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O Pensamento Africano Sul-Saariano : Conexões e paralelos com o pensamento Latino-Americano e o Asiático (um Esquema) Titulo Devés- Valdés, Eduardo - Autor/a; Autor(es) Río de Janeiro Lugar CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales EDUCAM Editorial/Editor 2008 Fecha COLECCIÓN CLACSO COEDICIONES Colección Pensamiento social; Historia de las ideas; Intelectuales; Siglo XIX; Siglo XX; Estudios africanos; Asia; América Latina; África; Temas Libro Tipo de documento "http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/clacso/coediciones/20100818091259/valdes.pdf" URL Reconocimiento-No comercial-Sin obras derivadas 2.0 Genérica http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/2.0/deed.es Licencia Segui buscando en la Red de Bibliotecas Virtuales de CLACSO http://biblioteca.clacso.edu.ar Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO) Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO) Latin American Council of Social Sciences (CLACSO) www.clacso.edu.ar

VALDES, Eduardo. O Pensamento Africano Sul-Saariano

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VALDES, Eduardo. O Pensamento Africano Sul-Saariano

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  • O Pensamento Africano Sul-Saariano : Conexes e paralelos com o pensamentoLatino-Americano e o Asitico (um Esquema)

    Titulo

    Devs- Valds, Eduardo - Autor/a; Autor(es)Ro de Janeiro LugarCLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales EDUCAM

    Editorial/Editor

    2008 FechaCOLECCIN CLACSO COEDICIONES ColeccinPensamiento social; Historia de las ideas; Intelectuales; Siglo XIX; Siglo XX; Estudiosafricanos; Asia; Amrica Latina; frica;

    Temas

    Libro Tipo de documento"http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/clacso/coediciones/20100818091259/valdes.pdf" URLReconocimiento-No comercial-Sin obras derivadas 2.0 Genricahttp://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/2.0/deed.es

    Licencia

    Segui buscando en la Red de Bibliotecas Virtuales de CLACSOhttp://biblioteca.clacso.edu.ar

    Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO)Conselho Latino-americano de Cincias Sociais (CLACSO)

    Latin American Council of Social Sciences (CLACSO)www.clacso.edu.ar

  • 5Sumrio

    Apresentao ........................................................................................... 7

    Introduo ................................................................................................ 9

    1 O Incio do Pensamento Africano Sul-Saariano. A Tarefa Civilizadora. Temas, Figuras e Discusses (a Segunda Metade do Sculo XIX) ............................................. 212 Definir os Direitos e Lutar por Eles. Terra, Participao da Mulher, Igualdade Racial (o Primeiro Tero do Sculo XX) ................................................. 593 A poca Clssica: As Grandes Escolas e as Grandes Figuras (o Segundo Tero do Sculo XX) ............................................... 1014 Como Entender a frica Sul-Saariana e como Sair da Tragdia (o Terceiro Tero do Sculo XX) ................................................ 137

  • 6 Eduardo Devs-Valds

    5 Concluses Gerais e Projees ..................................................................................179Bibliografia ............................................................................................ 185

    Plulas Biogrficas ................................................................................ 197

    Anexos .................................................................................................. 209

  • 7Apresentao

    A experincia docente no curso de ps-graduao lato sensu em Histria da frica e do Negro no Brasil, desenvolvida pelo Centro de Estudos Afro-Asi-ticos (CEAA), da Universidade Candido Mendes, desde 1995, tem demonstra-do que materiais editados em portugus e disposio dos leitores brasileiros sobre a temtica so escassos. As publicaes do CEAA vm contribuindo para modificar esse quadro.

    O interesse por esses temas passou a se intensificar em todo o pas movido pela fora da Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003, assinada pelo presidente Lula. Se a dcada de 1990 marcou o aumento da procura individual dos estudos afri-canos, a presente dcada, ps-lei, marca o desabrochar no territrio nacional de ncleos, secretarias, departamentos, centros etc. dedicados s questes afri-canas e do negro no Brasil, vinculados a universidades, faculdades isoladas, r-gos governamentais e no-governamentais.

    Esta edio, em parceria com o Clacso e fruto da pesquisa do filsofo chi-leno Eduardo Devs-Valds, traz de forma clara, sinttica e inovadora o pen-samento africano subsaariano, comparando-o ao latino-americano e ao asiti-co, desde o final do sculo XIX at o tempo presente. Permite aos estudiosos, ou aos iniciantes no assunto, ter uma viso geral dos personagens e agentes que marcaram o que foi e o que o pensamento africano subsaariano, suas contra-dies, seus vcios e suas inovaes, bem como certificar as suas contribuies ao pensamento mundial.

    Centro de Estudos Afro-Asiticos

  • 9Introduo

    1

    O pensamento africano sul-saariano* aumentou significativamente nas l-timas dcadas e isso deve ser entendido em vrios sentidos: em decorrncia no s do crescimento da produo e sua diversificao, como tambm do au-mento explosivo da institucionalidade intelectual e da consolidao de agen-tes tnicos, genricos e disciplinatrios que geram pensamento. A noo de pensamento africano sul-saariano alude a uma realidade que tem crescido enormemente mais que a economia ou a populao da regio e talvez seja o pensamento que tenha tido os melhores ndices de crescimento do mundo no ltimo tero do sculo XX. Este esquema pretende ao menos insinuar essa tra-jetria e esse crescimento.

    Sobre o pensamento africano sul-saariano como conjunto, publicaram-se livros importantes que, recentemente, tm aumentado em nmero, de que so exem-plos o clssico de Robert July, The Origins of Modern African Thought (1968), o de Pieter Boele van Hensbroek, Political Discourses in African Thought: 1860 to the Present (1999), o de Barry Hallen, A Short History of African Philosophy (2002), e vrios outros trabalhos coletivos, como o de Emmanuel Eze, Pensamiento Africa-

    * Ao longo do texto, o autor preferiu usar os neologismos sul-saarianos, USA-americanos e afro-USA-americanos, em vez das expresses correspondentes em portugus subsaarianos, norte-americanos, americanos, ou mesmo a desusada estadunidenses, e afro-americanos. Segundo ele, esses neologismos [sugeridos pelo autor] procuram, por um lado, remover a conotao de inferio-ridade que ope norte-africanos a subsaarianos e, por outro, evitar a auto-atribuio de totalidade que leva os USA-americanos a se denominarem simplesmente americanos, introduzindo tantas confuses no texto. Por conseguinte, ser usada a expresso afro-USA-americanos para os des-cendentes de africanos dos Estados Unidos e afro-americanos para todo o continente.

  • 10 Eduardo Devs-Valds

    no. tica y Poltica (2001), e o de Tsenay Serequeberhan, African Philosophy. The Essential Readings (1991), para assinalar alguns dos mais importantes.

    Este trabalho no visa, como outros, focar regies especficas da frica Sul-Saariana, como a frica Ocidental anglfona (July, 2004; Boele van Hensbroek, 1999) ou a regio do Senegal (Manchuelle, 1995), ou as regies luso-falantes (Pereira, 2002; Bittencourt, 1999; Andrade, 1977), ou a sul-africana (Masile-la, 2005), mas sim o conjunto.

    2

    Sendo assim, por que escrever de novo sobre o pensamento sul-saariano? Ou o que pode acrescentar aos anteriores? Uma primeira resposta, claramente insuficiente, que muito pouco se encontra sobre isso em espanhol** e menos ainda em outros idiomas, salvo em ingls. Mais importante que isso que este breve esquema, sem pretender os nveis de erudio de alguns trabalhos exis-tentes nem seu detalhado aprofundamento na frica Ocidental anglfona (que ocupa normalmente dois teros dos trabalhos), aponta para quatro objetivos:

    alcanar uma esquematizao do pensamento africano sul-saariano desti- nada a pessoas que, a partir de mltiplas disciplinas e procedncias geocul-turais, se interessem pela produo intelectual da regio;cobrir um espectro notadamente mais vasto que o abarcado pelos tex- tos antes mencionados, concebendo o pensamento sul-saariano com suas necessrias ampliaes;mostrar alguns paralelos e conexes existentes entre o pensamento sul- saariano e o de outras regies do mundo, particularmente com outras expresses do pensamento perifrico; econtribuir para a constituio do pensamento sul-saariano, aportando conceitos, definindo escolas de pensamento, mostrando heranas e cone-xes e destacando focos de idias emergentes.

    necessrio aprofundar e explicitar mais o ponto nmero dois e essa ques-to das ampliaes, principalmente porque os estudos sobre o pensamento africano como conjunto conceberam uma frica Sul-Saariana demasiadamen-

    ** N. T.: Assim como em portugus.

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    te pequena, deixando de lado uma enorme quantidade de focos de produo. Este esquema se mantm em duas coordenadas que foram de outros trabalhos: a escrita e a produo em idiomas europeus ou derivados, mas procura cobrir amplamente o campo que recortam as ditas coordenadas.

    Em primeiro lugar, abrange mais amplamente o perodo de estudo, ocu-pando-se dos 150 anos compreendidos entre 1850 e 2000. Em segundo lugar, considerando a diferena entre africano e negro, inclui no espao intelectual sul-saariano a produo de intelectualidades negras, brancas e asiticas. Em terceiro lugar, d conta de uma produo que no gerada apenas na frica Ocidental anglfona, mas tambm em outros pases inicialmente, a regio sul-africana, apenas abordada em outras histrias do pensamento, os pases com intelectualidade francfona, alm do Senegal, e os pases com intelec-tualidade lusfona. Em quarto lugar, como continuao do anterior, procu-ra fazer justia a uma produo que no unicamente, ou quase unicamente, em ingls, mas tambm em francs, portugus e africner. Em quinto lugar, amplia as disciplinas, indo do ensaio e do pensamento poltico para discipli-nas como o pensamento pedaggico, historiogrfico, econmico, filosfico, teolgico, esttico. Em sexto lugar, abre-se a setores no-convencionais: ao pensamento feminino, buscando os focos de sua emergncia; ao pensamento da intelectualidade oriental, especialmente de procedncia indiana ou indo-descendente; produo de professores e pesquisadores estrangeiros, mas re-sidentes na frica por anos e inseridos no meio intelectual sul-saariano. Em stimo lugar, considera, mesmo que seja em uma pequena parte, aquilo que est sendo produzido nos espaos islmicos, nessa outra escola acadmica que guarda poucas relaes com a universitariamente reconhecida, mas que incide cada vez mais sobre a realidade da regio. Em oitavo lugar, ocupa-se das conexes com o pensamento no-africano, sem restringir-se s conexes mais conhecidas, como com o Caribe e os Estados Unidos.

    Em suma, trata-se de reconhecer, cartografar e expor um pensamento sul-saariano ainda, com certeza, de forma incompleta e esquemtica, mas muito mais ampla que a convencionalmente reconhecida em outros trabalhos, que pa-recem no suspeitar da imensa variedade de ecossistemas intelectuais existen-tes na grande regio sul-saariana.

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    Entendendo o pensamento sul-saariano como parte do pensamento perif-rico, trata-se de descobrir aqueles elementos motrizes que geram seu movi-mento, assim como de apreender os mais importantes motivos que se reite-ram dentro do citado pensamento, estabelecendo parentesco com os de outras intelectualidades que pensam perifericamente, buscando a, sim, as formas es-pecficas de como se modulam essas expresses da regio.

