60
1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA ALVES DA FONSECA O CASAMENTO SEGUNDO O TEATRO DE CORDEL EM PORTUGAL (1783 - 1794) CURITIBA 2011

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

  • Upload
    hatuyen

  • View
    214

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

1

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

ELIZABETH PEREIRA ALVES DA FONSECA

O CASAMENTO SEGUNDO O TEATRO DE CORDEL EM PORTUGAL

(1783 - 1794)

CURITIBA

2011

Page 2: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

2

ELIZABETH PEREIRA ALVES DA FONSECA

O CASAMENTO SEGUNDO O TEATRO DE CORDEL EM PORTUGAL

(1783 - 1794)

Monografia apresentada a disciplina de Estágio

Supervisionado em Pesquisa Histórica como requisito

parcial à conclusão do Curso de História, Setor de

Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal

do Paraná.

Orientador: Prof. Dr. Magnus Roberto de Mello Pereira

CURITIBA

2011

Page 3: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

3

DEDICATÓRIA

À minha mãe, in memoriam

(1936 – 2009)

Page 4: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

4

RESUMO

Procurando entender como os fenômenos da revolução industrial, da revolução

francesa, e do iluminismo teriam influenciado as práticas matrimoniais e a vida

familiar no final do século XVIII, este trabalho tem por objetivo pesquisar o tema do

casamento, através de uma presença notória para a sociedade da época: o teatro de

cordel, ou ainda, o entremez. O entremez foi um gênero cômico compartilhado com

a Espanha que associou o caráter critico as relações afetivas da sociedade de corte,

a antipatia à prática do casamento arranjado e à sátira aos costumes da nobreza.

Expõe intrigas e situações tensas de discordância entre velhos modelos fundados

em princípios e valores morais predominantes na comunidade versus novas

tendências que buscavam romper com o ultrapassado e instituir o novo. Aspectos

como a educação feminina, as novas sociabilidades, a beleza, a sedução, a

tradicionalista prática do dote e a honra são polemizados e desdenhados pelo

elemento cômico. Nesse sentido, procuramos confrontar a versão das peças com a

historiografia pertinente para entender o motivo dos conflitos apontados no ambiente

de convívio familiar e público envolvendo as personagens de mulheres, filhos e

criados.

Palavras chaves: casamento arranjado; teatro de cordel; práticas matrimoniais.

Page 5: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

5

ABSTRACT

Seeking to understand how the phenomen of the industrial revolution, the French

Revolution, and the Enlightenment would have influenced the matrimonial practices

and family life in the late eighteenth century, this study aims to find the wedding

theme, through a large presence for the society of the time: the usual theater, or

even the entremez. The entremez was a comic genre shared with Spain, which

joined the critical nature of the relationships court society, the antipathy to the

practice of arranged marriage and the satire to the customs of the nobility. It exposes

intrigue and tense situations of disagreement between old models founded on moral

principles and values prevailing in the community versus new trends that pursued to

break up with the outdated and establish the new. Aspects such as female education,

new sociability, beauty, seduction, the traditional practice of dot and honor are

arguing and scorned by the comic element. In this sense, we confront the version of

the plays with its historiography to understand why the conflicts detected in the

environment of private and public life, involving the characters of women, children

and servants.

Keywords: arranged marriage; usual theater; matrimonial practices.

Page 6: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

6

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 7

1. CONTEXTUALIZAÇÃO....................................................................................9

1.1 O teatro de costumes .................................................................................9

1.2 O Entremez ..............................................................................................13

1.3 O Entremez e sua estrutura .....................................................................16

2. O CASAMENTO TRADICIONAL E AS ANTIGAS PRÁTICAS .....................27

2.1 O dote ......................................................................................................29

2.2 A honra .....................................................................................................33

3. A INFLUENCIA DAS NOVAS SOCIABILIDADES ........................................40

3.1 O casamento pela livre escolha ...............................................................41

3.2 A educação recomendada........................................................................48

3.3 Outras formas de casamento ...................................................................50

CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................52

FONTES UTILIZADAS………....................................................................................54

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS…....…..............................................................57

Page 7: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

7

Introdução

O século XVIII é conhecido na historiografia pelas transformações que

ocorreram em toda Europa como resultado das idéias iluministas, da revolução

industrial e da revolução francesa. Tais transformações agiram de forma irreversível

em todos os segmentos da sociedade, mais em alguns países, menos em outros,

afetando o cotidiano, as relações políticas e sociais, a vida familiar; enfim, elas

impulsionaram processos de adequação da comunidade a uma nova realidade

social.

Procurando entender como tais transformações chegaram ao ambiente

privado, este trabalho tem por objetivo pesquisar o tema do casamento, os

relacionamentos familiares, e as práticas matrimoniais através de uma presença

notória para a sociedade da época: o teatro de costumes, mais especificamente, em

Portugal, o teatro de cordel, ou ainda, o entremez.

O Entremez foi um modelo teatral cômico muito representado em Lisboa. Seu

inegável êxito e propagação durante o século XVIII são constatados pelo número

substancial de peças disponíveis para pesquisa, não obstante o significativo

conteúdo permaneça quase ignorado pelos estudiosos da dramaturgia. Com base

na regra número um do teatro, a verossimilhança1, e confrontando as fontes com a

historiografia pertinente, é possível localizar indícios de uma realidade social, por

vezes subjugada a certos silêncios.

Fazendo uso de elementos do cotidiano, situações particulares, pessoas

comuns, peças de teatro são fontes que podem contribuir para o conhecimento

histórico das práticas matrimoniais visto que o teatro recriava uma situação partindo

das convenções da realidade. Particularmente, o entremez zomba dos problemas

rotineiros, das situações habituais provocando o riso do público. Repetidamente,

satiriza a sociedade portuguesa, caracterizada como conservadora, estática,

praticante do tradicional casamento arranjado, ligada aos princípios morais da honra

1ROUBINE, Jean-Jacques. Introdução às grandes teorias do teatro. Rio de Janeiro. Jorge Zahar

Editor, 2003, p. 15.

Page 8: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

8

e do decoro. Através do escarnecimento, o gênero atraía a crescente atenção, e

maior preferência do público configurando-se em “um grande surto” 2.

Partindo deste perfil instigante, o presente trabalho buscou investigar as

situações conflituosas envolvendo as práticas matrimoniais levadas ao público pelo

teatro popular, observando que motivos poderiam desencadear as discordâncias

apresentadas no ambiente familiar.

2 SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal. v. V Lisboa: Editorial Verbo, 1979, p. 434.

Page 9: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

9

1 - Contextualização

1.1 - O teatro de costumes

Os fenômenos do cosmopolitismo, e da revolução industrial, operam

mudanças significativas nas relações humanas no decorrer do Século das Luzes. A

reorganização dos espaços, o predomínio de códigos de polidez, a crescente

alfabetização, aos poucos, transformava a sociedade, os costumes, e o cotidiano da

vida familiar. Acompanhando a onda de reação ao tradicionalismo, o teatro se

destacou como lugar de expressão e representação das ações possíveis3, ou ainda,

lugar de mediação recíproca.

Apoiando-se no enriquecimento e ascensão da burguesia4, na idéia iluminista

de liberdade, no hedonismo, em códigos de credibilidade5, os dramaturgos, em

geral, buscaram expandir sua influência junto ao espectador fazendo uso de um

formato maldizente e satírico6, instigando a opinião pública pelo seu perfil moral e

educativo. Desta forma, e de acordo com Leon Moussinac, o século das luzes

significou, em particular, o triunfo da comédia7, modelo bem apreciado pelas platéias

de todas as classes.

Opondo-se à tragédia e ao drama, gêneros predominantes no teatro clássico,

oficial, protegido pela corte, e que primavam pela grandeza e luxo do espetáculo, o

teatro cômico emergiu herdeiro de uma tradição teatral resultante do predomínio e

da inspiração que a commédia dell’arte exercia sobre a dramaturgia. A abordagem

improvisada de assuntos ligados ao dia a dia da sociedade, aos costumes, a

obtenção de riqueza, a sexualidade, ao trabalho, eram reforçados e desdenhados

3 ROUBINE, Jean-Jacques. Op. cit., p. 15.

4 GASSNER, John. Mestres do Teatro I. SP: Perspectiva, Ed. Universidade de São Paulo, 1974, p.

332. 5 SENNET, Richard. O declínio do homem público As tiranias da Intimidade. SP: Ed Schwarcz, b1988,

p. 88. 6 MOUSSINAC, Leon. História do Teatro Das Origens aos Nossos Dias. Portugal: Bertrand 1957, p.

265. 7 Ibidem, p. 280.

Page 10: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

10

pelo elemento cômico. Dessa forma, a eficiência e preponderância de seu formato

resultaram em larga influência em diversas companhias teatrais por toda Europa8.

Na França, berço de novas perspectivas políticas e sociais, Molière foi

acentuadamente influenciado pela comédie italienne. O autor reformulou o gênero

quanto à sua forma improvisada dando-lhe forma textual para representação em

teatros fechados9. Não utilizou, porém, apenas elementos da comédia popular.

Associou a estes alguns elementos clássicos, escrevendo, por exemplo, nos formais

versos alexandrinos, dispondo também das unidades de tempo, espaço e ação10.

Empreendeu, pela primeira vez, usar de temas relativos ao cotidiano e aos

costumes da sociedade construindo uma comédia nova, diferente do modelo

clássico da alta comédia, e, diferente também da comédia popular italiana11,

inaugurando, assim, a comédia de costumes. Entre os temas introduzidos pelo

dramaturgo se encontram a crítica ao pedantismo, a pretensão social, a misantropia,

a hipocrisia religiosa12.

O bem sucedido ajustamento não só interferiu em outros tipos de comédia,

como abriu novos caminhos para o gênero cômico. John Gassner afirma que, não

obstante a reformulação empreendida por Molière, não podemos considerá-lo um

reformista militante, apesar de sua ampla influência sobre a comédia européia13.

No decorrer do seiscentos, e início do setecentos, na Itália, a pompa barroca

operística e a comédia improvisada dominavam os palcos. Contudo, esta última

tornara-se repetitiva e decadente, chegando ao fim14. Preocupado em salvaguardar

o espaço teatral italiano, Carlo Goldoni, de certa forma, inspirado pela comédia de

costumes de Molière, desejou questionar o mundo que o rodeava, propondo a

8VENDRAMINI, José E. A commedia dell'arte e sua reoperacionalização. Trans/Form/Ação, Marília,

v. 24, n. 1, 2001. Disponível em < http://www.scielo.br/pdf/trans/v24n1/v24n1a04.pdf > 9 GASSNER, John. Op. Cit., 1974, p. 336.

10 Ibidem, p. 332.

11 Ibidem, p. 337.

12 Ibidem, p. 342.

13 Ibidem, p. 350.

14 BROCKETT, Oscar G. The Theatre an introduction. United States of America: Holt, Rinheart and

Winston, Inc, 1964, p. 212.

Page 11: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

11

reforma do teatro cômico italiano, dominado até aquele momento pela commedia

dell’arte.

Goldoni não era um erudito, a exemplo de uma grande parte dos dramaturgos

de sua época; mas era um profundo observador da sociedade e de seus costumes,

e também, grande conhecedor das técnicas teatrais essenciais para representar o

mundo. Escrevendo em verso e prosa, sua proposta reformista apresentou ao

público uma comédia baseada na sensibilidade, razão e naturalidade, orientada pelo

bom gosto estético. Suas peças exploraram questões presentes no cotidiano, como:

o problema da educação feminina, e o papel social da mulher na cultura15. Tais

questões além de provocarem debates nos círculos literários italianos, mais

precisamente em Veneza, tornaram-se temas freqüentemente representados da

época.

No espaço cênico espanhol sobrevivia a antiga comédia reportando-se a

personagens identificáveis com a nobreza ociosa, personificando valores

aristocráticos, e virtudes guerreiras. Não estamos falando dos modelos consagrados

do chamado “século de ouro”, e, sim, daquele modelo desgastado, marcadamente

material, a chamada comédia heróica, que apresentava façanhas bélicas bem diante

dos olhos do espectador.

Na segunda metade do século XVIII, o teatro espanhol conheceu a obra de

Leandro Fernández de Moratín, propondo a reforma daquele ultrapassado modelo

cômico. Moratín, a exemplo de outros dramaturgos, buscou um modelo novo de

comédia ancorado no uso de elementos do cotidiano, situações particulares,

pessoas comuns. Escrevendo em linguagem corrente, e manejando um conjunto

diversificado de tipos da nova sociedade burguesa16, lançou um modelo de comédia

nova que abordava temas como: a educação feminina, e o casamento contratado.

Observado o contexto geral, é importante frisarmos que, para os governantes,

assim como para os dramaturgos, o teatro era considerado um excelente

15 RODRÍGUEZ GÓMEZ, J. Inês. Representacion Del Mundo Femenino em El Universo Teatral de

Carlo Goldoni. Cuadernos de Filologia. Anejo L (2002) 339-350. 16

Ibidem, p. 23.

Page 12: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

12

instrumento para educar e moldar a sociedade segundo as concepções de vida dos

autores. Ambos serviam-se dele para fins políticos, divulgando sua ideologia para

alçar seus objetivos17, muito embora nem sempre, um ou outro, obtivessem sucesso.

Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao

que ocorreu no restante da Europa. Na segunda metade do século XVIII, a tentativa

de reformulação da cena teatral esteve nas mãos da Arcádia Lusitana, “Inutilia

truncat”, fundada após o terremoto, em 1755.

Homens cultos, os poetas árcades, ambicionavam uma discussão estética

das obras dramáticas, quer fossem originais ou traduções, tentando retomar o bom

gosto e o equilíbrio dos moldes clássico-renascentistas18, e, principalmente,

pretendiam libertar o teatro português da influencia hispânica, assim como da

influência italiana da commedia dell’arte 19, particularmente.

