas vozes ou algumas delas deixam-se escutar ou de monofonia quando o diaacutelogo eacute mascarado e uma voz apenas faz-se ouvir (BARROS 1999 p06)

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Seguindo essa perspectiva entendemos a proposta de Barros (1999) ao afirmar

que todo texto eacute ldquotecido polifonicamente por fios dialoacutegicos de vozes que polemizam entre si

se completam ou respondem umas as outrasrdquo o que mostra que os textos escolhidos por mais

atemporais que possam parecer podem ser entrecruzados por outros textos e que se interligam

em uma ou mais vozes no mesmo texto ou seja a voz do autor interligando-se ou mesclando-

se com a voz do outro ou dos seus outros Tanto as palavras quanto agraves ideias que vecircm de outrem como condiccedilatildeo discursiva tecem o discurso individual de forma que as vozes ndash elaboradas citadas assimiladas ou simplesmente mascaradas ndash interpenetram-se de maneira a fazer-se ouvir ou a ficar nas sombras autoritaacuterias de um discurso social monologizado (BRAIT 1999 p 1415)

Assim fruto do ataque direto e pessoal tiacutepico da tonalidade vigorosa e didaacutectica

da comeacutedia aristofacircnicas a voz constitui-se como arma contra a animosidade de concorrentes

e rivais como forma de apresentar elementos indispensaacuteveis agrave educaccedilatildeo da cidade

Pretendendo obter a confianccedila do grande puacuteblico principalmente composto de verdadeiros acarnenses pois ele se disfarccedila de Teacutelefo diante dos espectadores tomando-os como cuacutemplices contra os supostos acarnenses do coro Diceoacutepolis se dirige ao puacuteblico e natildeo ao coro falando como mendigo e como poeta cocircmico (POMPEU p 30)

DICEOacutePOLIS Do mei de noacutes uns home ndash num tocirc falando da cidade Vecirc se lembram disso que num tocirc falando da cidade - Mas uns tipim imprestaacuteve de qualidade ruacuteim Sem valocirc da pioacute marca e estrangeirado hellip (ARISTOacuteFANES Acarnenses vv 515-518 ndash em versatildeo matuta para os personagens do campo POMPEU 2014)

A voz do poeta na comeacutedia de Aristoacutefanes confere ao personagem dando-lhe a

autoridade pretendida e a capacidade de fazer ou dizer mais do que o esperado A voz poeacutetica

em sua forccedila tambeacutem permite que Aristoacutefanes possa parodiar outras vozes para efeito cocircmico

criando um discurso carregado de ironia respaldado na capacidade de fazer dizer ou saber

algo que vai aleacutem da audiecircncia e que pode ser indispensaacutevel agrave Cidade

Ao usar a noccedilatildeo da voz do poeta para permitir que Diceoacutepolis fale fora dos limites

literaacuterio Aristoacutefanes cria um personagem inerentemente polifocircnico visto que assume

muacuteltiplas vozes e personagens como o Teacutelefo dramaacutetico de Euriacutepedes Diceoacutepolis passa

explicitamente a representar a voz direta do dramaturgo pondo em cena as palavras que saem

diretamente da boca de Aristoacutefanes

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Diceoacutepolis eacute a voz e a forccedila do proacuteprio argumento aristofacircnico uma vez que ele

proacuteprio se identifica como um poeta cocircmico representando tambeacutem qualquer poeta que

sofreu ataques poliacuteticos incomodado pela exploraccedilatildeo da Cidade pois ldquomesmo a comeacutedia

sabe alguma coisa sobre a verdade e a justiccedila Ao atribuir o caraacuteter muacuteltiplo a Diceoacutepolis

Aristoacutefanes acentua ainda mais seu desejo de dizer aleacutem do que a cidade esperava atraveacutes de

seu porta-voz um roceiro o anti-heroacutei conhecedor das artimanhas dos legisladores que

exploram a Cidade elemento responsaacutevel pela dinacircmica central da comeacutedia pois leva ao

puacuteblico por meio do risiacutevel as verdades necessaacuterias ao discurso justo incentivando-o ou ao

proacuteprio leitor a questionar a validade e a veracidade do jogo diante deles

Para Bergson (1987) o riso natildeo eacute apenas uma reprimenda social mas vem de um

desajuste entre a natureza primeira do homem (que eacute mutaacutevel) e uma espeacutecie de rigidez e

mecanizaccedilatildeo Essa rigidez se manifestaria tanto no niacutevel fiacutesico como no caraacuteter ou seja no

acircmbito moral e psicoloacutegico caracteriacutesticas exploradas no personagem Joatildeo Grilo onde o

risiacutevel e o cocircmico seriam uma forma de desfazer a rigidez social na tentativa de evidenciaacute-la

corrigi-la Para Suassuna (2007) o riso eacute como uma espeacutecie de puniccedilatildeo que a sociedade

confere a algo que a ameaccedila diz em seu livro Iniciaccedilatildeo agrave Esteacutetica

Desta forma o risiacutevel estaacute na inadequaccedilatildeo do comportamento humano

fiacutesicopsicoloacutegico uma vez que excede a normalidade sem causas traacutegicas Suassuna no Auto

da Compadecida nos deixa claro que ali o cocircmico surge como um alerta sobre algo que natildeo

estaacute funcionando bem nas sociedades sendo tambeacutem um instrumento revelador dos

problemas da sociedade como um todo

Atitude bem semelhante eacute do Auto que no uacuteltimo paraacutegrafo fala no Auto da

Compadecida por possuir um enredo que proporciona ao leitorespectador o riso e a dor

numa mistura de trageacutedia e comeacutedia por meio da ldquopalavrardquo (voz do poeta) que eacute dotada de

forccedila e promove sempre encontros com o leitor-ouvinte ou ouvinte-leitor levando-o a

estabelecer uma imensa teia de significados e suas relaccedilotildees reconhecimentos e interaccedilotildees no

mundo-palco de Ariano Suassuna onde ele proacuteprio cria (re)vecirc conceitos recria imagens se

subverte ao ordenado na ressonacircncia das vozes que encontram em Joatildeo Grilo o canal para

torna-se real como afirma Zumthor (2014)

A voz eacute uma subversatildeo ou uma ruptura da clausura do corpo Mas ela atravessa o limite do corpo sem rompecirc-lo ela significa o lugar de um sujeito que natildeo se reduz agrave localizaccedilatildeo pessoal Nesse sentido a voz desaloja o homem de seu corpo Enquanto falo minha voz me faz habitar a minha linguagem Ao mesmo tempo me revela um limite e me libera dele (ZUMTHOR p 81)

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[] Outra tambeacutem importante para nosso raciociacutenio aqui eacute a seguinte Escutar um outro eacute ouvir no silecircncio de si mesmo sua voz que vem de outra parte Essa voz dirigindo-se a mim exige de mim uma atenccedilatildeo que se torna meu lugar pelo tempo dessa escuta Essas palavras natildeo definiriam igualmente bem o fato poeacutetico (ZUMTHOR p 81)

Assim como feito por Diceoacutepolis a palavra-forccedila eacute tomada por Joatildeo Grilo

quando da sua chegada ao que seria a entrada do inferno Assim como um dia os homens

roubaram o fogo dos deuses Joatildeo Grilo a voz dupla do poeta detentor da fala das camadas

populares apropria-se do discurso dos poderosos a fim de que fundidos os dois surja um

texto intenso imbuiacutedo de criacuteticas sociais permeado de escaacuternio e desejo de sobrevivecircncia

No contexto de tensatildeo em que eacute apresentado Joatildeo Grilo eacute convertido a um anti-

heroacutei oprimido e no plano da eacutetica eacute um legiacutetimo malandro que usa do artifiacutecio da

malandragem como uma ferramenta autecircntica de sobrevivecircncia e de luta frente agraves

adversidades sobretudo agravequelas impostas pelos que deteacutem o poder A malandragem portanto

no seu entender natildeo constitui um problema ou pecado grave pois natildeo eacute utilizada para

engrandecimento proacuteprio ou para ascensatildeo econocircmica mas sim para a promoccedilatildeo da justiccedila

social Como podemos ler nos versos do cordelista Paulo Nunes Batista Grilo pra tudo no mundo Tinha uma definiccedilatildeo A sua filosofia Sempre lhe dava razatildeo Pois seguia este ditado Que diz ndash ldquoEstaacute perdoado Ladratildeo que rouba ladratildeordquo Vivendo embora do crime Joatildeo Grilo era caridoso Auxiliava a pobreza Soacute furtava o poderoso Roubava sempre dos nobres Matava a fome dos pobres Mostrando ser generoso (BATISTA 1958 p 28)

