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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA JULIA DE CARVALHO CATÃO DIAS Uma etnografia de processos de discriminação racial contra haitianos em Curitiba Curitiba 2015

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA

JULIA DE CARVALHO CATÃO DIAS

Uma etnografia de processos de discriminação racial contra haitianos em Curitiba

Curitiba

2015

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

JULIA DE CARVALHO CATÃO DIAS

 

UMA ETNOGRAFIA DE PROCESSOS DE DISCRIMINAÇÃO RACIAL CONTRA

HAITIANOS EM CURITIBA

Curitiba

2015

Monografia apresentada à disciplina de Orientacão Monográfica II do curso de Graduacão em Ciencias Sociais, Departamento de Antropologia, Setor de Ciencias Humanas, Letras e Artes, da Universidade Federal do Paraná, como requisito parcial para a obtencão do título de Bacharel e Licenciado em Ciencias Sociais.

Orientador: Pr. Dra. Ciméa Barbato Bevilaqua

 

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JULIA DE CARVALHO CATÃO DIAS

UMA ETNOGRAFIA DE PROCESSOS DE DISCRIMINAÇÃO RACIAL CONTRA HAITIANOS EM CURITIBA

Monografia apresentada à disciplina de Orientacão Monográfica II do curso de Graduacão em Cie ncias Sociais, Departamento de Antropologia, Setor de Ciencias Humanas, Letras e Artes, da Universidade Federal do Paraná, como requisito parcial para a obtencão do título de Bacharel e Licenciado em Ciencias Sociais.

Orientador:

Pr. Dra. Ciméa Barbato Bevilaqua Departamento de Antropologia, UFPR

Pr. Dra. Liliana Mendonca Porto Departamento de Antropologia, UFPR

Pr. Dr. João Frederico Rickli Departamento de Antropologia, UFPR

Curitiba, 22 de janeiro de 2016.

  3  

AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, por tudo, sempre! Todo amor e admiração do mundo por

vocês!

À Quelzinha, meu par, irmã, amiga e companheira de todas as horas.

Ao Gui, meu amor tão lindo e querido, por toda paciência e parceria.

À professora Ciméa Barbato Bevilaqua, por me encorajar a ir sempre em

frente, pela orientação atenta e carinhosa. Muito obrigada por tudo!

Aos professores João Rickli e Liliana Porto, não só por comporem a banca de

apresentação deste trabalho, mas por me acompanharem ao longo da graduação,

me incentivando a descobrir o gosto pela antropologia.

À Sandra, por ser sempre tão atenciosa e prestativa. Obrigada por me salvar

tantas vezes!

À Laurette, Danilo, Peter, Rony e todos os haitianos que vivem em Curitiba,

por me ensinarem tanto, por deixarem a cidade mais colorida e alegre: sejam

sempre muito bem vindos! À toda equipe da CASLA, do CASLAJur e os demais

advogados-parceiros, muita admiração pelo trabalho de vocês!

Aos amigos de Curitiba, que tão bem me acolheram nessa jornada, nem

sempre fácil, mas cheia de encontros e aprendizados. Levo vocês do lado esquerdo

do peito!

À Carolzinha, por ler e reler esse trabalho, me apoiar nos momentos de

insegurança, pela cumplicidade e amizade. À Pri, por deixar meu dia a dia mais

cheio de bonitezas.

Aos amigos de São Paulo, eu amo muito muito muito vocês! Um

agradecimento especial ao Rafa, meu antropólogo mais querido, por toda a ajuda,

sempre! E à Olivia, por compartilhar das dores e delícias da vida.

Aos meus santos, que me guiam e me protegem.

Axé!

  4  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  5  

 

RESUMO

Uma etnografia de processos de discriminação racial contra haitianos em Curitiba.

Após o terremoto de 2010 no Haiti, o Brasil se tornou destino dos haitianos que deixavam o país. A partir das novas demandas geradas pela presença dessas pessoas no Brasil, mecanismos estatais e não estatais foram mobilizados para a acolhida dos novos migrantes: de mudanças na legislação referente às migrações à organização de grupos de acolhida por parte da sociedade civil. Nesse contexto acompanhei o trabalho de um grupo de advogados autointitulado CASLAJur, vinculado à Casa Latino Americana de Curitiba (CASLA), organização não-governamental que presta consultoria jurídica gratuita a migrantes e refugiados. De questões de ordem burocrática, como o auxílio no preenchimento de formulário para obtenção de visto, a casos trabalhistas, o coletivo atende às mais diversas demandas. No mês de outubro de 2014 alguns haitianos procuraram a instituição após terem sido agredidos por motivações raciais. Nesses casos, os advogados tomaram providências para mover processos por racismo e injúria racial contra os agressores. A pesquisa faz uma análise desses casos: observando a trajetória dos haitianos que viveram a discriminação, o propósito é pensar como esses processos aconteceram (ou não) no âmbito judicial.

Palavras chave: Migração; Haitianos; Racismo; Processos judiciais.

  6  

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO............................................................................... 7

2. CAPÍTULO: DO HAITI PARA O BRASIL...................................... 15

2.1. As migrações haitianas para o Brasil...................................... 16

2.2. Sobre a legislação reguladora das migrações........................

18

2.3. Os mecanismos não estatais de acolhida aos migrantes.......

24

2.3.1. A ASHBRA....................................................................

25

2.3.2. A CASLA.......................................................................

27

2.3.3. O CASLAJur................................................................. 28

3. CAPÍTULO: AS DENÚNCIAS DE RACISMO................................ 30

3.1. Os atendimentos da CASLA.................................................... 33

3.2. Os relatórios do CASLAJur..................................................... 37

3.2.1. Caso um: no restaurante..............................................

39

3.2.2. Caso dois: no supermercado........................................

40

3.2.3. Caso três: na construção civil.......................................

42

3.2.4. Caso quatro: na empresa cerealista.............................

46

4. CAPÍTULO: O INQUÉRITO POLICIAL - DESDOBRAMENTOS JUDICIAIS.......................................................................................

58

4.1. Injúria racial ou racismo?......................................................... 58

4.2. O inquérito policial do “caso Peter.......................................... 63

5. CONCLUSÃO ................................................................................ 79

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................. 84

7. ANEXOS.........................................................................................

90

  7  

INTRODUÇÃO

Em 12 de janeiro de 2010, um terremoto de sete graus na escala Richter

devastou o Haiti: 230 mil pessoas morreram, 500 mil ficaram feridas e mais de um

milhão desabrigadas.1 Em outubro do mesmo ano um surto de cólera atingiu os

sobreviventes do terremoto, piorando ainda mais a situação instaurada no país.

Localizada na porção ocidental da ilha de Hispaniola, no arquipélago das

Grandes Antilhas, a República do Haiti partilha seu território com a República

Dominicana e tem como línguas oficiais o creole e o francês. Sua população, de

10,5 milhões de habitantes2, é composta predominantemente por descendentes de

negros escravizados, originários da África ocidental.

Após o terremoto, os fluxos migratórios internos e externos à ilha se

intensificaram e países como a Venezuela, Equador, Peru e Brasil se tornaram os

principais destinos dos haitianos.

Para entender os desdobramentos do terremoto, que teve como

consequência a ampla migração de haitianos no Brasil, é necessária uma breve

apresentação da situação política e econômica do país no período anterior ao

terremoto.

***

Situada na ilha onde em 1492 chegaram os primeiros barcos europeus, a

República do Haiti foi também o primeiro país latino-americano a conquistar a

independência, em decorrência de uma rebelião de escravos (1791 - 1804).

Os Estados vizinhos, para evitar que o exemplo haitiano fosse seguido pelos

demais povos escravizados, relegaram ao recém liberto país a falta de

reconhecimento internacional e o isolamento comercial. Ao mesmo tempo, diversos

conflitos emergiam internamente na Ilha devido às inúmeras mudanças dos modelos

de governo, disputas civis e golpes de estado.

                                                                                                               1 Dados disponíveis em: Eredia, Talita. “Apesar de mortes no ano, atividade sísmica é normal”. O Estado de São Paulo, 15 de abril de 2010, Internacional, p. A16. Disponível em: [http://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,apesar-de-mortes-no-ano-atividade-sismica-e-normal,538520]. Acesso em 20/06/2015.  2 Dados disponíveis em: http://datos.bancomundial.org/pais/haiti. Acesso 05/12/2015.  

  8  

Como explica a antropóloga Sónia Pinto, o país foi deixado à própria sorte, e

em 1915 foi novamente invadido, dessa vez por tropas norte-americanas. A nova

ocupação significou enorme piora nas condições de vida no campo, um período de

expropriação de terras e aumento das migrações para os territórios vizinhos, países

controlados pelos Estados Unidos. Estima-se que entre 200.000 e 300.000 pessoas

tenham saído do país em direção à República Dominicana, e o dobro disto para

Cuba (Silva, P., 2014: 20).

No ano de 1934, as tropas americanas deixaram o Haiti, o que não significou

a perda da importância do estado norte-americano nos rumos que o país iria tomar.

Pinto explica que os Estados Unidos deixaram um exército treinado no país e um

presidente de sua escolha (Silva,P. 2014:21). Argumenta ainda que, temerosos de

que o regime comunista cubano chegasse aos países vizinhos, os Estados Unidos

apoiaram o candidato François Duvalier - o Papa Doc – nas primeiras eleições

democráticas do Haiti, em 1957 (Silva P., 2014:21).

O incessante desejo de Papa Doc de se perpetuar no poder gerou um

período de repressões políticas e violência extrema. Em 1971, diante do falecimento

de Papa Doc, Jean-Claude Duvalier (Baby Doc), seu filho, assumiu o governo do

Haiti. Baby Doc ficou no cargo por quinze anos, até que um levante popular, em

1986, o obrigou a sair do país, abandonando o posto (Silva, P., 2014:21).

Tanto o período de governo de Papa Doc, como o de Baby Doc, foram

marcados por ações violentas e repressivas por parte do Estado, inclusive por meio

da criação de uma milícia própria, a Milícia de Voluntários da Segurança Nacional.

Tal momento histórico se caracterizou pela intensificação dos movimentos

emigratórios de haitianos, principalmente em direção ao Canadá, Estados Unidos e

França (Silva, P. 2014:19).

Após a ditadura, havia no país uma situação de instabilidade política e

econômica: as tensões sociais não eram superadas pelos movimentos políticos a

ponto de garantir um governo estável, ao mesmo tempo em que a crise econômica

deixava sua população na miséria. O período que sucedeu a queda de Baby Doc se

encerrou em 1990, quando Jean-Bertrand Aristide, ex-padre católico e de esquerda,

foi eleito presidente por meio de uma eleição democrática (Silva, P. 2014:20).

O governo de Aristide, no entanto, durou poucos meses: ainda em 1990 os

militares tomaram o poder, dando início a mais três anos de muita violência e

perseguições políticas.

  9  

Como forma de pressionar o governo, a Organização das Nações Unidas,

conjuntamente com a Organização dos Estados Americanos (OEA), indicaram que

nenhum país deveria possibilitar a compra e venda de petróleo, armamentos e

demais equipamentos militares pelo Haiti, o que não diminuiu o clima de terror

instaurado no país. Para que Aristide voltasse ao poder foi preciso que o Conselho

de Segurança da ONU autorizasse o envio de uma força multinacional, com o

objetivo de reestabelecer a ordem na ilha (Silva, P., 2014:21).

Impedido constitucionalmente de se reeleger, Aristide não disputou as

eleições de 1995 e René Préval, de sua coalização, foi eleito presidente. No ano

seguinte Aristide fundou um novo partido, para que pudesse sair candidato na futura

campanha presidencial.

O clima de instabilidade e iminência de conflito perdurou, e apenas nos anos

2000 Aristide foi vitorioso em nova eleição. Logo em seguida a OEA avaliou que o

resultado havia sido forjado e, em represália, organizações e países que prestavam

ajuda ao Haiti mais uma vez cortaram relações com a ilha, deixando governantes e

opositores às margens de um conflito violento. Em 2004, no ápice da possibilidade

de confronto, Aristide deixou o país.

Quem assumiu o governo foi o então presidente da Corte Suprema de Justiça

do Haiti, Boniface Alexandre. Os organismos internacionais foram requisitados pela

ONU para ajudar o Estado a manter a ordem e a proteção dos direitos humanos no

território. Como resposta, a ONU autorizou que uma Força Multinacional Interina

fosse enviada ao Haiti. Por meio da Resolução 1542 do Conselho de Segurança da

ONU, as forças foram transformadas na Missão das Nações Unidas para a

Estabilização do Haiti (MINUSTAH). Vale assinalar que as razões que autorizaram a

dita “ocupação humanitária” da ONU no Haiti suscitam diversas questões que

ultrapassam o escopo deste trabalho.

O Brasil assumiu o comando da MINUSTAH. A participação brasileira na

ocupação inscreve-se, entre outras coisas, no âmbito das estratégias políticas da

diplomacia nacional, vez que o Brasil pleiteia um assento permanente no Conselho

de Segurança das Nações Unidas, concorrendo com diversos países como o

Canadá, a Alemanha e o Japão.

Em síntese, a história do Haiti é marcada por ocupações estrangeiras,

instabilidade política e econômica, além da emigração de seus habitantes. Nas

palavras de Maroni Silva:

  10  

(...) o Haiti, país que viveu anos de ostracismo sociopolítico imposto por diversas nações do mundo devido à ameac a que ele representava às relac ões raciais assimétricas, atualmente é uma composic ão atravessada de modo singular por múltiplos fluxos internacionais e globais de poder, que rivalizam e minam a autoridade de seu Estado como nac ão independente. Se esses fluxos globais de poder sempre existiram, atualmente eles carregam marcas específicas do nosso tempo como: a intensificac ão da internacionalizac ão do mercado de trabalho, a maior expansão e integrac ão global do capitalismo e o aumento da influe ncia de organismos multilaterais como a ONU e a OEA. Durante todo o percurso histórico trilhado pelo Haiti, através das distintas composic ões assumidas pelo mesmo, os fluxos migratórios contribuíram para a reproduc ão e transformac ão da sociedade haitiana. (Maroni, 2014: 28). (Silva, 2014:28).

Como veremos adiante, a influência do Brasil junto à MINUSTAH culminou,

aliada a outros fatores, no crescente numérico das migrações de haitianos para o

país após o terremoto.

No ano de 2010, pequenos grupos de haitianos desembarcaram em Brasileia,

cidade brasileira na fronteira do Peru com o Acre. Estima-se que até o final do ano

seguinte 4.000 pessoas tenham adentrado o país. Em 2013, esse número

ultrapassaria a casa dos 20.000, chegando a 50.000 imigrantes até o fim de 2014

(Fernandes, 2014: 13).

Este novo contexto trouxe ao Brasil questões de diversas ordens, suscitando

a necessidade de criação de mecanismos de acolhimento a essas pessoas tanto no

âmbito da lei como por meio de políticas de assistência e apoio, partindo tanto de

organizações governamentais quanto civis. Ao mesmo tempo, a mídia e setores da

sociedade foram reticentes quanto à entrada desses novos imigrantes, gerando

situações de discriminação e xenofobia, como veremos adiante.

Dada a contemporaneidade das migrações haitianas em direção ao Brasil, os

trabalhos acadêmicos referentes ao tema ainda são escassos, em vias de produção.

As pesquisas existentes encontram-se principalmente nas áreas de Relações

Internacionais, História e Economia. Na Antropologia foram encontradas duas

dissertações de mestrado, ambas defendidas em 2014.

Sónia Reis Pinto discorre sobre os “reflexos da razão humanitária no Haiti” e

a consequente chegada dos haitianos no Brasil. Já Paloma Maroni da Silva

desenvolve seu estudo na tríplice fronteira entre o Brasil, a Colômbia e o Peru,

refletindo sobre a chegada dos novos imigrantes ao país. Ambos os trabalhos

acionam o conceito de transnacionalismo, categoria que descreve as relações

estabelecidas entre haitianos localizados em diferentes países, como explicarei

  11  

adiante. Como veremos ao longo da pesquisa, essa discussão também permeou as

histórias narradas pelos meus interlocutores.

O presente estudo é fruto da etnografia da experiência de vida de alguns

haitianos em Curitiba. Experiências essas que levaram seus protagonistas, em

alguns casos, a acionar a justiça brasileira na tentativa de solucionar casos de

discriminação, a partir da tipificação dos crimes de racismo e injúria racial, além de

conflitos de outras ordens.

O objetivo da pesquisa é compreender a maneira pela qual essas

experiências estão se dando e como as situações de racismo são enfrentadas não

só no plano jurídico-formal, mas também nas vivências concretas dessas pessoas e

instituições envolvidas, de modo a perceber suas trajetórias de vida e expectativas

em relação às possibilidades de ação do nosso sistema judiciário, as dificuldades e

obstáculos enfrentados.

O contato com esses haitianos se deu através da Casa Latino Americana

(CASLA), organização não governamental sediada em Curitiba, que abriga o

CASLAJur, grupo de assessoria jurídica voluntária de apoio aos imigrantes, e da

Associação para Solidariedade de Haitianos no Brasil (ASHBRA). As três

organizações serão apresentadas em seguida.

Para isso, analisei os registros de atendimento da CASLA, fazendo um

levantamento dos motivos que levaram os imigrantes a procurar auxílio jurídico na

instituição. Nos registros consultados havia três casos de haitianos que sofreram

agressões em razão de sua cor e um em que o patrão demitiu o trabalhador

imigrante porque “não queria trabalhar com haitianos”, ambos entre setembro e

outubro de 2014.

Os registros me chamaram atenção pela gravidade e violência do que se

apresentava. Os advogados do CASLAJur e demais voluntários da instituição se

mobilizaram para prestar apoio aos haitianos vítimas de discriminação racial e a

imprensa foi chamada para cobrir os acontecimentos.

O contato com esses imigrantes não foi sempre fácil3. Com alguns consegui

marcar entrevistas, outros não quiseram falar sobre suas experiências. Há ainda

                                                                                                               3  Ao  longo  da  pesquisa,  alguns  haitianos  com  quem  convivi  na  CASLA  tiveram  problemas  com  a  exposição  na  mídia:  haitianos  que  não  têm  documentos  apareceram  na  televisão,  outros  que  estão  com  processos  correndo  tiveram  seus  nomes  e   telefones  divulgados  em  um   jornal.  A  própria  ASHBRA   recomenda  aos   imigrantes  que  não  deem  entrevistas,  como  soube  durante  a  conversa  com  um  dos  meus  interlocutores.    

  12  

aqueles com quem não consegui nenhum contato, os telefones estavam fora de

área e o paradeiro era desconhecido.

Além de conversar com os haitianos que passaram pela CASLA em busca de

auxílio jurídico, entrevistei os advogados responsáveis pelos casos e, por meio

deles, tive acesso tanto aos relatórios dos atendimentos realizados pelo CASLAJur,

como aos documentos que constituem o inquérito policial de um dos casos.

Ao longo da pesquisa permaneci em contato com meus interlocutores e com

alguns estabeleci relação de proximidade e afinidade. Por meio deles pude conhecer

e conversar com muitos outros imigrantes. Para a pesquisa, as entrevistas com os

haitianos apresentados nos relatórios do CASLAJur foram gravadas e as conversas

que tive com outros imigrantes foram informais, registradas posteriormente no meu

caderno de campo.

Além da relevância social e política do tema, a pesquisa busca contribuir para

a reflexão antropológica sobre a chegada de imigrantes haitianos no Brasil e seus

desdobramentos nas instituições mobilizadas para sua recepção. A questão racial

permeia todas essas experiências, assim como uma pluralidade de origens,

características e expectativas.

Como veremos, as situações que serão descritas ao longo da monografia

parecem evocar a concepção clássica de Oracy Nogueira, quando em seu artigo

Preconceito Racial de Marca e Preconceito Racial de Origem, o autor traça uma

comparação entre as maneiras como o preconceito racial se manifesta no Brasil e

nos Estados Unidos. Define como preconceito racial:

“as disposições desfavoráveis, culturalmente condicionadas, em relação aos membros de uma população, aos quais se tem como estigmatizados, seja devido à aparência, seja devido a toda ou parte da ascendência étnica que se lhes atribui ou reconhece”(Nogueira, 1954: 292).

No Brasil, o preconceito acontece, segundo Nogueira, em relação à aparência,

isto é, toma por pretexto para suas manifestações os traços físicos do indivíduo, a

fisionomia, os gestos, os sotaques, o que chama de preconceito “de marca”

(Nogueira, 1954, 293). Já nos Estados Unidos o preconceito de raça acontece como

preconceito “de origem”: basta que o indivíduo descenda de determinado grupo

étnico para que sofra as consequências da discriminação.

  13  

Mais contemporaneamente e no mesmo sentido, Rita Laura Segato aponta no

artigo Raça é Signo a maneira pela qual se constituem as relações raciais no Brasil,

entendendo que o preconceito racial se manifesta a partir de marcas fenotípicas

(Segato, 2005:05). Em alusão ao título, a autora argumenta que “cor é signo”, e que

o seu único valor sociológico está na sua capacidade de significação, isto é, “seu

sentido depende de uma atribuição, de uma leitura socialmente compartilhada e de

um contexto histórica e geograficamente delimitado” (Segato, 2005:03).

Ao longo do texto veremos de que maneira alguns haitianos sentem a

discriminação racial, levando em conta que essas pessoas saíram de um contexto

diferente do brasileiro, e que chegando aqui se depararam com situações até então

desconhecidas.

* * *

No início de 2014 me saltou aos olhos o crescente número de pessoas

negras de língua estrangeira que circulavam por Curitiba – dentro dos ônibus, pelas

ruas, atendendo em restaurantes e supermercados. Compartilhei minhas

impressões com um amigo que, diante do meu interesse pelo assunto, colocou-me

em contato com Rodrigo, um atencioso português de 26 anos, recém-formado em

Relações Internacionais.

Rodrigo fazia parte de um grupo que prestava os mais diversos tipos de

ajuda, principalmente por meio de assessoria jurídica voluntária, aos imigrantes que

vivem em Curitiba. Denominado CASLAJur, o coletivo se reunia às sextas-feiras na

Casa Latino Americana (CASLA), que apresentarei adiante.

Durante a semana os estrangeiros que procuravam a instituição relatavam

seus problemas para a secretária. Nas noites de sexta o grupo de voluntários,

majoritariamente composto por advogados, dividia as funções, estabelecendo quem

iria ficar com que caso. Rodrigo me convidou para uma reunião em meados de abril

de 2014, e a partir dali ingressei no CASLAJur, contribuindo da maneira que podia:

traduzindo atendimentos do francês para o português, ajudando estrangeiros a

preencher o formulário de refúgio4, entre outras atividades.

                                                                                                               4 Muitos dos imigrantes que buscam auxílio na CASLA precisam de ajuda no preenchimento do formulário de pedido de refúgio, que deve ser entregue na Polícia Federal. O documento é apresentado no Anexo I.  

  14  

Na iminência de escolher o tema de minha monografia e encantada pelo novo

universo descoberto, o das migrações, conversei com a minha orientadora e propus

desenvolver a pesquisa a partir das descobertas proporcionadas pelo meu trabalho

na CASLA.