    Entende-se por pensamento perifrico o que produzido por uma parcela da intelectualidade que pensa em relao ao centro e que, grosso modo, se move na disjuntiva ser como o centro versus ser como ns mesmos. Uma intelectualida-de perifrica (impressionada com o que o centro, no sentido de admirada com o poder e com a beleza do centro, centro esse que desqualifica os outros como su-bumanos, decadentes ou brbaros) gera um tipo de pensamento completamen-te diferente do das intelectualidades dessas mesmas regies que no se tinham dado conta da presena do centro e pensavam suas culturas dentro de seus pr-prios termos ou cosmovises ancestrais. Essas cosmovises ancestrais sofrem um terremoto quando em contato com o centro, aparecendo por todas as partes uma nova intelectualidade que pensa estruturalmente em relao ao centro.

    Esse gnero de pensamento s compreensvel a partir de um tipo de sen-sibilidade cujo carter se aproxima do complexo de inferioridade, que se revela e se agrava tanto que seus dardos, muitas vezes mais agudos que os do centro, no chegam a este nem ao menos o ofendem, e o centro continua pensando a partir de si mesmo, dando-se conta minimamente dos insultos ou desqualifica-es que lhe dirige a periferia, pois seu sentimento de superioridade a melhor couraa. Ao contrrio, basta uma suave desqualificao proveniente do centro para que a intelectualidade perifrica sangre hemofilicamente.

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    Aqueles que estudam o pensamento produzido nos ltimos dois sculos nas regies perifricas formulam algumas perguntas similares: quais so as cone-xes com o centro? E, mais convencionalmente: quais so as escolas do centro que influenciaram a regio? Entre essas escolas, quais tiveram maior impacto? Como os latino-americanos tomaram conscincia de si mesmos (Zea, 1976), e

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    os africanos? Quais foram, na frica, os produtos eidticos gerados com maior originalidade ou maior valor agregado? (Zea, 1976; Boele van Hensbroek, 2002). Quais foram as idias dessa regio em relao ao impacto do centro? (Curtin, 1972; Spitzer, 1972; Herskovits, 1972). Como o pensamento des-sa regio respondeu aos desafios da realidade ou como conceituou ou conce-beu esses desafios? (Masilela, 2005). A pergunta sobre as conexes e os pa-ralelos entre o pensamento de uma regio perifrica e outra tem sido pouco freqente. Talvez, em parte pela intuio bsica de que os ditos contatos tm sido muito raros, em parte porque os especialistas so de uma das regies ou de um pas destas e desconhecem completamente o resto. Excepcionais so os trabalhos de Curtin (1972), Zea (1982), Grski (1994), M. Laffan (2005). Aqueles que se ocuparam do pensamento sul-saariano especificamente no se interessaram pelas conexes ou paralelos deste com o de outras regies perifricas, como Tempels (1949) e Hountondji (1973). O mesmo ocorreu com alguns orientados para o pensamento poltico, que se focaram apenas na frica Ocidental ao norte do equador, embora devam ser ressaltadas as co-nexes que fizeram com o mundo negro norte-americano e do Caribe (July, 1968; Boele van Hensbroek, 1999; Eze, 2001).

    Neste esquema, busca-se estudar o pensamento africano em si mesmo e como parte (ou expresso) do pensamento perifrico e, para tanto, estudar a maneira pela qual esse pensamento assumiu o que se pode chamar de sua con-dio perifrica. Em outras palavras, busca descobrir as maneiras pelas quais o pensamento da frica Sul-Saariana modulou os motivos perifricos, quer di-zer, aqueles tpicos recorrentes nessas regies, como, por exemplo, que os seres humanos da frica no so inferiores aos do centro, que as contribuies cul-turais dessas regies so de alto valor, que a frica possui um passado esplen-doroso, entre outros. Mas no somente isso, procura mostrar tambm aspectos do pensamento africano irredutveis ao de outras regies.

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    Reconhecer o corpo, o territrio ou o patrimnio do pensamento sul-saa-riano em toda sua amplitude no pode, porm, ser realizado completamente, ainda que se faa como esses cartgrafos chineses que, como imagina Borges, chegaram, no seu af de exatido, a fazer um mapa em escala real to absolu-

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    tamente perfeito como absolutamente absurdo e intil, exceto na medida em que situa a regio em relao s demais. Em outras palavras, to importante como ampliar o estudo do interior ampliar o estudo das conexes com o exte-rior: seus paralelos, relaes e parentescos. Essa dimenso foi tradicionalmente abordada em seus aspectos mais importantes, as relaes do pensamento afri-cano com o pensamento negro americano, tanto caribenho como norte-ame-ricano, mas deixando inmeras relaes quase sem tratamento. E deve-se en-tender que relaes so no s de fora para dentro da regio, como tambm o inverso, da mesma forma que se deve entender que tais relaes no se do so-mente mediando contatos pessoais, mas tambm que existem paralelos, seme-lhanas ou parentescos em que houve poucas ou nenhuma relaes pessoais.

    Como latino-americano, interessou-me, de modo particular, a descoberta de conexes possveis entre o pensamento da minha regio e a sul-saariana, mas, sem dvida, existem possibilidades to grandes ou maiores com o pensamen-to rabe ou islmico, com o indiano e, mais alm, com o asitico em geral, assim como com expresses do pensamento ibrico e eslavo, que compartilharam em certas pocas o carter perifrico.

    So de relevncia particular as relaes entre as cincias econmico-so-ciais, assim como a teologia latino-americana e suas homlogas sul-saarianas; no pensamento poltico socialista, existem muitos paralelos com o produzido no mundo rabe da mesma poca e o eslavo do sculo XIX; no pensamento independentista, as conexes com o pensamento indiano so mltiplas, para dar alguns exemplos. As conexes diretas no so menores, especialmente na medida em que se concebe a frica mais amplamente, ao mesmo tempo que se ampliam e se solidificam as redes intelectuais. Nas cincias econmi-co-sociais da Amrica Latina e da frica, no existem apenas semelhanas, existem contatos e influncias, e algo parecido pode se afirmar da teologia. O pensamento independentista africano recebeu contribuies do pensamento indiano no apenas pela presena de Mahatma Gandhi na frica do Sul, mas tambm pela troca de informao e pela existncia de numerosas comunida-des asiticas na regio sul-saariana.

    Redes teosficas, comunistas, pan-africanistas, de cientistas sociais, de es-tudiosos do desenvolvimento, de telogos, de feministas, ligadas ao estudo e ao

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    aprofundamento da democracia, entre tantas outras, se conectaram o pensa-mento que se produz na frica com o que se produz fora, sendo chave para entender esse assunto as noes de circulao de idias e de redes intelec-tuais. Essas noes permitem entender melhor os numerosos cruzamentos eidticos que se deram nos ecossistemas intelectuais africanos. Da que uma ampliao decisiva na cartografia entender a regio sul-saariana nas suas relaes com o resto do mundo.

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    Elaborar o esquema de um pensamento supe tambm alguns desafios de or-dem terica. Nesse caso, trs foram muito importantes: tematizar as foras mo-trizes, formular os motivos mais importantes e avanar na elaborao de conceitos que permitam denominar cada espcie dentro da ampla diversidade eidtica.

    Tematizar as foras motrizes significa descobrir e formular conceitualmente aquelas intenes ou objetivos ou desgnios ou tpicos que fazem o pensamento afri-cano se movimentar e que permitem entender o sentido do seu movimento.

    Os motivos so aqueles elementos recorrentes que se vo modulando com matizes em lugares ou pocas por pessoas diferentes e que se fazem reconhec-veis como reiteradas preocupaes no espao sul-saariano, j que compartilha-das com outros pensamentos, especialmente os vindos de outras intelectuali-dades que pensam perifericamente.

    A elaborao de conceitos para designar as diferentes espcies eidticas se depara com o tema nico de alguns estudiosos que associaram pensamento africano com nacionalismo, mostrando uma falta de imaginao e um des-conhecimento da variedade semntica que existe para denominar as escolas de pensamento. A exploso do pensamento africano das ltimas dcadas faz com que seja cada vez mais interessante para o eidlogo reconhecer, nomear e classificar uma variedade de manifestaes que se vo proliferando no apenas no seio da filosofia e da teologia, mas tambm por toda a parte. Isso se torna mais interessante na medida em que, aumentando a longevidade intelectual, h pessoas que durante sua existncia produziram vrias espcies eidticas, numa proliferao parecida com a de Schelling, que ao longo de sua vida, diz-se, deu vida a cinco sistemas completamente diferentes. A chave assumir e nomear essa eidodiversidade.

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    Vale tudo o que foi dito, por outro lado, como o anncio de um trabalho posterior que deve incluir a regio sul-saariana e a frica dentro da compreen-so do pensamento das intelectualidades perifricas.

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    Por que se ocupar do pensamento africano quando no se africano, mas sim latino-americano?

    Diante dessa pergunta que inmeras pessoas me fizeram, quero propor al-gumas respostas que acredito contribuam para dar sentido a este trabalho para a academia latino-americana.

    A primeira resposta se refere necessidade de ampliar o campo temtico em comunidades intelectuais como as nossas, muito provincianas e com grandes deficincias na hora de colocar em perspectiva seus casos de estudo e, mais ge-nericamente, seus Estados ou suas economias.

    A segunda tem a ver com a criao de uma comunidade de africanistas na Amrica Latina. Existem muitas pessoas que tratam da presena do africano na Amrica Latina, tal como nas religies, nos costumes, nas etnias, nas mi-graes, na escravido e inclusive na msica, dana, gastronomia, mas existem pouqussimas pessoas que conhecem a frica propriamente dita.

    A terceira, que a mais relevante para mim, embora se articule s ante-riores, se refere s projees do pensamento latino-americano e compreen-so da nossa produo intelectual alm de nossas fronteiras e alm das previs-veis conexes com uma pequena parte da Europa Ocidental. O descobrimento da existncia, na frica, de escolas de pensamento derivadas de escolas latino-americanas, assim como da existncia de paralelos e contatos, parece-me ofere-cer grandes potencialidades aos estudos sobre o pensamento latino-americano. As relaes com o pensamento asitico tambm no so menores nem menos significativas para ns.

    A quarta est em que me pareceu ser possvel julgar melhor o pensamento latino-americano olhando-o a partir do ou em comparao com o sul-saariano. Esse ponto de vista permite revelar melhor tanto acertos como erros e desafios. Creio que uma perspectiva extremamente interessante para observar o que se tem produzido na Amrica.

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    A quinta porque permite descobrir e ou elaborar pontos de encontro ou pontos para o dilogo. Colocar frente a frente os pensamentos latino-ameri-cano e sul-saariano d ensejo a trabalhar sobre questes, temas, preocupaes, tpicos, motivos que deveriam fecundar, separadamente, ambos os pensamen-tos e, mais ainda, o pensamento das regies perifricas e da humanidade. Sen-do assim, para configurar pontos de encontro, melhor fazer uma histria do pensamento sul-saariano com um critrio mais amplo que o que h dado forma a outras, como o crescimento e a constituio do pan-africanismo, que culmi-nava nas independncias. Essa tica est impedindo que se enxergue o pensa-mento de Olive Schreiner, Jos F. Pereira, Jacobus Du Toit e Mohandas Gan-dhi, como tambm o de Samir Amin, Colin Leys e Justinian Rweyemamu ou o de Hasan al Turabi, Adelaide Smith de C. H., Paul Kruger e Gustav Preller. Uns por serem brancos; outros, mulheres, asio-descendentes, islmicos, no-nativos; outros ainda por serem muito maus; e todos por no serem naciona-listas pan-africanos. Mas o espao intelectual na frica Sul-Saariana maior que a constituio do pan-africanismo e do nacionalismo (insisto nas aspas). A eidologia no se ocupa dos bons, mas sim das idias geradas por bons, maus e medianos, que so a maioria.