Como personagens piacutecaros tanto Joatildeo Grilo como Diceoacutepolis representam os

heroacuteis das obras mas suas construccedilotildees e formaccedilotildees se datildeo agraves avessas uma vez que suas

caracteriacutesticas inversas agrave de um heroacutei dispotildeem de ser aventureiro materialista desleal e de

caraacuteter duvidoso O personagem piacutecaro apresenta algumas caracteriacutesticas singulares sempre estaacute com fome nunca se sente completamente seguro Eacute o mais mortal dos mortais Aparenta natildeo ter princiacutepios morais Aparenta cortejar os poderosos mas acaba por desnudaacute-los como que involuntariamente desmascarando-lhes as franquezas Observa-se que o personagem piacutecaro se envolve em aventuras particulares que representam com fidelidade a realidade da sua condiccedilatildeo social Desta forma revela sua opiniatildeo e suas ideias desafiando as regras sociais (KOTHE 1985 p49)

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As accedilotildees das personagens tanto no Auto quanto na Comeacutedia constituem-se num

instante de ressonacircncia no qual o eu autoral passa a ser polifocircnico se projeta no outro que

tambeacutem se projeta no eu do autor demonstrando ter total conhecimento da realidade numa

dimensatildeo sonora e material pelo exerciacutecio do discurso revelador levado ao leitorexpectador

pelo autor atraveacutes de suas personagens Essa realidade se concretiza pela transferecircncia de

palavras de uma boca para outra como apontada por Bakhtin com forccedila e capacidade de

promover mudanccedilas de tonalidade e de intenccedilatildeo discursiva

Essa atitude representa uma possibilidade de (re)criaccedilatildeo de uma produccedilatildeo

cultural histoacuterica e social que supera a proacutepria noccedilatildeo de oralidade que emerge como porta-

voz de uma dimensatildeo coletiva na qual a singularidade de cada sujeito falante lhe outorga ou

recebe autoridade para agir criando um conjunto de vozes polivalentes pelas quais podemos

afirmar que o narrador passa a atuar como um poeta da voz cuja poeacutetica se inspira nas praacuteticas

sociais e nas vivecircncias de seus atores

511 Ao Hades e com riso frouxo

Em trecircs das peccedilas citadas haacute uma cena de julgamento na qual o poeta moraliza a

accedilatildeo das instituiccedilotildees bem como dos legisladores acontece no inferno ou no Hades ndash Ratildes ndash

Auto da Compadecida e Auto da Barca do Inferno a exceccedilatildeo de Acarnenses cujo cenaacuterio eacute a

Assembleia

Em Ratildes que foi presentada nas Leneias de 405 aC Aristoacutefanes lanccedila matildeo de

artifiacutecios em sua maioria cocircmicos para trazer agrave tona discussotildees literaacuterias da eacutepoca bem como

sua criacutetica social e seu discurso moralizante atraveacutes do qual resgatando-se o poeta tambeacutem

salva a cidade Como bem afirmava Ariano Suassuna a Comeacutedia Grega e o Auto Vicentino o

abasteceram de vaacuterias composiccedilotildees e em Ratildes especificamente observamos que a estrutura

serviu de base para a construccedilatildeo da cena do julgamento tanto em Suassuna quanto em Gil

Vicente

Segundo KOPELMAN (2012 p) Depois de quase um seacuteculo de apogeu o ciclo traacutegico se encerra com a morte de Soacutefocles e Euriacutepides Enquanto instituiccedilatildeo social da cidade ateniense o drama traacutegico reflete os embates e os questionamentos da polis Objetivando o espaccedilo cecircnico o drama eacute avaliado e legitimado pelos cidadatildeos nos Festivais que patrocinam as representaccedilotildees

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Em Ratildes Aristoacutefanes nos apresenta o cenaacuterio da descida para o infernoHades de um

Dioniso bufatildeo em busca de Euriacutepides como forma de tambeacutem reviver a trageacutedia Entretanto

reforccedila com isso a paroacutedia da descida de Heacutercules

O argumento da peccedila pode ser resumido da seguinte forma Dioniso desce ao Hades

para encontrar Euriacutepides morto recentemente e trazecirc-lo para a terra Atenas estaacute com falta de

poetas e Dioniso estaacute convencido de que Euriacutepides eacute o homem certo Na teatralidade

apresentada o proacuteprio deus eacute uma figura cocircmica eacute acompanhado por um escravo cocircmico e

tenta se dar ares de grandeza no mundo subterracircneo

Depois de uma viagem perigosa ao submundo Dioniso estaacute laacute com uma crise

literaacuteria em pleno andamento Euriacutepides derrotou Eacutesquilo do trono da poesia no Hades e uma

grande discussatildeo surgiu sobre ele Nesta reside o principal da accedilatildeo na peccedila Dioniso eacute

chamado para julgar os dois poetas e a disputa que eacute o cerne da comeacutedia eacute a competiccedilatildeo de

Eacutesquilo e Euriacutepides pelo trono da poesia traacutegica no Hades

Em primeiro lugar para compreender a importacircncia do agoacuten entre Eacutesquilo e

Euriacutepides dois poetas traacutegicos da polis temos que voltar novamente ao contexto do seacuteculo V

a C de Atenas A justificativa do agoacuten encontra-se na situaccedilatildeo da polis a decadecircncia de

Atenas e a ausecircncia de bons poetas jaacute que todos morreram Assim Dioniso possiacutevel alter ego

do proacuteprio Aristoacutefanes quer remediar a situaccedilatildeo entatildeo ele vai para o infernoHades

convencido a trazer de laacute Euriacutepides fazendo do agoacuten uma parte inesperada da peccedila

Aristoacutefanes apresenta de forma brilhante como personagem o proacuteprio Dioniso um

deus meio idiotizado completamente medroso mentiroso e totalmente engraccedilado um

viajante vestido de amarelo de botas mas estranhamente revestido com a pele do leatildeo de

Nemeia e empunhando um cacete como o mais macho dos heroacuteis seu irmatildeo Heacutercules

Para dar iniacutecio a sua empreitada ao lado de seu escravo Xacircntias rumo ao Hades

Dioniso procura por Heacutercules para que este o informe por qual caminho ele poderaacute seguir ateacute

sua chegada ao inferno visto que o proacuteprio Heacutercules jaacute havia realizado o mesmo percurso

No proacutelogo Dioniso explica o motivo da sua viagem Pois tal eacute o desejo que me consome por Euriacutepides (v 66)

Dioniso

Sinto falta de um poeta de talento Eacute que uns jaacute natildeo existem e os que existem natildeo

prestam (vv 72-72)

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Nos versos seguintes Dioniso prepara com antecedecircncia uma funccedilatildeo de juiz uma

vez que emite sua opiniatildeo sobre os outros poetas Iofonte Agatatildeo Xecircnocles Soacutefocles

Euriacutepides e os jovens poetas (vv78-83) Dioniso Isso natildeo pelo menos antes de tomar Iofonte agrave parte a soacutes longe do Soacutefocles para testar de que eacute que ele eacute capaz Aliaacutes o Euriacutepides que eacute um aldrabatildeo haacute-de dar por paus e por pedras para se raspar comigo para aqui Enquanto o outro que caacute era um bonacheiratildeo haacute-de continuar laacute em baixo o mesmo bonacheiratildeo

Como qualquer heroacutei eacutepico Dioniso na peccedila eacute apresentado como um viajante eacutepico

capaz de feitos heroacuteicos seguido de seu escravo e companheiro Xacircntias que protagonizaraacute ao

lado de seu mestre boa parte das cenas cocircmicas como nos coloca Silva (2014 p 34-39) ao

descrever a cena na qual Dioniso a peacute estaacute acompanhado de um escravo Xacircntias montado

num burro e carregando ao ombro as bagagens vai agrave procura de Heacutercules

Xacircntias Oacute patratildeo e se eu mandasse uma daquelas bocas do costume que sempre fazem rir os espectadores Dioniso Agrave vontadinha a que quiseres menos lsquoestou apertadorsquo Dessa poupa-nos que ateacute jaacute daacute voacutemitos Xacircntias E se fosse entatildeo uma outra daquelas piadas finas Dioniso Desde que natildeo seja lsquoestou agrave rascarsquo Xacircntias Qual haacute-de ser entatildeo Uma de escachar a rir Dioniso Tudo bem vai em frente Haacute soacute aquela famosa livra-te de me vires para caacute com essa Xacircntias Ah natildeo nem por sombras Este que aqui tenho natildeo bolas Quem o carrega sou eu Dioniso Mas carregas como se tu proacuteprio eacutes carregado por outro Xacircntias Tanto natildeo sei Agora que aqui o meu ombro estaacute apertadinho de todo laacute isso estaacute Dioniso Pois entatildeo jaacute que dizes que o burro te natildeo serve para nada eacute a tua vez de seres tu a pegar no burro e a carregar com ele Dioniso Salta daiacute malandro Que depois desta caminhada caacute estou eu diante da porta aonde para comeccedilar me propunha vir Ei moccedilo Oacute moccedilo Moccedilo