Os árcades escreveram comédias, tragédias, e inúmeros textos teóricos. Sua

perspectiva estava voltada para o homem natural e espontâneo, situado em

contradição ao homem urbanizado20, ao pedantismo, e aos excessos da etiqueta

social. Segundo Laureano Carreira, os árcades partilhavam de uma idéia em

comum: “a utilidade da arte dramática como meio de instrução21”. Carreira explica

que esta concepção estava presente em todas as obras teatrais arcadistas, fossem

originais ou traduções. Apesar da breve existência da Arcádia lusitana, autores

como: Correia Garção, ou o polêmico José Agostinho de Macedo, deixaram obras

relevantes ainda pouco estudadas.

Enquanto transcorria este movimento de reação ao tradicionalismo dramático,

o teatro português desenvolveu um formato teatral estreitamente ligado à comédia

de costumes: o Entremez.

17 Ibidem, p. 20-21.

18 CAVALCANTI, C. Arcadismo: a cifra libertária. In: XII CONGRESSO NACIONAL DE LINGUISTICA

E FILOLOGIA, 2008, Rio de Janeiro, p. 35. 19

CARREIRA, Laureano. O Teatro e Censura em Portugal na segunda metade do século XVIII. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1988, p. 18. 20

ABDALA JR, Benjamim. História Social da Literatura Portuguesa. SP: Ática, 1985, p. 68. 21

CARREIRA, Laureano. Op. Cit., p. 18.

Page 13: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

13

1.2 – O Entremez

O Entremez foi um modelo teatral cômico muito representado em Lisboa, e

seu inegável êxito e propagação durante o século XVIII, são constatados pelo

número substancial de peças disponíveis para pesquisa, não obstante o significativo

conteúdo permaneça quase ignorado pelos estudiosos da dramaturgia.

O mote principal deste formato consistia na ousadia da abordagem de temas

cotidianos, e ferrenha critica as práticas sociais da sociedade de corte. Partindo

deste perfil instigante atraía a crescente atenção, e cada vez maior preferência do

público configurando-se “um

grande surto”22.

O desenvolvimento deste

gênero específico,

compartilhado com a Espanha,

ficaria também conhecido como

teatro de cordel, assim

designado devido ao formato de

folhetos que, após a impressão

nas tipografias, eram postos à

venda dependurados em

cordéis.

Segundo Carreira, um

folheto de entremez continha 16

páginas, ao passo que as

comédias, dramas ou tragédias

continham de 36 a 40

páginas23. Por vezes, a última

página de um folheto de cordel ou de entremez poderia trazer uma advertência, um

comunicado, uma notícia de outras publicações teatrais como nas ilustrações 1 e 2.

22 SERRÃO, Joaquim Veríssimo. Op. cit., p. 434.

23 Ibidem, p. 20.

Ilustração 1 – última página de um folheto de cordel – comédia nova Affetos de ódio e amor publicado em 1783 pela Officina Domingos Gonçalves

Page 14: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

14

Ilustração 2: página final do entremez Casamento por nova idéia publicado em 1792 pela Officina de

Francisco Borges de Sousa.

A particularidade inerente ao teatro de cordel está ligada ao fato de que seus

roteiros podiam, ou não, destinar-se à encenação, o que atende a uma característica

própria da arte dramática em sua ambigüidade contraditória: um espetáculo teatral

termina imediatamente no passado. No entanto, o texto teatral permanece, em forma

literária, dando continuidade à arte24, propiciando, a ação, futuras retomadas em

forma de adaptações.

A origem do termo entremez é imprecisa e remonta à Idade Média. Segundo

Oscar G. Brockett, o intermezzo teria surgido na Itália onde se apresentava como

um breve interlúdio, uma breve representação dramática entre os intervalos das

óperas25.

Em Portugal, a popularidade do entremez foi notável. A adaptação ao gosto

português associou o caráter crítico dirigido às relações afetivas da sociedade do

antigo regime à contestação da prática do casamento arranjado, e à sátira aos

24 BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2004, prefácio.

25 BROCKETT, Oscar G. Op. Cit., 1964, p. 144.

Page 15: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

15

costumes da nobreza. Tal como a comédia de costumes, o entremez buscou

suscitar questões referentes às práticas costumeiras da sociedade do Antigo

Regime como: o comportamento dos jovens, o papel econômico e social das

esposas, a honra da casa, enfim, escarafunchar o ambiente privado e familiar

doutrinando e incitando a opinião pública com toques de realismo.

Para Luciana Picchio, estudiosa do teatro português, os entremezes, cujos

autores costumavam permanecer no anonimato, não passavam de adaptações de

peças de autores estrangeiros26 reproduzidos repetidamente pelas tipografias de

Lisboa. A princípio, não podemos deduzir disto que todos os entremezes fossem

adaptações; no entanto, constatamos a re-publicação em alguns casos, como

exemplo disto, veja-se o novo entremez intitulado Os desprezos de hum filho peralta

a seu pai; ou sophismas, com que enganou a criada27, publicado em 1789, pela

Officina de Antonio Gomes, e que aparece re-publicado em 1792, pela Officina de

Francisco Borges de Sousa. Este é apenas um caso entre muitos outros.

Engenhosamente, o entremez também fala dele mesmo, satirizando o próprio corpo

teatral e seus componentes, como na pequena peça Anatomia cômica28, publicada

em 1789.

De uma forma ou de outra, o entremez não deixou de preservar princípios

intrínsecos à comicidade, pois está estruturado de acordo com os elementos básicos

componentes do texto teatral cômico, apresentando intrigas e linguagem

peculiares29. Portanto, se faz necessária a análise destes elementos, mesmo que de

forma superficial, pois torna compreensível o mecanismo dramático enquanto um

jogo de forças destinado a engendrar reações na opinião pública30.

26 PICCHIO, Luciana Stegagno. História do Teatro Português. Lisboa: Portugália Editora, 1964, p.

197. 27

Entremez Dos desprezos de hum filho peralta a seu pai; ou sophismas com que enganou a criada. Lisboa, Officina de Antonio Gomes, 1789. 28

Pequena peça Anatomia Comica. Lisboa, Officina de Francisco Borges de Sousa, 1789. 29

CARREIRA, Laureano. Op. Cit., 1988, p. 20. 30

Não é o objetivo deste trabalho discutir o conceito de “opinião pública”. A expressão aqui usada se aplica no sentido formulado por Jürgen Habermas. Segundo o autor a “opinião pública” é um fenômeno emergente no século XVIII, instrumentalizado pela publicação do privado e resultante da pretensão da burguesia de monopolizar e submeter o ancien regime apoiando-se nas relações socioeconômicas. LIMA, Luiz Costa. Mimesis e modernidade: formas das sombras. v. 1 Rio de Janeiro: Edições Graal, 1980, p. 99.

Page 16: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

16

1.3 – O Entremez e sua estrutura

A narrativa predominante no entremez se desenvolve linearmente

obedecendo à regra aristotélica das três unidades: tempo, espaço e ação. A unidade

de ação exprimia-se através da intriga principal e ações secundárias; que se

passava em não mais de 24 horas, em um lugar situado em locais diversos, uma

praça, uma loja, uma sala, ou quarto31. Observando as unidades de tempo e ação o

entremez tem a particularidade de representar uma história breve, costumeira, e que

se remete ao seu próprio contexto histórico.

Até o século XVII, os diálogos das comédias eram escritos em verso

destinados à recitação. Mas, aos poucos, com a reação da dramaturgia ao elemento

clássico, os dramaturgos passariam a escrevê-los em prosa, como se nota na

maioria dos entremezes. Mas a prosa não é um recurso unânime, pois na década de

oitenta do século XVIII encontramos diálogos escritos em forma de palito métrico32,

como o entremez da Assembléa do Isque33, ou As Desordens do Peralta34. Os

versos curtos intercalados à prosa também são encontrados.

Os autores anônimos do entremez, por vezes, faziam uso de modinhas, ou

árias, pequenas estrofes musicais cantadas pelos atores durante a encenação, ou

no encerramento da peça, podendo anunciar um final moral, como o encerramento

do entremez intitulado As Loucuras da Velhice35. Mas, além do final moral e

disciplinador, muitas peças terminavam em briga e pancadaria (um recurso cômico

31 MEGALE, Heitor. Elementos da Teoria Literária. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1975, p.

80. 32

O palito métrico era uma forma de escrever versos medidos com um palito. Este formato era usado pelos estudantes de Coimbra que escreviam o palito métrico em latim macarrônico. O palito métrico está inserido em uma obra maior a Macarronea Latino Portuguesa. A amostra deste escudo contém 5 peças escritas em palito métrico. 33

Entremez Da Assembléia do Isque. Lisboa, Officina de Filippe da Silva e Azevedo, 1784. 34

As Desordens do Peralta. Lisboa, Officina de Filippe da Silva, e Azevedo, 1784. 35

Entremez As loucuras da velhice. Lisboa, Officina Domingos Gonsalves, 1786.

Page 17: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

17

próprio deste formato), como o novo entremez intitulado O Estudante Bazofio e

Desgraçado36.

Outro elemento relevante é o título, que consiste em uma forma de anunciar

objetivamente, ou não, a abordagem da peça37, por exemplo: A desordem dos

noivos de oito dias38, referindo-se a uma briga entre recém casados; ou As

desordens do Peralta39, abordando o mau comportamento de um filho que perdeu no

jogo certa quantia de dinheiro de seu pai. Por vezes, os títulos podem reportar-se a

um determinado personagem procurando adjetivá-lo, como: O estudante bazofio e

desgraçado40; ou, Os Disgostos que teve huma sécia de Lisboa, por amor do seu

amante41. Também poderá trazer o delineamento de uma moral, ou, o anúncio de

um desfecho, como: O libertino castigado e a prisão no jogo de bilhar42; ou ainda,

Desengano para os homens não se fiarem em mulheres43.

Embora a comédia (peça longa), se dividisse em diversos atos, e inúmeras

cenas, o entremez consiste em um só ato, o que não interferia na unidade de ação,

podendo apresentar uma, duas, até doze cenas, às quais movimentavam a peça,

fazendo-se reconhecer através das entradas e saídas das personagens44.

O número de personagens poderia variar entre um mínimo de quatro até

nove, com larga predominância de personagens masculinos. Ao contrário da França,

onde existiam atrizes encenando os papéis femininos, em Portugal, não era

permitido que mulheres atuassem no palco. Desta forma os papéis femininos eram

representados por “homens barbudos e de perna viril” 45, como afirma Arthur W.

36 Novo entremez O estudante bazofio e desgraçado. Lisboa, Officina de Simão Thaddeo Ferreira,

1787. 37

RYNGAERT, Jean-Pierre. Introdução à análise do teatro. SP: Martins Fontes, 1996, p. 36. 38

Novo entremez A desordem dos noivos de oito dias. Lisboa, Officina de Francisco Borges de Souza, 1791. 39

Entremez As desordens do peralta. Op. cit. 40

Entremez O estudante bazofio e desgraçado. Op. cit. 41

Entremez Os Disgostos que teve huma sésia de Lisboa, por amor do seu amante. Lisboa, Officina de Francisco Borges de Sousa, 1789. 42

Pequena peça O Libertino Castigado, e a prizão no jogo de bilhar. Lisboa, Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789. 43

Entremez Desenganos para os homens, não se fiarem em mulheres. Lisboa, Officina de Francisco Borges de Sousa, 1788. 44

RYNGAERT, Jean-Pierre, Op. Cit., p. 38. 45

CARREIRA, Laureano. Op. Cit., 1988, p. 23.

Page 18: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

18

Costigan, que por ocasião de sua estada na corte em Lisboa, deixou a descrição de

um destes espetáculos, em uma carta escrita a seu irmão, em 177946.

O espaço onde se desenvolvia a ação, algumas vezes, poderia ser a praça,

uma loja, um restaurante, ou, até mesmo o teatro do teatro. No entanto,

majoritariamente, a ação se desenvolvia em espaço privado, em casa dos

protagonistas, tendo a sala como lugar comum. Paralelamente, um terceiro

movimento se apresenta com certa freqüência: a transição do ambiente público ao

privado, apresentando um personagem que chega da rua e entra em casa. Esta

transição é sempre feita por um personagem masculino, nunca por um personagem

feminino, pois o espaço feminino de atuação é predominantemente o espaço

doméstico. É observável que, o entremez indica a janela como um espaço onde as

mulheres observavam o mundo. Para Gassner, o uso da janela consistia em um

recurso técnico teatral muito usado pelos dramaturgos47, pois permitia posicionar as

mulheres como uma presença devidamente distanciada do ambiente público.

Um mecanismo chave da comicidade do entremez está na nominação das

personagens. Ela nos remete a identificações caricatas e burlescas, como: o doutor

Cangalho, dona Perpétua, o criado Carrapato, a criada Campainha, o sallafrário,

Pantalão, Denguice, Cornélio, entre outros... De acordo com María José Martínez

Lopez, a questão da nominação caricata, além de valorizar a perspectiva cômica,

também tem por objetivo a rápida identificação dos tipos constantes no elenco, pois

são humorísticos por si mesmos48, embora esta não seja uma regra fixa, pois

podemos encontrar peças onde a identificação da personagem se faz tão somente

pelo próprio nome.

Mas, sobretudo, é preciso observar que o artifício nominal serve para indicar

uma comicidade predeterminada por uma convenção dramática e cênica49. Neste

sentido, o entremez não está preocupado com susceptibilidades psicológicas

46 COSTIGAN, Arthur William. Sketches of society and manners in Portugal. v. 2. University of Virginia

Library, 1787, p. 249. Disponível em Google books. 47

GASSNER, John. Op. Cit., 1974, p. 340. 48

MARTÍNEZ LÓPEZ, Maria José. El Entremés: Radiografia de um gênero. Toulouse. Universitaires Du Mirail, 1997, p. 149. 49

Ibidem, p. 109.

Page 19: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

19

advindas desta caracterização, pois o efeito marcadamente cômico dos nomes

provoca o riso pelas conotações específicas que adquirem no contexto em que são

empregados, já que tais conotações pressupõem idéias, conflitos, pontos de vista, e

confronto de vontades50.

As personagens apresentadas pelo entremez convivem em situações tensas

de discordância entre velhos modelos fundados em princípios e valores morais

tradicionais vigentes na comunidade versus novas tendências que buscavam romper

o ultrapassado e instituir o novo.

