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Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura Área de concentração: Literatura Comparada Lina Arao A TRAJETÓRIA DA UTOPIA EM JORGE ICAZA E MANUEL SCORZA Rio de Janeiro 2006

Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de … · Neo-Indigenismo. 3. Utopia – Teses. I. Coutinho, Eduardo de Faria (Orient.) II. ... Redoble por Rancas e La tumba del

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Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras

Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura Área de concentração: Literatura Comparada

Lina Arao

A TRAJETÓRIA DA UTOPIA EM JORGE ICAZA E MANUEL SCORZA

Rio de Janeiro 2006

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Arao, Lina. A trajetória da utopia em Jorge Icaza e Manuel Scorza / Lina Arao. Rio de Janeiro, 2006. 114 f. Dissertação (Mestrado em Ciência da Literatura) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, 2006. Orientador: Eduardo de Faria Coutinho 1. Indigenismo. 2. Neo-Indigenismo. 3. Utopia – Teses. I. Coutinho, Eduardo de Faria (Orient.) II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura. III. Título.

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A trajetória da utopia em Jorge Icaza e Manuel Scorza

Por Lina Arao

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura (Literatura Comparada), Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência da Literatura (Literatura Comparada). Orientador: Prof. Dr. Eduardo de Faria Coutinho.

Universidade Federal do Rio de Janeiro 2o. semestre de 2006

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FOLHA DE APROVAÇÃO

Lina Arao

A TRAJETÓRIA DA UTOPIA EM JORGE ICAZA E MANUEL SCORZA Rio de Janeiro, _____ de _______________ de 2006. _________________________________________________________________________ Professor Doutor Eduardo de Faria Coutinho (Orientador) _________________________________________________________________________ Professor Doutor Luis Alberto Nogueira Alves _________________________________________________________________________ Professora Doutora Cláudia Heloisa Impellizieri Luna Ferreira da Silva _________________________________________________________________________ Professora Doutora Eleonora Ziller Camenietzki (Suplente) _________________________________________________________________________ Professora Doutora Vera Lucia Teixeira Kauss (Suplente)

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AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, Professor Eduardo Coutinho, pela orientação incansável, paciente e minuciosa. À Professora Cláudia Luna, pelas aulas sobre literatura hispano-americana e pelo indispensável e atencioso auxílio.

Ao Professor Luis Alberto Alves, pelas aulas instigantes sobre crítica literária brasileira.

À minha família: meus pais, Seiiti e Luiza, e minha irmã, Mieka, pelo apoio incondicional.

Aos amigos, pelo incentivo de sempre.

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RESUMO ARAO, Lina. A trajetória da utopia em Jorge Icaza e Manuel Scorza. Rio de Janeiro, 2006. Dissertação (Mestrado em Ciência da Literatura) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006. A América Latina caracteriza-se, entre outras peculiaridades, por uma grande diversidade cultural, que se expressa freqüentemente por uma relação desigual de poder entre seus diferentes grupos culturais. As tensões geradas pelo choque de interesses de cada um desses grupos e pelas contradições entre a vida cotidiana dessa população e o seu desejo de uma sociedade mais igualitária criam condições favoráveis para o surgimento de um pensamento utópico. Nesta dissertação, procuraremos mostrar, através de uma perspectiva comparatista, como a questão da utopia é tratada em três romances da região andina que têm como eixo a figura do indígena – Huasipungo, do equatoriano Jorge Icaza, Redoble por Rancas e La tumba del relámpago, os dois últimos do peruano Manuel Scorza. Para esse fim, traçaremos a trajetória do pensamento utópico nas três obras e examinaremos as relações entre esta questão e a gradativa tomada de consciência do indígena a respeito da exploração a que sempre esteve sujeito e de seu papel na sociedade. No romance de Icaza, apesar da simpatia devotada à figura do indígena, este é visto como incapaz de refletir ou agir, o que o impossibilita de desenvolver um pensamento utópico. Já em Redoble por Rancas, começa a surgir um processo de conscientização política, dando origem a uma espécie de “potencial revolucionário”, a uma reflexão sobre formas de se transcender a realidade, e em La tumba del relámpago desenvolve-se, finalmente, uma utopia, sob a forma de um impulso na direção de uma revolução socialista.

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ABSTRACT ARAO, Lina. A trajetória da utopia em Jorge Icaza e Manuel Scorza. Rio de Janeiro, 2006. Dissertação (Mestrado em Ciência da Literatura) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006.

Latin America is characterized, among other peculiarities, by a great cultural diversity, which is often expressed by an asymmetrical power relationship between different cultural groups. The tensions resulting from these groups’ clash of interests and from the contradictions between people’s daily lives and their desire for a more equalitarian society create favorable conditions for the emergence of utopian thought. In this thesis, we will examine, by means of a comparative approach, how the issue of utopia is treated in three novels from the Andean region that deal with indigenous people – Jorge Icaza’s Huasipungo (Equador) and Manuel Scorza’s Redoble por Rancas and La tumba del relámpago (Peru). We will trace the trajectory of utopian thought in these works and will show how this issue is intimately connected with the Indian’s growing consciousness of their exploitation and of their role in society. In Icaza’s novel, in spite of the author’s sympathy towards the figure of the Indian, the latter is seen as unable to think or act, and this makes him incapable of developing an utopian thought. In Scorza’s Redoble por Rancas, a process of political consciousness awakening is started, giving thus birth to a kind of “revolutionary potentiality”, and in his La tumba del relámpago, a real utopia is developed under the form of an impulse towards a socialist revolution.

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Alta eres América “Alta eres, América, pero qué triste. Yo estuve en las praderas, viví con piedras y espinas, dormí con desdichados, sudé bajo la nieve, me vendieron en tristísimos mercados. ¡En tu árbol sólo he visto madurar gemidos! Bella eres, América, pero qué amarga, qué noche, qué sangre para nosotros. Hay en mi corazón muchas lluvias, largas nieblas, patio amargo; la pura verdad, en estas tierras, uno a veces es tan triste que con sólo mirar envenena las aguas. Alta eres, bella eres, pero yo te digo: no pueden ser bellos los ríos si la vida es un río que no pasa; jamás serán tiernas las tardes mientras el hombre tenga que enterrar su sombra para que no huya agarrándose la cabeza. […]”

Manuel Scorza

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SUMÁRIO Introdução 8

1. Sobre utopia 13

1.1. O conceito de “utopia” 13

1.2. A utopia na América Latina 25

2. A visão sobre o indígena na literatura andina 34

2.1. Indigenismo andino 35

2.2. Neo-Indigenismo andino 44

3. Huasipungo: desespero ou utopia? 50

4. Redoble por Rancas: o surgimento de uma utopia 64

5. La tumba del relámpago: doutrina e utopia 85

Conclusão 105

Bibliografia 108

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INTRODUÇÃO

A América Latina é um território de contrastes, abrigando uma vasta quantidade de

culturas que nem sempre convivem pacificamente. Suas diferenças freqüentemente se

estendem para um âmbito sociopolítico e econômico, materializando-se em relações desiguais

de poder e hierarquizações originadas ainda no período de conquista e mantidas no século

XXI.

Esse choque de culturas iniciou-se com a invasão dos europeus na América: o olhar

destes sobre os nativos com quem entraram em contato foi, conforme afirmou Tzvetan

Todorov, ou o da semelhança, que implicava a projeção de seus próprios valores aos

habitantes dessa terra “recém-encontrada”, ou o da diferença, que levava à sua inferiorização1.

A partir de ambas as perspectivas os europeus legitimavam os seus esforços para submeter à

força os povos da América. Por conseguinte, compreendidos os povos e suas culturas como

inferiores, estava justificada também a sua posição de serviçais e subalternos na sociedade,

desencadeando uma relação assimétrica em que os poucos “europeus” constituem um grupo

mais poderoso política e economicamente (e por isso também social e culturalmente) e os

outros povos que compõem o continente latino-americano formam uma maioria

marginalizada.

As tensões geradas por esse mecanismo e pelas contradições entre a realidade

desfavorável dos destituídos do poder (“o que é o mundo”) e a idealidade (“como deveria ser

o mundo”) propiciam, de acordo com o teórico chileno Fernando Aínsa, o desenvolvimento

do pensamento utópico na América Latina. Aliás, a utopia relacionada ao continente latino-

americano já data de sua conquista: os próprios europeus viam nesse território paradisíaco, tão

diferente do Velho Mundo, a possibilidade de construção de um lugar melhor para se viver, de

uma nova sociedade em um imenso espaço supostamente sem passado ou história, um Novo

1 Cf. TODOROV, T. (1999) p.50.

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Mundo “em que se plantando tudo dá”. Essa idéia do continente com um futuro sempre por

fazer foi internalizada pelos próprios latino-americanos e se fez presente nas principais fases

da história do continente como um todo, conforme assinalou Aínsa: nas independências, na

estruturação das nações e nas revoluções e rebeliões do século XX (como a Revolução

Cubana e as revoltas de cunho socialista-comunista)2.

Esta dissertação tem como um dos objetivos analisar a questão da utopia nos seguintes

romances: Huasipungo (1934), do equatoriano Jorge Icaza, e Redoble por Rancas (1970) e

La tumba del relámpago (1979), do peruano Manuel Scorza. Os três livros apresentam uma

temática em comum: a denúncia da realidade de opróbrios vivida pelos índios e mestiços

falantes de quíchua da região da serra andina. No caso específico desse local, os conflitos

culturais e socioeconômicos envolvem os “brancos”, ou os representantes da cultura européia

e ocupantes dos patamares mais elevados da pirâmide social, e os “índios”, em sua maior

parte camponeses, pastores ou mineradores. A coexistência dessas diferentes matrizes

culturais origina conflitos de toda espécie e também favorece o surgimento do desejo utópico,

compreendido como vontade de um determinado grupo social – os índios – de transformar a

realidade marcada por um sistema socioeconômico ainda semifeudal ou pré-capitalista.

Este estudo tenciona também, através da análise comparativa dos romances

selecionados, mostrar que se vislumbra uma espécie de trajetória do pensamento utópico

presente de forma implícita ou explícita em nosso corpus literário. A utopia a que nos

referimos – considerada aqui em seu “potencial revolucionário” ou como um projeto mais

concreto, refletido e consciente, diferentemente do modo como é usualmente abordada (um

sonho abstrato e impossível de se realizar) – está relacionada à capacidade de os personagens

indígenas dos romances (ou os referentes destes) refletirem e tomarem consciência do seu

papel e posição ocupada na sociedade, bem como dos problemas causados pelo sistema

2 Cf. AÍNSA, F. (1998) p. 12.

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econômico vigente no Peru e no Equador e pelo imperialismo norte-americano (fato

denunciado nas três obras). Levando em conta esse conceito de utopia, tentamos descrever a

sua trajetória ao longo dos livros: de uma “não-utopia” pensada e criada pelos índios em

Huasipungo até a tentativa de uma revolução ou pelo menos de ampliação do movimento

camponês em La tumba del relámpago, passando por momentos de uma utopia racionalizada,

mas ainda pouco planejada em Redoble por Rancas. Esse percurso do pensamento utópico

(lembrando que nos detemos na utopia dos referentes dos romances e não à dos autores e

narradores que claramente se mostram simpáticos à causa indígena) também relaciona-se ao

modo pelo qual os indígenas são vistos, ou melhor, a visão sobre os índios parece estar ligada

ao surgimento e desenvolvimento da utopia como um desejo possível de ser realizado se

planejado e projetado. Assim, enquanto os indígenas são considerados meros objetos, seres

incapazes de pensar, de agir e de terem consciência de sua história, não podem ser dotados de

pensamento utópico (como veremos em Huasipungo). Na medida em que ganham voz e

percebem a exploração que sofrem, tomam o impulso necessário para a busca do ideal,

fazendo surgir a utopia.

A fim de melhor elucidar essa hipótese e de conferir maior organização, dividiremos

este trabalho em duas grandes partes: os dois primeiros capítulos serão mais teóricos e

abordarão os conceitos utilizados na dissertação e os três subseqüentes serão de análise e

comparação dos textos literários. Dessa forma, percorreremos o seguinte itinerário:

No capítulo 1, “Sobre utopia”, procuraremos, para empreender uma fundamentação

teórica do tema, apresentar teóricos que consideram a utopia não apenas como uma imagem

ou desejos abstratos, mas como possibilidade concreta e racionalizável de mudança, uma vez

que lidaremos com obras literárias que buscam denunciar a exploração dos índios e apresentar

tentativas mais organizadas de rebelião e revolução. Sendo assim, discorreremos sobre

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algumas observações de Karl Mannheim, Ernst Bloch e do já mencionado Fernando Aínsa,

que especifica as discussões acerca da utopia na América Latina.

No segundo capítulo, “A visão sobre o indígena na América Latina”, faremos algumas

considerações sobre o “Indigenismo” e o “Neo-Indigenismo”, movimentos ou tendências

literárias que tomam os indígenas como tema central, representando-os narrativamente. Este

item da pesquisa nos auxiliará a situar os romances selecionados dentro dos seus contextos

literários: Huasipungo é considerado pela maioria dos críticos literários um romance exemplar

do Indigenismo e os dois livros de Scorza são relacionados por Tomás Escajadillo ao Neo-

Indigenismo. Tanto o Indigenismo quanto o Neo-Indigenismo focalizam sua atenção na

denúncia da realidade indígena; não podem, no entanto, ser confundidos com literatura

indígena, visto que esta se refere à produção literária e cultural feita pelos índios, com seus

próprios recursos, enquanto que aqueles são produtos de uma outra perspectiva – a do

intelectual que, a partir de seu contexto, escreve sobre os índios. Dessa forma, narrativas

indigenistas e neo-indigenistas são consideradas literaturas heterogêneas por Antonio Cornejo

Polar, uma vez que manifestam em sua condição de produção (autores e receptores dos

romances fazem parte de um mundo diverso ao dos referentes) e na sua própria estruturação

narrativa as mesmas contradições e contrastes das sociedades que as produziram. Não

tencionamos, neste capítulo, rotular as obras literárias em determinadas categorias (mesmo

porque não agradava ao próprio Scorza o termo “Indigenismo” por julgá-lo preconceituoso e

redutor, embora depois, poucos anos antes de sua morte, tenha afirmado, em entrevista

concedida ao crítico Ricardo González Vigil: “ninguém pode pretender estudar o romance

indigenista sem meus livros”3), mas tão somente contextualizá-las dentro do cenário literário ,

apontando sua importância e estreita relação com a realidade que as concebeu.

3 Apud. ESCAJADILLO, T. (1994) pp.111-112. “[…] nadie puede pretender estudiar la novela indigenista sin mis libros”.

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No capítulo 3, “Huasipungo: utopia ou desespero?”, analisaremos essa obra de Jorge

Icaza, buscando mostrar suas peculiaridades, a perspectiva sob a qual são vistos os indígenas

e de que modo isto se reflete no surgimento da utopia.

A partir do capítulo 4, “Redoble por Rancas: o surgimento de uma utopia”,

iniciaremos o estudo das obras de Manuel Scorza, as quais, apesar de se centralizarem no

Peru, podem ser muito bem cotejadas com Huasipungo por tratarem de uma mesma área ou

grupo cultural – os falantes de quíchua dos Andes. É importante salientar que Redoble por

Rancas é o primeiro romance dos cinco que compõem o ciclo intitulado La guerra silenciosa,

cujos outros componentes são: Historia de Garabombo, el invisible; El jinete insomne;

Cantar de Agapito Robles, e La tumba del relámpago. Somente selecionamos a primeira e a

última obra do ciclo para compor nosso corpus literário porque são as mais significativas para

a nossa proposta de pesquisa: todos os cinco romances possuem características próprias e

importantes, entretanto, Redoble por Rancas abre La guerra silenciosa e apresenta, como

veremos posteriormente, duas sub-histórias ou subenredos que tanto o aproximam de uma

tradição anterior, representada nesta dissertação por Huasipungo, quanto o inserem nas

inovações trazidas por Scorza ao tema indígena e ao seu tratamento nas narrativas. Já La

tumba del relámpago, analisada no capítulo 5, “La tumba del relámpago: doutrina e utopia”, é

a obra que mais se distingue das anteriores, abordando com maior clareza a tensão entre a

“tradição” ou o “arcaísmo” das formas de luta camponesas, relatadas nos demais romances do

ciclo, e a “modernização” e ampliação do movimento por meio da inserção do socialismo.

Antes de finalizarmos as considerações iniciais, é necessário ainda salientar que a questão da

modernização é assunto complexo e amplamente discutido. Em razão disso, delimitaremos

nossas discussões acerca do tema ao contexto da obra de Scorza, utilizando sobretudo as

reflexões de José Carlos Mariátegui e Cornejo Polar.

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1. SOBRE UTOPIA 1.1. O conceito de “utopia” Antes de analisarmos especificamente as obras de Jorge Icaza e Manuel Scorza,

consideramos de essencial importância tecer algumas considerações sobre a questão da

utopia, expondo os conceitos mais interessantes à nossa dissertação.

O termo “utopia” foi cunhado por Thomas Morus a partir do substantivo grego topos,

significando “lugar”, e de dois prefixos – eu, que denota uma qualidade positiva e ou, que

significa um “não-lugar”, lugar não existente. Utopia, livro publicado em 1516, relata o

encontro entre Pierre Gilles, o próprio Morus e o viajante Rafael Hitlodeu e a conversa em

que este último narra tudo o que presenciou na ilha de Utopia, descoberta em uma de suas

viagens – os costumes, a forma de governo e a estrutura social dos utopianos.

Segundo Hitlodeu, a Utopia era composta por 54 cidades idênticas, cuja capital era

Amaurotum – nome que significa “cidade nas nuvens”, “castelo no ar” –, banhada pelo rio

Anydrus, ou seja, “rio sem água”. Seus habitantes, sem exceção, trabalhavam igualmente seis

horas por dia, não ostentavam luxo, desconheciam a divisão em classes sociais (embora

existissem escravos) e a propriedade privada; tudo (até mesmo as refeições) era feito

comunitariamente. Tinham liberdade de culto religioso e seguiam um rígido código de

conduta moral: não havia bares e bordéis, além de se proibir e punir o adultério.

Todas essas características compunham um ideal de governo e de organização social

imaginado por Thomas Morus, que, através do artifício da narrativa ficcional, pôde criticar a

Inglaterra de seu tempo, sem, contudo, sofrer intensa perseguição ou represálias. De acordo

com Miguel Abensour, em seu ensaio sobre a Utopia de Morus, “a Utopia apresenta-se como

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a máscara com que se cobre um novo pensamento capaz de abalar a ortodoxia e atingir as

crenças e as instituições sobre as quais repousa a sociedade civil de seu tempo”4.

As críticas à Inglaterra de Henrique VIII são evidentes: o fato de todos trabalharem em

Utopia alude ao ócio vivido pelos nobres, eclesiásticos, e mulheres, entre outros, na sociedade

inglesa, o que acabava sobrecarregando o pequeno número de trabalhadores, cuja jornada de

serviço chegava a ser de até dezesseis horas; também o absolutismo e o autoritarismo de

Henrique VIII foram atacados por Morus, que colocou em sua ilha ideal a escolha do

governante através de eleições indiretas e a permissão da liberdade religiosa (ao reverso da

imposição de Henrique VIII para a adoção do anglicanismo).

Ao mesmo tempo em que Morus fazia essa crítica contundente às instituições políticas

e sociais de sua época, resgatando a questão do melhor regime das tradições “democráticas”

platônicas, também imprimiu um certo sentido de impossibilidade da realização de tais idéias,

ao menos levando em conta o cenário do período em que ele vivia, haja vista a onomástica

selecionada – como vimos anteriormente, “Utopia”, “Amaurotum” e “Anydrus” remetem à

irrealidade, ao sonho.

Devido ao êxito que Utopia teve na Europa, o termo que dá título à obra passa a ser

utilizado e compreendido. Segundo Jean Servier, em seu livro sobre a utopia, o termo

“designa todo projeto irrealizável e deu origem a dois adjetivos, ‘utópico’ que sublinha o

caráter impossível de um desejo, de uma intenção, e ‘utopista’ que qualifica os inspiradores

de sonhos”5. A “utopia”, em um uso menos geral, também caracteriza modelos abstratos e

imaginários de Estados mais justos e igualitários, como nas utopias sociais dos filósofos

4 ABENSOUR, M. (1990) p. 88. 5 SERVIER, J. (1995) p. 7 “[...] ‘utopía’ [...] designa todo proyecto irrealizable y dio origen a dos adjetivos, ‘utópico’ que subraya el carácter imposible de un deseo, de una intención, y ‘utopista’ que califica a los inspiradores de sueños.”

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utópicos (Fourier, Saint-Simon, por exemplo).6 É com essa nuance de Estado ou desejos

imaginários e impossíveis que o termo “utopia” foi usado até os séculos XVIII e XIX.

Essa concepção de utopia só ganha novos significados com o trabalho do sociólogo

alemão Karl Mannheim, que escreveu Ideologia e Utopia, em 1929, livro clássico sobre o

tema e crucial para os estudos posteriores, como os de Ernst Bloch e Fernando Aínsa, entre

outros.

Nessa obra, Mannheim faz uma comparação entre ideologia e utopia. Segundo ele,

ambas são orientações que transcendem a realidade, e o que as distingue são suas relações

com a ordem existente. A primeira abrange idéias que permanecem presas à ordem em que

foram concebidas, ou seja, não há tendência a modificar a realidade existente, ao passo que a

utopia tende a transformar parcial ou totalmente a ordem existente: relaciona-se a um estado

de espírito em conflito com a situação real na qual está inscrita, caminhando na direção da

reação, do rompimento com aquela para dar lugar a uma realidade mais condizente com as

das concepções dos espíritos utópicos. A diferença entre utopia e ideologia, portanto, é uma

espécie de “potencial revolucionário” prevalecente na primeira.

As mentalidades ideológicas podem se apresentar sob diversas formas, conforme o

nível de consciência do indivíduo que as concebe com relação à incompatibilidade das suas

idéias com a realidade existente. Indicaremos três dessas formas: no primeiro tipo de

mentalidade ideológica, não há consciência de que as idéias são apartadas da realidade; no

segundo tipo, que Mannheim denomina de “mentalidade hipócrita”7, existe a possibilidade de

se desvelarem as contradições entre as idéias e a realidade, mas, em razão de alguns interesses

“vitais e emocionais”8, elas não são explicitadas, mas antes, encobertas; e, no terceiro tipo, já

se tem plena compreensão da incongruência entre idéias e realidade, e, neste caso, a ideologia

é utilizada, conscientemente, como meio de enganar outrem.

6 Cf. MÜNSTER, A. (1993) p. 23. 7 MANNHEIM, K. (1986) p. 219. 8 Ibidem, p. 219.

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No que se refere às utopias, Mannheim atribui-lhes um sentido mais relativo, uma vez

que leva em consideração o grupo social idealizador das utopias e aquele representante da

ordem social em curso em determinada época e espaço. Assim, na perspectiva dos

representantes de uma dada realidade, que têm um conceito mais estreito de utopia (a de

propósitos impossíveis de serem concretizados), algumas idéias podem parecer

completamente irrealizáveis, todavia, estas não o são sob o ponto de vista de outros grupos

sociais. A distinção entre ideologia e utopia também se relativiza, já que algumas idéias são

rotuladas, muitas vezes intencionalmente, como ideológicas ou apenas utópicas no sentido

mais estreito do termo pelo grupo dominante, apesar de se mostrarem viáveis para as parcelas

da população não satisfeitas com a realidade existente.

Mannheim, devido à sua noção de utopia histórica e socialmente determinada, concebe

uma relação dialética entre a utopia e a ordem em curso, ou seja:

Cada época permite surgir (em grupos sociais diversamente localizados) as idéias e valores em que se acham contidas as tendências não realizadas que representam as necessidades de tal época. Estes elementos intelectuais se transformam, então, no material explosivo dos limites da ordem existente.9

Quando a ordem existente é rompida pelas utopias, forma-se um novo quadro, que,

posteriormente, pode vir a ser suplantado por outras utopias. Dessa forma, Mannheim enfatiza

menos um conceito abstrato de utopia do que as suas transformações históricas e sociais.

É preciso ressaltar, contudo, que, apesar de as fronteiras entre utopias e ideologias

serem bastante tênues, pode haver uma mescla de elementos utópicos e ideológicos contidos

nos movimentos10, se levarmos em conta o fator “grupo social”. De acordo com Mannheim, o

melhor critério de distinção entre ideologia e utopia é a “realização”, isto é: são consideradas

utópicas as idéias que puderam ser realizadas, ou que foram de algum modo viáveis na

9 MANNHEIM, K. (1986) p. 223. 10 A utopia da burguesia ascendente no período pós-feudal era a da “liberdade”. Esta era uma utopia na medida em que se realizou em parte, como no sentido de certa liberdade de pensamento, por exemplo. Contudo, houve também elementos ideológicos no que se refere aos itens não realizados efetivamente, como a idéia de liberdade atrelada à de igualdade. Cf. MANNHEIM, K. (1986) p. 227.

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construção de uma ordem social diferente. Já as que se mostraram completamente

irrealizáveis são ideológicas.

Consoante as teorias de Mannheim, que relacionam as utopias aos estratos sociais e à

situação histórico-social na qual estavam inscritos, podemos ainda destacar um importante

conceito: o de “mentalidade utópica”.

A mentalidade utópica refere-se a um momento em que o elemento utópico permeia a

mentalidade dominante de uma época sob todos os aspectos, “quando as formas de

experiência, de ação e de visão estejam organizadas em concordância com este elemento

utópico”11. A mentalidade utópica não se limita às idéias utópicas, mas se estende a toda uma

maneira de pensar e agir – o elemento utópico, de certo modo, “dita” as perspectivas pelas

quais se analisa a situação em que vive um grupo social de determinado tempo.

Mannheim identifica quatro tipos de mentalidade utópica, apontando suas

transformações e motivações ao longo da história. São eles: o quiliasma anabatista; a idéia

liberal-humanitária; a idéia conservadora, e a utopia socialista-comunista.

O quiliasma dos anabatistas

De acordo com Mannheim, o quiliasma dos anabatistas pode ser reconhecido como o

“primeiro passo em direção aos movimentos revolucionários modernos”12. Com Thomas

Münzer e os anabatistas, idéias (ligadas à religião) anteriormente relacionadas ao mundo

extraterreno inclinaram-se para a realidade terrena, atraindo as classes mais oprimidas da

sociedade.

Foi nesse estágio, pós-medieval, que essas classes mais baixas originaram a

mentalidade utópica, revelando, ao mesmo tempo, uma gradativa consciência de sua

importância política e social, seu poder e seu papel no desenvolvimento da sociedade como

11 MANNHEIM, K. (1986) p. 232. 12 Ibidem, p. 235.

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um todo. Em razão disso, suas “tensões” também foram se tornando mais concretas e mais

urgentes, o que os impeliu à ação.