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    Em resumo, este esquema pretende apresentar as principais figuras do pen-samento africano sul-saariano, deixando elas se expressarem com suas prprias palavras e no marco dos ambientes intelectuais no qual se desenvolvem.

    Levando em considerao o perodo entre 1850 e 2000, so abordadas ques-tes polticas como, por exemplo, a construo nacional; econmicas, como o de-senvolvimento e a dependncia; sociais, como as tnicas, as tribais e de gnero; culturais, como a educao, a criao de um saber africano e a disputa pela hege-monia da compreenso da frica; e internacionais, como o colonialismo, o neo-colonialismo, a globalizao etc., ainda que apresentando cada um desses ele-mentos em poucas linhas.

    A redao apresentada de duas formas: uma no texto sobre o pensamento africano propriamente dito, outra em notas sobre as conexes. Foi decidido se-parar esses dois tipos de discurso porque as notas possuem um carter menos

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    exaustivo, a partir de comentrios eruditos que complementam e do sentido, mas sem pretenso de perfeio.

    As relaes entre o pensamento das diversas regies so apresentadas com base em trs critrios:

    As presenas, leituras, influncias e reelaboraes das idias de um lu- gar para outro.Os contatos entre as intelectualidades de um lugar e outro. A deteco dos motivos perifricos, que so os objetivos tericos que os intelectuais perifricos de diversas partes do mundo plantaram, fruto de padres que se repetem.

    Resumindo, este esquema no pretende ser uma breve apresentao do pro-gresso libertador do pensamento africano, mas, e esta uma hiptese forte do trabalho, de um processo de constituio, que quer dizer crescimento, solidifi-cao, carter, auto-reconhecimento e diversificao. Procurei fazer um esque-ma do processo de constituio do pensamento sul-saariano e tendo este como exemplo, ou uma figura, do pensamento perifrico.

    * * *

    Este livro produto do projeto aprovado por FONDECYT-Chile, 1030018. Gostaria de fazer um agradecimento a pessoas e instituies acadmicas que colaboraram e ou facilitaram esta investigao. A Cesar Ross, co-investiga-dor neste projeto; s minhas assistentes de investigao, Carolina Ortiz, Caro-la Agliati e Alejandra Castillo. Ao pessoal da Biblioteca Nacional de Chile e da biblioteca de la Comisin Econmica para Amrica Latina, em Santiago; ao professor Amadou Ndoye e Universidade Cheikh Anta Diop, doutora So-hkna Gueye e ao pessoal da biblioteca Codesria e do Idep, em Dacar; ao profes-sor Bertrand Hirsch e ao pessoal da biblioteca do Centre de Recherches Afri-caines, Malher, da Universidade de Paris I; aos professores Marta Casaus A., Teresa Garca G. e Pedro Martnez Lillo e ao pessoal da biblioteca da Univer-sidad Autnoma de Madrid; ao professor Juan Manuel Santana e biblioteca da Universidade de las Palmas de la Gran Canaria; professora Eni de Mes-quita e s vrias bibliotecas da Universidade de So Paulo; professora Eloi-sa Capovilla e biblioteca da Unisinos, de So Leopoldo (RS); professora Claudia Wasserman e biblioteca da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; ao professor Beluce Bellucci e ao pessoal da biblioteca do Centro de

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    Estudos Afro-Asiticos, da Universidade Candido Mendes, do Rio de Janei-ro; ao professor Mario Gmez Olivares e seo frica da biblioteca do Ins-tituto Superior de Cincias do Trabalho e da Empresa, de Lisboa; ao pro-fessor Jorge Rodrguez Beruff, aos que trabalham no projeto Umbral, em especial ao professor Manuel Reyes, assim como a Elisa Medina, Noraima Negrn e Eduardo Valsega, e ao pessoal da Biblioteca Jos Lzaro da Uni-versidade de Puerto Rico em Ro Piedras, particularmente a Sylvia Sol e a Manuel Martnez; ao pessoal da Library of Congress de Washington D.C. E, claro, Universidade de Santiago de Chile e particularmente ao diretor do Instituto de Estudios Avanzados (Idea), dr. Cristin Parker, por todas as fa-cilidades, assim como dra. Carmen Norambuena, que, enquanto foi direto-ra do instituto, atuou com igual gentileza.

    Alguns esclarecimentos prticos:

    Todos os textos citados que aparecem na bibliografia em outros idiomas foram traduzidos pelo autor.***Deve-se lembrar que tanto os autores anglfonos quanto lusfonos apre- sentam o sobrenome paterno em segundo lugar, por isso, se no texto est Jos Fontes Pereira, na bibliografia est como PEREIRA, Jos F..Tambm se deve levar em conta que as pessoas do Extremo Oriente or- denam seu nome a partir do sobrenome, sendo assim Sun Yat-sen vir citado como SUN, Yat-sen.Os nomes de autores rabes ou de outras regies do mundo cujas escritas so geralmente fonetizadas segundo a lngua dos que os estudam foram fonetizados em espanhol, evitando letras desnecessrias. Assim, est es-crito Abduh e no Abdouh, como fazem os francfonos. Quando foi o prprio autor quem escreveu seu nome utilizando a grafia latina, foi se-guida essa escrita, embora existam ali verses, pois livros de autores con-temporneos publicados em francs ou em espanhol vm com o nome reproduzido de modo diferente.Como se observar, existem 18 cartografias cujo objetivo apresentar em uma supersntese as influncias intelectuais ou as conexes entre pes-

    *** N.T.: Nesta edio, os ttulos traduzidos para o espanhol pelo autor foram retraduzidos para o portugus.

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    soas que se articularam em redes. Quem desejar maior conhecimento desse mtodo ou da informao pode acessar www.umbral.uprrp.edu e ali clicar em Atlas del Pensamiento.Com certeza, verses anteriores de vrias partes deste volume foram pu- blicadas antes como artigos. Dentro do sistema FONDECYT-Chile, no pode ser de outra maneira. A publicao de resultados parciais das investigaes uma condio.Em anexo, encontra-se uma lista de plulas biogrficas, como lembrete para facilitar a leitura.Por ltimo, uma sugesto para aqueles que quiserem aprofundar, em es- panhol, os assuntos relativos s idias do mundo perifrico, sobre o qual existe pouqussima bibliografia nesse idioma. Esss pessoas podem aces-sar www.encuentrointelectuallatinoamericano.org ou ainda www.inter-nacionaldelconocimiento.org.

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    1 O Incio do Pensamento Africano Sul-Saariano. A Tarefa Civilizadora. Temas, Figuras e Discusses (a Segunda Metade do Sculo XIX)Intelectuais Perifricos

    Durante a segunda metade do sculo XIX, surge na frica Sul-Saariana a intelectualidade que vai dar origem ao pensamento africano, no sentido literal da palavra. Trata-se de uma intelectualidade que assume a disjuntiva perifri-ca: ser como os do centro ou ser eles mesmos. Essa intelectualidade se expres-sa em idiomas ocidentais, herdeira de algumas trajetrias culturais e de pen-samentos diferentes das dos povos originrios, admite ao menos parcialmente a existncia do sistema mundo, pensa em termos de frica e no apenas de comunidades ancestrais e insere-se em uma institucionalidade e em formas de comunicao modernas. Ou seja, vai se constituindo como intelectualidade profissional e como intelectualidade perifrica. no marco da disjuntiva peri-frica que elabora uma reflexo sobre a civilizao, a defesa da raa e da cultu-ra, a explorao, a imigrao, a educao e muitos outros temas.

    Essa intelectualidade e esse pensamento so gerados principalmente na cos-ta ocidental do continente, na faixa onde se localizam Saint-Louis, Freetown, Monrvia, Acra e Lagos. Trata-se de uma faixa com certa densidade de popu-lao eurofalante, com maiores possibilidades de comunicao e transporte, com cidades e assentamentos bem prximos, com maior freqncia de viajan-

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    tes e migrantes: retornados, missionrios, burocratas, comerciantes, militares. Existem outros focos, ainda que menores, apenas incipientes nessa poca: a re-gio sul-africana e a circulao entre Angola, Cabo Verde e Portugal.

    Figuras como Pierre-David Boilat, Samuel Crowther, James Johnson, James Africanus Horton, Edward Wilmot Blyden, que foi o maior pensador africano por muitas dcadas, Alexander Crummell e outras da frica Ocidental; Oli-ve Schreiner, Tiyo Soga, Walter Rubusana, John T. Jabavu, Stephanus Jaco-bus Du Toit, da frica do Sul; Jos F. Pereira, Paulo A. Braga, entre outros, em Angola, constituem um tipo de produo intelectual na frica que em sua estrutura muito similar ao que est sendo produzido na Amrica Latina, na sia Oriental, no Imprio Otomano, no mundo eslavo e no ibrico. Em todos esses lugares, a intelectualidade, interpelada pelo centro, est se perguntando o que fazer e como responder a uma espcie de dilema hamletiano: ser ou no ser como os do centro, ser ou no ser ns mesmos. Com certeza, essa discus-so se faz no marco da recepo de idias e formas da existncia do centro.

    Essa disjuntiva, que a essncia do pensamento perifrico, se modulou atra-vs das circunstncias de forma diferente, recorrendo paralelamente a um con-junto de motivos que se reiteram, uma e outra vez, inclusive sem conexes en-tre os autores.

    A Criao das Primeiras Redes de Intelectuais Eurofalantes

    No se pode falar, durante a segunda metade do sculo XIX (e qui at 1960), de redes intelectuais continentais. Houve redes em subespaos, sendo sem dvida a anglfona oeste-africana a mais importante. Esta se constituiu por volta de 1860, entre os participantes do Fourah Bay College, os clrigos da Church Missionary Society (CMS), os professores do Liberia College, os editores de alguns jornais e outros. As outras so menores. O segundo espa-o de produo, menos fecundo durante o sculo XIX e mais tardio, se orga-niza por volta de 1880 na frica do Sul. Ali tomou forma uma elite crist no seio das comunidades nativas (especialmente zulu e shosa), mantendo uma re-lao mais fluida com estas que com as da regio da frica Ocidental. Por volta de 1880, fundada a Associao de Aborgines Sul-Africanos, um grupamen-to de shosas, a Associao Eleitoral Nativa e a Associao para a Educao dos Nativos. Aparecem tambm alguns jornais, expresses desse mesmo grupo.