100

Heacutercules Quem eacute Seja laacute quem for mandou-se aos coices agrave porta que nem um centauro Ei Explica-me laacute Que raio de ideia vem a ser esta Dioniso Oacute amigo chega aqui Preciso de falar contigo Heacutercules Mas eacute que natildeo consigo espantar o riso ao ver uma pele de leatildeo por cima de um vestido amarelo Que ideia se te meteu na cabeccedila O que fazem juntos um par de botas de senhora e um cacete8 Por que paragens tens tu andado Dioniso Andei embarcado agraves ordens do Cliacutestenes Heacutercules E bateste-te no combate naval Dioniso Bati pois Navios inimigos metemos no fundo uma boa duacutezia deles Heacutercules Vocecircs os dois Dioniso Sim claro Xacircntias Esta ateacute me deixou de olhos arregalados Dioniso Pois estava eu na coberta do navio a ler caacute com os meus bototildees a Androacutemeda quando de repente uma nostalgia me bate ao coraccedilatildeo sabes laacute tu de que maneira Heacutercules Uma nostalgia te bate ao coraccedilatildeo De que dimensatildeo Dioniso Coisa pequena pela medida de Moacutelon Heacutercules Por uma mulher Dioniso Nada disso Heacutercules Por um rapazinho entatildeo Dioniso Nem pensar Heacutercules Por um homem se calhar Dioniso Ai ai Heacutercules Com que entatildeo de panelinha com o Cliacutestenes hem Dioniso Deixa-te de gozo mano que quem se vecirc nelas sou eu Tal eacute a paixatildeo que me devora Heacutercules Paixatildeo Que paixatildeo maninho Dioniso Nem te sei dizer Mas enfm vou tentar explicar-ta por analogia Jaacute alguma vez sentiste assim um desejo suacutebito de sopa Heacutercules

101

De sopa Bolas mil vezes na vida Dioniso E entatildeo faccedilo-me entender ou eacute preciso mais explicaccedilotildees Heacutercules Quanto agrave sopa natildeo Percebi perfeitamente Dioniso Pois tal eacute o desejo que me consome por Euriacutepides Heacutercules Como assim Por Euriacutepides o falecido Dioniso E natildeo haacute quem me tire da cabeccedila a ideia de ir agrave procura dele Heacutercules O quecirc Ao Hades laacute em baixo Dioniso Sim pois e mais abaixo ainda se um tal lugar existir Heacutercules Com que intenccedilatildeo Dioniso Sinto falta de um poeta de talento Eacute que uns jaacute natildeo existem e os que existem natildeo prestam Heacutercules Como assim Entatildeo o Iofonte natildeo estaacute vivo Dioniso Essa eacute ateacute a uacutenica coisa de jeito que por aiacute anda e mesmo assim tenho duacutevidas Porque ateacute sobre esse assunto me falta saber bem o que se passa Heacutercules E porque natildeo trazeres Soacutefocles de preferecircncia a Euriacutepides se tens de trazer algueacutem laacute de baixo Dioniso Isso natildeo pelo menos antes de tomar Iofonte agrave parte a soacutes longe do Soacutefocles para testar de que eacute que ele eacute capaz Aliaacutes o Euriacutepides que eacute um aldrabatildeo haacute-de dar por paus e por pedras para se raspar comigo para aqui Enquanto o outro que caacute era um bonacheiratildeo haacute-de continuar laacute em baixo o mesmo bonacheiratildeo Heacutercules E o Aacutegaton por onde anda ele Dioniso Pocircs-se a mexer foi um ar que lhe deu Um bom poeta que deixou saudades nos amiguinhos dele Heacutercules Para que canto do mundo coitado Heacutercules Ora deixa caacute ver por qual deles hei-de comeccedilar Qual haacute-de ser Haacute um que parte da corda e do banco Enforca-te Dioniso Vira essa boca para laacute Eacute um sufoco esse que dizes Heacutercules Haacute tambeacutem um outro um atalho a direito pisado que eacute um mimo que passa pelo almofariz Dioniso Eacute a cicuta que queres dizer

102

Heacutercules Ora nem mais Dioniso Esse eacute frio de cortar agrave faca mesmo Faz logo enregelar as canelas Heacutercules Queres que te diga um raacutepido e sempre a descer Dioniso Corsquoos diabos esse sim que como andarilho sou um desastre Heacutercules Pois bem vai ateacute ao Ceramico Dioniso E depois Heacutercules Sobe agravequela torre alta que laacute estaacute Dioniso E o que eacute que eu faccedilo Heacutercules Assiste laacute do alto agrave largada da corrida dos archotes E depois quando o puacuteblico gritar lsquopartidarsquo tu partes laacute de cima tambeacutem Dioniso Para onde Heacutercules Caacute para baixo Dioniso Assim dou mas eacute cabo dos miolos Natildeo natildeo vou seguir por esse caminho de que falas Heacutercules Entatildeo qual haacute-de ser Dioniso Aquele mesmo por onde tambeacutem tu outrora laacute chegaste Heacutercules Soacute que esse eacute uma maccediladoria de marinharia Para comeccedilar vais dar a um lago enorme sem fundo Dioniso E depois como eacute que eu atravesso Heacutercules Num barquinho assim pequenininho um velho barqueiro vai-te atravessar por dois oacutebolos a passagem

Ao seguir as informaccedilotildees dadas por Heacutercules Dioniso encontra o barqueiro

Caronte que cobra dois oacutebolos para atravessaacute-lo pelo pacircntano Durante esta travessia Dioniso

discute com as Ratildes que habitam o ambiente porque o barulho recorrente de seus

brequequequequex coax coax o deixam irritado

No inferno Dioniso eacute ameaccedilado de morte pelo Eacuteaco (juiz dos mortos) que o

confunde com Heacutercules jaacute que Dioniso estava disfarccedilado e o acusa-o de ter levado o catildeo de

guarda do inferno(vv605-608)

103

Eacuteaco Prendam-mo depressa este ladratildeo de catildees para que leve o corretivo que merece Vamos despachem-se Dioniso A coisa estaacute torta para algueacutem Xacircntias Vatildeo agravequela parte Alto laacute Eacuteaco Ai eacute queres luta Oacute Camelo oacute Macacatildeo oacute Peidoso Cheguem caacute e faccedilam frente a este gajo

Assim tem-se iniacutecio a algo que seria o agoacuten entre os poetas Euriacutepides e Eacutesquilo (vv 860-870)

Euriacutepides Pois por minha parte estou pronto ndash e longe de mim escusar-me ndash a morder ou a ser mordido primeiro como ele quiser nos diaacutelogos nos cantos nas fibras nevraacutelgicas da trageacutedia e ndash caramba ndash ateacute no Peleu no Eacuteolo no Meleagro e principalmente no Teacutelefo Dioniso (a Eacutesquilo) E tu o que pretendes fazer Diz laacute Eacutesquilo Eacutesquilo O que eu queria era natildeo estar metido nesta discussatildeo Porque um concurso entre noacutes os dois nunca eacute imparcial Dioniso Como assim Eacutesquilo Eacute que a minha poesia natildeo morreu comigo enquanto a dele bateu as botas com ele logo ele pode recitaacute-la aqui Mas enfim jaacute que assim o entendes natildeo haacute outra soluccedilatildeo Dioniso O incenso e o fogo vamos laacute Quero fazer uma prece antes de me assumir como aacuterbitro das vossas subtilezas para que atue com toda a competecircncia de que for capaz E vocecircs acompanhem-me com um canto agraves Musas A entrada do Coro acirra a tomada de decisatildeo por parte de Dioniso (vv875) Coro Donzelas nove filhas de Zeus Musas divinas que do alto olhais os espiacuteritos subtis e engenhosos dos poetas cinzeladores de sentenccedilas agora que eles se confrontam com golpes estudados e se digladiam com argumentos sinuosos observai a potecircncia 880 destas duas bocas tatildeo haacutebeis em produzir palavreado e serradura de versos Pois estaacute iminente o grande concurso do talento Dioniso (a ambos os poetas) (vv 885 - 895) Faccedilam tambeacutem a vossa oraccedilatildeo vocecircs os dois antes de recitarem os vossos versos Eacutesquilo Demeacuteter tu que alimentaste o meu espiacuterito faz com que eu seja digno dos teus misteacuterios Dioniso (a Euriacutepides) Agora tu toma laacute tambeacutem o incenso e faz uma oferenda Euriacutepides Natildeo obrigado Satildeo outros os deuses da minha devoccedilatildeo Dioniso Deuses exclusivos de cunhagem nova Euriacutepides Absolutamente