Cada tipo possui características próprias dispostas de forma relativamente

equilibrada, quanto à sua visibilidade artística, atendendo, primeiramente, à

identificação social que a personagem carrega consigo. Tal posicionamento revela

uma função predeterminada pela ação, ou seja, alguns tipos são portadores da

ação, enquanto outros a sofrem51. Esta predisposição das personagens em seu

meio social tende a indicar uma sociedade de hierarquia bem definida, orientada por

padrões de comportamento vinculados a princípios e valores morais dogmáticos

destinados a preservar a ordem e a eliminar toda frivolidade.

A homogeneização dos tipos não quer dizer que determinadas personagens

não apresentassem um perfil próprio, mas antes o artifício atende a um mecanismo

de oposição entre personagens.

Das 29 peças usadas para o presente estudo, dentre a majoritária presença

de personagens masculinos, em particular, um protagonista tem maior visibilidade

em relação aos outros. Localizado conforme sua posição social, o “velho” está

destinado a representar o tradicional, o conservador, assim como tudo aquilo que

aos poucos está diminuindo sua capacidade de realização.

A identidade sociodramática deste personagem não se relaciona apenas a

sua idade cronológica, como poderíamos supor de imediato. Mas, trata-se, também,

de sua mentalidade considerada arcaica, inimiga das diversões52. Temos como

50 Ibidem, p. 112.

51 Ibidem, p. 108.

52 Ibidem, p.113.

Page 20: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

20

exemplo o Divertido, e gracioso entremez Dos Desatinos, que a mulher fez a seu

marido, por motivo de não a deixar ir ver as Luminárias53.

De uma forma ou de outra, a identificação do „velho‟ está carregada de

conotação negativa ligada às suas pretensões que se difundem em dois planos: no

espaço privado, enquanto pai, ou tutor, pretende manter sua riqueza, mas é burlado

pelas filhas e criadas. No espaço público, ele se apresenta como um pretendente

ridículo e bonifrate54 (no sentido pejorativo de conotação sexual) envolvido nas

propostas de casamento contratado com mulheres mais jovens, mas que, como

marido e aos olhos da sociedade, será desonrado e enganado pela mulher. De certa

forma, o „velho‟ é uma permanência herdada da commedia dell’arte. O Pantaleão era

uma das máscaras - os zanni – naquela tradição dramatúrgica italiana.

Em qualquer circunstância, o „velho‟ se define em função do perfil de uma

personagem feminina55. Acima de tudo, e antes de qualquer prerrogativa, o

entremez estabelece duas condições que distinguem esta categoria: todos os velhos

são ricos, e possuem o pior dos vícios: a avareza. Por vezes, podemos vê-lo em um

papel específico, por exemplo, um médico, ou um fidalgo.

De acordo com Martínez López, a acentuada presença do tipo tradicional

representado pelo “velho” atende a objetivos práticos do teatro de comédia.

Particularmente, no entremez, tais objetivos estavam vinculados à ação dramática

e aos efeitos cômicos que suscitavam56. Se por um lado ele parece zelar pela

permanência de valores morais, pela honra e o decoro, por outro, ele diverte.

Como resultado de todos os aspectos que compõe este personagem nota-se sua

colocação estratégica em relação ao restante dos tipos, e à temática do

casamento e da família.

Diferentemente do legitimo representante da tradição, o entremez recorre à

disposição de figuras modernas procurando equilibrar a visibilidade artística dos

53 Entremez Dos Desatinos que a Mulher Fez a Seu Marido, por motivo de não a deixar ir ver as

Luminárias. Lisboa, Officina de Antonio Gomes, 1793. 54

Bonifratre - Pessoa que peca contra a gravidade e decoro de seu estado. 55

Ibidem, idem. 56

Ibidem, p. 109.

Page 21: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

21

personagens. Identificadas também pela sua posição social, representam as

novas tendências e novos costumes da sociedade.

Martínez López classifica alguns destes personagens diretamente

envolvidos com o tema deste trabalho no grupo sociodramático ocioso57. São

aqueles que dividem características comuns, por exemplo, além de se definirem

em função do elemento feminino, estão à procura de um bom casamento, ou

ainda, de um bom dote. Os homens jovens deste grupo prezam por falsos valores,

crêem ser o que não são, e, tramam trapaças e burlas para alcançarem seus

empreendimentos. Certamente poderão existir algumas particularidades que

diferenciam estes personagens como veremos nas páginas seguintes. A princípio,

vale frisarmos que, o peralta, o estudante e o galã são os personagens que

exercem sobre o velho a pressão da intriga destinada a burlar e ridicularizar seus

costumes.

Também vale destacarmos o perfil do peralta apresentado como um tipo

casquilho58 caracteriza-se como homem jovem, com intensa vida social,

comparecendo nas assembléias para conversar, dançar, ou flertar com as mulheres.

Podemos encontrá-lo, também, na figura de um xisxisbéo59, um acompanhante de

mulheres casadas, autorizado pelo marido.

O peralta é um personagem carregado de conotação negativa, e que, por

vezes não se define em função do aspecto feminino. Nestes casos observamos que

ele se define em função da libertinagem, do vício, e do desregramento.

Seguramente, a identidade sociodramática do peralta o torna o maior antagonista do

„velho‟.

Os médicos são personagens que interagem livremente no ambiente privado

já que sua função era tratar dos doentes. O entremez O enganador enganado, ou o

57 Ibidem, p. 123.

58Casquilho - homem que se trata no vestir, com adornos excessivos.

59LOPES, Maria Antonia. MULHERES, ESPAÇO E SOCIABILIDADE A transformação dos papéis

femininos em Portugal à luz de fontes literárias (segunda metade do século XVIII) Livros Horizonte Ltda. 1989, p. 131.

Page 22: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

22

testamento supposto60 traz um velho médico que trata de um velho fidalgo rico

disposto a casar com sua criada.

Porém, o médico não pode ser considerado exclusivamente um personagem

tradicional, já que para o entremez sua deformidade moral está relacionada à

conotação erótica que conserva seu ofício ao tratar das enfermidades femininas.

Neste sentido ele também pode ser considerado um personagem de transição entre

o tradicional e o moderno61.

Ao contrário da peça citada anteriormente, o entremez intitulado A Casa de

Pasto62 dirige uma dura critica a fidalguia da época retratada por um morgado

caloteiro escarnecido como um homem pobre, decadente, vivendo de sua enganosa

aparência.

Além destes, encontramos em segundo plano, mas também envolvidos direta

ou indiretamente no meio familiar, uma diversidade de personagens

complementares que servem de apoio aos diálogos, e, por vezes, veremos aspectos

coincidentes, ou divergentes no relacionamento deles com os demais. Eles também

desempenham tarefas cênicas, como introduzir objetos, ou outros personagens,

contribuindo para a sensação de movimento da peça. Sua presença funciona como

uma tela de fundo onde sobressai a figura principal63.

O entremez apresenta esses personagens suplementares pela função social,

mas não traça um perfil definido quanto a sua caracterização64. Daí resulta uma

situação circunstancial carecendo de importância por si mesmo definindo-se em

função do oficio que desempenham. São eles: noticioso, cadete, alcaide, fidalgo,

alfaiate, barbeiro, cabeleireiro, sapateiro, letrado, poeta, taverneiro, aldeão, filósofos,

galego, marujo, tabelião, morgado, meirinho e oficiais, mestre de dança, mestre

frances, mestre de capela (professor de música), músicos, cômico, gracioso,

maquinista, compositores, escravos, e criados.

60Entremez O enganador enganado, ou o testamento supposto. Lisboa. Officina de Fernando Joze

dos Santos, 1784. 61

MARTÍNEZ LÓPEZ, Maria José. Op. Cit., p. 116. 62

Pequena pessa A Casa de Pasto. Lisboa, Officina de João Antonio Reis, 1794. 63

Ibidem, p. 135. 64

Idem.

Page 23: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

23

Apesar de classificados como personagens de apoio, precisamos fazer

algumas considerações a respeito dos criados. Os criados constituem um grupo

coeso, e são personagens sempre presentes quando o assunto é casamento, ou

família. Sua situação é de companhia incondicional ao lado de seus senhores no

espaço público, ou no privado. Assim, não podemos considerá-los completamente

subordinados, pois muitas vezes parecem manter uma relação de amizade com

seus senhores.

A utilidade cênica deste grupo contribui para viabilizar a exposição das

situações funcionando como apoio dialogal para os demais personagens65.

Especialmente, em relação ao casamento, são eles que fazem a ponte entre os

pretendentes facilitando sua entrada no espaço privado. Levam e trazem bilhetinhos,

armam intrigas e burlas contra pais e tutores intransigentes e tiranos. Todavia, a

arriscada colaboração dedicada aos patrões não é gratuita, pois eles aproveitam a

situação para concretizar o próprio casamento.

Se entre os personagens masculinos a identificação sociodramática é feita de

forma clara e objetiva, entre as personagens femininas não ocorre o mesmo. Em

geral, as mulheres são identificadas pelo nome seguido de seu grau de parentesco –

sua filha, sua mulher - em relação ao protagonista. Dito de outra forma, as mulheres

não têm identificação social definida, a não ser pelo seu papel dentro da família, e

com relação às criadas acontece o mesmo.

Assim como qualquer personagem masculino, o personagem feminino não

escapa a estereótipos, distinguindo-se segundo duas características apontadas por

Martinéz López: o impulso erótico, traço proveniente do entremez renascentista; e o

interesse pelos valores materiais, proveniente do entremez barroco, conforme

estudo desenvolvido por Huerta Calvo66. O palco de sua atuação não poderia ser

outro senão o ambiente doméstico.

65 Idem.

66CALVO, Huerta. Apud: MARTÍNEZ LÓPEZ, Maria José. El Entremés: Radiografia de um gênero.

Toulouse. Universitaires Du Mirail, 1997, p. 124.

Page 24: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

24

Freqüentemente, o aspecto erótico acompanha o tipo tradicional feminino

representado pela mulher mal casada. Jovem e formosa, seu traço marcante é a

leviandade de sua conduta. Antes de qualquer prerrogativa, seu papel atende a um

sistema de oposição quando contrasta com o „velho‟ e enojado marido67. A idade

cronológica associada à decrepitude do esposo só fazem aumentar a luxuria da

mulher. Sua voluptuosidade constitui um componente indispensável nas intrigas

geradas por um matrimonio desigual (causa dos desvios das jovens esposas), como

exemplo veja-se o novo entremez intitulado O divertimento das noites de inverno68.

Coincidindo com a mal casada na busca da felicidade está a figura moderna

da jovem filha, lutando contra o pai, ou tutor, para defender a escolha do futuro

marido. Movida por impulsos sentimentais e sensuais, o traço característico desta

personagem é o gosto pela sociabilidade, ou viver em sociedade, e pela moda69, um

dos elementos mais reiterados pelas personagens femininas.

A jovem coquete é a expressão da frivolidade feminina70 de seu tempo. Sua

índole cômica está ligada às trapaças e burlas que se desenvolvem com a ajuda das

criadas para driblar as determinações casamenteiras dos pais, como exemplo a

pequena peça Esparrella da moda71. Também age pelos impulsos eróticos a velha

viúva.

Mas, nem todas as jovens filhas estão em conflito com os pais. Existem

aquelas que apesar de agirem por impulsos eróticos, podem escolher o futuro

marido, ou ainda, aquelas que não querem casar, como no exemplo do novo

entremez intitulado Da Doutora Brites Marta72.

Muito embora elementos discordantes dominem o cenário entremezil,

existem, em determinadas peças, situações onde jovens obedientes cumprem a

67Ibidem, p. 125.

68 Entremez O divertimento das noites de inverno. Lisboa, Officina de Joze de Aquino Bulhoens,

1789. 69

Ibidem, p. 132. 70

Ibidem, p. 133. 71

Pequena peça Esparrella da Moda composta por José Daniel Rodrigues da Costa. Lisboa, Officina de Domingos Gonsalves, 1784. 72

Entremez Da Doutora Brites Marta de Pedro Antonio Pereira. Lisboa, Officina de Domingos Gonçalves,1783.

Page 25: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

25

vontade dos pais aceitando sem resistência o casamento contratado. Nestas peças

as mulheres se definem em função dos valores materiais contribuindo para a

permanência da tradição. O novo entremez intitulado O cazamento gostozo73 conta

a história de uma „dama‟ acatando a vontade de seu pai e casando-se com seu

primo, um médico.

As criadas, assim como vimos com os criados, compactuam as artimanhas

matrimoniais. Arquitetam estratégias que nem sempre dão certo. Sua presença no

seio da família é significativa e subordinada. Porém, são personagens ambíguos. Se

por um lado elas coincidem com a coquete nos impulsos sensuais, por outro, elas

mantêm o interesse em valores materiais. Certamente, aliar o útil ao agradável era o

projeto de vida destas mulheres, que costumavam concretizar o próprio casamento

juntamente com suas patroas, casando-se com o criado do noivo.

Ao oposto da variedade de personagens masculinos suplementares, as

personagens femininas suplementares constam em apenas uma peça. Trata-se de

uma mulher exercendo atividade econômica, uma vendedora de mercado, como

apresentado no entremez Os fulares da Paschoa74. Além dela podemos considerar

ma personagem exótica: uma cigana. Encontramos, ainda, a menção a um

cachorrinho de estimação chamado diamante; mas, curiosamente, o entremez não

traz nenhuma menção à presença de crianças. Isto ocorre, sem dúvida, pela

interdição de colocar crianças em cena.

Certamente, a análise dos elementos estruturantes do entremez pode ser

ampliada em um segundo momento, pois faz parte da organização e estruturação do

texto teatral articular elementos que prendam a atenção do público pela similaridade

com a vivência social75, não se restringindo a acontecimentos isolados, podendo

revelar indícios das práticas costumeiras do antigo regime.

É preciso lembrar também que o entremez, enquanto produção teatral ou

literária esteve submetido à apreciação da censura, assim como toda obra teatral ou

73Entremez O Cazamento gostozo. Officina de Fellipe José de França e Liz, 1790.

74Entremez Os fulares da Pascoa comprados por toda a plebe que nos dias santos se vão divertir ao

arayal do biato. Composto por A. R. Lisboa, Officina de Francisco Borges de Sousa, 1785. 75

RYNGAERT, Jean-Pierre Introdução à análise do teatro. SP: Martins Fontes, 1996, p. 37.