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    David Chanaiwa descreveu os autores que emergem desse contexto (entre ou-tros, Tiyo Soga, Walter Rubusana, John T. Jabavu) como intelectuais cristos instrudos nas escolas missionrias e tributrios dos jornais missionrios. Gros-so modo, viam o colonialismo como um feito, admiravam o homem branco por seu poder, sua riqueza e sua tecnologia e acreditavam na suposta inferiorida-de da raa negra. Imaginavam a sua tarefa como uma elevao dos africanos cristandade civilizada e opunham-se poligamia, ao paganismo, superstio e bruxaria (Chanaiwa, 1980, p. 35-6). Essa intelectualidade negra coexistiu e, em algumas ocasies, se articulou com uma intelectualidade branca tambm incipiente, ligada da mesma forma s Igrejas, mas simultaneamente com os in-cipientes aparatos burocrticos coloniais ou dos proto-Estados-nao (Cabo, Natal, Orange, Transvaal) e, certamente, com melhores situaes econmicas e educativas. Os sul-africanos tm alguma conexo antes de 1900 com os afri-canos ocidentais, graas ao idioma ingls e ponte estabelecida pelas igrejas. A rede lusfona, por sua vez, funciona principalmente entre Angola e Portugal, ainda que existissem algumas conexes com Cabo Verde e Moambique. Em Angola, nas trs ltimas dcadas do sculo, surgem uns 30 jornais (Salvado-rini, 1989, p. 117-8) e so organizadas vrias associaes, como a Unio Luso-Africana e a Filarmnica Africana. A rede francfona funciona entre o Sene-gal e a Frana: um tanto em Bordeaux, um tanto em Paris.

    Essas quatro redes tm pouqussimas relaes entre si: os autores no se co-nhecem, no se visitam, no se lem nem se citam, ainda que estejam pensando coisas similares. As poucas conexes so dadas por alguns eclesisticos, como o norte-americano Henry Turner. Essas redes estabelecem mais contato com as metrpoles do que com as outras regies da frica. As anglfonas, alm dis-so, mantm relao com os Estados Unidos e um pouco com o Caribe.1 Se exis-te escasso contato entre sul-saarianos, menos ainda existe destes com os norte-africanos, asiticos ou latino-americanos.2

    A Civilizao como Tarefa da Intelectualidade

    A segunda metade do sculo XIX marcada pela idia de civilizao na re-lao intelectual do centro com a periferia. Em um artigo anunciando a expe-dio de Henry Stanley em 1874, o Daily Telegraph, de Londres, dizia:

    [A expedio] tem como objetivo completar a obra que ficou sem terminar em conseq-ncia da lamentvel morte do Doutor D. Livingstone e resolver, dentro do possvel, os de-

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    mais problemas geogrficos da frica Central, assim como desmascarar os traficantes de escravos. O senhor Stanley representar as duas naes, cujo interesse comum na recu-perao da frica se mostrou to brilhantemente quando o coitado explorador ingls foi resgatado, graas energia do correspondente norte-americano. Em to memorvel em-preendimento, Stanley desenvolveu as mais brilhantes qualidades de viajante africano; de se esperar que a planejada expedio obtenha importantes resultados, que sero rever-tidos em benefcio da cincia, da humanidade e da civilizao. (Reproduzido em Stan-ley, s/d, p. 12.)

    Explorao, geografia, cincia, recuperao e civilizao so alguns dos te-mas recorrentes que os africanos vo discutir, com certeza, em relao a mui-tos outros. Nessas discusses sero exibidas e combatidas (simultaneamente) as construes ideolgicas provenientes do centro.

    O principal tema, ou o mais compartilhado pelos pensadores africanos da segunda metade do sculo XIX, o da civilizao. Sem dvida, existem ma-tizes, mas h um grande consenso entre os autores de que a civilizao vem de fora da frica Sul-Saariana, em especial do mundo cristo, em certos ca-sos do mundo islmico, e isso mesmo que alguns valorizem a trajetria cultu-ral da frica.3

    Desde 1850, os trabalhos de Samuel Crowther e Pierre-David Boilat enfa-tizam a civilizao. Samuel Johnson, James Africanus Horton ou Edward Bly-den vo insistir nisso. Existe consenso nesse ponto, certamente com numerosos matizes, entre os africanos, afro-americanos, europeus e USA-americanos que pensam sobre isso. A associao entre civilizao e religio muito comum de-vido ao fato de que muitos dos maiores pensadores so eclesisticos, diferena de outros lugares onde, nessa poca, a civilizao j era identificada com cincia e tecnologia. Alguns autores associam tambm civilizao com formas polti-cas participativas, mas isso muito secundrio em relao dimenso religio-sa, que com certeza envolve questes que tm a ver com o humanitarismo e cos-tumes em geral. Apenas se associa civilizao com cincia e tecnologia quando se pensa sobre o assunto do saneamento e da sade.

    O tema civilizao faz com que alguns africanos falem como ocidentais e inclusive como britnicos, fazendo-se parte do cristianismo e at da necessida-de de expandi-lo na frica. Falam como participantes do centro e para um p-blico do centro, no tendo como destinatrios os prprios africanos. o caso, por exemplo, de Crowther e de Horton. No o caso de outros como Boilat e Blyden, cujo destinatrio o leitor africano ou na frica.

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    O tema da civilizao deriva para outros temas, sendo uma espcie de preo-cupao-matriz que permite aproximar das concepes que se tem do centro e das relaes que se pretende estabelecer com este, ao mesmo tempo, a con-cepo da cultura dos povos aborgines e das exploraes e, sem dvida, ques-tes como a educao e a poltica de colonizao. Tambm, o tema da civiliza-o permite ver como se vo perfilando posies antagnicas. A mesma noo de civilizao vai se modificando, desagregando, perdendo a presena nica que tinha nesse cenrio, como religio crist e costumes do cristianismo oci-dental vitoriano.

    O reverendo Samuel Crowther, um recativado da regio ioruba e educado no Fourah Bay College, participou de duas expedies, que produziram dois informes ou dirios de viagem, em 1841 e 1855. Eram expedies organizadas pelas autoridades britnicas com o objetivo de conhecer a geografia, os recur-sos e os povos da frica Ocidental, particularmente da atual Nigria. Como eclesistico, sua preocupao era propiciar a evangelizao. A partir dessa pers-pectiva, avaliou a realidade que se ia explorando, bem como a prpria ativida-de e inclusive a si mesmo. Foi um dos primeiros africanos de uma longa lista na qual so includos tambm diversos afro-americanos que viram a si pr-prios como providencialmente destinados a converter e salvar o continente do paganismo. O providencialismo de Crowther se manifestou freqentemente, mas importante assinalar que, segundo se pensava, os africanos que tinham sido educados pelo cristianismo eram privilegiados instrumentos de Deus, que os teria abenoado com tais instrumentos para comear o trabalho de evan-gelizao. Isso permitiria que alguns homens inteligentes que tinham profun-do interesse na introduo do comrcio e do cristianismo no Nger pudessem continu-la (Crowther, 1970, p. XVI). Essa idia de se conceberem como cris-tos, como outros em relao aos povos africanos, marca primeiramente essa intelectualidade africana, cuja alteridade se manifesta igualmente no uso de idiomas ocidentais. Disse-se de Crowther que estava acomodado civilizao europia e que no via nada de conflitante entre a penetrao desta e os interes-ses dos nigerianos, mas sim que esperava que o pas obtivesse vantagens cultu-rais, sociais e, sobretudo, religiosas (Ayandele, 1967, p. 206).

    De sua parte, Pierre-David Boilat, crole de Saint-Louis e clrigo catli-co, publicou em 1853 seus Esboos Senegaleses, em que narrou experincias de suas tarefas missionrias, refletiu sobre a regio e props alternativas. Com-

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    parou a situao da frica com a do povo de Israel cativo na Babilnia. Com certeza, queria cristianizar-civilizar a terra africana, () to brbara e to selvagem. Boilat escrevia para dar a conhecer e melhorar a frica ou de cer-ta maneira devolver-lhe parte do seu esplendor perdido: Esta parte mais des-conhecida do mundo, e at hoje to desamparada, teve seu tempo de glria e prosperidade (Boilat, 1984, p. 231). A decadncia do continente, acreditava, se devia ao islamismo. Sua idia cristianizadora se assemelhava a uma pro-posta para a colonizao com descendentes africanos, cristos e agricultores, que seriam trazidos do Caribe. Diferentemente de Crowther, seus destinat-rios eram os prprios africanos.

    Samuel Johnson, em sua Histria dos Iorubas, relacionou tambm cristiani-zao a civilizao. A luz chegou ao pas dos iorubas, vinda do Sul, quando ali nada havia alm de sombras, superstio, derramamento de sangue e caa aos escravos. Lembra uma profecia existente entre o povo ioruba, segundo a qual, assim como a desolao se expandia do interior at a costa, a luz e a restaura-o chegariam a partir da costa para acabar com as guerras do interior. Pensa-va que a chegada do missionrio H. Townsend podia ser interpretada como o cumprimento da profecia (ver Herskovits, 1972, p. 87).

    Alexander Crummell, americano dos Estados Unidos que residiu por 20 anos na Libria, como outros clrigos, se referiu aos povos aborgines como se-res depravados que deviam ser civilizados. Pensava, contudo, que os imigrantes americanos da Libria no deviam atuar como os colonizadores brancos nos Estados Unidos ou na Nova Zelndia, onde os povos originrios haviam sido dizimados. A tarefa na Libria no podia ser essa. Segundo Crummell, no na-tivo no se v nada de louco, repulsivo ou indmito; pelo contrrio, curio-so, gil, astuto; vendo a superioridade dos liberianos cristos, a reconhece, co-piando seus hbitos; portanto, o que se devia fazer ser guardies, protetores e professores das tribos pags, e isso deve (ou pode) ser feito pela fora, pois toda a histria mostra que a fora deve ser usada no exerccio da tutela das tri-bos pags. Nesse caso, as teorias sobre democracia so triviais (citado por Jaff e, 1988, p. 115).

    Em alguns, a noo de evangelizao se transforma ou equivale a regene-rao. Evangelizar civilizar, evangelizar regenerar, regenerar civilizar formas mais ou menos religiosas ou laicas de formular um projeto de troca de costumes e de moralizao. Os missionrios so quem mais insistem nesse dis-

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    curso. Concebem sua tarefa como o desgnio providencial de evangelizar, redi-mir e regenerar.4 Alguns dos afro-USA-americanos so enfticos nessa misso, que associam com a escravido, em que foram levados fora da frica para co-nhecer a revelao, que agora deveriam trazer para seus povos. De certa forma, tiveram o privilgio do sofrimento, que permitiria a eles ser salvadores. Existe um paralelo com a vida de Cristo. A. Crummell e E. W. Blyden, entre outros, compartilhavam aspectos dessa argumentao.

    O Isl e a frica Sul-Saariana

    Em torno do tema da civilizao, com freqncia surgiu o problema do Isl. Vrios autores se referiram a essa questo. Para o abade Boilat e Paul Holle, afirma Wole Soyinka, a lngua rabe e a cultura islmica deviam ser estuda-das preferivelmente nas instituies superiores da Frana, onde no puderam influenciar perniciosamente os impressionveis africanos. Na Nigria, o bispo Crowther ia mais longe e queria que fossem estudadas e ensinadas (Soyinka, 1987, p. 58). Mas Boilat assinala que a decadncia da frica se devia ao isla-mismo, que havia levado os africanos servido e corrupo. Ainda que elo-gie, por outro lado, o ascetismo e a abnegao dos marabutos, Boilat coloca a questo do islamismo como a causa da decadncia da frica em relao edu-cao dos jovens. Esta deveria relacionar-se com a trajetria dos sbios da anti-gidade, como foram os padres da Igreja, cuja herana foi inibida pelo Isl, que continuaria inibindo a civilizao na frica, sendo exemplo disso a educao feita pelos marabutos, que consistia unicamente em ensinar os jovens a repetir o Alcoro e a induzi-los a mendigar (e, logo, aos vcios), pois, quando maiores, passariam a ser incapazes de exercer os ofcios das sociedades civilizadas (Boi-lat, 1984, p. 207-8). O mdico James Africanus Horton, preocupado tambm com a civilizao da frica, em 1868 discute com aqueles a quem caracteriza como a escola atual de antroplogos. Alguns membros dessa escola postula-vam que, para os africanos, a crena no Falso Profeta (Maom) substancial-mente melhor que a crena em Cristo (Horton, 1969, p. IV). Horton no pen-sava assim, pelo contrrio; para ele, no seria maometizando os habitantes da frica Ocidental que [eles seriam] civilizados, pois nenhuma civilizao [po-deria] criar razes e frutificar se no [fosse] baseada nos princpios da religio crist (idem, 1969, p. VII).

