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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO O ESTRANHO-ESTRANGEIRO NA OBRA DE PRIMO LEVI ANNA BASEVI 2017

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO - UFRJ · UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE ... SUSANA KAMPFF LAGES pela tradução inédita de ... adquiriu os direitos e publicou novamente o

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

    O ESTRANHO-ESTRANGEIRO NA OBRA DE PRIMO LEVI

    ANNA BASEVI

    2017

  • O estranho-estrangeiro na obra de Primo Levi

    Anna Basevi

    Tese de Doutorado apresentada ao Programa de

    Ps-graduao em Letras Neolatinas da

    Universidade Federal do Rio de Janeiro, como

    parte dos requisitos necessrios obteno do

    ttulo de Doutora em Letras Neolatinas (Estudos

    literrios Neolatinos opo: Literatura Italiana).

    Orientador: Prof. Andrea Giuseppe Lombardi

    Rio de Janeiro

    2017

  • CIP - Catalogao na Publicao

    Elaborado pelo Sistema de Gerao Automtica da UFRJ com osdados fornecidos pelo(a) autor(a).

    B299eBasevi, Anna O estranho-estrangeiro na obra de Primo Levi /Anna Basevi. -- Rio de Janeiro, 2017. 232 f.

    Orientador: Andrea Giuseppe Lombardi. Tese (doutorado) - Universidade Federal do Riode Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de PsGraduao em Letras Neolatinas, 2017.

    1. Primo Levi. 2. Estrangeiro. 3. Estranho. 4.Testemunho. I. Lombardi, Andrea Giuseppe, orient.II. Ttulo.

  • O estranho-estrangeiro na obra de Primo Levi

    ANNA BASEVI

    Orientador: ANDREA GIUSEPPE LOMBARDI

    Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Ps-graduao em Letras

    Neolatinas, Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ,

    como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Doutora em Letras

    Neolatinas.

    RESUMO

    Nosso trabalho prope uma leitura do escritor-testemunha italiano Primo Levi

    (1919-1987), numa perspectiva literria organizada por lxico, metforas e imagens

    especficos. A abordagem justifica-se pela recorrncia das palavras straniero-estraneo-

    strano e a interseo da figura do estrangeiro com o estranho e a estranheza. As

    tipologias de estrangeiro ora se movem no espao da barbrie nazista (Arendt, Todorov,

    Bauman) que marca o estrangeiro como inimigo, ora so motivados por uma atitude de

    hospitalidade (Derrida, Ricoeur). Ao acompanhar as figuras de estrangeiro no contexto

    do exlio, dentro e fora de Auschwitz, se delineiam modalidades de viagem como a

    catbase, o nstos e a dispora judaica, numa narrativa frequentemente comprometida

    com elementos intertextuais, especialmente provindos da tradio homrica e bblica.

    Outro aspecto do estranho concerne ao unheimlich, ao duplo ou sombra e se revela na

    problemtica do submerso, mas tambm na traduo de O processo de Franz Kafka.

    Afinidades e diferenas instigantes entre Kafka e Levi afloram no dilogo que

    estabelecemos entre as personagens de Odradek e Hurbinek, de onde surge mais uma

    faceta do estranho-estrangeiro.

    Algumas divises-chave claro/escuro, submersos/salvos, racional/irracional resultam

    capazes de produzir ambivalncias, mas tambm estratificaes interessantes de sua

    escrita. Como a crtica italiana aponta h pelo menos duas dcadas, Levi demonstra ser

    um grande autor do sculo XX, mais complexo do que quando se l sua obra apenas

    como documento testemunhal.

    Palavras-chave: Primo Levi, estrangeiro, estranho, testemunho.

    Rio de Janeiro

    Fevereiro 2017

  • O estranho-estrangeiro na obra de Primo Levi

    ANNA BASEVI

    Orientador: ANDREA GIUSEPPE LOMBARDI

    RIASSUNTO

    Il presente lavoro intraprende la lettura dellopera di Primo Levi (1919-1987) in

    una prospettiva letteraria organizzandone lessico, metafore, immagini specifiche.

    Lapproccio si organizza intorno alla ricorrenza dei termini straniero-estraneo-strano e

    allintersezione della figura dello straniero con lestraneo e lo strano. Le tipologie di

    straniero si muovono ora in uno spazio di barbarie totalitarista (Arendt, Todorov,

    Bauman) che segna lo straniero come nemico, ora motivati da un atteggiamento di

    ospitalit (Derrida, Ricoeur). Seguendo le figure di straniero in esilio, dentro e fuori

    Auschwitz, si delineano modalit narrative del viaggio quali la catabasi, il nstos e la

    diapora, in una scrittura spesso impegnata nel dialogo intertestuale con le tradizioni

    omerica e biblica.

    Un ulteriore aspetto dellestraneo riguarda l unheimlich, il doppio, lombra che si

    rivelano nella problematica del sommerso, ma anche nella traduzione de Il processo di

    Franz Kafka. Affinit e differenze intriganti tra i due scrittori affiorano nel dialogo

    che cerchiamo di stabilire tra i personaggi di Odradek (Kafka) e Hurbinek (Levi), da cui

    sorge unaltra sfaccettatura dellestraneo-straniero.

    Alcune opposizioni-chiave chiaro/scuro, sommersi/salvati, razionale/irrazionale si

    dimostrano capaci di produrre ambivalenze e stratificazioni interessanti nella scrittura.

    Come gi gran parte della critica italiana indica da una ventina danni, Levi dimostra di

    essere un grande scrittore del XX secolo, pi complesso di ci che risulta quando si

    vede nella sua opera solo un documento di testimonianza.

    Parole-chiave: Primo Levi, estrangeiro, estranho, testemunho.

    Rio de Janeiro

    2017

  • O estranho-estrangeiro na obra de Primo Levi

    ANNA BASEVI

    Orientador: ANDREA GIUSEPPE LOMBARDI

    ABSRACT

    This dissertation aims to present a reading of Primo Levis work according to a

    literary perspective organized by specific lexis, metaphors and images. The approach is

    justified by the recurrence of the words straniero-estraneo-strano and the intersection

    of the foreigner, that or who is strange and unfamiliarity. The types of foreigners

    sometimes move in the barbarian and totalitarian space (Arendt, Todorov, Bauman) that

    marks the foreigner as enemy; other times, they are moved by an attitude of hospitality

    (Derrida, Ricoeur). In following Levis foreigners throughout the exile, inside and out

    of Auschwitz, travelling modalities such as catabases, Nstos and the Jewish diaspora

    appear, in a narrative often full of intertextual elements, especially from the Homeric

    and biblical traditions. Another aspect of the strange refers to the unheimlich, to the

    double, or to the shadow, and reveals itself in the question of the submerged, but also in

    the translation of Franz Kafkas The Process. Intriguing affinities and differences come

    to the surface because of the dialogue established between the Kafka and Levis

    characters Odradek and Hurbinek.

    Some key divisions, clear/dark, submerged/safe, rational/irrational are able to produce

    ambivalences but also interesting stratifications. As the Italian criticism has pointed

    during the last twenty years, at least, Levi is a great twentieth century writer, whose

    work is much more complex than the label testimonial can be.

    Keywords: Primo Levi, foreigner, strange, witness.

  • AGRADECIMENTOS

    No Brasil:

    Ao Prof. ANDREA LOMBARDI, orientador, por ter estimulado a comear e seguir

    com seriedade e entusiasmo este percurso, pela originalidade intelectual, pelas aulas e o

    material fornecido.

    Ao CNPq e CAPES e s polticas de incentivos s Universidades pblicas, cultura,

    formao das pessoas como um direito e uma riqueza social

    s Prof.as CARLINDA FRAGALE PATE NUEZ e FLVIA TROCOLI, pelo

    dilogo enriquecedor, por suas aulas que foram uma parte muito feliz deste caminho.

    Ao Prof. RENATO LESSA

    Ao Prof. FABIANO DALLA BONA

    A todo o DEPARTAMENTO de LETRAS NEOLATINAS , inclusive prof.a MARIA

    LIZETE DOS SANTOS, por aceitar a suplncia.

    Prof.a ROSANA KOHL BINES, pela disponibilidade e aceitao da suplncia.

    Na Itlia:

    Ao Prof. ETTORE FINAZZI-AGR, co-orientador na Universidade La Sapienza de

    Roma

    Ao CENTRO INTERNAZIONALE PRIMO LEVI de Turim, e seu diretor FABIO

    LEVI, e especialmente a CRISTINA ZUCCARO pela disponibilidade, competncia,

    gentileza.

    Ao Prof. e crtico literrio ALBERTO CAVAGLION, pela disponibilidade ao dilogo,

    pela escuta amigvel por carta e pessoalmente, pelo interesse demonstrado no

    trabalho.

    A RAFFAELLA DI CASTRO, pelas trocas humanas e intelectuais em Roma.

    Ao Prof. PIERO BOITANI, pelas preciosas aulas na Faculdade de Letras em Roma.

    A ERNESTO FERRERO e Prof.a VALENTINA DI ROSA, pela disponibilidade ao

    encontro, respectivamente em Turim e Napoli.

    E ainda:

    Profa. SUSANA KAMPFF LAGES pela traduo indita de um texto de Walter

    Benjamin

    Profa. CAROLINA CORREIA pela reviso

    A NATALIA INDRIMI, diretora do Centro Primo Levi de New York

    A LUISA BASEVI, pela competente consultoria em questes do idioma hebraico

    Enfim a:

    ROGRIO ROSA, pelo apoio multifacetado

    LIVIO BASEVI ROSA e FLORA BASEVI ROSA, involuntariamente hbridos entre

    dois mundos

    MARIA TERESA SIRCANA, para todo o resto, que incomensurvel.

  • Alle radici:

    Maria Teresa Sircana, di Torino

    Paolo Basevi (1924-1981), ebreo-non ebreo di Mantova

  • tre tranger c est devenu em quelque sorte une vertu

    intrieure.

    (Jorge Semprun, Le grand voyage)

    Zwischen Tten und Sterben ist ein Drittes: Leben.

    (Christa Wolf, Cassandra)

    Ser estrangeiro se tornou de algum modo uma virtude interior.

    (Jorge Semprun, A grande viagem)

    Entre matar e morrer h um terceiro caminho: viver.

    (Christa Wolf, Cassandra)

  • SUMRIO

    Introduo .................................................................................................................... 12

    1. ESTRANGEIROS .................................................................................................. 24

    1.1 Fronteiras: brbaro, inimigo, estranho ................................................................ 26

    1.2 Trocas .................................................................................................................. 53

    1.3 Tonalidades do traduzir ....................................................................................... 62

    2. ODISSEIAS ............................................................................................................ 87

    2.1 O canto do sobrevivente ...................................................................................... 91

    2.2 Trajetrias narrativas do exlio ...........................................................................106

    2.3 Aps o naufrgio: nstos e neblina ....................................................................130

    3. SOMBRAS ............................................................................................................ 149

    3.1 A sombra do submerso ...................................................................................... 153

    3.2 Levi e Kafka: um estranho dilogo ................................................................... 182

    3.2.1 Traduzir o unheimlich ............................................................................ 184

    3.2.2 O nome secreto.......................................................................................... 195

    Reflexes conclusivas (assimtricas)......................................................................... 211

    Referncias bibliogrficas.......................................................................................... 220

    Anexo........................................................................................................................... 232

  • LEGENDA

    SQU Se questo un uomo

    T La tregua

    SN Storie naturali

    VF Vizio di forma

    SP Il sistema periodico

    CS La chiave a stella

    L Lilit e altri racconti

    RR La ricerca delle radici

    SNOQ Se non ora, quando?