A fim de entender quem eram os estrangeiros que procuravam ajuda, num

primeiro momento sistematizei todos os atendimentos que aconteceram na

instituição entre os meses de abril e outubro de 20145 e constatei que a maioria dos

imigrantes buscou a CASLA para pedir auxílio no preenchimento do pedido de

refúgio.

Entre setembro e outubro de 2014, três casos de agressões físicas e

psicológicas de cunho racista chegaram até a instituição. Neste momento, denúncias

trabalhistas do tipo “patrão demite trabalhador haitiano alegando que não quer

trabalhar com haitianos” também começaram a aparecer.

Como veremos ao longo do trabalho, a maneira como estes acontecimentos

reverberaram no interior do CASLAJur e os seus desdobramentos no campo da

justiça, além do interesse sobre como essas pessoas se sentiam em relação ao

acolhimento no país, delinearem o meu tema de pesquisa.

A partir do contato com a CASLA e da minha inserção entre os advogados

tive acesso aos documentos referentes aos casos acima mencionados, além do

contato com os haitianos envolvidos.

Para tanto tomei como fio condutor o percurso de Danilo, já que, embora se

diferencie da experiência da maioria de seus compatriotas, permite delinear

obstáculos e problemas compartilhados pelos imigrantes do Haiti.

No primeiro capítulo apresentarei, a partir da trajetória de Danilo, meu

principal interlocutor, a legislação que regula as migrações no Brasil, além das

instituições da sociedade civil mobilizadas no acolhimento dos imigrantes que

chegam a Curitiba: a Casa Latino Americana (CASLA), o grupo de assessoria

jurídica a migrantes e refugiados autodenominado CASLAJur e a Associação para

Solidariedade de Haitianos no Brasil.

O segundo capítulo será dedicado à apresentação de quatro casos que

chegaram até os advogados do CASLAJur entre setembro e outubro de 2014, todos

marcados pela discriminação racial: três haitianos sofreram agressões racistas e um

                                                                                                               5 Ver Anexo II uma tabela com a quantidade e a nacionalidade dos imigrantes recebidos pela organização.  

  15  

foi demitido por “ser haitiano”. A partir deles podemos refletir sobre as questões que

permeiam a vinda para e a estada desses estrangeiros no Brasil. Apresento essas

histórias a partir dos relatórios de atendimento do CASLAJur, de entrevistas com

alguns desses imigrantes e com seus advogados.

No terceiro capítulo me debruçarei sobre as transformações – ou não –

dessas experiências de vida em casos de polícia e demandas judiciais. Como

veremos, os casos apresentados se desdobram de diferentes maneiras.

Por fim, nas considerações finais, pretendo refletir sobre as vivências que os

haitianos entrevistados estão tendo em Curitiba. Parto dos dados etnográficos da

pesquisa para pensar tanto as características comuns quanto as diferenças das

experiências vividas no Brasil, passando pelas instituições estatais e não estatais

mobilizadas com a chegada desses imigrantes. A pedido dos haitianos e dos

advogados que acompanham os casos, utilizei nomes fictícios para me referir aos

meus interlocutores.

             

  16  

Capítulo 1 Do Haiti para o Brasil

 

No dia 03 de novembro de 2013 Danilo chegou ao Brasil em um voo de Porto

Príncipe, capital do Haiti, para Curitiba, com escala em São Paulo. Após se formar

em Direito na universidade de sua cidade6, impulsionado pela vontade de dar

seguimento a sua formação por meio de uma especialização ou mestrado, além de

matar a vontade de descobrir um novo país, decidiu migrar para o Brasil.

Por que o Brasil? Danilo me contou que quando criança adorava a seleção

brasileira de futebol e sonhava em conhecer o país, tendo isso sempre em mente.

No momento de escolher para onde iria, seu pai, que vive há 25 anos nos Estados

Unidos junto com dois de seus irmãos, insistiu para que o filho seguisse o mesmo

destino. No entanto, a legislação vigente nos Estados Unidos é bastante restritiva

quanto às migrações e dificilmente Danilo conseguiria um visto que lhe permitisse

permanecer no território americano trabalhando e estudando. Ainda que parte de

sua família estivesse legalmente no país, me contou que o trâmite para regularizar

sua situação poderia demorar anos e ainda assim a entrada poderia lhe ser negada.

Então optou por procurar o consulado brasileiro em Porto Príncipe para solicitar o

visto para o Brasil.

O percurso trilhado por Danilo7 servirá aqui como fio condutor para introduzir

questões relativas à vinda de haitianos para o país, em particular aqueles que se

estabeleceram em Curitiba a partir de 2010. Quem são eles? O que fazem aqui?

Que diferenças encontram e de que maneira enfrentam as dificuldades? Vale

ressaltar que as condições da migração do meu interlocutor diferem das da maioria

de seus conterrâneos. Como veremos ao longo do trabalho, Danilo ocupa uma

posição privilegiada e cumpre um papel importante de mediação entre os haitianos

que vivem em Curitiba e as instituições brasileiras, fazendo traduções do creole para

o português em tribunais, imobiliárias e hospitais, além de organizar cursos de

português para haitianos e de história e cultura do Haiti para brasileiros.

                                                                                                               6  Danilo estudou na École de Droit et des Sciences Économiques des Gonaïves, em Gonaïves. A cidade, localizada no centro do país, é a quarta maior do Haiti, com 300 mil habitantes. Foi nela que a independência haitiana foi declarada, em 1804.  7 Danilo é um jovem de 28 anos, com cerca de 1,65m, tímido e sorridente.    

  17  

Através de Danilo8, ao longo de nossos encontros, pude conhecer tanto

haitianos que vieram para o Brasil com objetivo de continuar aqui seus estudos

como aqueles que saíram do seu país de origem, onde passavam necessidades,

para melhorar a condição de vida. O seu percurso permitiu uma maior aproximação

a uma série de mecanismos institucionais, estatais e não estatais, que foram

mobilizados pela chegada dos novos migrantes: mudanças aconteceram no âmbito

da legislação migratória e segmentos da sociedade civil, como organizações não

governamentais (ONGs) e associações paroquiais, se estruturaram para dar

assistência às pessoas que chegavam.

Pretendo também neste capítulo apresentar as transformações das leis que

regulam as migrações e as organizações que prestam auxílio aos imigrantes em

Curitiba, especificamente a Casa Latino Americana (CASLA) e a Associação para

Solidariedade dos Haitianos no Brasil (ASHBRA).

1.1 As migrações haitianas para o Brasil

As vias tomadas para chegar ao Brasil e os motivos que levaram Danilo a

seguir este rumo são minoritários entre os haitianos que chegam ao país. Segundo o

relatório Migrações dos Haitianos para o Brasil e Diálogo Bilateral9, apenas 19,7%

dos haitianos entrevistados partiram diretamente para seu destino (Fernandes,

2014:55). Em sua maioria, os migrantes adentram o país por vias terrestres,

atravessando as fronteiras do Panamá, Equador e Peru até chegar nas cidades de

Epitaciolândia e Brasileia, no Acre, ou Tabatinga, no Amazonas (Silva, S., 2012:6).

Em sua dissertação de mestrado, a antropóloga Paloma M. Silva aponta

alguns motivos que, conjugados, podem ter levado o Brasil a entrar na rota de

migração dos haitianos a partir de 2010. Entre eles, o crescimento da economia

                                                                                                               8 Conheci Danilo em uma das reuniões do CASLAJur, na CASLA. Ele estava representando a ASHBRA junto à presidente da associação, Laurette. Como veremos adiante, Danilo é estudante, músico e professor/tradutor de francês e creole. Sua disponibilidade de horários permitiu que nos encontrássemos com certa regularidade.  9 Relatório desenvolvido pelo Conselho Nacional de Imigração (CNIg), órgão vinculado ao Ministério do Trabalho e Emprego do Brasil, e a Organização Internacional para Migração (OIM), que trabalha com o apoio de órgãos governamentais, intergovernamentais e não governamentais. Foram entrevistados 340 haitianos nas cidades de Belo Horizonte, Curitiba, São Paulo e Porto Velho, além de nove grupos focais nas mesmas cidades e em Manaus.    

  18  

brasileira na primeira década dos anos 200010 , ao mesmo tempo em que as

economias europeias se enfraqueciam, pode ter sido um desses fatores.

Outro motivo relevante explicitado pela autora seriam as políticas restritivas

de migração nos países que habitualmente serviam de destino para os haitianos,

como os Estados Unidos, França e República Dominicana. Ao entrarem ilegalmente

nesses países, sem um visto de autorização para a estada, os imigrantes poderiam

ser automaticamente considerados criminosos, correndo o risco de serem presos ou

deportados assim que contatassem as autoridades locais (Vieira, 2014:14).

O comando brasileiro das forças de paz da ONU no Haiti, aliado ao discurso

da diplomacia brasileira, que se posicionou enquanto defensora dos direitos

humanos e incentivou os demais países na cooperação para a reconstrução da ilha

após o terremoto de 2010, seriam outros motivos que teriam influenciado os

haitianos a migrarem para o Brasil (Silva, P., 2014:66).

O antropólogo Sidney Silva, no artigo intitulado O ‘Eldorado’ é aqui?

Imigração Haitiana e Política Migratória Brasileira, chama a atenção para dois

episódios importantes no estreitamento dos laços Brasil-Haiti. O primeiro deles seria

o amistoso intitulado “Jogo da Paz” que aconteceu entre a seleção brasileira e a

haitiana no ano de 2004, logo depois que o Brasil assumiu a liderança da

MINUSTAH, tendo sido a presença dos jogadores brasileiros em Porto Príncipe

repercutiu em ambos os países e foi amplamente divulgada pela mídia; o segundo

acontecimento foi a visita do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao Haiti logo

após o sismo. Nessa ocasião, Lula fez um discurso propondo à comunidade

internacional possíveis ações para a reconstrução do país, além de “oferecer apoio

financeiro e acolhida aos que quisessem emigrar” (Silva, P., 2014: 4).

Por fim, especula-se que o Brasil possa ter servido como percurso para

aqueles que pretendiam chegar à Guiana Francesa (Silva, P., 2014: 65). Com as

mudanças nas políticas de aceitação dos voos da Air France, estabelecendo a

obrigatoriedade de visto francês aos passageiros com escalas em países

caribenhos, os haitianos alteraram sua rota, viajando de avião até Quito e seguindo

por terra rumo a Guiana Francesa, passando pelo Brasil. Com a possibilidade de

demandar o visto e trabalhar, muitos acabaram ficando por aqui (Silva, P., 2014: 65).

                                                                                                               10  Em 2011 o Brasil ocupou o sexto lugar no ranking dos maiores PIBs mundiais, segundo a matéria intitulada “PIB do Brasil ultrapassa o do Reino Unido e país se torna sexta economia do mundo”, publicada pelo jornal O Globo no dia 26/12/2011.  

  19  

Em 2010, os primeiros grupos de haitianos chegaram às cidades já

mencionadas. Estima-se que até o final do ano seguinte quatro mil pessoas tenham

entrado no país. Em 2013, esse número ultrapassaria a casa dos vinte mil haitianos,

chegando a cinquenta mil imigrantes até o fim de 2014 (Fernandes, op.cit., p.13).

As reações a esse fenômeno foram diversas. Ao mesmo tempo em que laços

de solidariedade se constituíam na sociedade civil para receber essas pessoas, por

meio de sociedades paroquiais11 e organizações não governamentais, setores da

imprensa e parte dos brasileiros se mantiveram reticentes quanto à chegada dos

novos migrantes. Em matéria do jornal O Globo, por exemplo, a repórter anuncia na

manchete a entrada dos haitianos enquanto “invasores”12 (cf. Carvalho, 2012).

Estabelecidos nas cidades fronteiriças, os haitianos passaram a solicitar o

pedido de refúgio às autoridades competentes. Tal fenômeno gerou um desafio, já

que a situação dos novos migrantes não era reconhecida na legislação brasileira.

Abro aqui um parêntese para explicar o funcionamento da legislação

brasileira no que diz respeito às migrações: o Estatuto do Estrangeiro, a constituição

da categoria de refugiado e o enquadramento dos imigrantes haitianos na lei.

1.2 Sobre a legislação reguladora das migrações

A imigração tem um papel importante na constituição do Brasil. Como ressalta

Sidney Silva, existe a ideia de que o Brasil recebe bem todo e qualquer estrangeiro

(Silva, S., op. cit., p.17). No entanto, o autor afirma que é necessário refletir sobre as

oscilações dessa suposta abertura, levando em conta aspectos econômicos, sociais

e critérios raciais na seleção dos imigrantes ao longo da história do país.

Giralda Seyferth explica que, em oposição à exploração escravista

latifundiária, os estados do Sul do país decidiram buscar sua transformação por

meio de explorações agrícolas familiares. Ao final do período escravocrata, os

negros e mestiços foram relegados às margens do debate sobre a colonização do                                                                                                                11  Ao chegarem em Tabatinga, por exemplo, os imigrantes puderam dormir e comer na capela do Divino Espírito Santo, vinculada à igreja Católica (Silva, P. 2012:8).  

12 Na reportagem publicada pelo jornal O Globo com o título “Acre sofre com invasão de imigrantes do Haiti”, em 01/01/2012, a repórter Cleide Carvalho apresenta em números a quantidade dos haitianos que adentraram o Brasil pelo Acre em 2011, problematizando a questão. A autora salienta que nos últimos três dias do ano, 500 imigrantes atravessaram a fronteira, somando 1400 pessoas do Haiti na cidade de Brasileia.

  20  

território, enquanto que, na tentativa de se tornar um país “civilizado”, o Brasil teria

promovido o trabalho livre associado à imigração europeia (Seyferth, 1996:45).

Nas primeiras décadas da República a discussão sobre as questões raciais

se torna ainda mais explicita. Os agricultores ou trabalhadores rurais europeus foram

considerados os imigrantes ideais e estava em voga a ideia de “assimilação

associada à miscigenação como processo histórico de formação de uma raça ou tipo

nacional” (Seyferth, op. cit., p. 48).

Seyferth também aponta para as contradições que a imigração apresentou ao

nacionalismo brasileiro, especialmente durante o Estado Novo (1937-1945): a

cultura e a língua deveriam ser mantidas como herança do colonizador português,

promovendo a assimilação e definindo a nação, ao mesmo tempo em que esse

processo deveria resultar em um povo “unívoco e preferencialmente de cor branca”

(Seyferth, 2002:147, grifos no original). Décadas mais tarde, as consequências

desse projeto de nação se refletiram no Estatuto do Estrangeiro de 1980, como

veremos logo abaixo.

No ano de 1951 aconteceu em Genebra a Conferência de Plenipotenciários

das Nações Unidas, com objetivo de redigir uma convenção regulatória do status

legal dos refugiados. O Estatuto dos Refugiados (ONU, 1951), convenção que

entrou em vigor no dia 22 de abril de 195413, consolidou os mecanismos legais

internacionais concernentes às pessoas consideradas como tal.

Esse documento prevê duas cláusulas essenciais: a definição de refugiado e

o princípio do “non-refoulement”14. A definição de refugiado é explicitada no artigo

primeiro, como consta a seguir: Art. 1º. Definic ão do termo "refugiado" §1. Para os fins da presente Convenc ão, o termo "refugiado" se aplicará a qualquer pessoa: c) Que, em consequ e ncia dos acontecimentos ocorridos antes de 1 de janeiro de 1951 e temendo ser perseguida por motivos de rac a, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da protec ão desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua reside ncia habitual em

                                                                                                               13 O artigo 43 da Convenção estabelece em seu primeiro parágrafo: “§1. Esta Convenc ão entrará em vigor no nonagésimo dia seguinte à data do depósito do sexto instrumento de ratificacão ou de adesão”(ONU, 1951).  14 “Non-refoulement” pode ser traduzido para o português como ‘não devolução’.  

  21  

consequ e ncia de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele (ONU, 1951).

Já o princípio de ‘non-refoulement´ é enunciado da seguinte maneira:

Art. 33. Proibição de expulsar ou repelir

§1. Nenhum dos Estados Membros expulsará ou rechac ará, de maneira alguma, um refugiado para as fronteiras dos territórios em que a sua vida ou a sua liberdade seja ameac ada em virtude da sua rac a, da sua religião, da sua nacionalidade, do grupo social a que pertence ou das suas opiniões políticas (ONU, 1951).

O Estatuto do Refugiado, no entanto, incluía apenas os eventos ocorridos até

1° de janeiro de 1951. Somente passados dezesseis anos, em 31 de janeiro de

1967, a Resolução 2198 (XXI) da Assembleia Geral das Nações Unidas estabeleceu

que os países signatários deveriam aplicar as resoluções da Convenção de 1951 a

todos os refugiados enquadrados na definição da carta, sem limite de datas e de

espaço geográfico.

O Brasil ratificou a convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados por meio

do Decreto n° 50.215, de 28 de janeiro de 1961, mas com algumas reservas15. Já o

Protocolo de 1967 teve a adesão do país em 1972, quando foi derrubada a reserva

temporal prevista pelo documento.

No ano de 1980, durante a ditadura militar brasileira, foi promulgado o

Estatuto do Estrangeiro, Lei no 6.815 de 19/08/1980, que define a situação jurídica

dos estrangeiros no Brasil e institui o Conselho Nacional de Imigração (CNIg). Tal

lei estabelece que o imigrante “ideal” para o Brasil é aquele que pode contribuir com

mão de obra especializada:

Art. 16, Parágrafo único. A imigração objetivará, primordialmente, propiciar mão-de-obra especializada aos vários setores da economia nacional, visando ao aumento da produtividade, à assimilação de tecnologia e à capacitação de recursos para setores específicos.

Tendo recebido nova redação através da Lei federal no 6.964, de 09.12.1981:

Art. 16, Parágrafo único. A imigração objetivará, primordialmente, propiciar                                                                                                                15 A adesão Brasil não foi absoluta: foram feitas ressalvas geográficas e temporais, além de incluir restrições aos artigos 15 e 17, referentes a direitos de associação e de labor remunerado, respectivamente.  

  22  

mão-de-obra especializada aos vários setores da economia nacional, visando à Política Nacional de Desenvolvimento em todos os aspectos e, em especial, ao aumento da produtividade, à assimilação de tecnologia e à captação de recursos para setores específicos.

Anos mais tarde, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu como princípios

das relações internacionais do país, entre outros, a “prevalência dos direitos

humanos” e a “concessão de asilo político” (Art. 4º, II e X). E, no plano interno,

garantiu aos estrangeiros residentes no país os mesmos direitos fundamentais dos

cidadãos brasileiros “à vida, à liberdade, à segurança e à proteção” (Art. 5º, caput).

Embora o Brasil tenha ratificado o Estatuto dos Refugiados em 1961,

somente em 1997 a Lei nº 9.474, de 22/07/1997, regulamentou os mecanismos para

sua implementação. Ela prevê a criação do Comitê Nacional para os Refugiados

(CONARE), órgão colegiado presidido pelo Ministro da Justiça, vice presidido pelo

Ministro das Relações Exteriores, e composto pelos seguintes membros: Ministério

do Trabalho e Emprego, Ministério da Saúde, Ministério da Educação, Departamento

da Polícia Federal e uma organização não governamental que se dedique a

atividade de assistência e proteção aos refugiados16. O Alto Comissariado das

Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) participa do órgão com direito a voz, sem

voto.

Como previsto no Art. 12 da Lei n° 9.474, cabe ao CONARE analisar os

pedidos sobre o reconhecimento da condição de refugiado, bem como deliberar

sobre sua cessação. É ainda competência do órgão orientar e coordenar ações de

proteção, assistência, integração local e apoio jurídico aos refugiados, assim como

aprovar instruções normativas que possibilitem a execução desta lei.

O procedimento previsto para obtenção desta modalidade de visto acontece

na medida em que o solicitante, ao adentrar o país, apresenta-se à Polícia Federal17.

Neste momento o estrangeiro deverá preencher uma ficha de solicitação de refúgio,

e, a partir dela, poderá ser emitido um protocolo temporário em favor do solicitante.                                                                                                                16 Quem ocupa esse posto é a Caritas Brasileira, que faz parte da Rede Caritas Internationalis e é um organismo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). A instituição atua na defesa e promoção dos direitos humanos.  17 Sidney Silva atenta para os possíveis constrangimentos causados aos imigrantes ao se dirigirem primeiramente à Polícia Federal. O autor atribui essa etapa do processo aos “resquícios ideológicos das políticas de Segurança Nacional, para a qual a imigração é vista como ameaça e não como uma questão social” (Silva, S., op.cit., p. 21).  

  23  

Com o registro em mãos, a pessoa pode tirar alguns documentos, como, por

exemplo, a carteira de trabalho. Este protocolo é temporário até que o CONARE

analise o pedido de refúgio. Caso seja deferido, o solicitante se torna residente

permanente18 no Brasil.

As normas até aqui descritas, no entanto, não eram aplicáveis aos haitianos

que começaram a chegar no Brasil após o terremoto de 2010. Por mais que sua

entrada no país fosse respaldada pelo princípio do non-refoulement, eles não se

enquadravam no status de refugiados, já que catástrofes naturais e dificuldades

econômicas não integram as definições previstas pelo Estatuto do Refugiado para

tal.

Como explica Sidney Silva, centenas de haitianos cruzavam as fronteiras

brasileiras e quando chegavam a Tabatinga (AM), por exemplo, enfrentavam uma

longa espera para serem atendidos pela Polícia Federal, vez que apenas 40 deles

eram recepcionados por semana (Silva, S., 2012:7). Essa espera desencadeava

problemas de outras ordens: na medida em que deveriam esperar na cidade,

precisavam de moradia, alimentação, acesso à saúde etc. As cidades fronteiriças,

no entanto, não davam conta de tamanha demanda. Conflitos entre brasileiros e

haitianos começaram a acontecer na disputa pelas vagas de emprego, como nos

carregamentos do porto de Tabatinga, e as autoridades temiam que os imigrantes

buscassem soluções para o desemprego no crime organizado da fronteira (Idem, p.

9). Assim, o governo brasileiro precisou tomar providências para solucionar a

condição de ilegalidade dos imigrantes haitianos que aqui chegavam.

Entendendo que os haitianos precisavam de proteção humanitária, ainda que

não se enquadrassem enquanto refugiados, o CONARE enviou para apreciação do

Conselho Nacional de Imigração (CNIg) o enquadramento dos haitianos como

“situações especiais e casos omissos” da lei de estrangeiros de 1980 (Silva, P.,

2014:75).

Por meio da Resolução Normativa nº 97/12 do Conselho Nacional de Imigração

(CNIg), de 12 de janeiro de 2012, foi criada a figura do “visto humanitário”,

especialmente para os haitianos:

Art. 1º Ao nacional do Haiti poderá ser concedido o visto permanente previsto no art. 16 da Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980, por razões

                                                                                                               18 De acordo com a Lei no 6.815, de 19/08/1980, que define a situação jurídica do estrangeiro no país.  

  24  

humanitárias, condicionado ao prazo de 5 (cinco) anos, nos termos do art. 18 da mesma Lei, circunsta ncia que constará da Cédula de Identidade do Estrangeiro.

Parágrafo único. Consideram-se razões humanitárias, para efeito desta Resoluc ão Normativa, aquelas resultantes do agravamento das condic ões de vida da populac ão haitiana em decorre ncia do terremoto ocorrido naquele país em 12 de janeiro de 2010.