Page 26: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

26

literária da época. O período de regência de D. Maria I exerceu intensa repressão e

perseguição aos liberais, aos pedreiros livres e a todos que se mostrassem

partidários de ideais franceses ou americanos76. De acordo com Carreira, a partir da

nomeação de Pina-Manique como Intendente Geral da Polícia, nem mesmo os

membros da Real Academia de Ciências de Lisboa escaparam77.

A despeito da atuação vigilante da censura sobre toda produção literária e

intelectual, os autores anônimos do entremez encontraram no casamento um ardil

competente para atacar as deficiências e os vícios da sociedade. Precisamente a

sociedade do Antigo Regime, constituinte da progressiva euforia da convivência em

ambientes públicos ou privados, onde as visitas, assembléias, funções, heranças, e

dotes corporificavam uma rede de relações sociais destinada a compor uma aliança

de opostos78.

76 MARQUES, A. H. de O. Breve história de Portugal. Lisboa: Editorial Presença, 1998, p. 365.

77 CARREIRA, Laureano. Op. Cit., 1988, p. 24.

78 LANA, Marcos. Nota sobre Marcel Mauss e o Ensaio sobre a dádiva. Revista de Sociologia e

Política, n° 14: p. 173-194, jun. 2000.

Page 27: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

27

2 – O casamento tradicional e as antigas práticas

De acordo com a análise da estrutura do entremez exposta nas páginas

anteriores, pudemos verificar como o entremez articulava os elementos dramáticos.

A partir daí passaremos a analisar o casamento segundo a especificidade que lhe é

dada por essa forma popular de teatro, bem como as práticas costumeiras

apontadas e respectivas interações com seu contexto social.

A apresentação do casamento entremezil se desdobra em várias

circunstâncias dispostas de forma ambígua: enquanto o tradicional casamento

arranjado, uma prática antiga e comum à sociedade de corte; e, enquanto

casamento pela livre escolha dos noivos, que exploraremos posteriormente. As duas

vertentes matrimoniais mostram evidências de práticas sociais constituintes de “um

constante dar-e-receber” 79. Esteio de um sistema de trocas que cingia a sociedade

do antigo regime, a dádiva consistia em um fenômeno abrangente de toda estrutura

social da época, condicionando a comunidade nos planos econômico, jurídico e

religioso.

Conforme Marcos Lana, a etnografia da troca sugere certa alienabilidade, que

particularmente no século XVIII, com o enriquecimento da burguesia, adquiriu certa

potencialidade. Assim, as trocas não eram apenas materiais podendo se estender à

troca de valores morais e sentimentais. Como um ato espontâneo, mas ao mesmo

tempo obrigatório, a dádiva alimentava os vínculos relacionais e as alianças

matrimoniais80.

Primeiramente convém esclarecermos que o casamento abordado pelo

entremez é o casamento tradicional, católico, regulamentado pelo Concílio de

Trento, em 1563, onde ficou decidido que o casamento era um sacramento,

79 LANA, Marcos. Nota sobre Marcel Mauss e o ensaio sobre a dádiva. Revista de Sociologia e

Política, n° 14, 2000: p. 173-194. 80

Ibidem.

Page 28: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

28

monogâmico e indissolúvel, acerca do qual a Igreja tinha autoridade exclusiva, e o

estado de virgindade era superior ao estado de casado81.

É preciso observar também o detalhe da idade do casamento entremezil.

Segundo o direito canônico, o casamento poderia realizar-se “como um livre contrato

entre um menino de 14 anos e uma menina de 12” 82, mas os pais protestavam

contra esta norma, pois no entendimento deles os filhos eram ainda muito jovens

para assumir o compromisso matrimonial. Somente no século XVIII, a maioria dos

Estados católicos, a exemplo dos Estados protestantes, resolveria a questão

exigindo a autorização paterna para o casamento de menores. Todavia, o

casamento entre menores não é mencionado pelo entremez, que apresenta o

casamento como um jogo de forças tenso e conflituoso entre pais e filhos, por vezes,

enfatizando valores materiais, por vezes, demonstrando um objetivo moral. Para

este gênero do teatro de cordel casar constituía uma aliança de interesses por parte

de homens e mulheres supostamente predispostos a formar uma família que não se

restringia aos limites do lar.

Nas sociedades do Antigo Regime o casamento tradicional era a base de uma

família patriarcal, dotado de objetivo e importância estratégica: a acumulação de

riqueza, e as alianças políticas83. Mas, cabe perguntarmos, de acordo com esta

dupla apreciação, como seria a estrutura das relações matrimoniais e familiares na

sociedade portuguesa no final do século XVIII?

Claude Lévi Strauss, em seu clássico estudo As estruturas elementares do

parentesco, observou que as sociedades complexas, como a sociedade européia

em geral, eram organizadas pela linha de descendência, e a regra principal, ou

ainda, a prática matrimonial vigente era a exogamia84, ou o casamento fora do grupo

de parentesco familiar. De fato, entre as peças de entremez constantes deste

trabalho observamos que este é o modelo predominante no teatro de costumes. No

81 LEBRUN, François. O sacerdote, o príncipe e a família. In: BURGUIÈRE, André ET all. História da

Família. v. 3 Lisboa: Terramar , 1998, p. 85. 82

CASEY, James. História da família. São Paulo, Editora Ática, 1992, p. 120. 83

Ibidem, p. 23. 84

Ibidem, p. 226.

Page 29: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

29

entanto, a endogamia85, ou o casamento dentro do mesmo grupo de parentesco, da

vizinhança, vila ou classe, foi encontrada no entremez intitulado O cazamento

gostozo 86, datado de 1790. A peça apresenta a história de um casamento

contratado por um velho pai, viúvo, para Lucinda, sua filha, com seu sobrinho, um

velho médico. Segundo o pesquisador da história da família, James Casey, foi Lévi-

Strauss quem construiu a noção teórica da “esposa como a base da estrutura social”

87 nas sociedades complexas. A mulher estava na base das relações de troca

estabelecidas pelo casamento88 devendo casar-se fora do grupo familiar próximo.

Esta premissa está claramente evidenciada nas fontes.

2.1- O dote

A concretização de um casamento exigia a posse de um dote89, assim como o

apoio de parentes e amigos que tinham certo interesse nesta prática90. A mulher, ao

sair da tutela dos pais, passava para a tutela do marido levando com ela o dote,

bens móveis ou imóveis, consolidando uma estratégia política e econômica vigente

na nobreza91. Renata Ago esclarece que nem todas as filhas recebiam dotes, e

apenas uma ou duas delas recebiam dotes92 proporcionais ao seu status93.

85 Idem.

86 Novo entremez Cazamento gostozo. Lisboa, Officina de Fellipe José de França e Liz, 1790.

87 LÉVIS-STRAUSS, CLAUDE Apud: CASEY, James, Op. Cit., p. 85.

88 COELHO, Maria Helena da Cruz e VENTURA, Leontina. A mulher como um bem e os bens da

mulher. In: A MULHER NA SOCIEDADE PORTUGUESA; visão histórica e perspectivas actuais. Coimbra: Instituto de História Economica e Social, 1986. V. 1. P. 51-89. 89

O dote, ou, “donatio propter nuptias, em latim “presente de casamento” dado pelo noivo à noiva, era típico das sociedades mediterrâneas, onde serve como contrapartida do dote trazido pela nubente à nova família que se constitui. Não deve ser confundido com o arras.” CASEY, James. Op, Cit., p. 226. 90

Ibidem, p. 98. 91

COELHO, Maria Helena da Cruz e VENTURA, Leontina. Op. Cit., p. 51-89. 92

AGO, Renata. Jovens nobres na era do absolutismo: autoritarismo paterno e liberdade. In: LEVI, G. e SCHMITT, J. História dos jovens da antiguidade à era moderna. v. 1 São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 326. 93

O termo status se refere à posição social do individuo, que nas culturas tradicionais poderia ser „alcançado‟, enquanto que nas sociedades modernas o „status‟ é atribuído pelo grupo. Sobre a expressão ver CASEY, James. Op. Cit., p. 33.

Page 30: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

30

Segundo Alan Macfarlane o casamento, na Inglaterra, era resultado de uma

escolha individual, constituindo uma família conjugal autônoma. Em Portugal não era

essa a prática corrente. Porém, alguns aspectos são comuns aos dois países. Para

o mundo anglo-saxão, o dote também era uma contribuição econômica da mulher

por ocasião do matrimonio. A contribuição da filha inglesa poderia ser feita em bens

móveis, principalmente a mobília da casa, ou um montante em dinheiro, ou ainda, a

antecipação de sua parte na herança94. Com o propósito de um negócio, ambos

procuravam “obter as maiores vantagens possíveis para cada uma das partes; não

por ambição, e sim para não ser logrado” 95. O autor explica que, acima da pequena

nobreza, o acerto de detalhes financeiros envolvia um intenso jogo de interesses

defendido por outros filhos e parentes96.

O teatro popular procura expor a prática do dote de forma a discutir o

costume, como acontece no entremez composto por A. R., As filhozes do Entrudo

feitas em caza de Pantufo Rombo sapateiro, e sua mulher Mona Xorina, com

asistencia de seus compadres Sergio Caroso, barbeiro, e sua mulher Tramoia

Morena97. Na fala de Tramóia Morena está o pesar de ter um marido que gastou os

dois dotes que ela levara ao matrimonio. No entanto, o diálogo revela que ele os

gastou divertindo-se com ela em passeios e funções. Pantufo, marido de Mona

Xorina, confessa ter gasto o dote da esposa, em romarias, o que o levou à

necessidade de trabalhar “para passar a vida sem calotes” 98.

Em tom de denúncia acerca do aspecto permutável do dote, o “novo e

divertido entremez” intitulado Os disgostos que teve huma secia de Lisboa, por amor

do seu amante 99, ilustra a preocupação de um pai, Pancracio, dono da casa, com o

casamento de sua filha, Silvia. O pai se lamenta do trabalho que tem para evitar que

94 MACFARLANE, Alan. História do casamento e do amor. São Paulo: Companhia das Letras, 1990,

p. 271. 95

Ibidem, p. 298. 96

Ibidem, idem. 97

Entremez As filhozes do entrudo feitas em caza de Pantufo Rombo sapateiro, e sua mulher Mona Xorina, com asistencia de seus compadres Sergio Caroso, barbeiro, e sua mulher tramóia morena. Lisboa, Officina de João Antonio da Silva, 1785. 98

Ibidem, p. 4. 99

Entremez Os Disgostos que teve huma sésia de Lisboa, por amor do seu amante. Lisboa, Officina de Francisco Borges de Sousa, 1789.

Page 31: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

31

sua filha se case com um homem que não conhece “qual seja o seu fundo, e o seu

princípio” 100. O pai se diz honrado e não pretende ver a filha, “nas mãos de um

vadio, que se ella leva dote, tem certo o estrago delle, e quando o não leve, He de

continuo mortificada, passando a vida em horrida afflicção, e continos desgostos” 101.

A intensa preocupação de Pancrácio está voltada para a possibilidade de ter

como genro um peralta, o maior antagonista do bom casamento nos entremezes. A

figura do peralta corresponde ao filho da nobreza que não era primogênito, desta

forma não tinha direito a herança102. E, ao contrário do primogênito, a menos que ele

conseguisse dar o golpe do casamento em alguma herdeira rica, estaria condenado

ao celibato103.

Em Portugal, assim como na Inglaterra, somente o filho mais velho poderia

herdar imóveis. Mas, na Inglaterra, o primogênito, por vezes, poderia contribuir para

o dote de irmãos e irmãs mais jovens104. Assim, o casamento entre diferentes

classes sociais tornava-se comum, facilitando a mobilidade social. Registros de

casamentos mostram filhos artesãos ou de trabalhadores pobres frequentemente

desposando filhas de homens ricos105, o que em Portugal era menos frequente. No

espaço ibérico prevalecia a pressão exercida sobre as filhas, que se justificava em

função da evasão de bens que significava um casamento inconveniente, contrário a

consolidação de laços econômicos e políticos106.

O perfil satírico do teatro de costumes aborda de forma pungente o interesse

econômico envolvendo o casamento. No entremez A Grande Desordem de Huma

Velha Com Hum Peralta Por não querer casar com Ella107, um peralta promete

casamento a uma velha viúva. D. Corcomida, a viúva, acredita na promessa e

presenteia o peralta com dádivas, como prendas, e jóias. Contudo, no decorrer do

100 Ibidem, p. 6.

101 Idem.

102 AGO, Renata. Jovens nobres na era do absolutismo: autoritarismo paterno e liberdade. In: LEVI,

G. e SCHMITT, J. Op. Cit., p. 327. 103

Ibidem, p. 326. 104

MACFARLANE, Alan. Op. Cit., p. 287. 105

Ibidem, p. 265. 106

Ibidem, p. 255. 107

Novo, e divertido entremez A grande desordem de uma velha com hum peralta por não querer casar com ella. Lisboa, Officina de Antonio Gomes, 1790.

Page 32: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

32

diálogo, verificamos que Aurélio traia a viúva com sua neta. Ao descobrir a traição,

D. Corcomida, enfurecida, ameaça deserdar a neta e retirar seu dote. Merlin e

Lesbia, os criados, interferem na confusão e fazem ver a senhora o desatino de seus

atos. D. Corcomida acaba reconhecendo seu erro, se arrepende, e, todos vão

“contentes festejar tão alegre dia.” 108.

Este entremez aponta diversos aspectos do casamento. Primeiramente,

chama a atenção para a promessa de casamento, ou os esponsais, que o peralta

não cumpriu. Segundo Casey, os esponsais, “constituíam uma obrigação solene” 109,

que caso não fosse cumprido, além de comprometer a reputação da noiva, também

era punido com a prisão do farsante. A promessa de D. Corcomida em deserdar a

neta e retirar seu dote é válida. Uma viúva herdava os bens do falecido marido, e,

podia transmiti-los, ou não, aos legítimos herdeiros110. Vale comentar que a viuvez,

em Portugal, na segunda metade do século XVIII, era considerada uma espécie de

alforria, já que o costume de enclausurar as viúvas havia desaparecido111. Em

oposição à materialidade enfatizada durante o desenrolar da história, no final, toda a

discórdia é colocada em segundo plano quando a viúva corrigindo o próprio erro

também perdoa os erros dos jovens.