É preciso ressaltar que, segundo Mannheim, não foram as “idéias” que incitaram os

homens às ações revolucionárias, como a Guerra Camponesa liderada por Münzer, mas “as

energias extático-orgiásticas”13, já que a “experiência do místico é puramente espiritual”14. A

concepção de tempo, na mentalidade quiliástica, está muito ligada ao presente imediato, não

se preocupa com a construção do futuro e nem com o acontecimento passado – o essencial é o

evento imediato, o “aqui e agora”. Dessa maneira, “o quiliasma encara a revolução como um

valor em sim mesmo, não como um meio inevitável de se atingir um fim racionalmente

estabelecido, mas como o único princípio criador do presente imediato”15.

Embora nessa forma de mentalidade ainda não existisse uma forte racionalização, no

sentido de programação e planejamento (forte conexão com o presente e a concepção de

revolução como um fim em si mesma), ela apresenta um conteúdo utópico na medida em que

busca a realização dos desejos e sonhos transcendentes à realidade na qual está inscrita,

demonstrando já uma consciência sociopolítica nascente.

Idéia liberal-humanitária

Em oposição à mentalidade quiliástica, não era o êxtase ou a energia espiritual que

moviam as atividades na utopia do humanitarismo liberal, mas as “idéias”. Estas, segundo

Mannheim, fermentaram as ações do período imediatamente anterior e posterior à Revolução

Francesa.

A idéia humanitária moderna encontra na burguesia e na classe intelectual seus

principais entusiastas e estende-se do âmbito político ao cultural, passando pelo filosófico,

13 MANNHEIM, K. (1986) p. 237. 14 Ibidem, p. 239. 15 Ibid, p. 241.

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ampliando seu campo de atuação e provocando uma série de modificações na realidade da

época, como a ruptura com a visão de mundo clerical teológica16.

A percepção do tempo aqui também apresenta uma mudança se compararmos com a

da mentalidade utópica quiliástica: o tempo histórico é visto como um progresso, como uma

evolução linear. Essa idéia de progresso contínuo e unilinear originou-se do ideal burguês de

“razão”, que se tornou uma espécie de objetivo a ser alcançado – acreditava-se que a

realidade, ainda em estado de imperfeição, caminhava gradativamente ou “progredia” em

direção ao mais racional, a um estado mais próximo da perfeição. A partir desse ponto de

vista, a revolução era um estágio, um passo de transição em busca da perfeição, da razão;

qualquer estágio inserido nessa progressão gradual era um degrau nesse processo e constituía

uma fração de um quadro histórico do período.

Em decorrência dessa idéia de progresso, as esperanças e desejos da mentalidade

utópica liberal-humanitária encontravam-se no apogeu da evolução histórica e, nesse sentido,

nenhum evento poderia ocorrer subitamente (como se pensava na mentalidade quiliástica),

mas seria sempre parte do desenvolvimento histórico, de um constante processo de “vir a ser”;

o passado e o presente eram menos importantes do que o futuro, que se construía, entretanto, a

partir daqueles. Essa perspectiva revelava também o descontentamento dos grupos médios da

sociedade (a burguesia) com o poder dos estratos dominantes (a nobreza), justificado pela

herança erigida no passado.

Em oposição à mentalidade quiliástica, a idéia liberal-humanitária, portanto, enfatizou

o racional e o ideal de progresso, além de basear-se firmemente na cultura intelectual. Suas

idéias transcendentes à realidade como existia na época e o questionamento do poder

dominante foram combatidos pela mentalidade conservadora, sobre a qual discorreremos a

seguir.

16 Cf. MANNHEIM, K. (1986) p. 245.

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Idéia conservadora

A mentalidade conservadora não reconhece problemas na realidade sobre a qual

impera e, portanto, não pode ser provida de utopia. Sob o ponto de vista desse tipo de

mentalidade, sua realidade – seu poder – está em plena consonância com a ordenação do

mundo e não precisa ser modificada, não havendo necessidade também, inicialmente, por

parte dos conservadores, de grandes teorizações ou da ênfase nas “idéias”, como acontecia na

mentalidade liberal-humanitária.

A mentalidade conservadora somente se agita e se questiona quando sofre os ataques

dos estratos opositores com suas idéias e desejos transcendentes e contrários à situação

cômoda e harmônica para os conservadores. Dessa maneira, a mentalidade conservadora age

mais como uma contra-utopia, diferentemente das outras formas de mentalidade.

Confrontando-se com a mentalidade liberal, os conservadores passam a taxar a idéia

daquela como abstrata, feita apenas de imagens, enquanto que o conceito conservador de

“idéia” seria mais concreto, inseparável da realidade viva do momento. Devido a esse

conceito de idéia e à sua posição sociopolítica, os conservadores, muito mais do que na utopia

liberal ou na quiliástica, apegam-se à realidade, que a seu ver representa valores positivos.

A noção e a valoração do tempo na mentalidade conservadora também se contrapõem

às do liberalismo e do quiliasma. No liberalismo, o futuro era o momento principal, o zênite

da progressão histórica; no quiliasma, não existia essa noção de continuidade temporal e

histórica; já no conservadorismo, ao passado era dada a maior importância, uma vez que

legitimava o seu sentido de determinação da realidade, carregada de um “valor positivo e

nominal”17, e edificada aos poucos a partir daquele. O conservador considera o presente

“simplesmente como o último ponto atingido pelo passado”18.

17 MANNHEIM, K. (1986) p. 259. 18 MANNHEIM, K. (1982) p. 128.

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Como pudemos verificar, embora Mannheim tenha considerado a mentalidade

conservadora uma forma de mentalidade utópica, não podemos caracterizá-la como uma

utopia em si. Na realidade, talvez fosse mais pertinente pensá-la como uma contra-utopia,

uma vez que não existe incongruência e insatisfação dos conservadores com a ordem

existente; há antes o desejo de fazê-la perdurar, lutando contra os ataques dos estratos

ascendentes, opositores – o desejo da mentalidade conservadora é a de manter a realidade.

Utopia socialista-comunista

Segundo Mannheim, a utopia socialista, por ser de origem mais tardia, apresenta uma

mescla de várias formas de utopia já surgidas19: semelhante ao liberalismo, ela crê nas

realizações dos desejos transcendentes num futuro, todavia, aposta em um momento claro em

que elas acontecerão – após a queda do capitalismo -; e assim como no liberalismo, também

se contrapõe ao conservadorismo do “aqui e agora” perfeito.

A mentalidade socialista, contudo, considera as “idéias” do liberalismo muito

abstratas, como sonhos e desejos por demais imaginários. Para a utopia socialista, é essencial

analisar as possibilidades e as “condições reais (neste caso econômicas e sociais) sob as quais

a realização de desejos possa tornar-se de alguma forma operante”20. O futuro continua sendo

o tempo e o espaço da consecução das idéias transcendentes, mas, contrariamente à idéia

liberal, a utopia socialista examina as circunstâncias para certificar-se da execução dos seus

planos, conferindo uma concretude maior às suas idéias. Por meio desse mecanismo, a “idéia

está sendo constantemente corrigida e tornada mais concreta à medida que o presente se

adianta para o futuro”21. Tanto o passado quanto o presente e sua gama de condições sociais e

econômicas interferem no futuro e na possibilidade de realização dos projetos.

A mentalidade quiliástica, que ressurgiu nos movimentos anárquicos, também foi

combatida pelo socialismo, que tinha uma rígida organização, suplantando o modo de agir

19 MANNHEIM, K. (1986) p. 263. 20 Ibidem, p. 264. 21 Ibid, p. 270.

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pouco coordenado dos anarquistas. A atitude revolucionária não se atém mais aos impulsos

casuais, despreocupados com o momento em que aflorarão; ao contrário, analisa e projeta um

ponto favorável para o ataque.

De acordo com Mannheim, as mentalidades utópicas sofreram um processo de

mudança no qual as utopias caminhavam para uma “aproximação maior ao processo

histórico”22. No quiliasma, havia um alheamento ao seu “estar no mundo”; nem o passado e

nem o futuro eram importantes (o essencial era o momento exato em que algum evento

aconteceria subitamente), e a revolução não tinha um fim maior além de si mesma; no

liberalismo, existia a noção de progresso das idéias e do mundo, o que levou a uma

valorização do futuro como o estágio da perfeição; todavia, as idéias ainda eram pouco

concretas se comparadas às do socialismo, que priorizou a análise das condições de uma

determinada situação para tentar antecipar a possibilidade de êxito dos seus projetos. Já

algumas idéias do conservadorismo, conforme Mannheim, eram seguidas por todas as classes

que tinham realizadas suas utopias, isto é, mesmo os liberais e os socialistas, quando tomaram

as rédeas do poder, adotaram, ao menos em parte, alguns valores conservadores, cedendo

espaço ao aparecimento, talvez, de novas utopias.

Para Mannheim, assim, o processo de surgimento e “morte” das utopias vinculava-se

diretamente aos interesses das classes sociais: forma-se, como já foi citada, uma relação

dialética entre a utopia e o processo histórico. Nesse sentido, só podemos tratar de utopia

explicitando a posição dos grupos sociais envolvidos e a capacidade deles de “pôr em prática”

os seus pensamentos e desejos, o que distancia esta visão teórica daquelas preponderantes até

os séculos XVIII e XIX.

Outro importante filósofo estudioso da utopia é o também alemão Ernst Bloch, cujas

teorias apresentam alguns pontos em comum com as de Mannheim, sendo que o primeiro

22 MANNHEIM, K. (1986) p. 272.

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escreveu o seu célebre livro, O princípio esperança, em 1959, trinta anos após o lançamento

de Ideologia e Utopia. Ambos rechaçam a utilização do termo “utopia” meramente como

fantasia ou um espaço ideal inexistente, imaginação incapaz de ação efetiva, desprovida de

intenção ou energia, para uma transformação em busca da satisfação de desejos e vontades.

Bloch lança uma série de elementos novos em sua teoria sobre utopia que, para ele, “é,

em primeiro lugar, um topos da atividade humana orientada para um futuro, um topos da

consciência antecipadora e a força ativa dos sonhos diurnos.”23

Os “sonhos diurnos” ou “sonhos acordados”, opostos aos sonhos noturnos da

psicanálise de Freud, não se relacionam com um passado acabado, com o retorno de uma

ancestralidade perdida, mas estão comprometidos com o futuro, com “imagens de desejo”,

com a imaginação que planeja formas de diminuir os problemas e as carências do presente. É

a partir desses sonhos acordados que vão se constituindo as utopias.24 Os sonhos acordados

apresentam uma série de características, como:

• O sonho acordado não oprime: o “eu” pode controlar suas idéias, iniciando-as e

finalizando-as quando desejar. Ao passo que, no sonho noturno, o “eu” não tem

controle sobre seu inconsciente, não podendo também prever o conteúdo desse sonho,

o sonho diurno tem seus componentes e imagens construídos pelo “eu”.

• No sonho noturno, o “eu” opera como censor, camuflando as imagens do seu desejo,

exercendo uma censura moral, mesmo que com algumas defasagens. Já no sonho

diurno, o “eu” não censura os anseios, não é cerceado por um “ego moral”25 e mostra-

se mesmo inflexível frente aos empecilhos com que possa deparar-se.

• O sonho desperto não é necessariamente individual; ele tem “amplitude humana”26.

Quando o “eu” amplia o horizonte de desejos de um espaço micro para um macro e

23 MUNSTER, A. (1993) p. 25. 24 Cf. FURTER, P. (1974) p. 83. 25 BLOCH, E. (2005) p. 92. 26 Ibidem, p. 93.

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ultrapassa a introspecção, o seu sonho diurno aponta para uma melhoria geral. Os

anseios por um mundo melhor podem surgir de um “eu” que exteriorizou seus

pensamentos e que entrou em consonância com outros “eus”.

• O sonho diurno está sempre orientado para a realização, para a concretização. Os

desejos são seu ponto de partida, mas, em oposição aos dos sonhos noturnos, buscam a

realização. O sonho desperto “projeta as suas imagens em coisas futuras, de forma

alguma a esmo, mas passível de ser direcionado, por mais intempestiva que seja a

imaginação, podendo ser intermediado pelo objetivamente possível”27. Os conteúdos

do sonho acordado não necessitam de interpretação, como os dos sonhos noturnos,

mas revelam a busca pela concretização em um futuro, podendo, para isso, ser

refletidos e planejados, como possibilidades concretas.

Ainda relacionado aos sonhos diurnos, Bloch lança mais um elemento: o “ainda-não-

consciente”. Diferentemente do inconsciente tão estudado por Freud, o “ainda-não-

consciente” não se relaciona com o reprimido ou com o obliterado, mas refere-se ao novo, a

algo futuro, sendo por isso comparável aos sonhos despertos. Ambos trabalham para a

produção do novo, do nascente e, conforme Bloch, eles são indispensáveis para a concepção

de todas as “situações produtivas inéditas” - é o “sonhar para frente”.

Para que surja uma função utópica propriamente dita, porém, é necessário que o

“ainda-não-consciente” comece a tomar consciência de si como ação, como ato em

“emergência” e “ciente” de seu próprio conteúdo. Essa concretização ou a exteriorização

crucial para a geração da função utópica, o alimento para a fundamentação e consecução dos

sonhos diurnos, só se produz, consoante Arno Münster, após um estímulo ou “impulso”, que

pode ser tanto do âmbito psicológico quanto do somático: o novum, o “sinal despertador da

consciência”28, ou a fome, ou seja, a carência, a falta.

27 BLOCH, E. (2005) p. 100. 28 MÜNSTER, A. (1993) p. 29.

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Segundo Pierre Furter, estudioso da obra de Bloch, a fome, em termos somáticos, leva

o homem ao acordar de consciência, porquanto desperta a sua condição de carência, de falta e,

ao mesmo tempo, também a possibilidade de satisfazer essa carência (busca de alimento para

satisfazer a fome fisiológica, além da falta ontológica). Além disso, a consciência da fome

conduz a uma comunicação, interação entre os homens: podem-se formar grupos para facilitar

a procura de alimentos, para possibilitar a sua troca, entre outras coisas. Em suma, a fome

acaba por obrigar os indivíduos a tentarem solucionar seus problemas, havendo sempre a

opção de fazê-lo em comunidade.

O problema da fome, então, desencadeia-se pelo “impulso”, que segundo Münster

“procura demonstrar a existência de um ‘ainda-não-consciente’”29. É um impulso que vai

catalisar o desejo, o qual, por sua vez, caminhará para um possível cumprimento do que é

desejado (pela carência sentida com a fome). Todo esse processo constrói a consciência

utópica e, por conseguinte, a “produtividade criadora”.

Essas teorias de Bloch servirão muito ao nosso trabalho, na medida em que nos dão

instrumentação para compreender, em certos aspectos, como o contexto latino-americano foi e

é fértil para o “sonhar-para-frente”, para o “sonho diurno” impulsionado pela fome, carência.

Fernando Aínsa, teórico melhor abordado no próximo item, é muito afeito a essa proposição,

empregando a concepção blochiana de utopia em sua obra.

1.2. A utopia na América Latina

Neste item, discorreremos sobre a utopia especificamente na América Latina e, por

isso, utilizaremos as reflexões do chileno Fernando Aínsa, um dos grandes estudiosos do

assunto inserido no contexto latino-americano.

29 MÜNSTER, A. (1993) p.31.

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Consoante Aínsa, a América Latina sempre foi marcada pela tensão utópica, que se

apresenta como a discrepância entre o “ser” da sua realidade e o que “deveria ser” ideal. Essa

tensão acompanhou e fez parte de todo o processo histórico da América Latina desde a

chegada dos europeus. Aínsa chama a atenção para um fato peculiar – a reduzida produção do

gênero utópico em língua espanhola, face a uma maior profusão de utopias escritas em

francês, inglês, italiano e alemão – o que pode ser explicado, segundo o autor, pela logo

inicial dialética (a partir do confronto entre os dois universos opostos – Europa e Américas)

entre as teorias européias para a construção de um mundo melhor e a práxis, ou seja, a

aplicação dessas teorias, praticadas e vivenciadas por espanhóis e portugueses em terras

americanas, diferentemente das simples teorizações utópicas abstratas que ganharam espaço

na Europa da época dos “descobrimentos”.

Foi sendo construída, desde a sua gênese, no imaginário europeu, uma imagem de

América extremamente imaginativa e utópica. A terra paradisíaca e cheia de riquezas naturais

passou a abrigar os mais variados projetos utópicos, que vão desde a busca pelo “El Dorado”,

pela fonte da juventude, até as missões jesuíticas e as posteriores utopias dos próprios latino-

americanos, que internalizaram a crença em uma América “continente do futuro”, da

esperança, do “em se plantando tudo dá” – idealizações de “nossa América” que muitas vezes

foram sepultadas em decepções.

Essas características exclusivas à edificação da imagem da América foram forjadas a

partir da confluência de dois fatores que permitiram tal construção: espaço e tempo30. A

América, conforme sugere a própria alcunha recebida de seus “descobridores” – Novo Mundo

–, tornou-se território propício “à objetivação da utopia”31, sendo considerada uma “tábula

rasa” em que os europeus poderiam testar projetos de organização política e social frustrados

na Europa.

30 Cf. AÍNSA, F. (1990) p.21 31 AÍNSA, F. (1990) p.23

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Como “Novo Mundo”, a América não tinha um passado histórico. No grande

confronto entre culturas díspares, o conquistador via, muitas vezes, o “outro”, o indígena, a

partir da diferença, o que implica a inferiorização do diferente32, cuja história não é

considerada. Essa “inexistência” de passado e de história, conjugada à idéia de que havia

ainda um tempo (um futuro) por fazer, e de que a América era um espaço ainda não explorado

– que se mostrava, à primeira vista, rico e fértil – proporcionaram os ingredientes necessários

para que a América se tornasse o terreno ideal para a experimentação prática dos projetos

utópicos europeus. A idéia de América, terra das utopias, construída pela Europa, foi

internalizada, mais tarde, inclusive pelos latino-americanos e acompanhou todo o seu

processo histórico, sobretudo em cinco momentos de grande tensão utópica listados por

Fernando Aínsa: “no encontro e descobrimento; na conquista e colonização; na

Independência; na consolidação dos estados nacionais, e na época contemporânea”33.

No encontro e descobrimento

A idéia de América foi edificada, à época do “descobrimento”, em 1492, a partir de

mitos clássicos e medievais que apresentavam fortes “pulsões utópicas” – lendas sobre

lugares perfeitos e de natureza abundante. A marcha rumo ao desconhecido da civilização

ocidental sempre caminhou para o Oeste, onde, em algum rincão, encontravam-se os locais

legendários: Campos Elíseos, Ilhas Bem-Aventuradas, entre outros variados jardins e ilhas

afortunadas sempre empurradas em direção ao Oeste, à medida que as explorações e as

viagens iam desvendando as terras ignoradas pelos europeus.

Conforme Aínsa, “a busca pelo utópico é geográfica”34 e aliou interesses econômicos

e comerciais com expansão religiosa e a crença e busca pelas citadas regiões lendárias, num

movimento que culminou com o “descobrimento” das Américas por Colombo. O contato (e o

32 Cf. TODOROV, T. (1999) p.50 33 AÍNSA, F. (1990) p.24 34 Ibidem, p.25

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confronto) de Colombo com as ilhas paradisíacas e seus habitantes pareceram apenas

confirmar o que ele esperava encontrar, alimentando com um fato “concreto” seu imaginário

clássico-medieval: nesse período, a fantasia não se desfez com o confronto com a realidade,

como nos mostram os relatos e crônicas européias sobre as novas terras, sempre repletas de

monstros e seres saídos dos bestiários medievais e das histórias da Antigüidade.

Essas crônicas difundiram-se na Europa e tiveram importante influência no surgimento

do gênero utópico (Utopia, de Thomas Morus, é um exemplo), que foi se desenvolvendo

concomitantemente à conquista e colonização da América, num processo dialético de teoria e

prática, como já dissemos no início deste item: enquanto a América vivia um intenso

momento de exploração, recebendo expedições de reconhecimento e conquista, a Europa

parecia experimentar uma sensação de potencial concretização de ideais de espaço e

sociedades melhores; daí o surgimento do gênero utópico. Não se conseguia dissociar, nesse

momento, o mito ou a sua transposição para as terras americanas da tentativa palpável de

construção de uma utopia35.

Assim, como um espaço remoto e a ser explorado pelos europeus, a América teve seu

“nascimento” permeado pelas crenças e tensões utópicas européias que marcaram seu

processo histórico e, por conseguinte, a construção de sua identidade.

Na conquista e colonização

A simples transposição do imaginário europeu às terras americanas teve de render-se à

realidade que se apresentou: a imagem do paraíso terrestre, de riquezas naturais abundantes,

foi sendo esfacelada pela violência da conquista, e formou-se uma incongruência entre o que

“deveria ser” e a realidade.

35 Cf. AÍNSA, F. (1990) p.27

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Diante dessa situação, o europeu procurou intervir e restabelecer a ordem através da

aplicação de projetos utópicos na América, buscando erigir um “paraíso” neste mundo, e por

suas próprias mãos o “homem descobre e assume sua capacidade demiúrgica graças ao

descobrimento da América”36. As utopias sociais cristãs dos missionários espanhóis (como

Motolinía, Bernardino de Sahagún e Frei Bartolomé de las Casas) exemplificam essa nova

atitude.

Questionando a violência e a cobiça espanholas bem como a sociedade européia em

geral deturpada, os missionários espanhóis de ordens mendicantes (em sua maioria grandes

etnólogos, conhecedores dos costumes e línguas indígenas) começaram a idealizar e a tentar

experimentar concretamente projetos de sociedades “indocristãs” nas colônias, onde

evangelizariam os índios ao mesmo tempo em que resgatariam o modo e a organização de

vida do Cristianismo primitivo – vida simples, homens honestos e trabalhadores.

No caso dessas utopias, os indígenas são vistos segundo a perspectiva da alteridade

ratificada pelas pesquisas dos padres evangelizadores. Estes consideravam os habitantes

autóctones “bons selvagens”, dóceis, simples e inocentes, as “tabulas rasas” ideais para a

aplicação dos preceitos cristãos, e, portanto, para a consecução de sua utopia – sociedades de

“estado natural”, contrapostas às européias, caracterizadas por um modo de vida corrompido

pela ambição e pela cobiça e, portanto, já muito apartado dos ideais cristãos.

Percebe-se, nesse período, de acordo com Aínsa, a intrínseca relação entre teoria e

prática, em que uma influencia a outra: um exemplo é a Utopia, de Morus, que, como já

dissemos, buscou inspiração na “descoberta do Novo Mundo”. Alguns aspectos dessa obra,

por sua vez, foram retomados por Vasco de Quiroga em seus “Hospitais-pueblo”37, que

começaram a ser implantados em 1532, sobreviveram por quase trinta anos e primavam pela

igualdade, solidariedade e simplicidade. Poderíamos citar também outros casos, como o de

36 AÍNSA, F. (1998) p.16. “[...] el hombre descubre y asume su capacidad demiúrgica gracias al descubrimiento de América.” 37 Ibidem, p.156

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Bartolomé de las Casas e o das missões e reduções no Paraguai, na Argentina e no sul do

Brasil, mas o essencial e comum a todas as utopias sociais cristãs é a possibilidade que os

missionários encontraram de aplicar concretamente suas idéias utópicas em um espaço real

com pessoas reais, organizando-o da forma como “deveria ser” e não como era na realidade

espanhola.

Na independência

Com o sufocamento das utopias cristãs sociais, que se tornaram um empecilho aos

interesses econômicos da Coroa Espanhola, houve um abrandamento do pensamento utópico:

a surpresa e a esperança que o desconhecimento sobre o “Novo Mundo” trouxe para os

europeus perderam-se com a realidade imposta em grande parte por estes mesmos e o Império

Espanhol passou a controlar severamente a exploração das colônias através da administração

centralizada e da Inquisição, o que sufocava a criação de projetos para um futuro melhor.

Conforme Aínsa, o Iluminismo trouxe novamente à tona os pensamentos utópicos.

Houve tanto uma espécie de retomada do ideal do “estado natural” caracterizado pela teoria

de Rousseau sobre o “contrato social”, que relembra o mito do “bom selvagem americano”,

quanto a inspiração oriunda dos textos provenientes da Revolução Francesa e da

Independência dos Estados Unidos. A América começava a se desligar das utopias que se

construíam como contraposição à Europa e a buscar uma utopia própria, embora ainda

utilizasse como modelos os pensamentos teóricos europeus. Projetavam-se as “utopias para

si”, não mais as utopias dos “outros”.

Os ideais utópicos de igualdade e liberdade para todos afirmaram-se com todo o vigor

nos períodos da revolução e das independências (1810-1825), em que a incongruência entre

realidade e idealidade (o desejo de um futuro pós-revolucionário melhor) foi a tônica,

propiciando o surgimento da imaginação utópica efervescente, que clamava por mudanças. Os

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sonhos diurnos blochianos repletos de desejos, planos e capacidade de reflexão para construir

o futuro receberam o impulso necessário para transformarem-se em ação efetiva e figuras

emblemáticas como Simón Bolívar detinham tanto os desejos utópicos quanto a capacidade

de ação revolucionária a favor da América liberta e unida.

Mas, o momento imediatamente posterior a esse – a edificação das novas nações

latino-americanas – também acolheu projetos utópicos, como veremos a seguir.

Na consolidação dos estados nacionais

Pouco depois das independências e da onda de esperança que as acompanhou, a

América Hispânica novamente depara-se com uma realidade não condizente com os sonhos

utópicos – golpes de estado instauram ditaduras; surgem conflitos entre países vizinhos por

disputa de territórios; interesses políticos individuais sobrepujam as necessidades do povo

(presença marcante dos caudilhos), e intervenções diretas da Inglaterra e dos Estados Unidos

destroem por completo o sonho da unidade e da igualdade. O próprio Bolívar, em seus

últimos dias, mergulhou na distopia ao presenciar o caos instaurado em sua América.

Todavia, Aínsa ressalta que, entre 1865 e 1914, a América volta a ser a “terra

prometida” devido à chegada dos imigrantes: “a função utópica nesse período é mais espacial

e geográfica do que ideológica”38. O espaço americano é idealizado e abrem-se novos

caminhos a serem explorados para atrair os estrangeiros, que ajudariam a compor os estados

nascentes. Assim, a terra onde “em se plantando tudo dá” retoma as nuances de sua antiga

imagem da época dos “descobrimentos”.

É interessante notar também que, como sempre ocorre, a tensão utópica é alimentada

pela situação de miséria, opressão e despotismo que se instalou na América, na medida em

38 AÍNSA, F. (1990) p.35

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que se confronta diretamente essa realidade com os desejos de transformá-la. A partir dessa

condição surgem idéias utópicas de repúblicas democráticas mais igualitárias.

Na época contemporânea

É no século XX, quando eclodem na América Latina diversas revoluções e programas

para a organização de uma sociedade mais justa, que se consolidam as exigências de uma

utopia verdadeiramente latino-americana, uma utopia “para si”, deixando de lado as utopias

construídas pelos europeus para a América. É nesse estágio que os latino-americanos

reivindicam as utopias para a sua própria melhoria, marcando, ao mesmo tempo, o

amadurecimento de um pensamento mais autônomo, mais voltado aos seus próprios contexto

e peculiaridades.