Sobre os vistos humanitários criados para atender às demandas dos imigrantes haitianos, a antropóloga Paloma M. Silva (2014: 76-7) relata:

A mobilização pelo Estado brasileiro de um mecanismo de proteção humanitária excepcional voltada aos imigrantes haitianos é muito significativa. Ela só foi possível em consequência do enquadramento do “terremoto” como evento critico, ou seja, um acontecimento que rompe com a estrutura ordinária da vida cotidiana (p. 76).

Ainda segundo a autora, a situação de miséria confirmada pelos índices de

pobreza e fome no Haiti seria considerada “situação ordinária, sem prazo para se

extinguir”, e sem potencial para forçar migrações, negando legitimidade à concessão

do visto humanitário.

Seriam necessárias causas vistas como políticas, as quais configurariam o refúgio, ou o impacto de forças exógenas ao indivíduo, como o desastre natural causado pelo terremoto. Nesse sentido, o terremoto inaugurou novas possibilidades migratórias aos haitianos, dessa vez amparadas pelo reconhecimento da legitimidade jurídica da demanda pelo Estado brasileiro (Idem).

A princípio o visto deveria ser expedido pela Embaixada do Brasil em Porto

Príncipe, e restrito a 1.200 concessões por ano. O candidato teria que pagar

duzentos dólares, ser residente no Haiti, apresentar um atestado de bons

antecedentes e o passaporte em dia. A medida que pretendia coibir a atuação de

coiotes19 e diminuir o fluxo de imigrantes ilegais, no entanto, acabou por reforçar a

criminalização dos mesmos, visto que os haitianos continuaram atravessando as

fronteiras (Idem, p. 77).

Alterações foram feitas por meio da Resolução Normativa nº 102/13 do CNIg,

que entrou em vigor em 26 de abril de 2013, derrubando o limite anual de emissões

de vistos e permitindo que fossem solicitados desde outros países, como, por

exemplo, o Equador.

Apesar do limite de 1.200 vistos anuais, dados do CNIg apontam que 4.682

                                                                                                               19    Coiotes  são  aqueles  que,  mediante  pagamento  de  três  a  cinco  mil  dólares,  dão  acesso  aos  haitianos  em  todo  o  percurso  até  o  Brasil  (Silva,  P.,  op.cit.,  p.  77).    

  25  

vistos foram concedidos no ano de 2012, 2.070 em 2013 e 1.881 em 2014 (CGIg;

CNIg, MPT, 2014:14).

1.3 Os mecanismos não estatais de acolhida aos migrantes

Após contextualizar a migração haitiana para o Brasil e a legislação que

regulamenta a permanência desses imigrantes no país, retomo a história narrada

por Danilo.

Para Danilo, o processo para obtenção de visto durou nove meses. Ele me

contou que nesse meio tempo pesquisou informações sobre as cidades brasileiras

na internet, e escolheu Curitiba tendo em vista sua colocação nos índices de

desenvolvimento e escolaridade, além de já conhecer alguns conterrâneos que aqui

viviam. Cabe ressaltar que, como já foi dito, Danilo é exceção em relação à maioria

dos haitianos que vivem no Brasil, já que normalmente os imigrantes, ao chegarem

nas cidades nas fronteiras brasileiras, não escolhem para onde irão.

Amigos de infância de Danilo moravam na cidade e o acolheram quando

desembarcou. Alguns deles tinham estudado com ele no ensino básico, enquanto

outros cursaram a mesma universidade, uns se formando em música e outros em

administração. Ainda no Haiti havia morado com alguns deles, com quem tinha uma

banda de reggae e kompa, um ritmo tradicional do país. Esses amigos vieram para o

Brasil estudar mas, assim como Danilo, não conseguiram revalidar diplomas ou

ingressar em universidades. Hoje trabalham em restaurantes, como seguranças ou

na construção civil.

Assim como eles, Danilo percebeu ao chegar que as coisas seriam diferentes

do que esperava. Sendo a língua materna do Haiti o creole e, junto a ele, o francês

como língua oficial, Danilo não sabia falar uma palavra de português. Foi então que,

a partir da indicação de seus amigos, foi fazer aulas do idioma no CELIN – Centro

de Línguas e Interculturalidade da Universidade Federal do Paraná20.

Foi então que descobriu que revalidar seu diploma não seria uma missão

fácil. Dadas as diferenças entre os currículos do curso feito no Haiti e os cursos

ofertados no Brasil, seria necessária uma prova de revalidação. Essa prova, além de

ser em português, é bem rígida quanto ao que é ensinado pelo programa brasileiro.

                                                                                                               20 Voluntários oferecem aulas gratuitas de português para imigrantes. Com a crescente chegada de haitianos, existem turmas especiais destinadas a esse público.  

  26  

Obteve todas essas informações em inglês, língua que também domina, com seus

“primeiros amigos brasileiros”, os professores de português do CELIN. Sem a

validação de diploma Danilo não poderia exercer sua profissão no país.

De qualquer maneira, precisava de um emprego para se sustentar na cidade.

Os amigos haitianos que trabalhavam na construção civil indicaram Danilo para uma

vaga de auxiliar de obra. O trabalho começaria imediatamente e, não vendo outra

possibilidade de trabalho imediato, entregou os documentos, teve sua carteira de

trabalho assinada e ingressou em um novo ofício.

Seus planos de estudo ficaram guardados para mais tarde: contou-me que

precisaria trabalhar o dia todo para pagar as despesas, o ingresso nas universidades

públicas exige conhecimento avançado da língua e o salário mínimo não é o

suficiente para pagar as despesas e um curso universitário privado.

Quando perguntei sobre o período de trabalho na construção civil, me contou

que foi muito difícil a adaptação ao ofício, já que quando construiu sua casa no Haiti,

por exemplo, contratou uma pessoa especializada para cumprir a tarefa e não se

ocupou da obra. Perguntei se sentia diferença entre os haitianos que vieram para o

Brasil em busca de empregos melhores e aqueles que, como ele, vieram para outros

fins e acabaram designados às mesmas funções que os primeiros. Me respondeu

que para ele é muito mais difícil trabalhar na construção civil do que para aqueles

que já exerciam essa função no Haiti. Trabalhando como advogado no Haiti ele

poderia ganhar mais do que como auxiliar de obra no Brasil, enquanto um pedreiro

brasileiro ganha mais do que o haitiano, o que torna proveitoso trabalhar no Brasil e

possibilita o envio de remessas para suas família no Haiti.

1.3.1 A ASHBRA

Nesse meio tempo, um amigo haitiano de Danilo o convidou para participar de

uma reunião da Associação para Solidariedade de Haitianos no Brasil (ASHBRA). O

grupo já se reunia há algum tempo e os encontros aconteciam quinzenalmente, aos

domingos, na Casa Latino Americana de Curitiba (CASLA) que, como veremos

adiante, desempenha um importante papel no acolhimento e assessoria a migrantes.

Em sua segunda reunião, aconteceu a eleição para os cargos da diretoria da

ASHBRA. Danilo foi indicado e eleito secretário, tendo como função a redação das

  27  

atas dos encontros, a solução de problemas conjuntamente com a presidência e

apoio aos haitianos que vivem em Curitiba.

Sobre a Associação, Danilo me contou que os membros variam bastante, já

que frequentemente mudam de cidade ou de emprego, tendo menos ou mais horas

disponíveis para ajudar. Conta com cerca de 120 membros e é bem conhecida pelos

haitianos residentes em Curitiba. O grupo presta todo tipo de auxílio aos

conterrâneos: desde ajuda com os documentos até traduções, quando necessário.

Quando alguém está no hospital, por exemplo, e não tem parentes aqui, algum

membro da Associação faz companhia a essa pessoa, ajudando tanto quanto for

possível. A Associação, presidida por uma mulher, Laurette 21 , também é

responsável pela organização da Festa da Bandeira do Haiti, comemorada pela

segunda vez em 2015 no Memorial de Curitiba, quando centenas de haitianos se

juntaram para celebrar a independência do país.

Seu período de trabalho na construção civil durou cinco meses, até que

Danilo sofreu um acidente: trabalhava consertando o teto de uma casa sem cinturão

de segurança22, tropeçou e despencou de seis metros de altura. Foi logo socorrido

pelos companheiros brasileiros de trabalho e levado até um hospital. Danilo me

contou que o amigo brasileiro que lhe pediu ajuda para consertar o teto teria se

sentido tão responsável pela queda, que ficou uma semana sem ir trabalhar.

No hospital, num primeiro momento Danilo não foi bem atendido. O médico

teria dito que o trincamento do braço não era nada demais e só recebeu um dia de

atestado, apesar da dor sentida. Decidiu ficar em casa por mais tempo e como a dor

não passou, procurou um outro médico que lhe deu mais dez dias de afastamento.

O chefe exigiu que fosse trabalhar mesmo assim, nem que assinasse o ponto e

passasse o resto do tempo sentado, assistindo aos colegas. Danilo me contou que

mesmo assim enfrentou problemas com o patrão, quando este começou a reclamar

que os outros trabalhadores estavam deixando de cumprir suas tarefas para

conversar com o haitiano.

                                                                                                               21 Laurette tem cerca de 30 anos e vive no Brasil desde 2010. Veio para cá em projeto de sua Universidade no Haiti. No começo da pesquisa tivemos bastante contato, porém, no momento Laurette estuda fisioterapia em uma universidade particular todas as noites e trabalha o dia todo. Aos finais de semana tem compromissos pré-agendados, impossibilitando uma entrevista específica para este trabalho. As informações que apresento sobre ela são aquelas que carrego desde que nos conhecemos.  22 Danilo não me disse se não havia cinturão na obra ou se deixou de usar por vontade própria.  

  28  

Junto com ele, mais dois conterrâneos trabalhavam na mesma empresa.

Assim que houve o acidente, em reunião com o chefe, foi informado que todos os

haitianos seriam demitidos. Logo em seguida, com aviso prévio, seus dois colegas

haitianos foram mandados embora.

Danilo me relatou que os brasileiros companheiros de trabalho foram muito

solidários durante o processo e são amigos até hoje. Um deles se demitiu após os

acontecimentos, alegando que não poderia confiar em um chefe que trata mal um

trabalhador, chegando a dispensá-lo após um acidente de trabalho.

Foi então que Laurette o colocou em contato com os advogados da CASLA,

um grupo autodenominado CASLAJUR, para que procurasse ajuda em relação à

violação que sofreu no trabalho. Lembro-me da primeira reunião em que Danilo

esteve presente, com os dentes da frente quebrados como consequência do

acidente, tímido e ainda sem tanto domínio do português.

1.3.2 A CASLA

A Casa Latino Americana – CASLA é uma organização não governamental

(ONG) fundada em 1984 em Curitiba pela iniciativa de pessoas de diferentes

origens. No momento em que foi criada, vivia-se a transição do regime político

autoritário para uma fase ainda incipiente de democracia. Nesse contexto, militantes

em prol da democracia e na resistência contra o regime militar criaram a ONG.

Alguns de seus fundadores continuam à frente da organização até hoje, como

é o caso de Dimas Floriani, professor aposentado de sociologia na Universidade

Federal do Paraná, Gladys Sanchez, médica aposentada e atual presidente da

ONG, e Ivete Caribé, advogada e vice-presidente da CASLA. Assim como os pais,

os filhos de Gladys e Dimas, Nádia e Nicolas, participam ativamente da instituição,

Nicolas organizando o CEPIAL – Congresso de Educação para Integração da

América Latina, entre outros cursos e congressos, e Nádia na coordenação do

CASLAJur e das atividades relacionadas aos imigrantes e refugiados, como

veremos adiante.

Como me contou Nádia, hoje em dia a ONG cumpre a função de “informar a

sociedade sobre diferentes temas relacionados a questões sociais, especialmente

da América Latina”. Atua também fortemente em relação às migrações atuais,

oferecendo diferentes tipos de auxílio a refugiados e migrantes. Assim, são

  29  

realizados seminários, eventos e campanhas de conscientização no sentido de

afirmar os direitos humanos a partir de diferentes frentes, como meio ambiente,

cultura e educação.

Desde abril de 2014 frequento a instituição como voluntária, e acompanho a

formação e a transformação dos diferentes núcleos que a compõem. Hoje, são eles:

o CASLAJur – formado atualmente por 20 advogados; um núcleo formado por

jornalistas, o CASLACom, que produz o conteúdo escrito da CASLA, ou seja, as

notas que são mandadas à imprensa, as postagens na página da associação no

Facebook e o seu site; um núcleo formado por profissionais de várias áreas, o

CASLARI, que conta com sociólogos, historiadores, geógrafos, antropólogos e

pessoas formadas em relações internacionais, organiza cursos de direitos humanos

e capacitações com refugiados; e o CASLAPsico, formado por psicólogos. Todos os

profissionais são voluntários.

1.3.3 O CASLAJUR

Minha aproximação com a CASLA se deu em abril de 2014, quando decidi

que gostaria de trabalhar com os refugiados que viviam na cidade. Como relatado na

Introdução, contatei um amigo que me passou o contato de Rodrigo, um português

de 26 anos, formado em relações internacionais, de mãe brasileira, que à época

vivia em Curitiba 23 . Mandei uma mensagem no Facebook para Rodrigo

manifestando meu interesse em conhecer o trabalho desenvolvido pela instituição e

pedindo referências de textos e matérias jornalísticas que me introduzissem no

universo das migrações, ao que ele respondeu quase imediatamente, me

convidando para participar de uma reunião do CASLAJur, que acontecia toda sexta-

feira às 19 horas na CASLA. Na época o CASLAJur contava com a participação de

todos os voluntários interessados no tema, sendo composto predominantemente por

advogados, mas também por pessoas formadas em relações internacionais e

ciências sociais.

Aceitei o convite e combinei com Rodrigo de chegar meia hora antes da

reunião, para que ele me apresentasse o lugar e me contasse um pouco sobre o

trabalho desenvolvido. Cheguei à ONG e me deparei com um grande muro colorido,

                                                                                                               23 No começo de 2015 Rodrigo voltou para seu país.  

  30  

com os dizeres: “aqui se respira lucha”, ao lado do desenho de uma pessoa com

roupas coloridas e a bandeira Whipala24. Toquei a campainha e fui atendida por

Raquel, na época a secretária da instituição, que pediu que eu esperasse um

instante até Rodrigo chegar. Aguardei no hall de entrada alguns minutos até a sua

chegada e, logo após as apresentações, Rodrigo me conduziu em um passeio pelo

espaço físico da CASLA: uma grande casa cedida pelo Governo do Estado com uma

sala de aula com projetor e quadro negro, cinco salas menores com computadores,

mesas, cadeiras e estantes, um almoxarifado, uma sala de reuniões, a sala da

presidência da organização e, aos fundos da casa, passando por um corredor com

dois banheiros, um grande salão com uma cozinha e o estacionamento. As paredes

do grande casarão eram todas preenchidas por cartazes de diferentes tipos: sobre

feiras de sementes crioulas, congressos de direitos humanos, cursos oferecidos pela

própria instituição e fotos de paisagens latino-americanas.

Quando chegamos ao grande salão fui então apresentada a Nádia, advogada

fundadora do CASLAJur e presidente da Comissão de Direitos dos Refugiados e

Migrantes da Ordem dos Advogados do Brasil no Paraná – OAB/PR, que preparava

um café e dispunha quitutes sobre a bancada que divide a cozinha da sala, para o

desfrute daqueles que chegavam para a reunião. Contei a ela que sou estudante de

Ciências Sociais, que não sabia quase nada sobre o tema das migrações ou sobre

Direito, mas que gostaria de ajudar o grupo da maneira que fosse possível.

Tomamos café enquanto Nádia e Rodrigo me contavam a história da CASLA

e o surgimento do CASLAJur: motivadas pela possibilidade de ajudar pessoas de

diversas nacionalidades que chegam a Curitiba e enfrentam dificuldades de

diferentes sortes, duas advogadas – a própria Nádia e Ivete Caribé – convidaram um

grupo de colegas da profissão para constituir um coletivo de apoio jurídico a

refugiados e migrantes. Em março de 2014 deram início às reuniões, que mais tarde

passaram a contar com a participação de estudantes de ciências sociais, relações

internacionais, pedagogia e psicologia, entre outros. O trabalho desenvolvido pelo

CASLAJur começou então a ser divulgado junto a outras instituições da sociedade

civil, a Polícia Federal (PF) e nas redes sociais.

Aos poucos os membros do grupo foram chegando e por volta das 19 horas,

enquanto comiam e tomavam café, foram ocupando as mesas e cadeiras de

                                                                                                               24 Whipala é uma bandeira de origem andina, que simboliza a organização dos povos andinos.  

  31  

madeira do salão, dispostas em forma de “U”. Entre eles advogados, estudantes de

relações internacionais, de pedagogia e a presidente da ASHBRA, Laurette,

somando doze pessoas. Nádia anunciou, então, o início da reunião daquela noite.

Após uma rodada de apresentações, Raquel distribuiu para aqueles que

participavam pela primeira vez do encontro um material sobre a ONG e uma cartilha

da Polícia Federal sobre imigração. Além disso, todos receberam um documento de

três páginas, com o cabeçalho da CASLA e o título: “Atendimentos Advogados

Populares – CASLA – Abril”. O documento estava enumerado em tópicos, com o

nome daqueles que tinham buscado auxílio, o seu problema e um telefone para

contato.

Nádia pediu que um dos advogados lesse em voz alta o primeiro caso da

primeira folha do documento. Tratava-se de um nigeriano com problemas para

obtenção de refúgio. Um advogado se responsabilizou pelo caso e, ao ser

encaminhado, passamos para a leitura do próximo, e assim sucessivamente, até o

fim do documento. Por volta das 21:40 a reunião terminou.

***

Nos meses que seguiram participei das reuniões e auxiliei em alguns

atendimentos de imigrantes que precisavam de ajuda com o preenchimento do

questionário25 da Polícia Federal para a obtenção do protocolo de refúgio. Em

outubro de 2014, decidiu-se que o grupo se dividiria nos núcleos que existem hoje

(CASLACom, CASLA-RI, CASLAJur e CASLAPsico). Foi quando parei de frequentar

as reuniões, agora restritas aos advogados.

Até outubro de 2014 o CASLAJur atendeu 136 pessoas, de 28

nacionalidades. Grande parte dos atendidos foram haitianos (40), seguidos dos

guineenses (21) e dos nigerianos (18)26. Os pedidos de ajuda para solicitação de

visto humanitário ou de refúgio, além do acompanhamento na PF, predominam no

histórico do CASLAJur. No mais, constam alguns pedidos de auxílio para

revalidação de diploma e empregadores que entraram em contato com a instituição

para saber se receberiam algum benefício caso empregassem imigrantes. Existem

também os casos que só podem ser resolvidos pelos advogados: denúncias

                                                                                                               25  Cf.  Anexo  1    26  Cf.  Tabela,  Anexo  2  

  32  

trabalhistas e casos de racismo e xenofobia, além de pedidos de assessoria jurídica

para os mais diversos tipos de problemas.

Nesse contexto, Danilo entrou, junto a André, advogado trabalhista do

CASLAJur, com um processo contra seu ex-empregador, que corre até hoje na

Justiça.

Além dos casos trabalhistas que chegaram à instituição, em outubro de 2014

alguns haitianos procuraram a CASLA a fim de denunciar agressões físicas e

verbais de cunho racista e xenófobo. No próximo capítulo descrevo os casos a partir

das trajetórias de parte desses haitianos, além de atentar aos registros de

atendimentos do CASLAJur sobre tais acontecimentos e ao ponto de vista dos

advogados envolvidos.

   

  33  

Capítulo 2 As denúncias de Racismo

No capítulo anterior procurei descrever as condições da vinda recente dos

haitianos para o Brasil, as previsões legais que permitem ou não que permaneçam

no país enquanto refugiados, assim como a ação de organizações não

governamentais que prestam apoio a essas pessoas.

Neste capítulo apresentarei os relatos descritos nos relatórios do CASLAJur,

especificamente os casos de racismo que chegaram até a CASLA e uma denúncia

trabalhista. Aqui também tomarei como fio condutor a trajetória de Danilo e

apresentarei em seguida os relatos dos outros haitianos com quem conversei.

Após o acidente e a demissão, Danilo prometeu a si mesmo nunca mais

trabalhar na construção civil. Foi então que seus professores do CELIN sugeriram

que desse aulas de francês e de creole. Além das aulas, Danilo me contou que o

Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil conta com as suas traduções

quando precisa de ajuda para compreender um haitiano que não domina o

português, por exemplo.

Ao mesmo tempo, uma turma especial do curso de Direito foi ofertada na

Universidade Federal do Paraná com início no primeiro semestre de 201527. Os

beneficiários do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA)

puderam se inscrever para concorrer a uma das 60 vagas ofertadas. Nesse

contexto, Danilo foi convidado por seus professores do CELIN para compor o grupo.

A Resolução nº 1314/2014 do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da

UFPR estabeleceu normas para o acesso aos cursos de graduação da instituição de

migrantes regularmente admitidos no Brasil como refugiados ou portadores de visto

humanitário que tivessem iniciado cursos superiores em seus países de origem.

Respaldado por esta Resolução, meu interlocutor ingressou no curso de direito da

Universidade Federal do Paraná.

Seu processo trabalhista continua em andamento. Danilo compareceu a

                                                                                                               27  A   iniciativa   está   ligada   ao   PRONERA,   uma   política   do   INCRA   voltada   especialmente   para   a  educação  do  campo,  para  atender  às  necessidades  dos  beneficiários  da  reforma  agrária.  As  inscrições  foram   abertas   para   assentados,   acampados,   membros   de   comunidades   quilombolas   e   demais  cadastrados  no  INCRA,  com  ensino  médio  concluído.  A  seleção  ocorreu  por  meio  das  notas  da  prova  do  ENEM  2014.    

  34  

algumas audiências e a próxima será em fevereiro de 2016. Por enquanto sobrevive

com o dinheiro que recebe do pai todo mês, enviado dos Estados Unidos.

Como veremos a seguir, a sorte da maioria dos haitianos é outra. Em nenhum

momento ao longo de nossas conversas Danilo mencionou situações que envolvam

discriminação por conta de sua cor. Quando lhe perguntei se percebe o Brasil como

um país racista, afirmou que sabe que a discriminação existe, mas que “nunca

sentiu na pele”. Acredita que seus conterrâneos estão sofrendo com diferentes tipos

de problemas, mas “não reclamam porque estão acostumados a resolver as coisas

entre haitianos, têm medo de envolver os brasileiros e perder o emprego, sofrer

alguma consequência”.

2.1. Os atendimentos da CASLA

Como relatado, a CASLA atendeu aos mais diversos tipos de casos durante o

ano de 2014, mas alguns deles chamaram atenção: aqueles marcados por

agressões físicas e verbais, motivados por racismo e xenofobia.

O desenvolvimento desses casos dentro da própria CASLA recebeu

destaque: os advogados e voluntários se mobilizaram para tentar ajudar esses

imigrantes, a imprensa foi chamada para relatar o que estava acontecendo, a

ASHBRA acompanhou de perto as denúncias.