Em outras fontes verificamos que não era só o peralta que procurava por um

bom dote. O entremez O estudante bazofio e desgraçado112, publicado em 1787,

apresenta um estudante de Coimbra tentando dar o golpe do casamento em um

letrado. O letrado, que havia “ajuntado bastante cabedal” 113, procurava para sua

filha um esposo morgado. Com o intento de conseguir o consentimento do letrado, o

estudante se faz passar por um filho da aristocracia, um nobre morgado da Província

de Alentejo, dizendo que seu pai era proprietário de fazendas, quando na verdade,

seu pai era estalajadeiro. Tentando convencê-lo de sua descendência o estudante

afirma:

108 Ibidem, p. 15.

109 Casey, James. Op. Cit., p. 119.

110 COELHO, Maria Helena da Cruz e VENTURA, Leontina. Op. Cit., p. 51-89.

111 SILVA, José Gentil. A situação feminina em Portugal na segunda metade do século XVIII. Revista

de História das Idéias. v. 2, tomo 1, 1982-1983, p. 151. 112

Novo entremez O estudante bazofio e desgraçado. Lisboa, Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1787. 113

Ibidem, p. 3.

Page 33: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

33

Todo empenho de meu pai he casar-me. Os melhores

casamentos da Provincia se me tem offerecido, e ha pouco que

se me offereceo hum de huma Senhora herdeira de huma casa

avultadissima: porém eu não faço gosto de casar na Provincia

de Alemtejo; e a minha inclinação toda he casar nesta terra,

porque tenho gostado muito della, e as minhas rendas são tão

bem estabelecidas, que em qualquer parte as posso comer. 114

O caso acima não seria condenável na Inglaterra. Segundo Macfarlane, lá os

filhos eram aconselhados a usar sua boa educação e títulos para desposar filhas de

comerciantes ricos. Mesmo nas camadas mais inferiores da sociedade, “um filho de

trabalhador pobre poderia desposar a filha de um agricultor ou açougueiro rico” 115.

Para as sociedades do Antigo Regime esta atitude representava a decadência da

nobreza em favor das casas dos novos-ricos, e poderia colocar a riqueza acima da

honra116, um dos valores culturais mais caros as sociedades mediterrâneas.

2.2 - A honra

As sociedades do Antigo Regime eram formadas por reunião de indivíduos

localizados em grupos corporativos como as linhagens, corporações profissionais,

ou fraternidades, que controlavam a vida social e política117. Alicerçados pelas

alianças matrimoniais fundadas na honra, tais grupos permaneciam regulando a

ordem econômica e a ordem política da comunidade. A honra consistia em um

símbolo moral comunitário, mas também individualista118. No sentido comunitário

representava o reconhecimento público de uma família, ou de uma casa. No sentido

114 Ibidem, p. 12.

115 MACFARLANE, Alan. Op. Cit., p. 264.

116 Ibidem, p. 265.

117 Ibidem, p. 33.

118 PITT-RIVERS, J. Honra e posição Social. In: PERISTIANY, J. G. Honra e Vergonha: valores das

sociedades mediterrânicas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1988, p. 23.

Page 34: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

34

individualista “tratava-se de uma disposição externa, de se comportar de forma

conveniente às regras sociais do seu estado”. 119

O aspecto comunitário da honra é observado na pequena peça Esparrella da

Moda, de 1784, de autoria de José Daniel Rodrigues120. Na fala de Fagodez, um

velho pai, mercador de azeite de peixe, que ao voltar do trabalho entrando em casa

encontra em sua sala, as filhas, de conversa com dois estranhos. A mãe vai ao

encontro do velho pai e explica que um dos estranhos é pretendente de uma das

filhas. Fagodez, porém, se mostra preocupado com o rumo da conversa e percebe

que a situação poderia colocar em jogo a honra de sua casa. Agindo rapidamente,

Fagodez consente no casamento da filha. No diálogo ele afirma: “Não importa, a

todo custo, sou de humilde nascimento, mas nada troco pela reputação da minha

caza.” 121 A perspectiva de Fagodez está relacionada ao “capital simbólico” de uma

“casa” 122, enquanto expressão de procedência e credibilidade, atributos usados

para o prestígio familiar em defesa de interesses econômicos, e políticos.

Em termos de comportamento individual masculino, e ancorado no papel

público do homem, a honra é um elemento fortemente ressaltado nos diálogos do

entremez. Vários entremezes clamam por ela, como por exemplo, A desordem dos

noivos de oito dias 123 que conta a breve história de um marido, recém casado,

tentando desfazer o casório, por causa do mau comportamento de sua esposa. A

recém casada esposa não se mostrava disposta ao bom „governo da casa‟, nem

disposta a cuidar dos cabedais do marido. Percebendo a ameaça que a rebeldia da

esposa representava à sua honra, e na tentativa de conservá-la o marido sente sua

autoridade desafiada e resolve devolver a mulher para casa do sogro.

Diz Rodrigo de Renginer, o marido:

119 XAVIER, A. B. e HESPANHA, A. M. “A representação da sociedade e do poder”. In:_____. História

de Portugal. v. 4. Editorial Estampa, p. 120. 120

Pequena peça Esparrella da Moda composta por José Daniel Rodrigues da Costa. Lisboa, Officina de Domingos Gonsalves, 1784. 121

Ibidem, p. 15. 122

A expressão “casa” está relacionada à importância da economia doméstica como um modelo organizacional e referencial para a gestão do poder político. Sobre a expressão, ver RODRIGUES, J. D. A casa como modelo organizacional das nobrezas de São Miguel (Açores) no século XVIII. História: Questões e Debates, Curitiba, n. 36, p. 11-28, 2002. Editora UFPR. 123

Novo entremez A desordem dos noivos de oito dias. Lisboa, Officina de Francisco Borges de

Souza, 1791.

Page 35: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

35

Oh caspite, ainda mal, que por nossa disgraça se encontrão no

mundo tantos, e tantos desses maridos, que não tem outro

modo de viver, nem em sua casa, outra cousa se pratica, eu

sertamente nunca os emittarei, os estimollos da honra

conservo, e só os perderei quando perder a vida, em huma

palavra, logo logo se ponha V. m. prompta para irmos a casa

de seu pai, quero-lhe agradecer a sublime esposa de governo,

que me deo... 124

O entremez acima assinala a divisão das atribuições sociais relativos ao

homem e a mulher. À esposa cabia o „governo da casa‟125, ou seja, a administração

da casa, o oikos, pois a economia familiar dependia da cooperação mútua entre

marido e mulher, o homem na esfera pública e a mulher na esfera privada.

Segundo Maria Antonia Lopes, historiadora que também analisou fontes do

teatro de cordel, o valor moral da honra em relação ao homem “residia nos actos

públicos, e nas relações dos homens uns com outros” 126. A honra da mulher estava

ligada estritamente ao seu comportamento sexual, como vimos no entremez citado

anteriormente. Casey avalia que, nas sociedades tradicionais, a vida pública e a

familiar não estavam isoladas uma da outra, assim a honra sexual era “homenagem

que a primeira paga à segunda” 127.

O Gatuno de Malas Artes128, também discute a questão da honra dos maridos

apresentando ao público a história de Damiana e Roque. O pai de Damiana tinha a

intenção de casar sua filha com alguém tão rico quanto ele, “abundante de bens” 129.

Todavia, o entremez adverte que o hábito da „escolha de estado‟ para as filhas pode

colocar em risco as honras dos maridos e dos parentes, já que as filhas não podiam

124 Ibidem, p. 9.

125 CASEY, James. Op. Cit., p. 125.

126 LOPES, Maria Antonia. MULHERES, ESPAÇO E SOCIABILIDADE A transformação dos papéis

femininos em Portugal à luz de fontes literárias (segunda metade do século XVIII) Lisboa, Livros Horizonte, 1989, p. 22. 127

CASEY, James. Op. cit., p, 59. 128

Entremez Gatuno de malas artes. Lisboa, Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1791. 129

Ibidem, p. 5.

Page 36: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

36

escolher seus cônjuges. A expressão „escolha de estado‟, ou ainda, „tomar estado‟

era usada para designar os dois estados que as mulheres tinham como opção de

vida: ou casadas, ou religiosas130.

Para romper a prática tirana, muitas filhas, com a ajuda das criadas, armavam

estratégias para fugir, ou mesmo simular um „rapto‟, com o marido escolhido. Na

peça, para concretizar seu casamento com Damiana, Roque conta com a ajuda de

Gatuno, que sugere a Roque uma fuga. Diz Gatuno: “Deixa o negócio por minha

conta, foge com ella, préga-te em casa, já que vives parede meias, e deixa zoar a

cavalheira.” 131

O Concílio de Trento havia definido que o casamento deveria se realizar em

uma cerimônia pública, na presença de um padre e duas testemunhas132; no

entanto, em relação ao consentimento paterno nada ficou definido. Dessa forma,

embora o casamento clandestino (casamento por fugas ou por rapto) 133 fosse ilegal,

era reconhecido como válido pela Igreja. Diante disso, a primeira medida tomada

pelos pais, habitualmente, era deserdar a filha, e perseguir publicamente o pretenso

marido134. Todavia, esta atitude não surtia nenhum efeito, pois os nubentes

poderiam se mostrar arrependidos e pedir perdão ao pai, e com o perdão do pai o

casório estava concretizado135. Inúmeros entremezes encerram a peça desta

maneira.

Gatuno expõe a situação da seguinte forma:

saiba Senhor Bastião, que a escolha de estado para as filhas,

deve ser a contento das mesmas, porque do contrario nascem

infinitas desordens, perigão as honras dos maridos, dos

parentes, &c: a sua tinha escolhido o Senhor Roque, cumprio o

130 ALMEIDA, Suely Creusa de. O sexo devoto: normatização e resistência feminina no Império

Português, XVI – XVIII. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2005, p. 26. 131

Entremez Gatuno de Malas Artes. Op. cit., p. 11. 132

CASEY, James. Op. Cit., p. 116. 133

Ibidem, p. 123. 134

COELHO, Maria Helena da Cruz e VENTURA, Leontina. Op. Cit., p. 51-89. 135

CASEY, James. Op. Cit., p. 123.

Page 37: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

37

seu gosto, está satisfeita, alegre, e consolada. V. m. também

faça o mesmo, satisfaça-se com as alterações do Ceo, ...136

Simultaneamente os criados dos nubentes também pediam autorização para

o próprio casamento, e conseguiam. A prática referente ao casamento dos criados,

constante em grande número de peças, pode ser entendida de acordo com o que

Macfarlane nos explica: os criados domésticos arriscavam perder seus empregos

caso se casassem sem a autorização dos patrões. O casamento dos criados era

desencorajado pelos senhores, e em relação às criadas, simplesmente não era

admitido137.

Encontramos no entremez O contentamento dos pretos por terem a sua

alforria138, o modelo exemplar de obediência e recato louvável para uma filha. O pai,

um mercador, comunica a sua filha a vinda de seu noivo, escolhido pelo pai, e lhe dá

conselhos sobre o bom procedimento de uma esposa. Explica que, como uma

mulher casada ela deverá se sujeitar ao esposo, sendo carinhosa e paciente quando

ele se mostrar alterado. Deverá respeitá-lo, amá-lo, e jamais lhe dar motivo de

descontentamento139, com o que a filha concorda plenamente.

O discurso paterno expresso na peça referida é amplamente discutido e

divulgado pela literatura daquele tempo. Vale citar a Carta de Guia de casados, de

D. Francisco Manuel de Melo, uma das mais conhecidas obras literárias de época.

Editada pela primeira vez em 1651, ainda gozava de ampla difusão no século XVIII.

A obra coincide sua abordagem com o teatro popular, no sentido de prognosticar um

modelo ideal de casamento conjugado a um modelo ideal de esposa. Tal como uma

cartilha, a obra „aconselha‟ aos homens as atitudes adequadas ao trato do

comportamento feminino discorrendo

136 Entremez Gatuno de Malas Artes. Op. cit., p. 15.

137 MACFARLANE, Alan. Op. Cit., p. 100.

138Entremez O Contentamento dos Pretos, por terem a sua alforria. Lisboa, Officina de Domingos

Gonsalves, 1787. 139

Ibidem, p. 12.

Page 38: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

38

pellos vários generos de ruins qualidades, que acõtece haver

nellas, para que a todos se possão aplicar os remédios

convenientes. Mas nem por isso se espere que de todas se

consiga a melhoria140.

Segundo Macfarlane, a literatura matrimonial era abundante também na

Inglaterra. No entanto, a questão do comportamento feminino não sofre a mesma

avaliação negativa como podemos notar nos países de religião católica. Em

qualquer das classes analisadas dentro do sistema malthusiano141 o casamento se

originava de uma escolha pessoal e a união de um casal era cercada de

preocupações com as necessidades práticas e com as inclinações pessoais. O

longo e pouco vigiado namoro estava voltado para o conhecimento mútuo do casal.

Os esponsais eram considerados um pré compromisso onde o intercurso sexual era

entendido como uma condição natural de envolvimento dos noivos, o que por vezes,

resultou em um percentual notável de mulheres grávidas por ocasião do casamento.

Mas isso certamente não causava nenhum tipo de embaraço, pois a circunstância

teria simplesmente aumentado nos séculos XVIII e XIX. Além disso, a idade tardia

para concretizar o casamento era acompanhada da proibição de relações sexuais

fora dele o que só fazia aumentar a pressão entre o casal142. Macfarlane explica

ainda que, a análise de Malthus considerava as vantagens e desvantagens do

casamento partindo de um ponto de vista individual direcionada à base econômica

do sustento de uma família, papel atribuído ao homem143.