Nos anos de 1960, por exemplo, no Brasil, o discurso utópico apresentou-se nos

projetos da Igreja Católica, como a Teologia da Libertação, que ganhou espaço

principalmente no Nordeste, em defesa dos oprimidos, esmagados pela pobreza e pela

exploração socioeconômica exercida pelos grandes latifundiários.

Outra fonte, ainda mais significativa, de utopias foi a das teorias socialistas marxistas

que nortearam verdadeiras revoluções, como a de Cuba, e que, durante muito tempo, foram

importantes componentes de inúmeras rebeliões e revoltas em toda a América Latina (uma

delas foi retratada em La tumba del relámpago, de Manuel Scorza). Todos esses processos

revolucionários renovaram a esperança e também a crença de uma América Latina como

“continente do futuro” (recuperando novamente sua imagem da época dos “descobrimentos”),

o local que acolhe sonhos de uma vida melhor e projetos revolucionários que malogravam na

Europa Ocidental.

Fernando Aínsa, retomando muitos pontos da teoria blochiana, como a de pulsão ou

impulso, para dissertar sobre a questão utópica especificamente na América Latina, oferece-

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nos condições para melhor compreender a tensão utópica que acompanhou de perto todo o seu

processo histórico (além do desenvolvimento de um pensamento mais autônomo por parte dos

próprios latino-americanos que ladeou o percurso da utopia – desde sua condição de utopia

dos outros até a de utopia de América) e as rebeliões e revoltas que sempre o permearam,

como as dos camponeses indígenas retratadas por Jorge Icaza e Manuel Scorza, nossos

objetos de estudo.

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2. A VISÃO SOBRE O INDÍGENA NA LITERATURA ANDINA

Se considerarmos uma concepção monolítica de identidade, baseada na fictícia

herança Hispânica (branca e européia), propalada pelas camadas dominantes das sociedades

hispano-americanas, o indígena, marginalizado na maior parte das vezes, desempenha, na

América Hispânica, o papel da alteridade, do “outro” (embora seja, quantitativamente, a

maioria étnica em muitas nações hispano-americanas). Por outro lado, ao se inverterem os

papéis, o europeu e seu descendente tornam-se o “outro”, o que cria uma nova oposição e

mantém a dicotomia em que o hispano-americano se posiciona e se enxerga ainda em relação

ao “dominador”. A questão, no entanto, é mais complexa se pensarmos que não existem

apenas dois lados envolvidos: há em jogo uma gama imensa de valores, etnias, influências

culturais, interesses políticos e econômicos, e, a partir de cada uma dessas variáveis, pode ser

tecido um novo e diferente discurso.

Assim, o indígena (andino, falante de quíchua, o tema escolhido para o nosso estudo)

foi retratado, na literatura, de formas variadas, de acordo com o interesse e com a intenção de

cada autor – este, por sua vez, contextualizado em determinada época e espaço. Veremos mais

tarde que, conforme o modo como os indígenas são representados nos romances, há o

surgimento ou não do pensamento utópico, que depende, como esclarecemos no capítulo

anterior, da capacidade de “sonhar para a frente” ou da existência de um “potencial

revolucionário” consciente do desejo de mudança face à realidade desfavorável.

Nos itens a seguir, focalizaremos algumas dessas tendências de representação

narrativa dos indígenas, sobretudo os denominados “Indigenismo” e “Neo-Indigenismo”

andinos.

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2.1. Indigenismo andino

As narrativas indigenistas, em geral, tiveram espaço em diversos países, como Peru,

Bolívia e Equador, na primeira metade do século XX, sendo “herdeiras”, consoante a maioria

dos críticos e estudiosos do tema, dos romances chamados “indianistas”, em voga

principalmente na segunda metade do século XIX.

Tanto os romances indianistas quanto os indigenistas têm o índio como tema,

representando-os, no entanto, de maneira diferente: no primeiro, este aparece como elemento

exótico, visto, segundo Cláudia Luna, como um “um ser abstrato, que perde sua categoria

social e humana para converter-se em objeto do passado, ou em mera realidade étnica”.39 Os

romances indianistas apresentam ainda, conforme Cornejo Polar, “ideologia oligárquica, com

componentes racistas”40, trazendo, assim, uma crítica ética em relação a um sistema

exploratório cruel, mas não social, já que existe ainda uma estreita proximidade com a

mentalidade patriarcalista, que se compadece do indígena, mas nem sempre questiona

plenamente os grandes proprietários de terra e a posição de inferioridade ocupada por aqueles.

Aliadas a essas características gerais, os diversos romances indianistas podem

apresentar diferentes formas de lidar com o tema, propondo respostas e soluções para a

presença e o destino das populações indígenas na construção das nações hispano-americanas.

Assim, romances como Cumandá, do equatoriano Juan León Mera, publicado em 1879,

oferecem uma visão dual sobre os indígenas, que podem ser “bons selvagens” se tocados

pelos ensinamentos da religião católica, cuja aprendizagem confere boa índole e costumes

civilizados – já que, como “tábulas rasas”, poderiam absorver os conhecimentos necessários

para abandonar, em parte, a barbárie ou permanecer nela quando não evangelizados. A

proposta de León Mera era a de conferir um sistema teocrático à República do Equador,

39 LUNA, C. (1994) p.113. 40 CORNEJO POLAR, A. (1994) p.727.

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lamentando a expulsão dos jesuítas do território equatoriano, cuja missão civilizatória ficara

ainda inconclusa. A ausência dos jesuítas abria caminho para a cruel exploração dos indígenas

por parte de muitos brancos.

Embora León Mera faça esse tipo de questionamento, fica evidente (em Cumandá e

em outros romances indianistas, como Tabaré, por exemplo) a necessária e indiscutível

posição subalterna dos índios, pois, mesmo os cristianizados devem ser submissos aos

brancos. León Mera cria a imagem de uma sociedade nacional que pode condenar a violência

excessiva dos latifundiários, porém, como bem observou o célebre crítico literário peruano

Antonio Cornejo Polar, “funciona sob uma ordem vertical que tem como razão justificadora a

religião”41. O índio de Cumandá, em realidade, não protagoniza nem mesmo o romance

(tônica de outras narrativas indianistas, que mostram com clareza a impossibilidade da

existência de um indígena autônomo e integrado de forma igualitária nas sociedades latino-

americanas em formação). Segundo Doris Sommer, especialista em literatura latino-

americana, “não é absolutamente sobre eles [os índios de Cumandá, Tabaré e Enriquillo],

mas sobre brancos que escrevem [Juan León Mera, Juan Zorrilla de San Martín e Manuel de

Jesús Galván], sobre uma tela de fundo pagã”42. Os indígenas não ocupam e nem podem

ocupar posição de destaque nas sociedades nascentes, como enfatizam os escritores do

Indianismo: a imagem mais positiva dos índios por eles construída é a de bons criados, cuja

cristianização garante ao menos um caminho para a civilização.

O Indigenismo lançou uma série de mudanças em relação ao Indianismo que não se

referem apenas à literatura, como advertiu o sociólogo peruano José Carlos Mariátegui, cujas

reflexões sobre os indígenas são ainda hoje extremamente relevantes: “O problema indígena

tão presente na política, na economia e na sociologia não pode estar ausente da literatura e da

41 CORNEJO POLAR, A. (1994) p.129. “[...] funciona bajo un orden vertical que tiene como razón justificatoria la religión [...].” 42 SOMMER, D. (2004) p.300

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arte”43. O Indigenismo literário, portanto, floresceu juntamente com as reflexões acerca da

situação dos índios nas sociedades hispano-americanas (sobretudo as andinas e, em especial,

as do Peru, Equador e Bolívia), questionando a organização socioeconômica que os oprime.

Vale ressaltar que nos ocuparemos, nesta dissertação, apenas do Indigenismo literário,

discorrendo sobre suas peculiaridades e características.

Cornejo Polar propõe três perspectivas de abordagem do Indigenismo andino que nos

auxiliarão na compreensão do movimento literário, tanto em relação à sua inserção nas

contradições inerentes ao seu modo de produção quanto em relação às discussões em voga no

período em que se manifestou. São elas: sua condição evidente de literatura heterogênea, sua

ligação com o regionalismo, e sua concomitante busca pela modernização.

Primeiramente, é importante salientar que o Indigenismo (assim como o Indianismo e

o Neo-Indigenismo) é um movimento ou tendência literária produzida no entrecruzamento de

duas (ou mais) culturas conflitantes e não pode ser confundido com literatura indígena, como

afirmou Mariátegui:

A literatura indigenista não pode dar-nos uma versão rigorosamente verdadeira do índio. Tem que idealizá-lo e estilizá-lo. Tampouco pode dar-nos sua própria anima. É, assim, uma literatura de mestiços. Por isso se chama indigenista e não indígena. Uma literatura indígena [...] virá em seu tempo. Quando os próprios índios puderem produzi-la.44

A literatura indigenista, então, é produto do ponto de vista do “mestiço” – que não tem

em Mariátegui o sentido obrigatoriamente étnico, mas de mestiçagem cultural também – que

escreve sobre o indígena a partir do seu contexto sociocultural. E essa condição não prejudica

sua obra, embora muitos a criticassem, exigindo uma visão mais “autêntica” do índio.

43 MARIÁTEGUI, J.C. (1973) p.328. “El problema indígena tan presente en la política, la economía y la sociología no puede estar ausente de la literatura y del arte.” 44 Ibidem, p.335. “La literatura indigenista no puede darnos una versión rigurosamente verista del indio. Tiene que idealizarlo y estilizarlo. Tampoco puede darnos su propia ánima. És todavia una literatura de mestizos. Por eso se llama indigenista y no indígena. Una literatura indígena [...] vendrá a su tiempo. Cuando los propios indios estén en grado de producirla.”

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A distância que separa o receptor e o autor dos romances indigenistas do seu referente

– os índios – não se limita, todavia, apenas à cultura, mas abarca também formações e

estruturas sociais e econômicas totalmente diversas e beligerantes, mantenedoras de um

conflito tão antigo e profundo quanto a chegada dos espanhóis ao Novo Mundo. Em razão

desses motivos, consideramos de essencial importância a categoria de heterogeneidade,

cunhada por Antonio Cornejo Polar para caracterizar a literatura indigenista. Como

heterogênea, a literatura indigenista compreende uma instância produtora – composta,

geralmente, por intelectuais escrevendo em espanhol, imbuídos de uma certa ideologia

(positivismo, marxismo, entre outras) –, a qual procura dar conta e “interpretar” um outro

universo, o indígena, cujas peculiaridades são: a predominância da oralidade sobre a escrita, o

quíchua, uma racionalidade estranha à do “europeu”, e uma realidade social muito diversa da

do produtor do romance indigenista.

Ainda conforme Cornejo Polar, a produção indigenista é de tal modo heterogênea que

isso a torna comparável às crônicas da conquista, se a inscrevermos em um “tempo mais

longo” da América, para além das fronteiras de seu próprio momento histórico (modernização

capitalista dos países andinos sob o comando dos Estados Unidos). Algumas características

dos romances indigenistas podem, então, ser melhor compreendidas se eles forem cotejados

com as crônicas: “norma estilística quase sempre explicativa (às vezes em excesso) e também

sempre comparativa (o outro é ininteligível se não for referido ao próprio), até, em outro

nível, à índole da história narrada que repetidamente é a história de uma interferência”.45

Quanto à última característica, é importante salientar que não há romance indigenista

sem que exista uma interferência, ou seja, o mundo indígena somente pode se converter em

narração, matéria romanceável, a partir do momento em que é interpretado (ou agredido) de

fora, marcando uma drástica separação entre um “antes” e um “depois”. Esse fato também

45CORNEJO POLAR, A. (2000) p.196

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evidencia que o indígena é visto por uma perspectiva “estrangeira” e seu universo é

“traduzido” pelo narrador para o leitor, quase sempre de forma pretensamente realista e

autêntica, o que, no entanto, não diminui a validade e o interesse sobre as obras indigenistas,

visto que uma visão “de dentro” desse mundo somente é possível na literatura indígena, como

Mariátegui já prevenira.

Outro dado de sumo interesse sobre o Indigenismo é a sua relação e “filiação” com os

movimentos regionalistas. Estes surgiram como uma espécie de resposta à modernidade e aos

movimentos de Vanguarda introduzidos na América Latina nas primeiras décadas do século

XX, principalmente durante e após a Primeira Guerra Mundial, preocupados em antenar-se

com as novidades européias, de certo modo internacionalizando-se.

Não houve sempre um antagonismo claro entre vanguardismo e regionalismo, já que,

consoante Ángel Rama, primeiramente o impacto modernizador gerou um “retornar

defensivo, submergindo na proteção da cultura materna”. E ainda conforme o autor, “em um

segundo momento, na medida em que a volta não soluciona nenhum problema, [são feitos] o

exame crítico de seus valores, a seleção de alguns de seus componentes [...]”46, seguidos,

então da incorporação de novidades, que são processadas de maneira a capacitar a formulação

de “respostas inventivas, recorrendo a seus componentes próprios”47. Apesar desse

sincretismo transculturador, houve, segundo Cornejo Polar, uma bifurcação da literatura

latino-americana nessa época: o regionalismo prezava pelos projetos sociais, propondo uma

crença no uso da literatura como um instrumento singular para a compreensão, a interpretação

e a transformação da realidade (elementos distintivos do Indigenismo), ao passo que as

vanguardas voltavam-se para a inserção no “novo espírito de uma época vertiginosamente

mutante”.48

46 RAMA, A. (2001) p.256. 47 Ibidem, p.258. 48 CORNEJO POLAR, A. (2000) p.199.

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No tocante ao Indigenismo especificamente, verificamos que ele se distingue em

muitos aspectos do Indianismo, repelindo a ideologia oligárquica neste presente e rendendo-se

artisticamente ao realismo. Ademais, o Indigenismo contrapõe-se claramente ao tom

romântico predominante em grande parte das narrativas indianistas (tramas repletas de

aventura e mistério, o amor idealizado, a mulher pura e bela, as paisagens igualmente

idealizadas e exóticas são alguns exemplos do veio romântico do indianismo). De acordo com

Cornejo Polar, esse veio anti-oligárquico relaciona-se a um projeto de nacionalidade andina,

que se opunha ao ideal hispanizante das oligarquias e defende uma imagem mais mestiço-

indígena das nações hispano-americanas. Tal posição do Indigenismo, entretanto, mostrou-se

paradoxal em vários momentos e em vários romances, uma vez que se conservava uma série

de resquícios positivistas, que acabavam por condenar o indígena ainda a uma situação

subalterna, transformando-o em objeto de sua própria história, quando se reivindicava uma

imagem desse mesmo índio como a identidade das nações andinas.

É interessante destacar que, embora o Indigenismo apresente problemas e

contradições, ele obteve êxito ao transpor o âmbito do romance, do texto, para alcançar a

esfera social e prática, isto é, as denúncias dos abusos contra os indígenas auxiliaram no

projeto e na consecução de programas sociais.49

Quanto à relação entre o Indigenismo e a modernização, é freqüente encará-la em suas

controvérsias: não é tarefa simples aliar os dois elementos, tradição e modernização, já que

esta se mostra, por vezes, necessária para a própria sobrevivência das comunidades frente ao

avanço do poder capitalista, além da evidente indispensabilidade de se modernizar o sistema

econômico andino ainda semifeudal (essas questões são tratadas em maior ou menor grau em

Huasipungo; em Redoble por Rancas e n’A guerra silenciosa em geral).

49 Cf. CORNEJO POLAR, A. (2000) p. 202

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De acordo com Cornejo Polar, quem melhor soube sintetizar Indigenismo e

modernização foi Mariátegui, para quem tradição e modernidade não representavam conceitos

e nem características fixas e inalteráveis, e o Indigenismo conciliava-se com o socialismo.

Com referência à tradição, Mariátegui criticava seu caráter colonial e limenho (posição

dos tradicionalistas peruanos), que limitava a nação peruana aos seus elementos oriundos da

cultura espanhola, e reivindicava uma tradição incaica, de um passado tido como “pré-

histórico” pelos conservadores e pela camada dominante. Esse resgate do passado incaico era

também requerido pelos revolucionários (entre os quais estava Mariátegui) e não implicava o

rechaço de outras influências, mas uma ampliação do que se considerava “tradição”, que não

pode ser entendida como algo estático e imutável, mas, ao contrário, como algo que está em

construção e faz parte da história, tendo, portanto, elementos heterogêneos e antagônicos.

Dessa maneira, a tradição não entra em conflito com o revolucionário, uma vez que este luta

pelas mudanças na sociedade, assim como a tradição não se encontra nunca imobilizada no

tempo50.

Se o revolucionário não conflita com a tradição, Mariátegui também não dissocia

Indigenismo (ligado à tradição e ao regionalismo) de Socialismo. Para ele, o incanato era uma

espécie de “comunismo primitivo”, cujos ecos permaneceram, de forma retrabalhada, nas

comunidades indígenas existentes no Peru. Ainda que a primeira idéia seja atualmente

refutada (embora não fosse à época do sociólogo peruano), Mariátegui conseguiu, como

afirma Cornejo Polar, resolver “a disjuntiva entre tradição e mudança [...] e trabalhar o

problema indígena em relação ao que parecia ser um tema à parte e mesmo contraditório: a

modernidade”51. Além disso, é certo que o Socialismo, como representante e defensor da

classe dos trabalhadores, não poderia se distanciar da causa dos indígenas – que, no Peru,

constituíam quatro quintos da massa trabalhadora. Assim, conforme escreveu Mariátegui,

50 Cf. MARIÁTEGUI, J.C. (2005) pp.112-117. 51 CORNEJO POLAR, A. (2000) p.207.

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“nosso socialismo, pois, não seria peruano – sequer seria socialismo – se não se solidarizasse,

primeiramente com as reivindicações indígenas. [...] Essa atitude não é postiça [...]. É apenas

socialista.”52

Deste modo, Mariátegui alia lucidamente Socialismo e Indigenismo, adaptando o

Socialismo (que em sua origem, obviamente não havia sido refletido tendo por base o

contexto andino) ao Peru e às suas peculiares condições econômicas e sociopolíticas.

Consoante Cornejo Polar, Mariátegui compôs uma modernidade andina, em que esse

Socialismo peruano poderia modernizar o Peru ainda envolto no “gamonalismo” – inerente ao

feudalismo implantado durante o período colonial, que persistiu ao longo da República e que

não foi extinto pela burguesia peruana –, transformando, dessa forma, a sociedade peruana e

valorizando o papel dos indígenas na construção dela.

Quanto à literatura especificamente, Mariátegui prezava o que se denominava

“Indigenismo Vanguardista”, no qual também não reconhecia contradições, porquanto o tema

indígena poderia conviver e mesclar-se aos componentes oriundos da Vanguarda. Tomás

Escajadillo, importante estudioso da literatura peruana, adverte que esse Indigenismo

Vanguardista desenvolveu-se mais na poesia e obteve grande espaço na revista Amauta,

dirigida por Mariátegui, ao passo que, na prosa indigenista, houve muito pouca adesão aos

elementos vanguardistas.

Cabe, após a contextualização do Indigenismo e de algumas observações acerca de sua

condição de literatura heterogênea, ater-nos às características intrinsecamente literárias (mais

“formais”) dos romances indigenistas, valendo-nos da obra de Escajadillo, que as desenvolveu

claramente.

Alguns autores como Concha Meléndez e Seymour Menton distinguem Indianismo de

Indigenismo pelo fato de o último apresentar o “protesto social” ou reivindicação social53 e o

52 MARIÁTEGUI, J.C. (2005) p.110 53 Cf. MENTON, S. (1978) p.232

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primeiro mostrar um índio e uma paisagem exóticos. Sendo assim, para Menton, Aves sin

nido (1889), de Clorinda Matto de Turner, seria o primeiro romance indigenista peruano,

escrito ainda no século XIX, visto que a autora contesta os abusos cometidos por religiosos e

comerciantes contra os indígenas. Também baseado nessa premissa, Menton reúne desde

Alcides Arguedas (Raza de bronce) até Manuel Scorza (La guerra silenciosa) em um mesmo

grupo.

Escajadillo, entretanto, discorda dessa qualificação e amplia o rol de elementos

próprios do Indigenismo: somente o protesto contra a exploração dos índios não é suficiente

para identificar o romance como indigenista. É preciso também que este tenha se afastado de

componentes relacionados ao Indianismo, como a idealização romântica dos indígenas e das

paisagens que os envolvem (Aves sin nido, segundo Escajadillo, é ainda indianista, ou melhor,

de transição do Indianismo ao Indigenismo, visto que, além de se desenvolver dentro de uma

trama romântica, apresenta um índio bastante irreal, apesar de já acolher a reivindicação

social. Cumandá, como vimos anteriormente, está repleto de índios mal delineados e

estereotipados). O terceiro componente de um romance indigenista é uma certa proximidade

(talvez uma maior “familiaridade”) com o mundo recriado – o do indígena. O próprio

Escajadillo adverte sobre a abstração deste último conceito54, que, entretanto, pode ser

basicamente explicitado quando o romance retrata “índios de carne e osso”55, ou seja, índios

mais bem caracterizados, menos romanticamente idealizados. Escajadillo exemplifica esse

caso com os Cuentos andinos, de Enrique López Albújar, mas poderíamos também incluir os

indígenas de Huasipungo, cuja caracterização foge da abstração encontrada em Cumandá, por

exemplo, em que os índios são somente pano de fundo. No romance de Jorge Icaza, eles são

os personagens principais e são retratados em sua miséria e exploração, como bem ilustra

54 Quando nos remetemos à questão da heterogeneidade da literatura indigenista, desenvolvida por Cornejo Polar, verificamos que a proposta de Escajadillo deve ser utilizada com cautela: a aproximação do narrador ao universo indígena é relativa em qualquer romance indigenista, dadas as profundas diferenças entre a instância produtora e receptora da obra e o seu referente. 55 ESCAJADILLO, T. (1994) p.44. “Indios de carne y hueso”.

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Antonio Sacoto: “O índio de Icaza é aquele que nasce [...] sob o calor de um fogão, em meio

ao huasipungo, e vive submerso em uma semi-inconsciência de miséria e abandono [...].”56

Esses índios, exageradamente animalizados (explanaremos melhor sobre esse ponto no

capítulo seguinte), são de “carne e osso”, não têm “alma de branco” e não estão esmaecidos

por um autor que não os quer ver.

A proximidade ao mundo andino tem suas gradações, conforme Escajadillo, e, por

conseguinte, o olhar de López Albújar sobre os índios parece menos penetrante e acurado se

comparado ao de Ciro Alegría; da mesma forma, o mundo indígena aparece muito superficial

e unilateralmente retratado em Icaza se cotejado com o de um José María Arguedas, só para

citar o exemplo mais extremo, uma vez que este é considerado pelos críticos como o autor que

melhor soube adentrar na “alma” do índio, mesclando a língua espanhola ao quíchua e

buscando se aproximar à cosmovisão indígena. Escajadillo vai além e afirma que Arguedas

foi quem fundiu, mais eficientemente, o “eu” do narrador ao “eles” do referente, enquanto que

na maior parte das narrativas indigenistas há um narrador onisciente e observador apartado do

objeto narrado.

2.2. Neo-Indigenismo andino

O Indigenismo perde sua força nos anos 40 do século XX, e já nos anos 50, começam

a surgir romances filiados a ele, mas com a introdução de novos elementos e perspectivas.

Tomás Escajadillo criou o termo Neo-Indigenismo para abarcar esses novos romances, de

modo que se demonstrasse a conservação e a renovação de componentes do Indigenismo,

destacando o que aproxima e o que distancia os dois movimentos (esse movimento de

transformação pode ser vislumbrado em um mesmo autor – José María Arguedas –, cujas

56 SACOTO, A. (1991) p.256. “El índio de Icaza es aquel que nace [...] al calor de un fogón, en medio del huasipungo, y vive hundido en una semi-inconsciencia de miseria y abandono [...].”

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obras iniciais, como Agua e Yawar Fiesta são tidas como indigenistas, ao passo que os

romances posteriores são considerados neo-indigenistas, como Los ríos profundos e El zorro

de arriba y el zorro de abajo).

De acordo com a tese de Escajadillo, o Neo-Indigenismo se caracteriza por:

I) Emprego do real maravilhoso como instrumento artístico capaz de revelar o sentido

mítico do mundo inerente ao homem andino, sem isolá-lo da realidade, conferindo, assim,

maior compreensão desse universo indígena.

No Indigenismo, nem sempre há alguma representação do mágico – como em

Huasipungo, no qual não existe espaço para o maravilhoso dentro de uma realidade tão dura e

embrutecedora. Nos romances indigenistas que oferecem episódios do âmbito do mágico,

segundo Escajadillo, há sempre uma ruptura delimitadora do “real mágico” e do “real-real”57,

não se mostrando a coexistência eqüitativa das duas concepções de mundo (real maravilhoso).

Nesse caso, o autor da narrativa pode, de certa forma, condenar o que julga ser meras

“superstições”, ou simplesmente não se manifestar favorável ou desfavorável a elas: ambas as

atitudes marcam a cisão entre os âmbitos do mágico e do real, ao mesmo tempo em que

reforçam o distanciamento da instância produtora e da receptora (autor e leitores) do romance

em relação aos seus referentes (os indígenas).

No Neo-Indigenismo, o acontecimento “mágico” convive com o “real”, ou melhor, o

realismo maravilhoso, conforme a estudiosa Irlemar Chiampi, “desaloja qualquer efeito

emotivo de calafrio, medo ou terror sobre o elemento insólito. O insólito, em óptica racional,

deixa de ser o ‘outro lado’, o desconhecido, para incorporar-se ao real: a maravilha é(está)

(n)a realidade.”58 Dessa forma, o componente “maravilhoso” do estrato indígena mescla-se,

sem inferiorizar-se, à “realidade” do estrato branco. E esse mecanismo pode se apresentar nos

romances neo-indigenistas através do próprio narrador onisciente ou da perspectiva de algum

57 ESCAJADILLO, T. (1994) p.55. 58 CHIAMPI, I. (1980) p.59

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personagem. As obras de Manuel Scorza podem nos ofertar numerosos exemplos desta

questão: a invisibilidade de um personagem, a presença de um outro que é capaz de conversar

com os cavalos, sonhos premonitórios, e mortos que dialogam, entre outros.

II) Recrudescimento do lirismo na narrativa, o que permite falarmos em uma “prosa

poemática”, associada à presença de um narrador em primeira pessoa, incomum nos romances

indigenistas.