    AOI Ad ora incerta

    AM Laltrui mestiere

    SES I sommersi e i salvati

    RS Racconti e saggi

    UNG Ultimo natale di guerra

    PS Pagine sparse

    OP Opere I e II

    CI Conversazioni e interviste 1963-1987

    TIR Tutti i Racconti

  • 12

    INTRODUO

    A escrita de Primo Levi (Turim, 1919-1987) atravessa um perodo de interesse

    renovado como demonstram as tradues recentes, entre as quais a edio americana da

    obra completa (Liveright, 2015), mas tambm as publicaes continuamente propostas

    por Einaudi nos ltimos anos: as Lezioni Primo Levi, breves ensaios temticos

    bilngues italiano-ingls; uma coletnea em novo formato como Ranocchi sulla luna ed

    altri racconti, dedicada aos contos sobre animais; a reunio de artigos e depoimentos

    processuais em Cos fu Auschwitz (traduzido recentemente no Brasil) que inclui o

    primeiro relato de Levi sobre o campo de extermnio, escrito em 1945 com o mdico

    Leonardo De Benedetti a pedido dos soviticos, Rapporto sulla organizzazione

    igienico-sanitaria del campo di concentramento per ebrei di Monowitz (Auschwitz-Alta

    Slesia); o ltimo trabalho de Marco Belpoliti Primo Levi di fronte e di profilo, que em

    suas setecentas pginas reorganiza, sintetizando-os, temas e aspectos detectados ao

    longo dos anos pelo crtico. A mais recente publicao de Einaudi a reedio da Obra

    completa (15 novembro 2016), que inclui a primeira verso de Se questo un uomo de

    1947, enquanto o livro que conhecemos corresponde edio de 19581.

    No panorama de estudos concentrados, em sua maioria, sobre as questes do

    testemunho, do trauma, da memria, das relaes com a cincia ou com a histria, os

    ensaios crticos esto proliferando e seguindo a cada vez pistas novas, demonstrando a

    potencialidade do autor, reconhecido finalmente como escritor e liberado da moldura

    estreita da testemunha.

    Nosso trabalho parte da premissa de que por meio de uma chave de entrada

    peculiar possvel proceder leitura da obra de Levi numa perspectiva literria,

    organizando lxico, metforas e imagens especficos do autor. Partindo de uma escuta

    subjetiva do texto, identificamos uma abordagem ainda pouco explorada, organizada em

    torno da problemtica do estrangeiro (straniero), incluindo o estranho-alheio (estraneo)

    e o estranho-bizarro (strano). O corpus envolve a obra completa composta pela

    1 A recepo no foi imediata. Mesmo num meio antifascista, como era o caso dos responsveis da editora Einaudi o livro foi recusado em 1947. Todavia, a pequena editora De Silva o publicou em tiragem de 2500 cpias, com o ttulo: Se questo un uomo ( isto um homem?). Em 1958, a editora Einaudi adquiriu os direitos e publicou novamente o livro (e toda a obra de Levi at hoje) em sua forma definitiva,

    na qual o escritor remanejou parcialmente o texto, inseriu um captulo inteiro e o Prefcio. A escrita de Levi se imps a um pblico maior em 1963, quando sua segunda obra, A trgua obteve o prestigioso prmio literrio Campiello.

  • 13

    literatura autobiogrfica, de testemunho e ficcional, contos, textos ensasticos e poesia

    (Cf. Anexo).

    A escolha pelo tema se deu em consequncia da observao da recorrncia dos

    vocbulos indicados que possuem uma constncia significativa: o adjetivo strano

    numericamente elevado e conotativo de realidades paradoxais, bizarras,

    incomprensveis, irnicas, inesperadas; a figura do estrangeiro desdobra-se em

    personagens diversificadas, desde o explorador ao prisioneiro na Babel de Auschwitz,

    do judeu errante at a figura do tradutor; a estranheza e o estranhamento acompanham

    diversos episdios tanto autobiogrficos quanto imaginrios e derivam da percepo de

    uma realidade mltipla submetida ao acaso e ao imprevisto, desde o mal humano

    produzido pelo nazismo, matria de seu testemunhar, aos mistrios do cosmo.

    O primeiro passo metodolgico foi reunir as citaes relativas s palavras

    estraneo-straniero-strano e os contextos em que estas aparecem para construir um

    percurso, ainda orientado pelos textos. Mas, diferentemente da ideia inicial, foi

    necessrio restringir a atuao da palavra strano aos temas surgidos das outras duas

    (estraneo-straniero), pois o volume do trabalho teria aumentado enormemente uma vez

    que grande parte da produo de contos e ensaios gira em torno de inmeras

    estranhezas: mquinas e invenes, sociedades distpicas, animais reais ou fantsticos,

    histrias que contm outras estranhas histrias, etimologia de palavras e expresses,

    cdigos e profisses alheios, curiosidades cientficas ou astronmicas. Paralelamente,

    h uma abundante quantidade de imagens do duplo em todos os nveis de discurso:

    desde a personagem e o narrador, como o centauro Trachi e seu narrador ou Faussone,

    protagonista de A chave estrela (1978), e seu narrador; ou na meno a seu diploma de

    formatura de 1941, um hbrido documento bifronte, meio glria, meio escrnio, meio

    condenao, meio absolvio2; at o tema do conto Il fabbricante di specchi, sobre

    um imaginrio espelho metafsico, que, ao ser aplicado na testa de algum na nossa

    frente, reproduz a imagem que esta pessoa tem de ns; s que num espelho normal os

    olhos te fitam sempre, neste, ao contrrio, olhavam desviados para a esquerda.3 Sem

    dvida uma bela imagem do perturbante. Resolvemos, todavia, aprofundar os caminhos

    2 LEVI, Primo. Nichel. In Tutti i racconti. Torino: Einaudi, 2005, p.418, trad. nossa; ancipite, mezzo

    gloria, mezzo scherno, mezzo condanna, mezzo assoluzione. Levi fala de absolvio por causa da nota mxima cum laude e condenao por estar especificado: raa judaica. 3 Il fabbricante di specchi, UNG, TIR, p.856, trad.nossa; in uno specchio normale, gli occhi ti guardano

    sempre, in quello, invece, guardavano sbiechi verso la sua sinistra. As citaes referentes s obras de Levi sero feitas mencionando os ttulos em portugus e os acrnimos em italiano, para manter um teor de clareza suficiente que a simples indicao da data de edio neste caso no permitiria.

  • 14

    do strano interligados ao estrangeiro que se demonstraram fecundos em sua

    problematizao ou em seus paradoxos e descartamos uma parte consistente de material

    adquirido, medida que as duas questes, da sombra dos submersos e do embate com a

    traduo de Kafka, impuseram seus profusos desdobramentos.

    O recorte moldado na temtica do estrangeiro trouxe luz uma primeira

    polarizao, entre a barbrie e a troca (cap.1.1). O entrelaamento entre barbrie,

    totalitarismo e antissemitismo se sobressai em inmeros artigos e breves ensaios

    (reunidos em Pagine Sparse). Para estabelecer um dilogo com um corpus terico,

    encontramos alicerces em textos do sculo XX de Arendt, Todorov e Bauman. Na

    escrita de estilo analtico de Levi, desponta o estrangeiro-inimigo, produto de uma viso

    competitiva das sociedades humanas. Com um olhar antropolgico interessado no

    funcionamento do animal-homem, o escritor parte da premissa iluminista de uma

    barbrie originria que s a razo pode conter ao longo de uma evoluo linear; o que

    faz dele, segundo Cases, um dos ltimos grandes intrpretes da confiana ocidental de

    derrotar os monstros da irratio desde que estes sejam reconhecidos.4 O desejo de

    compreender e desvelar prevalece acima de tudo, e o prprio escritor confessa seu

    grande interesse no estudo emprico do mundo: Assistir ao comportamento do homem

    que age no segundo a razo, mas segundo os prprios impulsos profundos, um

    espetculo de extremo interesse, parecido com aquele de que desfruta o naturalista ao

    estudar as atividades de um animal a partir de todos os seus instintos. 5 Esta atitude j

    est presente no Lager, apesar das condies adversas a qualquer atividade reflexiva.

    De fato, o estatuto de estrangeiro-estranho-inimigo foi tambm uma experincia

    vivida em primeira pessoa. Decretadas as leis nazifascistas sobre a raa, os judeus foram

    excludos de qualquer pertencimento nacional e comunitrio. No exlio absoluto do

    aprisionamento concentracionrio esta nova barbrie - o prisioneiro destinado ao

    extermnio encontra-se na condio do que chamaremos de estrangeiro integral, tanto

    por estar imerso na Babel do Lager, quanto por estar banido da espcie humana.

    Contudo, apesar da experincia direta da vida hostil do Campo e apesar de sublinhar o

    dualismo entre hostilidade primordial e razo civilizada, Levi prope narrativamente o

    encontro com os estrangeiros ou o relato de sua prpria condio de estrangeiro (seja

    4 CASES, Cesare. Lordine delle cose e lordine delle parole. In FERRERO, Ernesto (org.) . Primo Levi:

    Unantologia della critica. Torino: Einaudi, 1997, p.33. 5 LEVI, Primo. A trgua. So Paulo: Companhia das letras, 1997, trad. Marco Lucchesi, pp.56-57.

    Lassistere al comportamento delluomo che agisce non secondo ragione, ma secondo i propri impulsi profondi, uno spettacolo di estremo interesse, simile a quello di cui gode il naturalista che studia le attivit di un animale dagli istinti complessi ( La tregua. Torino: Einaudi, 1997, p.67).

  • 15

    prisioneiro ou livre) sob o signo oposto a qualquer violncia. O primeiro impulso , ao

    contrrio, a curiosidade capaz de extirpar esteretipos ou at mesmo estabelecer trocas

    substanciais num espao de hospitalidade (Derrida). Como escritor, Levi parece tecer

    um elogio da amizade, mais prximo centralidade atribuda por Arendt a este lao 6 do

    que a qualquer convico hobbesiana do Homo homini lupus, todavia no descartada

    por sua viso de mundo.

    Se a percepo do estrangeiro, portanto, oscila entre dois polos que Paul Ricoeur

    configura como simpatia e luta, de fato, nas suas tramas narrativas o embate com

    estrangeiros, mesmo quando problemtico, tende em direo recepo e ao

    questionamento de enraizadas divises tnicas ou religiosas.