De certa forma, percebe-se que o entremez ao abordar as práticas

tradicionalistas do dote e da honra tem por intuito questionar sua validade. Em

relação ao dote, não se mostra preocupado com a condição feminina, e sim com o

destino da riqueza ameaçada pela alteridade. Com relação à honra, deixa bem claro

a necessidade de mantê-la, a qualquer custo, reforçando o cenário do papel

140 MELO, Francisco Manuel de. Carta de Guia de casados. Disponível em

http://www.uc.pt/uid/celga/recursosonline/cecppc/textosempdf/05cartadeguiadecasados - 10.10.2010. 141

O sistema malthusiano de casamento foi um estudo realizado por Malthus analisando o controle preventivo da sociedade inglesa para retardar a realização de um casamento. MACFARLANE, Alan. Op. cit., p. 23. 142

MACFARLANE, Alan. Op. Cit., p. 310. 143

Ibidem, p. 286.

Page 39: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

39

feminino e seu comportamento, e reiterando também o papel público do homem. Por

outro lado, para validar seu perfil cômico o teatro de cordel procura levar ao público,

em contraste com a tradição, as novas tendências trazidas pelos ventos franceses

da sociabilidade.

Page 40: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

40

3 – A influência das novas sociabilidades

A segunda metade do século XVIII caracterizou-se pela difusão dos ideais

iluministas, pela transformação dos costumes decorrente do cosmopolitismo, e pela

crescente sociabilidade, conseqüência natural de um novo modo de pensar que

moldava uma nova cultura. Da França, as novas tendências se expandiam por toda

a Europa, mais em alguns países e menos em outros. A sociedade de corte em

geral lia os mesmo livros, tinha o mesmo gosto e gestual, orientados pelo modelo

social parisiense144. No ambiente intelectual as novas tendências impulsionaram

uma cultura emergente marcada principalmente pela crescente liberdade do

pensamento145 e da imprensa146.

Apesar de não podermos aplicar o argumento da liberdade de pensamento,

ou de expressão, ao nosso tema e fontes, consideramos, mesmo em parte, a

possibilidade de encontrarmos na versão entremezil do casamento arranjado um

novo modo de pensar, de se comportar, de se relacionar em sociedade observando

possíveis evidências que o ideal iluminista propagou.

De fato, o entremez apresenta uma abertura nas relações sociais decorrente

de influências iluministas tangendo o antigo modelo do casamento contratado. Esta

abertura propõe novas possibilidades de concretização em uma união matrimonial.

As novas possibilidades consideram algumas alternativas de realização de um

casamento, entre elas, a mais alardeada, era a possibilidade da livre escolha dos

noivos, ao contrário do que vínhamos observando até agora.

144 ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. v. II Rio de Janeiro, Zahar, 1993, p. 18.

145 HESPANHA, A. M. Poder e instituições na Europa do Antigo Regime. Lisboa: Fundação Caloute

Gulbekian, 1984, p. 253. 146

IM HOF, Ulrich. A Europa no século das luzes. Lisboa: Presença, 1995, p. 14.

Page 41: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

41

3.1 - o casamento pela ‘livre’ escolha

O direito à verdadeira felicidade como o destino do ser humano147, a

expansividade, a alegria de viver, a utilidade e o prazer do convívio, da comunicação

promoveram entre os indivíduos alterações no cotidiano148. O espaço doméstico

abriu-se a sociabilidade urbana149 contrariando o velho modelo tradicional de

sociedade, e contrariando também o habitual modelo da mulher objeto, subalterna,

destinada às coisas domésticas150, à economia, ao bom governo da casa, e cuidado

com os cabedais do marido.

Para romper com o velho modelo, a perspectiva da „livre‟ escolha surge

vinculada à mudança de atitude decorrente do convívio heterossexual. Algumas

filhas descontentes e discordantes do tradicionalismo matrimonial lançavam mão de

estratégias a fim de burlar a vigilância e as duras regras paternas. Engendravam

planos para enganar seus pais e conseguir o casamento de seus sonhos.

Frequentemente contavam com a ajuda de suas criadas, que levavam bilhetinhos

para possíveis pretendentes.

No entremez intitulado Os Velhos Amantes151, publicado em 1784, Xarlon, um

pai estrangeiro, havia tratado o casamento de suas duas filhas com Otávio e

Ambrózio, dois velhos, “ricos mineiros”, com quem o pai fazia muito gosto do

casamento. Mas tal não era o plano das filhas que alegavam, acima de tudo, não

gostar e nem querer ginjas152 para marido. Lucilia, uma das filhas, expressa todo seu

desprezo por Ambrosio Camelo acusando-o de “incivil... confiado, grosseiro; e, por

tudo quanto há no mundo mais torpe e feio” 153. Burlando a vigilância paterna, as

filhas de Xarlon, auxiliadas pelos criados, levam os amantes à presença do pai, e,

147 Ibidem, idem.

148 LOPES, Maria Antonia. MULHERES, ESPAÇO E SOCIABILIDADE A transformação dos papéis

femininos em Portugal à luz de fontes literárias (segunda metade do século XVIII). Livros Horizonte

Ltda, 1989, p. 71. 149

LOPES, Maria Antonia. Op. cit., p. 67. 150

RIBEIRO, Arilda I. M. Vestígios da Educação Feminina no Século XVIII em Portugal. SP: Arte & Ciência, 2002, p. 44. 151

Pequena peça ou novo entremez Os velhos amantes. Lisboa, Officina de Simão Thaddeo Ferreira,

1784. 152

Ginja - chulo, vulgar, homem velho que segue as máximas e usos antigos. 153

Entremez Os velhos amantes, Op. cit., p. 9.

Page 42: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

42

mesmo diante da fúria dele, elas conseguem demovê-lo da decisão do casamento

arranjado. O convencimento do pai é obtido quando os pretendentes, depois de

afirmarem ter amor às filhas de Xarlon, mencionam uma renda superior a quinhentas

moedas; mas, não só isso, eles também oferecem a Xarlon uma farta merenda, com

vinho da França, perus, doces de calda, boa fruta, etc...154.

Percebe-se, de certa maneira, que o tom da negociação em torno do

casamento ainda persiste. No entanto, a concretização da escolha não está mais na

mão do pai, e sim na iniciativa das filhas. Primeiramente, a escolha das filhas se deu

pela estima e amor aos dois jovens e belos Valério e Tiburcio, dois galans.

Casey considera que o „amor‟, enquanto um sentimento conjugal, era um

interessante fenômeno moral, mais presente em países de língua inglesa. Explica,

porém, que este elemento não pode ser tomado em si mesmo, como justificativa

para as uniões matrimoniais. No contexto do século XVIII, ele se revela muito mais

um produto da sociabilidade capaz de revelar muito sobre os limites das convenções

sociais155.

Para os moralistas e os filósofos o casamento deveria basear-se no amor.

David Hume explicitava que o amor era resultado de impressões, ou paixões, como:

“a agradável sensação que emana da beleza; o apetite físico pela procriação; e uma

generosa ternura ou querer bem”. 156 Segundo Macfarlane, o amor era um tema

corriqueiro na literatura popular, fosse secular ou religiosa; peças teatrais também

recorriam constantemente ao uso do tema157. O amor romântico, antes e depois do

casamento, aparecia em várias outras fontes, como autobiografias, cartas,

romances, etc.

No teatro breve, a beleza, a aparência e as boas maneiras, frequentemente

estão associadas à idéia de amor, e se revelam parâmetros femininos e masculinos

de seleção de pretendentes, muitas vezes contrariando o interesse econômico que

154 Ibidem, p. 13.

155 CASEY, James. Op. cit., p. 108.

156 HUME, David apud MACFARLANE, Alan. Op. cit., p. 186.

157 Ibidem, p. 194.

Page 43: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

43

envolvia o casamento contratado. Percebe-se também que os mesmos aspectos

intensificam a pressão das filhas na tentativa de enfraquecer as duras regras

paternas. Nesse sentido, tais aspectos contribuem para projetar um novo horizonte

de expectativas femininas com vistas a modificar experiências passadas.

Vários entremezes apresentam enfaticamente a beleza e a aparência como

um artifício da sedução com objetivo da conquista de um pretendente. O entremez A

dama prezumida por querer andar sempre à moda158, datado de 1794, apresenta

Claudina, uma filha preocupada com sua aparência, sua beleza, e seus penteados.

Seu pai reprova o gosto de Claudina pelas novidades, não apenas pelo gasto que

representava, mas também por que contrariava o virtuoso procedimento que as

mulheres deveriam ter.

Todavia, Claudina padece de convulsões, e cada vez que quer algo o pai se

vê obrigado a fazer suas vontades devido o padecimento da filha. Claudina usa

desta artimanha para convencer o pai a consentir em sua escolha de casar-se com

Clorindo, seu namorado, que nada sabia de seu estado de saúde. A peça termina

com uma mensagem exemplar na voz de Octavio, o pai. Ele afirma que prefere ficar

só, e fugir das senhoras da moda, que provocam a ruína das casas e da mocidade.

Aconselha os pais que ensinem aos filhos o amor, as virtudes, os sólidos princípios

morais, seguindo as disposições dos céus159.

De acordo com Santos, os viajantes que estiveram em Portugal, na segunda

metade do setecentos, contam que as mulheres casadas, ou solteiras, da nobreza,

ou da aristocracia costumavam vestir-se à francesa, arrumavam penteados altos

formando algo parecido com uma coroa entrelaçados com flores artificiais, e muitas

jóias160.

No entanto, a aparência gerava grandes enganos por parte dos homens ao

escolherem uma esposa. Julgando acompanhar as novidades, os chibantes eram

158 Novo entremez A dama prezumida por querer andar sempre à moda. Lisboa, Officina de Antonio

Gomes, 1794. 159

Ibidem, p. 14. 160

SANTOS, Piedade B. RODRIGUES, Teresa. NOGUEIRA, Margarida S. Lisboa Setecentista Vista por Estrangeiros. Lisboa. Livros Horizonte Ltda, 1996, p. 76.

Page 44: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

44

homens que se opunham à antiga grifaria161 como Esganarello, um velho rico, que

aos 52 anos, preocupado em dar continuidade à antiqüíssima raça dos esganarelos,

escolheu se casar com a bela Lucilia, no entremez O Esganarello, ou o casamento

por força162. Ao perguntar a Lucilia acerca de sua satisfação em casar-se com ele,

Esganarello começa a sentir dor e um peso na cabeça quando a futura esposa

afirma esperar que ele, como um marido da moda, e homem civil não fosse

desconfiado dando a ela toda liberdade163. Diz Lucilia:

... faço tenção de viver comvosco na melhor harmonia:

eu prometto não me embaraçar com o vosso procedimento; de

vós espero outra igual correspondência; hei de jogar, visitar, ir

aos círculos, assembléias, aos theatros, aos bailes, só, ou

acompanhada de hum, ou muitos; a pé, ou em carruagem. Em

fim, fazer o mesmo que fazem todas as mais senhoras, sem

que vós desconfieis da minha fidelidade. Ciúmes nada, viver

como gente civil, e sociável; vós vivereis seguro da minha

fidelidade, e eu da vossa. 164

No diálogo, Esganarello se declara preocupado com a tal liberdade francesa,

pois a atitude dos maridos da escola moderna era, na verdade, digna de censura165.

Os chibantes, tal como Esganarello, queriam suas mulheres comportando-se à

francesa, luxuosamente vestidas, divertindo-se. Todavia, a liberdade supostamente

concedida era aparente, pois apenas se portavam de tal forma para acompanhar as

novas tendências166.

161 Grifaria – antigas normas.

162 Entremez O Esganarello ou O Casamento por Força. Lisboa, Officina de Francisco Borges de

Souza, 1792. 163

Ibidem, p. 4. 164

Ibidem, idem. 165

Idem. 166

LOPES, Maria Antonia. Op. cit., p. 121.

Page 45: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

45

Se, por um lado, existia a sedução com vistas a arranjar um marido, por outro,

existia a sedução que invadia o domínio do ilícito. É o caso apresentado pelo

entremez publicado em 1789, O divertimento das noites de inverno167. Nesta peça é

contada a história de Faustina, que achava as noites de inverno entediantes e

aborrecidas. Com o desejo de animá-las, ela convence o marido, Pantalão, a deixá-

la realizar uma função em casa. A princípio o marido resiste, mas acaba permitindo:

Está bem: veremos o seu brinquedo em que dá: Já que me

pede isso pelo nosso amor, não posso, ainda que queira,

rezistir a hum forte empenho: Divirta-se, brinque, e faça o que

lhe parecer: o que só lhe peço he, que sejão todos os seus

passatempos moderados, sem cauzarem o mínimo escândalo

a ninguém;..168.

A função seria para poucos convidados, apenas sua vizinha, que na verdade

era sua irmã, o xisxisbéo desta, e respectivos criados. Na função, Ambelino, o belo e

amável xisxisbéo, se dispõe a tocar rabeca. Todos cantam e dançam, divertindo-se.

Pantalão, o velho, acompanha tudo, e também se diverte; até o momento em que

escuta a conversa da esposa confessando amor ao xisxisbéo da irmã. Percebendo

imediatamente que Faustina estava prestes a traí-lo, o que certamente poderia

acontecer dado o interesse dela pelo belo Ambelino, Pantalão interrompe a função e

manda todos embora. Faustina, para consertar a situação, em seguida se põe

prostrada pedindo perdão ao marido, prometendo viver com ele “em união, em paz,

abandonando, e aborrecendo todos os passatempos, adorando só a modéstia...” 169

Santos analisou a sociedade portuguesa, na segunda metade do século XVIII,

através de relatos de viajantes, e afirma que nesta época havia poucas festas

167 Entremez O divertimento das noites de inverno. Lisboa, Officina de Joze de Aquino Bulhoens,

1789. 168

Ibidem, p. 3. 169

Ibidem, p. 14.

Page 46: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

46

particulares em Portugal, a não ser em dias de aniversário170. Carrère e Link

afirmaram que: “Em Lisboa as pessoas não tem o costume de se reunir

frequentemente como acontece no resto da Europa. Os portugueses vêem-se pouco

entre si...” 171 A Europa era francesa, Portugal nem tanto. De acordo com outro

viajante, mesmo em torno de década de noventa o hábito não havia mudado.

Contudo, a autora esclarece que nos últimos anos do setecentos, talvez por

influência de alguma colônia estrangeira, os portugueses teriam desenvolvido o

gosto pelo convívio, por serões musicais, bailes, e passeios, o que daria a Portugal

um certo “verniz de cosmopolitismo”172.