É preciso ressaltar que no Neo-Indigenismo há uma intensificação do lirismo e que

este não estava ausente em todos os romances indigenistas. Escajadillo constrói dois grupos

de narrativas indigenistas: o de obras nas quais prevalece o tom denunciatório em detrimento

do cunho poético, como Tungsteno, de César Vallejo, e Huasipungo, juntamente com outros

romances indigenistas equatorianos; e o de obras nas quais predomina o lirismo, como as de

Ciro Alegría. Os romances “poemáticos” são considerados por Escajadillo como de maior

valor se cotejados às obras do primeiro grupo, devido ao desequilíbrio destas: a ausência do

poético e a exacerbação do denunciatório ou do realismo podem, talvez, brutalizar em excesso

a figura do indígena (esse aspecto será melhor analisado no próximo capítulo), que acaba por

perder sua consciência e seu poder de reflexão.

O lirismo, no Neo-Indigenismo, fez-se presente, de acordo com Escajadillo, em José

María Arguedas, Vargas Vicuña e em alguns textos de Carlos Eduardo Zavaleta. Em Manuel

Scorza também encontramos largo uso do lirismo sob a forma de metáforas e personificações

freqüentemente relacionadas a elementos da natureza, além de surpreendentes imagens

sinestésicas. Os romances de seu ciclo, La guerra silenciosa, não são narrados integralmente

em primeira pessoa; há capítulos narrados em terceira pessoa com narrador onisciente, o que

não obscurece o lirismo das narrativas.

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III) Maior amplitude do “problema do índio”, que deixa de ser discutido em seu

microcosmo – o indígena camponês ou mineiro nas cordilheiras andinas –, e passa a ser

encarado como uma questão de caráter nacional.

Essa ampliação ocorreu, conforme Escajadillo, em razão das mudanças do próprio

referente do Indigenismo – da “’realidade social’ em torno do índio, do ‘problema do

indígena’”59. Essas transformações podem ser exemplificadas pelo aumento da quantidade de

“índios urbanos” e pela percepção da relação direta entre a exploração do índio e a dos

trabalhadores pobres do terceiro mundo, estando o problema do índio incluído na galeria dos

explorados dentro de um sistema geral e nacional (os dois últimos elementos não

surpreendem, uma vez que Mariátegui, nos anos de 1920 e 30, já havia atentado para isso).

Em decorrência de essa transformação da narrativa indigenista ocorrer em função das

mudanças do seu objeto, do seu referente, Escajadillo discute também os rumos do

Indigenismo – se há um cancelamento dele ou uma modificação (Neo-Indigenismo).

Tomando por base alguns textos de Ciro Alegría e de Arguedas, ele conclui que o caráter

denunciatório e o aspecto da luta podem desaparecer à medida que a situação social do

indígena mude, mas isso não prejudicaria o Indigenismo enquanto narrativa sobre o índio, já

que este apresenta um outro aspecto: o da valorização e desvelamento das “’qualidades

humanas do mundo indígena que existiram sempre e existiram heroicamente através de

séculos de opressão’”60. A ampliação do tratamento do indígena, então, surge no Neo-

Indigenismo como uma espécie de prosseguimento das questões em pauta no Indigenismo (a

exploração perdura, ainda que de formas diversas: o abandono, a pobreza, e, sobretudo, o

apreço e a valorização da cultura indígena).

59 ESCAJADILLO, T. (1994) p.64. “[…] la ‘realidad social’ en torno al indio, al ‘problema indio’.” 60 Ibidem, p.69. “[...] calidades humanas del mundo indígena que han existido siempre y han existido heroicamente a través de siglos de opresión”.

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Em Manuel Scorza, encontramos a ampliação do problema do índio com maior nitidez

no último romance do ciclo – La tumba del relámpago –, em que se procuram incluir as

reivindicações indígenas na lista dos problemas do Peru como um todo, e não mais encará-las

como uma questão restrita à região andina.

IV) “Ampliação, complexidade e aperfeiçoamento do arsenal técnico da narrativa,

mediante um processo de experimentação que supera as conquistas alcançadas neste aspecto

por parte do Indigenismo.61”

Essa transformação pôde ser verificada, conforme Escajadillo, em Arguedas com Los

ríos profundos, de 1958, em Vargas Vicuña, em Zavaleta e em Scorza. Em contrapartida,

Escajadillo adverte que pode haver, em algumas obras desses autores neo-indigenistas, um

cancelamento do Indigenismo, ao invés do seu desenvolvimento em direção ao Neo-

Indigenismo. Esse seria o caso de Todas las sangres, de Arguedas, por discutir não o

problema do índio em si, mas o de todo o país, bem como o de Manuel Scorza, que, em

romances como Redoble por Rancas, utilizaria a maior complexidade das técnicas e das

estruturas narrativas e o tom irônico e corrosivo para trabalhar “à margem do movimento ou

ciclo indigenista”62.

Independentemente da intenção de Scorza, é certo que ele trouxe novos elementos à

narrativa sobre o indígena, abandonando, em seus romances, a linearidade e o tom solene

comuns aos romances indigenistas. Ao mesmo tempo, estes não se afastam dos problemas

enfrentados pelos índios em suas comunidades, o que, talvez, os insira ainda nesse “ciclo

indigenista”, não considerado como um rótulo imobilizador, mas como uma mostra de que o

61 CORNEJO POLAR, A. (2000) p.106 62 ESCAJADILLO, T. (1994) p.92. “[...] al margen del movimiento o ciclo indigenista [...]”.

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problema indígena não havia ainda sido resolvido, e que os massacres perduravam e

sucediam-se como as “estações do ano”63.

É interessante notar ainda que a heterogeneidade, marca essencial do Indigenismo e

das próprias sociedades andinas, permanece no Neo-Indigenismo, embora um pouco menos

profunda, devido ao fluxo migratório campo-cidade-campo e/ou pela difusão de costumes e

idéias citadinas na área rural, serrana. O “problema” principal recebido da tradição anterior

conservou-se (as respostas, é claro, diferiram em grande parte); era preciso falar sobre o

universo indígena a partir de uma condição social e cultural diferente (os autores, os

produtores continuavam sendo intelectuais, mesmo que mestiços) e empregando um código

diverso (o espanhol escrito em antagonismo com o quíchua oral).

As respostas dadas pelos neo-indigenistas aos impasses criados pela heterogeneidade

indissolúvel do mundo andino estavam relacionadas aos efeitos modernizadores, com o

emprego de “técnicas do relato joyciano e pós-joyciano”,64 e a recriação da língua para

aproximar “a língua do narrador-escritor e a dos personagens”65. Verificaremos essas

transformações ao analisarmos comparativamente Huasipungo, de Icaza, e Redoble por

Rancas e La tumba del relámpago, de Scorza, nos próximos capítulos.

63 Termo utilizado por Manuel Scorza. 64 CORNEJO POLAR, A. (2000) p.107 65 RAMA, A. (2001) p.267

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3. HUASIPUNGO: DESESPERO OU UTOPIA?

Huasipungo foi escrito em 1934 pelo equatoriano Jorge Icaza. Nesse período, os ecos

do pensamento socialista e comunista já haviam sido ouvidos no Equador, assim como em

outros países da América Latina. O Equador vivia então um momento político convulso, com

golpes de Estado (um em 1925, que afastou do poder uma oligarquia bancária, e outro em

1944, cujo interesse era implantar e consolidar uma efetiva democracia baseada no voto

popular livre) e com o surgimento do Socialismo equatoriano, que começava a agir e expor

suas idéias (em maio de 1926, foi fundado o Partido Comunista do Equador). No âmbito

político, a esquerda socialista foi relativamente forte e aproximou-se das classes mais baixas,

sobretudo dos índios, e fez-se, de acordo com Angel Rojas, “porta-voz de suas reivindicações

agrárias”66, além de “defendê-los da absorção gamonalista [termo cujo equivalente é

“coronelista”]”67 e de auxiliá-los na organização contra a exploração dos grandes

latifundiários.

Os intelectuais e escritores dessa época receberam as influências do Socialismo e,

sendo grande parte deles politizada, envolveram-se muitas vezes diretamente nos movimentos

partidários. Dessa maneira, a literatura equatoriana passou a incluir as camadas inferiores da

população e seus problemas como tema de variados romances e contos. Os indígenas

ocuparam posição de destaque nesse rol e seu mundo – que abrangia a rapinagem e a

crueldade dos latifundiários, bem como o sistema semifeudal ou pré-capitalista ainda regente

na serra andina – foi grandemente retratado por Jorge Icaza. Em geral, as obras literárias desse

período (e Huasipungo não é diferente) caracterizam-se, segundo Rojas, pela denúncia e pelo

protesto, marcando uma diferença expressiva com relação aos textos literários anteriores, cujo

foco dificilmente se detinha nas classes mais baixas. Tomando os índios como caso exemplar

66 ROJAS, A. (1948) p.148. “[...] vocero de sus reivindicaciones agrarias […]”. 67 Ibidem, p.148. “[…] defenderle de la absorción gamonalista […]”.

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desse processo, observamos que eles, quando personagens de obras literárias, eram

caracterizados sob uma perspectiva exótica e idealizada (no Indianismo, como vimos no

capítulo anterior), não como seres de “carne e osso”. Nessa medida, a difusão e a aceitação do

socialismo pelos escritores equatorianos, como Icaza, nas primeiras décadas do século XX,

podem ter influenciado diretamente na passagem do Indianismo ao Indigenismo no Equador –

haja vista as diferenças entre romances como Cumandá e Huasipungo.

Assim, Huasipungo, considerado um romance modelar do Indigenismo pela maioria

dos críticos (como Bella Jozef e Cornejo Polar), é escrito com o claro propósito da denúncia

da exploração sofrida pelos índios – que neste caso são os falantes de quíchua da serra andina

equatoriana. O título da obra explicita um dos alvos da crítica icaziana: o huasipungo – a

parcela de terra cedida aos indígenas pelo latifundiário em troca do cultivo de toda a

propriedade – é parte fundamental do sistema socioeconômico das “haciendas”, vigente na

serra. De acordo com Klaas Woortmann, estas funcionavam como um sistema senhorial com

ou sem senhor presente, isto é, o fazendeiro poderia residir na capital do país ou no próprio

latifúndio, tendo, neste último caso, a tendência a tornar-se um gamonal.

O gamonalismo encerra, segundo Woortmann, um poder não somente econômico, mas

também político, visto que o fazendeiro tinha estreitas relações com a polícia e as autoridades

políticas; desse modo, obtinha respaldo para as crueldades cometidas contra seus

“funcionários” indígenas. Formava-se, por conseguinte, um regime de servidão na medida em

que os índios trabalhavam quase todo o tempo disponível na terra do senhor, restando-lhes

poucos dias para o cultivo de seu huasipungo, quase sempre de exíguas dimensões, localizado

em terrenos inférteis e de difícil acesso. Além do labor na terra, havia os serviços domésticos

na casa do fazendeiro, o pastoreio e o transporte de animais e mercadorias para mercados e

feiras. No entanto, os fatores que demonstravam de forma mais nítida o regime de servidão

eram o endividamento dos índios em relação ao patrão e as “transações imobiliárias, [nas

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quais] normalmente eram contabilizados os índios que viviam nas ‘haciendas’, chamados

‘índios del patrón’, contabilização essa que entrava na formação do preço da ‘hacienda’ –

inclusive, em um caso, em avaliação oficial”68.

Huasipungo retratou muito bem esse mecanismo socioeconômico e político das

haciendas e huasipungos que marginalizava os indígenas, transformando-os em moedas de

troca, bens inerentes à terra, equivalentes aos animais, árvores e plantações – e, portanto,

negociáveis e rentáveis. Icaza escreveu seu romance tematizando esses índios e essa

sociedade que os oprimia, obra em que, de acordo com Cornejo Polar, notamos “a poética do

relato [...] que é a do realismo social”69, acrescido de matizes naturalistas materializados pela

crueza das descrições.

O discurso de Huasipungo é repleto de interjeições, gritos, murmúrios e palavras

isoladas proferidas em quíchua, construindo, consoante Agustín Cueva, um estilo não-

oligárquico, de modo a estabelecer uma oposição radical ao discurso literário pomposo da

oligarquia70. Esse “não-estilo”, que pretende representar ficcionalmente, conforme Cornejo

Polar, “a língua dos estratos médios e populares como uma nova norma da língua nacional”71,

distanciada do formal e do castiço, indica a crença na transparência da linguagem para

representar a realidade, como se houvesse uma perfeita continuidade entre as palavras e as

coisas. Flora Süssekind encontra mecanismo semelhante ao analisar diversas obras

naturalistas e neonaturalistas, de Aluísio Azevedo até José Lins do Rego e o Jorge Amado do

ciclo do cacau: “Da linguagem espera-se que restabeleça simetrias, que crie analogias

perfeitas, que desfaça rupturas e diferenças, que se apague e funcione como mera

68 WOORTMANN, K. (1973) p.16. 69 CORNEJO POLAR, A. (1994) p.157. “[…] la poética del relato propia de Icaza, que es la del realismo social […]”. 70 Apud. CORNEJO POLAR, A. (1994) p.170. 71 Ibidem, p.170. “[…] la lengua de los estratos medios y populares como nueva norma de la lengua nacional […]”.

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transparência”72. A proposta desses autores é, portanto, a de narrar com o máximo de

fidelidade possível uma determinada situação socioeconômica; eles pretendem desse modo

camuflar suas intervenções, que se perfazem, através das suas perspectivas dos fatos, bem

como do trabalho com a linguagem e com a construção do texto, sobre o assunto tratado.

Süssekind ainda ressalta, citando um trecho da nota introdutória de Jorge Amado a

Cacau (“Tentei contar neste livro, com um mínimo de literatura para um máximo de

honestidade, a vida dos trabalhadores das fazendas de cacau do sul da Bahia”73), que esses

romances naturalistas e neonaturalistas “apontam para um significado que se situa fora deles,

num contexto extraliterário”74. Jorge Icaza fez uma declaração análoga à de Jorge Amado

quando disse que o valor de seu romance é “ter exposto, de forma franca e sincera, o

problema social de nosso campesino diante da América Latina”75. Embora não seja intenção

de nossa dissertação comparar os dois romances, fica evidente a similitude de intenções dos

dois autores: ambos tencionam, como analisou Süssekind, “desviar” a atenção dos leitores do

texto para a realidade supostamente apresentada sem intervenções. O objetivo do texto não é o

de ser lido apenas como um trabalho artístico, mas como um instrumento para se chegar ao

real descrito, provavelmente desconhecido pelo leitor. Conforme Cornejo Polar, a crença

nessa transparência da linguagem indica tanto um meio de refletir o mundo referido quanto

serve para que o autor se mostre como vivenciador e conhecedor desse mundo retratado. Ele

tem autoridade para contar porque tem ciência sobre o referente, agindo, por conseguinte,

como uma espécie de mediador entre os dois mundos – o de seu romance e os dos leitores,

que é também o seu próprio mundo.

Em Huasipungo, é notável como essa postura do narrador materializa-se no uso do

glossário e nos numerosos apostos e adendos explicativos e descritivos – o narrador, como

72SÜSSEKIND, F. (1984) p.34 73 Ibidem, pp.36-37 74 Ibid, p.37 75 Apud. JOZEF, B. (1971) p.253. “Haber planteado, de manera franca y sincera, el problema social de nuestro campesino ante América Latina”.

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conhecedor do referente e de seu universo, tem autoridade para “traduzi-los” para o leitor,

como vimos no capítulo 2. Vejamos, como exemplos, as seguintes passagens do romance: “Al

notar la presencia del hombre [mayordomo de Alfonso Pereira] – para ellas [indias] cruel,

altanero e intrigante – hundieron con fingido afán sus rústicas herramientas.”76 E: “La orden

del hombre – trueno de Taita Dios para el miedo infantil – abrió una pausa de espanto entre

los muchachos.”77 Há, nos trechos selecionados, pequenas observações descritivas, colocadas

como adendo em meio à narração, em que o emprego da focalização heterodiegética e interna

não só almeja demonstrar o profundo conhecimento do narrador sobre o mundo indígena,

como também seu saber sobre a mentalidade e pensamentos dos índios.

No entanto, embora o narrador se coloque na posição daquele que ocupa o espaço “de

dentro”, ele ainda conta a história dos índios a partir de um ponto de vista externo,

“estrangeiro”: os indígenas parecem não ter uma história própria ou um passado narrável em

si.

A narrativa linear de Huasipungo salienta bem a interferência do latifundiário

(representante do mundo ocidental, europeu) no universo indígena: a matéria narrável,

romanceável só pode se iniciar quando Dom Alfonso Pereira, que morava na capital, Quito, é

obrigado a mudar-se para a antiga fazenda de seu pai, em razão da desonra causada pela

gravidez da filha solteira e por dívidas, que só seriam quitadas se ele conseguisse construir

estradas no terreno de sua propriedade (utilizando mão-de-obra indígena e com a destituição

dos huasipungos) que abririam caminho para a instalação de uma empresa petrolífera norte-

americana. Com o retorno do senhor à sua propriedade, torna-se o gamonal por excelência,

marcando a intensificação da exploração sobre os índios. É também por meio dessa estratégia

76 ICAZA, J. (1979) p. 34. “Ao notar a presença do homem – para elas cruel, altaneiro e intrigante – afundaram com falso afã suas rústicas ferramentas.” (ICAZA, 1978, p. 41) Grifos nossos. 77 Ibidem, p.36. Grifos nossos. “A ordem do homem – trovão de Taita Deus para o medo infantil – provocou uma pausa de espanto entre os meninos.” (ICAZA, 1978, p. 43)

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que o narrador pôde contrapor seus personagens: de um lado, os opressores; de outro, os

oprimidos.

Em geral, Huasipungo pauta-se sobre personagens planos ou desenhados, conforme a

conceituação de E.M. Forster. Cada personagem é definido por um traço dominante que o

caracteriza por toda a obra – é linear e não apresenta modificações psicológicas e nem

comportamentais, não proporcionando, portanto, grandes surpresas ao leitor. Vítor Manuel de

Aguiar e Silva afirma que os personagens desenhados são quase sempre personagens-tipo, não

evoluem e não possuem desenvolvimento das peculiaridades internas que o individualizariam.

Em contraposição aos personagens planos há os redondos ou modelados, mais complexos;

estes são apresentados em seus diversos aspectos e combinam, conforme escreveram René

Wellek e Austin Warren, “concepções e relações; são mostrados em diferentes contextos – na

vida pública, na vida íntima, no estrangeiro”78. Apesar de menos ricos psicologicamente e

desprovidos das complexidades inerentes à índole humana, os personagens planos, segundo

Forster, têm uma grande vantagem, que é a de “serem reconhecidos com facilidade sempre

que aparecem: reconhecidos pelo olho emocional do leitor”79. Por serem dotados de

características marcantes e imutáveis na obra, tudo aquilo que lhes falta em riqueza de

detalhes contribui para a sua fácil e imediata identificação; por este motivo, permanecem por

mais tempo na memória dos leitores.

Em Huasipungo, os personagens carecem de traços particulares, sendo uma espécie de

reunião de características distintivas (muitas vezes estereótipos) de cada elemento constituinte

da sociedade rural da serra andina. De um lado há a “trindade embrutecedora” dos índios – os

grandes latifundiários, peça principal da engrenagem, representados por Dom Alfonso

Pereira; os representantes do Estado, cujo personagem no romance é o tenente político Jacinto

Quintana, um mestiço explorador dos índios e cúmplice de Alfonso; e os membros do clero

78 Apud. FORSTER, E.M. (1974) p.55 79 FORSTER, E.M. (1974) p.55

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que, como o cura de Huasipungo, usavam a fé e o temor dos indígenas para arrancar-lhes

dinheiro e serviços. Do lado oposto estão os índios, cujo representante maior é o índio Andrés

Chiliquinga, um dos poucos personagens indígenas nomeados no romance. Segundo Angel

Rojas, “seu herói [de Huasipungo] é o homem-massa, o símbolo de uma classe social”80, ou

seja, Chiliquinga simboliza seu povo, não é um personagem singular, pois sua finalidade é

funcionar como um meio de mostrar todos os sofrimentos pelos quais os indígenas poderiam

passar. As desventuras de Andrés são claramente as mesmas que atingem todos os seus.

Embora Icaza tivesse sido muito criticado por não ter investido na construção aprofundada de

caracteres81, notamos que ele utilizou personagens planos para melhor estabelecer uma

contraposição entre estes, enfatizando suas diferenças e suas relações de poder – opressores e

oprimidos –, e conseguindo alcançar plenamente o objetivo de denunciar, questionar e alertar

os leitores sobre a existência tardia de um semifeudalismo em que os indígenas eram postos

no mesmo nível dos animais que se vendem junto com as fazendas.

Essa diferenciação abismal entre os personagens índios e os seus “senhores” já fica

evidente a partir das primeiras páginas do romance, onde os primeiros surgem como

desamparados, e os últimos como cruéis exploradores; por outro lado, isso marca também um

distanciamento do narrador em relação aos seus referentes, como percebemos através das

descrições demasiadamente cruas dos indígenas, sua impotência diante da realidade que os

assombrava e a insalubridade em que viviam, que os animalizava ao extremo. Como bem

escreveu Fernando Alegría,

Tal procedimento [o de sacudir o leitor com imagens diretas, romper sua apatia a golpes e comovê-los até o desespero] é uma faca de dois gumes: a exageração de suas descrições

80 ROJAS, A. (1948) p.200. “Su héroe es el hombre-masa, el símbolo de una clase social.” 81 Antonio Sacoto (1991), em seu artigo “Jorge Icaza: el indigenismo ecuatoriano”, lista algumas críticas negativas referentes à obra de Icaza.

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repugna, da piedade passa-se ao desconcerto e ao desgosto; perde-se de vista a razão de sua rebeldia.82

Os personagens de Huasipungo deixam a marca indelével de suas posições e suas

funções no mecanismo socioeconômico das haciendas equatorianas, mas a denúncia desse

sistema é feita por Icaza com um afinco que se torna vez por outra excessivo: a revelação dos

problemas, da realidade dos indígenas, acaba recaindo no reforço dos estereótipos, da sua

imagem como o “pueblo enfermo”, expressão utilizada por Alcides Arguedas em relação aos

referentes de sua obra homônima. É importante notar que muitas descrições e comentários

negativos sobre os índios são feitos pelo próprio narrador, não podendo ser atribuídos aos

personagens opressores da obra. Quando aquele, que se propôs narrar a realidade, compara

índios com bestas (“aunque jadeaban como bestias”83) ou “questiona” a sua capacidade de

pensar ou mesmo de falar, já que suas falas limitam-se a gritos, interjeições e balbucios, ao

estilo de Graciliano Ramos em Vidas Secas (“- El mal, caraju... Agarrada [Cunshi] del mal de

taita diabu coloradu..., pensó Andrés – si pensamiento podía llamarse el grito de sus

entrañas”84), ele promove uma extrema intensificação da denúncia, ressaltando,

veementemente, a imagem negativa que na época se tinha do seu referente.

Assim, a profunda contraposição entre o fazendeiro e os indígenas aparece nitidamente

em Huasipungo, como podemos perceber nos seguintes excertos:

Dicen que la mueca de los que mueren en el páramo es una mueca de risa [...]. En esa época el único que tuvo narices prácticas fue el Presidente García Moreno. Supo aprovechar la energía de los delincuentes y de los indios en la construcción de la carretera a Riobamba. Todo a fuerza de fuete... [...] El fuete progresista. Hombre inmaculado, hombre grande.85

82 ALEGRÍA, F. (1967) p.51. “Tal procedimiento encierra un arma de dos filos: la exageración de sus descripciones repugna, de la piedad se pasa al desconcierto y al disgusto; se pierde de vista la razón de su rebeldía.” 83 ICAZA, J. (1979) p.123. “[...] ainda arquejando como bestas [...]”. (ICAZA, 1978, p.143) 84 Ibidem, p.157. “O mal, caralhu... Agarrada [Cunshi] do mal de taita diabu vermelhu... pensou Andrés – se é que se podia chamar de pensamento o grito de suas entranhas”. (ICAZA, 1978, p.181) 85 Ibid, p.17. “Dizem que a expressão dos que morrem no páramo é uma expressão de riso. [...] Nessa época o único que sabia onde tinha o nariz era o Presidente García Moreno. Soube aproveitar a energia dos delinqüentes e dos índios na construção da estrada para Riobamba. Tudo à força do relho... [...] O relho progressista. Homem imaculado, homem grande.” (ICAZA, 1978, pp. 20-21)

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E:

En la mente de los indios – los que cuidaban los caballos, los que cargaban el equipaje, los que iban agobiados por el peso de los patrones – en cambio, sólo se hilvanaban y deshilvanaban ansias de necesidades inmediatas: que no se acabe el maíz tostado o la mashca del cucayo […].86

No primeiro trecho, Dom Alfonso Pereira refletia enquanto era carregado no “lombo”

de Chiliquinga (cada membro da família tomou para si um índio como “montaria”) pelos

lamaçais dos pântanos que precediam a fazenda. Neste momento ele ocupava-se de questões

políticas, espelhando-se no exemplo (espelhamento que leva até à explícita comparação) do

presidente García Moreno para a sua futura empresa – a construção de uma estrada em sua

propriedade com mão-de-obra indígena. Já os índios, como observamos na segunda

passagem, preocupavam-se somente com as “necessidades imediatas”, com os problemas

primários – especificamente seu sustento e sua alimentação. Ao mesmo tempo em que se faz

uma severa crítica da relação entre patrão e indígena, recai-se numa tão profunda

desumanização deste último, que ele se torna incapaz de conduzir conscientemente sua vida

individual e social. O narrador parece, assim, salientar a imagem que se reproduzia dos índios

– a de raça inferior, que não consegue se articular ou raciocinar sobre qualquer tipo de assunto

mais “complexo” –, chocando o leitor, através da exacerbação do envilecimento da condição

indígena, chamando sua atenção para o problema.

São inúmeras as passagens ilustrativas do contraste entre a caracterização de índios e

brancos, como vimos acima, visto que o enredo de Huasipungo é bastante simples, podendo

ser resumido como uma história da degradação dos primeiros sob seus vários aspectos e seus

diferentes algozes. O excerto destacado a seguir é bastante significativo:

Éstos, los que se entierran aquí, en las primeras filas, como están más cerca del altar mayor, más cerca de las oraciones, y desde luego más cerca de Nuestro Señor Sacramento – [...] –, son los que van más pronto al cielo, son los que generalmente se salvan. [...] ¡De aquí al cielo no

86 ICAZA, J. (1979) p.19. “Na mente dos índios – os que cuidavam dos cavalos, os que carregavam a bagagem, os que iam curvados pelo peso dos patrões – em troca, só alinhavam-se e desalinhavam-se ânsias de necessidades imediatas: que não se acabe o maíz [milho] tostado ou a mashca [farinha de cevada] do cucayo [comestíveis que se levam nas viagens] [...]”. (ICAZA, 1978, p.23)

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hay más que un pasito! [...] – insistió el sotanudo señalando al indio alelado las cruces de la primera fila de tumbas. [...] Luego, arrimándose plácidamente al tronco de un ciprés, continuó ponderando las excelencias de su mercadería con habilidad de verdulera.87

Nesse trecho, o cura, que não é nomeado no romance, exerce suas habilidades comerciais e

tenta vender seu melhor produto - o túmulo mais perto do altar e também o mais caro, onde

estavam enterrados os membros mais ilustres da sociedade local -, edificando uma hierarquia

de sepulturas: um pouco mais afastadas do altar, as tumbas mais simples abrigavam mestiços

e índios que demorariam mais tempo para chegar aos céus, permanecendo no purgatório; os

túmulos ainda mais distantes eram destinados aos pobres em vida fadados ao inferno. O padre

de Huasipungo utilizava o seu poder sobre a fé e a ingenuidade dos índios para fazer perdurar

a mesma pirâmide social existente na vida terrena, o que o aproxima muito do papel

desempenhado pelos religiosos da Igreja Católica na Idade Média e o distingue grandemente

tanto da figura clerical predominante em romances de períodos anteriores, como Cumandá,

indianista e romântico, cuja proposta era a da redenção dos povos indígenas pela fé católica

difundida pelos benevolentes e caridosos missionários, quanto da de obras como as de Scorza,

em que a participação dos religiosos está marcada pelas idéias da Teologia da Libertação.