104

Dioniso Pois bem invoca entatildeo os teus deuses privativos Euriacutepides Eacuteter que me alimentas Eixo da minha liacutengua Inteligecircncia e voacutes Narinas de faro penetrante fazei com que eu consiga refutar com eficaacutecia os argumentos que me surjam pela frente Coro (895-900) Pois bem tambeacutem noacutes estamos desejosos de ouvir estes dois geacutenios e de ver que batalha de argumentos vocecircs vatildeo esgrimir Vamos decircem iniacutecio agrave disputa A liacutengua de um e de outro eacute viperina o acircnimo natildeo lhes carece de audaacutecia nem o espiacuterito de agilidade Pode de um esperar-se que tenha uma tirada de espiacuterito limada com requinte do outro que arranque as palavras pela raiz que agarre nelas e desanque o inimigo levantando uma poeirada de versos Corifeu (aos dois poetas) (vv905 -912) Vamos depressa eacute hora de cada um se pronunciar Mas tratem de usar uma linguagem de bom gosto nada de floreados nem dessas patacoadas acessiacuteveis a qualquer um Euriacutepides Muito bem Quanto a mim e ao que valho como poeta eacute mateacuteria que deixo para depois Para jaacute vou desmascarar este sujeito como um parlapatatildeo e um vigarista e revelar por que processos ele fazia o ninho atraacutes da orelha de um puacuteblico de imbecis criado na escola de Friacutenico Antes de mais nada sentava uma personagem solitaacuteria coberta de veacuteus um Aquiles ou uma Nigraveobe por exemplo sem lhe mostrar a cara ndash um perfeito alarde de trageacutedia Quanto a tugir ou mugirnem poacute Dioniso (vv913) (a Eacutesquilo) Era isso sim era isso mesmo Dioniso (vv922- 930) Olha o safado Como ele fazia de mim parvo Porque te torces todo e me potildees essa cara de caso Euriacutepides Eacute por eu o desmascarar A seguir depois destas patacoadas quando a peccedila jaacute ia a meio saiacutea-se com uma duacutezia de mastodontes daquele palavreado de sobrolho e penacho uns papotildees de meter medo desconhecidos dos espectadores Eacutesquilo Com mil demoacutenios Dioniso Cala-te Euriacutepides Que se percebesse nem uma palavrinha para amostra Dioniso Natildeo ranjas os dentes Euriacutepides Eram soacute Escamandros trincheiras e gravadas nos escudos aacuteguias-grifos forjadas em bronze e palavras montadas a cavalo que natildeo era faacutecil digerir

Apoacutes estas discussotildees nas quais as obras literaacuterias e seus proacutelogos satildeo avaliados

Dioniso eacute forccedilado a decidir rapidamente sobre quem seraacute o vencedor do concurso e decide

pesar os versos de cada um na balanccedila O prato de Eacutesquilo pesou mais entatildeo Dioniso

105

novamente pressionado por Hades se pronunciou dizendo que resgataria do inferno Eacutesquilo

por sua visatildeo ciacutevica e educadora da cidade

No entanto o que foi realmente decisivo foi o efeito moral da poesia isto eacute a

capacidade do poeta de tornar as pessoas melhores E eacute esta dimensatildeo moral da poesia que fez

Dioniso escolher Eacutesquilo porque sua proposta era um plano de accedilatildeo contra o que

representava Euriacutepides A vitoacuteria de Eacutesquilo nos diz que a funccedilatildeo social da poesia eacute mais

importante do que qualquer outro aspecto para a polis Assim Aristoacutefanes buscou natildeo apenas

divertir o puacuteblico em sua representaccedilatildeo mas tambeacutem conscientizar as pessoas de que atraveacutes

de mudanccedilas no modelo poliacutetico o antigo esplendor poderia ser restaurado para Atenas

Importante notar que seja em Acarnenses Ratildes Auto da Compadecida ou no Auto

da Barca do Inferno os autores mantiveram uma unidade teatral atemporal o julgamento A

cena do julgamento nas peccedilas referidas marca sensivelmente a preocupaccedilatildeo dos autores em

salvar a cidade e moralizar suas instituiccedilotildees quer seja em Atenas Portugal ou Taperoaacute

Outro fato que deve ser considerado do ponto de vista literaacuterio eacute a divisatildeo das

peccedilas a partir da ideia de julgar para salvar visto que todas estatildeo dividas em duas partes

sendo a primeira burlesca e fantaacutestica tendo como mote a viagem ao mundo dos mortos ndash

encontro com o encourado ndash Barqueiroanjo democircnio ndash poetas mortos e a paroacutedia literaacuteria do

Teacutelefo de Euriacutepides na qual o teatro vai agrave cidade e a segunda com feiccedilatildeo moral e tambeacutem

literaacuteria seja pela retomada da consciecircncia das injusticcedilas (mesmos mortos) pela

condenaccedilatildeoabsolviccedilatildeo ou em Acarnenses pela delaccedilatildeo na Assembleia de toda a maacute sorte

pela qual passa o povo devido agrave guerra

52 O julgamento O riso a morte e o descanso do (in)justo

A ideia de justiccedila sem duacutevida ocupou um lugar privilegiado na ponderaccedilatildeo dos

antigos gregos Desvendando o seu significado determinando o seu alcance especificando o

seu papel - poliacutetico e ou social regulando a sua praacutetica esta foi sempre uma preocupaccedilatildeo

das mais genuiacutenas

Nesta parte do nosso trabalho refletiremos sobre como a ideia de justiccedila tambeacutem

encontra no Auto e na Comeacutedia grega uma expressatildeo proacutepria Atenta aos valores de natureza

social eacutetica e poliacutetica tanto a Comeacutedia quanto o Auto proclamam abertamente a prerrogativa

de saber o que eacute verdadeiramente justo

106

No Auto da Compadecida e no Auto da Barca do Inferno obras para agraves quais

voltaremos nossa atenccedilatildeo ceacuteu e inferno se misturam na promoccedilatildeo da justiccedila e encontram no

humano e no divino espaccedilos para a construccedilatildeo do que seria justo e bem medido ao ser

humano

Nesse cenaacuterio conturbado e perturbador morte e vida se apresentam natildeo de forma

antagocircnica mas dependentes ligadas ao natural do humano viver os prazeres sem a devida

preocupaccedilatildeo com o dia do juiacutezo final no qual todos seratildeo responsabilizados pelos atos

cometidos pendentes para o bem ou para o mal

A morte eacute um fato universal que desde tempos imemoriais tem preocupado a

humanidade Eacute possiacutevel que todas as culturas tenham dedicado rituais simboacutelicos para tentar

sobreviver agrave morte uma realidade tatildeo justa que afeta a todos igualmente Rico pobre

Soberanos e mendigos ningueacutem se livra de ser inerte Embora o corpo pereccedila muitas

sociedades tecircm sido obstinadas em tentar salvar a alma do falecido ou pelo menos

encomendaacute-las a um julgamento (in)justo

No Auto da Compadecida a morte vinculada a Joatildeo Grilo estaacute envolvida em um

clima de tensatildeo entre a comeacutedia e a trageacutedia Ateacute mesmo no momento da morte apoacutes o tira

dado pelo comparsa de Severino Joatildeo faz graccedila diante da morte ldquoDeixe de latomia Chicoacute

parece que nunca viu um homem morrer Nisso tudo eu soacute lamento eacute perder o testamento do

cachorro (SUASSUNA 1995 p133)

A cena do julgamento no Auto da Compadecida eacute uma recriaccedilatildeo advinda do

imaginaacuterio popular cordelesco que vecirc na morte a possibilidade de se encontrar com o divino

mesmo sabendo que a entrada para o ceacuteu purgatoacuterio ou inferno estaacute ligada a um acerto de

contas um julgamento Ariano Suassuna ao apresentar essa imagem resgata os grandes autos

medievais que tinham uma preocupaccedilatildeo religiosa como o Auto da Barca do Inferno de Gil

Vicente obra na qual se verifica que haacute embora de modo diferente da obra de Suassuna a

figura do Diabo acusando cada um daqueles que aparecem indicando para qual barca devem

ir

No Auto da Barca do Inferno tambeacutem conhecido como o Auto da Moralidade o

termo morte foi associado por Gil Vicente ao discernimento entre o Bem e o Mal que se

reflete como elemento necessaacuterio para a expiaccedilatildeo dos pecados Assim a locuccedilatildeo latina

castigat ridendo mores encontra base na temaacutetica da equitaccedilatildeo dos costumes do castigado

sendo representada na vida pelo teatro de forma a caracterizar certos aspectos da sociedade

portuguesa o que tambeacuterm favorece uma anaacutelise mais vivamente sagaz com visatildeo criacutetica de