Um aspecto relevante neste entremez diz respeito ao papel do xisxisbéu.

Primeiro, é preciso esclarecer que o xisxisbéu não é uma figura apenas da

sociedade portuguesa podendo encontrar-se também em outros países. Em

Portugal, assim como na Espanha, era um acompanhante de mulher solteira ou

casada, designado pelo pai ou pelo marido, para acompanhá-las em sociedade. Sua

posição era de um subalterno e, no caso das mulheres solteiras não tinha como

propósito o casamento173.

Mas as novas sociabilidades eram a causa de grandes desordens e

confusões na vida familiar, podendo abalar a estabilidade do casamento. O

entremez Dos desatinos que a mulher fez a seu marido, por motivo de não a deixar

ir ver as Luminárias174 apresenta Braz Mercato, o velho, e sua mulher, Enália, em

grande conflito. Enália queria ver as luminárias, mas Braz argumenta que estava

muito velho para essas coisas175. A esposa lamenta a atitude do rabugento e grifo176

marido, mas não desiste. Braz, porém, não quer divertimentos ridículos, óperas, ou

romarias, que tudo provoca despesas excessivas. Muito alterado, ele começa a

170 SANTOS, Piedade B. RODRIGUES, Teresa. NOGUEIRA, Margarida S. Op. cit., p. 79.

171 CARRÈRE, J. B. F. e LINK, M. apud SANTOS, Piedade B. RODRIGUES, Teresa. NOGUEIRA,

Margarida S., Ibidem, idem. 172

SANTOS, Piedade B., Ibidem, p. 86. 173

LOPES, Maria Antonia. Op. cit., p. 111. 174

Entremez Dos Desatinos que a Mulher Fez a Seu Marido, por motivo de não a deixar ir ver as

Luminárias. Lisboa, Officina de Antonio Gomes, 1793. 175

Ibidem, p. 10. 176

Ibidem, p. 4.

Page 47: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

47

gritar, ameaçando a mulher, tornando-se violento. Por fim, diante da agressividade e

da gritaria do marido, Enália desiste do passeio.

Primeiramente, o „grifo‟ ao qual a peça se refere opõe-se ao chibante e

aponta para o comportamento de maridos ciumentos e retrógrados que costumavam

manter suas esposas fechadas em casa exigindo delas total obediência177. No

entanto, para entendermos a fala de Braz, é preciso levar em conta o argumento das

despesas excessivas. Este aspecto está relacionado à característica da

generosidade que o modelo de homem aristotélico da sociedade do Antigo Regime

deveria exercitar. Nesta sociedade a avareza era considerada o pior dos vícios e o

acúmulo de riqueza como um fim em si mesmo era altamente reprovável178, pois o

dinheiro, entre outras funções, deveria congregar a comunidade em uma economia

da mercê, e praticar a generosidade consistia em uma virtude cristã.

Em termos comportamentais, chama-nos a atenção nesta peça a questão da

agressividade do marido. Muitas outras apontam não só para a agressividade física,

mas também para a exclusão social que sofriam esposas, filhas e filhos

desobedientes. As medidas punitivas podiam variar de “dar-lhe o remédio”, o que

sugere desde o espancamento, até o recolhimento ao convento179. O teatro de

costumes alardeia a violência física como forma punitiva usada buscando extinguir

um erro. A respeito da violência sofrida pela mulher casada manifestou-se o

Cavaleiro Oliveira contra as Ordenações Filipinas que concediam a um marido traído

o direito de matar sua esposa em defesa da honra quer a surpreendesse, ou não,

em flagrante delito180. De outro modo, para os filhos transgressores da boa conduta,

a punição consistia em sua exclusão da sociedade sendo mandados para Goa, ou

qualquer lugar remoto do império colonial, como se apresenta na pequena peça O

libertino castigado, e a prizão no jogo de bilhar181, datada de 1789.

177 LOPES, Maria Antonia. Op. cit., p. 121.

178 OLIVAL, Fernanda. Um rei e um reino que viviam da mercê. In: _________. As ordens militares e

o Estado Moderno; Honra, mercê e venalidade em Portugal (1641-1789). Lisboa: Estar, 2001, p. 17. 179

LOPES, Maria Antonia. Op. cit., p. 133. 180

Ibidem, p. 35. 181

Pequena peça O Libertino Castigado, e a prizão no jogo de bilhar. Lisboa, Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789.

Page 48: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

48

3.2 A educação recomendada

Com a abertura do espaço familiar, portanto doméstico, a mulher foi

requisitada a conviver „em sociedade‟. Se no início do século ela vivia para fiar, parir,

chorar e engordar, saindo de casa apenas para batizar, casar e ser enterrada182, ao

chegar o final do século esse panorama teria mudado, conforme Lopes183. Havia,

portanto, necessidade da preparação e educação da mãe, ou da filha para a

convivência social, buscando o refinamento dos modos, aprenderem bem à língua

portuguesa, o canto, a dança, saber falar, e agradar184. Nessas novas formas de

sociabilidade, a música era o item privilegiado pela educação185, constituindo gosto

geral da sociedade.

O entremez As loucuras da velhice186 apresenta Guimar, uma senhora

empenhada em ter aulas de canto com seu mestre, enquanto o marido se esforçava

em compor versos. Num dado momento, marido e mestre de canto se desentendem

devido à interferência do marido na cantoria da esposa. Ambos iniciam uma

discussão e o mestre, irritado, interrompe a aula dizendo que Guimar só voltaria a

ter aulas de canto com ele se fosse a sós, em um quarto187.

Este entremez satiriza a educação da mulher desmoralizando sua integração

no meio social através da fala do mestre em relação ao lugar de ensino destinado a

mulher: o quarto. Seu posicionamento está de acordo com o velho e rançoso

discurso masculino proveniente de uma literatura voltada a regulamentar a moral da

vida laica, associada aos princípios conciliares de Trento, edificando a imagem da

mulher ideal, boa mãe e esposa, submissa à dominação masculina ordenada por

Deus (portanto inquestionável). Estamos falando dos manuais portugueses de

182 RIBEIRO, Arilda I. M. Vestígios da Educação Feminina no Século XVIII em Portugal. SP: Arte &

Ciência, 2002, p. 67. 183

LOPES, Maria Antonia. Op. cit., p. 67. 184

RIBEIRO, Arilda I. M. Op. cit., p. 44. 185

LOPES, Maria Antonia. Op. cit., p. 106. 186

Entremez As loucuras da velhice. Lisboa, Officina Domingos Gonsalves, 1786. 187

Ibidem, p. 9.

Page 49: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

49

casamento188 onde a mulher era naturalmente o objeto. De acordo com Arlinda

Ribeiro, Luís Antonio Verney, em seu Verdadeiro método de estudar, comentou:

Certamente que a educação das mulheres neste Reino é

péssima; os homens quase as consideram como animais de

outra espécie: e não só pouco aptas, mas incapazes de

qualquer gênero de estudo e erudição. Mas, se os pais e as

mães considerassem bem a matéria, veriam que têm

gravíssimo prejuízo à República, tanto nas coisas públicas,

como domésticas. 189

Na verdade, a reiteração da obediência e da modéstia propagada pelo teatro

de cordel baseia-se nos tratados de moral religiosos que previam que o dever dos

filhos era aceitar a vontade dos pais. Desobedecer ao pai poderia consistir em

pecado gravíssimo, a não ser que ele, o pai, ordenasse ações de certa forma

anticristãs, como por exemplo, um pai avarento que entregava uma filha em

casamento contra sua vontade190.

A questão da educação envolvendo diretamente a mulher e o casamento é

encontrada em outro entremez, Da Doutora Brites Marta191, de autoria de Pedro

Antonio Pereira, datado de 1783. Brites Marta era uma filha que não queria casar,

pois preferia seus “alfarrábios velhos” 192 e latinidades. O pai inconformado e

determinado a convencer a filha, a deixa escolher o marido, e traz três pretendentes

para que Brites fizesse sua escolha. Brites recusa os três, e após uma confusão por

causa de um incêndio, ela escolhe casar-se com um marujo. Esta peça foi

censurada em sua primeira versão em 1768, sob o motivo de não ter um objetivo

instrutivo193. Em 1783, foi finalmente liberada.

188 ALMEIDA, Angela Mendes. Casamento, sexualidade e pecado – os manuais portugueses de

casamento dos séculos XVI e XVII. Ler História, n° 12, 1988, p. 3-21. 189

VERNEY, Luís Antonio apud RIBEIRO, Arilda I. M. Op. cit., p. 38. 190

AGO, Renata. Jovens nobres na era do absolutismo: autoritarismo paterno e liberdade. In: LEVI, G. e SCHMITT, J. História dos jovens da antiguidade à era moderna. v. 1 São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 329. 191

Entremez Da doutora Brites Marta de Pedro Antonio Pereira. Lisboa, Officina de Domingos Gonçalves, 1783. 192

Ibidem, p. 1. 193

CARREIRA, Laureano. Op. cit., p. 220.

Page 50: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

50

3.3 Outras formas de casamento

Os entremezes apresentavam, quase sempre, um modelo padrão de

casamento, que embora estivesse ameaçado pelas novas tendências ainda

permanecia nos costumes do dia a dia das sociedades do Antigo Regime. Todavia,

pudemos observar algumas vozes dissonantes. Por exemplo, o entremez A

impertinência das mulheres, e a paciência dos maridos194, datado de 1792,

apresenta a rotina de dois casais que têm como antagonistas esposas que dispõe

de liberdade em sua vida social não se sujeitando aos mandos de seus maridos. Os

pacientes maridos deste entremez concordam em fazer todas suas vontades195,

satisfazendo seus gostos, apetites, aturam suas rabugices, e agindo assim pensam

evitar que as mesmas “profanem o crédito de sua caza”196, pois com o passar dos

anos elas deixariam as modas e as peraltices197.

Um modelo dissonante aparece em dois entremezes, e trata de uma

possibilidade insólita: a de velhos ricos casando-se com suas criadas.

O entremez intitulado O enganador enganado, ou o testamento supposto198

datado de 1784, apresenta um casal de criados tentando dar o golpe do testamento

em Beltrão, um velho fidalgo solitário. Aproveitando-se de que o velho passara mal,

o criado chama um tabelião para escrever o seu testamento, antes que ele morra.

Em um papel assinado em branco o criado dita ao tabelião o testamento onde o

fidalgo declarava suas intenções de casar com a criada, e se escapasse da doença

assim o faria, deixando-a por sua herdeira universal, com a condição de que ela se

casasse com ele199. E assim acontece, o velho se recupera, descobre a tentativa de

194 Entremez A Impertinência das Mulheres e a paciência dos maridos. Lisboa, Officina de Francisco

Borges de Sousa, 1792. 195

Ibidem, p. 5. 196

Ibidem, p. 9. 197

Ibidem, p. 5. 198

Entremez O enganador enganado, ou o testamento supposto. Lisboa. Officina de Fernando Joze dos Santos, 1784. 199

Ibidem, p. 9.

Page 51: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

51

golpe, e concorda com os termos do testamento. Informa a criada sobre a herança e

pede a ela para que assine o documento - com uma cruz já que a criada não sabia

ler ou escrever - caso ela aceitasse a herança. A condição é aceita prontamente

pela criada, que só após a assinatura fica sabendo que acabara de se casar com o

velho fidalgo.

O segundo exemplo, igualmente inédito, aparece na pequena peça O ópio

das marrafinhas, ao marujo, e ao soldado, ou os amantes logrados200, datado de

1791. Ela apresenta um pirangueiro rico e solitário, que não pretende terminar a vida

sem uma companheira. Mas, ele não sabe que também a criada gostaria de se

casar com ele. Em virtude de uma doença que exigia cuidados, o médico convence

o pirangueiro da necessidade dos cuidados e da companhia que só uma esposa

poderia suprir, realizando o casamento de ambos.

O teatro popular afirma e confirma a idéia de que todas as mulheres daquele

tempo estavam destinadas ao casamento, ora conservando a prática tradicional do

casamento arranjado, ora concretizando a própria escolha. Contudo, verificamos

uma narrativa contraditória para o padrão da época. O entremez intitulado

Dezenganos para os homens nam se fiarem em mulheres201, datado de 1788,

apresenta a história de duas mulheres, Elvira e Beatriz, chamadas pelo anônimo

autor de „damas logrativas‟. A peça discute a situação das mulheres que se casavam

acreditando em amáveis poesias dos peraltas, dos poetas, dos estudantes

esperando amor, e acabavam em um “negro cativeiro” 202. A peça coloca na voz das

damas logrativas, duas mulheres economicamente independentes, a crítica a esta

situação. As damas acreditavam poder zombar do amor, o sentimento essencial ao

casamento. Para Silvio e Claudio, dois peraltas desprezados restam a lamentação e

a desilusão. Os dois reagem tornando público seu desengano para que outros

homens não cometessem o mesmo erro.

200 Pequena peça O ópio das marrafinhas, ao marujo, e ao soldado, ou os amantes logrados. Lisboa,

Officina de Jose da Aquino Bulhoens, 1791. 201

Entremez Dezenganos para os homens nam se fiarem em mulheres. Lisboa, Officina de Francisco Borges de Sousa, 1788. 202

Ibidem, p. 6.

Page 52: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

52

Considerações finais

De acordo com a análise de fontes do teatro de costumes podemos perceber

a existência de diversos pontos de atrito na vida familiar colocados em discussão.

Os problemas envolvendo o dote, a honra, as sociabilidades, bem como a educação

feminina são explorados da perspectiva da advertência que as influências externas

poderiam desencadear na sociedade.

Fazendo uso de ferrenha crítica ao casamento os dramaturgos procuram

comprometer e escandalizar as relações conjugais da sociedade de corte. Também

alertam para as possíveis ameaças decorrentes dos novos costumes que colocavam

em risco a harmonia que o ambiente privado familiar poderia sofrer. A preocupação

dos autores de entremezes se mostra voltada a enaltecer a permanência de um

modelo sacramentado e idealizado de casamento. Assim, o tradicionalismo é ao

mesmo tempo renovado, exaltado, e conservado frente aos novos movimentos que

rondavam a comunidade.