    O tradutor, figura complexa, atrelada testemunha (Lina Insana), realiza sua

    rdua tarefa de mediao em diferentes contextos. O prisioneiro-tradutor se faz porta-

    voz da violncia feita linguagem, enquanto o escritor-testemunha, uma vez sado do

    Campo, tratar de supervisionar a eficcia tradutria da verso alem de Se questo un

    uomo, num confronto que redefine o papel de original e texto traduzido.

    Embora outra importante cena de traduo seja constituda pelo episdio do

    captulo O canto de Ulisses (em Se questo un uomo), no presente trabalho optamos

    por sintetiz-la e no repetir a anlise j conduzida na Dissertao de Mestrado7.

    Destacou-se aqui sua importncia para a construo da figura do ouvinte, daquele que

    escuta como parceiro testemunhal (Gagnebin), de uma witness audience considerada

    por Lina Insana uma das construes da literatura de Levi, modelo para o leitor e, a

    nosso ver, modelo tambm para o tradutor.

    Ao acompanhar as figuras de estrangeiro no contexto do exlio (cap.2), delineou-

    se uma repartio em trs modalidades de viagem: a catbase, a dispora judaica, o

    nstos. Os captulos se organizam em torno de temas catalisadores da escrita, a

    representao da descida ao inferno e seu regresso, a construo das paisagens exlicas e

    do embate das personagens com a questo do estranho-estrangeiro, as ambivalncias do

    6 ARENDT, Hannah. Lumanit in tempi bui, Milano: Raffaello Cortina, 2006.

    7 Na Dissertao de Mestrado (A lngua que salva. Babel e literatura em Primo Levi , 2010, UFRJ) foi proposta uma leitura segundo a qual O canto de Ulisses constitui o centro do percurso enfrentado no Lager, onde se condensa, de um lado, a relao com a Babel - onde a traduo o ato que visa quebrar a

    incomunicabilidade bablica -, e, de outro, a relao com a prpria lngua, que se revela um forte elo com a prpria identidade, capaz de confortar o condenado no rduo caminho da sobrevivncia fsica e psquica.

  • 16

    despertar e o nstos aberto ou fechado (Janklvitch). Catbase e anbase (nos termos

    do topos literrio de descida/sada ao/do inferno) transformam o sobrevivente (j

    estrangeiro integral no Lager) em estrangeiro-estranho na prpria ptria e ao mesmo

    tempo em cantor-testemunha. Se nos textos sobre o perodo nazifascista, a Europa

    representada aquela devastada pela Segunda Guerra Mundial, no entanto Levi inspira-

    se no heri da Odisseia para moldar a tipologia de estrangeiro que regressa da guerra

    ou do inferno, o revenant, o reduce, coincidente com aquele que narra (cap. 2.1). As

    referncias Odisseia, que permeiam o imaginrio literrio do escritor e o romance

    autobiogrfico La tregua (1963), em especfico, entrecruzam referncias bblicas numa

    representao narrativa do exlio continuamente nutrida pela tradio greco-romana e

    hebraica. Ainda, o aspecto mais dramtico da urgncia testemunhal remete ao Velho

    Marinheiro de Coleridge, do poema A balada do velho marinheiro (1798), figura de

    sobrevivente ansioso por contar um naufrgio sem encontrar escuta. evidente que a

    necessidade de testemunhar norteia grande parte da escrita, atrelando-se forte ligao

    com a linguagem, demonstrada tanto em seu interesse por expresses e etimologias,

    quanto com a problemtica da transmisso comunicativa ao seu leitor. De resto ele

    prprio afirma: "Talvez tenha me ajudado tambm meu interesse, nunca desaparecido,

    pela alma humana, e a vontade no apenas de sobreviver (que era comum a muitos),

    mas de sobreviver com o objetivo preciso de contar as coisas vistas e suportadas.8 A

    quem a comunicao impedida, Levi oferece sua voz. o caso do pequeno Hurbinek

    (cap.1 e cap.3) que no possui nenhuma lngua de partida, portanto, sua palavra

    pronunciada com esforo e incompreendida permaneceria desconhecida sem a

    testemunha. Sua nica palavra intraduzvel, mas escutada, pode ser colocada aos

    antpodas da compulso do Velho Marinheiro no escutado. Ao silncio, Levi tenta

    opor vrias formas alternativas que acabam por formar sua literatura.

    H outro tipo de estrangeiro, o aptrida que sobrevive por meio da resistncia

    armada: a menos conhecida histria dos combatentes judeus do leste resgatada no

    nico romance de estrutura tradicional, Se non ora, quando?(1982), escrito na terceira

    pessoa, que se religa ao topos narrativo do exlio hebraico e da dispora. Confirmando

    a condio de desterrados dos protagonistas, os pases acabam por desligar-se de suas

    configuraes histrico-administrativas e os combatentes atravessam territrios

    8 LEVI, Primo. Opere, vol 1. (Org. Marco Belpoliti). Torino: Einaudi, 1997, p. 201, trad.nossa. Forse mi

    ha aiutato anche il mio interesse, mai venuto meno, per lanimo umano, e la volont, non soltanto di sopravvivere (che era comune a molti), ma di sopravvivere allo preciso preciso di raccontare le cose a cui avevamo assistitpo e che avevamo sopportate.

  • 17

    moldados em sua vivncia, paese delle paludi (pas dos pntanos), paese della fame

    (pas da fome), num percurso linear de sada de suas terras natais, oposto ao movimento

    circular do nstos. Enquanto a travessia pelo nordeste europeu gera uma srie de

    encontros capazes de desmontar barreiras produzidas por preconceitos, principalmente

    antissemitas, na terceira parte do cap.2, a investigao concentra-se no nstos de A

    trgua para incluir tambm A chave estrela e identificar a marca do encontro com o

    humano aps o naufrgio.

    O captulo 3, Sombras, detm-se inicialmente sobre a oposio racional-

    irracional/ claro-escuro, abarcando toda a polmica em torno do escrever claro que se

    instaurou com Giorgio Manganelli. Mas a diviso entre submersos e salvos revela-se a

    diviso-chave da viso de mundo de Levi. Ao desenvolver uma intuio de Raffaella Di

    Castro sobre o submerso interno presente em todo sobrevivente, apresentaremos o

    submerso como Doppelgnger do salvo, uma voz interna que impulsiona o testemunho

    e que em Levi encontra sua representao narrativa oscilante entre a metfora da

    ameaa de uma sombra persecutria e a personagem do amigo-duplo Alberto,

    companheiro de Lager desaparecido na marcha forada dos nazistas em fuga.

    Origem, evoluo, adaptao, seleo natural confluem no conto Carbono (Il

    sistema periodico, 1975), e demonstram que afinal o polo de maior atrao de toda sua

    produo o quesito: quem sobrevive e por qu? A sobrevivncia, talvez focalizada

    como ideia darwiniana e pessoal de um jovem crescido numa sociedade competitiva e

    instrudo por livros de aventuras, amplifica-se ao atravessar o Lager. A batalha

    sublimada contra a Matria como meta da qumica transforma-se em percepo

    dramtica de um mundo em guerra constante (Guerra sempre, diz a personagem do

    Grego).

    Questes originadas do tema da traduo se dividem entre captulos diferentes: se

    o tradutor compe as tipologias de estrangeiro-estranho discutidas no primeiro captulo,

    de outro, a relao com Kafka necessitou um desenvolvimento prprio (cap.3.2). Uma

    das dificuldades de redao foi de fato conseguir uma estruturao coerente, mas que ao

    mesmo tempo acompanhasse os desdobramentos do mesmo tema nos diferentes

    captulos. Portanto, o terceiro captulo volta ao aspecto do estranho desencadeado pelo

    desconforto de um escritor promotor de uma escrita lmpida diante da escrita kafkiana

    exposta a inmeras interpretaes. Tambm j enfocado na Dissertao de Mestrado,

  • 18

    este aspecto recebe agora um tratamento mais aprofundado, sustentado por estudos

    pontuais, e apresentando novo rumos. Graas ao estmulo de indagaes de Valentina

    Di Rosa e Arianna Marelli, pretendemos confirmar algumas hipteses sobre a percepo

    de Levi do texto kafkiano como unheimlich, e acrescentar a outras causas de inquietude

    a ausncia de um tema fundamental para Levi como o tema do testemunho.

    Todavia, alm da traduo, um dilogo textual entre os dois autores possvel e

    permite que diferenas, ambivalncias e estranhas afinidades venham luz, na

    desafiante comparao entre as personagens de Odradek e Hurbinek, respectivamente

    dos textos A preocupao de um pai de famlia de Kafka e A trgua de Levi. A estes,

    acrescentamos o texto de Walter Benjamin, Agelisaus Santander, numa triangulao

    baseada sobre a atribuio de nomes enigmticos. Por este vis, encastoado tanto nos

    textos dos autores quanto na tradio ocidental, encontraremos de novo o estranho,

    coincidindo com o elemento judaico, quase fechando o crculo discursivo iniciado no

    cap.1.

    No plano estilstico, as intersees entre identidade/alteridade e pureza/impureza

    refletem-se na presena do plurilinguismo, dos frequentes oximoros9, das hibridaes

    lingusticas e de gneros textuais, em prol de um constante reajuste dos significados das

    oposies. Domenico Scarpa mostra o funcionamento dos opostos no exemplo da dupla

    segregao/invlucro: espao fechado como conteno ope-se a sada, extravasamento,

    mas no h como atribuir um valor positivo ou negativo, pois espao fechado pode ser

    tanto o aprisionamento quanto o nicho protetivo, assim como seu oposto

    frequentemente coincide com o dilvio, a catstrofe, a exploso, o descontrole. como

    se todo elemento, cada palavra, cada conceito abrigasse seu contrrio e a realidade

    oximrica pudesse ser lida s levando em considerao a dualidade inerente em todas as

    coisas10. O gosto pela imagem de um mundo revirado prevalece, a partir de Auschwitz,

    e o adjetivo capovolto conota inmeras situaes, como se, aps ter conhecido o

    contramundo do Lager, de cada coisa fosse possvel observar seu avesso.11

    9 O uso dos oximoros em Levi objeto de um estudo de Mengaldo. MENGALDO, Pier Vincenzo. Lingua

    e scrittura in Levi. In FERRERO, 1997, pp. 169-242. 10

    SCARPA, Domenico. Chiaro/scuro. In BELPOLITI, Marco (org.). Primo Levi. Riga, n.13. Milano: Marcos y Marcos, 1991, pp.238-240, trad.nossa. 11

    Cavaglion ressalta a magia de toda inverso tambm no nvel verbal, vista como procedimento revelador tanto pelos judeus quanto pela cultura latina, e pelo prprio Levi. Um reflexo disso sobre a linguagem materializa-se no palndromo, jogo lingustico-combinatrio no centro do conto Calore

    vorticoso (Calor vertiginoso), no qual, apesar de uma geral didasclica artificialidade, a ltima frase reversvel destaca-se por eficcia criativa e por incluir o efeito do bilinguismo: in arts it is repose to life/ filo teso per siti strani Calore vorticoso, L, TIR, p.686. A traduo das duas frases : Na arte isso

  • 19

    Enquanto o escritor assume o centauro como metfora de sua diviso entre o

    ofcio de qumico e o de escritor ou entre seu pertencimento-no pertencimento ao

    mundo judaico, uma das hipteses que percorre o trabalho visa identificar outros tipos

    de duplicidades, disfaradas sob declaraes explcitas do autor. Podemos observar

    uma defasagem entre afirmaes abstratas, de um lado e, de outro, relatos de

    experincia ou a representao literria de alguns aspectos especficos: o estrangeiro-

    inimigo, a traduo e a Babel, o escrever claro, a poesia como reflexo do inconsciente

    versus prosa. E haveria ainda outros pontos a serem desenvolvidos como as declaraes

    de modstia em contraposio hybris do gesto criador quase divino que desponta de

    vrias pardias da Gnesis, ou em episdios de ira e julgamento contra atitudes

    consideradas indignas pela testemunha (cf. a reza de Kuhn, cap.3.1, p. 151). Alberto

    Cavaglion, entre outros, costuma alertar para que no se acredite integralmente nas

    declaraes de Levi sobre si e para que se proceda a partir dos textos, o que no

    significa para ns montar uma denncia de incoerncia, mas ultrapassar o limite posto

    pelo prprio autor e aprofundar aspectos mais interessantes de sua escrita. O exemplo

    principal para esclarecer este mecanismo a percepo de si como escritor pela

    metade, que contribuiu durante anos para que se enxergasse em seus textos mais o

    testemunho do que a arte.