Entre os dias 19 e 27 de outubro de 2014, foram veiculadas ao menos oito

reportagens denunciando as histórias de haitianos agredidos. A Gazeta do Povo, o

principal jornal de Curitiba, publicou a seguinte manchete: “Xenofobia se converte

em agressões contra imigrantes haitianos” (Aníbal, 2014), enquanto o jornal O

Globo, do Rio de Janeiro, noticiava: “Imigrantes haitianos são vítimas de preconceito

e xenofobia no Paraná”28. A Secretaria da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do

Estado do Paraná (SEJU) publicou por meio da página virtual do Departamento de

Direitos Humanos e Cidadania (DEDIHC) uma nota com o mesmo título: “Imigrantes

haitianos são vítimas de preconceito e xenofobia no Paraná”.

                                                                                                               28 Disponível em <http://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/xenofobia-se-converte-em-agressoes-contra-imigrantes-haitianos-ef4atki1925lz2d0e34rtiudq http://www.dedihc.pr.gov.br/modules/noticias/article.php?storyid=3228> e <http://g1.globo.com/jornal-hoje/noticia/2014/10/imigrantes-haitianos-sao-vitimas-de-preconceito-e-xenofobia-no-parana.html>.    

  35  

Todas as reportagens continham as mesmas informações: o Ministério

Público do Trabalho estaria investigando 13 denúncias envolvendo patrões e

colegas de trabalho suspeitos de agredir, ofender ou demitir irregularmente os

imigrantes. As vítimas foram entrevistadas e seus relatos descritos pela imprensa:

algumas apanharam de companheiros de serviço, outras foram chamadas de

“macaco” ou “escravo”. Foi na CASLA que a maioria dessas entrevistas aconteceu.

Também foi na CASLA que esses haitianos encontraram auxílio jurídico para acionar

a Justiça na tentativa de resolver seus problemas.

Como descrito no capítulo anterior, ao chegarem à instituição por meio das

mais diversas formas – indicações de compatriotas, auxílio da ASHBRA,

encaminhados pela Polícia Federal –, os imigrantes primeiramente são recebidos

pela secretária da organização, Raquel29.

O procedimento de praxe acontece da seguinte maneira: em um primeiro

momento relatam à própria secretária por que buscam ajuda. Caso possa ajudar

imediatamente, os encaminhamentos são feitos ali mesmo, como a orientação sobre

o endereço de algum serviço ou o contato com alguma organização. Caso contrário,

se a solução tiver de ser buscada junto aos advogados, Raquel anota o que procura

aquela pessoa em tópicos e lhe informa que os advogados do grupo entrarão em

contato após analisar o caso.

Em julho de 2014, acompanhei Raquel em muitos de seus atendimentos. No

período trabalhava como estagiária na instituição – Gladys me pediu que ajudasse

ao longo do mês de julho na organização do I Encontro sobre Interculturalidade,

Direitos Coletivos e Relações Internacionais30, que aconteceria em agosto. Durante

pouco mais de um mês passei as minhas tardes na ONG, das 14 às 18 horas, e às

sextas-feiras emendava meu turno de trabalho nas reuniões do CASLAJur, atuando

como voluntária.

Todas as tardes cumpria um pequeno ritual: chegava à CASLA, deixava

minha mochila na sala em que costumava trabalhar, ia até a cozinha e passava um

café. Quando pronto, colocava numa garrafa térmica e levava até a mesa da

secretaria, no hall de entrada. Raquel, eu e os outros voluntários nos servíamos e                                                                                                                29 Raquel permaneceu na secretaria da CASLA até fevereiro de 2015. O secretário que a sucedeu, Diego, é o responsável atual pelos relatórios do CASLAJur.  30 O encontro contou com a presença de vários acadêmicos e organizações sociais de toda a América Latina. Nele foi lançada a Câmara Jurídica Internacional da Rede CASLA-CEPIAL, com objetivo de capacitar as populações latino-americanas (camponeses, indígenas, pescadores, povos da floresta, deserto, etc) para sua auto-defesa jurídica.    

  36  

enquanto tomávamos o café conversávamos um pouco, para então voltar aos

nossos postos.

Quando ouvia a campainha tocar uma luzinha acendia dentro de mim, como

um alerta à possibilidade de ser um imigrante buscando ajuda e minha curiosidade

me levava até a entrada para ver do que se tratava. Quando de fato eram

estrangeiros e o trabalho que fazia estava encaminhado, dava uma pausa e me

oferecia para acompanhar Raquel.

Normalmente eram haitianos – além de africanos de diferentes países, latino-

americanos e sírios – que precisavam de ajuda para o preenchimento dos

documentos de pedido de visto. Quando não, eram pessoas prestando queixas,

principalmente quanto aos empregadores, além de alguns casos específicos sobre

outros assuntos como a busca por aulas de português ou problemas com

imobiliárias.

Quando entendíamos que os advogados deveriam entrar em contato para

propor uma solução, tentávamos entender o que estava acontecendo, Raquel

anotava em sua agenda tópicos com as demandas trazidas tal como apresentadas e

depois redigia um pequeno texto para ser lido na reunião do CASLAJur.

Normalmente as conversas com esses imigrantes eram informais, servíamos café e

água e tentávamos deixar o ambiente o mais acolhedor possível.

Em um ou outro caso me ofereci para resolver o problema naquela mesma

hora, como no dia em que um rapaz do Congo, de 24 anos, pediu ajuda para

preencher seu formulário de refúgio. Me contou que trabalhava como professor em

um curso técnico para estudantes de ensino médio em uma cidade a alguns

quilômetros do vilarejo onde seus pais e duas irmãs viviam. Costumava passar a

semana no colégio, e voltava para casa da família nos finais de semana. Numa

sexta-feira, ao entrar no vilarejo, percebeu que as casas estavam reviradas, de

portas abertas, e não havia ninguém por perto. Pressentindo que os grupos armados

de oposição ao governo tivesse passado por lá, pegou o dinheiro que tinha

guardado e partiu a Ruanda. Ficou dois meses no país, até que começou a ser

perseguido31 e partiu rumo a Uganda. Depois de um mês no país voltou a receber

ameaças de morte e fugiu para Camarões. Morou nove meses por lá, mas, como me

contou, não conseguia emprego, passou fome e emagreceu muitos quilos. Foi então

                                                                                                               31  Como me explicou este rapaz, existe uma rivalidade histórica entre congoleses e ruandeses.  

  37  

que conheceu um homem que produzia documentos falsos. Com as suas economias

comprou um passaporte camaronês (o seu original tinha se perdido na casa

revirada) e passagem de ida para São Paulo.

Por que o Brasil? Respondeu-me que por conta da Copa do Mundo seria fácil

entrar no país. Desembarcou em Guarulhos, pegou um ônibus para a rodoviária do

Tietê e passou duas noites por lá: de dia procurava emprego, à noite dormia nos

bancos da estação. Na terceira tarde de buscas um senhor aconselhou que

procurasse outra cidade para viver e sugeriu Curitiba como uma boa opção,

conhecida por ter “boas proporções” e bons índices socioeconômicos. Comprou uma

passagem de ônibus e logo desembarcou na nova cidade, onde foi recebido por

alguns senegalenses que estavam de passagem na rodoviária. Alguns dias depois,

esses mesmos senegalenses indicaram que fosse até a CASLA, para que pudesse

solicitar refúgio e conseguir novos documentos. Numa tarde tocou a campainha e

acabei por atendê-lo. Na época, fazia pouco mais de um ano que não tinha notícias

de seus pais e irmãs. Alguns dias depois de preenchermos seu formulário, ligou para

a CASLA e contou que havia conseguido o protocolo temporário de pedido de

refúgio e depois disso nunca mais tive notícias dele.

No caso acima descrito a situação trazida à instituição pôde ser resolvida

naquele mesmo momento. Quando isso não acontecia, na sexta-feira antes da

reunião do CASLAJur os relatórios semanais eram montados por Raquel para serem

apresentados na reunião.

Escritos no computador, os documentos começam com o cabeçalho da

CASLA e o título: “Atendimento – Advogados Populares32 da CASLA – Mês X”. Em

seguida, uma data marca o período de uma semana (03-10/09, por exemplo), e

seguem enumerados os casos recebidos naquele período, de acordo com a sua

chegada: o primeiro texto do documento equivale ao primeiro atendimento realizado

na semana, e assim por diante.

Cada tópico contém a data do atendimento, um breve relato do que

aconteceu com o imigrante em questão e um telefone para contato. Ao final, é

anexado o relatório da sexta-feira anterior, para que os advogados discutam como

estão os encaminhamentos dos casos passados. Como a CASLA não possui

                                                                                                               32 Os advogados se auto intitulam “advogados populares”, por prestarem um serviço voluntário a partir de uma demanda social.      

  38  

impressora, o arquivo é salvo em um pendrive e levado até uma papelaria próxima,

para que cópias sejam impressas e distribuídas na reunião.

No encontro do CASLAJur os advogados leem cada um dos casos e delegam

as funções de acordo com a área de especialidade de cada um. Conforme o caso é

resolvido, é retirado do relatório seguinte. Desde abril de 2014, os documentos são

arquivados em uma mesma pasta, guardada no depósito da organização.

Quando decidi que gostaria de focar minha monografia no tema das

migrações e que a CASLA me possibilitaria um rico material sobre a estada de

imigrantes em Curitiba, pedi a Nádia, responsável pelos advogados, acesso aos

registros do grupo. Em uma tarde de novembro Raquel me levou até o depósito, que

permanecia trancado - ao contrário das outras salas da ONG -, e me entregou uma

pasta azul contendo o material que buscava. Pedi licença para organizar os papéis

em sacos plásticos, anotando em pequenas etiquetas o mês ao qual se referia cada

um deles, e assim dei início à pesquisa nos arquivos do CASLAJur.

Encontrei nos arquivos os relatórios de cada semana, mas não havia

nenhuma anotação sobre as providências tomadas para a resolução dos casos e

nem a confecção de atas ou memórias das reuniões.

A seguir apresento alguns desses casos, tal como descritos no relatório do

CASLAJur, junto às entrevistas com os haitianos em questão e com os advogados

responsáveis por cada caso.

2.2 Os relatórios do CASLAJur

No relatório de setembro/outubro de 2014, foram relatados três casos de

haitianos que sofreram agressões físicas e verbais motivadas por racismo e

xenofobia. No mesmo documento, constam seis haitianos, entre eles Danilo, que

procuraram ajuda do CASLAJur para resolver questões de ordem trabalhista: foram

demitidos na maioria das vezes sem justa causa e, em alguns dos casos, os patrões

alegaram que não queriam mais trabalhar com imigrantes do Haiti.

O contato com os imigrantes se deu tanto por telefone, com base no que

constava nos relatórios, como pelo Facebook, quando não encontrei outra maneira

de contatá-los: em alguns casos os números haviam mudado e ninguém, nem

advogados do CASLAJur nem outros haitianos com quem mantenho contato,

souberam me informar como encontrá-los.

  39  

Quando estabelecido o contato, apresentei a pesquisa: um trabalho de

conclusão de curso da faculdade, na área de antropologia, onde procuro conhecer

um pouco mais dos haitianos que vivem em Curitiba, suas trajetórias e dificuldades

que encontram no novo país. Em seguida, perguntei se poderia entrevistá-los na

CASLA, já que todos conheciam a instituição. Alguns foram mais receptivos do que

outros: dos três haitianos que sofreram agressões físicas e verbais, apenas um foi

entrevistado. O segundo não quis me conceder entrevista e não consegui fazer

contato com o terceiro. Além de Danilo, que desde sempre se mostrou à disposição

para conversar e com quem estabeleci uma relação de proximidade ao longo do

trabalho, tentei entrar em contato com outros dois haitianos que moveram ações

trabalhistas, mas apenas um deles tinha celular funcionando. Como os haitianos em

questão têm processos judiciais em andamento, optei por manter o anonimato, me

referindo a eles por nomes fictícios. Os advogados também pediram que ocultasse

seus nomes.

A princípio, o contato com os advogados foi tranquilo, ainda que tenhamos

tido dificuldade de conciliar as agendas para um encontro presencial33. Como fiz

parte do grupo durante quase um ano, aqueles que já eram voluntários em 2014 me

conheciam e tinham confiança no meu trabalho, se disponibilizando para ajudar na

pesquisa. Alguns, por diferentes motivos, deixaram o CASLAJur. Ainda assim me

concederam as entrevistas e me forneceram parte da documentação produzida nas

instituições oficiais (boletim de ocorrência, inquéritos policiais, entre outros).

A partir das narrativas dos advogados, dos documentos escritos do

CASLAJur e das entrevistas com os próprios haitianos, pretendo entender como

estão sendo construídas as trajetórias desses imigrantes que chegam ao Brasil,

como se produziram (ou não) esses processos judiciais, como os imigrantes tiveram

contato com a justiça, além de obter as informações “técnicas” sobre os

procedimentos.

2.2.1 Caso um: no restaurante

                                                                                                               33 As entrevistas com os dois advogados ouvidos neste capítulo – André e Bruno – foram feitas por Skype entre os dias 1 e 3 de outubro de 2015, além de um questionário respondido por e-mail. Em outros momentos aconteceram conversas informais, que sinalizarei quando se fizerem presentes.  

  40  

O primeiro tópico do relatório do CASLAJur de setembro/outubro de 2014 é a

denúncia de David, no dia 06 de outubro, sobre as agressões vividas em seu

ambiente de trabalho, por parte de um brasileiro. As palavras ditas pelo haitiano e

registradas pela secretária da instituição para depois serem levadas aos advogados

do CASLAJur foram o único registro que consegui sobre os acontecimentos

narrados.

Tentei entrar em contato com David por meio do telefone registrado na

agenda telefônica da instituição, porém a linha estava desativada. Conversei com

alguns haitianos que poderiam conhecê-lo, mas nenhum sabia de seu paradeiro. Foi

quando encontrei seu perfil nas redes sociais. Entrei em contato com David, contei

um pouco sobre a minha pesquisa e perguntei se poderia entrevistá-lo.

David contou-me que está cursando o ensino médio em uma escola estadual

e me perguntou se eu poderia ajudar os haitianos a ingressarem nas universidades

brasileiras. Respondi que adoraria, mas que não podia garantir algo assim. Disse

então que preferia não ser entrevistado.

O relatório do CASLAJur continha as seguintes informações, transcritas

integralmente aqui:

O haitiano trabalhava em um restaurante no shopping. Foi agredido durante o expediente por um colega, o chefe de cozinha. Os dois dividiam casa com mais alguns colegas de trabalho. Na parte da noite, ao chegar no dormitório, sofreu mais violência física. Como relata, apanhou tanto que ficou desacordado. A gerência do restaurante já sabe do caso e informou que demitirá o chefe de cozinha. David quer processá-lo. O Boletim de ocorrência foi caracterizado como injúria racial. As testemunhas que presenciaram a agressão no ambiente de trabalho estão se sentido coagidas pela empresa a não comparecer para a ratificação do BO. O agressor foi apenas transferido de local de trabalho. No dia 22 de outubro de 2014 Davi pediu demissão do emprego por não estar mais conseguindo conviver psicologicamente com a situação” (CASLA, 2014).

Na tentativa de entender os desdobramentos deste caso conversei com

André, advogado trabalhista de 31 anos, voluntário do CASLAJur desde maio de

2014. Segundo ele, a falta de testemunhas não permitiu que o caso fosse levado

adiante e não sabe o que aconteceu com David. Bruno, o advogado criminalista do

grupo, também não se lembra do desenrolar da história.

Procurei saber maiores detalhes sobre este acontecimento, tanto sobre os

motivos da primeira agressão, a existência de desentendimentos anteriores e a

  41  

maneira pela qual David chegou até a CASLA, mas não obtive sucesso. Os

membros da ASHBRA com quem conversei, assim como os advogados do grupo e

demais voluntários da CASLA, não souberam me responder.

2.2.2 Caso dois: no supermercado

O segundo caso apresentado no relatório em questão é o de Charles, que

procurou a CASLA no dia 13 de outubro de 2014. Assim como David, o telefone

registrado entre os contatos da CASLA estava desativado e nenhum outro haitiano

com quem estabeleci contato sabia do seu paradeiro. No entanto, não encontrei seu

perfil nas redes sociais, tornando o registro de sua denúncia no documento de

atendimentos do CASLAJur a única versão sobre os acontecimentos.

Charles estava trabalhando em um supermercado. Um dia foi trocar os sapatos na área reservada aos funcionários e dois rapazes da mesma empresa o agrediram. Ele registrou BO. Segundo ele há abuso de poder por parte de alguns funcionários. Durante o horário da janta dos trabalhadores da empresa um dos funcionários não o deixava ir comer. Ele gostaria de entrar com um processo por conta da posição racista de alguns funcionários da empresa (CASLA, 2014).

André, advogado do CASLAJur, se responsabilizou pelo caso e na semana

seguinte foi ao supermercado conversar com Charles. Após a visita redigiu um e-

mail para os membros do grupo relatando o que havia acontecido. Normalmente os

feedbacks dos casos são feitos durante a reunião semanal dos advogados, mas,

como veremos, os casos de agressão e racismo mobilizaram sobremaneira os

advogados do grupo. O relato enviado por e-mail foi anexado ao relatório semanal

do CASLAJur na semana seguinte, para que as providências fossem discutidas com

os demais membros do grupo.

O hipermercado, localizado em um bairro central e que faz parte de uma rede

com outras filiais, tinha por volta de cinco haitianos contratados, todos trabalhando

como estoquistas ou como auxiliares de estoque.

Como veremos a seguir, há diferentes versões sobre o tratamento que os

trabalhadores haitianos estavam recebendo na empresa. Alguns brasileiros

empregados do supermercado, assim como alguns haitianos, alegaram haver

discriminação grave entre os funcionários. Por outro lado, outros trabalhadores

  42  

haitianos indicaram que o episódio de Charles foi pontual, negando haver qualquer

tipo de problema por motivações preconceituosas no ambiente de trabalho.

O relato a seguir foi copiado integralmente do e-mail que André enviou para o

grupo de advogados, narrando como havia sido sua visita ao mercado:

Fui ao supermercado conversar pessoalmente com Charles. Antes

de ir conversei por telefone com um promotor de vendas brasileiro, que informou a existência de discriminação grave aos haitianos no setor de depósito. Quando cheguei ao local conversei com outros dois haitianos que afirmaram inexistir problemas no trabalho, a discriminação teria ocorrido apenas com Charles.

Indaguei se existia discriminação racial ou xenofobia, mas afirmaram que não existe. Contudo, conversando com outro haitiano, fui informado que os superiores hierárquicos ameaçam os haitianos de morte, ameaças assim: “o brasileiro vai matar haitiano” e tal. Talvez esse seja o medo dos haitianos em não confessar que existe discriminação... Me pergunto, por qual motivo o promotor de vendas me informou que já presenciou xingamentos, disse que “até se sente mal com o que fazem com os haitianos na empresa”.

Medidas que pensei hoje, creio que podemos fazer uma denúncia no MPT e na DRT34. E com relação ao dano causado ao Charles posso entrar com a ação indenizatória. Contudo, Charles ainda trabalha no supermercado. Pensei em pedir rescisão indireta ou aguardar ele sair da empresa. Tenho que pensar melhor. Ele disse que tem interesse em mover ação.

Se averiguado a existência de discriminação devemos chamar a imprensa... Trabalho escravo não existe, pois fui informado que existe pagamento de salário e outras verbas. Nesse caso é mais a situação discriminatória. Mas antes devemos averiguar tudo... (CASLA, 2014).

As ambiguidades trazidas pelo relato de André foram discutidas em uma

reunião em que eu estava presente. Nessa ocasião, me lembro que os advogados

do grupo decidiram enviar a denúncia ao Ministério Público do Trabalho (MPT).

Quando ingressei como voluntária do CASLAJur, enquanto estudante de

ciências sociais e sem nenhuma proximidade com o universo jurídico, levei certo

tempo para me familiarizar com os órgãos envolvidos nos casos, os termos e

jargões utilizados pelos advogados e as possibilidades de encaminhamento para as

questões que surgiam. Assim, não entendi muito bem o que foi discutido na reunião

citada acima.

Posteriormente, em outubro de 2015, para o desenvolvimento da monografia,

retomei o assunto com o André. Nesta ocasião, ele me contou que o supermercado

                                                                                                               34O Ministério Público do Trabalho (MPT) tem como atribuição fiscalizar o cumprimento da legislação trabalhista, além da prerrogativa de promover ação civil pública no âmbito da Justiça do Trabalho para a defesa de interesses coletivos. A Delegacia Regional do Trabalho (DRT) tem como função a intermediação da melhoria das relações trabalhistas, mediação e solução dos conflitos. (Site MPT)  

  43  

foi chamado pelo MPT para ser ouvido em uma investigação sigilosa. O desfecho do

caso é desconhecido dos advogados com quem conversei, assim como o paradeiro

de Charles.

2.2.3 Caso três: na construção civil

Como relatado, entre os casos de agressão física e verbal nos relatórios do

CASLAJur constavam também casos em que haitianos foram demitidos de seus

empregos com a justificativa de que eram haitianos. Incluo aqui um desses relatos,

quando Rony procurou ajuda dos advogados no dia 9 de setembro de 2014.

Rony trabalhava numa construção desde o dia 17 de março. Segundo ele um dos funcionários da obra disse ao seu empregador que havia recomendação do Ministério Público orientando os empregadores da construção civil a demitirem todos os haitianos das obras. Foi demitido no começo deste mês. Ainda não assinou o aviso prévio e a rescisão, mas não está indo trabalhar desde o dia 9 de setembro (CASLA, 2014).

No começo de julho liguei para Rony e perguntei se poderia entrevistá-lo.

Expliquei no que consistia a pesquisa e no dia 28 do mesmo mês, no período da

tarde, nos encontramos na CASLA. Alto e magro, aos 28 anos, Rony demonstrou

um ótimo domínio do português, ainda que, aparentemente, não estivesse se

sentindo à vontade com a entrevista, que durou cerca de meia hora.

Contou-me que, assim como Danilo, partiu de Gonaïves. Os caminhos

tomados para chegar até aqui, no entanto, foram bem diferentes. Rony ouviu no

Haiti que o Brasil era um bom lugar para se recomeçar a vida e que as

oportunidades de emprego eram diversas, ao contrário de seu país. Com o objetivo

de “encontrar um trabalho e continuar os estudos em serigrafia, encontrar uma

profissão”, pegou um avião até a República Dominicana, outro para o Panamá,

depois um voo para o Equador, seguindo por terra para o Peru e por fim até a

Bolívia, chegando sozinho à fronteira brasileira do Acre em meados de 2013. Rony

não soube me informar o nome da cidade que o acolheu no Acre, se referia a ela

apenas como “Acre”.

  44  

Passou um mês em um abrigo para refugiados35, tempo em que foi até a

Polícia Federal e solicitou o visto para continuar no país. Me contou que o processo

“foi bem simples e logo tinha em mãos os documentos necessários para seguir em

busca de um emprego”.

Nessa mesma época um empresário de Santa Catarina foi até o Acre em

busca de mão de obra haitiana para a sua empresa. Recrutou muitos trabalhadores,

o suficiente para “lotar um ônibus de viagem”, e assim Rony partiu para Apiúna, uma

pequena cidade de dez mil habitantes, no Vale de Itajaí, interior de Santa Catarina.

Rony não me explicou que tipo de função exercia ou qual o ramo da empresa,

apenas que trabalhou em Santa Catarina por um ano, até que resolveu partir para

um lugar maior, onde já tinha alguns amigos haitianos, de sua cidade natal.