Já os trechos seguintes ilustram a reificação dos indígenas pelo tratamento dado pelos

latifundiários e a internalização desse olhar pelos primeiros, o que os levava a verem-se,

dominados pelo conformismo, como meros instrumentos de trabalho (é necessário lembrar

que a focalização em Huasipungo é heterodiegética, interna e onisciente, portanto esse

processo de internalização da visão preconceituosa dos patrões é uma observação do

narrador): “A él en realidad no le interesaban [a Alfonso Pereira] tanto los indios como tales.

87 ICAZA, J. (1979) p. 164. “Estes, os que se enterram aqui nas primeiras filas, como estão mais perto do altar mor, mais perto das orações e, naturalmente, mais perto de Nosso Senhor Sacramentado – [...] – são os que vão mais depressa ao céu, são os que geralmente se salvam [...]. Daqui ao céu não há mais que um passinho! [...] – insistiu o padre, assinalando ao índio atônito as cruzes da primeira fileira de tumbas [...]. Logo encostando-se placidamente no tronco de um cipreste, continuou ponderando as excelências de sua mercadoria, com habilidade de verdureiro.” (ICAZA, 1978, pp. 189-190)

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[...] Diez o veinte longos, en realidad, no era mucho en su haber de muebles, enseres,

semovientes… Para eso había pagado harta plata por los runas.”88 E:

Tampoco los indios podían darse ese lujo. Ellos sabían – sangre de su taimada resignación – que el patrón, el señor cura, el teniente político mandaban en su destino, y que al final todo el trabajo y todo el sacrificio quedaría en sus manos.89

A resignação e a imutabilidade perduram por quase todo o romance e somente se

desestabilizam quando a estrada em construção precisa avançar sobre o terreno ocupado pelos

huasipungos, marcando o ponto limite, no qual a exploração se torna insuportável. Essa

interferência origina a revolta, uma vez que os índios nunca haviam cogitado a possibilidade

de se desligarem dos huasipungos. De acordo com Victor Gabriel Garces, mesmo o pequeno

pedaço de terra cedido ao indígena pobre, desprovido de qualquer recurso para se sustentar,

acabava sendo melhor do que não possuir nada, de modo que ele chegava a ponto de encarar o

huasipungo como uma terra própria, onde podia plantar e criar animais para a subsistência.

Além disso, nesse sistema de haciendas, era um costume tradicional não se desapropriarem as

terras emprestadas aos índios e socorrê-los quando algum desastre natural atingia seus

terrenos (como a enchente que devastou parte dos huasipungos no romance); no entanto, nada

disso foi feito por Dom Alfonso, gamonal mais cruel e mais ávido por lucros que seu pai,

antigo senhor da fazenda.

Diante da perda das terras, Andrés Chiliquinga reúne seus iguais, chamando-os com

um corno, colhendo “a los pobres naturales comu a manada de ganadu”90, em um ato mais

motivado pelo desespero do que pela esperança ou pela vontade de luta. A revolta foi quase

exclusivamente um ato de reação inconsciente: não havia, na verdade, uma crença relacionada

à construção de um futuro menos injusto. Andrés não conseguia compreender bem por que

88 ICAZA, J. (1979), p.107. “Na realidade não lhe interessava [a Dom Alfonso Pereira] tanto os índios como tais. [...] Dez ou vinte longos, na realidade, não era muito em seu haver de imóveis, utensílios e bens semoventes. Para isso pagara pelos runas farto dinheiro.” (ICAZA, 1978, p.124) 89Ibidem, p.89. “Tampouco os índios podiam dar-se a esse luxo [do cansaço e do aborrecimento]. Eles sabiam – sangue de sua astuta resignação – que o patrão, o senhor cura, o tenente político mandavam em seu destino e que, afinal, todo o trabalho e o sacrifício ficariam em suas mãos.” (ICAZA, 1978, p.104) 90 Ibid, p.183. “[...] os pobres naturais comu a manada de gadu [...].” (ICAZA, 1978, p.211)

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havia convocado os seus para uma reunião, e não se vislumbrava qualquer indício de

planejamento para a invasão do latifúndio, como podemos observar na passagem referente às

dúvidas de Andrés no citado momento:

¿Para qué había llamado a todos los suyos con la urgencia inconsciente de la sangre? ¿Qué debía decirles? ¿Quién le aconsejó en realidad aquello? ¿Fue sólo un capricho criminal de su sangre de runa mal amansado, atrevido? ¡No! Alguien o algo le hizo recordar en ese instante que él obró así guiado por el profundo apego al pedazo de tierra y al techo de su huasipungo, impulsado por el buen coraje contra la injusticia, instintivamente.91

A injustiça, na perspectiva dos índios, era somente a tomada dos huasipungos e não

todo o sistema e todos os outros eventos tão explicitamente demonstrados no romance, o que

reforça a idéia de que a comunidade indígena estava totalmente alheia à sua posição na

sociedade. Ela é apresentada de forma tão reificada e desumanizada, que parece estar perdida,

destruída pela exploração e pela submissão resignada, ignorante dos seus direitos e presa a

uma inércia resultante da internalização do olhar que o patrão, o branco, lhe impôs – o da

inferioridade do índio em relação ao branco, da hierarquia étnica que se estende à

sociopolítica e econômica.

Retomando os conceitos de utopia abordados no primeiro capítulo, relembramos que

esta não prescinde de um “potencial revolucionário”, ou seja, refere-se a um estado de

conflito com a situação real, o que leva a uma tentativa de buscar rompê-la para dar espaço às

idéias e valores considerados melhores por um determinado grupo social. Ernst Bloch enfatiza

ainda mais a questão da construção da utopia como um projeto e afirma que ela é uma força

ativa orientada para o futuro, alimentada pela reflexão e pela consciência da realidade com

suas carências e injustiças. A utopia pressupõe, por conseguinte, uma noção do que ocorre na

realidade e da posição do indivíduo dentro de uma sociedade, o que de fato não é perceptível

91 ICAZA, J. (1979) p.184. “Para que havia chamado a todos os seus com a urgência inconsciente do sangue? Que devia dizer-lhes? Quem na realidade lhe aconselhou aquilo? Foi só um capricho criminoso de seu sangue de runa mal-amansado, atrevido? Não! Alguém ou algo o fez recordar nesse instante que ele assim obrou guiado pelo profundo apego ao pedaço de terra e ao teto de seu huasipungo, impulsionado pela boa coragem contra a injustiça, instintivamente.” (ICAZA, 1978, p.212)

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nos personagens indígenas de Huasipungo. Sendo assim, falarmos em utopia seria, talvez,

excessivo: não parece haver nem a força ativa, nem o desejo consciente de mudança que

caracterizam o pensamento utópico. A comunidade indígena surge no romance como

resignada e alheia aos seus direitos, reduzida a uma existência oprimida pela exploração que a

torna incapaz de construir a imagem de uma realidade melhor. A reação liderada por

Chiliquinga foi instintiva e referente apenas à desapropriação dos huasipungos, o que

corrobora a inexistência da utopia dos índios na obra de Icaza.

É interessante observar ainda que, de acordo com Cornejo Polar, há uma contradição

final em Huasipungo (e em outros romances indigenistas, como os de Alcides Arguedas):

talvez por princípio ético ou pela convicção política do narrador, que se propôs denunciar a

exploração dos índios, a história não poderia terminar como acabava na realidade, com o

massacre dos indígenas e o agravamento da sua condição. A “solução” encontrada é a

mudança drástica de código: do realismo passa-se a “uma sorte de idealismo alegórico que se

instala ao final do romance para pressagiar simbolicamente [...] a rebelião triunfal dos

índios”92. Basta recordar o parágrafo final de Huasipungo. Transcrevemos aqui os últimos

parágrafos do romance:

Al amanecer, entre las chozas deshechas, entre los escombros, entre las cenizas, entre los cadáveres tibios aún, surgieron, como en los sueños, sementeras de brazos flacos como espigas de cebada que al dejarse acariciar por los vientos helados de los páramos de América, murmuraron con voz ululante de taladro: – ¡Ñucanchic huasipungo! [Nuestro huasipungo].93

Nesse trecho final, a linguagem realista, e até naturalista em alguns momentos do

romance, é suplantada por um certo lirismo destoante, com imagens que remetem ao porvir e

92 CORNEJO POLAR, A. (1992) p.195. "[...]Una suerte de idealismo alegórico que se instala en el tramo final de la novela para presagiar simbólicamente [...] la rebelión triunfal de los indios." 93 ICAZA, J. (1979) p. 193. “Ao amanhecer, entre as choças desfeitas, entre os escombros, entre as cinzas, entre os cadáveres ainda mornos, surgiram, como nos sonhos, sementeiras de braços finos como espigas de cevada que ao deixarem-se acariciar pelos ventos gelados dos páramos da América, murmuraram em voz ululante de trado. / - Ñucanchic huasipungo! [Nosso huasipungo]”. (ICAZA, 1978, pp.221-222)

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à esperança após a repressão da rebelião e o massacre dos índios revoltosos. Aí percebemos o

desejo utópico da vitória dos índios sobre a realidade vivida, não só os do Equador, como de

toda a América, já que nessa passagem o narrador parece estender seu sonho a todo o

continente, o qual, todavia, não nasce por iniciativa e reflexão destes, mas da voz do narrador.

Desse modo, reforça-se a idéia de que a visão sobre os indígenas em Huasipungo não lhes

permite ainda uma consciência plena de sua própria vida e história, condições essenciais para

o surgimento da utopia dos índios e não só para os índios (a utopia como planejamento e

reflexão não parte deles, surge, porém, do autor, que a lança para um tempo futuro distante, da

ordem do fantástico, quase como uma utopia nos moldes de Morus – do âmbito do impossível

ou improvável).

Embora muito se tenha criticado o hiperbolismo icaziano e embora, conforme

escreveu Jorge Enrique Adoum, o seu realismo social acabe por escamotear a alma do índio,

reduzido a um elemento inanimado, fixo na paisagem94, não se pode deixar de levar em conta

que Icaza atingiu sua meta – a de apontar os problemas e divulgá-los, já que normalmente os

órgãos de comunicação e o governo costumam silenciá-los e mitigá-los sistematicamente –,

ainda mais se considerarmos que Huasipungo foi o romance mais traduzido e difundido do

autor, chegando a trazer inovações à literatura equatoriana, como a desmitificação da imagem

do índio romântico e idealizado de outras épocas. Também foi mérito de Icaza ter incluído na

problemática econômica e política do Equador e, sobretudo dentro do sistema semifeudal da

serra, a questão do capital e dos interesses estrangeiros na região – a empresa petrolífera

norte-americana, que submetia às suas condições o governo e as classes superiores

equatorianas.

94 Cf. ADOUM, J. E. (1972) p.206

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4. REDOBLE POR RANCAS: O SURGIMENTO DE UMA UTOPIA

Manuel Scorza nasceu em Lima, em 1928, mas passou parte de sua infância em

Huancavelica, já que seus pais eram oriundos das serras peruanas. Desde muito cedo esteve

engajado nas causas sociais (foi mandado ao exílio por mais de uma vez), tendo sido filiado

ao APRA (Aliança Popular Revolucionária Americana). Fundado no México, em 1924, por

Victor Raúl Haya de la Torre, o APRA apresentava em seu princípio um postulado bastante

condizente com a realidade latino-americana muito diferente da russa ou européia (o que fez

Haya de la Torre entrar em conflito com a Terceira Internacional). No início, alguns dos seus

objetivos principais eram, segundo Carlos Rangel, lutar contra o imperialismo norte-

americano e buscar uma “unidade da América Latina”95, além de apoiar a causa dos

camponeses indígenas. Todavia, a política pró-indigenista do APRA limitou-se apenas às

idéias e, mais ainda, caminhou para a social democracia, tecendo até alianças com o

presidente Manuel Prado, que se elegeu com a ajuda do partido em 1956: de acordo com Juan

González Soto, “a oligarquia subiu ao poder aliada desta vez com o APRA”96. As mudanças

na trajetória política do partido fizeram com que Scorza dele se desligasse e ingressasse, na

década de 1960, no Movimento Comunal do Peru, através do qual tomou contato maior com

as lutas dos mineiros e dos comuneiros dos Andes centrais (Cerro de Pasco, comunidades de

Yanacocha, Yanahuanca, entre outras). A participação nos protestos e o testemunho dos

abusos cometidos pelos latifundiários e pela mineradora norte-americana Cerro de Pasco

Corporation contra os comuneiros deram-lhe ensejo para escrever sobre esses acontecimentos,

denunciando os problemas e dando espaço para os invisíveis e mudos da história peruana. Foi

daí que nasceu A Guerra silenciosa, o ciclo de cinco romances publicados entre 1970 e 1979:

95 RANGEL, C. (1981) p.118 96 GONZALEZ SOTO, J. (1998) p.263. “[…] la oligarquía se alzaba con el poder aliada esta vez con el A.P.R.A.”

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Redoble por Rancas; Garabombo, el invisible; El jinete insomne; Cantar de Agapito Robles e

La tumba del relámpago.

Essas obras narram, portanto, a história de sucessivos movimentos de camponeses,

mineiros e pastores de ovelhas – em sua maioria índios, falantes de quíchua, nos Andes

centrais peruanos – contra as ações arbitrárias da companhia mineradora Cerro de Pasco

Corporation e dos latifundiários, donos de imensas propriedades agrárias, das leis e dos

governantes das províncias. É importante sublinhar que esses levantes de indígenas

camponeses realmente ocorreram no Peru nas décadas de 1950 e 1960 (muitas outras revoltas

aconteceram anteriormente a esse período, mas Scorza retratou as que ele pôde ver mais de

perto) e resultam dos variados problemas da organização econômica peruana, que era baseada

na mineração, sustentada pelo capital estrangeiro, e na produção agrícola, ainda nos moldes

do sistema semifeudal, sobretudo nas serras andinas, que estava nas mãos dos grandes

fazendeiros.

O problema dos indígenas recai na questão da terra, relacionada ao “gamonalismo”

que, conforme Valcárcel, citado por Mariátegui:

[...] Não designa somente uma categoria social e econômica: a dos latifundiários ou grandes proprietários agrários. Designa todo um fenômeno. O gamonalismo não está representado só pelos gamonais propriamente ditos. Compreende uma grande hierarquia de funcionários, intermediários, agentes, etc.97

A condição dos índios retratada na obra de Scorza assemelha-se muito à de Huasipungo, visto

que, embora se trate de países diferentes – Peru e Equador –, pertencem a uma mesma área

cultural (mestiços e descendentes de índios falantes de quíchua) e a uma mesma organização

socioeconômica. Um ponto que os distingue é que em Redoble por Rancas focalizam-se

principalmente os índios de comunidade, os comuneiros, e não os de “hacienda”, como os de

97 Cf. MARIÁTEGUI, J. C. (1958) p. 33. “El término ‘gamonalismo’ no designa sólo una categoría social y económica: la de los latifundistas o grandes propietarios agrarios. Designa todo un fenómeno. El gamonalismo no está representado sólo por los gamonales propiamente dichos. Comprende una larga jerarquía de funcionarios, intermediarios, agentes, parásitos, etc.”

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Huasipungo (apesar de haver um capítulo de Redoble por Rancas, um episódio independente,

em que aparecem os índios que trabalhavam como servos na fazenda de Dom Migdonio de la

Torre). Retomando Woortmann, podemos afirmar que a comunidade constitui um “grupo

social de índios e mestiços composto de um ou mais ayllus98 que possuem uma extensão de

terra em comum”99. Não obstante vivessem em comunidades, esses índios ainda estavam

vinculados às “haciendas”, uma vez que muitos comuneiros eram também colonos do

fazendeiro e contraíam dívidas, precisando prestar serviços gratuitos a ele. Além disso, outra

prática freqüente era a expansão dos latifúndios sobre as terras das comunidades: como o

gamonal, conforme bem afirmou Valcárcel, encontrava respaldo legal e político, ele agia

indiscriminadamente, invadindo terras alheias e incorporando-as às suas propriedades. Deste

modo, quando os indígenas não viviam como “servos” de um determinado latifundiário,

tinham suas terras tomadas por ele, que cometia toda sorte de crimes e não era punido,

porquanto tinha uma vasta hierarquia de cúmplices. Essas condições são o ponto principal dos

romances de Scorza e do nosso estudo sobre a obra.

Redoble por Rancas apresenta dois subenredos ou duas “sub-histórias”, de acordo com

a concepção de Friedhelm Schmidt: uma conta a luta da comunidade de Rancas contra a Cerro

de Pasco Corporation, que tomara a maior parte das terras usadas para o pastoreio; e outra

refere-se à revolta de Héctor Chacón e seus companheiros da comunidade de Yanacocha

contra o Dr. Francisco Montenegro, juiz de primeira instância e também proprietário de um

grande latifúndio. As duas sub-histórias aparecem perfeitamente alternadas em capítulos no

romance – elas sucedem-se umas às outras –, com exceção de um único capítulo, que narra a

malfadada tentativa dos índios de uma fazenda, liderados por Espíritu Félix, de fundar um

sindicato. Esse capítulo não tem relação intrínseca com o restante da obra, mas mostra a

98 Os ayllus, segundo Woortmann, funcionavam como um “sistema de distribuição anual de terras às várias famílias constituintes e de separação de certas terras coletivamente utilizadas [...]. Ademais, todos deviam obrigações à comunidade em geral.” WOORTMANN, K. (1973) p.2. 99 WOORTMANN, K. (1973) p.23.

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“curiosa” forma com que Dom Migdonio de la Torre, o gamonal, acaba com a idéia da

irmandade de seus funcionários: ele envenena todos os índios envolvidos, alegando depois

que a causa da morte foi um infarto coletivo, e não é punido, já que se trata de índios de

“hacienda” e principalmente porque Migdonio é amigo do Juiz Montenegro. Além disso,

podemos considerar esse episódio como uma espécie de síntese do processo da trama “índios

versus latifundiários”, pois Espíritu Félix passa do estado de ignorância inicial ao de

consciência após seu aprendizado no quartel onde serviu: lá ele descobre que “existía algo así

como una escritura de derechos, la Constitución, que incluía hasta rancheros de cerdos y

jayanes. Y supo más: esa misteriosa escritura afirmaba que grandes y chicos eran iguales.”100

O conhecimento sobre as leis o fez perceber que a exploração sofrida não era legítima e nem

natural, acendendo a luz de seus desejos e pensamentos utópicos que, como um “sonhar para

frente”, impeliu-o a uma tentativa de organização dos índios, logo, porém, massacrada pelo

poder instituído do latifundiário e do juiz.

A primeira sub-história mencionada está centrada na comunidade de Rancas, que se

descobre, em um dia, sem aviso prévio, adornada por uma Cerca que logo a enreda em um

exíguo espaço, subtraindo-lhe os pastos de suas ovelhas. A imagem criada por Scorza para

representar essa invasão é bastante interessante:

Nueve cerros, cincuenta pastizales, cinco lagunas, catorce puquios, once cuevas, tres ríos tan caudalosos que no se hielan ni en invierno, cinco pueblos, cinco camposantos engulló el Cerco en quince días. […] Los viajeros, forzados a pernoctar en Rancas, murmuraban que el Cerco no era obra de humanos, que brotaba al mismo tiempo, en docenas de caseríos, que pronto el Cerco entraría en los pueblos y hasta en las habitaciones.101

100 SCORZA, M. (2002) p.237. “[...] existia uma coisa assim como um escrito dos direitos, a Constituição, que incluía até porqueiros e bobocas. E soube mais: esse misterioso escrito afirmava que grandes e pequenos eram iguais.” (SCORZA, 1975, p.99) 101 Ibidem, p. 216. “Nove cerros, cinqüenta pastos, cinco lagoas, catorze mananciais, onze cavernas, três rios tão caudalosos que nem no inverno se congelam, cinco povoados, cinco cemitérios engoliu a Cerca em quinze dias. [...] Os viajantes, forçados a pernoitar em Rancas, murmuravam que a Cerca não era coisa de gente, que brotava ao mesmo tempo em dúzias de arranchamentos, que logo a Cerca entraria nos povoados e até nas casas.” (SCORZA, 1975, p.79)

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A Cerca pertencia à Cerro de Pasco Corp. e surge, no romance, personificada,

tomando proporções de ser vivo (ao longo de grande parte da obra, ela recebe atribuições de

um ser animado: “Así nació el cabrón, un día lluvioso, a las siete de la mañana. A las seis de

la tarde tenía una edad de cinco kilómetros. Pernoctó en el puquial Trinidad. Al día siguiente

corrió hasta Piscapuquio: allí celebró sus diez kilómetros.”102), sendo significativo o fato de

ser grafada com letra maiúscula, como um verdadeiro personagem. A Cerca, viva e voraz,

contrasta com a imobilidade dos comuneiros, que inicialmente desconhecem a origem e a

causa da perda de terras, seu único meio de sobrevivência.

No princípio, os índios riram do cercamento de um pequeno monte sem pastos ou

água, mas começaram a se apavorar quando viram que a Cerca aumentava a cada dia. Sua

total ignorância fazia-os pensar que ela era obra de Deus castigando os pecadores, cercando os

pastos, impedindo suas passagens e matando de fome as ovelhas:

– ¡Castigo de Dios, castigo de Dios! – bramaba don Teodoro Santiago [para convencer los indios] marcando con cruces las casas de los adúlteros y los calumniadores. – ¡Ustedes tienen la culpa! ¡Por sus lenguas podridas y sus deseos sucios, Diosito escupe sobre Rancas!103

E enquanto estes rezavam ou procuravam água benta para salvar seus rebanhos, a Cerca

enclausurava mais as terras e afugentava os animais silvestres. Somente Pis-pis, um

comerciante que viajava pelas cidades com suas mercadorias, sabia a verdadeira origem da

Cerca e alertou aos ranquenhos: a Companhia Cerro de Pasco era a responsável pelo

encarceramento de Rancas e muitas outras comunidades. Os indígenas, contudo, ainda

permaneceram resignados, “sólo sabían llorar”104, como afirma o narrador do romance, até

102 SCORZA, M. (2002) p.207. “Assim nasceu essa cadela, num dia chuvoso, às sete da manhã. Às seis da tarde tinha uma idade de cinco quilômetros. Pernoitou na fonte Trinidad. No dia seguinte correu até Piscapuquio: ali celebrou os seus dez quilômetros.” (SCORZA, 1975, p.69) 103 Ibidem, p.232. “Castigo de Deus, castigo de Deus! – bramia Dom Teodoro Santiago [para convencer os índios] assinalando com cruzes as casas dos adúlteros e dos caluniadores. / - Vocês têm a culpa! Por suas línguas podres [...], Deusinho está cuspindo em cima de Rancas!” (SCORZA, 1975, p.93) 104 Ibid, p.253. “[…]só sabiam chorar [...]”. (SCORZA, 1975, p.117)

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que se deu o discurso de Padre Chasán, muito respeitado pela comunidade, que reiterou a

informação dada por Pis-pis:

– El Cerco no es obra de Dios, hijitos. Es obra de los americanos. No basta rezar. Hay que pelear. La cara de Rivera se azuló. – ¿Cómo se puede luchar con <<La Compañía>>, padrecito? De los policías, de los jueces, de los fusiles, de todo son dueños. – Con la ayuda de Dios todo se puede.105

A figura do padre é determinante para o desvendar da verdadeira situação e para o

incentivo à reação. Muito diferente do religioso de Huasipungo (em que a igreja católica era

um dos pilares da trilogia embrutecedora dos índios), o padre Chasán parece incluir-se nos

seguidores da Teologia da Libertação, que surgiu e se desenvolveu na América Latina nos

anos de 1960 e cujos grandes nomes são os do peruano Gustavo Merino Gutiérrez e do

brasileiro Leonardo Boff. Nesse caso, a função do padre é de apoiar e estar ao lado dos pobres

e necessitados, não como a única salvação destes ou a luz que os guia à “civilização” (como

em Cumandá), mas como um companheiro de lutas e reivindicações. Conforme Boff, o

“teólogo da libertação optou por ver a sociedade a partir dos pobres, analisar os processos no

interesse dos pobres e agir na libertação junto com os pobres”106. Dessa maneira, ele procura

compreender todo o sistema socioeconômico e político que gera a pobreza, agindo a favor e

com os oprimidos. Além disso, a Teologia da Libertação preocupa-se em ressaltar o fato de

que o próprio povo é sujeito de sua libertação e de que nem a Igreja ou qualquer outra

instância devem substituí-lo nesse papel.107

O padre Chasán, em Redoble por Rancas, atuou na conscientização da comunidade e

chegou a, mais tarde, auxiliá-la, cedendo o espaço da igreja para a organização de um plano

105 SCORZA, M. (2002) p.253. “- A Cerca não é obra de Deus, meus filhos. É obra dos americanos. É preciso lutar. / A cara de Rivera azulejou. / - Como é que se pode lutar contra a Companhia, padrezinho? Ela é dona dos polícias, dos juízes, dos fuzis, de tudo. / - Com a ajuda de Deus, tudo se pode.” (SCORZA, 1975, p.117) 106 BOFF, L. (1980) p.187 107 Cf. BOFF, L. (1980) p.114

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de expulsão da Cerro de Pasco Corporation. É interessante notar que ele não representa os

comuneiros durante as reclamações às autoridades, nem é um personagem ativo no romance,

porém sua função é determinante na medida em que abre os olhos dos indígenas quanto ao

verdadeiro explorador, incitando-os a uma reação maior do que as idas ao confessionário ou

as rezas.

