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Valsa Fez tanto luar que eu pensei nos teus olhos antigos e nas tuas antigas palavras. O vento trouxe de longe tantos lugares em que estivemos, que tornei a viver contigo enquanto o vento passava. Houve uma noite que cintilou sobre o teu rosto e modelou tua voz entre as algas. Eu moro, desde então, nas pedras frias que o céu protege e estudo apenas o ar e as águas. Coitado de quem pôs sua esperança nas praias fora do mundo... - Os ares fogem, viram-se as águas, mesmo as pedras, com o tempo, mudam. Cecília Meireles 1901-1964

Valsa que tornei a viver contigo enquanto o vento passava ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/1981225.pdf · Houve uma noite que cintilou sobre o teu rosto e modelou tua voz

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Valsa Fez tanto luar que eu pensei nos teus olhos antigos e nas tuas antigas palavras. O vento trouxe de longe tantos lugares em que estivemos, que tornei a viver contigo enquanto o vento passava. Houve uma noite que cintilou sobre o teu rosto e modelou tua voz entre as algas. Eu moro, desde então, nas pedras frias que o céu protege e estudo apenas o ar e as águas. Coitado de quem pôs sua esperança nas praias fora do mundo... - Os ares fogem, viram-se as águas, mesmo as pedras, com o tempo, mudam. Cecília Meireles 1901-1964

Introdução: Esse e-book é uma forma de homenagear esta maravilhosa poetisa que deixou uma obra rica e extensa e que é uma das maiores autoras da poesia nacional. Seus escritos são extremamente femininos e seu estilo tão ímpar que já sabemos que uma poesia é dela antes mesmo de ler o autor. Por isso mesmo fiz questão de incluir no e-book textos como “A arte de ser feliz” e poesias como “É preciso não esquecer nada” por gerarem dúvidas quanto à autoria. Esses textos são de Cecília sim apesar de soarem “estranhos” aos seus leitores. Qualquer comentário pode ser feito através do e-mail: [email protected] Boa leitura! Lenise Marques – dezembro de 2.009 Biografia Cecília Meireles nasceu no Rio de Janeiro a 7 de Novembro de 1901. Orfã de pai e mãe foi educada pela avó materna. Formou-se na Escola Normal e dedicou-se ao magistério, à literatura e ao jornalismo. Entregou-se também a uma campanha de reforma educacional, dava conferências de literatura brasileira em Portugal e nos Açores, nos Estados Unidos, na América do Sul, na Índia e Goa. Foi nomeada professora da literatura luso-brasileira da Universidade do Distrito Federal.

Em 1917 ingressou na literatura com o livro de versos Espectros. O seu aparecimento coincide com a eclosão do movimento modernista, mas o lugar de Cecília Meireles dentro deste movimento é bastante particular. A poesia dela é ligada à estética simbolista e ao lirismo trovadoresco português. Segundo Otto Maria Carpeaux “a poesia de Cecília Meireles tem suas raízes no simbolismo, o que explica certas incompreenções pertinazes no Brasil. (…) Não é, por isso, menos brasileira, apenas menos modernista e, na verdade, intemporal.” Algumas obras, entre outras: - Viagem - Baladas para El-Rei - Mar Absoluto - Amor em Leonoreta - Nunca Mais - Vaga Música - Retrato Natural e ainda outros livros de versos, ensaios, biografías, traduções e várias peças de teatro. Cecília Meireles faleceu no Rio de Janeiro, a 9 de Novembro de 1964. A Academia Brasileira de Letras concedeu em 1965 à poetisa, post mortem, o Prémio Machado de Assis, pelo conjunto de sua obra.

Reinvenção A vida só é possível reinventada. Anda o sol pelas campinas e passeia a mão dourada pelas águas, pelas folhas... Ah! tudo bolhas

que vem de fundas piscinas de ilusionismo... - mais nada. Mas a vida, a vida, a vida, a vida só é possível reinventada. Vem a lua, vem, retira as algemas dos meus braços. Projeto-me por espaços cheios de tua Figura. Tudo mentira! Mentira da lua, na noite escura. Não te encontro, não te alcanço... Só-no tempo equilibrada, desprendo-me do balanço que além do tempo me leva. Só-na treva, fico: recebida e dada. Porque a vida, a vida, a vida, a vida só é possível reinventada. Cecília Meireles

INTERLÚDIO As palavras estão muito ditas e o mundo muito pensado. Fico ao teu lado. Não me digas que há futuro nem passado. Deixa o presente — claro muro sem coisas escritas. Deixa o presente. Não fales. Não me expliques o presente, pois é tudo demasiado. Em águas de eternamente, o cometa dos meus males afunda, desarvorado. Fico ao teu lado. Cecília Meireles