É interessante notar que, por mais que tenha vindo para o Brasil com poucas

informações sobre o país – Rony não sabia onde chegaria, para onde iria e o que

faria -, ainda sim as redes de relações com conterrâneos permitiram que tivesse

algum amparo. Como veremos, a trajetória dos demais haitianos entrevistados são

construídas dessa maneira: Danilo, por exemplo, veio para Curitiba a partir do

contato com amigos haitianos de sua cidade.

Quando lhe perguntei por que Curitiba, foi incisivo na resposta:

Bom, eu venho para Curitiba porque Curitiba é uma cidade bem grande, tem bastante movimento, lá onde eu estava morando é uma cidade bem pequena, só uma empresa que está lá, não tem nenhuma atividade, por isso eu vim pra cá. Mas a única coisa que tem aqui é a questão do racismo, é muita gente menos educada.

Muito embora Rony tenha vindo para Curitiba motivado pelos contatos que já

tinha aqui e sob a perspectiva de que uma cidade maior lhe renderia melhores

oportunidades, suas expectativas não foram cumpridas. Rony atribui ao racismo dos

habitantes de Curitiba as causas de sua frustração. Por conta do racismo “não

consegue um emprego melhor, é discriminado por patrões e companheiros de

trabalho e não tem tempo para encontrar seus amigos”.

Chegando aqui foi morar com um amigo no centro da cidade e, através desse

amigo, conseguiu um emprego na construção civil. Trabalhou na empresa durante

                                                                                                               35  O abrigo ao qual Rony se refere é aquele que acolheu os haitianos em sua chegada ao Acre. Na cidade de Brasiléia, por exemplo, um ginásio de esportes foi disponibilizado pela prefeitura da cidade para receber os imigrantes. Com auxílio o Governo do Estado, Ministério da Justiça e prefeitura da cidade o ginásio foi reformado para abrigar o contingente haitiano que chegava (Vieira, 2014:122).  

  45  

seis meses, até que foi demitido sem justa causa, com a alegação de que não

contratariam mais haitianos para o serviço.

Trabalhei seis meses, depois escolheram me mandar embora porque o patrão falou que não queria trabalhar com haitianos, ele não dá razão.36 Ele mandou todos os haitianos que estão trabalhando na obra pra fora, pra rua.

Nessa altura Rony já participava das reuniões da ASHBRA, convidado por um

amigo haitiano. Um dos membros do grupo, quando soube da demissão, indicou que

procurasse ajuda dos advogados do CASLAJur. Foi o que Rony fez.

Com o auxílio de André, entrou com uma ação trabalhista contra seus

patrões. No entanto, reclama que até o momento da entrevista, em julho de 2015,

não sabia o que aconteceria.

Quando conversei com o advogado, o mesmo me explicou que o processo

não tinha terminado e que a próxima audiência estava marcada para o começo de

2016. André não entende porque o haitiano foi demitido sem justa causa e alega

que, “segundo informações, a empresa rescindiu o contrato exclusivamente dos

haitianos, o que caracteriza xenofobia. A rescisão é indevida, pois utilizou elementos

atinentes à raça e etnia do reclamante”. Cabe ressaltar que, como discutirei adiante,

empresários do Sul do país partem em direção ao Acre para contratar trabalhadores

haitianos e, em seguida, acabam por demiti-los alegando que não querem mais

haitianos em suas firmas.

Agora Rony trabalha como auxiliar de cozinha na filial de uma hamburgueria

de classe média/alta no bairro do Cabral37, cumprindo carga de oito horas por dia

com uma folga na semana, nunca aos finais de semana. Contou-me que o emprego

na construção civil era melhor, pois trabalhava de dia, apenas durante a semana,

tendo tempo para ver seus amigos, participar das reuniões da ASHBRA e ganhava

um pouco mais. Por falta de tempo lamenta não poder fazer cursos

profissionalizantes ou de português, “para quem sabe arranjar um emprego melhor”.

Em meados de 2014 sua esposa, que até então estava no Haiti com o resto

de sua família: pai, mãe, irmãos e avós, conseguiu um visto na embaixada do Brasil

em Porto Príncipe e Rony, com o dinheiro que conseguiu juntar ao longo da sua

estadia no Brasil, comprou uma passagem para que ela viesse a Curitiba. Hoje

                                                                                                               36 Como “razão” Rony se refere à justa causa.  37 O bairro do Cabral é um bairro de classe média/alta próximo à região central de Curitiba.  

  46  

trabalham no mesmo restaurante e vivem em um dormitório compartilhado com

outros trabalhadores da empresa, cedido pelos patrões38.

Rony relatou que, por ser negro, sofre forte discriminação no ambiente de

trabalho e na residência que divide com seus colegas de trabalho:

-­‐ Agora eu moro na casa da empresa, com os brasileiros, mas não quero morar mais porque o tratamento não é bom, a gente está me tratando mal.

-­‐ Quem está te tratando mal? -­‐ Os colegas do meu trabalho que moram junto comigo. -­‐ Por que? -­‐ Acho que porque eu sou estrangeiro e eles são brasileiros, porque eles

não se sentem bem porque eu moro com eles. Uma questão de discriminação também.

-­‐ Mas eles te tratam mal como? -­‐ No trabalho, em casa, todo dia minha esposa briga com o chefe. Bom,

não é só com o chefe do trabalho, com os colegas também. -­‐ E a discriminação você acha que é por que? -­‐ Parece que é porque eu sou dessa cor. O único problema tem a cor, um

problema de cor. -­‐ Você acha que é isso? -­‐ É isso mesmo! Se sou branco igual eles, acho que eles não iam ter

problema comigo. Mas eu tenho cor diferente da cor deles.

Diante das dificuldades vividas em Curitiba, dos episódios de discriminação e

da falta de perspectiva de melhores condições de emprego, decidiu então deixar o

Brasil. Me contou que ficaria no país até o fim de agosto e então partiria rumo à

Guiana Francesa, onde esperava juntar um pouco de dinheiro e enviar quantias

maiores para sua família, em Gonaïves, para quem já enviava parte do seu salário

todos os meses.

O envio de remessas de dinheiro por imigrantes haitianos aos seus familiares

e amigos que restaram no Haiti é uma questão que permeia toda a bibliografia

consultada acerca da vinda dessas pessoas para o Brasil (Fernandes, 2014; Pinto,

2014; Silva, P., 2014; Silva, S., 2012), além de estar presente na fala de quase todos

os haitianos com quem conversei.

Segundo Pinto (2014: 27), desde seu princípio, a imigração haitiana esteve

atrelada ao envio de dinheiro para residentes do país, chegando em 1990, por

exemplo, a ultrapassar o valor angariado pelas exportações haitianas. Fernandes

                                                                                                               38 Rony relata que encontrou bastante dificuldade quando tentou alugar uma casa e ao final desistiu. Segundo ele, além dos aluguéis serem caros, para que a casa fosse alugada precisaria de um fiador, mas se pergunta: “quem aceitaria ser fiador de um estrangeiro desconhecido?”.  

  47  

(2014:11) ressalta que as remessas enviadas por haitianos que vivem fora do Haiti

compõem 25% do PIB nacional, cerca de 1,5 bilhão de dólares.

Pinto (op. cit., p. 66) ainda cita pesquisa realizada pelo Center for Global

Development39, onde os dados apontam que o rendimento do haitiano médio que

deixa seu país em direção aos Estados Unidos é multiplicado por seis; quatro entre

cinco haitianos que conseguiram sair da linha da pobreza o fizeram fora do Haiti; e

as remessas, além de ultrapassarem os números da ajuda externa, chegam mais

rápido a quem necessita. Por ser um fenômeno recente, pouco se sabe sobre a

influência das remessas enviadas por imigrantes haitianos que vivem no Brasil aos

seus familiares.

Perguntei se, apesar de tudo, tinha gostado do país, ao que Rony me

respondeu que não: “não tem vida, não tem futuro para mim, não tem futuro aqui”.

Sobre o processo que moveu contra seus patrões, não nutre nenhuma

esperança de que possa ser resolvido. Segundo Rony, no Brasil “não tem justiça”,

os haitianos estão sofrendo todos os tipos de discriminação, “na rua, no trabalho” e a

“justiça brasileira não conseguiu resolver nenhum dos casos ainda”.

2.2.4 Caso quatro: na empresa cerealista

O terceiro caso de agressões racistas mencionado no relatório do CASLAJur

foi registrado no dia 11 de setembro de 2014:

Peter, haitiano, trabalha numa cerealista. No dia 05/09 foi agredido durante o trabalho por dois irmãos que eram seus colegas de trabalho. Segundo ele, os dois já vinham fazendo ameaças de agredi-lo fisicamente e jogavam bananas, além de chamá-lo de macaco. Já registrou boletim de ocorrência e quer processar os agressores (CASLA,2014).

Por meio de André consegui o telefone de Peter. Liguei para ele e expliquei

por que queria entrevistá-lo, contei sobre a pesquisa e combinamos de nos

encontrar na CASLA na tarde do dia 29 de julho.

Por volta das 14h30, um rapaz forte, baixo e muito sorridente entrou na

recepção da instituição, nos apresentamos e começamos a conversar.

                                                                                                               39 Em tradução livre, “Centro Global para o Desenvolvimento”. É um centro de pesquisas independente, sediado em Washington, D.C., Estados Unidos.  

  48  

Peter me contou que por uma “benção de Deus” foi a primeira pessoa da

família a conseguir deixar sua cidade40 para conhecer novos lugares, além de poder

proporcionar melhores condições de vida para seus parentes que ficaram, para

quem envia remessas de dinheiro mensalmente. Ao longo da conversa comentou

diversas vezes como sente falta de sua mãe, irmãos e sobrinhos, mas que pelo fato

de Deus ter abençoado sua vida e lhe dado a possibilidade viajar, não deveria

reclamar. Em seu país completou o ensino fundamental.

Em diferentes momentos da conversa Peter afirmou que “todas as pessoas

do mundo deveriam ter a chance de conhecer outros países, viver outras

experiências, e que as oportunidades dadas por Deus41 devem ser vividas em

plenitude, buscando sempre aprender mais e melhorar”. Em uma fala chamou

atenção para o fato do Haiti ser sempre visto como um país “sujo, feio”. Segundo

ele, os turistas vão até seu país e tiram fotos da sujeira e da miséria, enquanto que,

quando visitam os Estados Unidos, por exemplo, só retratam as coisas positivas.

Reclama que todos os lugares têm coisas boas e ruins, mas que seu país é sempre

retratado como um lugar negativo. Afirma que se as pessoas viajassem e se

dispusessem a conhecer as coisas boas do mundo, poderiam entrar em contato com

um outro Haiti.

O antropólogo Omar Ribeiro Thomaz, no seu trabalho intitulado Eles são

assim: racismo e o terremoto de 12 de janeiro de 2010 no Haiti, se vale de etnografia

realizada nos dias que sucederam o sismo para explicar como a ignorância e o

medo alimentam o racismo. Segundo o autor, os agentes da comunidade

internacional “ignoram efetivamente o Haiti e os haitianos” (Thomaz, 2011:275). O

creole, língua oficial do país, não é dominado pelos estrangeiros, forçando uma

compreensão da realidade limitada e condicionada por intermediários. Nessa

compreensão distorcida, o que é reforçado é que os haitianos seriam perigosos:

agiriam diante do Estado e da violência da mesma maneira como agiram diante dos

senhores de escravos (Thomaz, op. cit.)

De acordo com Thomaz (2011: 276), a ignorância leva ao medo e reforça

outra característica da relação entre os haitianos e os estrangeiros que fazem parte

da MINUSTAH, uma vez que “os comportamentos, reações, limites e expectativas                                                                                                                40 Peter saiu de Varrettes, cidade de 50 mil habitantes localizada a 60 quilômetros da capital haitiana de Porto Príncipe.  41 Peter fez alusão a Deus durante toda a entrevista. Perguntei se era religioso, ao que me respondeu que frequenta os cultos da Assembleia de Deus, igreja cristã evangélica.  

  49  

são associados a características inatas de haitianas/os cuja singularidade se

expressa no corpo. Eles são assim, no limite, por que são negros” (Thomaz, op. cit.,

p. 276).

Entendo que a fala de Peter vem nesse sentido – demonstrar que nós

brasileiros estabelecemos relação preconceituosa quanto aos haitianos, sem refletir

sobre por quê isto acontece. Além de os visitantes tirarem fotos pejorativas de seu

país, como cita meu interlocutor, o fato de todos os entrevistados argumentarem que

saíram do Haiti impulsionados pela vontade de conhecer outros lugares, em um

primeiro momento me certo causou estranhamento. Como essas pessoas poderiam

querer algo além de “melhorar as condições de vida”? Esse “choque de realidade”

me fez pensar o lugar em que estamos inseridos e os estereótipos que mobilizamos

o tempo todo. Por maior empatia que tenha pelos imigrantes com quem conversei, a

ideia de que tivessem vindo para o Brasil para “conhecer um país diferente” me

pareceu, a princípio, impossível. Num segundo momento, entendi que estava

reproduzindo o discurso comum sobre os haitianos, sem ao menos tê-los ouvido.

Se Peter saiu de seu país com uma benção divina, juntando dinheiro

suficiente para trabalhar no território vizinho e ajudar a família, também pode “abrir a

cabeça pro mundo”. Assim, após essas reflexões, voltemos para o relato da

trajetória de Peter.

Durante três anos meu interlocutor trabalhou na República Dominicana como

jardineiro. Foi lá que ouviu um conhecido haitiano comentando que o Brasil estava

recrutando mão de obra para ajudar na construção dos equipamentos da Copa do

Mundo. Na perspectiva de ganhar melhor e conhecer um novo lugar, pegou suas

economias e viabilizou sua vinda para o país: comprou uma passagem de avião da

República Dominicana para a Colômbia. Da capital colombiana, Bogotá, partiu para

Quito, no Equador, e de lá pegou um ônibus até o Acre. Assim como Rony, Peter

não sabe o nome da cidade brasileira que o recebeu.

Peter relatou as dificuldades vividas quando chegou, em setembro de 2013,

ao abrigo no Brasil: não tinha água pura para beber e nem para tomar banho, muitos

conterrâneos adoeceram e não tiveram acesso a médicos. Peter me contou que

precisou ajudar alguns colegas com os poucos recursos financeiros de que

dispunha, comprando remédios, comida e água.

A situação durou pouco tempo, logo foi até a Polícia Federal e solicitou o visto

humanitário. Conseguiu então um protocolo que lhe permitiu fazer um CPF e tirar

  50  

uma carteira de trabalho. Com a carteira de trabalho em mãos pode ser contratado,

assim como Rony, por um empresário que teria ido até o Acre recrutar mão de obra

haitiana.

Junto com mais 44 haitianos partiu rumo a Campo Bom, Rio Grande do Sul,

cidade de 60 mil habitantes na região metropolitana de Porto Alegre, para trabalhar

em uma transportadora, carregando os caminhões. Os três meses de contrato

acabaram e, por mais que tenha sido “muito bem recebido na cidade”, Peter se

sentia muito sozinho, não conhecia os outros haitianos com quem dividia as horas

de trabalho e a residência cedida pela empresa, e teve vontade de ir embora. Foi

quando conversou com um amigo que morava em Curitiba, que se prontificou a

recebê-lo.

É interessante notar como as redes de relações operam. Assim como Rony e

Danilo, Peter veio para Curitiba a partir do contato com amigos haitianos.

A maior parte dos haitianos que aqui chega atravessa diversos países, entra

ilegalmente pelas fronteiras do Acre e é contratado por empresários desconhecidos

para exercer atividades até então nunca exercidas em diferentes cidades. Ainda

assim, todos os interlocutores mantinham contato com outros haitianos, podendo se

deslocar de onde estavam para onde conheciam pessoas.

Paloma M. Silva (op. cit., p. 5) aponta para a formação da população haitiana a

partir do “cruzamento de fluxos locais, regionais, nacionais e internacionais”. Isto é,

não apenas as dinâmicas locais estruturam e dão suporte à emigração, mas também

dinâmicas aparentemente ausentes, ligadas a diferentes escalas.

No mesmo sentido, a antropóloga Sónia Reis Pinto utiliza o conceito de

“transnacionalismo” proposto por Nina Glick Schiller para explicar o processo vivido

pelos migrantes, pelo qual se constituem e mantêm relações entre as sociedades de

origem e as sociedades de acolhimento. As múltiplas relações transnacionais:

familiares, religiosas, econômicas, sociais e políticas, são vividas por pessoas

designadas de transmigrantes (Basch, et al, apud Pinto, op. cit., p 27).

Sendo as migrações parte da constituição do Haiti como é hoje em dia, a

bibliografia consultada afirma em diferentes momentos a naturalidade com a qual se

lida com a diáspora no país. Talvez por esse motivo, todos os meus interlocutores

afirmam que viajam não só por conta das possíveis melhores condições de vida,

mas também por uma vontade de viajar, de conhecer outros lugares.

  51  

Peter desembarcou em Curitiba em janeiro de 2014. Foi morar com seu

amigo no bairro do Tatuquara42 e conseguiu por meio desse amigo um emprego na

SANEPAR (a companhia estadual de água e saneamento), “consertando os canos

fedidos que estragavam”. Ficou na empresa por dois meses, até que decidiu

procurar um outro lugar para trabalhar: lá o expediente começava segunda de

manhã e terminava sábado ao meio dia, em uma cidade próxima a Curitiba que ele

não soube me dizer o nome, fazendo com que Peter precisasse passar a semana no

dormitório cedido pela empresa. Além disso, não teve sua carteira assinada.

Durante duas semanas trabalhou em uma metalúrgica, mas em pouco tempo

seu chefe decidiu “parar os serviços”, demitindo-o. Foi quando conseguiu um

emprego numa empresa cerealista.

Peter relatou-me que ingressou na firma em junho, mas só teve sua carteira

assinada em agosto. Durante esse tempo sofreu diversas ameaças dos

trabalhadores brasileiros, que constantemente o chamavam de “macaco”, “escravo”,

lhe davam bananas e diziam que não era bem-vindo no Brasil. Narrou um episódio

em que acompanhava um desses colegas em uma entrega e sendo constantemente

chamado de escravo respondeu que seu país tinha sido o primeiro a abolir a

escravidão, que ele não é escravo. O brasileiro teria então lhe respondido que,

“enquanto estiver no Brasil, será escravo sim”43.

As consequências das agressões sofridas chegaram no limite quando estava

no seu posto de trabalho e dois brasileiros o agrediram com socos e pontapés, além

dos muitos xingamentos. Quebrou o dedo mindinho e chegou a desmaiar.

A partir desse momento, ainda que não seja claro o sentido em que usa a

palavra, Peter passou a se referir a si mesmo como vítima: “dois brasileiros brigou

comigo, trataram de macaco, me davam banana e depois eu vítima, porque agrediu,

bateu, machucou meu dedo”. Além de não dominar plenamente o português, é

possível que esteja incorporando o termo usado no boletim de ocorrência ou no

próprio processo.                                                                                                                42  O Tatuquara é um bairro de 54 mil habitantes, na periferia de Curitiba.  43 Esta fala me remeteu novamente à Rita Laura Segato. Como apresentado na introdução deste trabalho, a autora entende que “cor é signo”, ou seja, seu valor cultural só existe por meio de seu poder de significação. Assim, “ser negro significa exibir traços que lembram e remetem a derrota histórica dos povos africanos perante exércitos coloniais e sua posterior escravização” (Segato, 2006:04). Mesmo que os imigrantes haitianos não possuam descendência de ancestrais apreendidos e trazidos ao Brasil, o racismo é explicado pela leitura do “significante negro”, negativado no contexto da história brasileira marcada pelo longo período de escravização.  

  52  

Procurou o chefe, contou o que aconteceu e um companheiro de trabalho o

levou a uma delegacia, para que tomasse as providências quanto aos

acontecimentos:

-­‐ Você saiu do trabalho e foi direto na polícia? -­‐ Sim. Fui na polícia. -­‐ E você fez isso sozinho ou com alguém? -­‐ Na verdade fui com um amigo, ele brasileiro, só para levar eu. Porque

meu dedo estava com sangue e eu estava chorando também. Ele só levou pra ser mais rapidinho, depois a polícia fez tudo pra mim. Eu voltei de carro de polícia, cheguei na firma, polícia prendeu esse homem, o outro fugiu. Dois irmãos. Preso o mais velho, o mais jovem se fugiu.

O brasileiro ficou preso por uma semana. Como relata Peter, a polícia foi

muito gentil com ele, se dispondo a ouvir o que aconteceu e investigando os fatos,

prendendo um dos agressores - uma testemunha teria dito que o homem

frequentemente falava que “odeia preto” - e o levando ao Hospital do Trabalhador.

Devido ao machucado no dedo e aos hematomas no corpo, Peter recebeu um

atestado de dez dias. Passou esse tempo em casa e quando voltou ao trabalho teve

uma surpresa:

-­‐ Quando isso acabou, dez dias de atestado, fui voltar para pegar meu

serviço, troquei minha roupa, peguei o uniforme, botei uniforme, chefe falou pra mim: não é pra você trabalhar mais. Ele me deu papel pra fazer exame, mandou trazer carteira de trabalho, eu trouxe, aí eu peguei esse papelzinho e no mesmo dia eu fiz exame e ele demitiu por justa causa, sem receber nada. Fui vítima de agressão, avisei o chefe e fui na policia direito e mesmo assim me demitiu.

Tanto Peter quanto seus agressores foram demitidos por justa causa após os

acontecimentos. Como me contou, passou os seis meses seguintes “chorando em

casa, deprimido, sem entender porque havia passado por tudo aquilo”.

Nesse período a ajuda dos amigos haitianos foi fundamental. Seu

companheiro de casa lhe emprestou dinheiro e os outros amigos lhe deram apoio

emocional. Foi quando conheceu, quase que simultaneamente, a ASHBRA e a

CASLA. Um amigo teria lhe dito que havia uma instituição onde se reuniam

advogados voluntários e também uma organização de haitianos, passou o contato

de Laurette e o endereço da ONG, à qual Peter se dirigiu quase que imediatamente.

Relatou seu caso aos advogados do CASLAJur e foi assessorado por dois

deles: André se responsabilizou por um processo trabalhista contra o seu patrão, por

  53  

tê-lo demitido por justa causa, sem que houvesse razão para isso, e Bruno assumiu

um processo motivado pelo crime de injúria racial contra os homens que o

agrediram, que analisarei no próximo capítulo.

É interesse notar que o caso de Peter mobilizou não só os membros do

CASLAJur, como os outros voluntários da CASLA, que ficaram sabendo do ocorrido.

A imprensa foi chamada para entrevistá-lo e até hoje Peter é lembrado com lágrimas

nos olhos por muitos daqueles que acompanharam seu sofrimento. As lembranças

dele são sempre associadas à situação vulnerável em que se encontrava, se

sentindo extremamente sozinho e triste.

Sobre as agressões, Peter contou-me que conhece quatro cidades no Brasil,

e que apenas em Curitiba foi vítima de racismo e agressão. Ainda assim, ressalta

que em todos os países e classes sociais existe racismo:

- Bom, pra mim, na verdade, eu vi gente mais pobre que eu que tem racismo. E milionário tem racismo, só gente que, trabalhadores, não é todos. Por todos os lugares tem racismo. No mundo tem racismo, não é no Brasil, mas no Brasil tem muito racismo. Eu só vi em Curitiba, eu conheço quatro cidades, só na Curitiba eu vítima de racismo e agressão, só em Curitiba.