107

alguns personagens tiacutepicos representantes de certos estratos sociais e espectros

socioeconocircmicos muito variados presentes em Aristoacutefanes e Ariano Suassuna

Aleacutem de grande influecircncia sobre da literatura de Ariano Suassuna a obra

vicentina representa o encontro entre a heranccedila medieval e o espiacuterito renascentista

sagazmente criacutetico revelador e delatoacuterio da imoralidade institucional e dos viacutecios da

sociedade incapaz de assumir a responsabilidade dos seus atos e da sua conduta como se

pode constatar no diaacutelogo inicial entre o Diabo e o Fidalgo na cena II no Auto da Barca do

Inferno na qual o autor nos prepara para o julgamento dos passageiros das naus

Vem o Fidalgo e chegando ao batel infernal diz

FIDALGO Esta barca para onde vai Que assim estaacute apercebida DIABO Vai para a ilha perdida E haacute de partir daqui a nada FIDALGO E para laacute vai a senhora DIABO Sou um senhor Ao vosso serviccedilo FIDALGO Parece-me isto um corticcedilo DIABO Porque a vedes daiacute de fora FIDALGO Pois sim e por que terra passais DIABO Para o inferno senhor FIDALGO Uma terra sem-sabor DIABO O quecirc Mas tambeacutem disso zombais FIDALGO E que passageiros achais Para tal embarcaccedilatildeo DIABO Vejo-vos eu em feiccedilatildeo Para ir no nosso caishellip FIDALGO Parece-te a ti assim DIABO Em que esperas ter guarida FIDALGO Que deixo na outra vida Quem reze sempre por mim DIABO Quem reze sempre por ti Hi hi hi hi hi hi hi Tu que viveste a teu prazer

108

Pensando caacute guarnecer (salvares-te) Por aqueles que laacute rezam por ti Embarcai agora embarcai Que haveis de ir nas traseiras Mandai meter a cadeira Como tambeacutem passou o vosso pai (Gil Vicente p7-11)

Pela passagem acima fica clara a intenccedilatildeo do poeta em preparar o leitor para a

carga de zombaria que seraacute utilizada como recurso estiliacutestico necessaacuterio capaz de impor a

moralidade perante um conjunto significativo de tipos cocircmicos que post mortem requerem

suas entradas no ceacuteu Gil Vicente conhecedor das fragilidades de sua sociedade apresenta em

seu inferno cocircmico tipos caracteriacutesticos que podem perfeitamente ser ajustados agraves literaturas

mais atuais

Satildeo personagens como o fidalgo o onzeneiro o frade o sapateiro a alcoviteira o

judeu o corregedor ou o procurador entre outros os quais o poeta decide tornar natildeo soacute alvo

de galhofa geral mas tambeacutem um exemplo a natildeo seguir expondo-os explicitamente diante do

julgamento final despojados de todas as riquezas e possessotildees terrenas

521 Aqui eacute o inferno vocecirc pode brincar

Joatildeo Joatildeo Morreu Ai meu Deus morreu pobre de Joatildeo Grilo Tatildeo amarelo tatildeo safado e morrer assim Que eacute que eu faccedilo no mundo sem Joatildeo Joatildeo Joatildeo Natildeo tem mais jeito Joatildeo Grilo morreu Acabou-se o Grilo mais inteligente do mundo Cumpriu sua sentenccedila e encontrou-se com o uacutenico mal irremediaacutevel aquilo que eacute a marca de nosso estranho destino sobre a terra aquele fato sem explicaccedilatildeo que iguala tudo o que eacute vivo num soacute rebanho de condenados porque tudo o que eacute vivo morre (ARIANO SUASSUNA 2005 p113)

A cena transcrita na citaccedilatildeo eacute o iniacutecio do que consideramos como o argumento

teatral que motiva o riso no julgamento das almas diferente do resto da obra pois as situaccedilotildees

que satildeo abordadas neste ato revelam em primeiro plano um tom traacutegico mas ao contraacuterio

pelo desvio que encerra a representaccedilatildeo causam natildeo o temor ou pena mas o riso e a reflexatildeo

A exemplo de Aristoacutefanes e Gil Vicente Suassuna utiliza dos expedientes da

paraacutebase e do coro como seus proacuteprios lugares ideoloacutegicos representando o locus privilegiado

onde podemos traccedilar o efeito de suas poliacuteticas e particularmente o teor criacutetico que se

apresenta nos versos dedicados ao coro encenado pelo personagem-palhaccedilo Na verdade o

significado do discurso moralizante e humoriacutestico introduzido pelo coreuta circense eacute sempre

orientado para um corpo social ou para certos grupos e quando se expressa com tom poeacutetico

de uma comeacutedia eacute sempre uma expressatildeo dirigida a um grupo especiacutefico instituiccedilotildees de uma

dada realidade

109

No caso do tribunal celeste ou na travessia das naus essa realidade move e

denuncia as cenas que se desenvolvem pelo intenso debate entre o Anjo ou o Diabo com seus

hoacutespedes e no caso do Auto da Compadecida do anti-heroacutei Joatildeo Grilo com os mortos e seres

divinizados a partir do proacutelogo estabelecido pela entrada do Palhaccedilo que adverte ao puacuteblico

sobre o assunto posto justificando a dupla funccedilatildeo apresentar o argumento da peccedila e

estabelecer a captatio beneuolentiae 27 clamando pela atenccedilatildeo da plateia dando o tom cocircmico

desde o iniacutecio para prender a atenccedilatildeo da assistecircncia sobre os ensinamentos que ali seratildeo

apresentados PALHACcedilO Que bem precisada anda disso Saia e vaacute rezar laacute fora Muito bem com toda essa gente morta o espetaacuteculo continua e teratildeo oportunidade de assistir seu julgamento Espero que todos os presentes aproveitem os ensinamentos desta peccedila e reformem suas vidas se bem que eu tenha certeza de que todos os que estatildeo aqui satildeo uns verdadeiros santos praticantes da virtude do amor a Deus e ao proacuteximo sem maldade sem mesquinhez incapazes de julgar e de falar mal dos outros generosos sem avareza oacutetimos patrotildees excelentes empregados soacutebrios castos e pacientes E basta se bem que seja pouco Muacutesica (ARIANO SUASSUNA 2005 p117)

O desenvolvimento do julgamento traz elementos superiores e sobrenaturais

comuns na trageacutedia grega que Suassuna representa ao modo nordestino como o Diabo o

Encourado Jesus e Maria A presenccedila dessas divindades na obra que aliaacutes se apresentam a

partir do imaginaacuterio maacutescara do psicoloacutegico aleacutem de suscitar a reflexatildeo sobre os atos que o

homem comete em vida manifesta a denuacutencia que o autor imbrica no texto revelando que de

alguma forma a sociedade seraacute julgada e poderaacute sofrer puniccedilotildees apontando desta forma o

caraacuteter cocircmico e moralizador do auto como vemos abaixo DEMOcircNIO Calem-se todos Chegou a hora da verdade JOAtildeO GRILO Entatildeo jaacute sei que estou desgraccedilado porque comigo era na mentira DEMOcircNIO Vocecircs agora vatildeo pagar tudo o que fizeram ENCOURADO Vamos aos fatos Que vergonha Todos tremendo Tatildeo corajosos antes tatildeo covardes agora O Senhor Bispo tatildeo cheio de dignidade o padre o valente Severino E vocecirc o Grilo que enganava todo o mundo tremendo como qualquer safado JOAtildeO GRILO Que eacute que posso fazer Jaacute disse mais de cem vezes a mim que natildeo tremesse e tremo ENCOURADO

27 Captatio benevolentiae eacute uma categoria retoacuterica que visa capturar a boa vontade do puacuteblico no iniacutecio de um discurso (exoacuterdio prooemium) ou apelo No entanto o termo teacutecnico natildeo eacute encontrado nos manuais retoacutericos da Antiguidade Latinafoi usado pela primeira vez por Boeacutecio (falecido em 524 EC) em seu comentaacuterio sobre os escritos de Ciacutecero Literalmente significa atrair a benevolecircncia Refere-se a uma estrateacutegia usada quando o autor se dirige ao puacuteblico leitor visando conquistar a sua simpatia In E-Dicionaacuterio de Termos Literaacuterios (EDTL) coord de Carlos Ceia ISBN 989-20-0088-9 lthttpwwwedtlcomptgt consultado em 02-09-2018