    De fato, a partir de sua morte e principalmente com a publicao da revista

    monogrfica Riga e da antologia de ensaios crticos de 1997, a fortuna crtica italiana

    inaugurou uma nova fase, de descoberta contnua da obra de um grande escritor. De

    acordo com Belpoliti, Levi um dos grandes escritores-antroplogos do ps-guerra

    cujas concluses vo alm de Auschwitz, e por isso ele um escritor de todos, embora

    fcil de ser mal entendido12. E, como muitos j apontaram, desde Belpoliti a

    Cavaglion, de Scarpa a Barenghi, Levi mais complexo do que ele quis que

    acreditssemos. E menos claro. Se seus livros resistem prova do tempo, uma das

    razes pode residir no amlgama entre estratificaes enriquecedoras do texto ainda

    produtivas e a busca contnua de comunicar-se com o leitor sem renunciar elegncia

    da escrita.

    repouso para a vida e fio estendido [ou tenso] por [ou para] lugares estranhos (71 contos de Primo Levi. Trad. Maurcio Santana. So Paulo: Companhia das Letras, 2005, p.429, em nota). 12 Entrevista de Andrea Cortellessa a Marco Belpoliti: Le alchimie di Primo Levi il centauro. Belpoliti parla dellautore di Se questo un uomo. In Unit, 26-01-2000 p.17.

  • 20

    O mundo lexical de Levi apresenta peculiaridades em parte devido ao serbatoio

    di metafore (reservatrio de metforas) provindo da qumica, em parte construdo a

    partir de Se questo un uomo. Palavras-chave e figuras estilsticas, mais do que as

    questes biogrficas, podem constituir alimento para a leitura crtica: alm dos

    oximoros j mencionados, as anforas recorrentes, as imagens do groviglio

    (emaranhado), da soglia (soleira, umbral), a metfora do naufrgio e do despertar, ou

    ainda os elementos intertextuais com a Bblia e Homero, Dante e Dostoievski.

    Com seu estilo baseado na brevitas, segundo Belpoliti, Levi procede a uma

    montagem de fragmentos narrativos (cf. tambm Renato Lessa13), confirmando uma

    qualidade da literatura italiana particularmente atrelada forma breve, podendo se

    pensar no modelo das formas aforsticas de Leopardi das Operette Morali.14 A mistura

    de gneros em seus textos, outra peculiaridade, no permite sempre fazer distines

    ntidas entre o que seria um estilo ensastico e um estilo narrativo: no raramente a

    afirmao terica, a explicao ao leitor, o registro narrativo e o trecho lrico se

    alternam na mesma pgina.

    Se a poesia considerada uma produo marginal de sua obra, Se questo un

    uomo definido por muitos uma obra prima sobre o tema dos Campos, opinio que

    Piero Boitani expressa com palavras pontuais:

    Nosso sculo apresenta-nos pelo menos um exemplo extremo, no qual histria e

    literatura, os eventos reais e os possveis, se encontram nas prprias feridas da

    civilizao ocidental, no horror sem fim inventado, no pelos poeta ou romancistas,

    mas pelos engenheiros da sociedade moderna. [...] No h dvida de que o autor

    tenha intencionalmente composto seu livro como um Inferno e uma nova Bblia, e

    que suas pginas comovam o leitor e o reduzam ao silncio tanto quanto o primeiro

    Canto da Comdia e o Livro de J e que, afinal, Se questo un uomo, apesar de

    tratar de eventos histricos e especficos, seja uma obra de arte (BOITANI, Piero.

    Lombra di Ulisse. Bologna: Il Mulino, 1992, p.183, trad.nossa).

    13

    LESSA, Renato. O silncio e sua representao. In: Memrias e cinzas. Vozes do silncio. So Paulo: Perspectiva, 2009. 14

    BELPOLITI, Marco. Intervista di Andrea Cortellessa a Marco Belpoliti: Le alchimie di Primo Levi il centauro. Belpoliti parla dellautore di Se questo un uomo. In Unit, 26-01-2000, p.17.

  • 21

    tempo de notar tambm que, por meio de seu primeiro testemunho, repleto de

    dilogo com grandes autores da literatura ocidental, sua representao de Auschwitz

    torna-se referncia intertextual imprescindvel para outros escritores sobreviventes15.

    Segundo a opinio de Cavaglion, Se questo un uomo o livro central, em torno

    do qual se organizam os outros mais importantes por ele ainda iluminados (com a

    exceo de A chave estrela), ou, como o crtico disse, como o efeito de uma

    fecundao distncia16. Ao mesmo tempo, Belpoliti alerta para no ler Levi apenas

    do ponto de vista do Lager: Auschwitz como tema central mas no nico, como lente

    de aumento ou como alavanca para compreender a condio humana17.

    No caso de Se questo un uomo, estamos falando justamente de um texto sobre a

    Babel infernal onde a literatura subverte o prejuzo da estrangeiridade negativa e da

    incompreenso lingustica, e nos consigna a qualidade de no pertencer a nenhum sonho

    de pureza, em prol de tudo o que hbrido e miscigenado.

    O temor pelas consequncias ameaadoras da Guerra Fria ocupam vrios artigos, e

    o negacionismo crescente dos ltimos anos de sua vida contriburam, segundo

    Cavaglion, a traar uma fronteira ntida entre Se questo un uomo e I sommersi e i

    salvati (1986), os dois livros sobre o Lager, sendo o primeiro ainda impregnado de uma

    confiana que o pessimismo do ltimo teria perdido18. Ernesto Ferrero fala de oscilao

    do autor entre um gramsciano pessimismo da inteligncia e o substancial otimismo

    pragmtico da mensagem que ele se esfora em consignar ao pblico, e no qual ele

    mesmo, antes de todos, acredita.19 Neste caso, Ferrero refere-se coletnea Vizio di

    forma, cujos contos, migrados do campo cientfico (ou de fico cientfica, em Storie

    Naturali) para o antropolgico e etolgico20, oscilam entre as duas posies de

    pessimismo/otimismo, entre alarme pelas ameaas tecnolgicas e a confiana no

    15

    Se questo un uomo hoje tambm lido regularmente pelos alunos do oitavo ou nono ano das escolas

    pblicas italianas.

    16 Em seu ensaio Il termitaio (O cupinzeiro, 1991), Alberto Cavaglion sublinha como na obra ou nas pginas avulsas do escritor ele disseminou nos meandros de um conto de fico cientfica, nas dobras de um elzevir de terceira pgina, uma pedrinha de sua primeira obra prima. Ao leitor cabe recompor este puzzle (CAVAGLION, 1997, pp. 76-90).

    17 Entrevista a Marco Belpoliti, op.cit., p.17.

    18 Primo Levi tra i sommersi e i salvati. Lo straniero, a.8., n.48, 2004, pp.40-49 e Entrevista a Alberto

    Cavaglion, nos concedida em 15-07-2015. 19

    FERRERO, Ernesto. Primo Levi. La vita, le opere.Torino: Einaudi, 2007, p..57. 20

    Ibid., p.55.

  • 22

    futuro21; quando terminam com alguma catstrofe, Levi explica tratar-se de catstrofes

    irnicas, um aviso prvio para que se use o raciocnio e todos os meios para evit-las22.

    No entanto, uma falta de esperana incurvel, de quem convencido de que a

    humanidade tem um destino irremedivel23, estende-se alm dos confins humanos, na

    natureza do universo. Desta forma, as contrastantes bases do pensamento de Levi,

    evolucionismo e catstrofe, se entrecruzam e influenciam reciprocamente, tentando

    ajustar a juvenil confiana numa ordem das leis naturais s consequncias da

    experincia de Auschwitz e impossibilidade de enquadrar o funcionamento humano e

    biolgico em leis compreensveis, exatas e ordenadoras.

    Quanto a seu suicdio, escolhemos no abordar a questo biogrfica, em parte por

    no ter sido esclarecida sua dinmica e em parte porque no mudaria o rumo do estudo

    literrio de sua obra, pelo menos deste.

    Todas estas consideraes (e recuperando as observaes sobre o traduzir e a

    escuta) nos induziram a questionar as tradues da obra de Levi frequentemente

    desatentas a um estilo complexo e verstil, contudo, coerente 24, aos registros,

    repetio de um lxico especfico, preciso das palavras escolhidas, s ambivalncias

    ou solues criativas, prpria pontuao peculiar. Fizemos questo de ressaltar os

    problemas tradutrios medida que os encontramos nas citaes utilizadas, propondo

    uma alternativa acompanhada de sua motivao. Em contrapartida, preciso levar em

    considerao que procedemos traduo de alguns poemas (em maioria s parcialmente

    citados) apenas para facilitar uma primeira leitura ao pblico brasileiro e sem nenhuma

    pretenso.

    Por fim, esperamos contribuir fortuna crtica do autor, ainda escassa no Brasil,

    com este recorte de onde possvel observar a obra do escritor, pelo qual afinal , como

    tentamos demonstrar, o estrangeiro (straniero) acima de tudo um ponto de vista de

    conhecimento, o estranho (estraneo) inclui em suas qualidades a impureza que

    transforma e move a vida, e toda estranheza (strano) merece ser narrada. Levi, to

    ancorado sua casa como um molusco rocha marinha25, e fixado em sua cidade natal

    21

    Ibidem. 22

    Entrevista apud FERRERO, op.cit., p.57. 23

    Ibid., p.74. 24

    Ibid., p.45. 25

    Comparao do prprio Levi em La mia casa, AM, p.3.

  • 23

    durante a vida inteira, encontra na literatura o habitat para suas outras dimenses menos

    estveis de estrangeiridade.