Quando perguntei se conhecia outros haitianos que também foram vítimas de

racismo, citou alguns que conheceu na CASLA, no mesmo período em que procurou

ajuda. Alguns foram vítimas de agressão e outros sofreram problemas no trabalho: -­‐ Racismo pode ser agressão ou trabalhista. É racismo. Porque tem um

chefe que manda ele embora porque ele é haitiano, porque ele é negro. E daí, foi conversar com o chefe, chorando, e o chefe demitiu ele.

Entende que os haitianos deveriam procurar ajuda na justiça, já que estão

sendo vítimas de abusos, mas que nem todos o fazem, “porque a espera é longa e

normalmente não tem resultados. Os haitianos se ajudam e resolvem seus

problemas”:

-­‐ Justiça pra isso, porque na verdade tem vários chefes que não quer trabalhador haitiano pra nada, ele sempre fica esperando você fazer uma coisa que não deve fazer e ele demite você. Demite por justa causa44 e daí não vai ganhar nada, o dinheiro fica pra ele e fica pro

                                                                                                               44 A demissão por justa causa acontece quando o funcionário comete faltas graves, como, por exemplo, faltar mais de 30 dias seguidos sem avisar aos chefes ou desrespeitar as ordens dos superiores. Nesse caso não recebe os benefícios que teria na demissão sem justa causa: cumprimento de aviso prévio, saque do fundo de garantia e direito ao seguro desemprego (art. 482 da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT).  

  54  

governo. Pra mim isso é uma injustiça. Porque na verdade, se eu trabalho, tenho que receber. Se você é demitido tem que receber também. Não é demitir por justa causa pra não receber nada, isso não é justiça, é grave.

Me relatou então mais uma vivência que teve, quando um vizinho colocou

uma placa na entrada de sua casa com os dizeres: “não dê comida aos macacos”:

-­‐ Primeiro vítima de racismo de um vizinho. Ele é um polaco e escreveu

no portão: “não dar comida pra macaco”. Depois tem polícia que mora perto de nós, ele é vizinho nós, ele falou com nós, ligou pro chefe e depois ele mandar autorização pra ele ir preso, depois chefe disse se ele é branco ou preto, ele falou que ele é branco, depois chefe falou pra ele falar com nós, procurar um brasileiro que é preto, porque ele já branco, não pode ser preso dele, pra ser um estrangeiro que é preto, tem brasileiro que é preto e cor preto também dele, se nós tinha, entra no processo. Nós só tirou foto, as coisas que ele escreve, pra mostrar a gente temos prova. Na verdade de noite, nós foi com câmera que tem flash e tiramos várias fotos, tira foto até a casa dele, carro dele, tudo isso, como prova.

Como relata, o policial que o ajudou – de cor branca -, foi orientado pelo

delegado a procurar um negro brasileiro para mover a denúncia, com a justificativa

de que um branco brasileiro ou um negro estrangeiro não teriam legitimidade para

fazê-lo.

Peter e seu amigo optaram por não entrar com processos contra o vizinho,

pois raramente teria algum resultado e o delegado já tinha alertado que um “preto

brasileiro” é que deveria fazer a denúncia. Usou as fotos para mostrar à família no

Haiti como é “humilhado pelos brasileiros”.

A partir desse primeiro contato com a CASLA e com Laurette, começou a

participar das reuniões da Associação e hoje faz parte dela. Contou-me que a

ASHBRA não só ajuda refugiados de todas as nacionalidades com seus problemas,

mas faz ações diversas, como festas e espaços de convivência, para “valorização da

cultura e entrosamento dos imigrantes”.

Durante o período em que ficou desempregado, Peter ficou sabendo por um

padre vinculado à Pastoral do Migrante, uma organização da igreja católica que

também presta auxílio a refugiados e migrantes, que a Universidade Federal do

Paraná ofertava cursos de português para haitianos. Começou seus estudos da

língua portuguesa e, a partir dos contatos que estabeleceu com seus professores,

conseguiu uma vaga para terminar o ensino médio em uma escola estadual. Hoje

  55  

Peter cursa o terceiro ano do ensino médio e se prepara para prestar vestibular no

final do ano, sonha em ser engenheiro agrônomo.

No início de 2014 conseguiu um emprego de carregador no CEASA, onde

trabalhava por muitas horas e ganhava pouco, cerca de trinta reais por dia. Pegou o

cartão de uma outra empresa no mesmo lugar e, segundo ele, persistente, não

desistiu: ligou para o dono e ofereceu seus serviços até que foi chamado para um

teste. Durante um mês trabalhou das quatro da manhã ao meio dia, organizando as

frutas e verduras. Ao final desse período foi chamado pelo seu patrão, que decidiu

assinar sua carteira e lhe ofereceu um curso de auxiliar administrativo no SENAC.

Apesar de todos os percalços, Peter avalia positivamente sua vinda para o Brasil:

hoje está bem contente no trabalho e alugou um apartamento para viver sozinho

enquanto espera seu irmão chegar.

“Não vejo a hora”, dizia com os olhos brilhando a cada vez que citava a

chegada de seu irmão. As passagens foram compradas por Peter, para meados de

agosto (isto é, duas semanas após nossa conversa), o emprego está garantido na

mesma empresa em que trabalha e o visto foi tirado na embaixada do Brasil em

Porto Príncipe.

***

A partir do material apresentado alguns pontos merecem maior atenção.

Guardadas as diferenças de origens e trajetórias, meus interlocutores

compartilham algumas experiências: situações em que foram discriminados em

razão de sua cor; a possibilidade de circular pelo Brasil através de uma rede de

contatos previamente estabelecida; e a mobilização de diferentes “marcadores” para

classificá-los, ora como estrangeiros ora como negros.

De saída é curioso que empresários do Sul do país viajem até o Acre em busca

de mão de obra haitiana. Em duas ou três circunstâncias os membros do CASLAJur

discutiram o que isso pode significar, chamando atenção para a possibilidade de

violação nas condições de trabalho e nos direitos humanos, dada a situação de

vulnerabilidade desses imigrantes. Segundo eles, os trabalhadores haitianos

aceitariam qualquer proposta de emprego, em razão das circunstâncias em que se

encontravam, possibilitando que os empregadores não arcassem com as

responsabilidades previstas pela legislação trabalhista, por exemplo.

  56  

Enquanto estagiei na CASLA, antes mesmo de começar o processo da

monografia, fui incumbida de acompanhar uma menina haitiana de 24 anos, a

mesma idade que eu tenho, até a Assembleia Legislativa, onde ela iria cantar em

uma homenagem dos parlamentares aos 29 anos da organização. Acabamos

ficando próximas e nos encontramos mais algumas vezes. Me lembro de um de

nossos papos, quando ela me contou que estava procurando emprego porque tinha

descoberto que os donos da escola de inglês onde era professora assinavam a

carteira de trabalho de todos os outros empregados, menos a dela. Além disso,

recebia menos por hora/aula. Quando foi tirar satisfações com a patroa, recebeu

uma proposta para continuar trabalhando na escola – agora nas mesmas condições

que os outros professores. Na ocasião de nossa conversa, julho de 2014, ela ainda

não sabia o que iria fazer. Reiterou algumas vezes que “é a menina dos olhos da

escola”, narrando que em diferentes momentos foi convidada a dar aula

experimental”, porque “era estrangeira, fluente na língua”. Por mais que o francês

seja oficialmente falado no Haiti, minha interlocutora havia estudado em um colégio

americano, onde foi alfabetizada. Era fluente na língua, o que a possibilitou ganhar

alunos.

Por não entender algumas maneiras de agir dos brasileiros, a trabalhadora

estrangeira não foi submetida pela dona da escola de idiomas às mesmas garantias

trabalhistas dos outros empregados, já que ela não entedia como as coisas

funcionavam. Por outro lado, ela me contou que faziam questão de sua presença na

escola, já que “ser estrangeiro”, nesse contexto, é algo positivo. E era isso que

temiam os advogados do CASLAJur.

Talvez por essas circunstâncias os empresários “importem” trabalhadores.

Acontece que depois de um tempo, esses empregados começaram a gerar

problemas: se machucavam, não compreendiam o idioma – e esse é o principal

argumento para justificar a demissão em massa de haitianos, tanto por parte de

alguns advogados com quem conversei quanto por parte dos próprios empresários.

Então se “era bom” contratar trabalhadores estrangeiros, agora não é mais.

Os discursos de meus interlocutores oscilaram entre “não gosto do Brasil” e

“quero ficar aqui”. Salvo Rony, que deixou o país, os outros imigrantes afirmaram

que querem continuar por aqui, pelo menos por um tempo.

  57  

As redes mobilizadas por esses imigrantes garantiram que não estivessem

sozinhos. A relação estabelecida entre haitianos em diferentes países, inclusive

dentro do próprio Brasil, é interessante para pensar que as migrações não se fazem

no vazio: as narrativas são construídas a partir da ideia de um destino que pouco se

conhece, todos os entrevistados vieram para cá por “ouvir dizer” que o país era uma

boa opção para quem pretendia deixar sua terra natal. Ao mesmo tempo, todos os

meus interlocutores puderam circular pelo país de acordo com as relações

preexistentes com amigos ou conhecidos do Haiti, e conseguiram apoio nos

momentos de dificuldade, não apenas de seus compatriotas, mas também das

instituições e pessoas de quem se aproximaram no Brasil.

Aqui vale a aproximação com o artigo da antropóloga Gláucia de Oliveira Assis,

intitulado De Criciúma para o mundo: gênero, família e migração45. Neste trabalho a

autora demonstra de que maneira se constituem as redes de migração de brasileiros

da cidade de Criciúma, em Santa Catarina, para a região de Boston, nos Estados

Unidos, e a relevância da participação feminina nesse fluxo. Neste texto a autora

explica que o processo de migração não acontece apenas em decorrência de

motivos econômicos, mas a partir dele acontece a formação e estruturação de redes

de amparo, que vão dando subsídio para que novas pessoas migrem.

Por mais que empregadores tenham ido até o Acre buscar imigrantes haitianos

para servir de mão de obra no Sul do Brasil, a manutenção do contato com amigos e

familiares desde o Haiti permitiu que meus interlocutores se locomovessem dentro

do território brasileiro. Assim como Rony, Peter e Danilo, os outros haitianos e

haitianas com quem tive contato ao longo deste ano de pesquisa vieram para

Curitiba a partir de relações previamente estabelecidas.

Outra questão interessante para apontar, ainda que não tenha conseguido me

aprofundar, é a experiência que essas pessoas vão tendo com o Estado. Todos os

meus interlocutores afirmaram que não tiveram grandes dificuldades para obter o

visto humanitário no Brasil. Por outro lado, a dificuldade de compreender os

mecanismos da justiça e a sua demora foi criticada também por todos os

                                                                                                               45  A  pesquisa  desenvolvida  na  cidade  de  Criciúma,  no  Estado  de  Santa  Catarina  e  na  região  de  Boston,  nos  Estados   Unidos,   procurou   demonstrar   a   participação   feminina   nas   migrações,   comprovando   que  estratégias  familiares  que  envolvem  tanto  homens  como  mulheres  são  necessárias  para  que  ela  aconteça,  para  além  de  “escolhas  racionais”  e  individuais.  Da  mesma  maneira,  meus  interlocutores  vieram  sozinhos  para   o   Brasil,   mas   as   famílias   de   algum  modo   participaram   dessa   decisão,   seja   como   beneficiárias   das  remessas  enviadas,  seja  porque,  quando  possível,  cônjuges  e  familiares  se  juntam  a  eles,  como  o  irmão  de  Peter  ou  a  esposa  de  Rony.  

  58  

entrevistados. Essas experiências reafirmam a heterogeneidade das instituições

estatais e das burocracias.

A partir das situações relatadas, pretendo no próximo capítulo apresentar a

legislação que regulamenta os crimes de racismo e injúria racial, além do inquérito

criminal de Peter.

  59  

CAPITULO 3

O Inquérito Policial – desdobramentos judiciais

No capítulo anterior apresentei quatro relatórios de atendimento produzidos

pela CASLA: dentre eles três haitianos sofreram agressões racistas, enquanto um

deles foi demitido com a justificativa de que a empresa não mais trabalharia com

pessoas do Haiti. Além desses documentos, entrevistei dois desses haitianos e seus

advogados - um dos haitianos havia sido agredido e outro demitido sem justa causa.

Dos casos entendidos como motivados por racismo apenas um deu origem a

um inquérito policial e hoje se encontra no Ministério Público, aguardando que o

órgão tome posição, ou seja, ofereça ou não denúncia contra o agressor, como

veremos adiante.

Este caso é o de Peter, haitiano que foi agredido por dois companheiros de

trabalho durante o serviço. Os documentos relativos ao seu processo foram os

únicos aos quais tive acesso durante a pesquisa – como o inquérito está em

andamento, Bruno46, o advogado que iniciou o caso, me cedeu uma cópia por e-

mail.

Para compreender a construção do processo, primeiramente situarei as leis

que regulam as questões referente aos crimes cometidos por motivos raciais. Em

seguida apresento os documentos com os quais tive contato, junto à leitura que o

advogado responsável fez do caso.

3.1 Injúria racial ou racismo?

A antropóloga Rita Laura Segato afirma no seu texto Alteridade e Ética no

Movimento de Expansão dos Direitos Universais que o “texto da lei é uma narrativa

mestra da nação, e disso deriva a luta para inscrever uma posição na lei e obter

legitimidade e audibilidade dentro dessa narrativa” (Segato, 2007:212). Segundo a

autora, as diferentes “comunidades morais” produzem uma luta simbólica na

tentativa de dar visibilidade às suas perspectivas e demandas políticas. Essas lutas

simbólicas teriam como pressuposto o reconhecimento do

                                                                                                               46 Aos 29 anos, Bruno é advogado criminalista. Participa das atividades da CASLA desde 2011 e foi membro do CASLAJur de abril de 2014 a maio de 2015.  

  60  

“poder nominador do direito, entronizado pelo Estado como a palavra autorizada da nação, capaz por isso, não só de regular, mas também de criar, de dar status de realidade às entidades sociais cujos direito garante, instituindo sua existência a partir do mero ato de nominação” (Segato, 2006:213).

Partindo desse argumento, apresento em seguida a legislação que introduz a

discriminação racial, a partir do reconhecimento do racismo como um problema sério

brasileiro, digno de criminalização. Os documentos do inquérito de Peter são

pensados por essa ótica: de que maneira as posições inscritas na lei são disputadas

na construção das narrativas, por meio de diferentes linguagens e com diferentes

desdobramentos possíveis.

A primeira lei brasileira a incluir entre as contravenções penais a prática de

atos de discriminação racial foi promulgada por Getúlio Vargas em 1951. A Lei no

1.390, de 03 de julho de 1951, que levou o nome de seu autor, o vice-líder da

bancada conservadora da União Democrática Nacional (UDN), Afonso Arinos (O

Globo, 2013), determinou que:

Art 1º Constitui contravenção penal, punida nos termos desta Lei, a recusa, por parte de estabelecimento comercial ou de ensino de qualquer natureza, de hospedar, servir, atender ou receber cliente, comprador ou aluno, por preconceito de raça ou de cor.

Posteriormente, a Lei no 7.437, de 20 de dezembro de 1985, alterou a

redação da Lei Afonso Arinos, incluindo entre as contravenções penais a prática de

atos resultantes de preconceito de raça, cor, sexo ou estado civil.

Três anos depois, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu, por meio do

art. 5o, XLII, que

“a prática do racismo é crime inafiançável e imprescritível, sujeito a pena de reclusão, nos termos da lei”.

Cabe ressaltar que poucos são os crimes que aparecem no artigo 5o, que

trata dos direitos individuais e coletivos. O racismo é o primeiro a ser mencionado e

somente a ação de grupos armados contra a ordem constitucional é também

inafiançável e imprescritível.

Além disso, outras disposições importantes foram criadas no que diz respeito

ao combate à discriminação, como, por exemplo, o Art. 3 o, inciso IV, que enumera

  61  

os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, a saber, a promoção

do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer

outras formas de discriminação. E, ainda, no Art. 4 o, inciso VIII, estabelece o repúdio

ao racismo como um dos princípios das relações internacionais do Brasil.

Os dispositivos concernentes ao preconceito racial fixados no texto

constitucional, em parte, reverberam o disposto na Lei federal no 7.437, de 1985. Até

então considerados “contravenção”, os atos decorrentes de preconceito de raça

foram, definitivamente, definidos como crimes suscetíveis a penas mais severas na

Lei federal no. 7.716/89, a chamada “Lei Caó”47.

Proposta pelo jornalista, advogado e político negro Carlos Alberto Caó

Oliveira dos Santos, a Lei no. 7.716/89 alargou o leque de condutas de discriminação

e preconceito previstos na Constituição, dando ao texto constitucional repercussão

imediata (Ávila, 2014:359).

Conforme a “Lei Caó”, configuram crime racial:

1) impedir, negar ou recusar o acesso de alguém a emprego, estabelecimentos comerciais, escolas, hotéis, restaurantes, bares, estabelecimentos esportivos, cabeleireiros, entradas sociais de edifícios e elevadores, uso de transportes públicos, serviço em qualquer ramo das Forças Armadas;

2) impedir ou obstar o casamento ou convivência familiar e social; 3) praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor,

etnia, religião ou procedência nacional, incluindo a utilização de meios de comunicação social (radio, televisão, internet) ou publicação de qualquer natureza (livro, jornal, revista, folheto, etc).

De acordo com Cezar Roberto Bittencourt, o direito penal define como “bens

jurídicos” os bens vitais ao indivíduo e à coletividade, incluídos aí valores e

princípios éticos que, devido à sua significância social, devem ser protegidos pelo

Estado. Essa proteção, a chamada “tutela”, é exercida, então, pelas instituições com

vistas à assegurar a integridade dos bens jurídicos (Bitencourt, 2008: 09-10). Na

interpretação de Ávila48 (op. cit, p. 361-2), a Lei Caó tem como bem jurídico tutelado

pelo direito penal o princípio constitucional da igualdade, sendo, portanto, dever do

                                                                                                               47 Esta lei prevê agravamento da pena em 1/3 (um terço) em caso de prática discriminatória a menores de 18 anos (Art. 6, Parágrafo único, caput).  48 Esta referência bibliográfica me foi indicada por uma das advogadas do CASLAJur, com quem discuti a pesquisa algumas vezes. Segundo ela, a leitura da autora condiz com a interpretação que ela própria faz da legislação.  

  62  

Estado apurar e julgar os crimes de racismo disciplinados por esta lei, em ação de

“iniciativa pública e incondicionada” – em outras palavras, cabe ao Ministério Público

a iniciativa de oferecer denúncia, independentemente da existência de advogado da

vítima.

Anos depois, a Lei no 9.459, de 13 de maio de 1997 aumentou a abrangência

da Lei Caó, incluindo a discriminação por etnia, religião e procedência nacional

como novas modalidades de injúria no Código Penal. Em outubro de 2003 o mesmo

dispositivo teve sua redação alterada pela Lei no 10.741, de 1o de outubro de 2003,

em vigor até os dias atuais.

Nessa mudança, ao parágrafo 3º do artigo 140 foi acrescentada referência à

pessoa idosa e aos portadores de deficiência, além de aumentar a pena para

reclusão de um a três anos e multa:

Art. 140, § 3º Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência:

Pena - reclusão de um a três anos e multa.

Ávila explica que, em Direito Penal, a intenção, ou “dolo” da injúria consiste

na vontade livre e consciente em praticar as condutas tipificadas como crime, nesse

caso, ofender a vítima, utilizando argumentos ligados àqueles previstos no parágrafo

acima (Ávila, 2014:361). A qualificação de injúria racial ocorre quando o autor do

crime ofende o decoro da vítima especificamente por motivos de raça, cor ou etnia.

Ao contrário do racismo, no crime de injúria racial o juiz poderá conceder

liberdade provisória mediante pagamento de fiança, conforme estabelecido no

Código de Processo Penal. Os crimes de injúria não são imprescritíveis, ao contrário

daqueles tipificados pela lei 7.716/8949, os crimes raciais acima descritos.

Em 29 de setembro de 2009 foi promulgada a Lei no 12.033, que alterou o

parágrafo único do art. 145 do Código Penal. Com a modificação na redação da lei,

o crime de injúria preconceituosa passou a ser de “ação penal pública condicionada

a representação”. Ou seja, para que a ação penal seja iniciada pelo Ministério

                                                                                                               49 Conforme estabelece o Art.5, XLII, da Constituição Federal.  

  63  

Público, é necessário manifestação de interesse por parte da vítima, ou de seu

representante legal, bem como por requisição ministerial50.

Por diversas vezes, conversei com Bruno sobre diferenças entre os crimes de

injúria racial e racismo, além de sua leitura sobre a aplicação dessas leis. Me lembro

da primeira vez que o entrevistei, em um café perto da faculdade, quando ele tentou

me explicar que “racismo é quando você nega direitos a uma pessoa em razão de

sua cor, injúria racial é quando você ofende a dignidade dessa pessoa pelo mesmo

motivo”. Mesmo com a explanação clara, levei meses para interiorizar o que previa

cada lei51 e assim entender as diferenças que estavam em jogo nos casos atendidos

pelo grupo de advogados da CASLA.

Como explicou meu interlocutor, a maioria dos crimes que antes eram

tipificados a partir da Lei 7.716/89, que penaliza a prática de racismo, agora são

qualificados como injúria racial, diminuindo a severidade das punições. O advogado

defendeu que a eficácia da legislação é quase nula, pois as punições previstas pelas

leis criminais não coíbem os conflitos, via de regra elas vêm quando o conflito já se

instaurou

elas não previnem outros conflitos, não intimidam o agressor, não criam uma consciência coletiva em torno do bem jurídico, nem são capazes , por si só, de arrepender o agressor, de ressocializá-lo de acordo com os interesses da política criminal que elegeu essa conduta como um delito.

Bruno faz parte de uma corrente do direito penal que acredita que a pena é

“agnóstica”, ou seja, “ela não é capaz de nada, nem em favor da vítima, nem em

favor do agressor, nem da sociedade. Ela só impinge dor a todos os integrantes do

processo”. O advogado acrescenta que discorda daqueles que avaliam que a lei é

pouco rígida. Para ele, o sistema como um todo é desproporcional, o que não

                                                                                                               50  Na nova versão: Parágrafo único. Procede-se mediante requisição do Ministro da Justiça, no caso do inciso I do caput do art. 141 deste Código, e mediante representação do ofendido, no caso do inciso II do mesmo artigo, bem como no caso do § 3º do art. 140 deste Código.  51 Na mesma época, um jogar de futebol foi chamado de “macaco” por um de seus adversários, trazendo à tona a situação de discriminação racial sofrida. Muitas foram as discussões nas redes sociais, programas de TV e jornais e quanto aos seus desdobramentos, muito se falava nas diferenças entre os crimes de injúria racial e racismo. Memes foram postados no Facebook, por exemplo, com situações ilustrativas de ambos os dispositivos legais. Foi a partir daí que comecei a perceber com clareza a diferença entre as tipificações.      