110

E tem razatildeo porque o que vai lhe acontecer eacute coisa muito seacuteria Eacute engraccedilado como vocecircs empregam agraves vezes a palavra exata sem terem consciecircncia perfeita do fato O que vocecirc sentiu foi exatamente um arrepio de danado Leve a todos para dentro SEVERINO Ai meu Deus vou pagar minhas mortes no inferno BISPO Senhor democircnio tenha compaixatildeo de um pobre Bispo ENCOURADO Ah compaixatildeo Como pilheacuteria eacute boa Vamos todos para dentro Para dentro jaacute disse Todos para o fogo eterno para padecer comigo BISPO Ai Leve o Padre PADRE Ai Leve o sacristatildeo SACRISTAtildeO Ai Leve o Severino JOAtildeO GRILO Parem parem Acabem com essa molecagem JOAtildeO GRILO Acabem com essa molecagem Diabo dum barulho danado Eacute assim eacute Eacute assim eacute ENCOURADO Assim como JOAtildeO GRILO Eacute assim de vez Eacute soacute dizer ldquopra dentrordquo e vai tudo Que diabo de tribunal eacute esse que natildeo tem apelaccedilatildeo ENCOURADO Eacute assim mesmo e natildeo tem para onde fugir JOAtildeO GRILO Sai daiacute pai da mentira Sempre ouvi dizer que para se condenar uma pessoa ela tem de ser ouvida BISPO Eu tambeacutem Boa Joatildeo Grilo PADRE Boa Joatildeo Grilo MULHER Boa Joatildeo Grilo PADEIRO Vocecirc achou boa MULHER Achei PADEIRO Entatildeo eu tambeacutem achei Boa Joatildeo Grilo SEVERINO Eacute isso mesmo e eu vou apelar para Nosso Senhor Jesus Cristo que eacute quem pode saber ENCOURADO Besteira maluquice (ARIANO SUASSUNA 2005 p118-124)

Na defesa dos mortos Joatildeo Grilo reveste-se de autoridade e encarna o tiacutepico heroacutei

das epopeias dotado de coragem e bravura que natildeo desiste de viver mesmo depois da morte

persistindo no seu intuito de vencer Joatildeo ultrapassa o previsto e decide se vestir natildeo com as

roupas do rei Miacutesio mas de sua feacute estrateacutegia inconteste para alcanccedilar a intercessatildeo da matildee de

Jesus figura justa e poderosa capaz de levaacute-lo agrave absolviccedilatildeo PADRE

111

Acho que nosso caso eacute sem jeito Joatildeo Em Deus natildeo existe contradiccedilatildeo entre a justiccedila e a misericoacuterdia Jaacute fomos julgados pela justiccedila a misericoacuterdia diraacute a mesma coisa (ARIANO SUASSUNA 2005 p 142)

JOAtildeO GRILO E difiacutecil quer dizer sem jeito Sem jeito por quecirc Vocecircs satildeo mesmo uns pamonhas qualquer coisinha estatildeo arriando Natildeo vecirc que tiveram tudo na terra Se tivesse tido que aguentar o rojatildeo de Joatildeo Grilo passando fome e comendo macambira na seca garanto que tinha mais coragem Quer ver eu dar um jeito nisso Padre Joatildeo (ARIANO SUASSUNA 2005 p 142)

Autorizado ou natildeo por Suassuna em algumas passagens o certo eacute que tanto Joatildeo

Grilo como Chicoacute inconfundiacuteveis em seus quiprocoacutes nos convidam pelos tons acentos e

ritmos compassados do cordel a uma experiecircncia uacutenica de denuacutencia do social bem como

reveladora das caracteriacutesticas mais comuns aos habitantes de Taperoaacute espaccedilo universal da

recriaccedilatildeo promovida pelo bardo nordestino

52 2 A Voz a esperteza e a malandragem do poeta Nem tudo que eacute vivo morre

(Anti)Heroacutei ou Heroacutei Ser ou natildeo ser quem decide eacute o leitor O fato eacute que

ligado aos misteacuterios divinos por uma feacute inabalaacutevel Joatildeo Grilo mesmo diante de tantas adversidades busca forccedilas em suas oraccedilotildees e novamente cheio de esperteza e sabedoria invoca atraveacutes da voz do autor a Compadecida por meio dos versos de cordel de Canaacuterio Pardo para dar iniacutecio a sua defesa

JOAtildeO GRILO

Ah isso eacute comigo Vou fazer um chamado especial em verso Garanto que ela vem querem ver (ARIANO SUASSUNA 2005 p 142) Valha-me Nossa Senhora Matildee de Deus de Nazareacute A vaca mansa daacute leite A braba daacute quando quer A mansa daacute sossegada A braba levanta o peacute Jaacute fui barco fui navio Mas hoje sou escaler Jaacute fui menino fui homem Soacute me falta ser mulher () Valha-me Nossa Senhora Matildee de Deus de Nazareacuterdquo (ARIANO SUASSUNA 2005 p 144)

Usando de sua malandragem Joatildeo Grilo se garante por essa invocaccedilatildeo trazendo a

Compadecida para o julgamento que inicia um debate contra o Diabo para evitar sua

condenaccedilatildeo A COMPADECIDA

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E para que foi que vocecirc me chamou Joatildeo JOAtildeO GRILO Eacute que esse filho de chocadeira quer levar a gente para o inferno Eu soacute podia me pegar com a senhora mesmo ENCOURADO As acusaccedilotildees satildeo graves Seu filho mesmo disse que haacute tempo natildeo via tanta coisa ruim junta A COMPADECIDA Ouvi as acusaccedilotildees Estaacute bem vou ver o que posso fazer JOAtildeO GRILO Estaacute vendo Isso aiacute eacute gente e gente boa natildeo eacute filha de chocadeira natildeo Gente como eu pobre filha de Joaquim e de Ana casada com um carpinteiro tudo gente boa MANUEL E agora noacutes Joatildeo Grilo Por que sugeriu o negoacutecio para os outros e ficou de fora JOAtildeO GRILO Porque modeacutestia agrave parte acho que meu caso eacute de salvaccedilatildeo direta ENCOURADO Era o que faltava E a histoacuteria que estava preparada para a mulher do padeiro MANUEL Eacute Joatildeo aquilo foi grave JOAtildeO GRILO E o senhor vai dar uma satisfaccedilatildeo a esse sujeito me desgraccedilando para o resto da vida Valha-me Nossa Senhora matildee de Deus de Nazareacute jaacute fui menino fui homem A COMPADECIDA Soacute lhe falta ser mulher Joatildeo jaacute sei Vou ver o que posso fazer Lembre-se de que Joatildeo estava se preparando para morrer quando o padre o interrompeu (ARIANO SUASSUNA 2005 p 146-158)

Como vemos eacute no cenaacuterio tragicocircmico do Agoacuten dos mortos que o Poeta de

forma moralizante se dirige agrave audiecircncia nas vozes de Jesus e da Compadecida para tratar das

questotildees ligadas agrave igreja e a seus representantes O mesmo natildeo se aplica a Joanes (o parvo)

que no cais do Purgatoacuterio indagado pelo Diabo na barca vicentina natildeo tem defensores ou

fiadores de sua graccedila em vida e contaraacute apenas com suas verdades ingecircnuas atitude que serve

para a quebra da seriedade comum ao julgamento e aos juiacutezes como refere Miranda (2001)

ao tratamento humoriacutestico empregado pelo autor

[hellip] a seriedade do tema eacute quebrada pelo tratamento que recebe ningueacutem pode chorar a sua sorte quando se depara com a prefiguraccedilatildeo de um juiacutezo final O modo como as personagens descobrem a sentenccedila que lhes foi determinada daacute- se de forma alegre e divertida pois o rigor da sentenccedila contrasta com o realismo grotesco de certos personagens e com o sarcasmo do interrogatoacuterio Disso decorre a comicidade da comeacutedia dos viacutecios (MIRANDA 2001 p61)

Mais adiante a Grande Voz - Gil Vicente ndash prepara seus leitores para o processo

de elaboraccedilatildeo e desenvolvimento da histoacuteria do parvo a partir do sentimento traacutegico gerado

pela morte que de iniacutecio natildeo eacute aceita e pelo elemento cocircmico presente no enfrentamento da

verdade do poacutes-morte num ritmo binaacuterio que permite o nivelamento de uma sociedade

estratificada

NarradorAutor

113

Vem Joane o Parvo e diz ao barqueiro do Inferno PARVO Oh desta DIABO Quem eacute PARVO Eu sou Eacute esta a nossa naviarra DIABO De quem PARVO Dos tolos DIABO Ah Vossa Entra PARVO De pulo ou de voo Oh Pelo pesar do meu avocirc (dor choro) Resumindo Vim a adoecer E em maacute hora fui morrer E nela para mim soacute DIABO E de que morreste PARVO De quecirc Acho que de caganeira DIABO De quecirc PARVO De caga merdeira Que maacute rabugem que te decirc (um insulto) DIABO Entra Potildee aqui o peacute PARVO Oacute paacute Que natildeo tombe o zambuco() (a barcaccedila) DIABO Entra tolo eunuco Que nos vai embora a mareacute PARVO Aguardai aguardai um pouco E aonde havemos noacutes de ir ter DIABO Ao porto de Lucifer PARVO Ha-a-a DIABO Ao Inferno Entra caacute PARVO Ao Inferno Espera laacute Ui Ui Eacute a Barca do cornudo Pecircro de Vinagre Beiccediludo Lenhador de Alverca uh uh (GIL VICENTE p 34-38)