O aparecimento da Cerca e a intervenção de Chasán desencadeiam um processo

gradual de conscientização. De acordo com Mabel Moraña, a Cerca:

Transforma a relação natural homem/meio, acentua o caráter já viciado dessa relação e a dota de um significado diferente, quebra a possibilidade de identificação com o meio de inserção material nele e alimenta uma nova concepção daquela ordem, acentua as contradições e propicia a busca de uma conscientização crescente que se adequasse com fórmulas novas à nova realidade.108

Assim, os indígenas caminham de uma identificação simples, mais próxima à sua

realidade anterior – a Cerca é vista como um elemento vivo, já que eles desconhecem as suas

origens e ela avança indiscriminadamente sobre as terras da comunidade – até a percepção da

necessidade de reclamar seus direitos junto às autoridades, na tentativa de reverter a situação;

ou seja, avançam em direção a uma consciência maior das causas dos problemas (embora a

introdução da mineradora não seja compreendida em sua amplitude total – a do imperialismo

norte-americano no Peru, que submete os políticos e os gamonais) consciência esta que

reconfigura a sua realidade, forçando-os a aprender e a utilizar modos diferentes de reação às

adversidades. A partir dos episódios da Cerca e do sermão esclarecedor do padre, os índios

criam uma série de maneiras para tentar resolver o problema: de idas à prefeitura (onde mal

são recebidos) e consultas a advogados (que se aproveitam da sua falta de conhecimento sobre

as leis para explorá-los) até os ataques à Cerca e aos seus guardas.

108 MORAÑA, M. (1983) p.182. “El Cerco cambia la relación natural hombre/medio, acentúa el carácter ya viciado de esa relación y la dota de un significado diferente, quiebra la posibilidad de identificación con el medio de inserción material en él y alimenta una nueva concepción de aquel orden, acentúa las contradicciones y propicia la búsqueda de una concientización creciente que se adecúe con fórmulas nuevas a la nueva realidad.”

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Retomando o conceito de Cornejo Polar de “interferência” nos romances indigenistas,

podemos dizer que o aparecimento da Cerca marca essa ruptura entre um “antes” e um

“depois”, é a agressão externa que modifica o ambiente e a vida dos personagens envolvidos.

A partir da interferência é que se inicia a matéria romanceável da obra: a sub-história relativa

aos comuneiros de Rancas começa com a instalação da Cerca e a grande fuga dos animais que

intuem a gravidade do problema. Há um “antes” não narrado no romance, que, todavia, era

melhor ou mais suportável do que o “depois”, quando se perdem os pastos para a mineradora

e morrem os rebanhos, que eram a sustentação dos comuneiros.

Com a tomada de consciência exigida pela situação adversa – o momento de

interferência –, auxiliada pelas palavras do padre Chasán, começa a nascer o pensamento

utópico, cujo processo de formação segue o encaminhamento desse esclarecimento, como

vimos no capítulo 1109 de nosso trabalho. Os “sonhos diurnos” conceituados por Bloch, que

contêm as “imagens de desejo, de nostalgia, imagens de angústia”110, tornam-se ativos,

orientados para a ação, quando se produz algum sinal que desperte a consciência. A fome ou a

carência também impulsionam os homens em direção à superação dos problemas, das

insatisfações, tornando os sonhos diurnos, antes latentes, em atividades mais concretas. Desse

modo, o pensamento utópico somente pode surgir com a tomada de consciência, que coincide,

nesta sub-história, com a interferência e a posterior “lição” de Chasán.

Embora a comunidade intuísse a necessidade de uma revolução, a forma de ação

utilizada primeiramente pelos indígenas não foi organizada e articulada, constituindo-se em

sucessivos ataques à Cerca e conseqüentes embates contra a patrulha da Cerro de Pasco

Corporation. O movimento, assim, mostrou-se completamente ineficaz frente ao desigual

poderio “bélico” da patrulha e dos comuneiros. Somente um personagem continuou

persistindo, o velho Fortunato, que teimosamente enfrentava os guardas todas as noites, feria-

109 Cf. infra, pp. 21-24. 110 MÜNSTER, A. (1993) p.29

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se quase fatalmente, mas se recuperava e retornava ao combate solitário. Insistiu tanto que

Egoavil, chefe dos patrulheiros, começou a sonhar com o velho, vendo-o no lugar de Jesus

Cristo na cruz (como um mártir lutando pelas causas coletivas). Fortunato simboliza a falta de

projeto, a tentativa cega de transcender a realidade que caracterizava a própria rebelião da

comunidade contra um inimigo ainda abstrato e distante – uma companhia norte-americana,

representante do capital estrangeiro no Peru, personificada pela Cerca. Ademais, representa

também a persistência, característica distintiva dos índios dessa comunidade: Fortunato, após

sobreviver às pelejas com Egoavil, sem dar ouvido aos argumentos deste, que tentava

devolvê-lo à passividade, mostrando a desigualdade de poderes entre uma grande empresa e

um simples comuneiro –“Usted solo no puede nada, don Fortunato. <<La Cerro>> es

poderosísima. Todos los pueblos se han echado. Usted es el único que insiste.”111–,

estimulava sempre seus companheiros à reação, para a tentativa de resolução dos problemas

(são o desejo e o pensamento utópicos): “– Aquí ya no se puede retroceder. Retroceder es

tocar el cielo con el culo. Hombres o mujeres, no sé lo que son, pero tenemos que pelear.”112

Dos ataques à Cerca, os indígenas partem para as reclamações na prefeitura, onde não

são ouvidos, e para a consulta ao juiz, que cobraria honorários altíssimos para constatar a

existência da Cerca. Finalmente, encontram o alcaide Genaro Ledesma, personagem

fundamental no último romance do ciclo, La tumba del relámpago, que resolve auxiliá-los

denunciando a Cerro de Pasco Corporation e o juiz corrupto em uma rádio local. O resultado

de tal empresa foi um processo do juiz contra Ledesma e a disseminação de uma grande

epidemia: nenhuma autoridade conseguia enxergar a presença da Cerca, apesar de terem as

faculdades visuais normais para qualquer outro objeto. Scorza ironiza, com muito humor, o

111 SCORZA, M. (2002) pp. 257-258. “O senhor não pode nada, Dom Fortunato. A Cerro é poderosíssima. Todos os povoados se entregaram. O senhor é o único que insiste.” (SCORZA, 1975, p.121) 112 Ibidem, p.281. “Agora já não se pode mais recuar. Recuar é bater no céu com o cu. Homens e mulheres, não sei o que são, mas temos que brigar.” (SCORZA, 1975, p.145)

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fato de que o capital estrangeiro subjuga o Peru às suas vontades – políticos, juízes e

fazendeiros apóiam e dependem dele; por conseguinte, os índios são ainda mais explorados.

Como os meios legais não funcionam, os comuneiros voltam a atacar, recorrendo

novamente à luta armada. Entretanto, a revolta é inútil, uma vez que a disparidade de forças

entre ranquenhos e a Guarda de Assalto é enorme: os primeiros com pedras, paus e fundas, os

últimos com fuzis e metralhadoras. Embora houvesse um forte pensamento e desejo utópicos,

a rebelião foi pouco refletida, não planejada e nem organizada, culminando no massacre dos

indígenas.

É interessante notar como esse subenredo ou sub-história de Redoble por Rancas

aproxima-se, sob certos aspectos, de romances indigenistas como Huasipungo. Em ambos há

um momento de interferência, como já verificamos: o mundo indígena é agredido de fora.

Curiosamente, nas duas obras a agressora é uma multinacional norte-americana, que interfere

indiretamente em Huasipungo, pois ela é intermediada pelo latifundiário Dom Alfonso

Pereira, e diretamente em Redoble por Rancas. Icaza e Scorza apontam e questionam, então,

um fenômeno geral da América Latina: o avanço do imperialismo norte-americano, que

acabou obrigando os países latino-americanos à especialização e à monocultura (petróleo,

minérios, por exemplo), conforme já afirmara Mariátegui em 1928. Os indígenas continuam

sendo explorados, constituindo um vasto contingente de mão-de-obra barata. Essa

interferência produz um choque profundo nas comunidades indígenas: nas “haciendas” de

Huasipungo, os índios sofrem um grande recrudescimento dos abusos e dos trabalhos

forçados e insalubres; em Redoble por Rancas, os comuneiros, ignorantes da origem da

Cerca, assistem resignados ao cercamento das terras comunitárias. O tom de coletividade

prevalecente também é um elemento que aproxima este subenredo ao romance de Icaza:

Fortunato e Chiliquinga são os índios mais individualizados das duas obras, sendo que o

primeiro é melhor construído se levarmos em conta os pormenores de seu caráter descrito na

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trama (a persistência, a coragem, seu poder de liderança), mas ambos representam as suas

comunidades como um todo.113

É importante salientar também um dado extraliterário: Manuel Scorza escreve em nota

antes do início do romance que ele é “más que un novelista, [...] es um testigo”114 dos

acontecimentos que narrará. Em outra nota, o escritor insere a notícia de um jornal peruano no

qual estão expressos os lucros obtidos pela Cerro de Pasco Corporation. Do mesmo modo que

Icaza, Scorza, escritor, por meio dessas notas, identifica-se com o narrador dos romances e

procura dar veracidade ao seu relato, ressaltando seu conhecimento sobre o que vai narrar e

posicionando-se como o guia que mostrará ao leitor o mundo por este desconhecido. Esses

paratextos (conforme denominação de Dunia Gras) apontam, por conseguinte, para uma

realidade extraliterária, nos moldes dos romances indigenistas como Huasipungo, e o “leitor

se vê induzido a pensar que o que vai ler em seguida não é mais que a narração objetiva de

feitos que se apresentam como puro reflexo da realidade”115. Apesar disso, o que veremos não

é um romance totalmente realista, abrigando, ao contrário, uma série de peculiaridades que o

apartam dessa forma de criação literária. O que fica explícito com o uso das notas é que

Scorza, o autor/narrador, está numa posição na qual se permite discorrer, com propriedade,

sobre uma história testemunhada e romanceá-la de modo a dar uma dimensão maior aos

eventos, oferecendo aos leitores a visão dos oprimidos, dos vencidos da história.

Há também muitas diferenças entre esta sub-história de Redoble por Rancas e o que

ocorre em Huasipungo. Uma distinção fundamental está no fato de que no livro de Scorza há

uma posterior tomada de consciência: os comuneiros não permanecem em um estado de

ignorância, tendo esperança de vencer o inimigo; eles possuem desejos e pensamentos

113 Angel Rojas, como dissemos no capítulo 3 da dissertação, afirmou que Andrés Chiliquinga é o símbolo de sua classe. Friedhelm Schmidt escreveu que Fortunato é um “personagem coletivo” (1991, p.237). 114 SCORZA, M. (2002) p.149. “[…]mais do que um romancista, [...] é uma testemunha.” (SCORZA, 1975, p.13) 115 GRAS, D. Apud. SCORZA, M. (2002) p. 69. “[...] el lector se ve inducido a pensar que lo que va a leer seguidamente no es más que la narración objetiva de unos hechos que se presentan como puro reflejo de la realidad.”

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utópicos, já que o conhecimento sobre o problema enfrentado e sobre os seus direitos naquele

caso permite que eles possam minimamente organizar-se e buscar algum modo, mesmo que

desarticulado, de modificar a situação, suprindo suas carências. Por outro lado, em

Huasipungo, a utopia não chega a existir, uma vez que os indígenas reagem automaticamente

à perda dos seus pedaços de terra. Até o fim do romance os personagens parecem não

perceber os verdadeiros problemas: a indignação corresponde à expropriação dos

huasipungos, atitude impensável naquela relação servil e “tradicional” entre o senhor do

latifúndio e os índios que a ele “pertenciam”, e não à exploração que sofriam e aos trabalhos

pesados sem remuneração. Se há utopia, é a do narrador onisciente em terceira pessoa, que

não pode concordar com essa realidade equatoriana.

Outra dessemelhança entre os romances116 está na construção do texto, nos seus

diversos recursos literários. Em Redoble por Rancas, Scorza abandona o realismo seco e duro,

pincelado com passagens naturalistas, caro a Icaza, e também o tom sério e solene que

caracterizava os romances indigenistas ortodoxos (e mesmo as grandes obras de José María

Arguedas). Scorza abusa da ironia e do humor, das metáforas e das prosopopéias, o que lhe

valeu muitas críticas à época da publicação de suas obras, sobretudo da primeira: conforme

Escajadillo, para os primeiros críticos, “o indigenismo de Scorza não estava de acordo com a

tradição indigenista (era ora ‘frívolo’ ou ‘traía uma história’)”117. Logo depois, os críticos

silenciaram quanto à obra scorziana, ficando esta por longo tempo sem pesquisas sérias no

Peru (internacionalmente, os romances obtiveram grande êxito desde os seus lançamentos).

Obviamente, A guerra silenciosa não se enquadra no Indigenismo tradicional, como

primeiramente perceberam os críticos – o que, em absoluto, não deve ser considerado um

“defeito” –, mas relaciona-se com duas vertentes: a tradição indigenista (da qual herda a

116 Neste caso, o que será abordado não se limita apenas ao subenredo referente à comunidade de Rancas em sua peleja contra a Cerro de Pasco Corporation, mas também se estende à sub-história que narra a luta de Héctor Chacón e os comuneiros de Yanacocha contra o juiz Montenegro. 117 ESCAJADILLO, T. (1994) pp.114-115. “[…] el indigenismo de Scorza no ‘cuadraba’ con la tradición indigenista (era ora ‘frívolo’ o ‘traicionaba una historia’) […]”.

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motivação social, a denúncia e o posicionamento do autor como testemunha e conhecedor dos

acontecimentos e dos referentes dos romances) e a nova narrativa do boom da literatura

hispano-americana dos anos de 1960.

Desse modo, Redoble por Rancas não tem um enredo linear como Huasipungo.

Apresenta analepses e prolepses; muitas vezes nos são apresentados acontecimentos somente

explicados posteriormente na trama. Há também uma multiplicidade de narradores. A

focalização heterodiegética onisciente predomina, porém aparece, em menor quantidade, a

homodiegética, em que tomam a palavra os protagonistas: Fortunato na primeira sub-história

e Héctor Chacón na segunda, como veremos mais tarde (e neste tipo de focalização, o

narrador parece dar espaço aos referentes, cedendo-lhe a voz para eles mesmos poderem

contar suas histórias, teoricamente sem intermediários). Todavia, a maior diferenciação dos

romances de Scorza em relação aos da tradição indigenista talvez resida na importância da

“fantasia” ou do “onírico” ou do “realismo maravilhoso”. Os termos utilizáveis são diversos e

a questão é bastante controversa.

Mabel Moraña emprega o termo “fantasia” sem, contudo, explicitar a razão para tal

escolha, mas ressalta a função ideológica que esta categoria exerce no conjunto dos romances

de Scorza. Para a ensaísta, o discurso novelesco scorziano vai além da crônica, do texto

testemunhal baseado em fatos reais, como observamos anteriormente no caso dos paratextos

empregados pelo autor, já que recria a realidade, no plano da ficção, por meio da incorporação

de elementos imaginários, fantásticos, e oníricos, o que fez muitos críticos analisarem o ciclo

como uma épica. O próprio Scorza também acreditava nessa possibilidade: em entrevista a

José Julio Perlado, ele relata que todos os seus livros pretendem ser “cantares de gesta,

cantares épicos”118. O gênero épico, então, fica parecendo uma imposição do referente, cujo

118 PERLADO, José Julio. Manuel Scorza: “sobre la irrealidad total, he puesto la realidad absoluta”. Entrevista inédita (1979). In: Espéculo – Revista de Estudios Literarios. Ano III, no. 7. Madrid: Facultad de Ciencias de La Información, Universidad Complutense de Madrid, nov.97 – fev.98. [http://www.ucm.es/OTROS/especulo/numero7/scorza.htm].

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cotidiano estaria sempre povoado pela existência do mito e do fantástico. Isso, no entanto, é

rechaçado por Moraña, que não atribui ao referente a “obrigatoriedade” da utilização de

elementos oníricos ou fantásticos, mas a uma visão subjetiva e ideológica do autor – é a sua

forma particular de interpretar a história dos índios:

[...] Mais do que resgatar uma ‘vivência’ e metaforizar um sentimento popular, o que a saga metaforiza é uma peculiar concepção da história peruana, uma determinada visão – subjetiva, ideológica – com respeito à qual os elementos fantásticos, oníricos, etc., jogam com elementos ilustrativos, re-presentações de uma tesis discernível dos demais elementos que constituem a ficção.119

Para Moraña, tanto os traços míticos que envolvem muitos personagens dos romances,

como Chacón, Garabombo ou Añada (de La tumba del relámpago), quanto a fantasia inserida

no discurso como uma maneira de enxergar a realidade ou a forma como esta se manifesta,

atribuídos ao povo indígena, são mostrados através de uma linguagem poética em função

expressiva e contrastam com o discurso político, mais explícito em La tumba del relámpago,

que aparece em função basicamente referencial. A função ideológica manifesta-se, conforme

Moraña, porque o segundo discurso resulta dominante no sentido de ser posto como uma

visão mais esclarecida, mais refletida e, por conseguinte, “superior” dos eventos120.

Cornejo Polar também afirma que Scorza “assume vigorosamente a racionalidade

mítica, e boa parte de seus relatos só pode entender-se a partir dessa opção [...]”121; entretanto,

acredita que o narrador, sabedor dos mitos que fazem parte da vida dos personagens

indígenas, além de não mostrar nenhum ceticismo em relação a estes, ainda os aceita com

simpatia ao longo de todos os quatro romances do ciclo, com exceção da última obra, na qual

percebe que essa racionalidade mítica não é suficiente para vencer a Cerro de Pasco

119 MORAÑA, M. (1983) p.180. “[…] más que rescatar una ‘vivencia’ y metaforizar un sentimiento popular, lo que la saga metaforiza es una peculiar concepción de la historia peruana, una determinada visión – subjetiva, ideológica – con respecto a la cual los elementos fantásticos, oníricos, etc., juegan como elementos ilustrativos, re-presentaciones de una tesis discernible de los demás elementos que constituyen la ficción.” 120 Cf. MORAÑA, M. (1983) p.191 121 CORNEJO POLAR, A. (2000) p.112

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Corporation, como veremos no capítulo subseqüente. Cornejo Polar ainda observa que os

mitos e crenças que aparecem nos romances não são conteúdos míticos verdadeiramente

existentes na cultura quíchua (exceto o mito de Inkarri, que ganha espaço em La tumba del

relámpago), mas são:

Construções livres elaboradas pelo narrador, a partir da dinâmica geral desse tipo de racionalidade, o que implica o fato de que seu intento básico não é o de testemunhar as plasmações históricas dessa mítica, mas o de internalizar sua estrutura mental e fazê-la discorrer inventivamente por novos canais.122

O crítico peruano emprega o termo “realismo mágico” ou “realismo maravilhoso” para

designar os elementos míticos da obra de Scorza. Esse recurso contrapõe-se ao realismo social

também presente nos romances e constitui, segundo ele, uma modernização do relato, ou seja,

uma aproximação dos romances de Scorza aos da nova narrativa, uma vez que não se

relaciona diretamente com os mitos quíchuas. O conceito de realismo maravilhoso parece

bastante pertinente ao texto scorziano, não obstante muitos críticos tenham utilizado o

vocábulo “fantástico”como Mabel Moraña e Suely Reis Pinheiro (esta em sua análise ao

segundo romance do ciclo, História de Garabombo, o invisível)123, visto que os

acontecimentos maravilhosos – a existência de um personagem, o Ladrão-de-Cavalos, que

herdou do pai a capacidade de conversar com os eqüinos, a presença de um outro personagem,

Abígeo, que tem sonhos premonitórios, e o diálogo além-túmulo entre os assassinados no

massacre de Rancas que fecha o romance, entre outros episódios, somente para citar os de

Redoble por Rancas – não contrastam com os da realidade. De acordo com Irlemar Chiampi,

122 CORNEJO POLAR, A. (2000) p.113. 123 Scorza, em entrevista a José Julio Perlado, refuta o “mágico” e prefere o termo “onírico”. Ele diz que, ao escrever, trata de “sonhar a história, de vê-la, de se submergir em busca das grandes profundidades oníricas”. O autor não faz menção ao “maravilhoso”, que, todavia, parece ser válido para a sua obra, já que, segundo Irlemar Chiampi, esse termo “tem servido para designar a forma primordial do imaginário de obras [...] como as canções de gesta [...]” (CHIAMPI, 1980, p.49). Sendo estas, como já verificamos, influências declaradas pelo próprio escritor, o termo “maravilhoso” parece ser bastante pertinente.

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o realismo maravilhoso contesta a disjunção dos elementos contraditórios ou a irredutibilidade da oposição entre o real e o irreal. A vacilação, expressada pela modalização (‘me parece que...’) – e largamente praticada pelo narrador ou personagem fantástico –, não se inclui entre os seus traços discursivos. Os personagens do realismo maravilhoso não se desconcertam jamais diante do sobrenatural, nem modalizam a natureza do acontecimento insólito. 124

Assim, em Redoble por Rancas, não existe dúvida ou incerteza quanto à habilidade do

Ladrão-de-Cavalos de falar com seus animais e nem à de Abígeo de ver o futuro nos sonhos,

tanto que este é procurado e pago para descobrir os adúlteros da cidade. O último capítulo do

romance também é bastante interessante neste sentido, uma vez que se inicia com a chegada

da Guarda de Assalto em Rancas, que vai com a missão de expulsar à força os comuneiros das

terras da Cerro de Pasco Corporation, e termina com uma conversa entre defuntos, os que

foram mortos a tiros e golpes pela Guarda. Dom Alfonso Rivera, o procurador da

comunidade, conta a Fortunato, através de um pequeno buraco cavado sob a terra entre os

túmulos, o que sucedeu depois de sua morte, já que este foi o primeiro a morrer. Depois, Dona

Tufina, outra ranquenha, é quem narra os acontecimentos após a morte de Rivera. E num

diálogo sem fim, os comuneiros refletem sobre o ocorrido e até sobre o massacre de outras

comunidades, dando continuidade ao processo de conscientização política que se iniciara com

o sermão do padre Chasán. Nesse episódio, Scorza utiliza o recurso do realismo maravilhoso

para também tentar conceder voz aos excluídos. Não se limitando à história oficial, que

dificilmente registra essas rebeliões, o narrador conta uma nova história, narrada por seus

protagonistas, mesmo que já depois de mortos.

Mesmo que o realismo maravilhoso, sempre relacionado à racionalidade mítica

indígena, seja colocado em separado do discurso político referencial no plano do discurso

narrativo, sobretudo no último romance d’A guerra silenciosa, não podemos negar que os

eventos sobrenaturais sejam acolhidos no enredo entre os personagens e passados ao leitor

como algo natural ou trivial. Dessa forma, como ressalta Cornejo Polar, Scorza distancia-se

da tradição indigenista ortodoxa com o emprego do realismo maravilhoso, ao mesmo tempo

124 CHIAMPI, I. (1980) p.61

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em que reforça as tensões e contradições próprias da literatura heterogênea como a sua (que

podemos chamar, como observamos no capítulo 2, de neo-indigenista) e a indigenista

ortodoxa: o escritor procura uma aproximação do seu referente, colocando-se como

testemunha dos levantes camponeses e representando a sua racionalidade mítica, mas também

acaba se distanciando dele tanto ao empregar o realismo maravilhoso, que já é uma

modernização do relato, quanto ao posicionar a visão política dos fatos como superior à visão

“maravilhosa” atribuída aos índios (haja vista o caso da Cerca, que impõe a conscientização

através de terceiros, que tiram as vendas dos olhos dos comuneiros). Scorza não pode, apesar

de parecer ser esta a sua intenção, dar uma versão verista dos levantes e nem do mundo de seu

referente125, porquanto não é índio, mas um intelectual mestiço étnica e culturalmente. A

riqueza da sua obra, entretanto, consiste exatamente nas contradições que emanam do desejo

de fazer seus referentes falarem ao mesmo tempo em que ele mesmo, escritor, reconstitui,

segundo sua imaginação, o mundo do seu referente. Esse intrincado mecanismo faz seus

livros simultaneamente muito próximos e apartados da tradição indigenista, trazendo a esta

inovações que muitas vezes intensificam as tensões nela já contidas.

Com relação ao outro subenredo do romance, ou seja, a insurgência contra o juiz

Francisco Montenegro, congregador de duas das mais temíveis classes embrutecedoras dos

índios – os latifundiários e a Justiça, representante do Estado –, há outra questão a ser

abordada: o fato de a luta ter sido iniciada por um único personagem, Héctor Chacón, cujo

epíteto é Nictálope (aquele que enxerga no escuro), e motivada por um ódio de infância (seu

pai havia sofrido uma punição arbitrária e cruel de Montenegro). Embora a iniciativa tenha

surgido de um só indivíduo, é importante salientar que serviu também aos interesses de outros

membros da sua comunidade, uma vez que todo o povoado era sempre atingido pela

125 Manuel Scorza parece desejar apresentar uma versão dos fatos sob a perspectiva dos índios, dos vencidos da história, como podemos verificar neste trecho da entrevista concedida a Mabel Moraña: “Mis libros son contados siempre desde la boca de los oprimidos, desde los ojos y la piel de los flagelados.” (MORAÑA, 1983, p.172).

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exploração e humilhação do juiz. No povoado, dizia-se que ele “dos cárceles tiene [...]: una en

su hacienda y otra en la provincia.”126

É bastante elucidativo o sonho (noturno) de Chacón ao sair da prisão, como resultado

de um desentendimento com Montenegro. Chacón conseguiu reunir homens, que cavalgaram

por muitos meses até chegar à fazenda de Montenegro, invadindo-a, e perseguiram seu

proprietário a fim de julgá-lo, condená-lo e expulsá-lo da província. A partir desse sonho,

Héctor começa a solidificar a idéia de assassinar Montenegro, procurando reunir homens para

isso. Assim, podemos dizer que em certa medida o sonho noturno transformou-se em diurno,

condição essencial para a formação do pensamento utópico. O impulso que orientou esse

sonho diurno à atividade foi o histórico de arbitrariedades e ultrajes sofridos pelo Nictálope

desde a infância e, por extensão, por toda a comunidade, narrados em analepses ao longo do

romance. Os objetivos de Chacón, concomitantemente, coincidem com a vontade e as

necessidades da comunidade, possibilitando a reunião de fatores precisos para uma tentativa

mais concreta de mudança, para a consolidação da utopia de libertação.

Durante o processo de arregimentação de braços para a luta contra os latifundiários,

inclusive Montenegro, percebemos o ápice de esperança, o pensamento utópico:

– Héctor tiene razón – dijo Pis-pis –. Mentira decimos que somos libres. Somos esclavos. La única forma de salir adelante es matando.

[...]

– Estas injusticias las debemos afrontar con sangre – dijo el Flaco, entusiasmado–. Esto debe ser como una revolución.127

Héctor e alguns homens da comunidade de Yanacocha – Abígeo, Ladrão-de-Cavalos,

Pis-pis – planejam antecipadamente a morte do juiz, que, por meio de uma denúncia, toma

126 SCORZA, M. (2002) p. 332. “[...] tem duas cadeias: uma na sua fazenda e outra na província.” (SCORZA, 1975, p.194) 127 Ibidem, p.333. “- Héctor está com a razão – disse Pis-pis. / - É mentira dizer que somos livres. Somos escravos. A única forma de ir adiante é matando. / [...] /- Temos que enfrentar estas injustiças com sangue – disse o Magro, entusiasmado. /- Isto deve ser uma revolução.” (SCORZA, 1975, p.194)

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conhecimento da sua morte programada e foge. Depois, Chacón é novamente delatado e acaba

sendo preso.