 

  64  

significa que devemos buscar penas maiores, mas sim que sejam penas melhores

ou mesmo a ausência delas, junto com a busca pela pacificação dos conflitos por

uma via não-penal.

Como exemplo de ações que podem funcionar melhor do que o código penal,

Bruno citou o Estatuto da Igualdade Racial – Lei no 12.288/2010, sancionado em 20

de junho de 2010 pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com o objetivo de

garantir que a população negra tenha efetiva igualdade de oportunidades, defesa de

seus direitos individuais e coletivos, além do combate à discriminação. Segundo ele,

o Estatuto inova no sentido de estabelecer mecanismos jurídicos e institucionais

orientados a guiar as políticas públicas afirmativas em relação à população afro-

brasileira, delegando às instituições atribuições no acolhimento de denúncias de

discriminação e orientando o público sobre os mecanismos institucionais que

existem para assegurar a aplicação dos dispositivos previstos em lei.

Nesse sentido a CASLA organiza diversas ações que visam dar visibilidade à

temática tanto das migrações como da discriminação racial sofrida pelos imigrantes,

como cursos de capacitação, jantares e festas, além de participar de espaços onde

são discutidas as políticas governamentais voltadas para esse público52.

Apresentadas as leis que regulamentam os crimes de racismo e de injúria

racial no Brasil e suas particularidades, apresento a seguir os documentos que

compõem o inquérito policial do caso do Peter.

3.2 O inquérito policial do “caso Peter”.

Em O antropólogo no campo da justiça, o investigador e a testemunha ocular,

Joana Domingues Vargas propõe uma reflexão sobre a produção etnográfica –

experiência de campo e produção do texto – a partir de pesquisa realizada junto aos

órgãos policiais e judiciais, em Campinas (SP), situação em que, em suas palavras,

                                                                                                               52 Como exemplo desses espaços, cito o recém formado Núcleo de Migrantes, Refugiados e Apátridas do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Direitos Humanos, vinculado ao Ministério Público do Paraná. Em novembro de 2015 ocorreu a primeira reunião do grupo com o objetivo de estruturar os trabalhos e representantes da CASLA estiveram presentes.  

  65  

ocorre a “transformação, pelo Sistema de Justiça Criminal, de acontecimentos em

fatos jurídicos (Vargas, 1998: 33, grifos meus) .53

A autora entende que a linguagem, em suas diferentes formas – oralidade,

gestos, silêncio, escrita - é a via por onde se dá essa transformação, em atividades

e interações que se desenrolam, em fluxo, desde os órgãos policiais, podendo

chegar até o Judiciário.

“São narrativas trêmulas recordando acontecimentos ou conflitos; argumentos elaborados para conferir sentido à versão apresentada; diálogos não poucas vezes carregados de emoção, controlados pela mediação da policial atendente em forma de conselhos ou ameaças; comentários que revelam o descrédito na estória contada ou a comoção provocada por ela; olhares trocados compartilhando significados; silêncios passivos ou autoritários; tomadas de depoimentos, interrogatórios, elaboração de textos tais como boletins, inquéritos, relatórios, denuncias, além de muitos outros, que por seu caráter escrito, acabam adquirindo vida própria ao longo do processo” (Vargas, 1998:33).

Entendendo que os documentos são produzidos por meio de múltiplas

transformações, discutirei nesta perspectiva os papéis que compõem o inquérito

policial do caso de Peter. Não estive presente no momento da elaboração dos

documentos, mas procuro pensar de que maneira a escrita produziu esses papéis,

colocando-a em relação com os demais casos apresentados no capítulo anterior. Como narrado anteriormente, Peter relatou que chegou até a CASLA indicado

por amigos haitianos, após ter sito agredido por dois de seus companheiros de

trabalho no horário do expediente. O CASLAJur optou por entrar com duas ações

neste caso – uma de cunho trabalhista, cuidada por André, e outra criminal contra

seus agressores, motivada pelo crime de racismo. Bruno, o advogado responsável

pelo processo criminal, me deu acesso a todos os documentos produzidos até julho

de 2015 sobre o caso.

Cabe aqui uma pequena reflexão sobre as escolhas tomadas pelos

advogados nas diferentes situações apresentadas. Segundo Bruno, o ensino do

Direito é especializado, isto é, na faculdade o aluno deve escolher em que área irá

seguir. Assim, “a especialização leva a diferentes formas de compreender a

realidade dentro do Direito”, e cada advogado apreende o que é narrado por seus

                                                                                                               53 Vargas investigou o tratamento e a produção de fatos jurídicos, especificamente de crimes sexuais, na Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) e no Fórum de Campinas (SP).  

  66  

clientes de acordo com as especificidades de sua área profissional. Levando em

conta os casos apresentados no capítulo anterior, Bruno explica: “Se você leva um caso como esse pra um advogado trabalhista, na cabeça dele ele vai pensar em um cifrão, em um valor. Isso é um dano moral? Se você leva isso pra um advogado criminalista, ele vai falar sobre racismo, sobre injúria”.

É interessante aqui pensar como as diferentes perspectivas que permeiam o

mundo jurídico logo de saída compõem a construção dos processos. A escolha do

advogado é condição determinante no tratamento de determinado acontecimento.

Neste caso estamos diante de um inquérito criminal: o dossiê de Peter,

composto por dez documentos com nomes e formas específicas que, encadeados a

partir de certa lógica, servirão de material etnográfico para análise.

O primeiro desses documentos é o boletim de ocorrência. Composto por uma

página, no topo e à esquerda da folha encontra-se o brasão da Polícia Civil e logo

abaixo o endereço do distrito policial em questão. Bem ao centro e ainda no alto da

página podemos ver o número do boletim de ocorrência seguido da especificação de

que se trata de uma “(2 via) – impressão simplificada – comunicação da ocorrência”.

Logo abaixo campos preexistentes são preenchidos.

O primeiro dos tópicos diz respeito à natureza(s) do crime, é o que qualifica a

denúncia em relação à lei. Aqui o preenchimento se dá da seguinte maneira: “injúria

referente a raça/cor/etnia/religião/origem – crimes contra a pessoa; lesão corporal –

constatada – crime contra a pessoa”. Em seguida temos a data e hora do registro e

a data e hora do fato, o endereço onde aconteceu a ocorrência, o município, os

meios empregados, aqui descritos como “não definido”, a providência policial – no

caso o boletim de ocorrência -, e os envolvidos, onde consta: “Peter – noticiante –

Registro Nacional de Estrangeiros – n0 do Registro Nacional de Estrangeiros”.

Depois, é preenchido o campo denominado “descrição sumária”, onde o

policial registra brevemente a versão dos fatos narrada pela vítima. Neste caso,

“relata o noticiante que irmãos que trabalham no mesmo local o agrediram por ele

ser negro, noticiante relata que sempre sofreu com as práticas de racismo dos

noticiados, eles sempre o chamam de ‘macaco’”.

Peter assina o documento logo abaixo da frase: “Eu, Peter, responsabilizo-me

pelas informações acima prestadas e por este instrumento”. Por fim, podemos ver as

assinaturas do responsável pela impressão e do delegado.

  67  

A partir desse documento podemos levantar algumas questões. Como

relatado no capítulo anterior, Peter passou a referir-se como vítima a partir do

momento em que o caso chegou à delegacia. Quando lhe perguntei sobre o que

considerava racismo, citou os seguintes argumentos: “agressão e problemas

trabalhistas”, exatamente o que qualificava a sua denúncia. Aqui, não só as posições

são inscritas na lei, mas a lei também produz posições.

Bruno me explicou que o crime narrado pelo haitiano foi qualificado na

delegacia pela Lei Caó, que o próprio delegado entendeu que o haitiano foi vítima de

racismo. Segundo Bruno, a surpresa causada aos advogados da CASLA neste caso

aconteceu porque “a polícia vive de estatística e registrar um acontecimento como

um crime que vai exigir trabalho de investigação não costuma ser praxe”. Este é um

primeiro obstáculo encontrado pelas vítimas de racismo ou injúria racial. De acordo

com ele, normalmente acontece o que é chamado de “subnotificação”, ou seja, a

natureza do boletim de ocorrência é preenchida como um crime de “ação privada”,

isentando a polícia da responsabilidade de investigação.

Me explicou ainda que as vítimas costumam ir desacompanhadas de

advogados à delegacia e, desconhecendo os códigos do direito, não opinam na

qualificação dos crimes. É possível que posteriormente um advogado reveja o que

foi lavrado e peça para que seja alterado. No entanto, Bruno comentou que neste

caso é necessário conseguir pessoas que testemunhem em favor da suposta vítima.

Em dois ou três casos do CASLAJur, entre eles a história descrita no capítulo

anterior, quando um haitiano foi agredido por colegas no restaurante em que

trabalhava, foi avaliado que o boletim de ocorrência poderia ser retificado, mas a

falta de testemunhas impossibilitou dar continuidade ao caso. De acordo com Bruno,

“no calor do momento você consegue testemunha, passando dez, doze horas, você

não consegue testemunha nenhuma, o patrão já mandou todo mundo ficar quieto, já

transferiu de unidade, e foi o que aconteceu no caso do restaurante”. O réu foi

colocado em outra unidade, as testemunhas também. Nenhuma delas aceitou depor

a favor da vítima.

Cabe pensar o que foi mobilizado no caso de Peter para que seu boletim de

ocorrência fosse preenchido de acordo com a Lei no 7.716/89. Bruno “desconfia” que

o fato de o haitiano ter chegado sangrando à delegacia foi fundamental, levando em

conta que naquele momento “havia uma comoção nacional em relação à situação

dos imigrantes”. Como veremos a seguir, as falas dos policiais sobre a situação de

  68  

Peter, assim como a entrevista que realizei com o haitiano, contêm elementos

importantes para entender a tipificação deste caso.

O documento que vem logo após o boletim de ocorrência é o “termo de

depoimento (condutor e 1ª testemunha)”. E o que é esse documento? O advogado

relatou que o procedimento da formalização da prisão em flagrante começa com a

“oitiva do depoimento do condutor” – aquele que efetuou a prisão em flagrante – e ,

para que o Auto de Prisão em Flagrante seja lavrado dentro da legalidade, é

necessária a presença de ao menos duas testemunhas. Primeiro ouve-se o

condutor, em seguida a primeira testemunha, a segunda testemunha e por fim o

conduzido. Acontece que muitas vezes, como ocorreu no caso de Peter, faltam

testemunhas e então os próprios policiais podem dar seu depoimento, inclusive o

condutor - desde que tenha presenciado o flagrante.

Formado por duas páginas, o Termo de Depoimento (condutor e 1ª

testemunha) começa com um cabeçalho onde, entre o brasão do Estado do Paraná

e o da Polícia Civil, encontra-se escrito: “Secretaria de Estado da Segurança Pública

– Departamento da Polícia Civil – 13o Distrito Policial. Logo abaixo há o nome do

documento e um parágrafo com o horário em que foi redigido, dia, local, nome do

delegado e do escrivão de polícia que subscreve o termo e seus respectivos

documentos de identidade.

Em seguida, uma tabela com os dados do depoente: o policial civil que

recebeu Peter no momento em que procurou a delegacia. Nessa tabela campos

preestabelecidos são preenchidos: nome, carteira de identidade, nacionalidade,

naturalidade, data de nascimento, idade - 41 anos -, filiação, endereço, telefone e

profissão - policial civil.

Por fim, o seu depoimento. Segundo o policial, “por volta das 16 horas chegou

um cidadão no plantão desta delegacia, cidadão de cor, chorando, dizendo que o

seu braço havia sido quebrado e apresentava escoriações pelo corpo”. Em seguida

o policial explica que “atendendo determinação desta Autoridade Policial, seguiu

com a vítima até o local aonde tal pessoa teria sido agredida e chegando no local

deparou-se com a pessoa que o teria agredido fisicamente”. Chegando lá encontrou

essa pessoa sozinha – ele teria agido em companhia de seu irmão -, e diante das

acusações do “cidadão haitiano” entendeu “que o conduzido estaria em flagrante

pela prática dos crimes de racismo, lei 7.716/89 artigo 20 e lesões corporais do

Código Penal Brasileiro”, razão pela qual lhe deu ordem de prisão.

  69  

Aqui mais uma vez é interessante pensar como as narrativas se constroem.

Peter é caracterizado como “cidadão de cor”, e o depoente deixa claro o estado

emocional em que o haitiano se encontrava no momento em que procurou a

delegacia: Peter chorava e, como veremos, esse é um elemento importantíssimo

para a construção do caso. Também é a primeira vez que há referência sobre suas

origens: o depoente o caracteriza por “cidadão haitiano”, até então sua

nacionalidade era desconhecida. Por fim, o documento é assinado pelo delegado,

escrivão e condutor do caso.

Como narrado no capítulo anterior, o caso de Peter ficou conhecido entre os

voluntários da CASLA e na imprensa local. Quando o encontrei para conversar um

ano depois do acontecimento, os advogados do CASLAJur ficaram rememorando o

“estado em que chegou até a CASLA”, “como ele chorava e estava triste”, “como

todos foram solidários e tentaram o ajudar”, felizes em vê-lo bem. Da mesma forma,

os policiais se sensibilizaram com o seu estado, como ele mesmo afirmou na

entrevista concedida.

O termo de depoimento seguinte é da segunda testemunha, outro policial civil

implicado no caso. O documento tem a mesma estrutura do anterior: duas páginas,

o cabeçalho e os brasões, um parágrafo com data, horário o nome do delegado e do

escrivão, além de seus registros de identidade, campos preenchidos com os dados

da testemunha e o seu depoimento.

Segundo este policial, o “condutor e 1ª testemunha”, seu companheiro de

equipe, teria adentrado sua sala com um “cidadão de cor, de nacionalidade haitiano,

que chorava e gritava de dor alegando que teria sido agredido fisicamente e que foi

chamado de ‘macaco’ pelo agressor”. Neste depoimento, mais dois elementos são

introduzidos às narrativas.

Quando se referiu ao estado emocional de Peter no momento em que chegou

à delegacia, acrescentou que: “ele não apenas chorava, mas também gritava de dor

alegando que teria sido chamado de “macaco” pelo agressor”. Em um gradativo

aumento, as violências sofridas por Peter são enfatizadas nos documentos

constituídos até o momento.

Em seguida, é a vez de Peter dar a sua versão da história, por meio do Termo

de declaração. A estrutura do documento é a mesma daqueles anteriormente

descritos: um parágrafo introdutório, uma tabela preenchida com os dados de Peter

e seu depoimento. A vítima descreve que “é cidadão de origem haitiana e por causa

  70  

de sua cor escura constantemente é desrespeitado e chamado de macaco ou

escravo”. No que segue, descreve o que ocorreu naquele dia:

Que hoje acabou discutindo com (nomes dos acusados) e estes lhe agrediram violentamente acabando por lhe causar lesões no seu braço esquerdo e nas costas, no ombro, no pé direito e na barriga, onde acabou batendo a mão esquerda em uma madeira causando corte no dedo. Que não é a primeira vez que o declarante é ofendido chamado de macaco e de escravo. Que indignado com a ofensa racial o declarante após ser espancado e agredido procurou esta Distrital pedindo socorro, e aí então saiu em companhia de um investigador e o levou até o local aonde foi espancado e afrontado pela sua cor.

Por diversas vezes Peter reitera que sofreu as agressões em razão de sua

cor. Ao que indica este termo de declaração, o haitiano não reagiu à violência de

seus companheiros de trabalho, apenas procurou a delegacia para pedir socorro.

De acordo com seu depoimento, podemos deduzir que os ferimentos causados em

Peter aconteceram sem o uso de ferramentas e causaram diversas lesões.

O próximo documento, a nota de culpa, é o termo que dá ciência ao preso

sobre os motivos de sua prisão assim como o nome do condutor e das testemunhas

do caso. Como me explicou uma das advogadas do CASLAJur com quem

compartilhei o andamento da pesquisa, a nota de culpa deve ser assinada pela

autoridade em questão – o delegado de polícia – e entregue ao preso em um prazo

de vinte e quatro horas a partir do momento da detenção. Neste caso, o documento

é composto por um parágrafo onde o delegado responsável faz saber ao acusado

que “está preso em flagrante, na forma da lei, por ter na data de cinco de setembro

de dois mil e quatorze, na cidade de Curitiba, cometido o crime de

praticar/induzir/incitar discriminação/preconceito (consumada) lei 7.716/89 – crimes

de raça ou de cor – art. 20”. Em seguida, há o nome dos depoentes (condutor e

testemunha), a assinatura do delegado e do escrivão de polícia. Por fim, o acusado

assina seu nome abaixo de uma frase em letras maiúsculas: “RECEBI A VIA DESTA

NOTA DE CULPA”.

O documento seguinte, intitulado de auto de interrogatório, qualificação e vida

pregressa, é composto por quatro páginas, todas elas assinadas pelo acusado. Na

primeira folha, há um parágrafo semelhante aos parágrafos que iniciam os

depoimentos anteriores: nele consta o horário, data, local, nome do delegado e do

escrivão da polícia e seus respectivos documentos de identidade – o que parece ser

um procedimento de praxe.

  71  

No que segue, campos “de qualificação” são preenchidos, tais como data de

nascimento, idade – o acusado tem 25 anos -, filiação e endereço, sua descrição

física: cabelos castanhos, olhos azuis, cútis branca e nariz caucasiano, e

“psicológica”, como “ausência de vícios” e “estado de ânimo calmo”. As últimas duas

perguntas, se “já foi indiciado” ou se “já foi processado” foram respondidas com um

“não”, o que contribuirá para que não reste muito tempo detido, como veremos

adiante.

Depois de preenchidos os campos, tem início uma segunda parte escrita. Em

um longo primeiro parágrafo são explicitados os direitos da pessoa detida54 e, em

seguida, o seu testemunho sobre os acontecimentos. O acusado diz que

conjuntamente com seu irmão iniciaram “brincadeiras” com o haitiano. Em seguida

“seu irmão teria dito para o interrogado que se Peter não parasse com as

brincadeiras iria dar umas pancadas no mesmo”. O haitiano teria “chamado o irmão

para a saída do trabalho”, mas isso não aconteceu.

Até esse momento, nota-se que o depoente responsabiliza o irmão pelos

acontecimentos, o que segue da mesma maneira pelo resto do testemunho. Além

disso, chamo atenção para a justificativa do acusado que discutirei mais adiante: ele

e seu irmão teriam feito “brincadeiras” com Peter, se referindo a sua cor.

Em seguida, o acusado relata que Peter estaria

“com uma faca na mão e seu irmão empurrou o mesmo. Que aí ambos

entraram em vias de fato e o interrogado tentou tirar a faca que estava na

mão de Peter, que segundo o interrogado Peter e seu irmão teriam passado

por dentro de uma ‘dala’, o que é uma esteira que conduz os sacos de

alimentos”.

Novos elementos surgem nessa passagem. O acusado dá a entender que a

partir de brincadeiras teve início uma discussão, na qual Peter ameaçou com uma

                                                                                                               54 “Art. 5o – inc. II: ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei; inc. III ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante; inc. XLIX: é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral; inc. LXI: ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciaria competente; inc. XLII: e a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada; inc. LXVIII o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado; inc. LXIV: o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório ; inc. LXVI: ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, sem fiança.  

  72  

faca os companheiros de trabalho e por isso travaram uma briga. O haitiano teria se

machucado dentro de uma máquina, e não por causa dos chutes e pontapés.

Em seguida, o depoente reitera duas vezes que eram só “brincadeiras”:

“Que o interrogado informa que no local acabam brincando chamando Peter

de macaco e de escravo mas isso seria brincadeira entre o interrogado, seu

irmão e outros (...) o interrogado afirma que seu irmão teria entrado em vias

de fato com Peter mas que somente teria brincado chamando o haitiano de

macaco e de escravo”.

Seguem as assinaturas do delegado, de duas testemunhas de leitura55 e do

acusado.

Neste depoimento, o suposto agressor de Peter alega em diferentes

momentos que ele e seu irmão estariam brincando com o haitiano. Esta fala nos

remete ao “mito da democracia racial”, segundo o qual o preconceito racial no Brasil

estaria extinto, dando lugar a uma suposta harmonia entre as raças.

Segundo Lilia Schwarcz, em “Questão Racial e Etnicidade”, na década de

1930 houve um movimento de “nacionalização da mestiçagem”, quando uma série

de símbolos nacionais “foram se tornando mestiços” e a convivência cultural

miscigenada foi entendida como modelo de igualdade racial. Nesse contexto

Gilberto Freyre, pautado pela tese culturalista, desqualificou o argumento biológico

sobre a raça e argumentou que as diferentes culturas frutificavam lado a lado

(Schwarcz,1999:277).

Nos anos que sucederam, entre as décadas de 1950 e 1960, a ideia de

democracia racial disfarçou a discriminação sofrida pelos negros no Brasil. No

mesmo período, a UNESCO financiou uma série de pesquisas no país, que

mostraram o Brasil como “laboratório socioantropológico, com convívio harmonioso

entre grupos”. Nesse contexto, diferentes teóricos56 demonstraram a partir de suas

pesquisas os enganos provocados pelo mito: a discriminação sofrida pelos negros

estaria encoberta por uma suposta harmonia entre as raças e seria necessário

desmistificá-la (Schwarcz,1999:281).

                                                                                                               55 Testemunha de leitura é aquela que está presente no momento em que o depoente relê o depoimento e o assina, confirmando o que está escrito. Ela não precisa estar presente no momento do interrogatório. (Art. 6, V do Código Penal).  56 Schwarcz cita Florestan Fernandes, Roger Bastide e Costa Pinto.  

  73  

Até os dias de hoje ações discriminatórias são levadas como “brincadeiras”,

como pudemos perceber no testemunho do acusado e retomaremos adiante.

Voltando para o inquérito, um documento de duas páginas, o auto de prisão

em flagrante delito, vem em seguida, trazendo um compilado de informações dos

papéis acima descritos. Podemos ver que foi redigido “às dezessete horas e

cinquenta e oito minutos do dia cinco do mês de setembro de dois mil e catorze”,

uma hora e cinquenta e três minutos depois que o boletim de ocorrência foi lavrado -

às dezesseis horas e cinco minutos. Nesse período, o delegado de polícia, junto ao

escrivão de polícia, narram que

“compareceu o condutor e primeira testemunha, o qual apresentou preso

àquela autoridade policial a pessoa denominada X, e, em sendo aquele

inquerido pela autoridade policial em termo separado, afirmou que o

conduzido foi preso por ter praticado o crime praticar/induzir/incitar

discriminação/preconceito (consumada) lei 7.716/89 – crimes de

preconceito de raça ou de cor – art. 20”.

No que segue, são novamente descritos os direitos do acusado, lhe é dada

voz de prisão e o delegado “determina ao senhor escrivão de polícia I – a lavratura

do presente auto; II – o recolhimento do conduzido ao Setor de Carceragem

Temporária 11o Distrito Policial, onde permanecerá à disposição do Juízo

competente”. Além disso, o delegado pede que seja feita a juntada dos autos desse

inquérito, ou seja, todos os documentos acima descritos, e enviadas as cópias para

o Juízo de Execuções Penais. O escrivão assina a última folha.