Ignorando a entrada no batel infernal Joanes se depara com outra realidade a

visita agrave nau que vai ao paraiacuteso Por que um bobo entraria na nau e seguiria para o descanso

dos justos Capricho ou natildeo do autor que encontra na ingenuidade e na astuacutecia as condiccedilotildees

de puniccedilatildeo daqueles que se julgavam acima das leis

114

Chega o Parvo ao batel do Anjo diz PARVO Oh da barca ANJO Que me queres PARVO Queres-me passar aleacutem ANJO Quem eacutes tu PARVO Talvez algueacutem ANJO Tu passaraacutes se quiseres Porque em todos os teus afazeres Por maliacutecia natildeo erraste Da tua simpleza te bastastes Para gozar dos prazeres Espera no entanto aiacute Veremos se vem mais algueacutem Merecedor de tal bem Que deva entrar aqui (GIL VICENTE p 40-41)

A morte natildeo eacute o fim senatildeo o comeccedilo para o arrependimento das simbologias

hierarquizantes que permitem identificaccedilatildeo do homem com seu fazer terreno e com sua classe

social poliacutetica econocircmica e profissional

A morte acima de todos os entendimentos quebra a ordem dos elementos

igualando cada um dos protagonistas nas diferentes obras e gerando uma espeacutecie de

coletividade na qual do ponto de vista da justiccedila natildeo se concedem nem existem privileacutegios

pois cada um deveraacute responder por si soacute

Assim a resposta do poeta agraves injusticcedilas pelas quais se castiga a cidade viraacute com a

puniccedilatildeo dos infratores nas cenas que se revelam natildeo por uma accedilatildeo somente mas pelo

conjunto de mini-accedilotildees que adotam a estrutura gerada pela exposiccedilatildeo o conflito e o

desenlace e que agraves vezes nos apresentam a exposiccedilatildeo e o conflito dependentes um do outro

como no caso da comeacutedia aristofacircnica e dos autos de Ariano Suassuna e Gil Vicente

O fio que liga os enredos e conduz a nau vicentina ao inferno eacute o mesmo que

aguccedila a astuacutecia de Joatildeo Grilo ou que tranquiliza Chicoacute nos causos hercuacuteleos Em travessia

sobrenatural ou amarrado a um pirarucu espectadorleitor sente-se identificado com o

momento da histoacuteria quer pelas reminiscecircncias encontradas atraveacutes de elementos oriundos da

tradiccedilatildeo claacutessica quer pelos viacutenculos que retratam a realidade alegorizada e punitiva

Eacute o sentir sem sentir do poeta estar sem estar de uma realidade aparente natildeo

vivida mas experimentada simbolicamente seja nos autos ou na cena cocircmica aristofacircnica

115

que diante de um tribunal definido a partir dos valores humanos e da moralidade a verdade

vai se impor como instrumento para sentenciar as almas que uma a uma iratildeo entrar nos bateis

ou no purgatoacuterio do encourado

No palco construiacutedo pela comeacutedia ou pelo auto os conflitos se resolvem na

quebra da normalidade de um inferno agraves avessas lugar que se transforma em teatro de saacutetira

social de tipos que agem segundo a loacutegica da sua condiccedilatildeo de suas vivecircncias como bem

assinalado por Ariano Suassuna ao dar a Joatildeo Grilo as experiecircncias que lhe serviram de

argumento agrave Compadecida e contribuiacuteram decisivamente para a sua absolviccedilatildeo A COMPADECIDA Joatildeo foi um pobre como noacutes meu filho Teve de suportar as maiores dificuldades numa terra seca e pobre como a nossa Natildeo o condene deixe Joatildeo ir para o purgatoacuterio JOAtildeO GRILO Para o purgatoacuterio Natildeo natildeo faccedila isso assim natildeo Natildeo repare eu dizer isso mas eacute que o diabo eacute muito negociante e com esse povo a gente pede o mais para impressionar A senhora pede o ceacuteu porque aiacute o acordo fica mais faacutecil a respeito do purgatoacuterio A COMPADECIDA Isso daacute certo laacute no sertatildeo Joatildeo Aqui se passa tudo de outro jeito Que eacute isso Natildeo confia mais na sua advogada JOAtildeO GRILO Confio Nossa Senhora mas esse camarada enrolando noacutes dois A COMPADECIDA Deixe comigo Peccedilo-lhe entatildeo muito simplesmente que natildeo condene Joatildeo MANUEL O caso eacute duro Compreendo as circunstacircncias em que Joatildeo viveu mas isso tambeacutem tem um limite Afinal de contas o mandamento existe e foi transgredido Acho que natildeo posso salvaacute-lo A COMPADECIDA Decirc-lhe entatildeo outra oportunidade MANUEL Como A COMPADECIDA Deixe Joatildeo voltar MANUEL Vocecirc se daacute por satisfeito JOAtildeO GRILO Demais Para mim eacute ateacute melhor porque daqui para laacute eu tomo cuidado para a hora de morrer e natildeo passo nem pelo purgatoacuterio para natildeo dar gosto ao catildeo A COMPADECIDA Entatildeo fica satisfeito JOAtildeO GRILO Eu fico (ARIANO SUASSUNA 2005 p 146-158)

Se houve ou natildeo por parte do poeta a intenccedilatildeo de usar bufotildees palhaccedilos e o riso

para punir natildeo haacute duacutevidas Essas personagens promovem tanto na comeacutedia como no auto

uma reflexatildeo mais profunda sobre a existecircncia do homem na terra exercendo sobre as demais

que se julgam merecedoras de entrarem na barca do Anjo ou do perdatildeo divino uma saacutetira

viva e desestabilizadora

116

O certo eacute que mesmo apesar da situaccedilatildeo de marginalidade e abandono a que tem

estado sempre os outros cocircmicos autorizados pelo poeta eles mostram em Acarnenses no

Auto da Barca do Inferno e no Auto da Compadecida o discernimento necessaacuterio para por em

causa proacutepria todo o mundo social poliacutetico eacutetico e religioso

Observar o julgamento das almas o convencimento da assembleia ou a absolviccedilatildeo

de Joatildeo Grilo eacute justamente se inquietar com comportamento destoante dos personagens

diante do traacutegico anunciado seja pela sentenccedila no purgatoacuterio em que Suassuna provoca o riso

pelo absurdo da situaccedilatildeo seja pela morte tragicocircmica de Joanes que obteacutem o direito de

embarcar para o paraiacuteso ou mesmo pela negociaccedilatildeo que garantiu aos representantes da Igreja

e ao Cangaceiro o purgatoacuterio cabendo a Joatildeo Grilo o retorno agrave vida Portanto aleacutem de

garantir a absolviccedilatildeo haacute tambeacutem a realizaccedilatildeo de uma vinganccedila astuciosa que imprimindo o

castigo aos superiores reflete a inteligecircncia que se sobrepotildee a avareza e aos desmandos

Moralidade restabelecida Assim a cena cocircmica torna explicita a forte associaccedilatildeo

entre comeacutedia e auto na intecionalidade de uma justiccedila direta que quis aleacutem das palavras das

palavra-voz lapidada pelos a(u)tores impulsionadora de reflexotildees geradora de fissuras

abertas na selva de significados que de forma desconsertada passa a ser o guia de um leitor

carente da tomada de consciecircncia sobre o que eacute ou natildeo (in)justo pelo vibrar incorrigiacutevel da

cadeia de significados que se estabelece entre o dito e o leitorouvinte como afirma Zumthor

O texto vibra o leitor o estabiliza integrando-o agravequilo que eacute ele proacuteprio Entatildeo eacute ele que vibra de corpo e alma No eco da voz-texto natildeo haacute algo que a linguagem tenha criado nem estrutura nem sistema completamente fechados e as lacunas e os brancos que aiacute necessariamente subsistem constituem um espaccedilo de liberdade ilusoacuterio pelo fato de que soacute pode ser ocupado por um instante por mim por vocecirc leitores nocircmades por vocaccedilatildeo (ZUMTHOR 2014 p 53)