  • 24

    1. ESTRANGEIROS

    S o absolutamente estranho pode nos instruir (Emmanuel Lvinas. Totalidade e infinito)

    Um dos primeiros contos de Primo Levi, o jovem qumico que, antes de 1944,

    nunca havia ultrapassado as fronteiras nacionais seno junto s leituras de Conrad, Jack

    London, Defoe e Stevenson, apresenta as aventuras de um forasteiro deparando-se com

    costumes e linguagens outros, e tendo assim a possibilidade de verificar ou desmentir

    preconceitos existentes. Trata-se do conto Piombo (Chumbo), inserido quase trinta

    anos mais tarde em Il sistema periodico (A tabela peridica). A trama simples, e o

    conto nos ajuda a introduzir a abordagem diferenciada das tipologias de estrangeiro.

    Neste caso, a personagem do explorador parece se apropriar do esteretipo sobre

    nativos divulgado aps as grandes descobertas do Novo Mundo, j que da ilha

    desconhecida onde se encontrava se contavam estranhas coisas como a presena de

    gigantes devoradores de estrangeiros. Logo, ao ser conduzido pelos ndios, descobre

    uma atitude que, ao contrrio, acolhe o estrangeiro e o acompanha como se aquela terra

    pertencesse a todos. O explorador, assim, se transforma naquele tipo de viajante capaz

    de desmontar suas ideias prvias atravs do conhecimento emprico.

    Desde seus primeiros passos literrios, Levi mostra-se atrado pelo campo

    semntico do termo brbaro, expresso recorrente no somente referindo-se aos

    brbaros da sustica 26 e frequentemente barbrie nazista, como tambm a

    um balbuciar primitivo e indistinto, um bar-bar animalesco27, quela onomatopeia que

    remonta ao conhecido grego do qual muitos autores trataram, e em seguida

    traduzida no latim barbarus, mas inicialmente referente simples diferenciao

    lingustica atribuda pelos gregos aos persas.28

    26

    o ttulo de um artigo publicado em Notizie della Regione Piemonte, em1983 e depois reunido entre as Pagine sparse. In LEVI, Primo (org.. Marco Belpoliti) Opere, vol. 2 . Torino: Einaudi, 1997, p.1187. 27

    un barbugliare rozzo e indistinto, un bar-bar animalesco (LEVI, Primo. Piombo. In _____ Il sistema periodico. In TIR, p.438, trad.nossa). Na traduo brasileira bar-bar traduzido com blblbl, perdendo a referncia culta da etimologia de brbaro (Cf. A tabela peridica. Trad. Luis Srgio

    Henriques. Rio de Janeiro: Relume-Dumar, 1994, p.87). 28

    Cf. BENVENISTE, mile. Le vocabulaire des institutions indo-europennes, vol.1. Paris: Les ditions de minuit, 1969, pp. 335-373; Cf. CURI, Umberto. Straniero. Milano: Raffaello Cortina Editore, 2010.

  • 25

    A partir do desenvolvimento observado por mile Benveniste da palavra grega

    xenos, nos termos em latim duplicados e opostos hospes e hostis, os deslizamentos

    semnticos de palavras centrais para o pensamento crtico ensejaram reflexes

    filosficas como a de Derrida em De l hospitalit, ou o ensaio de Umberto Curi, Lo

    straniero. Nelas esto reconstitudas diferentes facetas do estrangeiro, em percursos

    filosficos atrados por essa duplicidade irredutvel.

    Sob as leis de Zeus, o estrangeiro protegido pela xenia, o tratamento benvolo

    determinado pela possibilidade de um forasteiro ser na realidade um deus disfarado.

    o que expressa Eumeo diante de Ulisses transformado em mendigo: No do meu

    feitio menosprezar um hspede, mesmo se o seu quinho for bem menor que o teu, pois

    estrangeiro e pobre, Zeus os manda. parco meu dom, mas caro.29 Curi, porm,

    observa uma ambivalncia polissmica (similar do unheimlich freudiano)30 do termo

    xenos, operando de maneira que o estrangeiro aos poucos assume os contornos de uma

    espcie alheia de homens31, e o , superando a simples diferenciao de

    idiomas, termina por denunciar uma ameaa. Similarmente, o termo hostis passara j na

    Antiguidade do significado de estrangeiro que precisa restituir uma doao e trocar os

    dons, ao significado de inimigo que chega, de arma na mo, at produzir os derivados

    ligados hostilidade32. A alteridade ramifica-se, portanto, numa trade: estrangeiro

    quem hospedado e tambm o inimigo.

    Levando em conta a ambiguidade e fluidez da lngua, ns nos movimentamos na

    obra de Levi, detectando variaes e deslizamentos na linguagem do autor, sem poder

    atribuir para cada significante (estraneo-straniero-strano) um nico significado fixo. As

    palavras deslocam-se nos contextos e nas imagens, nas metforas e nas declaraes, e

    ns com elas. Paradoxalmente, desalojar as ambivalncias de Levi de seus esconderijos

    no opera contra seu anseio de clareza e preciso, mas se torna homenagem sua

    incansvel tarefa de separar, pesar, distinguir, reconhecer os diferentes elementos33.

    29

    HOMERO. Odisseia. Trad. Trajano Vieira. S.Paulo: Editora 34, 2013, p.236-237, vv.56-59. 30

    CURI, 2010, p.55. 31

    Ibid., passim, pp.57-85. Cf. os primeiros dois captulos: Uma inquietante proximidade e Xenia. 32

    BENVENISTE, 1969, passim. 33

    La chimica l'arte di separare, pesare e distinguere (LEVI, Primo. Ex chimico. In_____ Laltrui mestiere. Torino:Einaudi, 1998, p.13).

  • 26

    1.1 Fronteiras: brbaro, inimigo, estranho

    O tema da diviso lingustica ou da diferena de costumes desdobra-se, ao longo

    de sua narrativa, frequentemente em prol da ironia, em histrias de fantasia e sobre

    povos imaginrios como no caso de La bestia nel tempio: Os cavaleiros mortos de

    peste ou em combate foram sepultados pelos companheiros segundo o costume brbaro:

    cada qual montado em seu cavalo, com a arma erguida, desafiando os cus 34. Ou ainda

    no rastro da poca clssica, quando um antigo romano podia enviar de um longnquo

    pas do esquecimento uma carta deste tipo:

    io sto dimenticando il latino: tutti noi della guarnigione lo stiamo dimenticando,

    perch, sposati o no, finisce che parliamo tutto il giorno la lingua dei britanni [...]

    Cos viene fuori questa faccenda ridicola, che lo scrivano che ti scrive mi deve correggere come se il barbaro fossi io invece che lui (Cara Mamma. Lilit e altri

    racconti, TIR, p.713).

    eu estou esquecendo o latim: todos ns da guarnio o estamos esquecendo,

    porque, casados ou no, no fim das contas falamos todos os dias a lngua dos

    britnicos. [...] Da essa coisa ridcula de o escrivo ter de me corrigir como se o

    brbaro fosse eu e no ele (71 contos de Primo Levi. Trad. Maurcio Santana Dias.

    So Paulo: Companhia das Letras, 2005, p.453).

    A maioria dos encontros entre brbaros de idiomas diferentes ocorre, porm,

    nos romances de viagem. Em La tregua algumas circunstncias apresentam-se amenas,

    pacficas, at divertidas:

    Cos ci presentammo sullaia, accolti con saluti affettuosi e risatine dintesa delle

    vecchiette, e da un furioso abbaiare di cani. Quando il silenzio si fu ristabilito,

    forte del mio Michele Strogoff e di altre lontane letture, dissi: - Telega. Staryje

    Doroghi e mostrai gli otto rubli.

    Segu un mormorio confuso: strano a dirsi, nessuno aveva capito. [...]Tjeljega!

    mi corresse il barbone, con severit paterna, scandalizzato dalla mia pronuncia barbarica (LEVI, Primo. La tregua. Torino: Einaudi, 1997, p.164).

    Assim nos apresentamos no local, onde fomos recebidos com saudaes afetuosas

    e risos amigveis das velhinhas, e por um furioso latir dos ces. Quando se fez

    silncio, apoiado no meu Miguel Strogoff e em outras distantes leituras, disse:

    Telega. Staryje Doroghi, e lhe mostrei oito rublos.

    Seguiu-se um burburinho confuso: estranho dizer, mas ningum entendera. [...]

    Tjeljega!, corrigiu-me o barbudo, com severidade paterna, escandalizado pela

    34

    71 contos, p.415. I cavalieri morti di peste o in battaglia, erano stati sepolti dai compagni secondo il

    loro costume barbarico: ognuno a cavallo del suo cavallo, e con larma levata a sfidare il cielo (La

    bestia nel tempio, L, TIR, p.671).

  • 27

    minha pronncia brbara (A trgua. Trad. Marco Lucchesi. So Paulo:

    Companhia das letras, 1997, p.136).

    A recordao literria do romance de Jules Verne funciona como suporte

    comunicativo e acentua o humorismo de uma cena na qual o ser brbaro apenas um

    problema lingustico. Com efeito, quando o viajante faz bom proveito de seus

    conhecimentos literrios, lingusticos ou prticos para encontrar a soluo, se alegra de

    pertencer linhagem de Robinson Cruso ou do Homo Sapiens. Todavia, no princpio

    est outra barbrie.

    Se seguirmos a cronologia editorial, o tema do estrangeiro aparece pela primeira

    vez em 1958, com a segunda e mais afortunada edio de Se questo un uomo. Com o

    acrscimo do Prefcio o escritor prope a seguinte premissa:

    A molti, individui o popoli, pu accadere di ritenere, pi o meno consapevolmente, che ogni straniero nemico. Per lo pi questa convinzione giace in fondo agli

    animi come una infezione latente; si manifesta solo in atti saltuari e incoordinati, e

    non sta allorigine di sistema di pensiero. Ma quando questo avviene, quando il

    dogma inespresso diventa premessa maggiore di un sillogismo, allora, al termine

    della catena, sta il Lager (Prefazione a LEVI, Primo. Se questo un uomo (Notas

    de Alberto Cavaglion).Torino: Einaudi, 1997, p.3, o grifo nosso35).

    Muitos, pessoas ou povos, podem chegar a pensar, conscientemente ou no, que

    cada estrangeiro um inimigo. Em geral, essa convico jaz no fundo das almas

    como uma infeco latente ; manifesta-se apenas em aes espordicas e no

    coordenadas; no fica na origem de um sistema de pensamento. Quando isso

    acontece, porm, quando o dogma no enunciado se torna premissa maior de um

    silogismo, ento, como ltimo elo da corrente, est o Campo de Extermnio (LEVI,

    Primo. isto um homem?, Rio de Janeiro: Rocco, 1988, p.7, trad. Luigi Del Re)36.