Junto aos autos são anexadas cinco fotos do corpo de Peter machucado. A

resolução das imagens que recebi era baixa e não consegui visualizá-las

claramente. Posso deduzir que duas mostram as mãos do haitiano, uma as suas

pernas e outras duas as suas costas. Também não há nenhuma menção sobre o

momento em que foram tiradas. Como veremos, as fotos devem servir de prova para

confirmar o que narrou Peter, pelo menos de que estava machucado no momento

em que chegou à delegacia de polícia.

O documento seguinte, o ofício destinado ao “juiz de direito da vara criminal

de plantão“ comunica a prisão em flagrante delito pela prática do crime previsto na

lei 7.716/89 e informa onde encontra-se preso o acusado, no Setor de Carceragem

  74  

Temporária 11o. Distrito Policial. É assinado pelo delegado de polícia que

acompanhou o caso.

Até aqui os documentos apontaram todos no mesmo sentido: a qualificação

do crime pela Lei Caó. Os documentos oficiais se alinharam à narrativa de Peter e a

única voz dissonante, a do agressor, não parece ser levada em consideração.

Alguns elementos são importantes. A todo o tempo é mencionado o fato de Peter

estar chorando, tanto pelas testemunhas como por ele mesmo. Em diversos

momentos da entrevista que me concedeu, narrada no capítulo anterior, o haitiano

diz o quanto chorou e os advogados e demais voluntários têm lembranças

emocionadas de como ele estava abalado. Talvez tenha sido comovente o fato de

um homem adulto chegar chorando em uma delegacia, coisa que suponho ser rara.

Em seguida, os “autos do processo”, ou seja, todos os documentos descritos

até então, foram enviados ao Promotor de Justiça do Plantão Judiciário para que

analisasse o caso e indicasse ao juiz a sua posição. Uma folha com um carimbo de

entrega confirma que o inquérito chegou ao destinatário, e é assinado pelo auxiliar

designado.

No mesmo dia, cinco de setembro de dois mil e quatorze, o Promotor de

Justiça em regime de plantão assinou um documento de três páginas, intitulado

Parecer pelo Ministério Público (Plantão Judiciário).

O Parecer do caso de Peter começa a partir de um tópico denominado

“relatório”, onde quatro parágrafos resumem os depoimentos tomados pelo

delegado, levando em conta que “ofenderam a dignidade de Peter, fazendo

referências a sua cor e a origem da vítima, chamando-o de macaco e escravo”. Mais

adiante completa: “consta que o autuado e seu irmão teriam agredido fisicamente a

vítima, provocando lesões corporais, consonante com registro fotográfico acostado

dos autos e declaração da vítima e dos policiais que atenderam a ocorrência”.

Em seguida, uma alteração importante aconteceu: o promotor de justiça

responsável pelo parecer estabeleceu que o crime fosse classificado pelo previsto

no “artigo 129 e artigo 140, parágrafo 3 (injúria racial), do Código Penal”57. Assim,

desmembra o ocorrido (até então percebido e vivido como um acontecimento

                                                                                                               57 “Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem” (Código Penal) . “Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro: § 3º Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência. (Redação dada pela Lei nº 10.741, de 2003)”.  

  75  

unitário, tanto pelos participantes quanto pelos policiais) em duas ocorrências

(juridicamente) independentes, cada uma delas correspondente a um crime distinto:

há, separadamente, a ofensa à integridade corporal (art. 129) e a injúria racial (art.

140). Desfaz-se assim a unidade (ou a causalidade) que levara à qualificação do

ocorrido com base na Lei Caó: a agressão (física e verbal) se deu porque a vítima

era negra, isto é, em razão de sua cor – configurando assim o crime de racismo.

Como apresentado acima, os crimes de racismo e de injúria racial se

diferenciam por alguns elementos, entre eles as condicionantes para detenção dos

suspeitos. Assim sendo, ao classificar o ocorrido como “injúria”, o promotor de

justiça estabeleceu quatro providências que poderiam ser tomadas pelo juiz neste

caso:

“(I) relaxamento da prisão, (II) conversão da prisão em flagrante em prisão

preventiva, (III) aplicação de medidas cautelares diversas da prisão e (IV)

concessão de liberdade provisória, com ou sem fiança” (Parecer pelo

Ministério Público).

Em seguida, o promotor argumenta que “o detido é primário e atualmente não

está sendo processado criminalmente. Por sua vez, não há dados que demonstrem,

de forma concreta e efetiva, que o autuado seja agente perigoso para o convívio

social”. E, considerando que para o ocorrido a pena seria desproporcional, conclui:

“o Ministério Público pugna pela concessão de liberdade provisória ao autuado

mediante o pagamento de fiança, medida que se afigura como mais adequada ao

caso concreto, bem como pela fixação da medida cautelar prevista no artigo 319,

III58, impedindo-o de manter contato com a vítima”. Assim, foi fixado o valor de dois

salários mínimos59 como pagamento de fiança.

Ao considerar que essa é a “medida adequada”, o promotor responsável pelo

parecer parece indicar que, se o caso fosse tratado como crime de racismo, as

consequências seriam demasiadamente duras. Mais uma vez a ideia de que o

racismo é um crime “menor”, principalmente quando se toma contato com ele

apenas via documentos, minimiza as consequências das práticas discriminatórias.

                                                                                                               58 “Art. 319. São medidas cautelares diversas da prisão: (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011). III - proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011)”.  59 Naquela data correspondente a R$ 1.448,00.  

  76  

Este é um ponto interessante a ser pensado: será que a legislação, justamente pela

severidade com que trata o racismo, torna-se inaplicável? Os policiais que

efetivamente tiveram contato direto com Peter não hesitaram em corroborar com a

sua perspectiva e considerar o caso como “racismo”. Mas o promotor, que teve

contato apenas com papéis, deslocou a consideração para o acusado, levando em

conta que é “primário” e não oferece perigo.

Em reposta ao parecer do Ministério Público, a juíza de direito substituta

responsável pelo julgamento da prisão em flagrante acatou as sugestões do

promotor. Para tanto, em um documento de cinco páginas intitulado decisão

interlocutória, explicou que a Lei no 12.403/1160 tornou a prisão preventiva exceção

no ordenamento jurídico, podendo acontecer, de acordo com o artigo 312 do Código

de Processo Penal, sob quatro circunstâncias: garantia de ordem pública; garantia

de ordem econômica; conveniência da instrução criminal e; garantia de aplicação da

lei penal. A juíza considera que nenhuma dessas circunstâncias se aplica ao caso, e

assim, que seja pago o valor sugerido pelo Ministério Público, de dois salários

mínimos. Em seguida consta o pagamento de fiança do réu e seu auto de soltura.

Este último documento é composto por uma página. Destinado à Juíza de

Direito da 9a Vara Criminal do foro de Curitiba, o advogado do acusado que assina o

documento redige um parágrafo demandando que seu cliente tenha “a expedição do

alvará de soltura pois o ora requerente encontra-se preso na 11o Delegacia de

Polícia Civil de Curitiba-PR”. Depois disso, o acusado foi solto, como me contou

Bruno.

Ao longo de 2015 nenhum dado foi adicionado ao processo criminal de Peter

e o inquérito aguarda posicionamento do Ministério Público. Como me explicou

Bruno, cabe ao órgão decidir se pretende ou não dar seguimento à questão: se

“oferecer denúncia”, ou seja, entender que o acusado é de fato culpado pelo que

aconteceu, um advogado deverá se somar ao processo, Peter se tornará parte do

inquérito como vítima e os irmãos serão acusados pelo crime de injúria racial. Caso

decida pelo arquivamento, o advogado ainda pode entrar com um pedido de revisão

e tentar dar continuidade às acusações.

                                                                                                               60A lei “altera dispositivos do Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal, relativos à prisão processual, fiança, liberdade provisória, demais medidas cautelares, e dá outras providências”.  

  77  

O processo trabalhista de Peter está em fase de recurso. Bruno me explicou

o pouco que sabia sobre o que havia ocorrido: o haitiano ganhou verba indenizatória

pela demissão, mas não obteve nenhuma reparação pelos danos morais que sofreu

ao ser demitido e reivindica agora esses direitos.

Bruno não será o advogado que dará continuidade à ação criminal caso o

Ministério Público ofereça a denúncia contra o agressor de Peter. Na audiência

trabalhista o haitiano teria admitido que estava com uma faca no instante do

acidente, que teria ameaçado os irmãos e logo em seguida caído na máquina,

causando o machucado e confirmando a versão do acusado. Em todos os outros

momentos Peter reafirmou que não portava nenhuma arma e que não iniciou a

briga.

Seja como for, em nenhum momento o acusado negou ter chamado Peter de

“macaco” e “escravo”. Mas o fato de o haitiano portar ou não uma arma branca torna

a situação extremamente complexa: a violência sofrida por ele é diminuída, aos

olhos das instituições, quando é considerada a possibilidade de que ele não tenha

sido fisicamente machucado por seus companheiros de trabalho. Mais do que isso,

ele teria se acidentado em uma briga que teve início depois que ameaçou os dois

irmãos com uma faca. Nesses deslocamentos, o racismo sofrido por Peter vai sendo

minimizado e, até certo ponto, (quase) justificado como reação a suas ameaças.

Perguntei a Bruno em que língua são tomados os depoimentos, já que a falta

de domínio pode gerar mal entendidos. O advogado explicou que os estrangeiros

prestam os depoimentos em português, mesmo aqueles que não dominam o idioma.

Bruno entende que o depoimento não pode ser tomado em língua nacional.

Segundo meu interlocutor, “eles têm que falar na língua deles. É necessário fazer

um trabalho de direitos e garantias de direito de migrantes, por exemplo, direito a

tomar o depoimento na língua natal”. Complementou que nada impede que depois

as falas sejam traduzidas.

Como exemplo de possíveis mal entendidos, explica que “os haitianos tem

muito problema com a palavra papel, papier. Pode ser tudo, certidão de nascimento,

notificação, eles falam papel pra tudo. Então assim, isso é uma coisa complicada,

porque podem ser muito mal interpretados”. Em seguida me contou sobre um

atendimento dos tempos em que eu frequentava as reuniões do CASLAJur: um

haitiano que falava apenas o creole foi preso tentando embarcar de volta para o seu

país, sem ter passagem. Quando os advogados foram contatados pela ASHBRA e

  78  

chegaram até a delegacia ele já havia testemunhado e o termo assinado estava em

português. Ninguém soube explicar como isso aconteceu, de onde tiraram suas

palavras e como resolver este problema.

Na tentativa de diminuir as possibilidades de má compreensão do que dizem,

meu interlocutor informou que os membros do CASLAJur passaram a orientar os

imigrantes a irem acompanhados por advogados às delegacias. Além disso, “as

chances de que os boletins de ocorrência sejam subnotificados na presença de

advogados é menor, garantindo que os processos caminhem para a

responsabilização dos acusados”.

Apresentados os documentos referentes ao caso de Peter, levanto em

seguida alguns pontos. Dos três casos que chegaram até a CASLA, apenas um foi

tipificado como racismo. No entanto, ainda que o depoimento de Peter e os dos

policiais que realizaram o atendimento tenham conduzido o delegado a classificar o

ato pela Lei 7.716/89, o parecer apresentado pelo Ministério Público alterou esta

qualificação, imputando o crime de injúria racial ao acusado.

Como descrito, o fato de Peter ter chegado chorando à delegacia pode ter

sido fundamental para a caracterização do crime com base na Lei Caó. Tanto os

depoimentos dos policiais que o atenderam como o seu próprio corroboraram para a

tipificação do crime.

Em seguida o relato do acusado introduziu uma nova narrativa: Peter teria

caído em uma máquina e se machucado sozinho. Em nenhum momento o acusado

nega ter chamado o haitiano de “macaco” ou “escravo”, mas justifica sua ação

alegando que se tratava de uma “brincadeira”.

O promotor do caso leva em conta esta última versão e se volta para o

acusado para propor que seja posto em liberdade, justificando que a falta de

antecedentes criminais comprova que ele não apresenta perigo à sociedade. Por

fim, o juiz legitima o parecer do Ministério Público, lavrando o auto de soltura do

preso.

Como pudemos perceber, a construção do inquérito é complexa e seu

andamento depende da constituição do acontecimento por diversas pessoas, de

diferentes instituições. Ao passar por essas instâncias, a agressão sofrida por Peter

e evidenciada pelos policiais no momento em que ele chegou à delegacia vai se

transformando em algo “menos grave”.

  79  

Encobertas pela justificativa de que se tratava de “brincadeiras”, as

discriminações vividas pelo haitiano vão sendo minimizadas ao longo do inquérito e

a rigidez da lei que tipifica o crime de racismo é usada como justificativa para sua

não aplicação.

  80  

CONCLUSÃO

A pesquisa buscou apontar, a partir da trajetória de Danilo, as várias

trajetórias que surgem quando falamos dos haitianos que vivem no Brasil, mais

especificamente em Curitiba, além dos seus desdobramentos nas relações com

instituições brasileiras.

Como pudemos perceber, suas origens são variadas - de diferentes cidades,

classes sociais e formações - e as experiências vividas no país que agora os recebe

são diversas, mobilizando organizações estatais e não estatais no seu acolhimento.

Em um primeiro momento, ao apresentar os caminhos percorridos por Danilo, a

pesquisa se voltou para as transformações da legislação brasileira diante da

chegada dos imigrantes haitianos no Brasil. Não sendo enquadrados como

refugiados, a figura do visto humanitário foi incorporada pela lei brasileira na

tentativa de acolher dentro da legalidade essas pessoas. De um lado, organizações

da sociedade civil se mobilizaram para receber os haitianos oferecendo ajuda de

diferentes sortes – abrigo, alimentação, auxílio jurídico. Por outro, parte da imprensa

e parte da sociedade entendiam as ondas migratórias como “invasões” indesejadas.

Os poucos trabalhos sobre a recente migração de haitianos no Brasil

contribuíram para colocar em perspectiva os dados da minha própria monografia. Me

concentrei nas pesquisas da área de antropologia (Maroni; Pinto; Silva; Thomaz).

Salvo o trabalho de Thomaz, uma etnografia no Haiti logo após o terremoto, todos os

outros tiveram como enfoque o estudo das migrações haitianas para o Brasil: as

relações constituídas na fronteira e a partir dela, o caráter do visto humanitário e

suas implicações políticas, econômicas e sociais.

Alguns dos entrevistados solicitaram o visto através do consulado brasileiro em

Porto Príncipe, outros se dirigiram à Polícia Federal assim que atravessaram as

fronteiras brasileiras, mas todos relataram agilidade e rapidez no processo. O

mesmo não aconteceu em relação às expectativas quanto às instituições de justiça,

muito criticadas por todos eles. A demora na resolução dos problemas, a falta de

clareza no decorrer dos processos e a dificuldade de conseguir resultados positivos

foram os principais problemas encontrados por meus entrevistados.

Essas diferentes experiências em relação à obtenção do visto humanitário e seus

desdobramentos – acesso aos empregos, à saúde e a outros serviços públicos,

  81  

inclusive a justiça -, são interessantes para pensar a heterogeneidade das

instituições e “burocracias” brasileiras .

Outro ponto a ser levado em conta é o caráter de rumor das narrativas

apresentadas sobre a vinda para o Brasil. Os motivos pelos quais os haitianos

entrevistados escolheram o Brasil como destino – “ouvi dizer que”, “me contaram

que o país era bom” -, as chegadas às fronteiras e os destinos dentro do próprio

país são carregados de incertezas e imprecisão.

Apesar disso, as redes de relações constituídas para além do Haiti são

fundamentais para a locomoção e realocação dos haitianos que aqui chegam.

Como aponta a bibliografia consultada (Pinto (2014); Maroni (2014); Silva (2014)), a

história do Haiti é marcada por ondas migratórias e as relações de seus habitantes

se constituem pelo contato entre aqueles que ficam e os que saem do país. Danilo,

Peter e Rony chegaram até Curitiba a partir da indicação de amigos que conheciam

desde o Haiti e que os receberam na nova cidade. Da mesma forma, todos os outros

haitianos e haitianas com quem conversei chegaram até o Paraná acolhidos por

conterrâneos e, vários deles, estão empenhados em trazer familiares.

Em seguida, apresentei as organizações da sociedade civil que contribuem no

acolhimento desses imigrantes em Curitiba: a Casa Latino Americana (CASLA) e o

grupo de advogados voluntários (CASLAJur), a Associação para Solidariedade dos

Haitianos no Brasil (ASHBRA) e o Centro de Línguas e Interculturalidade (CELIN).

Este último não foi objeto da pesquisa, mas apareceu em todas as entrevistas. Ao

que pude perceber o CELIN “abriu portas” aos imigrantes, colocando-os em relação

não só com outros imigrantes, mas também com brasileiros.

A partir do levantamento dos casos61 do CASLAJur, delimitei como foco do

trabalho as narrativas dos haitianos que procuraram a CASLA após viverem

situações de discriminação racial. Busquei trazer para a pesquisa as diferentes

compreensões de como são experienciadas e resolvidas essas vivências: os

relatórios do CASLAJur, as entrevistas que realizei com os haitianos em questão e

com seus advogados, além dos documentos que constituem o único inquérito

policial instaurado para apurar a denúncia de racismo.

As discriminações vividas cotidianamente por esses imigrantes apareceram na

pesquisa das mais diferentes formas. Danilo durante a suas entrevistas, e os seus

                                                                                                               61Cf. Anexo 2.  

  82  

amigos com quem tive conversas informais, reconheceram a existência de

preconceito, mas afirmaram nunca o terem sentido “na pele”. Apontaram conhecidos

que foram agredidos ou xingados e chegaram a relatar situações em que foram

chamadas de “macacos” ou “escravos”. Peter foi violentamente agredido e se

considera vítima de racismo e agressão (curiosamente palavras que descreviam o

caso no boletim de ocorrência). Em outra situação, Rony foi demitido com a

justificativa de que os empregadores “não queriam mais trabalhar com haitianos”.

Rita Laura Segato explica que “cor é signo e seu único valor sociológico radica

na sua capacidade de significar” (Segato, 2006:03), ou seja, o sentido atribuído à cor

depende de uma leitura socialmente compartilhada e de um contexto histórico

delimitado – no Brasil marcado pela escravização de corpos negros e todas as

consequências desse processo. Segato acrescenta que no país as pessoas são

classificadas primeiramente como “excluídos” ou “incluídos” a partir de diferentes

fatores, mas principalmente em razão de sua cor. Este contexto de leitura leva ao

que a autora denomina como “processo de outrificação”.

Pensando nesse sentido, os haitianos que aqui chegam são percebidos através

de um olhar historicamente delimitado: são negros. Ou, mais do que isso, são

negros estrangeiros, negros haitianos. As dificuldades encontradas quando chegam

no Brasil são diversas, mas todas as experiências passam por situações de

discriminação racial.

Com relação aos casos que chegaram até a CASLA, é interessante perceber os

caminhos que possibilitam diferentes desdobramentos. De saída, o enquadramento

dos casos na lei passa pela construção das narrativas das vítimas pela secretária da

instituição, na forma dos relatórios que serão entregues aos advogados.

Como explicou Bruno, advogado criminalista do CASLAJur, a própria

especialização de seus colegas nas diversas áreas do direito contribui para as

múltiplas leituras em cada situação: enquanto para alguns o acontecimento poderia

ser descrito no campo criminal, para outros deveria ser levado para a justiça do

trabalho.

Assim, dos três casos entendidos pelos advogados como “racismo”, apenas um

foi qualificado no boletim de ocorrência como tal, por meio da Lei no 7.716/89. Em

seguida, em parecer oferecido pelo Ministério Público, as agressões sofridas por

Peter passam a ser tipificadas pela Lei no 9.459/97, que qualifica o crime como

  83  

injúria racial. No momento o caso espera que o órgão se posicione quanto à

continuidade – ou não – do processo.

Ainda que a discriminação racial esteja inserida na legislação e dispute esse

espaço de legitimidade de grupos socialmente marcados, a eficácia da lei depende

de muitos fatores e, pelo menos nos casos descritos, ela não foi aplicada.

Como narrado, quase todos os meus interlocutores afirmam sentir preconceito

em razão de sua cor, e narraram diversas situações em que companheiros haitianos

também foram alvo de discriminação. Aqueles que alegaram não vivenciar na pele o

racismo, atribuíram a terceiros essas situações desagradáveis, vexatórias.

Danilo relatou uma ocasião em que um companheiro de trabalho se sujou e em

seguida lhe disse: “olha só, estou sujo que nem a cor da sua pele, virei haitiano”.

Peter narrou o dia em que chegou em casa e se deparou com uma placa colocada

na porta de sua casa pelo seu vizinho: “favor não alimentar os macacos”. Quando

perguntei aos meus interlocutores o porquê de seus compatriotas não procurarem a

justiça para reivindicar que seus agressores fossem punidos, as respostas foram

parecidas, todas mais ou menos assim: “os haitianos não querem arranjar confusão

com os brasileiros, conseguem resolver os seus problemas sozinhos, sem

necessidade de mobilizar a justiça”, como me explicou Danilo.

Rita Laura Segato aponta que uma estrutura hierárquica acontece a partir da

fixação e reprodução dos signos existentes. Na defesa das cotas raciais nas

universidades e outras ações afirmativas, a autora sugere que “dar mobilidade” a

esses signos pode estremecer a estrutura nos seus pontos frágeis e assim lhe

causar danos.

Para isso, a autora afirma que é necessária a “formulação de conceitos e

categorias que inscrevam esse movimento nas narrativas mestras do sistema – a lei,

a moral, o costume” (Segato, 2006:11). Somente a “má prática da estrutura e do

jogo sígnico podem inocular no senso comum a dúvida sobre a a-historicidade

naturalizada da estrutura, e esta dúvida pode levá-la a caducar, a desmontar-se

lentamente na eficácia e nos sistemas de autoridade que sustenta” (Segato,

2006:11).

Por mais que a pesquisa tenha tentado demonstrar como racismo acontece e

se perpetua a partir das diferentes narrativas, inclusive na construção dos processos

criminais, esses haitianos estão fazendo festas, entrando nas universidades,

  84  

formando associações – incluindo o signo negro em outros ambientes, de outras

maneiras.

Assim como temos que falar sobre o racismo, vale a pena olhar para a

pluralidade dos imigrantes que estão aqui e, a partir de suas vivências, pensar de

que maneira os haitianos estão ocupando os espaços no Brasil e como suas

experiências podem contribuir para combater o racismo.

  85  

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  90  

7.347, de 24 de julho de 1985, e 10.778, de 24 de novembro de 2003. Diário

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<http://goo.gl/OU7pZl>, acessado em dez. 2015.

  91  

ANEXO I – FORMULÁRIO PARA PEDIDO DE REFÚGIO

  92  

  93  

  94  

  95  

  96  

  97  

  98  

ANEXO II – TABELA DE ATENDIMENTOS DO CASLAJUR DE ABRIL À

OUTUBRO DE 2014  

Haiti 40

Líbano 1

Tunísia 1

Cabo Verde 2

Guatemala 1

Paraguai 5

Paquistão 5

Guiné Bissau 21

Nigéria 18

Alemanha 1

Brasil 3

Síria 4

Sudão 1

Irã 1

Argentina 6

Senegal 3

México 5

Congo 3

Gana 2

Uruguai 2

Colômbia 2

Chile 2

Equador 3

EUA 1

Angola 1

Iraque 1

Cuba 1

Peru 1