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    Uma viso diferente e muito mais elaborada a que apresenta Edward W. Blyden em seu trabalho O Maometanismo e a Raa Negra, de 1875, repro-duzido em seu livro Cristianity, Islam and the Negro Race. Sustentava que, nas regies que assumiram o islamismo, viam-se uma mudana e um progresso enormes (Blyden, 1887, p. 7). O Alcoro era um educador importante e exer-cia nas pessoas primitivas uma influncia maravilhosa (idem, 1887, p. 8). Essa mudana no ocorria somente nos costumes privados ou religiosos: No exis-tem comunidades crists de negros em nenhuma parte que sejam auto-susten-tveis (selfreliant) e independentes. Acreditava que o Haiti e a Libria apenas lutavam por sua existncia e que, por outro lado, existiam numerosas comuni-dades islmicas negras e Estados na frica que () [eram] auto-sustentveis, produtivos, independentes e dominantes, existindo, sim, o patronato da Ar-bia (idem, 1887, p. 12). Essa superioridade se devia ao fato de o islamismo ter chegado como opo livremente assumida por pessoas livres, que alm do mais modificaram amplamente o carter oriental do Isl, enquanto o cristianismo fora inculcado nos escravos em terra estrangeira, agregando-se lies que indi-cavam que o negro era inferior e estava subordinado a seus instrutores, sen-do ento a religio de Jesus abraada como a nica fonte de consolo (idem, 1887, p. 13-4). Outra razo para o maior amor prprio dos negros islmicos o fato de eles no terem sido educados sob influncia deprimente da arte aria-na (idem, 1887, p. 16). A terceira razo que a literatura popular do mundo cristo, desde o descobrimento da Amrica, ou ao menos nos ltimos scu-los, foi antinegro, e isso retardou o desenvolvimento do negro cristo (idem, 1887, p. 18). O trabalho do Isl na frica seria preliminar e preparatrio, con-clui. Os africanos maometanos seriam tolerantes e acessveis, ansiosos por luz e progresso. Estavam desejosos de ter escolas crists em suas cidades, de que as Escrituras crists circulassem entre eles e de compartilhar com os cristos o trabalho que reclamavam os pagos (idem, 1887, p. 28).

    Explorao, Colonizao e Poltica Migratria

    Decerto, o problema da civilizao da frica tem a ver com sua explorao e sua colonizao. A explorao foi principalmente questo de europeus, mas, alm destes, foi tambm assumida por cristos africanos e afro-americanos. As igrejas negras norte-americanas reformadas se empenharam muito nessa tare-

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    fa, produzindo fundamentaes tericas. Em todo caso, os argumentos gera-dos na frica so herdeiros, em grande parte, daqueles produzidos nos Esta-dos Unidos desde o final do sculo XVIII. O tema da colonizao inseparvel do das migraes ou , inclusive, outra maneira de abord-lo. Como em dife-rentes partes do mundo, durante a segunda metade do sculo XIX discutiu-se sobre o movimento das populaes com fins laborais e outros. A discusso so-bre as massas migrantes se relacionou, mas no foi idntica, busca de migran-tes qualificados, como cientistas, docentes, missionrios ou outros.5

    Boilat intercedeu pelo estabelecimento, no Senegal, de colonos negros pro-venientes das Antilhas. Estes contribuiriam para a economia porque seriam elementos cristianizadores. Boilat, considerando que a economia de trfico, e sobretudo a livre concorrncia, arruinou a colnia (Blayden, 1987, p. 471-3), props o povoamento com antilhanos libertados, uma vez que eles j possu-am as luzes da civilizao: eram cristos, medianamente conhecedores do idio-ma francs, agricultores ou artesos e aspirantes a proprietrios. Eles pode-riam tirar o Senegal da situao de ento, a mais desgraada desde sempre (idem, 1987, p. 474-5). As autoridades deveriam outorgar-lhes as facilidades e os meios para iniciar seu estabelecimento (idem, 1987, p. 477). Algo parecido defendia outro crole, Paul Holle, que, em companhia de Frdric Carrre, pu-blicou Sobre a Senegmbia Francesa, em 1855. Nele, propunha recrutar em ge-ral trabalhadores submetidos a uma servido temporal, que seriam enviados s Antilhas para trabalhar por dez anos, ao fim dos quais retornariam ao Sene-gal. Eles formariam a base de uma comunidade de agricultores cristos. Junta-mente com isso, deveria ser realizada uma promoo da navegao fluvial para fomentar a economia (citado em Manchuelle, 1995, p. 340-1).

    Uma fundamentao muito diferente se encontra na posio de Joseph Ren-ner-Maxwell. Em seu livro, A Questo Negra ou Sugestes para o Progresso Fsi-co da Raa Negra, de 1892, propunha a miscigenao racial e cultural. Acredita-va que os negros no eram apreciados pelos brancos, que os consideravam feios. Leo Sptizer cita textos nos quais, em termos darwinistas, Renner-Maxwell ar-gumentava que o negro perdia na luta pela sobrevivncia e que, sem dvida, po-dia melhorar a condio de seu progenitor mediante o casamento com mulheres brancas. Ressaltava que na Inglaterra havia milhares de prostitutas e de mulhe-res pobres que contribuiriam para o progresso da civilizao se se casassem com negros civilizados (Renner-Maxwell, 1892, p. 65, 83-5).

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    O tema sobre o qual mais se discutiu foi o da migrao de ex-escravos vin-dos dos Estados Unidos. Ele foi abordado por ambos os lados do Atlntico, al-gumas vezes com diferentes critrios e semelhantes em outras. O Estado da Libria foi criado como produto de tal desgnio, ainda que ex-escravos proce-dentes da Amrica do Sul, do Norte e do Caribe tenham chegado igualmente a outros lugares da frica durante o sculo XIX. Edward W. Blyden, por volta de 1880, questionava os fundamentos europeizadores ou estrangeiradores de uma poltica migratria e colonizadora na Libria, que pretendia levar os mo-dos de vida europeus cada vez mais s regies do interior. Fez objeo ao que pedia mais e mais migrao da Amrica, pois esta inibiria a maneira de ser dos africanos (Blayden, 1887, p. 107). Isso sem o menosprezo de que ele tenha sido um dos maiores promotores do retorno frica.

    Em Angola, Jos de Fontes Pereira questionava a colonizao, destacando o pouco e nada que Portugal contribuiu para a regio. Uma das seqelas era pre-cisamente os imigrados da metrpole: os piores de todos so os colonos, in-dolentes, arrogantes, com pouco cuidado e, todavia, menos conhecimento (O Futuro dAngola, abril, 1882). Esses colonos, pensava Pereira, humilhavam os filhos da terra e certamente no constituam um elemento civilizador. Diante disso, pensava que a Inglaterra poderia civilizar os africanos e aproveitar me-lhor as riquezas da Angola (ver Davidson, 1974, p. 184).

    O bispo Henry Turner foi um fervoroso defensor e promotor da instalao de negros americanos na frica, e sua igreja, a African Methodist Episcopal (AME), trabalhou nessa tarefa. Baseando-se numa fundamentao teolgica antiga, em torno do sentido providencial e evangelizador que teriam os mi-grantes na frica na hora de difundir o cristianismo, Boilat, Crowther, Crum-mell e outros tinham sustentado a necessidade da evangelizao dos negros pe-los prprios negros, chegando, em alguns momentos, a idealizar a escravido como o caminho escolhido por Deus para cristianizar os negros, que logo cris-tianizariam a frica. Em 1896, Turner afirmava:

    Penso que dois ou trs milhes de ns deveramos regressar terra de nossos antepas-sados e estabelecer nossas prprias naes, civilizaes, leis, costumes, estilos de fabri-cao e deixar de nos queixarmos, de protestar de forma crnica e de ser uma ameaa para o pas pelo qual o homem branco reclama e est decidido a dominar. (Apud Rals-ton, 1987, p. 794.)

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    No sul do continente, Olive Schreiner, durante os anos 1890, escreveu sobre a colonizao, mas com uma perspectiva bem diferente. Olive estava pensando nos migrantes europeus que vinham instalar-se nas regies austrais da frica, dife-renciando nos procedimentos: o realizado por indivduos e o realizado por uma grande companhia (Schreiner, 1896, p. 10ss). Pensava que as novas terras de-viam ser adquiridas por aqueles que l chegavam pessoalmente para morar e tra-balhar. Ele fazia uma diviso mais ou menos eqitativa, distribuindo a riqueza com tolervel igualdade atravs da comunidade. Mas em locais como a Rodsia eliminou-se esse procedimento, entregando-se concesses grande empresa, que reclamava a terra e as riquezas minerais como suas, de modo que os colonos, ao chegarem, se encontravam em territrio alheio e deviam pagar quantias impor-tantes pelos minerais extrados. Isso, em vez de superar as diferenas econmi-cas existentes na Europa, as agravava. Insistia na necessidade de uma colonizao que tivesse como objetivo o desenvolvimento do povo e no o fazer dinheiro, que era o objetivo das companhias (Schreiner, 1896, p. 12).

    A Defesa dos Africanos como Etnias

    Uma das tarefas mais importantes empreendidas pelos intelectuais perif-ricos foi sua reivindicao a respeito das desqualificaes sofridas como conse-qncia do discurso do centro. Sobre nenhum povo caram tantas desqualifica-es tnicas e culturais como sobre o africano. A reivindicao da humanidade em torno da capacidade intelectual, da qualidade cultural e, inclusive, do atra-so ou incompletude da natureza de algumas regies foi um dos motivos mais difundidos do pensamento perifrico. Por quase todas as partes no mundo perifrico, os viajantes, conquistadores, cientistas e filsofos do centro viram seres inferiores: crianas, afeminados, brbaros, povos decadentes, atrasados, simiescos, escravos por natureza. Com certeza isso no era exclusividade do Ocidente. Muitos outros povos e culturas foram racistas avant la lettre. O que fez o Ocidente foi elaborar mais essas desqualificaes, dando-lhes con-tundncia e tornando-as conhecidas pelos prprios intelectuais dos povos afe-tados.6 Os autores da periferia tomaram como algo pessoal desfazer-se de tais desqualificaes.