Quarto Motivo da Rosa Não te aflijas com a pétala que voa: também é ser, deixar de ser assim. Rosas verás, só de cinza franzida, mortas, intactas pelo teu jardim. Eu deixo aroma até nos meus espinhos ao longe, o vento vai falando de mim. E por perder-me é que vão me lembrando, por desfolhar-me é que não tenho fim. Cecília Meireles

Serenata Permite que feche os meus olhos, pois é muito longe e tão tarde! Pensei que era apenas demora, e cantando pus-me a esperar-te. Permite que agora emudeça: que me conforme em ser sozinha. Há uma doce luz no silêncio, e a dor é de origem divina. Permite que volte o meu rosto para um céu maior que este mundo, e aprenda a ser dócil no sonho como as estrelas no seu rumo Cecília Meireles

Motivo

Eu canto porque o instante existe e a minha vida está completa. Não sou alegre nem sou triste : sou poeta.

Irmão das coisas fugidias, não sinto gozo nem tormento. Atravesso noites e dias no vento.

Se desmorono ou se edifico, se permaneço ou me desfaço, – não sei, não sei. Não sei se fico ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo. Tem sangue eterno e asa ritmada. E um dia sei que estarei mudo: – mais nada.

Cecília Meireles

Canção mínima No mistério do Sem-Fim equilibra-se um planeta. E, no planeta, um jardim, e, no jardim, um canteiro; no canteiro, uma violeta, e, sobre ela, o dia inteiro, entre o planeta e o Sem-Fim, a asa de uma borboleta Cecília Meireles Epigrama no. 11 A ventania misteriosa passou na árvore cor-de-rosa, e sacudiu-a com um véu, um largo véu, na sua mão. Foram-se os pássaros para o céu. Mas as flores ficaram no chão. Cecília Meireles

Retrato em Luar Meus olhos ficam neste parque, minhas mãos no musgo dos muros, para o que um dia vier buscar-me, entre pensamentos futuros. Não quero pronunciar teu nome, que a voz é o apelido do vento, e os graus da esfera me consomem toda, no mais simples momento. São mais duráveis a hera, as malvas, que a minha face deste instante. mas posso deixá-la em palavras, gravada num tempo constante. Nunca tive os olhos tão claros e o sorriso em tanta loucura. Sinto-me toda igual às arvores: solitária, perfeita e pura. Aqui estão meus olhos nas flores, meus braços ao longo dos ramos: e, no vago rumor das fontes, uma voz de amor que sonhamos.

Cecília Meireles

É preciso não esquecer nada

É preciso não esquecer nada: nem a torneira aberta nem o fogo aceso, nem o sorriso para os infelizes nem a oração de cada instante.

É preciso não esquecer de ver a nova borboleta nem o céu de sempre.

O que é preciso é esquecer o nosso rosto, o nosso nome, o som da nossa voz, o ritmo do nosso pulso.

O que é preciso esquecer é o dia carregado de atos, a idéia de recompensa e de glória.

O que é preciso é ser como se já não fôssemos, vigiados pelos próprios olhos severos conosco, pois o resto não nos pertence.

Cecília Meireles

Colar de Carolina Com seu colar de coral, Carolina corre por entre as colunas da colina. O colar de Carolina colore o colo de cal, torna corada a menina. E o sol, vendo aquela cor do colar de Carolina, põe coroas de coral nas colunas da colina. Cecília Meireles

Bailarina Esta menina tão pequenina quer ser bailarina não conhece nem dó nem ré mas sabe ficar na ponta do pé não conhece nem mi nem fá mas inclina o corpo para cá e para lá não conhece nem lá nem sí mas fecha os olhos e sorri roda, roda, roda com os bracinhos no ar e não fica tonta nem sai do lugar. põe no cabelo uma estrela e um véu e diz que caiu do céu. esta menina tão pequenina quer ser bailarina mas depois esquece todas as danças, e também quer dormir como as outras crianças. Cecília Meireles

Segundo Motivo da Rosa Por mais que te celebre, não me escutas, embora em forma e nácar te assemelhes à concha soante, à musical orelha que grava o mar nas íntimas volutas. Deponho-te em cristal, defronte a espelhos, sem eco de cisternas ou de grutas... Ausências e cegueiras absolutas oferece às vespas e às abelhas. E a quem te adora, ó surda e silenciosa, e cega e bela e interminável rosa, que em tempo e aroma e verso te transmutas! Sem terra nem estrelas brilhas, presa a meu sonho, insensível à beleza que és e não sabes, porque não me escutas...

Cecília Meireles

Epigrama nro. 4 O choro vem perto dos olhos para que a dor transborde e caia. O choro vem quase chorando como a onda que toca na praia. Descem dos céus ordens augustas e o mar chama a onda para o centro. O choro foge sem vestígios, mas levando náufragos dentro. Cecília Meireles Cantiguinha Meus olhos eram mesmo água, – te juro – mexendo um brilho vidrado, verde-claro, verde-escuro. Fiz barquinhos de brinquedo, – te juro – fui botando todos eles naquele rio tão puro. .....................................