Fica claro, então, o desejo de fazer ruir com a ordem vigente de abusos e injustiças,

mas não existe um planejamento, um projeto que os guie para além da empreitada, ou seja,

não poderíamos falar ainda em revolução. Há em curso uma confabulação, uma revolta sem

perspectivas muito reais: invadem-se fazendas, e esperam-se as reprimendas, que certamente

viriam com violência máxima.

Neste subenredo do romance, percebemos que não há propriamente uma interferência;

a consciência da exploração sofrida por centenas de anos está presente, sobretudo, em

Chacón. De acordo com Rodríguez Ortiz, todas as seqüências correspondentes a Héctor são

narradas de forma não-cronológica128: a técnica narrativa, assim como a forma de tratar o

tema dos indígenas contra os latifundiários, distanciam-se bastante de romances indigenistas

como Huasipungo. Além disso, parece não ser necessária uma interferência para se narrar a

história dos índios comuneiros e nem para a construção de um pensamento utópico; estes têm

passado e “matéria” suficiente para serem romanceados e consciência de sua posição ocupada

na sociedade andina para construírem seus projetos utópicos. Ademais, nesta sub-história, há

um tom menos coletivo. É claro que Chacón age com seus companheiros e precisa deles para

conseguir executar seus planos (e é desejo de todos acabar com a exploração), mas ele é

apresentado como o grande líder, o mentor de tudo e o agitador de quem nasce a utopia e que

saberá conseguir, como escreveu Escajadillo, “que os comuneiros recuperem sua ‘raiva’ e

empreendam uma e outra vez o caminho da rebelião armada”129. Em Redoble por Rancas,

Héctor é o grande cabeça (como Garabombo, em Garabombo, el invisible; Raymundo

Herrera, em El jinete insomne, e Agapito Robles, em Cantar de Agapito Robles) e não sofre

128 Apud. SCHMIDT, F. (1991) p.237. 129 ESCAJADILLO, T. (1978) p.186. “[…] que los comuneros recuperen su ‘rabia’ y emprendan una y otra vez el camino de la rebelión armada.”

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um processo de conscientização política tão explícita quanto no caso dos comuneiros de

Rancas, pois desde cedo não se resignava frente às injúrias que Montenegro lhe impunha:

“Fue la primera vez – tenía nueve años – que la mano de Héctor Chacón, el Nictálope, sintió

sed de la garganta del doctor Montenegro.”130 Embora, na prisão, tivesse obtido maiores

esclarecimentos sobre as leis, Chacón sempre teve acesa a chama da justiça para a sua

comunidade e, portanto, do pensamento utópico.

A sub-história de Chacón distingue-se, dessa forma, da de Fortunato e dos ranquenhos,

mantendo, portanto, um distanciamento maior com relação aos romances indigenistas

ortodoxos. É interessante notar que Scorza parece construir um ciclo no qual Redoble por

Rancas apresenta um subenredo “intermediário” entre as obras da tradição anterior, como

Huasipungo, e as neo-indigenistas, que “modernizam” aquela vertente literária. O subenredo

de Rancas é narrado de forma mais linear: seus personagens agem como um grupo, num

coletivo em que Fortunato se destaca, mas ele os representa como uma espécie de metonímia

da comunidade e do movimento, e a interferência é essencial para a conscientização de classe,

que vem necessariamente “de fora”. Já a sub-história de Chacón e da comunidade de

Yanacocha não é narrada de maneira linear e, sobretudo, o que é determinante é a politização

de Héctor. Embora o centro do problema seja a relação dos comuneiros com os gamonais, o

que não implica a ampliação da problemática a níveis nacionais – como poderia ocorrer no

caso da outra sub-história, já que se trata da intromissão da mineradora norte-americana –,

este subenredo parece já mostrar o índio de uma perspectiva mais “ativa”, como consciente de

sua classe e da ilegalidade das ações dos latifundiários. A utopia, que depende da capacidade

de reflexão e de projeção de planos e idéias, aparece desde o princípio em Chacón, ao passo

que, em Fortunato e nos comuneiros de Rancas, ela começa a surgir apenas posteriormente,

quando finalmente compreendem a origem da Cerca. O processo ao qual nos referimos – a

130 SCORZA, M. (2002) p.204. “Foi a primeira vez – tinha nove anos – que a mão de Héctor Chacón, o Nictálope, sentiu sede da garganta do Montenegro.” (SCORZA, 1975, p.65)

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caminhada de uma tradição indigenista a uma “modernização” do movimento, além da

trajetória da utopia e da perspectiva pela qual se vê o indígena – culminará em La tumba del

relámpago, objeto de nosso próximo capítulo.

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5. LA TUMBA DEL RELÁMPAGO: DOUTRINA E UTOPIA La tumba del relámpago é o último romance d’A guerra silenciosa e apresenta

algumas peculiaridades em relação aos quatro anteriores, diferenciando-se bastante destes.

Como o próprio autor denominou “ciclo de obras”, há uma espécie de trajetória de

pensamento, de organização utópica, de processo (da representação do mítico ao

conhecimento da história), que se desenvolve a partir das experiências narradas nas obras

precedentes ou que procura um fecho. O ciclo também sugere a idéia de uma repetição, como

nas estações do ano: o processo de reivindicação, rebelião, morte e ressurgimento da utopia

reitera-se em cada um dos livros que o compõem.

Em La tumba del relámpago, a desesperança causada pelos massacres contados nos

romances anteriores é substituída por uma boa dose de energia utópica com a introdução de

um elemento “estrangeiro”, Genaro Ledesma, personagem que já havia aparecido em Redoble

por Rancas, mas que exerce função determinante neste último livro da série. Aqui

percebemos uma mudança significativa: ao passo que os líderes e protagonistas dos quatro

primeiros livros d’A guerra silenciosa eram sempre personagens oriundos das comunidades e

integrantes do mundo indígena (Héctor Chacón, Fortunato, Garabombo, Raymundo Herrera e

Agapito Robles), Ledesma vem de fora; é um personagem “urbano”, representante da

intelectualidade simpatizante das causas campesinas.

Ledesma chegou a Cerro de Pasco para lecionar História em uma escola pública e

deparou-se com a precariedade da vida de seus alunos, a maioria deles mineiros da Cerro de

Pasco Corporation, naturais das comunidades camponesas. Com o tempo, acabou ganhando a

confiança destes ao denunciar, numa rádio local que cedera um espaço de sua programação

para o colégio, os problemas causados pelas más condições de trabalho nas minas da Cerro de

Pasco e pela demissão em massa dos trabalhadores em razão da queda dos preços dos

minerais no mercado internacional. Despedidos, os mineiros eram obrigados a retornar à sua

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comunidade natal, agravando a questão da falta de terras – exatamente o mesmo problema que

já os tinha motivado a deixá-las.

A importância de Genaro Ledesma crescia à medida que se envolvia com os

camponeses e mineiros, observando as dificuldades da região, e ele acabou por transformar-se

em um dos representantes dos comuneiros, os quais chegaram a custear os seus estudos de

advocacia com a intenção de terem um aliado leal apto a defender as suas causas

juridicamente. Todavia, enquanto Ledesma concluía seus estudos, os problemas agravavam-se

com a ampliação de uma hidrelétrica construída pela Cerro de Pasco Corporation, que fez

submergir muitas terras produtivas das comunidades. Esse fato funciona no enredo como um

elemento catalisador dos ânimos: não é propriamente uma “interferência” – a agressão externa

que evidencia um “antes” e um “depois”, como a de Huasipungo ou da sub-história da

comunidade de Rancas versus a Cerro de Pasco Corporation –, uma vez que não representa a

motivação que leva à revolta ou à tomada de consciência da exploração. Em La tumba del

relámpago, os personagens já se mostram “maduros”: tendo vivido as experiências narradas

nos romances precedentes, eles não mais temiam massacres, pois tinham a necessidade, o

desejo utópico de transformar a realidade. A expansão da represa da hidrelétrica é um

acelerador do processo de reivindicação, que se estende das causas legais, quase nunca

favorecedoras dos índios, ao uso da força, a luta armada.

No momento em que os comuneiros, por iniciativa própria, decidem partir para uma

rebelião (invasão de fazendas), Ledesma é chamado para, além de advogado, tornar-se

dirigente do movimento. Enquanto representante externo à classe dos camponeses, na posição

de intelectual, Ledesma traz à baila uma nova forma de organização: com ele, pela primeira

vez, procura-se inserir um programa de apoio – o socialismo – à sublevação campesina. Essa

nova organização é também um novo impulso para o desejo utópico; novamente há esperança

e projeção de um plano para a transformação da realidade. No romance, o socialismo exerce a

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função de “modernizar” a luta camponesa – “la doctrina socialista es la única que puede dar

un sentido moderno, constructivo, a la causa indígena”131 – e toma por referência o sucesso da

revolução cubana. A tensão entre a “tradição” e a “modernização” surge, em La tumba del

relámpago, relacionada ao contexto das sublevações nos Andes centrais. Obviamente, a

discussão que envolve esse assunto é extensa e exige um longo e cuidadoso trabalho,

rendendo, certamente, uma outra dissertação; nosso propósito, neste estudo, é apenas o de

delimitar essa questão a alguns aspectos concernentes ao nosso corpus literário. Como bem

observou Henri Lefebvre, precisamos sempre nos perguntar: “Que era ou parecia moderno em

tal ou tal data [...]?” Assim, tendo em vista esse conselho, concentraremos esse

questionamento nas rebeliões camponesas indígenas e na inserção do socialismo, levando em

conta o pensamento de Mariátegui, referido explicitamente pelo narrador, que chega a citar

trechos de seus mais célebres ensaios na última obra d’A guerra silenciosa.

De acordo com Hugo Cancino, o conceito de “tradição” é comumente abordado de

forma equivocada em trabalhos sobre “modernidade”. Sendo tratado como antípoda deste

conceito, é, portanto, definido como “imobilismo, ignorância, preconceito, superstição,

reprodução dos sistemas de valores, das línguas, mentalidades e atitudes de passado

remoto”132. Em contrapartida, a modernidade seria o “signo do começo da História, entendida

esta como um processo orientado pela razão instrumental”133. Na América Latina, segundo

este autor, a modernização foi imposta “de cima”, pela elite que desejava criar uma imagem

de nação livre da “barbárie” representada pela tradição dos povos indígenas. Por conseguinte,

o processo modernizador não poderia ser levado a cabo de forma homogênea, atingindo todos

os níveis dos Estados latino-americanos. Para Néstor García Canclini, no continente latino-

131 SCORZA, M. (1985) p.129. “A doutrina socialista é a única que pode dar um sentido moderno, construtivo, à causa indígena.” (SCORZA, 1986, p.126) 132 CANCINO, H. (2002) p.13. “[…] inmovilismo, ignorancia, prejuicio, superstición, reproducción de los sistemas de valores, de las lenguas, mentalidades y actitudes de pasado remoto.” 133 Ibidem, p. 13. “[...] el signo del comienzo de la Historia, entendida ésta como un proceso orientado por la razón instrumental.”

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americano, a “modernização operou poucas vezes mediante a substituição do tradicional e do

antigo”134; houve um processo parcial de urbanização e industrialização em muitas partes do

continente, porém mantinham-se “estruturas econômicas e hábitos políticos pré-modernos”135.

Uma conseqüência dessa convivência beligerante de variadas temporalidades históricas em

um mesmo momento são os conflitos que reforçam a imagem negativa da tradição, ou melhor,

a identificação da tradição necessariamente com o “atraso”, sua percepção como um

empecilho ao “progresso” (nessa perspectiva, por exemplo, a tradição indígena significaria em

todas as hipóteses a impossibilidade da “modernização” e do “desenvolvimento”, o que seria

uma posição um tanto equivocada).

Essa questão é bastante controversa e ainda não pode ser considerada encerrada;

podemos verificá-la na opinião de autores contemporâneos como Mario Vargas Llosa, cuja

crítica a José María Arguedas tem como alvo o “arcaísmo” de seus romances, que valorizam e

desejam conservar a cultura indígena com seus costumes e seus modos de ver o mundo. Ao

analisar Os rios profundos, de Arguedas, Vargas Llosa caracteriza a vivência entre os índios,

rememorada pelo protagonista Ernesto, como uma “realidade caduca”136. Ademais,

caracteriza como superstições – que seriam um “legado de sua metade espiritual índia”137 – as

diferentes formas sob as quais o personagem vê a natureza, por ele percebida como dotada de

poder e vivacidade, distinguindo-se assim da visão “ocidental” dos fenômenos da natureza.

Agindo e pensando dessa maneira, Ernesto estaria, para Vargas Llosa, renegando “a razão

como vínculo com a realidade, e [preferindo] intuições e devoções mágicas”138. Fica, pois,

claro que, para Vargas Llosa, a visão de mundo dos indígenas é irracional (porque não

científica). Pensando através de dicotomias como tradição/modernidade e

irracionalidade/racionalidade, dotando sempre a primeira parte de termos negativos, julgando-

134 GARCÍA CANCLINI, N. (2006) p.74. 135 Ibidem, p.74. 136 VARGAS LLOSA, M. (1996) p. 181. “[...] realidad caduca [...]”. 137 Ibidem, p. 185. “[...] legado de su mitad espiritual índia [...]”. 138 Ibid, p. 185. “[...] la razón como vínculo con la realidad y a preferirle intuiciones y devociones mágicas.”

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a um entrave para a sociedade e apostando na necessária dissociação entre elas, Vargas Llosa

crê apenas em uma racionalidade – única e não plural –, aquela que levaria, nesse tipo de

pensamento, à “modernização” e ao “progresso”. De acordo com Pablo Cristoffanini, a

“racionalidade, o espírito crítico, a cultura democrática, a mudança, o desenvolvimento [...], o

progresso são associados por Vargas Llosa com o Ocidente. É o mito da modernidade e o

progresso.”139 Essa posição adotada por Vargas Llosa de não-valorização ou de uma visão

negativa da tradição – que no caso do Peru é, sobretudo, a indígena – foi, conforme Hugo

Cancino, compartilhada pelo marxismo ortodoxo na América Latina140.

Em oposição a esse pensamento, há as idéias de José Carlos Mariátegui, um dos

poucos estudiosos que refletiu sobre o marxismo no contexto específico da América

Hispânica, principalmente no Peru. Ele não rechaçava a tradição (a incaica seria a mais antiga

do Peru). Pelo contrário, opunha o “tradicionalismo” – “atitude política ou sentimental que

deságua invariavelmente em mero conservantismo”141 – à “tradição”, compreendendo esta

não como algo estanque, mas como continuidade histórica, resultado de sucessivas

transformações, sendo composta por elementos heterogêneos e até contraditórios. Além disso,

para Mariátegui, “não existe um conflito real entre o revolucionário e a tradição”142: no

contexto peruano, muito diverso do da Europa do século XIX, o socialismo é que deveria

encarregar-se da modernização da sociedade, uma vez que, de acordo com Michael Löwy,

A burguesia local seria incapaz de desempenhar um papel democrático-revolucionário consciente ou de libertar o continente do jugo dos latifundiários e dos monopólios imperialistas. O que está, pois, na ordem do dia do Peru e na indo-américa, é uma revolução social global que combina as tarefas nacionais, democráticas, agrárias e socialistas, articulando-as em um único processo revolucionário no combate anti-capitalista. 143

139 CRISTOFFANINI, P. (2002) p.134. “[...] la racionalidad, el espíritu crítico, la cultura democrática, el cambio, el desarrollo, la tolerancia, el individuo soberano, el progreso, la verdad, son asociados por Vargas Llosa con Occidente. Es el mito de la modernidad y el progreso.” 140 Cf. CANCINO, H. (2002) p.16. Para mais informações, ver também PORTANTIERO, J. C. O marxismo latino-americano. In: HOBSBAWN, E. (et alii) História do marxismo. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. 141 MARIÁTEGUI, J.C. (2005) p.113. 142 Ibidem, p.114. 143 LÖWY, M. (1999) p. 15.

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Mariátegui atentava para o fato de que no Peru e em praticamente toda a América

Hispânica, a burguesia não teve força suficiente – ou não quis ter – para erradicar a

feudalidade, como ocorreu em várias partes da Europa, cabendo, então, ao socialismo esse

papel. É importante ressaltar ainda que Mariátegui nunca dissociou o Indigenismo

(identificado por muitos com a tradição no sentido mais negativo, como com Vargas Llosa) e

o Socialismo (revolução). Conforme já citamos anteriormente, a revolução, segundo os

moldes mariateguianos, reivindicava a tradição incaica na medida em que ele (e a maioria dos

estudiosos de sua época144) acreditava em uma espécie de “comunismo primitivo”, ou seja,

achava que o império inca tivera certas práticas supostamente “comunistas”. Ademais, o fato

de as comunidades indígenas existentes à sua época conservarem, de acordo com Adolfo

Sánchez Vásquez, “hábitos de cooperação e solidariedade [...], cuja importância para o

socialismo [Mariátegui] sublinha”145, corroborava com a sua vertente do socialismo peruano.

Essa idéia de o incanato ser um tipo de comunismo foi, mais tarde, considerada errônea e

ultrapassada; isso, no entanto, não diminui em nada a importância e a pertinência das teorias

mariateguianas, visto que ele, mantendo a sua lucidez quanto à realidade peruana, atentava

para a presença indígena majoritária na composição social e principalmente na formação da

classe trabalhadora. Na construção do pensamento mariateguiano146, o socialismo, enquanto

ideologia que postula a defesa dos direitos dos trabalhadores, não poderia excluir os

indígenas. Para ele, no Peru, a classe camponesa indígena era indispensável para o socialismo

e para a revolução, razão pela qual propunha um movimento operário-camponês, não

144 Cf. CORNEJO POLAR, A. (1994) p.188. 145 SÁNCHEZ VÁSQUEZ, A. (1999) p. 53. 146 O socialismo proposto por Mariátegui é extremamente original por vários motivos. O principal deles é a importância que ele dá ao papel do indígena na máquina social e nas suas teorias plenamente inseridas nas particularidades do seu país natal. Conforme Bernardo Ricupero, “No caso de Mariátegui, é principalmente a compreensão de que a questão indígena é o problema central do Peru que o torna capaz de elaborar um marxismo de acordo com as condições de seu país. Em bases marxistas, Mariátegui não vê a questão indígena como simplesmente étnica, mas também como econômica, já que está diretamente vinculada à questão fundiária peruana.” (RICUPERO, 1999, p.70)

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relegando – dadas as evidentes diferenças entre o contexto peruano e o europeu

(sobrevivência tardia do sistema semifeudal na organização socioeconômica e política, por

exemplo) – à classe operária toda a liderança. Para Mariátegui, pode-se unir essas duas

camadas da sociedade assim como ele as uniu, em suas teorias, à tradição e à revolução ou

modernidade, sem que nenhuma das partes fosse considerada superior à outra.

Em La tumba del relámpago, o socialismo surge como o organizador do movimento

camponês, o que distingue este romance dos anteriores do ciclo: enquanto que nesta última

obra impõe-se uma maior união entre as várias comunidades de Cerro de Pasco, nas primeiras

havia uma profusão de rebeliões isoladas. Com uma rebelião geral, a repressão por parte da

Guarda de Assalto seria dificultada:

– Las recuperaciones [de tierras] deben producirse al mismo tiempo y en todos los puntos posibles del Departamento. Si es así, la tropa tendrá fatalmente que dividirse. [...] Pero si esa tropa tiene que enfrentar al mismo tiempo, a cincuenta o sesenta comunidades distantes entre sí, entonces les será imposible operar. ¿Por qué pensar solamente en Pasco? En el Departamento de Junín, en el resto del Perú, ¿no hay injusticias?147

A ação não fica restrita a um pequeno espaço e pretende transpor o departamento de Cerro,

alcançando proporções possivelmente nacionais e envolvendo também os partidos comunistas

de Lima. Entretanto, esse projeto de ampliação da luta encontra o grande empecilho da

importação acrítica de teorias: o Partido Comunista de Lima não oferece o auxílio pedido por

Ledesma – armas e quadros para uma verdadeira rebelião socialista – com a justificativa de

que “la clase campesina, que ha dado tantos ejemplos de heroísmo, carece de una verdadera

conciencia revolucionaria para llegar hasta el final. La vanguardia de la revolución es el

147 SCORZA, M. (1985) p. 99. “- As recuperações [de terras] devem se produzir ao mesmo tempo em todos os pontos possíveis do Departamento. Se for assim, a tropa fatalmente terá de se dividir.[...] Mas se a tropa tem que enfrentar ao mesmo tempo cinqüenta ou sessenta comunidades distantes entre si, então será impossível operar. Por que pensar somente em Pasco? No Departamento de Junín, no resto do Peru, não existem injustiças?” (SCORZA, 1986, p.99)

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proletariado.”148. A postura dos comunistas ortodoxos é bastante criticada em La tumba del

relámpago, uma vez que eles pareciam “[leer] un manual de marxismo, la teoría y táctica de

los bolcheviques preparándose a asaltar el Palacio de Invierno.”149. Não conseguiam, por

conseguinte, compreender que, como Mariátegui já havia ressaltado décadas antes, os índios

camponeses é que constituíam a grande massa de trabalhadores em um país em que a

industrialização era ainda incipiente. Ledesma só pôde lamentar a imitação pura e simples de

um socialismo criado e refletido para um outro contexto: “la rabia, el coraje, son de aquí, y las

ideas son de allá. ¡Nosotros sólo ponemos la desesperación!”150.

Essas passagens nos remetem às idéias de Roberto Schwarz, que analisa no caso

brasileiro uma situação semelhante: ele fala sobre as “idéias fora do lugar”, sobre a sensação

de que as idéias estão “fora de centro, em relação ao seu uso europeu”,151 porque são

antagônicas à realidade a que se referem. Havia, por exemplo, no Segundo Reinado, um

conjunto ideológico constituído por idéias liberais vindas da Europa convivendo com o

escravismo e com a prática do “favor”, que era a forma de inserção do homem livre – nem

escravo e nem senhor – na sociedade brasileira. Se a burguesia na Europa procurava

consolidar seus poderes contra o Antigo Regime pregando a “autonomia da pessoa, a

universalidade da lei, a cultura desinteressada, a remuneração objetiva”152, no Brasil, com a

instituição do favor, havia justamente o oposto – a dependência da pessoa a algum poderoso, a

desigualdade de tratamentos, etc. Analogamente, enquanto os comunistas ortodoxos de La

tumba del relámpago pregavam que a liderança de uma revolução socialista-comunista

deveria ser dos operários, os camponeses indígenas tentavam organizar um movimento para

148 SCORZA, M. (1985) p.234. “[...] a classe camponesa, que deu tantos exemplos de heroísmo, carece de uma verdadeira consciência revolucionária para chegar até o final. A vanguarda da revolução é o proletariado.” (SCORZA, 1986, p.219) 149 Ibidem, p.234. “[...] ler um manual de marxismo, a teoria e a tática dos bolcheviques se preparando para atacar o Palácio de Inverno.” (SCORZA, 1986, p.219) 150 Ibid, p.235. “[...] a raiva e a coragem são daqui, as idéias são de lá. Nós somente entramos com o desespero.” (SCORZA, 1986, p.220) 151 SCHWARZ, R. (2000) p.30. 152 Ibidem, p.17.

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derrubar a exploração exercida, de um lado, pelos latifundiários, representantes dos resquícios

de relação de servidão sobreviventes em plenos meados do século XX, e, de outro, pelo

imperialismo (não de forma consciente e consistente no romance) simbolizado pela Cerro de

Pasco Corporation.

Tomaram-se de empréstimo as teorias socialistas de maneira acrítica para aplicá-las

diretamente ao cenário peruano. Lembramos então novamente de Schwarz que, em seu ensaio

“Nacional por subtração”, afirma que “brasileiros e latino-americanos fazemos

constantemente a experiência do caráter postiço, inautêntico, imitado da vida cultural que

levamos”153. Prosseguindo no ensaio, Schwarz explica que o “sentimento aflitivo da

civilização imitada não é produzido pela imitação, presente em qualquer caso, mas pela

estrutura social do país, que confere à cultura uma posição insustentável, contraditória em seu

autoconceito”154.

No caso peruano, verificamos situação semelhante. Tanto na época colonial quanto na

República, os índios viveram oprimidos pela servidão em fazendas ou em minas. Vieram a

independência e a entrada do capital estrangeiro (o imperialismo norte-americano); porém, o

trabalho permaneceu em grande parte baseado nesse antigo sistema – na serra andina, por

exemplo. Assim, como no Brasil analisado por Schwarz, não é simplesmente a “adesão” a

idéias e teorias estrangeiras que causa a sensação do postiço, mas a própria maneira como a

sociedade se estruturou historicamente. É por conhecerem essa estrutura distinta em relação

aos países europeus que Mariátegui e o personagem Genaro Ledesma (leitor do primeiro)

procuravam ver as teorias marxistas de outra maneira, de modo que fizesse sentido lê-las e

pensá-las para o Peru e para as suas peculiaridades. O primeiro, como já observamos, tinha

uma visão muito particular do Marxismo e do Socialismo, sendo por isso muito criticado por

seus contemporâneos; o segundo, vivendo entre as comunidades indígenas, presenciava a sua

153 SCHWARZ, R. (1989) p.29. 154 Ibidem, p.46.

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raiva, o desejo de mudança e a tentativa de organização essencialmente socialista do

movimento. Ele entendia que as teorias lidas e apreendidas não se referiam à realidade que

via: “- [...] En el Perú, hoy, la vanguardia revolucionaria no es la clase obrera sino la clase

campesina. Pero, ¿quién lo admite?”.155 Ledesma percebia que todo o potencial utópico de

transformação, relacionado à capacidade de projeção de um desejo de forma consciente e

refletida, parte da classe camponesa, que há séculos tentava desvencilhar-se do subjugo e da

exploração.

A inserção de personagens como Ledesma e até o próprio Manuel Scorza – que

aparece em papel secundário como integrante do Movimento Comunal do Peru e relator dos

levantes indígenas e seu massacre para os jornais da capital –, portadores das idéias

socialistas, representam, de certa forma, o “moderno”156, uma vez que eles oferecem um

sentido de organização, planejamento e alargamento do movimento camponês. Por outro lado,

essa modernização parece sucumbir, dentre outros fatores, perante ela mesma; a fragmentação

dos partidos de esquerda, além de sua busca do “moderno” por meio da adoção de teorias

criadas para um contexto diverso ao do Peru dificultam a ebulição de uma sublevação de

caráter socialista. As teorias não condizem com a realidade; por conseguinte, a

“modernização” fica pela metade e não se consegue romper com a ordem socioeconômica e

política em curso.