    O primeiro livro publicado por um africano com o explcito propsito de reivindicar uma viso sem preconceitos para a raa negra foi o de J. A. Horton,

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    Pases e Povos da frica Ocidental. Uma Reivindicao da Raa Africana, de 1868. Horton buscou mostrar que uma srie de caractersticas atribudas raa negra, de tipo biolgico ou natural, no era real e que, em alguns casos, era meramen-te circunstancial. Preparou seu discurso para refutar os antroplogos, que no eram capazes de ver a frica com calma, quietude e mente sem preconceitos (Horton, 1969, p. 21), ou, pior ainda, aqueles que, como Richard Burton, tm um dio terrvel ao negro (idem, 1969, p. VI). Sua tarefa, em conseqncia, era dizer umas palavras sobre alguns graves erros que os homens da cincia cometeram a respeito da capacidade do progresso da raa africana (idem, 1969, p. 31).

    Horton inicia seu livro assinalando que pretende provar a capacidade do africano para ter um governo poltico real e independncia nacional (idem, 1969, p. 3), afirmao que o coloca como um dos primeiros a falar tambm da questo do Estado-nao. Suas argumentaes se articulam a um determina-do nacionalismo, como afirmao da possibilidade de um Estado-nao, e a um certo pan-africanismo, na medida em que se refere ao conjunto O povo afri-cano um povo permanente e sofrido (idem, 1969, p. 69) , incluindo a dis-pora. Nesse esquema precisamente que se deve entender a criao da Libria. uma amostra da regenerao da frica (idem, 1969, p. 16), um importante passo no avano da histria africana (idem, 1969, p. 20), na medida em que as naes da frica Ocidental devem viver com a esperana de ocupar uma posi-o importante na histria do mundo e ter voz no conselho das naes (idem, 1969, p. 61). Isso, porm, estava longe de se atingir. O negro possua potencia-lidades no-desenvolvidas ainda e, como era impossvel para uma nao civi-lizar-se a si mesma, propunha que se devia continuar trazendo a civilizao de fora (idem, 1969, p. 175), nesse caso, da Europa e Amrica.

    Em outro contexto e em meados dos anos 1890, Mohandas K. Gandhi em-preende em Natal, na frica do Sul, a mesma tarefa de Horton. Os migrantes indianos estavam sendo privados de inmeros direitos e um modo de funda-mentar isso era argumentando que eles formavam um povo selvagem, infe-rior aos britnicos, que nesse momento governavam a colnia. Interessava a ele mostrar que os indianos no foram nem eram, de maneira alguma, inferio-res aos seus irmos anglo-saxes (Gandhi, 1958a, p. 150). Para provar isso, re-correu aos textos de diversos autores europeus que ressaltavam que os arianos eram a base de povos como o indiano e o europeu, pois possuam etnicamen-te um ancestral comum e que, por outro lado, escreveram obras sobre a ndia e

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    sua filosofia, filologia, mitologia, cincia, arquitetura etc. nas quais descreviam a grandeza dessas produes (Gandhi, 1958a, p. 151ss). Gandhi empregou a estratgia de argumentar que os europeus ignorantes eram os que menospreza-vam os indianos, tanto que os escritores de maior nvel, pessoas de estudo e que se aprofundaram no contedo da cultura indiana, os valorizavam.

    A Defesa da Cultura Americana

    A defesa da capacidade de criao cultural dos africanos e ou da validade dessa produo continuao e corolrio da defesa da raa ou da humanidade e est na base de discursos relativamente complementares. O primeiro se re-fere decadncia atual dos africanos, mas colocando em destaque a existncia de um passado glorioso no qual produziram grandes obras, cumes da cultura humana; o segundo argumento que a frica gerou ou conserva valores que o centro ou nunca teve ou perdeu; o terceiro afirma a validade de muitos costu-mes africanos diferentes ou opostos aos do centro em razo do bom discerni-mento, particularmente como adaptao bem-sucedida ao meio natural; e, por ltimo, defende-se a legitimidade de alguns costumes como simples opes de-rivadas da peculiaridade dos povos, no necessariamente melhores nem piores que os de outros, mas to legtimas como aquelas. Essas argumentaes so te-mas do pensamento perifrico utilizadas por todas as partes.

    Viu-se que P. D. Boilat concebia a frica de seu tempo como brbara e sel-vagem, mas lembrava que teve seu tempo de glria e prosperidade. Esse tem-po, que terminou com a chegada do islamismo, que levou os africanos servi-do e corrupo, foi marcado por grandes exemplos de cultura, como Agustn, Tertuliano, Cipriano, tidos como as primeiras luzes do mundo (Boilat, 1984, p. 231-2). Essa mesma argumentao foi seguida por outros autores. Horton, por suas vez, se referiu ao grandioso passado africano, no qual sua cultura te-ria sido a criadora da cincia e da literatura da qual beberam a Grcia e Roma. Blyden v nos construtores das pirmides os antepassados dos africanos de seu tempo, v traos africanos na Esfinge e afirma que os africanos levaram a civili-zao Grcia. Charles Marke afirmou que os antigos egpcios eram africanos negros (ver Spitzer, 1972, p. 120-1).

    O segundo argumento, relativamente frica possuir valores que o cen-tro no tem ou perdeu, de certa maneira continuao ou corolrio do ante-

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    rior. O centro a Europa e os Estados Unidos, em particular os pases saxes visto como expresso da cultura da raa branca, extremamente dotada em certos aspectos e pouco em outros. Essa idia, que seria popularizada pela negritude,7 foi formulada por vrios autores na frica Ocidental meio sculo antes e se ligou preocupao pelo retorno da frica da dispora. O sistema europeu tem traos de individualismo, competio e rapacidade, o que oca-siona crimes e desumanizao. A frica, por sua proximidade com a natu-reza, por esse cooperativismo ou vida em conjunto, pelo forte valor familiar, por sua religiosidade, possui uma superioridade moral que dever ser trans-ferida para toda a humanidade (ver July, 1964, p. 78-9).

    Em relao ao argumento do senso comum, a Sociedade para a Reforma do Vesturio, entre outras coisas, apresentava razes lgicas sobre a necessidade de abandonar alguns trajes europeus por parte dos africanos, visto que era ne-cessrio, em climas to quentes, permitir a livre circulao do ar. Alguns ves-turios europeus, afirmava, eram nocivos sade. nesse sentido que deve ser interpretado o seguinte texto, publicado no Sierra Leonean Weekly News, de ja-neiro de 1901: se a natureza exige a continuao dos costumes domsticos e sociais dos nativos como preo para a preservao da raa nestes climas, o pre-o deve obviamente ser pago ou a extino chegar.

    O ltimo argumento o que permitiu o desenvolvimento terico mais elabo-rado. Os africanos tinham direito a costumes diferentes e no eram, por isso, in-feriores, j que correspondiam sua individualidade; por um lado, tratava-se de uma espcie de mandato divino, uma contribuio de sua cultura, e, por outro, era simplesmente uma conseqncia de sua histria. A partir desse argumento, de marca claramente herderiana, elabora-se uma proposta identitria com am-plas repercusses para a vida cotidiana e poltica, para a educao e a religio. Sem dvida, foi Blyden o maior idelogo dessa posio.8 Nessa idia, por ou-tro lado, afirmou-se um amplo trabalho nativista de recuperao da cultura au-tnoma. Ele se deu por todas as partes, ainda que de forma desordenada, per-mitindo sobretudo a apario de uma literatura de tema africano que logo se desenvolveu nos espaos lusfonos, particularmente em Cabo Verde. Esse nati-vismo no produziu, sem dvida, obras importantes no terreno das idias. Tra-ta-se de uma sensibilidade na qual germina um protonacionalismo, mas no um pensamento nacionalista.

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    A Personalidade Africana: um Feito e um Dever

    Viu-se como foi sendo formulada uma srie de princpios, em nveis racial, cultural e histrico, que tendiam afirmao do valor dos africanos. Quem reali-zou uma reflexo de maior valor terico, at porque fixou o conceito mais forte, o de personalidade africana, foi Edward W. Blyden9 (ver cartografia n. 1).

    Os numerosos traos identitrios do pensamento de Blyden adquirem sen-tido a partir de uma idia bsica: as raas foram criadas com a misso de reali-zar contribuies especficas humanidade que devem confluir para uma civi-lizao universal. Em razo disso, a raa negra deve evitar a cpia do modo de ser dos europeus e achar um modelo prprio que expresse tal contribuio. Di-rigindo-se aos africanos cristos e de costumes ocidentais, Blyden argumenta: Sua primeira dvida serem vocs mesmos, admitir que so africanos e no que so europeus, para contribuir com o completo desenvolvimento e bem-es-tar da humanidade (citado em Spitzer, 1972, p. 110). Ele desenvolve essa idia assinalando que, nos assentamentos europeus da costa, eram visveis os me-lanclicos efeitos do fatal contgio de uma mmica europia espria. Mas foi o inspito e inexorvel clima que evitou que essa pseudocivilizao chamada progresso se expandisse para o interior. De fato, nessas regies, As tribos, to-davia, mant[inham] sua simplicidade e permaneci[am] naturais (Blyden, 1887, p. 400). Para Blyden, a autntica personalidade africana residia mais nesses po-vos do interior do que nos ocidentalizados da costa, mas ele no deixou de ca-racterizar alguma dimenso dos povos aborgines, como o paganismo, com todos os seus horrores e abominaes, ou a existncia selvagem e brbara (ci-tado em Spitzer, 1972, p. 111).

    O africano devia estar em comunicao com seu povo para manter sua cultu-ra, pois ela no emana simplesmente da raa. Em 1896, Blyden escreveu que,

    ao estudar na Europa, o africano fica alienado de si mesmo e de seus compatriotas. No um africano nem por seus sentimentos nem por seus objetivos. No respira frica atravs das lies que lhe so dadas. Estas no transcendem o cheiro da terra africana: tudo Eu-ropa e europeu. (Correspondance, Lagos, 1896, citado em Diagne, 1982, p. 145.)

    Em 1908, Blyden publicou Vida e Costumes Africanos, no qual expe outra dimenso do identitrio: na famlia, que na frica est em tudo, que est a base da sociedade, est no uso da terra e da gua comuns e na vida social em comum. Esta comunista ou cooperativista. Todos trabalham por um e um

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    por todos. Isso no podem entender os colonos liberianos, que funcionam de modo individualista (citado em Jaffe, 1988, p. 121). Essa idia de um socia-lismo ancestral, que mais tarde ser retomada e reelaborada, entre outros, por Lopold Senghor e Julius Nyerere, outro dos motivos recorrentes do pensamento perifrico.

    De certo Blyden no foi o nico a pensar que o africano educado estava se alienando de seu povo. Kufileh Tobohku, um discpulo suyo (ou, qui, pseu-dnimo do prprio Blyden), argumentou: () temos recebido uma educao e uma civilizao que instalou em ns um sentimento de dvida a respeito da nossa capacidade e destino, [fazendo-nos] indiferentes nossa prpria origi-nalidade (citado por Spitzer, 1972, p. 113).