    Por consequncia, a associao estrangeiro-inimigo inaugura a obra de Levi por

    ns conhecida; seu primeiro livro apresenta-se como narrao de uma condio

    extrema, de exceo diramos com Agamben37 , cujo germe, porm, deve ser

    identificado nas mentalidades escondidas ou toleradas em tempos mais ordinrios. Levi

    insistir frequentemente como implcita herana da intuio arendtiana da banalidade

    35

    Manteremos o negrito nas citaes italianas de Levi para ressaltar as palavras straniero-estraneo-strano,

    e seus sinnimos. 36

    Aps a primeira citao com referncia completa, as obras de Levi sero citadas com seus respectivos acrnimos para os ttulos italianos e sem indicao do nome do autor para ambas as lnguas. 37

    Agamben retoma a relao entre estado de exceo e soberania de Carl Schmitt e o debate entre este e

    Walter Benjamin, em seu livro com o homnimo ttulo. AGAMBEN, Giorgio. Stato di eccezione.

    Torino: Bollati Boringhieri, 2003.

  • 28

    do mal que os tcnicos do extermnio 38 pertencem mesma espcie das vtimas e

    no se h de imagin-los como acidentes monstruosos e anacrnicos do percurso

    humano. So a tipologia humana mais perigosa deste sculo: sem indivduos como

    Eichmann, Hss ou Kesserling, sem os outros milhares de cegos e fiis executores das

    ordens, as grandes feras, Hitler, Himmler, Goebbels, seriam impotentes e

    desarmadas39.

    Em um ensaio de L altrui mestiere (O ofcio alheio), o escritor volta ao conceito

    do brbaro, afirmando que para muitos o estrangeiro por definio quem fala outra

    lngua, o estranho, o alheio, o diferente de mim, e o diferente um potencial

    inimigo, ou pelo menos um brbaro, isto , etimologicamente, um gago, algum que no

    sabe falar 40. E, no fim da frase, acrescenta,: um quase-no-homem. Para dar relevo

    aos trs termos aqui juntados (lo straniero per definizione, lestraneo, lo strano),

    so apresentados os sinnimos reunidos pela ideia de hostilidade: diverso, nemico,

    barbaro, quasi-non uomo. A ideia de negao na expresso un quasi-non-uomo

    sugere o banimento da humanidade, uma clandestinidade existencial, experimentada de

    fato em primeira pessoa por Levi, tanto com as leis fascistas sobre a raa em 193841,

    quanto em Auschwitz. Desta forma, o sentido literal de brbaro como gago falante

    de uma lngua estrangeira e definido por Tzvetan Todorov significado relativo, se

    estende, na mesma frase de Levi, ao que o pensador chamou de brbaro absoluto42.

    Com efeito, diante do deslizamento semntico, barbrie torna-se para Todorov uma

    categoria de importncia fundamental, vinculada aos atos de discriminao e

    aniquilao: so brbaros os comportamentos de quem no reconhece a plena

    38

    A definio de Levi relativa ao comandante Hss - il miglior tecnico della strage em Prefazione

    a R.Hss, Comandante ad Auschwitz. In Opere, vol.2 (Org. Marco Belpoliti), Torino: Einaudi, 1997, p.1282. No texto o autor volta a focalizar o comportamento que funciona como alicerce da eliminao de outros seres humanos em certos contextos: a obedincia. 39

    LEVI, Primo. Il comandante di Auschwitz. In Racconti e Saggi, OP, vol. 2, p.924, trad.nossa. [Richard Baer] appartiene al tipo umano pi pericoloso di questo secolo. A chi ben guardi, senza di lui, senza gli Hss, gli Eichmann, i Kesserling, senza i mille altri fedeli e ciechi esecutori di ordini, le grandi

    belve, Hitler, Himmler, Goebbels, sarebbero state impotenti e disarmate. 40

    AM, p.109, trad.nossa. No original: Per molti chi parla umaltra lngua lo straniero per definizione, lestraneo, lo strano, il diverso da me, e il diverso un nemico potenziale, o almeno un barbaro: cio, etimologicamente un balbuziente, uno che non sa parlare, un quasi non -uomo. 41

    Entre setembro e novembro de 1938 foram promulgadas as leis de restries e discriminao contra a chamada raa judaica que visavam excluir das escolas, das instituies e da vida social os italianos e

    estrangeiros de tradio ou origem judaica. 42

    TODOROV, Tzvetan. La paura dei barbari. Oltre lo scontro di civilt. Milano: Garzanti, 2009, p.31, trad.nossa.

  • 29

    humanidade dos outros (o contrrio caracteriza o adjetivo civilizado)43. Segundo o

    intelectual blgaro-francs,

    [o] sentimento de rivalidade homicida que nos leva a impedir os outros de gozar

    das mesmas felicidades e dos mesmos bens que desejamos para ns, nada mais

    seno uma pulso brbara presente na Histria desde Cain s tiranias

    contemporneas, onde brbaro mais um adjetivo atribuvel a um comportamento,

    a uma ao especfica, do que a denotao de um indivduo ou um povo (Ibidem).

    Por este motivo, Todorov une-se aos pensadores convencidos de que as aes

    desumanas so coisas humanas44, estando, entre estas, a furiosa e implacvel mquina

    de extermnio nazista, embora ainda capaz de suscitar perplexidades e estarrecimento.

    O prprio Levi transita constantemente entre reaes de surpresa diante de um

    mundo revirado, louco e incompreensvel (segundo suas recorrentes definies) e de

    anlises pontuais dos mecanismos e hierarquias do Lager, conduzidas com aquele

    enfoque etno-antropolgico, elogiado por Claude Lvi-Strauss.45 O grande antroplogo

    francs, traduzido por Levi na dcada de 1980 46 e com o qual apresenta as afinidades

    descritas por Marco Belpoliti concepo tica, escrita analtica e ao mesmo tempo

    impregnada de clssicos, curiosidade, origem hebraica, estoicismo do pensamento

    ainda serve de inspirao ao breve ensaio Lintolleranza razziale (1979)47. O texto

    sobre intolerncia aborda os atritos entre raas e a averso para com alguns povos,

    utilizando exemplos histricos e zoolgicos at delinear a natureza pr-humana do

    fenmeno e dando-lhe assim um carter quase congnito. Por um lado, o obscuro

    instinto que leva os homens a se reconhecerem diferentes uns dos outros possui razes

    muito antigas 48, e outras civilizaes foram profundamente infectadas pela pulso

    contra o diferente 49. Por outro lado, a intolerncia racial possui origens pr-histricas e

    at pr-humanas parecendo, portanto, incorporada em certos instintos primordiais

    43

    Ibid., p.34-35. 44

    Cf. TRAVERSO, Enzo. Auschwitz e gli intellettuali. Bologna: Il Mulino, 2004, p.210. 45

    Nas notas aos textos de Opere, Belpoliti refere um comentrio de Lvi-Strauss a propsito de A chave estrela: Eu o li com extremo prazer porque no h nada que eu ame mais do que escutar os discursos

    sobre trabalho. Sob este perfil, Primo Levi uma espcie de grande etngrafo ( Lvi-Strauss apud Belpoliti, Primo Levi traduttore. In OP vol.2 , p.1588, trad.nossa). 46

    De 1983-1984 so as tradues para a editora Enaudi de La voie des masques e Le regard loign, em colaborao com a irm Anna Maria, que porm no assina, dois livros . (Cf. Belpoliti, ibidem). 47

    Lintolleranza razziale, PS, OP vol. 1, pp.1293-1311. Belpoliti sugere a direta influncia para este ensaio de Race et histoire, assim como a marca de Le regard loign em Os afogados e os sobreviventes

    (Ibidem). 48

    Lintolleranza razziale, op.cit., p.1295, trad.nossa. 49

    Ibid., p.1296

  • 30

    de muitas espcies50. Sua propagao se daria como uma infeco, o que abre a

    possibilidade de ser contida ou tratada: o antdoto contra a manifestao desta patologia

    latente provm, segundo Levi, do acionamento das faculdades racionais.

    Seguindo a mesma linearidade, indo de um mundo selvagem a uma civilizao

    evoluda, Julia Kristeva inicia seu trangers nous-mmes, distinguindo de maneira

    esquemtica l tranger qui fut l ennemi dans les socits primitives e aquele

    supostamente mais complexo das sociedades modernas, onde uma nova perspectiva

    porm aflora: no mais se esforar em integrar, isto , anular as diferenas dos

    estrangeiros, mas conviver todos como estrangeiros, reconhecendo este estatuto

    intrnseco em cada um51.

    Embora Levi alertasse contra as tentaes de colocar fora da histria eventos

    desumanos como a Sho, ele persegue seus conceitos darwinianos e se atm a

    posicionamentos de iluminista confiana na razo. Ao mesmo tempo, a partir de

    Auschwitz, o nexo estreito entre modernidade e barbrie despontou entre os intelectuais,

    de Adorno e Horkheimer (como final do percurso da Aufklrung 52), a Hannah Arendt,

    at Zygmunt Bauman, e se juntou aos questionamentos ps-modernos, superao das

    certezas metafsicas e da linearidade do progresso, necessidade de refundar um

    discurso a partir da pluralidade, de um pertencimento instvel e do desencantamento

    face histria ocidental. A cesura provocada pela experincia de Auschwitz coloca em

    cheque a idealizao da civilizao ocidental e atesta a importncia da afirmao

    benjaminiana: Nunca houve um monumento de cultura que no fosse tambm um

    monumento de barbrie53.

    Distante das elaboraes filosficas, Levi cultiva seu talento de observador

    emprico, sua escrita se mantm no espao duplo do estilo claro e analtico e ao mesmo

    tempo acolhedor, como veremos, de ambivalncias e enxertos. Sua narrativa

    desenvolve-se como um grande afresco de uma barbrie totalmente moderna, diante da

    qual ele se empenhar constantemente em conciliar a viso de progresso com o evento

    50 Ibid., p.1299. A mesma ideia retorna no artigo do mesmo ano 1979: lantisemitismo un fatto antico e complesso, con radici barbariche o addirittura pre-umane, (esiste notoriamente un razzismo zoologico, proprio degli animali sociali) (Perch non ritornino gli olocausti di ieri e di oggi, PS, OP, vol. 1, p. 1270,

    o grifo nosso). 51

    KRISTEVA, Julia. trangers nous-memes. Gallimard, 2007, p.11. 52

    ADORNO, Theodor. HORKHEIMER, Max. Dialtica do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar

    Ed., 1985. 53

    BENJAMIN, Walter. Teses sobre o conceito de histria. In _______Magia e tcnica, arte e poltica. S.Paulo: Brasiliense, 2011, p.225.

  • 31

    trgico que parece redefinir os significados de civilizao, atento a no cair na tentao

    de tornar a Sho uma terrvel exceo.

    Sempre promotor da necessidade de compreender, Levi obstinado a

    desmistificar o mito do indizvel, e, ao mesmo tempo, admite uma limitao na

    transmisso de eventos extremos. Segundo Federico Pellizzi, possvel afinar as ideias

    do escritor, no o considerando um neo-positivista, mas algum que, por ter atravessado

    a experincia absoluta de Auschwitz, antecipa a viso da gerao ps-fenomenolgica

    de Italo Calvino e, sem abandonar totalmente a confiana na racionalidade, resolve

    enfrentar seus limites54.