Desta forma, o projeto pedagógico cômico se fortalece e se explica na clara

associação que tem com os valores religiosos, já que os conflitos domésticos eram

resultantes da contestação e da rebeldia exercidas por esposas, filhas e filhos

desobedientes à autoridade do pai. Por isso, como pudemos observar em diversas

peças, apenas o pai era digno de louvor. Esta identificação é própria das sociedades

monárquicas que associavam a figura do pai à figura do rei. Dentro deste contexto,

os papéis sociais estão bem demarcados, principalmente em virtude do objetivo

moral reclamado pelos os pais. Para os pais, os filhos representavam um elo seguro

de continuidade do tradicionalismo conservador das velhas gerações projetado no

futuro. No entanto, os filhos estavam se inserindo num mundo de novos anseios,

novas descobertas, e outro apelo à sociedade gerava um movimento antes nunca

visto, quer fosse interiormente, quer fosse externamente.

Para o bem ou para o mal, a forma doutrinária propagada pelo teatro de

costumes, em parte legitima as velhas práticas tradicionalistas em detrimento do

horizonte de expectativas alimentado e iluminado pelas novas tendências.

Page 53: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

53

Neste panorama, o casamento arranjado, que ocupava uma posição

estratégica econômica e politicamente, passa a constituir o ponto frágil da estrutura

social, e, já não se configurava mais como uma instituição forte, pois estaria

sofrendo mudanças provocadas por diversos fatores.

Percebe-se por parte dos autores do entremez a clara intenção de, não

apenas demonstrar a dimensão e as conseqüências que as influências externas

poderiam causar na ordem natural do cotidiano, mas também dissuadir qualquer

tentativa de romper as permanências conservadoras, por exemplo, quando estimula

o uso da violência como represália à desobediência.

Enfim, o que transparece claramente é a vigilância dos costumes públicos e

privados. Como explicou Hespanha, o Estado tinha necessidade de manter uma

vigilância preventiva e repressiva sobre os costumes da sociedade, quer fosse no

âmbito público, quer no privado, e o casamento era peça fundamental desta

engrenagem. Afirma o autor: “[...] o Estado deve promover e controlar a formação

dos costumes públicos e privados, servindo-se de três meios fundamentais: a

religião, a instrução escolar e a cultura científica. ” 203 No sentido político, portanto, a

sátira e a crítica social precisavam demonstrar um certo zelo pela ordem

estabelecida. Desta forma, o entremez busca incessantemente cumprir a proposta a

que se dispõe, corrigir os costumes pelo riso.

203 HESPANHA, A. M. Poder e instituições na Europa do antigo regime. Lisboa: Fundação Calouste

Gulbenkian, 1984, p. 275.

Page 54: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

54

FONTES

Fontes microfilmadas pertencentes à Biblioteca Nacional de Lisboa - Tomo II –

COTA L 3338 A – 11/04/89.

Entremez Da doutora Brites Marta de Pedro Antonio Pereira. Lisboa, Officina de

Domingos Gonçalves, 1783.

Pequena peça Esparrella da Moda composta por José Daniel Rodrigues da Costa.

Lisboa, Officina de Domingos Gonsalves, 1784.

Novo entremez Os velhos amantes. Lisboa, Officina de Simão Thaddeo Ferreira,

1784.

As Desordens do Peralta. Lisboa, Officina de Filippe da Silva, e Azevedo, 1784.

Entremez O enganador enganado, ou o testamento supposto. Lisboa. Officina de

Fernando Joze dos Santos, 1784.

Entremez Da Assembléia do Isque. Lisboa, Officina de Filippe da Silva e Azevedo,

1784.

As filhozes do entrudo feitas em caza de Pantufo Rombo sapateiro, e sua mulher

Mona Xorina, com asistencia de seus compadres Sergio Caroso, barbeiro, e sua

mulher tramóia morena. Lisboa, Officina de João Antonio da Silva, 1785.

Os Fulares da Páscoa, com prados por toda a plebe que nos dias santos se vão

divertir ao arayal do Biato. Composto por A. R. Lisboa, Officina de Francisco Borges

de Sousa, 1785.

Novo entremez As loucuras da velhice. Lisboa, Officina Domingos Gonsalves, 1786.

Novo e devertido entremez O Contentamento dos Pretos, por terem a sua alforria.

Lisboa, Officina de Domingos Gonsalves, 1787.

Novo entremez O estudante bazofio e desgraçado. Lisboa, Officina de Simão

Thaddeo Ferreira, 1787.

Page 55: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

55

Novo Entremez Desenganos para os homens, não se fiarem em mulheres. Lisboa,

Officina de Francisco Borges de Sousa, 1788.

Novo e divertido entremez Os Disgostos que teve huma sésia de Lisboa, por amor

do seu amante. Lisboa, Officina de Francisco Borges de Sousa, 1789.

Novo Entremez Dos desprezos de hum filho peralta a seu pai; ou sophismas com

que enganou a criada. Lisboa, Officina de Antonio Gomes, 1789.

Pequena peça O Libertino Castigado, e a prizão no jogo de bilhar. Lisboa, Officina

de Simão Thaddeo Ferreira, 1789.

Novo entremez O Noveleiro Extravagante e o Poeta Vaidozo, com a grande

desordem, que lhe succedeo em caza do velho rabugento nas assembléas das

filhas. Lisboa, Typografia Nunesana, 1789.

Novo entremez O divertimento das noites de inverno. Lisboa, Officina de Joze de

Aquino Bulhoens, 1789.

Novo, e divertido entremez A grande desordem de uma velha com hum peralta por

não querer casar com ella. Lisboa, Officina de Antonio Gomes, 1790.

Entremez Gatuno de malas artes. Lisboa, Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1791.

Novo entremez A desordem dos noivos de oito dias. Lisboa, Officina de Francisco

Borges de Souza, 1791.

Pequena peça O ópio das marrafinhas, ao marujo, e ao soldado, ou os amantes

logrados. Lisboa, Officina de Jose da Aquino Bulhoens, 1791.

Novo entremez Os Desprezos de hum Filho peralta a seu pai; ou sophismas, com

que enganou a criada. Lisboa, Officina de Francisco Borges de Souza, 1792.

Novo entremez O Esganarello ou O Casamento por Força. Lisboa, Officina de

Francisco Borges de Souza, 1792.

Novo e devertido entremez A Impertinência das Mulheres e a paciência dos maridos.

Lisboa, Officina de Francisco Borges de Sousa, 1792.

Page 56: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

56

Entremez Dos Desatinos que a Mulher Fez a Seu Marido, por motivo de não a deixar

ir ver as Luminárias. Lisboa, Officina de Antonio Gomes, 1793.

Pequena pessa A Casa de Pasto. Lisboa, Officina de João Antonio Reis, 1794.

Novo entremez A dama prezumida por querer andar sempre à moda. Lisboa,

Officina de Antonio Gomes, 1794.

Bibliot. Nacional de Lisboa – Cota – L 3004 V – 11/04/89

Pequena pessa Anatomia Cômica. Lisboa, Officina de Francisco Borges de Souza,

1789.

Novo entremez Cazamento gostozo. Officina de Fellipe José de França e Liz, 1790.

Fontes disponíveis em:

http://www.biblartepac.gulbenkian.pt/ipac20/ipac.jsp?session=Y30866T162238.3618

63&profile=ba&menu=search&aspect=basic_search&index=.GW&term=BIBCTC#foc

us 11.05.2011

Comédia nova Affectos de ódio e amor. Lisboa. Officina Domingos Gonçalves, 1783.

Entremez Cazamento por nova idéia. Lisboa. Officina Francisco Borges de Sousa, 1792.

Page 57: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

57

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABDALA JUNIOR, Benjamim. História Social da Literatura Portuguesa. SP: Ática,

1985.

AGO, Renata. Jovens nobres na era do absolutismo: autoritarismo paterno e

liberdade. In: LEVI, G. e SCHMITT, J. História dos jovens da antiguidade à era

moderna. v. 1 São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

ALMEIDA, Suely Creusa de. O sexo devoto: normatização e resistência feminina no

Império Português, XVI – XVIII. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2005.

BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2004.

BROCKETT, Oscar G. The Theatre an introduction. United States of America: Holt,

Rinehart and Winston, Inc, 1964.

COELHO, Maria Helena da Cruz e VENTURA, Leontina. A mulher como um bem e

os bens da mulher. In: A MULHER NA SOCIEDADE PORTUGUESA; visão histórica

e perspectivas actuais. v. 1.Coimbra: Instituto de História Economica e Social, 1986.

CARREIRA, Laureano. O Teatro e Censura em Portugal na segunda metade do

século XVIII. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1988.

CASEY, James. História da família. São Paulo, Editora Ática, 1992.

ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. v. II Rio de Janeiro, Zahar, 1993

GASSNER, John. Mestres do Teatro I. SP: Perspectiva, Ed. Universidade de São

Paulo, 1974.

HESPANHA, A. M. Poder e instituições na Europa do Antigo Regime. Lisboa:

Fundação Caloute Gulbekian, 1984.

IM HOF, Ulrich. A Europa no século das luzes. Lisboa: Presença, 1995

LEBRUN, François. O sacerdote, o príncipe e a família. In: BURGUIÈRE, André ET

all. História da Família. v. 3 Lisboa: Terramar , 1998

Page 58: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

58

LIMA, Luiz Costa. Mimesis e modernidade: formas das sombras. v. 1 Rio de Janeiro:

Edições Graal, 1980.

LOPES, Maria Antonia. MULHERES, ESPAÇO E SOCIABILIDADE A transformação

dos papéis femininos em Portugal à luz de fontes literárias (segunda metade do

século XVIII) Lisboa, Livros Horizonte, 1989.

MARTÍNEZ LÓPEZ, Maria José. El Entremés: Radiografia de um gênero. Toulouse.

Universitaires Du Mirail, 1997.

MATTOSO, José. História de Portugal. v. 4 Lisboa: Estampa, 1993.

MARQUES, A. H. de O. Breve história de Portugal. Lisboa: Editorial Presença, 1998.

MEGALE, Heitor. Elementos da Teoria Literária. São Paulo: Companhia Editora

Nacional, 1975.

MORATIN, Leandro Fernandez de. El sí de las niñas. 2° ed. corregida. Madri:

Editorial Castalia, 1991.

MOUSSINAC, Leon. História do Teatro Das Origens aos Nossos Dias. Portugal:

Bertrand 1957.

OLIVAL, Fernanda. Um rei e um reino que viviam da mercê. In: _________. As

ordens militares e o Estado Moderno; Honra, mercê e venalidade em Portugal (1641-

1789). Lisboa: Estar, 2001.

PERISTIANY, J. G. HONRA E VERGONHA: valores das sociedades mediterrânicas.

Lisboa. Fundação Calouste Gulbekian, 1966.

PICCHIO, Luciana Stegagno. História do Teatro Português. Lisboa: Portugália

Editora, 1964.

PITT-RIVERS, J. Honra e posição Social. In: PERISTIANY, J. G. Honra e Vergonha:

valores das sociedades mediterrânicas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian,

1988.

Page 59: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

59

RIBEIRO, Arilda I. M. Vestígios da Educação Feminina no Século XVIII em Portugal.

SP: Arte & Ciência, 2002.

ROUBINE, Jean-Jacques. Introdução às grandes teorias do teatro. Rio de Janeiro.

Jorge Zahar Editor, 2003.

RYNGAERT, Jean-Pierre Introdução à análise do teatro. SP: Martins Fontes, 1996.

SANTOS, Piedade B. RODRIGUES, Teresa. NOGUEIRA, Margarida S. Lisboa

Setecentista Vista por Estrangeiros. Lisboa. Livros Horizonte Ltda, 1996.

SENNET, Richard. O declínio do homem público As tiranias da Intimidade. SP: Ed

Schwarcz, 1988.

SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal. v. V Lisboa: Editorial Verbo,

1979.

XAVIER, A. B. e HESPANHA, A. M. A representação da sociedade e do poder. In:

MATTOSO, José. História de Portugal. v. 4. Editorial Estampa, 1993.

Revistas

ALMEIDA, Angela Mendes. Casamento, sexualidade e pecado – os manuais

portugueses de casamento dos séculos XVI e XVII. Ler História, n° 12, 1988.

CAVALCANTI, C. Arcadismo: a cifra libertária. In: XII CONGRESSO NACIONAL DE

LINGUISTICA E FILOLOGIA, 2008, Rio de Janeiro.

LANA, Marcos. Nota sobre Marcel Mauss e o Ensaio sobre a dádiva. Revista de

Sociologia e Política, n° 14: p. 173-194, jun. 2000.

RODRIGUES, J. D. A casa como modelo organizacional das nobrezas de São

Miguel (Açores) no século XVIII. História: Questões e Debates, Curitiba, n. 36, p. 11-

28, 2002. Editora UFPR.

RODRÍGUEZ GÓMEZ, J. Inês. Representacion Del Mundo Femenino em El

Universo Teatral de Carlo Goldoni. Cuadernos de Filologia. Anejo L (2002) 339-350.

Page 60: UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ELIZABETH PEREIRA … · Em Portugal, o desenvolvimento geral da história do teatro foi semelhante ao que ocorreu no restante da Europa. Na segunda

60

SILVA, José Gentil. A situação feminina em Portugal na segunda metade do século

XVIII. Revista de História das Idéias. v. 2, tomo 1, 1982-1983.

Referências da Internet

COSTIGAN, Arthur William. Sketches of society and manners in Portugal. v. 2.

University of Virginia Library, 1787, p. 249. Disponível em Google books. Acesso em

11.04.2011.

MELO, Francisco Manuel de. Carta de Guia de casados. Disponível em http://www.uc.pt/uid/celga/recursosonline/cecppc/textosempdf/05cartadeguiadecasados - 10.10.2010.

VENDRAMINI, José E. A commedia dell'arte e sua reoperacionalização.

Trans/Form/Ação, Marília, v. 24, n. 1, 2001. Disponível em <

http://www.scielo.br/pdf/trans/v24n1/v24n1a04.pdf > Acesso em 21.06.2010.