    De sua parte, John Davis (que trocou seu nome para Orishatukeh Faduma) ressaltou, em seu trabalho Avanos e Retrocessos do Trabalho Missionrio na frica. Por um Testemunho, de 1895 (citado em Paracka, 2002, p. 4), que o de que os africanos precisam, e o de que todas as raas primitivas precisam, no aquilo que as desnacionalizar ou desindividualizar, que as suprime da exis-tncia, mas sim o que Deus quis criando a variedade das raas. A partir des-sas idias, segundo Leo Spitzer, outros autores tentaram explicar os proble-mas africanos como conseqncia da subverso da verdadeira personalidade racial africana pela europeizao, chegando-se a falar da degenerao dos ne-gros civilizados da frica ocidental (Spitzer, 1972, p. 112). A posio iden-titria radical chegou a inverter o discurso de quem havia proposto a civiliza-o como evangelizao com o propsito de ocidentalizar-se para ser como os do centro. A noo de regenerao africana perdia ento seu carter cristiani-zador e civilizador para transformar-se em reafricanizao. Para os identi-trios, paulatinamente a tarefa foi reafricanizar o continente. Essa reafricani-zao assumiu formas diferentes; para uns, como Blyden, era negrejar, para outros, como Stephanus Jacobus Du Toit, era africanizar.

    Idioma e Nao

    Assinalou-se a importncia do sentimento nativista que aflorou durante a segunda metade do sculo XIX na frica Ocidental e do Sul, no seio de gru-pos anglo, luso, africnder e inclusive franco-falantes. Os movimentos nativis-tas levaram, em algumas oportunidades, recuperao de idiomas africanos, coisa que permitia assumirem certa identidade africana pessoas de trajet-

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    rias culturais mestias ou ocidentalizadas. O reivindicacionismo lingsti-co, como parte do nativismo, possibilitou a apario do pensamento proto-nacionalista e inclusive nacionalista propriamente dito, como no caso de S. J. Du Toit. Mas o problema do idioma nem sempre apontou na direo de ser como ns mesmos, mas tambm na de ser como o centro. o caso daque-les que reivindicaram o uso do ingls como a lngua da civilizao.

    O pensador que alcanou a formulao nacionalista mais ntida, no sen-tido tradicional do termo, na regio sul-saariana, na poca, foi o sul-africano Stephanus Jacobus Du Toit. A lngua africner, segundo ele, era a chave da constituio da nao africnder. Foi o campeo do identitarismo pela cons-tituio de um idioma, que outorgava unidade e diferena. Para isso escreveu uma gramtica, uma histria nacional e criou em 1876 o jornal O Patriota Africnder. O grupo fundado por ele, a Sociedade dos Verdadeiros Africn-deres, postulou o estabelecimento de pequenos bancos, o boicote aos comer-ciantes estrangeiros e maiores fundos para a educao holandesa.

    Como praticamente todos os pensadores sul-saarianos do sculo XIX que se expressam em lnguas de raiz europia, Du Toit parte de uma viso pro-videncialista. A nao sul-africana criao divina. Deus uniu membros de procedncias nacionais diversas (ainda que se refira somente aos europeus, com certeza), dando-lhes um idioma comum. Deus, alm de reuni-los, entre-gou-lhes uma misso, que tem duas dimenses: por um lado, conservar sua liberdade, particularmente frente s ambies dos imprios europeus; por outro, cristianizar e civilizar os infiis (ver http://wesley.nnu.edu/DACB/DACBCDFILES/stories/southafrica).

    A. Crummell tambm se ocupa da relao entre lngua e nao, mas ar-gumenta de maneira diferente de Du Toit. Referindo-se Libria, sustenta que o idioma ingls chave para a construo da nao. Pensa que ele pos-sui uma capacidade de guardar e expressar as constituies, que so elemen-tos essenciais do governo livre e as principais garantias da liberdade pessoal. Crummell considera que o idioma ingls e a liberdade so aportes dos afro-USA-americanos frica.

    Recuperao da Cultura dos Povos Originrios

    A reflexo identitria foi parte de um movimento mais amplo de interesse pela trajetria cultural dos africanos. Uns se interessaram por conhecer com a

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    inteno utilitria de civilizar-cristianizar melhor, outros para reafricanizar, outros para realizar frmulas intermedirias. Questes como as abordadas nos numerosos estudos sobre as lnguas, a sabedoria popular (ditos populares, cha-radas, lendas etc.), a recuperao do vesturio, das artes e dos artesanatos, e in-clusive de nomes prprios, foram elementos que marcaram uma reflexo teri-ca sobre a personalidade e a educao.

    A substituio de nomes europeus ou o acrscimo de nomes africanos foi um dos movimentos mais interessantes de recuperao identitria. Vrias pes-soas da frica Ocidental que haviam sido batizadas de forma crist e que como recativados tinham perdido seus nomes nativos decidiram substituir aqueles que lhes haviam sido dados pelos missionrios ou agregar a eles alguma deno-minao africana. O j citado Kufileh Tubohku defendia que William John Davis havia decidido chamar-se Orishatukeh Faduma, dizendo que

    aqueles que censuraram Faduma por trocar um nome com o qual ficou conhecido des-de o seu nascimento devem lembrar que cada um de nossos Pais Negros Libertados teve um nome dado em sua terra natal pelo qual ficou conhecido desde seu nascimen-to at o momento de sua chegada terra de seu exlio. Ele tinha um nome cheio de sen-tido que preservava sua individualidade tribal ou racial. Quando foi transportado pelo funesto trfico de escravos a essa terra, seu nome foi trocado por outro, estrangeiro, va-zio de significado e insignificante para ele. uma profunda e crassa ignorncia pensar que um homem que tem de civilizar-se deve abandonar tudo o que possui, e que na-tural para ele, trocando-o pelo que estrangeiro e no-natural. (Tubohku, 1887, citado por Spitzer, 1972, p. 113-4.)

    Outra manifestao muito importante foi a reforma do vesturio. Criou-se a Sociedade para a Reforma do Vesturio, em 1887, em Serra Leoa, agrupando importantes personalidades da ilustre elite crist. Esta denunciou a existncia do que se chamou a regio da levita e do grande chapu, que associava vestu rio eu-ropeu civilizao. Essa sociedade pretendia tambm se ocupar de outras ques-tes e, na idia de gerar progresso social, queria ser o lugar de encontro para to-dos aqueles que desejassem uma existncia nacional independente para a frica e para o negro (Methodist Herald, 21-12-1887, citado em Spitzer, 1972, p. 115). A recuperao do vesturio era questo de identidade e de sade, argumentando-se que os aparatos europeus eram inoportunos para o clima africano.10

    Dentro desse movimento, o que tem maior interesse para o estudo das idias foi a valorizao da trajetria filosfica ou, mais amplamente, cultural dos po-vos africanos. Por exemplo, Boilat havia exaltado a existncia de uma filosofia

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    oral. No entanto, para alm da exaltao ou condenao dessa filosofia, exis-tiu de fato um movimento de recuperao. Provavelmente, o mais importante entre os diversos autores foi A. B. C. Sidthorpe, que escreveu sobre a histria e a geografia da Serra Leoa e outros territrios, expondo vasta informao so-bre cultura e costumes. Durante as ltimas dcadas do sculo XIX e primeiras do sculo XX, os jornais da frica Ocidental publicaram, alm dos trabalhos de Sidthorpe, outros diversos artigos relativos vida e aos costumes dos po-vos. Esses trabalhos tiveram diferentes orientaes, servindo alguns como ar-gumento ou pretexto para mostrar a capacidade dos africanos para criar insti-tuies e para autogovernar-se. Foi tambm o caso, ainda que j em 1903, dos escritos de outro importante pensador, J. E. Casely Hayford.

    Pela Independncia das Instituies Africanas: Igrejas e Universidades

    As idias sobre a criao de instituies africanas ou, mais propriamen-te, da africanizao de igrejas e universidades foi uma das formas de consti-tuio do africanismo e do identitarismo no pensamento de 1870 em diante. Nisso, como em outras coisas, coincidiram alguns pensadores africanos com os USA-americanos negros e tambm com alguns ingleses.

    Henry Venn, que dirigiu a Church Missionary Society (CMS) na frica Ocidental britnica entre 1842 e 1872, em um texto de 1851 afirmou que o ob-jetivo da misso era a instalao de uma igreja nativa sob o comando de pasto-res nativos com um sistema autofinanciado (Venn, 1851, citado por Hanciles, 1997, p. 2). Em outro texto, de 1868, Venn chamava o clero para estudar o ca-rter nacional do povoado no qual trabalhavam e mostrassem o maior respei-to s peculiaridades nacionais (), permitissem que se organizasse uma igreja nativa, afirmando que a posio apropriada do missionrio a de um visitan-te da Igreja nativa (citado em Jaffe, 1988, p. 118).

    Em relao ao pensamento originado entre o prprio clero europeu, vai se afirmando o etiopismo, de que um dos mais importantes representantes foi Ja-mes Johnson. O etiopismo, uma das ideologias mais propriamente africanas, se inspirou na frase bblica Etipia estende suas mos a Deus. A interpretao dessa frase serviu como fundamento para afirmar a converso do continente f crist e, mais ainda, a privilegiada posio do africano no cristianismo. Isso permitia, em alguns casos, avanar em defesa das capacidades e peculiaridades

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    africanas ou da necessidade de um clero africano, assim como de uma liturgia e, com certeza, de uma gesto independente do poder europeu, da mesma for-ma que, em algumas ocasies, uma posio antieuropia.11

    James Jonhson um dos fundadores do etiopismo. No fim dos anos 1860 e comeo dos 1870, postulava que o objetivo da cristandade africana era fazer com que a frica fosse capaz de

    tomar seu lugar junto s naes mais crists, civilizadas e inteligentes da terra. () Em torno de ns no vemos nada que possamos chamar de nosso, nada que mostre uma capa-cidade nativa independente, excetuando esta jovem instituio da Pastoral Nativa.

    Em conseqncia, afirmava a necessidade de ir em direo a uma igreja africana cuja independncia se fundamentasse na conscincia de que o afri-cano uma raa independente, que existe sob circunstncias peculiares e que possui caractersticas peculiares. Isso era contraditrio com a direo pro-veniente de igrejas estrangeiras, que fazia os africanos seguirem suas pr-prias circunstncias locais e que dificilmente poderiam gerar expectativas de que os africanos poderiam seguir seu prprio caminho. Nessa direo, prog-nosticava o uso da () prpria liturgia e cnones africanos. Junto com isso, propunha transformar o Fourah Bay College em uma universidade africana (ver Hanciles, 1997, p. 23). O parentesco com a obra de Blyden ntido, am-bos trabalharam juntos no jornal Negro.

    Uns dez anos mais tarde, ento presidente do Liberian College, que depois se transformaria na universidade desse pas, Blyden levanta que um Colgio na frica Ocidental, para a educao da juventude africana com professores africa-nos, sob um governo cristo conduzido por negros, algo nico na histria da ci-vilizao crist. Acreditava que o critrio-chave deveria ser que a civilizao da populao, no tocada pela influncia estrangeira, ainda no afetada por hbitos europeus, no devesse ser organizada seguindo padres estrangeiros, mas sim de acordo com a natureza do povo e do pas. O colgio seria somente um instrumen-to que contribuiria para a realizao de um trabalho regular orientado no ape-nas para fins intelectuais, mas tambm para propsitos sociais, obrigaes reli-giosas, objetivos patriticos e desenvolvimento racial (Blyden, 1887, p. 82-3).

    Simultaneamente, estavam sendo geradas idias de independncia ou autono-mia poltica. James Horton props em 1868 o paulatino autogoverno por parte dos africanos ocidentais, que possuam a capacidade para um real governo pol-

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    tico e independncia nacional (Horton, 1969, p. 3). Isso, alis, era coerente com a histria dos povos originrios da regio, que haviam utilizado formas elabora-das de governo, tanto monrquicas como republicanas (idem, 1969, p. 3-4).