    Evidentemente encontramos a associao estrangeiro-inimigo em muitos textos

    de contextualizao histrica, como no artigo Il faraone con la svastica (O fara com

    a sustica), onde se comentam as polticas fascistas e nazistas relativas aos judeus,

    definidos estrangeiros e estranhos-alheios: no passava dia sem que os jornais e as

    revistas nos definissem estranhos tradio do Pas, diferentes, nocivos, abjetos,

    inimigos55. A uma discriminao similar no resta outra coisa seno responder dentro

    do conflito: Contribuir luta contra os nazistas era um dever imperioso: eram meus

    inimigos, os inimigos da humanidade, agora tambm da Itlia, e a Itlia, fascista ou no,

    no deixava de ser meu pas56.

    O discurso sobre o totalitarismo vem sendo delineado atravs da imposio de

    uma estrangeiridade inimiga. De fato, j no estudo de Arendt, a estrutura do

    totalitarismo explicava o antissemitismo como elemento necessrio sua construo,

    assim como para Todorov o conceito de estrangeiro-inimigo produto do pensamento

    totalitrio, o qual impe o lxico da guerra a esferas internas de uma sociedade sem

    admitir posies intermedirias: quem for assim classificado percebido sendo um

    54

    PELLIZZI, Federico. Asimmetria e preclusione. In NEIGER, Ada (Org.). Mmoire oblige. Riflessioni sullopera di Primo Levi. Labirinti, n.120. Trento: Dipartimento di Studi Letterari, Linguistici e Filologici, 2009, p.205. 55

    Il faraone con la svastica, OP vol.1, p.1190, trad.nossa; non passava giorno senza che i giornali e le riviste ci definissero estranei alla tradizione del Paese, diversi, nocivi, abietti, nemici. 56

    Ibid., p.1193, (trad.nossa). Contribuire alla lotta contro i nazisti era un dovere imperioso: erano i miei nemici, i nemici dellumanit, adesso anche i nemici dell Italia, e lItalia, fascista o no, era pur sempre il mio paese. Escrito em 1983, o texto refere-se a quarenta anos antes, quando Levi comeara seu (breve) caminho na luta da Resistncia, o combate armado e civil ao nazifascismo feito pela populao do centro e norte da Itlia, iniciado em 1943 e que libertou as reas ocupadas em 1945. Levi decidiu se juntar s brigadas Giustizia e Libert, formaes de esquerda moderada, mas seu pequeno e inexperiente grupo foi

    logo preso pelas milcias fascistas. Por medo de ser fuzilado como partigiano (combatente). Levi declarou sua origem judaica, alegando ter buscado um esconderijo. Foi levado ao campo italiano de Fossoli junto a alguns companheiros e de l colocado nos trens destinados a Auschwitz.

  • 32

    adversrio que seria legtimo e meritrio exterminar como a peste57. Levi descreve

    como o nazismo colocou rapidamente em prtica seu projeto:

    Il nazionalsocialismo, ricco dell'esperienza italiana, nutrito di lontani fermenti

    barbarici e catalizzato sulla personalit di Adolfo Hitler, ha puntato sulla violenza

    fin dal principio, ha riscoperto nel campo di concentramento, vecchia istituzione

    schiavista, un "instrumentum regni" dotato del potenziale terroristico che si

    desiderava, ed ha proceduto su questa via con incredibile rapidit e coerenza

    (Cos fu Auschwitz, 1975, PS, OP vol.1, p.1191).

    O nacional-socialismo, fortalecido pela experincia italiana, nutrido de antigos

    fermentos barbricos, e catalisado na personalidade de Adolf Hitler, priorizou a

    violncia desde o incio, redescobriu no campo de concentrao velha instituio

    escravocrata um instrumentum regni, munido do potencial terrorstico desejado, e

    prosseguiu por este caminho com incrvel rapidez e coerncia (trad. nossa).

    Em SQU, a definio do nazismo como nova barbrie explcita desde as

    primeiras pginas, tornando-se barbrie por antonomsia, encarnada pelos agentes das

    SS que gritam na plataforma, primeiro sinal do mundo infernal: O desfecho chegou de

    repente. A porta foi aberta com fragor, a escurido retumbou com ordens estrangeiras e

    com esses brbaros latidos dos alemes quando mandam, parecendo querer libertar-se

    de uma ira secular58. A imagem sobrepe-se s demonacas figuras dantescas e a raiva

    vecchia di secoli evoca a ligao atravs do tempo com a medieval Divina

    Comdia59, como se os oficiais nazistas fossem eles mesmos guardies dos crculos

    infernais. De relance, gostaramos de observar que outros escritores sobreviventes

    retomam a imagem dos latidos infernais. Ruth Klger, austraca, fala dos oficiais como

    ces raivosos a ladrar60; Boris Pahor, escritor esloveno, que vrias vezes cita

    implicitamente Levi, reconstri a cena com os ingredientes de SQU:

    o rebanho confuso se despe rapidamente, enquanto do outro lado da encosta, alm

    do arame farpado, o latir dos ces rasga brutalmente a noite, e negros poos de

    escurido perdem-se no infinito precipcio do nada. Tempo, tempo!, apressa a

    57 TODOROV, 2009, p.139. 58

    isto um homem?, p.17. Venne a un tratto lo scioglimento. La portiera fu aperta con fragore, il buio echeggi di ordini stranieri, e di quei barbarici latrati [nota] dei tedeschi quando comandano, che

    sembrano dar vento a una rabbia vecchia di secoli (SQU, p.12). Como foi observado, a cena estabelece um dilogo com Dante atravs da comparao com Crbero, o co monstruoso do terceiro crculo do inferno: Grosso granizo, gua suja e neve/ pelo ar tenebroso se dispersa;/ fede a terra que dentro em si a teve. / Crbero, a fera que cruel, diversa/ com trs gorjas caninamente ladra/ sobre a gente que ali est submersa (ALIGHIERI, Dante. A divina comdia de Dante Alighieri. Inferno. Canto VI, v.10-15. Traduo de Vasco Graa Moura. Venda Nova: Bertrand editora, 1996, p.71). 59

    A expresso dar vento da citao dantesca (nota acima) perde-se na traduo. 60

    KLGER, Ruth. Paisagens da memria, Autobiografia de uma sobrevivente do Holocausto, So Paulo: Editora 34, 2005, p.102.

  • 33

    voz cheia de raiva, e os latidos tornam-se mais furiosos, como se as narinas de uma

    fera com vrias cabeas tivessem acabado de farejar o cheiro da pele nua trazido

    pelo vento nas asas da noite (PAHOR, Boris. Necropoli. Roma: Fazi editore, 2009,

    p.57, trad. nossa da ed. italiana).

    Acreditamos que a intertextualidade se estabelece, nesses autores, com Primo

    Levi, e no apenas com Dante, e precisaria de uma pesquisa especfica para demonstrar

    a intensidade do eco de SQU (ou de sua sombra, parafraseando o ttulo de Piero Boitani,

    A sombra de Ulisses) em vrios autores sobreviventes, principalmente os que

    escreveram mais tarde.61 Primo Levi torna-se, de fato, referncia dos escritores

    sobreviventes que testemunharam a partir da dcada de 1960, quando era mais difcil

    desconhec-lo62.

    Retomando o fio que nos conduz questo da hostilidade, esta no se limita ao

    plano vertical entre dominadores e oprimidos. Quando o estrangeiro apresenta-se como

    invasor e opressor, a tenso entre os dominados inevitvel:

    constatiamo che ai nostri giorni, in tutti i paesi in cui un popolo straniero ha posto

    piede da invasore, si stabilita una analoga situazione di rivalit e di odio fra gli

    assoggettati; e ci, come molti altri fatti umani, si potuto cogliere in Lager con

    particolare cruda evidenza (SQU, p.79).

    constatamos, porm, que, em nossos dias, em todos os pases nos quais um povo

    estrangeiro fincou p como invasor, sempre se estabeleceu anloga situao de

    rivalidade e dio entre os oprimidos, e isso (como muitos outros fatos humanos)

    ficou claro no Campo de Concentrao, com especial, cruel evidncia ( isto um

    homem? p.92-93).

    Inserido entre episdios contados e imagens mais lricas, o trecho reflexivo de

    SQU opera em favor da narrativa segundo uma interpenetrao de gneros textuais que

    em nada afeta a eficcia da escrita. Pelo contrrio, as anlises introduzidas entre uma

    descrio (de uma personagem, de uma paisagem) e a representao de um estado de

    nimo ou de um episdio reproduzem coerentemente a fidelidade do prisioneiro Levi

    faculdade do pensamento, apesar da dureza da sobrevivncia e da perda da esperana.

    Alm disso, no dio entre os dominados suscitado pelo poder opressor, percebe-

    se tanto o eco do escritor Alessandro Manzoni63 quanto o germe da futura zona

    61

    Cf. tambm Lcriture ou la vie de Jorge Semprun, que desde a escolha da primeira cena evoca o incio de La tregua. 62

    SQU, alm de reeditado em italiano, foi traduzido para o ingls em 1959; para o francs e o alemo,

    em 1961. 63

    I provocatori, i soverchiatori, tutti coloro che, in qualunque modo, fanno torto altrui, sono rei, non solo del male che commettono, ma del pervertimento ancora a cui portano lanimo degli offesi (Manzoni

  • 34

    cinzenta, aquele espao intermedirio da hierarquia de um sistema violento, no qual a

    uma parte das vtimas so concedidos pequenos privilgios em troca de funes que os

    marcam como cmplices. Tanto Manzoni quanto Levi denunciam a perversidade que

    toda tirania implanta nos comportamentos dos oprimidos64.

    O totalitarismo estende em diversas direes sua obra de alterao dos conceitos

    de lei, de uso da linguagem e de sua relao com o real: o estado de exceo marca um

    patamar onde lgica e prxis se indeterminam e onde uma pura violncia sem logos

    pretende realizar um enunciado sem nenhuma referncia real65. A suspenso do

    direito, caracterstica do poder absoluto, como mostra tanto o testemunho de Levi

    quanto a reflexo de Agamben, se abate em cima de uma categoria de indivduos que

    aquele mesmo poder julga como o imperador romano ou o senado julgava: um hostis,

    inimigo pblico, espoliado em qualquer momento de seus bens e condenado morte 66.

    Uma planejada e prolongada propaganda na construo do inimigo interno ou externo

    necessria para que as populaes ajam movidas pela convico de uma fronteira

    entre ns e eles. Desta forma, o discurso do dio consegue alavancar algo latente,

    desencadear conflitos e agresses contra o alvo; o medo que sustenta a justificativa de

    comportamentos desumanos vem a ser, como afirma Todorov, um perigo para os

    prprios indivduos tomados por este sentimento67.