A questão da “tradição” aparece em La tumba del relámpago como a racionalidade

mítica dos indígenas, representada, conforme Cornejo Polar157, pelos ponchos tecidos pela

anciã cega, Añada, que mostravam mesclados o passado, o presente e o futuro. A velha

155 SCORZA, M. (1985) p. 224. “- [...] No Peru, hoje, a vanguarda revolucionária não é a classe operária, mas a classe camponesa. Mas quem admite isso?” (SCORZA, 1986, p.208) 156 Essa visão do socialismo ou comunismo como modernizadores dos movimentos indígenas não é exclusiva de Mariátegui ou Scorza, mas também de autores como Eric Hobsbawn, que em um texto sobre a rebelião dos índios camponeses de La Convención, região de Cuzco, onde havia um sistema de latifúndios bastante parecido com o dos Andes centrais, atribui ao comunismo algumas características dos revoltosos – conhecimento do castelhano, superação do analfabetismo por vários deles, entre outros fatores: “Grande parte dessa modernização pode ser decorrência, naturalmente, da influência da organização comunista” (HOBSBAWN, 1978, p.188). 157 Cf. CORNEJO POLAR, A. (2000) p.111.

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comprometera-se, a princípio, a tecer a história do povoado de Yanacocha; todavia, ao invés

disso, teceu o futuro, prevendo revoltas e massacres. Faz-se, na verdade, uma mistura de

tempos e interpretações: para a velha, ela tinha desenhado o passado das comunidades; porém,

ao analisar os ponchos, Remigio Villena, um dos líderes do movimento camponês, viu o

futuro, pensando que a anciã tivesse se enganado, que ela “sin saberlo, había recordado lo que

todavía no había sucedido”158. Nos ponchos, viam-se os massacres que aconteceram depois da

confecção dos tecidos, além de imagens não decifráveis e do mito de Inkarri (o único de

origem verdadeiramente quíchua mostrado por Scorza; os outros são criações artísticas do

autor que representam a racionalidade mítica dos índios), que conta a história do deus criador

inca decapitado pelo rei espanhol. Seu corpo desmembrado ficaria sob a terra até que, quando

novamente se juntasse à cabeça, Inkarri retornaria ao mundo e toda a opressão iniciada com a

conquista espanhola teria fim (o mito resgata uma utopia marcadamente messiânica que,

todavia, não caracteriza a essência desse movimento narrado em La tumba del relámpago).

É interessante notar que há aí implícita uma grande discussão do que pode ser

considerado história. Segundo Le Goff:

[...] Há pelo menos duas histórias [...]: a da memória coletiva e a dos historiadores. A primeira é essencialmente mítica, deformada, anacrônica, mas constitui o vivido desta relação nunca acabada entre o presente e o passado. [...] A história deve esclarecer a memória e ajudá-la a retificar os seus erros. Mas estará o historiador imunizado contra uma doença senão do passado, pelo menos do presente e, talvez, uma imagem inconsciente de um futuro sonhado?159

Os ponchos de Añada podem representar a memória coletiva, na qual o mito é de extrema

importância. De acordo com Mircea Eliade,

A memória popular [ou coletiva] retém dificilmente acontecimentos ‘individuais’ e figuras ‘autênticas’. Funciona por meio de estruturas diferentes [...]. O personagem histórico é

158 SCORZA, M. (1985) p. 10. “[…]sem saber, recordou o que ainda não acontecera.” (SCORZA, 1986, p.10) 159 LE GOFF, J. (1996) p. 29.

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assimilado ao modelo mítico (herói, etc), enquanto que o acontecimento se inclui na categoria das ações míticas.160

A memória coletiva, por conseguinte, não identifica os rostos e as feições “reais” do

acontecimento e dos seus envolvidos, e nem se preocupa em fazê-lo; por esse motivo, os

desenhos nos ponchos estavam sujeitos à interpretação do “leitor”. Além disso,

freqüentemente representavam o futuro a posteriori161, quando este já havia acontecido; isto

é, depois de uma revolta consumada, por exemplo, ficava mais fácil descobrir os comuneiros

que participaram dela retratados no tecido. Instaura-se, por conseguinte, uma “confusão” de

tempos, dado que o nosso tempo cronológico, nessa racionalidade, é inoperante: o presente é

passado e também futuro; há uma indistinção entre eles, remetendo-nos aos ciclos, ao “eterno

retorno”. A concepção cíclica do mundo, da história e do tempo, segundo Eliade, está ligada à

observação da natureza – as fases da lua, as estações do ano162 –, revelando a necessidade de

existência de um processo que inclui nascimento de uma humanidade, crescimento,

degeneração e desaparecimento, seguido por um novo processo que faz ressurgir e regenerar

essa mesma humanidade. Por meio dessa concepção cíclica, o tempo e as coisas nunca são

irreversíveis; do mesmo modo, também as situações nunca são totalmente novas, já que,

retomando Eliade, os mitos são “os modelos exemplares” de todos os atos do homem e

“garantem-lhe que tudo aquilo que se faz, ou projeta fazer, foi já feito nos primórdios [...]”163.

Apresentando-se freqüentemente através dos mitos, a memória coletiva percebe os

acontecimentos como sendo, portanto, também cíclicos e destinados a repetir-se de tempos

em tempos; por isso é anacrônica. No romance, ela pode sustentar uma história dos vencidos

160 ELIADE, M. (2001) p.31. “[…] la memoria popular retiene difícilmente acontecimientos ‘individuales’ y figuras ‘auténticas’. Funciona por medio de estructuras diferentes […]. El personaje histórico es asimilado a su modelo mítico (héroe, etc.), mientras que el acontecimiento se incluye en la categoría de las acciones míticas […]”. 161 Conforme Tzvetan Todorov, os presságios de destruição do Império Asteca pelos espanhóis também foram feitos a posteriori e eles são muito semelhantes em vários povos do continente americano. Os incas também tinham as profecias de que os espanhóis ou estrangeiros viriam e seriam vitoriosos. Poderíamos relacionar, então, esses presságios aos ponchos. 162 ELIADE, M. (2001) p.55. 163 ELIADE, M. (1986) p. 107.

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silenciados pela historiografia oficial, supostamente fiel aos fatos ocorridos, e pela imprensa,

que dificilmente divulgava as revoltas camponesas indígenas que estouravam há mais de

quatrocentos anos no Peru seguindo o mesmo processo dos mitos: insatisfação com a situação

em que viviam, organização do movimento, luta e massacre.

Levando em conta essa natureza cíclica do tempo e dos acontecimentos e, por

conseguinte, o tom profético dos ponchos, o malogro das sublevações era quase inevitável, o

que de fato levaria ao conformismo e à passividade da espera pelo destino já traçado. Isso

entra em conflito com o desejo utópico verificado nos personagens campesinos de La tumba

del relámpago e no próprio Ledesma, já que, nas palavras de Teixeira Coelho, “A imagem

utópica luta pela materialização de um desejo que estivera antes, talvez e no máximo, ao nível

do inconsciente; a profecia extravasa os limites do desejado pelo homem para ir remexer

naquela zona de passividade e conformismo que é o destino”164.

Entretanto, um evento crucial da trama ultrapassa a resignação e a profecia (inclusive a

racionalidade mítica) e opta pela construção da história dos homens. Durante a invasão de um

dos latifúndios, alguns comuneiros encontram uma grande torre reconhecida por Remigio

Villena, um dos dirigentes do grupo, por ter sido retratada em um dos tecidos de Añada. Ao

entrar na torre, Remigio depara-se com todos os ponchos que a velha tecera e, portanto, com o

futuro das comunidades. Vencendo a curiosidade, porém, ele decide queimar a torre e o seu

conteúdo, optando por escrever seu próprio futuro:

¡Intuyó que había llegado al futuro, y lo rechazó! Porque no quería ya acatar ninguna ley emitida en las sombras por la mano de una delirante sombra ciega, sino ordenarse él mismo y obedecerse él mismo, asumir su propio futuro.

– ¡Por eso mismo los [ponchos] quemé! Porque no quiero el porvenir del pasado sino el porvenir del porvenir. El que yo escoja con mi dolor y mi error.165

164 COELHO, T. (1985) p. 10. 165 SCORZA, M. (1985) pp.200-202. “Intuiu que tinha chegado o futuro e o expulsou! Porque não queria acatar nenhuma lei emitida nas sombras pela mão de uma delirante sombra cega, mas ordenar ele mesmo e obedecer ele mesmo, assumir o próprio futuro. / - Por isso mesmo os [ponchos] queimei! Porque não quero o futuro do passado, mas sim o futuro do futuro. O que eu escolher com a minha dor e o meu erro.” (SCORZA, 1986, pp.187-188)

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Talvez possamos relancear, nesse trecho do romance, a passagem de uma

racionalidade mítica para uma conscientização histórica e política. Como o próprio Scorza-

autor afirmou em entrevista a Manuel Osorio, os cinco livros da Guerra silenciosa mostram

“uma passagem da sociedade mítica para a sociedade atual”166. Dessa forma, verificamos que

o ato de rechaçar o futuro escrito, a profecia mítica e o tempo cíclico representa a transposição

para a consciência do poder fazer, da utopia como projeto concreto, como um “potencial

revolucionário”, e não como um desejo impossível de realizar-se, uma utopia milenarista e

passiva – os personagens indígenas organizam-se, formam suas tropas, reúnem diversas

comunidades, têm uma esperança muito viva, como podemos verificar na seguinte passagem:

“[Remigio Villena] Viajó directamente a Tusi, con la intención de cumplir, costara lo que

costara, su promesa: recuperar las tierras robadas por la hacienda Jarria. ¿Se podrá en tres

meses? ¡Se puede, doctor!”167.

Por outro lado, a questão da “tradição” consolida-se no romance com um traço

negativo para o sucesso das rebeliões. Genaro Ledesma e os dirigentes de muitas

comunidades conseguem organizar um grande levante, em que todas elas invadiriam ao

mesmo tempo diferentes latifúndios localizados em diversas partes do departamento,

dificultando a repressão. Entretanto, um comuneiro de Yarusyacán sonha com a Santa Maca,

padroeira da província não oficializada pela igreja católica, a qual sugeria que a comunidade

seria vitoriosa na retomada das terras se a ação ocorresse imediatamente – no caso, um mês

antes da data combinada. Os dirigentes de Yarusyacán, devotos da santa, acreditam no sonho

e aprovam a antecipação da invasão das fazendas, rompendo com a estratégia planejada e

regredindo ao estágio de revolta isolada, uma vez que muitas comunidades desistem da

sublevação com a mudança do prazo estipulado. O desmantelamento da organização do

166 Apud. OSORIO, M. (1984) p.59. “[…] el pasaje de la sociedad mítica a la sociedad actual.” 167 SCORZA, M. (1985) p.101. “[Remígio Villena] Viajou diretamente para Tusi, com a intenção de cumprir, custasse o que custasse, a sua promessa: recuperar as terras roubadas pela fazenda Jarria. Será possível em três meses? Será, doutor!” (SCORZA, 1986, p.101)

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movimento geral leva, juntamente com a falta de apoio do Partido Comunista de Lima, ao

fracasso da tentativa de revolução. Sucede-se um novo massacre.

Antes de darmos prosseguimento ao capítulo, é importante nos determos na figura da

Santa Maca. A trajetória do personagem ao longo do ciclo é curiosa: Maca Albornoz aparece

pela primeira vez em História de Garabombo, o invisível, no qual se narra a sua infância. Fora

criada pela família, composta por bandoleiros, como homem e sabia cavalgar e atirar muito

bem, mantendo, contudo, extraordinária beleza. Há duas versões para a sua transformação em

mulher: em uma, ela é capturada por alguns comuneiros, que, como castigo por roubar gado,

mandam-na carregar metade de uma vaca pela rua principal do vilarejo. A vergonha da

punição a faz pensar que não seria mais aceita por seu pai e seus irmãos, razão pela qual

resolve tornar-se prostituta. A segunda versão, que aparece em Cantar de Agapito Robles,

conta que ela é presa, e, na cadeia, os ladrões com quem dividia a cela descobrem que ela é

mulher e abusam dela. Roberto Albornoz, seu irmão, cinco dias depois, mata os criminosos

para vingar a honra manchada de Maca, mas esta decide se tornar prostituta, deixando

apaixonados todos os homens que a conheciam. Em La tumba del relámpago, Maca volta a

ser Maco e retorna à vida de bandoleiro ao lado de sua família. Seu final é surpreendente:

Maco/Maca deseja muito seu próprio irmão e o engana para ter com ele uma noite de amor.

No dia seguinte, Roberto, sem saber o que acontecera, começa a pegar fogo. Maco/Maca

abraça-o e ambos morrem queimados. O corpo de Maca, porém, mantém-se intacto, fazendo

as comunidades passarem a acreditar na sua santidade, venerando-a e associando-a à Virgem

Maria – já que o pintor das igrejas, que se apaixonara por Maca quando ela era prostituta,

havia desenhado a Virgem com as feições de sua amada (episódio narrado em Cantar de

Agapito Robles).

A função dessa personagem na trama de La tumba del relámpago é difícil de ser

analisada. Os capítulos que a ela se referem são os únicos do romance narrados em primeira

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pessoa: em alguns, quem conta a história desse personagem ambíguo é Doroteo Silvestre, um

comerciante que se apaixona por Maco vestido de mulher (como Riobaldo que, por muito

tempo, não conhece o verdadeiro sexo de Diadorim) e morre para protegê-lo; em outros, é

uma mulher que a conheceu como Maco. Há também cinco capítulos, em focalização

homodiegética, em que o padre Chasán, personagem presente em Redoble por Rancas, ouve

as confissões de fiéis que contam os milagres feitos pela Maca já morta e convertida em santa;

ele não se conforma com a devoção pela santa criada pelos comuneiros e não aceita pela

igreja. Esses capítulos são escritos sem pontuação, de modo a representar a aflição e

incompreensão de Chasán perante o culto de Maca.

Jorge Yviricu, em seu ensaio acerca da metamorfose dos personagens Menino

Remigio (de História de Garabombo) e Maca, atribui a esta as características de deuses

pagãos: a beleza incrível e a origem incerta a aproximam de Afrodite, a ambigüidade sexual

faz com que ela se assemelhe a Antínoo e Dionísio, e as incontáveis façanhas, tanto como

bandoleiro quanto como prostituta, a tornam sobre-humana168. Yviricu também a compara

com Tlazoltecotl, deusa asteca do “excremento, do amor sexual e da confissão”169 que,

segundo ele, sintetiza muito das características dos três deuses supracitados. A fase prostituta

de Maca teria sido seu ritual iniciático. De fato, poderíamos, talvez, relacionar Maca a uma

deusa da fertilidade, detentora da beleza e dos atributos sexuais, visto que alguns de seus

milagres estavam ligados a esse tema: salvação de crianças moribundas e fertilidade e fartura

nas colheitas da comunidade de Mosca, provável pátria de Maca, durante uma forte seca que

assolou todas as cidades vizinhas. A sua origem mortal, humana, e as várias versões para as

suas transmutações nos remetem à assimilação pela memória coletiva do personagem “real”,

“histórico”, como um modelo mítico, não-individualizado historicamente, mas essencial em

seu papel de mito para a sociedade. Finalmente, a sua morte violenta e dramática, queimando

168 Cf. YVIRICU, J. (1991) p.253. 169 YVIRICU, J. (1991) p. 254. “[...] diosa azteca del excremento, el amor sexual y la confesión.”

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sob as chamas, serve para purificá-la, anulando todos os seus pecados da vida humana e

terrena. Sua morte não significa a destruição, o fim, mas apenas um novo começo, o

ressurgimento ao qual só poderia chegar com um ritual de purgação.

Embora Santa Maca fosse a santa de devoção de muitos comuneiros, ela é a causa

indireta do fracasso do seu movimento. Yviricu justifica esse fato afirmando que “suas

transformações são o produto de sua própria vontade individual; a consciência de classe e sua

manifestação político-social ficam anuladas por sua beleza primeiro e depois por sua

progressiva sacralização, sintomas de um individualismo irreduzível”170. Assim como ela não

representa o coletivo, ao contrário da maior parte dos personagens d’A guerra silenciosa,

também não poderia contribuir para a comunidade. Podemos, contudo, analisar de outro

modo: La tumba del relámpago é o romance em que Scorza quer mostrar uma nova forma de

organização do movimento camponês, modernizando-o através das idéias socialistas,

ressaltando a importância da trajetória que vai da racionalidade mítica à história atual, à

concepção “ocidental” de tempo e história. Em contraposição a esse encaminhamento está a

metamorfose de Maca, que, de personagem se torna mito, estando, por conseguinte, associada

à tradição ou ao que assim se considera no romance. Quando o mito se coloca em primeiro

plano, antes da organização e do planejamento, volta-se à estaca zero, já que uma ação não-

premeditada, à revelia do que haviam combinado, acaba se distanciando da utopia tal como é

conceituada por Bloch ou Mannheim. O pensamento utópico, em sua dimensão de

“produtividade criadora”, de “consciência antecipadora”, constituído por elementos

intelectuais não satisfeitos com a realidade, é rompido para dar lugar ao inesperado e ao

espontâneo; a tão difícil reunião das comunidades (muitas delas tinham desavenças entre si

que tiveram de ser pacientemente desfeitas em numerosas reuniões de líderes das

170 YVIRICU, J. (1991) p.257. “Sus avatares son el producto de su propia voluntad individual; la conciencia de clase y su manifestación político-social quedan anuladas por su belleza primero y después por su progresiva sacralización, síntomas todos de un individualismo irreducible.”

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comunidades) para uma única e grande rebelião é, ao fim, destruída pela crença em um sonho

com uma santa.

Como bem apontou Cornejo Polar171, Manuel Scorza deixa explícito em La tumba del

relámpago, muito mais do que nos outros romances, a incapacidade do mito de mobilizar o

movimento, levando-o ao sucesso; dessa maneira ele optaria, conforme Mabel Moraña, por

uma determinada posição ideológica. Para ela, Scorza tem a sua própria visão acerca dos

movimentos camponeses – o repetitivo final de seus romances (o massacre) atesta que os

indígenas estão condenados à fatalidade, ao malogro. Ademais, parece haver, segundo a

ensaísta, a necessidade da existência de um líder intelectual, como Ledesma, para dar uma

direção à revolta. De acordo com Moraña, esse líder é uma espécie de “intérprete privilegiado

da história, que se autoconcebe como parte natural da vanguarda política, posição legitimada

por sua identificação moral com o conflito e por sua superioridade cultural”172. No entanto,

essa questão da liderança ou da representação, que é em si bastante discutida e complexa, não

surge de forma clara e decisiva no romance, haja vista o seguinte diálogo entre Genaro

Ledesma e Scorza-personagem:

– Los campesinos necesitan una dirección política. El campesinado puede alcanzar victorias iniciales. Pero ¿luego? El Ejército Peruano no es una ensalada de mercenarios como era el Ejército de Batista. – ¿Hasta cuándo tendremos la pretensión de enseñarle lo que no sabemos a los sobrevivientes de una cultura que ha atravesado cuatrocientos cincuenta años de genocidio? Para sobrevivir en esas condiciones se requería genio. [...]173

É inegável que Scorza defende a “modernização” do movimento camponês e duvida

da eficiência da racionalidade mítica para a mobilização de uma revolução, ou para

171 Cf. CORNEJO POLAR, A. (2000) p. 111. 172 MORAÑA, M. (1983) p.188. “[...] intérprete privilegiado de la historia, que se autoconcibe como parte natural de la vanguardia política, posición legitimada por su identificación moral con el conflicto y por su superioridad cultural.” 173 SCORZA, M. (1985) p. 238. “- Os camponeses precisam de uma direção política. O campesinato pode alcançar vitórias iniciais. Mas e depois? O Exército Peruano não é uma salada de mercenários como era o Exército de Batista. / - Até quando teremos a pretensão de ensinar o que não sabemos aos sobreviventes de uma cultura que atravessou quatrocentos e cinqüenta anos de genocídio? Para sobreviver nessas condições foi necessário gênio. [...]” (SCORZA, 1986, p.223)

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ultrapassar a condição de mera resistência frente aos opressores, o que fica claro em La tumba

del relámpago; todavia, essa constatação não se dá sem conflito. Cornejo Polar chama atenção

para isso quando salienta que o narrador do romance não oculta a admiração que tem por essa

racionalidade, além de “reconhecer que, através dos atributos dessa racionalidade, se forja a

identidade do povo quíchua e se rechaça o desígnio aculturador do imperialismo e da

burguesia nacional”174 (se há mais de quatrocentos anos os índios sobrevivem e lutam sem

serem dizimados é porque conseguiram proteger-se de alguma forma, e a cultura é um fato

determinante para isso). O caráter cíclico do desenlace de todos os romances ocorre, em parte,

devido à posição ideológica do autor, como escreveu Moraña, mas também porque, até o

momento em que foram narradas por Scorza, as revoluções camponesas foram, em realidade,

reprimidas duramente sem que os indígenas conseguissem o que reivindicavam. A questão da

liderança política também não aparece definitivamente colocada, uma vez que, embora

Ledesma seja o dirigente intelectual, ele mesmo questiona a necessidade do seu papel; ou

melhor, há uma problematização do assunto, que não é categoricamente defendido em

nenhuma de suas posições.

Todo o ciclo A guerra silenciosa e, sobretudo, La tumba del relámpago, reflete a

condição heterogênea da literatura scorziana: o mundo do autor e do receptor das obras difere

daquele do referente; o narrador não pode realmente falar por estes sem que imprima muito da

sua própria visão de mundo. As tensões tão evidentes nos romances de Scorza derivam dessa

condição heterogênea da produção literária e da própria organização socioeconômica e

política da região andina peruana. Assim, se o narrador de La tumba del relámpago questiona

o poder do mito para desencadear uma revolução no mundo atual, ele também critica

duramente a própria “modernização”, no sentido de que esta peca por não conseguir se

174 CORNEJO POLAR, A. (2000) p.111.

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adaptar ao contexto peruano: o socialismo é importante para o movimento campesino desde

que seja concebido especificamente para a sua realidade.

O ciclo fecha-se com mais um massacre, com a prisão de Ledesma e de outros

dirigentes e com a morte de uma utopia – “La esperanza duró menos que este relámpago,

ceniza ya de la oscuridad”175 –, embora esta tenha sido mais discutida, pensada como

potencial revolucionário e como um futuro a ser produzido, ao contrário do que ocorria nos

romances precedentes d’A guerra silenciosa. Mas seria a morte definitiva da utopia? Todas as

contradições evidentes no Peru hodierno, e tão bem retratadas nos romances de Scorza,

apontam para a tensão permanente entre idealidade e realidade, que, como Aínsa escreveu, é o

motor que estimula o nascimento de novas utopias na América Latina.

175 SCORZA, M. (1985) p. 267. “A esperança durou menos que esse relâmpago, já cinza na escuridão.” (SCORZA, 1986, p.252)

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CONCLUSÃO

Nesta dissertação, procuramos analisar o processo de desenvolvimento da utopia e do

pensamento utópico nos romances Huasipungo, de Jorge Icaza, e Redoble por Rancas e La

tumba del relámpago, ambos de Manuel Scorza, tentando contextualizá-los social, política e

economicamente, atentando para a posição do produtor e dos referentes das obras, o que as

caracteriza como essencialmente heterogêneas.

Verificamos, no Indigenismo, um tratamento ainda “estereotipado” dos indígenas.

Esse movimento, que teve lugar em diversos países andinos na primeira metade do século

XX, distinguiu-se daquele que o precedeu, o Indianismo, por alguns elementos: os romances

indigenistas trataram de se afastar da idealização romântica dos seus referentes, característica

das obras indianistas; além disso, o Indigenismo busca uma aproximação maior relativamente

ao mundo literariamente recriado, no qual se tenciona despojar o índio dos elementos

provenientes de uma visão demasiadamente idealizada, algo que, para os escritores

indigenistas, caracterizava as narrativas indianistas. Por fim, havendo se desenvolvido junto

com as reflexões sobre a condição dos índios nas sociedades hispano-americanas, o

Indigenismo adotou uma posição crítica a respeito da exploração sofrida por esses no seio da

organização socioeconômica na qual estavam inseridos.

Desse modo, o veio anti-oligárquico ferve em Huasipungo, as denúncias não poupam

latifundiários e eclesiásticos, a exploração e a condição dos índios é muito destacada e

reiterada, e esse aspecto, tão importante também no âmbito extraliterário, mostra-se

extremamente exacerbado (a opressão pesa demais e os índios desumanizam-se ao ponto de

não poderem falar ou pensar por si). Sem a consciência de sua própria exploração, os índios

não podem projetar uma utopia, uma vez que esta surge exatamente da noção que se tem das

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condições em que eles são impelidos a enfrentar, como demonstramos no capítulo 3,

“Huasipungo: desespero ou utopia?”.

Em meados do século XX, começam a surgir romances vinculados ao Indigenismo,

trazendo, no entanto, novos elementos e perspectivas, constituindo assim o que se tornou

conhecido como Neo-Indigenismo. Dentre essas inovações, podemos destacar o emprego do

real maravilhoso, que tencionou prover uma maior compreensão do sentido mítico da visão de

mundo própria do homem andino; a introdução de novos recursos formais que, por exemplo,

deram origem a uma intensificação do lirismo na narrativa; e, finalmente, a ampliação do

“problema do índio”, que passou a ser visto a partir de uma perspectiva nacional.

São relacionados ao Neo-Indigenismo os romances de Manuel Scorza, nos quais

percebemos o contato direto com a tradição indigenista de Icaza e a conservação de

“problemas” primordiais (a heterogeneidade permanece); entretanto, observamos uma

mudança na maneira de perceber os indígenas e na forma como são tratados nas narrativas. Os

índios não são mais meros objetos, seres tão oprimidos que se esquecem de sua condição

humana, mas indivíduos conscientes e atuantes. Por conseguinte, podemos entrever o

pensamento e o desejo utópicos: em Redoble por Rancas, apesar de ainda não possuírem a

organização e o planejamento necessários para evitar o malogro de seus movimentos, eles

refletem, imaginam e agem em prol de melhorias. Já em La tumba del relámpago, o

socialismo entra como “modernizador” do movimento indígena, explicitando a tensão entre

esse novo elemento e a tradição representada pela racionalidade mítica dos quíchuas. O

contraste e o impasse entre esses dois pólos são sustentados ao longo do romance e

permanecem insolúveis, uma vez que há críticas tanto ao socialismo empregado acriticamente

como doutrina cega (os intelectuais, como o próprio Scorza ou Ledesma, seriam

indispensáveis para controlar e orientar os índios?) quanto à dificuldade de organização de

uma rebelião geral e mais ampla (de uma revolução) por parte dos indígenas.

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No final de cada um dos três romances, ocorre uma chacina, mas a utopia indígena

persiste, como desejo do narrador apenas em Huasipungo e como desejo do narrador e dos

personagens indígenas em Redoble por Rancas e La tumba del relámpago. E esta obra,

embora termine em massacre, não esgota as possibilidades do surgimento de uma nova utopia,

como ocorreu em todas as demais obras d’A guerra silenciosa, já que as contradições entre

realidade e idealidade no Equador e no Peru conservam-se, bem como a convivência

beligerante das múltiplas culturas e visões de mundo.

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