    Propostas para uma Educao Africana (?) dos Africanos

    Entre outros textos da segunda metade do sculo XIX, h dois muito im-portantes, e claramente opostos, sobre a educao dos jovens. Foram escritos por P. D. Boilat e E. W. Blyden.

    Boilat prope a criao de um colgio secundrio no Senegal, em um dis-curso realizado para as autoridades e para os pais que poderiam (deveriam) en-viar seus filhos a tal estabelecimento. Baseia sua idia em parte como alterna-tiva educao islmica (como visto antes) mas, sobretudo, como alternativa inexistncia de educao secundria na regio.

    A educao, segundo ele, est associada regenerao, civilizao e supe-rao do perodo do trfico, que nos arruinou (Boilat, 1984, p. 230). A partir de uma leitura da Bblia que associa a escravido com a dominao dos judeus na Babilnia e inspirando-se em Isaas, que promete tempos melhores ao povo de Israel (idem, 1984, p. 130-1), Boilat tenta unir sua proposta educativa com a trajetria dos padres africanos da Igreja, figuras como Agostinho, Tertuliano e Cipriano, to africanos como os destinatrios do seu discurso. Essa conexo lhe serve para argumentar sobre a necessidade do melhoramento dos africa-nos, cuja decadncia desde aquela poca se devia presena do Isl. Abriam-se novamente possibilidades de melhorias para o Senegal, que deveria superar o nvel da educao que possua, pois ela, por ser apenas primria, limitava as possibilidades dos formandos, pelo que se deveria criar um colgio no qual to-dos os seus filhos recebessem a educao dada na Frana e at melhor (idem, 1984, p. 236). Desse modo, poderiam aspirar a todos os cargos honorveis que um jovem podia desejar: a infantaria da marinha, a navegao ou a mecnica, a cavalaria militar, o sacerdcio, a medicina, a farmcia, a magistratura e o co-mrcio (idem, 1984, p. 238-9). Porque continua da boa ou m educao das crianas que depende a felicidade da plis, a tranqilidade dos Estados, a segurana dos reinos, a amabilidade da sociedade e as delcias e os encantos da vida, e aquilo que ainda mais interessante, o reino glorioso da religio e da moral crist (idem, 1984, p. 240). A educao, em sntese, permitiria recu-

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    perar algo que Deus havia dado aos humanos antes do pecado original (idem, 1984, p. 241).

    Blyden, utilizando parcialmente outro ponto conceitual e com um discurso mais elaborado, situa seu discurso em conexo com a personalidade africana, a recuperao da cultura, a busca de instituies prprias que convergissem ou fossem parte de um conjunto de reflexes no qual estivesse inserido o tema da educao. Em um texto marcado pela clareza, elaborao e originalidade, Bly-den, como presidente do Liberian College, formula uma proposta de educao africana para os africanos. Trata-se de Objetivos e Mtodos de uma Educao Liberal Africana para os Africanos, de 1881.

    Acreditava que o Liberian College deveria seguir as exigncias da nao e da raa, argumentando que as propostas seriam provisrias, e afirmava: quando avanarmos para o interior da frica e chegarmos ao contato com as grandes tribos do continente, as formas da religio, a poltica ou a escola devero to-mar a forma que o gnio da raa lhes prescrever (Blyden, 1887, p. 82).

    De fato, o que se estabelecia at ento em educao seguia os padres eu-ropeus ou USA-americanos, mas a experincia j sugeria algumas modificaes em relao s circunstncias peculiares (idem, 1887, p. 85), se o objetivo de toda educao era assegurar crescimento e eficincia, para fazer com que um ho-mem alcance tudo aquilo que seus dons naturais lhe permitem. Mas o negro, que por centenas de anos conviveu com raas crists e civilizadas, no recebeu uma educao correta para produzir respeito por si mesmo e apreo por suas capacidades (idem, 1887, p. 85).

    Dizer que essa educao foi inadequada pouco. Blyden diz que essa edu-cao, de critrios copiosos e imitadores, no somente era incompatvel como destruidora do respeito do negro por si mesmo (idem, 1887, p. 88). Nos livros usados, diz, fazia-se constante referncia s caractersticas fsicas e mentais su-periores da raa caucsica (idem, 1887, p. 89). Havia-se utilizado indiscrimi-nadamente uma literatura estrangeira e no se devia esquecer que existia toda uma produo que fora inventada para a degradao e proscrio do negro. Bly-den cita a esse respeito os casos de Shakespeare, Gibbon e Milton, entre ou-tros (idem, 1887, p. 95). Para ele, no eram trabalhos com os quais a juventu-de africana devesse ser treinada. A raa negra, ou qualquer outra, no poderia avanar com os mtodos de outra raa seno com os prprios e isso o que de-via fazer o africano (idem, 1887, p. 89). Inclusive, determinadas coisas que pro-

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    duziram um grande avano na Europa podiam ser negativas para os africanos (idem, 1887, p. 91). O caminho que conduziu os anglo-saxes ao xito no era o mesmo que deveria conduzir o negro (idem, 1887, p. 97).

    Isso leva Blyden a denunciar um tipo de ocupao cultural na qual se estar bebendo doses extras da cultura europia e em coerncia com isso que exis-tiam pessoas que pediam mais e mais emigrao da Amrica para que essa cul-tura estrangeira penetrasse o mximo possvel no interior da frica. Por que-rer evoluir utilizando os mtodos de outra raa, freqentemente os africanos lutavam contra si prprios. O discurso de Blyden tinha como objetivo denun-ciar e gerar alternativas imitao (idem, 1887, p. 107), propondo que para o progresso da Libria e para a recuperao da frica se devesse criar um mo-delo educacional que se inspirasse nos clssicos gregos e latinos, que se conhe-cessem os idiomas africanos e o rabe, que se recebessem a inspirao e as no-vas idias das tribos do interior, que se cultivasse a matemtica (idem, 1887, p. 97ss); ou seja, um modelo alternativo ao inspirado na cultura europia mo-derna de ento, que denegria o negro.

    Crtica (in)Ao da Colonizao de Portugal e da Frana

    Nas ltimas dcadas do sculo, toma fora a crtica presena europia na frica, aparecendo formulaes separatistas. De fato, nos domnios portugue-ses, entre 1820 e 1830, existiu, no mago do segmento dos comerciantes e tra-ficantes de escravos, a idia de separao ou unio com o Brasil, para evitar a abolio da escravatura. Depois de essas idias independentistas surgirem na frica, em parte motivadas pelo mesmo Brasil, foram esquecidas por meio s-culo, para reaparecerem em outro segmento social e com outros contedos, inspirando-se mais no progresso liberal, mais poltico que econmico.

    Desde cedo, no incio dos anos 1850, P. D. Boilat realiza uma primeira ava-liao e critica a (in)ao francesa no Senegal. Suas palavras so lapidares: desde que os franceses se estabeleceram, no se observaram avanos na civili-zao, sendo as nicas mudanas na populao o abuso do lcool e a utiliza-o das armas de fogo. Isso era to mais grave na medida em que no se podia argumentar que foram os povos que se opuseram civilizao; pelo contr-rio, estavam muito favoravelmente dispostos (Boilat, 1984, p. 467). Prova dis-so que muitas vezes se aproximavam de Saint-Louis e de Gore para conhecer

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    e admirar a inteligncia que mostravam os europeus com o que ali constru-ram. De fato, tentaram uma srie de medidas, particularmente educacio-nais, para civilizar os habitantes dessas regies, mas quase todas fracassaram (idem, 1984, p. 468-9). Mas, diferena dos crioulos das possesses portugue-sas, Boilat em nenhum momento desprende de suas constataes algum tipo de proposta autonomista ou independentista. Se at ento a Frana havia fra-cassado, era a nica que podia cumprir a misso civilizadora, aproveitando tan-to os aportes de missionrios catlicos de outras procedncias quanto os dos antilhanos alforriados (idem, 1984, p. 474).

    Em Angola, por outro lado, desenvolve-se um importante movimento jor-nalstico do qual resultam escritores, publicitrios, folcloristas que constituem um movimento de idias com progressiva postura antimetropolitana. Esse mo-vimento adota simultnea e coordenadamente a valorizao de elementos cul-turais autctones, particularmente o idioma quimbundo, como faz Joaquim C. da Matta, com o questionamento da colonizao, da (in)ao e da suposta misso civilizadora de Portugal no pas, realizando inmeras propostas alter-nativas, como o fizeram P. A. Braga e J. F. Pereira.

    Braga publicou, durante os anos 1880, O Farol do Povo, atravs do qual cla-mou pelo renascimento intelectual africano e criticou a colonizao portu-guesa, comparando-a com outras que considerava vitoriosas. Mais elaborado o discurso de Pereira, que desde O Futuro dAngola lamentava-se da falta de igualdade entre filhos do pas e os de Portugal, da falta de educao e do des-potismo, utilizando o Brasil como comparao, a partir da interpretao das relaes no tringulo Portugal, Brasil, Angola.12 Pereira denuncia os costumes brbaros, como o uso de chicotes, que at ento se utilizava, o despotismo e a falta de liberdade e fraternidade (citado em Salvadorini, 1989, p. 124-5). Acei-tar a administrao portuguesa tal como se dava poca sem protestar seria um crime de lesa liberdade. Para ele, a emancipao de um povo pode se fun-damentar em suas riquezas, em sua ilustrao ou na negligncia e despotismo da nao que o domina. De Angola roubaram os braos (pela captura e trfico de escravos) e negaram as escolas, pelo que estaria legitimada a possibilidade de inverter o jogo para alcanar seu engrandecimento. Portugal no deu a Ango-la aquilo que deu ao Brasil e isso autorizaria os africanos a lutarem pela eman-cipao. Ele insiste nos mal aproveitados quatro sculos de domnio portugus (Pereira, 1886, p. 1). Aqui Pereira se diferencia, ainda que seja com argumento

  • O Pensamento Africano Sul-Saariano... 45

    somente retrico, por considerar que seria melhor a colonizao por parte dos ingleses ou a independncia.

    Esses autores e vrios outros questionaram o racismo ou as discriminaes por motivos raciais e criticaram a falsa civilizao. Esse movimento culminou na obra coletiva, um clssico da histria intelectual angolana, Voz de Angola Clamando no Deserto, publicado em 1901.

    Federao ou Confederao como Proto-Estado-Nao

    Viu-se o modo como a crtica dos angolanos colonizao portuguesa insi-nua formas de autonomia e independncia. J. A. Horton, de sua parte, postu-lava a necessidade de uma progressiva autonomia de Serra Leoa em relao ao domnio britnico. Mais explcitos so os projetos de E. W. Blyden, de uma fe-derao no Oeste Africano que uniria Libria, Serra Leoa e outros territrios, e os da Associao Comercial de Loureno Marques (atual Maputo), com ten-dncia a confederar territrios sul-africanos.

    Em um excelente artigo, Hollis Lynch (1965) apresentou a proposta de Bly-den relativa criao de um providencial Estado-nao negro na frica Oci-dental, que se realizaria pela expanso da Libria; a expanso das possesses inglesas, em uma primeira etapa; a expanso do Isl atravs dos povos origin-rios e sua colaborao com o cristianismo; e a potencializao da cultura negra (Lynch, 1965, p. 374). Blyden imaginava esse grande Estado-nao oeste