    Atrelado ao medo tambm o perfil do antissemita traado por Jean Paul Sartre

    em 1947: medo de descobrir que num mundo mal feito a ele cabe parte da

    responsabilidade de melhoria, medo de se descobrir dono de seu destino, da liberdade,

    da conscincia, medo de tudo menos do que dos judeus. A concluso do raciocnio de

    Sartre estabelece a equivalncia entre antissemitismo e desamparo face condio

    humana. No se trata de uma justificativa, pois o livre arbtrio da conscincia e a

    responsabilidade individual podem identificar o engano deste tipo de maniquesmo, o

    qual pretende explicar a histria segundo a luta entre os princpios do Bem e do Mal,

    apud Cavaglion, SQU, nota n.14 p.206. Alberto Cavaglion discute o trecho inteiro como ncleo

    embrionrio de SES e cita a conhecida reflexo de A. Manzoni presente em I promessi sposi). 64

    A zona cinzenta (ou cinza) de Levi ainda mais complexa, pois inclui grupos de pessoas que no haviam escolha seno a morte e sobre as quais ele pede que se suspenda qualquer julgamento. o caso dos esquadres do Sonderkommando, os judeus predispostos ao funcionamento das cmaras de gs. Cf. cap.3.1 deste trabalho. Levi declara: Aver concepito ed organizzato le Squadre stato il delitto pi demoniaco del nazionalsocialismo(SES, p.39). 65

    AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceo. S.Paulo: Boitempo, 2008, p.63. 66

    Ibid., p.122. 67 TODOROV, 2009, p.15.

  • 35

    conflito sem acordos possveis, onde um deve triunfar e outro ser aniquilado68. De modo

    similar, Adorno e Horkheimer consideram o antissemitismo a caracterstica de uma

    mentalidade que aceita todas as etiquetas e se lana contra todas as diferenas 69. Em

    suma, o antissemita seria igualmente anti-qualquer outro se os judeus no existissem.

    Com a emancipao das comunidades judias e sua insero nas sociedades

    europeias ocidentais a partir do sculo XVIII, de acordo com Bauman a segregao

    requeria um mtodo moderno de construo dos confins70. O filsofo mostra como a

    igualdade e a assimilao suscitaram reaes, caracterizando o antissemitismo moderno

    no como resposta a fortes diferenas entre grupos, mas como sentimento gerado pela

    ameaa do desaparecimento das diferenas, pela homogeneizao da sociedade

    ocidental com a consequente abolio das antigas barreiras sociais e jurdicas existentes

    entre judeus e cristos.

    Ao retomar a ideia de que o judeu existe para o antissemita, sendo uma sua

    criao, como sugeria Sartre relativamente Europa ocidental, focaliza-se um fenmeno

    das sociedades humanas que consiste em forjar categorias antagnicas abstratas s em

    parte baseadas em algo concreto a partir das quais incluir e excluir, onde a construo

    de um pertencimento, quando muito fraco, precisa ser reforado contra algum. Como

    confirma Alain Badiou:

    Quando uma realidade no embasada, ela existe apenas na destruio de outra

    coisa, uma tautologia racial pode existir s na guerra. O nazismo queria um reino

    milenar dos Arianos. Mas os Arianos no existem. a tautologia do discurso

    nazista: o Ariano o Ariano. Por isso, a nica realidade do projeto nazista era a

    aniquilao do que no era ariano. Os judeus em primeiro lugar, evidentemente,

    mas tambm os ciganos e os eslavos. A poltica nazista, como poltica racial, na

    realidade uma poltica da guerra infinita (Entrevista com o jornal Haaretz. In

    PEZZELLA, Mario (org.) Il volto dellaltro. Intellettuali ebrei e cultura europea

    del Novecento. Macerata: Quodlibet, 2011, p.56-7, trad.nossa).

    No apenas nas inmeras Pagine Sparse que Levi contribui para um

    testemunho pessoal aliado a quadros histricos sintticos destinados a seus leitores. A

    narrativa ligada ao perodo do conflito mundial assimila todas estas realidades e as

    elabora consignando s personagens a representao das tenses at agora discutidas. A

    68

    SARTRE, Jean Paul. Lantisemitismo. Milano: edizioni di Comunit, 1964, passim p.7-29. O ttulo original : Rflexions sur la question juive. 69

    De fato, muitos pensadores tentaram individuar o perfil do cidado-chave na disseminao do dio

    contra um grupo humano. Cf. TRAVERSO, 2004, p.124. 70

    BAUMAN, Zygmunt. Modernit e Olocausto. Bologna: Il Mulino, 2010, p.89 (trad.nossa da ed. italiana).

  • 36

    comparao mais radical da vida com a guerra, por exemplo, torna-se mote da

    personagem do Grego em T 71, conceito repetido por um combatente polons em SNOQ:

    A guerra no vai acabar nunca. Desta guerra nascer outra, e haver guerra sempre.72

    A realidade concreta do conflito mundial evidentemente prevalece no sentimento que

    gera tais palavras, todavia ao escrever nos mesmos anos, a poesia Partigia (1981)

    parece sugerir uma imagem metafrica para a condio humana de uma gerao:

    Spaccato ognuno dalla sua propria frontiera,

    La mano destra nemica della sinistra

    In piedi, vecchi nemici di voi stessi:

    La nostra guerra non mai finita.

    (LEVI, Primo. Partigia. In Ad ora incerta. Milano: Garzanti, 2004, p.58-59)73

    No cruzamento entre a contextualizao do antissemitismo em sociedades

    totalitrias e a anlise dos fanatismos maniquestas, Levi filtra sua experincia direta e

    as informaes que continuou recolhendo ao longo dos anos para oferecer suas snteses:

    Il nazismo, come ogni potere assoluto, aveva bisogno di un anti-potere, di un anti-

    Stato, su cui scaricare le colpe di tutti i guai, presenti e passati, veri e presunti, di

    cui i tedeschi soffrivano; gli ebrei, indifesi e sentiti come altri da molti, erano

    lanti-Stato ideale, il foco in cui si poteva far convergere lesaltazione

    nazionalistica e manichea che la propaganda nazista manteneva nel paese.

    [...] gli ebrei sono bens una tenebrosa potenza universale, lincarnazione di

    Satana (Cominci con la notte dei cristalli, 1978, PS, OP vol. 1 p.1244).

    O nazismo, como todo poder absoluto, precisava de um antipoder, de um anti-

    Estado, sobre o qual descarregar as culpas de todas as desgraas, presentes e

    passadas, verdadeiras ou supostas, sofridas pelos alemes; os judeus, indefesos e

    percebidos como outros por muitos, eram o anti-Estado ideal, o foco onde podia

    convergir a exaltao nacionalista e maniquesta que a propaganda nazista

    mantinha no pas. [...] os judeus so [...] uma tenebrosa potncia universal, a

    encarnao de Satans (trad. nossa).

    Se, como veremos, a vivncia de Auschwitz cristalizou a imagem do

    contramundo ou antimundo, aqui o anti-Estado e o antipoder so atribudos pelos

    nazistas aos judeus, por serem os anti-arianos. Neste caso, o tema e a inverso de

    71

    Cf. cap.2.2 deste trabalho. 72

    LEVI, Primo. Se no agora, quando? So Paulo: Companhia das Letras, 1999, p.205. La guerra non finir mai. Da questa guerra nascer unaltra guerra, e sar guerra sempre (SNOQ, p.178) 73 Rachado cada um por sua prpria fronteira,/ A mo direita inimiga da esquerda/ De p, antigos inimigos de vocs mesmos:/ Nossa guerra nunca terminou (trad.nossa).

  • 37

    conceitos pertence ao discurso nazista, que v na antinao judaica uma oculta ameaa

    para os outros estados, empenhada em estender sua tirania absoluta. ric Michaud, em

    seu ensaio sobre a acusao antissemita de negao da Encarnao crist, observa como

    a Alemanha representou o pas que concentrou com mais eficcia os temas do anti-

    povo, ou da antiraa sem arte e forma prpria, que ofusca, com seu sangue e seu deus

    ciumento, o gnio criador do Ariano, impedindo que seu ideal nacional e racial tome

    forma na arte.74

    A inevitvel abordagem das relaes entre antissemitismo e cristianismo

    aparece numa conversa entre Levi e Ferdinando Camon publicada postumamente, na

    qual a relao com a alteridade encontra a questo nodal da assimilao:

    nella educazione cattolica sentivo calato il principio che non ci pu essere dialogo

    con laltro, se non finalizzato alla sua conversione. Nella assimilazione dellaltro

    sta il suo bene e il nostro bene. Finch laltro resta altro, c un suo problema e un

    nostro problema. Qui c, in nuce, e temo che non si possa vederlo facilmente, il

    principio della non-accettazione dellaltro, che il primo passo di una lunga

    marcia che ha come sbocco finale, allestremo orizzonte, la disposizione o la non-

    disposizione alla distruzione dellaltro. (CAMON, Fernando. Conversazione con

    Primo Levi. Parma: Guanda, 2014, p.14).

    na educao catlica percebia o princpio embutido segundo o qual no pode existir

    dilogo com o outro, a no ser que levasse converso. O bem nosso e o do outro

    residem em sua assimilao. Quando o outro permanece sendo outra coisa, h um

    problema dele e nosso. Aqui est, in nuce e, temo, difcil de ser visto o

    princpio da no-aceitao do outro, primeiro passo de uma longa marcha que

    desemboca, ao extremo horizonte, na disposio ou no-disposio destruio do

    outro (trad. nossa).

    Se o embate entre preservao e aceitao de uma diferena identitria concerne

    a inmeros contextos tnicos e religiosos, o lao estreito e peculiar entre histria

    catlica e hebraica aponta para a especificidade dos judeus, por eles constiturem um

    aspecto da prpria identidade crist. Bauman enfatiza este ponto e acrescenta:

    O conceito de judeu o campo de batalha onde foi travada a interminvel luta da

    Igreja pela sua identidade [...] Judeu era um conceito sobrecarregado do ponto de

    vista semntico, no qual confluam e se mesclavam significados que deveriam ter

    permanecido separados; por esta razo constitua um alvo natural de todas as foras

    empenhadas em traar fronteiras e em mant-las impermeveis (BAUMAN, op.cit.,

    p.65, trad. nossa).

    74 MICHAUD, ric. Ritratti dellebreo come negatore dellIncarnazione. In PEZZELLA, 2011, p.73, trad.nossa.

  • 38

    Nas palavras do socilogo, trata-se de um conceito historicamente moldado,

    representativo de todas as viscosidades do mundo ocidental, ao mesmo tempo

    portador de uma viscosidade extrema e nica. O antissemitismo assegurou uma

    autodefinio de identidades tnicas ou nacionais, graas sua funo demarcatria e

    sua caracterstica de extratemporalidade e extraterritorialidade. Alm disso, segue

    Bauman, se adaptava bem a muitas problemticas locais justamente por no estar

    estritamente conectado com nenhuma delas75. Vrios autores, como Weinrich,

    Rubinstein e sobretudo Leo Pinsker (citados por Bauman em Modernidade e

    Holocausto) confirmam o quanto o cerne do antissemitismo resida na peculiaridade

    desta categoria social no mundo ocidental os judeus , e em seu ser associado

    faco adversa que se pretende desprezar e culpar: o judeu ser simbolicamente o

    aptrida para os nacionalistas, o estrangeiro para os outros cidados, o rico explorador

    para os pobres, o bolchevique para os conservadores, e, ao mesmo tempo, passivamente

    resignado e capaz de armar um compl