O heroacutei cocircmico eacute esse espaccedilo de liberdade de ousadia nem sempre vitorioso mas

que se constitui agraves vezes de um alter ego do autor que na qualidade de educador da cidade se

impotildee e legitima verdadeiramente justo uma vez que a justiccedila e a verdade satildeo suas

verdadeiras aliadas e componentes essenciais da criaccedilatildeo do autor

Comeacutedia e Auto concluem com sucesso as intenccedilotildees de seus autores garantindo a

todos o que eles merecem um final no qual a justiccedila a verdade e a puniccedilatildeo terminam

moralmente como (re)modeladoras da cidade

117

6 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Nas obras que aqui foram analisadas (Acarnenses Ratildes Auto da Barca do inferno

e Auto da Compadecida) os respectivos autores parecem convidar o puacuteblico a tratar o duplo

poeacutetico e a voz como algo especialmente autorizado agrave tarefa de educar a cidade No entanto

cabe ressaltar que ldquoessa aparente autoridaderdquo eacute o instante singular no qual o poeta diz o que

pensa e quer pela boca de seus personagens reforccedilarcada vez mais a ilusatildeo de ser o que natildeo

se eacute de dizer para aleacutem do abrir e fechar das cortinas do palco teatral

No sertatildeo de chatildeo duro e quase impermeaacutevel agrave chuva do Auto da Compadecida a

palavra-performance fez sua morada na boca dos arremedos de Joatildeo Grilo fincou suas raiacutezes

em seus gestos fez dele sair seus brotos que se transformaram em galhos firmes de uma

aacutervore frondosa que eacute a cultura nordestina tatildeo bem cantada pela literatura de cordel pelo riso

mascarado e ao mesmo tempo denunciativo e desnudado do autor na representaccedilatildeo de sua

criatura Joatildeo Grilo eacute o muacuteltiplo poeacutetico defendido pelo proacuteprio autor numa caracterizaccedilatildeo

niacutetida e social Jaacute Diceoacutepolis em Acarnenses contudo tem uma identificaccedilatildeo claramente

problemaacutetica visto ser um personagem que assume muitas personagens e vozes (tais como

tanto o protagonista cocircmico ruacutestico e o traacutegico Teacutelefo) minando a seriedade com que um

leitor deve tomar suas reivindicaccedilotildees

No Auto da Barca do inferno Gil Vicente como criacutetico mordaz impotildee toda a sua

ironia para condenar os costumes praticados por uma sociedade permeada pela hipocrisia Agrave

guisa do pensamento vicentino a linguagem passa a ser seu principal instrumento pelo qual

se vai operar a zombaria para combater os excessos daqueles que ganham com a miseacuteria do

povo

Pelo vieacutes do desconserto a representaccedilatildeo teatral vicentina se constitui como um

conjunto (ou sistema) de signos de natureza diversa que revela um processo de comunicaccedilatildeo

em que haacute uma seacuterie complexa de transmissores uma seacuterie de mensagens um duplo emissor

assim como um (in)corrigiacutevel e muacuteltiplo receptor presentes no mesmo lugar ansiosos para

saber o que aleacutem do dito eacute ensinado pelo poeta

Esse jogo de diaacutelogosdidascaacutelias a princiacutepio consciente para o poeta permite um

percurso para a compreensatildeo dos diversos fios que compotildeem a tessitura cocircmica ndash moralizante

e dramaacutetica cabendo ao leitorespectador desvelar e revelar as mensagens proferidas pelas

vaacuterias vozes pelas quais se expressa o autor

Ao leitor atento nada escapa ao identificar no espaccedilo cecircnico as simbologias dos

espaccedilos socioculturais comuns agraves trecircs obras que compotildeem o corpus do nosso trabalho e de

118

forma particular a Gil Vicente que amarra elementos humanos e divinos burlescos e seacuterios

formais e corriqueiros sem perder sua atualidade uma vez que tecircm o meacuterito de apresentarem

as constantes lutas entre o bem e o mal que existem dentro de cada indiviacuteduo valendo-se de

uma comicidade aacutecida e palpitante inimiga dos desmando e excessos

Assim como Gil Vicente Ariano Suassuna soube como ningueacutem recriar a proacutepria

realidade em seus Autos atraveacutes dos textos orais nordestinos e interdiscursos culturais

medievos Sempre criacutetico sua literatura estaacute impregnada da heranccedila da tradiccedilatildeo popular

regional e de gecircneros medievais portugueses ibeacutericos e claacutessicos reforccedilando que tanto as

raiacutezes populares nordestinas quanto os gecircneros do teatro medievo alimentam seu fazer

poeacutetico

Como o educador da cidade Ariano Suassuna chega ao conhecimento da plateia

pelas vaacuterias frestas de uma accedilatildeo cocircmica e de recortes de um proacutelogo e de uma paraacutebase bem

ao estilo de Aristoacutefanes quando ao questionar metaforicamente os representantes da Igreja

pelo zelo da moralidade e da justiccedila social coloca em cheque tambeacutem toda a sociedade da

eacutepoca produzindo pelos jogos ciacutenicos circenses os novos significados de cidadania

Suassuna e Gil Vicente representam o fazer literaacuterio de um Aristoacutefanes que sob a

maciez do riso e da galhofa esconde o punhal e a foice da contestaccedilatildeo social o desejo de

recuperaccedilatildeo e de conversatildeo dos valores humanos Em Aristoacutefanes e diante de sua

representaccedilatildeo da polis estamos diante de uma realidade caoacutetica quase impassiacutevel de ser

alterada resultado da exploraccedilatildeo e da ambiccedilatildeo social fatos que permeiam a accedilatildeo de seus

personagens e quando o poeta traveste-se de Dioniso e decide descer ao infernos para buscar

um poeta genuiacuteno percebemos que natildeo eacute somente a arte ou os ensinamentos trazidos por ela

que Aristoacutefanes quer salvar mas o proacuteprio homem ndash em essecircncia ndash que jaacute se encontrava

seriamente corrompido fazendo mal agrave coletividade

No seu fazer de mentalidade coletiva Ariano Suassuna e Gil Vicente satildeo Aristoacutefanes

que em defesa da cidade lanccedilam-se num terreno movediccedilo do diaacutelogo literaacuterio e cultural

contrapondo o moderno e arcaico o regional ao erudito o miacutetico ao racional (re)construindo

suas histoacuterias a partir das vaacuterias histoacuterias alheias nas quais autor e personagens satildeo reflexos

maiores de uma sequecircncia de accedilotildees cocircmicas criacuteticas e a serviccedilo da ordem e da moralidade

Portanto por mais incorrigiacuteveis que possam parecer nas obras pesquisadas fica

claro que os autores e suas personagens agem na defesa de seus objetivos marcados por uma

devoccedilatildeo obstinada a uma causa proacutepria a defesa da cidade E no cenaacuterio-mundo que eacute o

teatro tanto Aristoacutefanes quanto Gil Vicente e Ariano Suassuna satildeo senhores da arte da

desconstruccedilatildeo

119

De caraacuteter universal a Comeacutedia e o Auto mostram um poeta autocircnomo que

brinca com a vontade e expectativas do leitorespectador levando-o a refletir sobre a realidade

atemporal apresentada pelo teatro em seu jogo cocircmico e moralizante Assim o duplo autoral

passa a conduzir o cecircnico no qual os ldquohome espectadorrdquo evocados por Diceoacutepolis em

Acarnenses ou os condenaacuteveis nos autos de Ariano Suassuna e Gil Vicente satildeo jogados no

labirinto das duacutevidas e incertezas promovidas pelas vozes muacuteltiplas que tambeacutem satildeo de

outrem e que afiadas atravessam o discurso cocircmico levando-o agrave reflexatildeo seacuteria da situaccedilatildeo na

qual se encontra a cidade E tudo aos olhos do leitor sob o desejo de um criador que se perde

e se acha nas criaturas que o representam nos a(u)tos matutos de Ariano Suassuna e

Aristoacutefanes ndash eacute possiacutevel ndash natildeo sei Soacute sei que foi assim

120

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARA CENTRO DE HUMANIDADES
  • PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM LETRAS
  • Prof Dr Lauro Inaacutecio de Moura Filho
  • Instituto Federal de Educaccedilatildeo Ciecircncia e Tecnologia do Cearaacute ndash (IFCE)
  • Prof Dr Francisco Wellington Rodrigues Lima
  • Instituto Federal de Educaccedilatildeo Ciecircncia e Tecnologia do Cearaacute ndash (IFCE)
  • COMPTON-ENGLE Gwendolyn Leigh Sudden glory Acharnians and the first comic hero
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