Veio vindo a ventania, – te juro – as águas mudam seu brilho, quando o tempo anda inseguro. Quando as águas escurecem, – te juro – todos os barcos se perdem, entre o passado e o futuro. São dois rios os meus olhos, – te juro – noite e dia correm, correm, mas não acho o que procuro. Cecília Meireles

MURMÚRIO Traze-me um pouco das sombras serenas que as nuvens transportam por cima do dia! Um pouco de sombra, apenas, - vê que nem te peço alegria. Traze-me um pouco da alvura dos luares que a noite sustenta no seu coração! A alvura, apenas, dos ares: – vê que nem te peço ilusão. Traze-me um pouco da tua lembrança, aroma perdido, saudade da flor! – Vê que nem te digo – esperança! – Vê que nem sequer sonho – amor! Cecília Meireles

DESPEDIDA Vais ficando longe de mim como o sono, nas alvoradas, mas há estrelas sobressaltadas resplandecendo além do fim. Bebo essas luzes com tristeza, porque sinto bem que elas são o último vinho e o último pão de uma definitiva mesa. E olho para a fuga do mar, e para a ascensão das montanhas, e vejo como te acompanhas, - para me desacompanhar. As luzes do amanhecimento acharão toda a terra igual. – Tudo foi sobrenatural, sem peso do contentamento, sem noções do mal nem do bem, – jogo de pura geometria, que eu pensei que se jogaria, mas não se joga com ninguém. Cecília Meireles

LUA ADVERSA Tenho fases, como a lua. Fases de andar escondida, fases de vir para a rua... Perdição da minha vida! Perdição da vida minha! Tenho fases de ser tua, tenho outras de ser sozinha. Fases que vão e que vêm, no secreto calendário que um astrólogo arbitrário inventou para meu uso. E roda a melancolia seu interminável fuso! Não me encontro com ninguém (tenho fases, como a lua...). No dia de alguém ser meu não é dia de eu ser sua... E, quando chega esse dia, o outro desapareceu... Cecília Meireles

Noções Entre mim e mim, há vastidões bastantes para a navegação dos meus desejos afligidos. Descem pela água minhas naves revestidas de espelhos. Cada lâmina arrisca um olhar, e investiga o elemento que a [atinge. Mas, nesta aventura do sonho exposto à correnteza, só recolho o gosto infinito das respostas que não se [encontram. Virei-me sobre a minha própria existência, e contemplei-a. Minha virtude era esta errância por mares contraditórios, e este abandono para além da felicidade e da beleza. Ó meu Deus, isto é a minha alma: qualquer coisa que flutua sobre este corpo efêmero e [precário, como o vento largo do oceano sobre a areia passiva e [inúmera... Cecília Meireles

Primeiro Motivo da Rosa Vejo-te em seda e nácar, e tão de orvalho trêmula, que penso ver, efêmera, toda a Beleza em lágrimas por ser bela e ser frágil. Meus olhos te ofereço: espelho para a face que terás, no meu verso, quando, depois que passes, jamais ninguém te esqueça. Então, de seda e nácar, toda de orvalho trêmula, serás eterna. E efêmero o rosto meu, nas lágrimas do teu orvalho... E frágil. Cecília Meireles

Improviso do Amor- Perfeito Naquela nuvem, naquela, mando-te meu pensamento: que Deus se ocupe do vento. Os sonhos foram sonhados, e o padecimento aceito. E onde estás, Amor-Perfeito? Imensos jardins da insônia, de um olhar de despedida deram flor por toda a vida. Ai de mim que sobrevivo sem o coração no peito. E onde estás, Amor-Perfeito? Longe, longe, atrás do oceano que nos meus olhos se alteia, entre pálpebras de areia... Longe, longe... Deus te guarde sobre o seu lado direito, como eu te guardava do outro, noite e dia, Amor-Perfeito. Cecília Meireles

Assovio Ninguém abra a sua porta para ver o que aconteceu: saímos de braço dado, a noite escura mais eu. Ela não sabe o meu rumo, eu não lhe pergunto o seu: não posso perder mais nada, se o que houve já se perdeu. Vou pelo braço da noite, levando tudo que é meu: - a dor que os homens me deram, e a canção que Deus me deu. Cecília Meireles

Chorinho Chorinho de clarineta, de clarineta de prata, na úmida noite de lua. Desce o rio de água preta. E a perdida serenata na água trêmula flutua. Palavra desnecessária: um leve sopro revela tudo que é medo e ternura. Pela noite solitária, uma criatura apela para outra criatura. Não há nada que submeta o que Deus nos arrebata segundo a vontade sua... Ai, choro de clarineta! Ai, clarineta de prata! Ai, noite úmida de lua... Cecília Meireles

Campo Campo da minha saudade: vai crescendo, vai subindo, de tanto jazer sem nada. Desvelo mudo e contínuo que vai revestindo os montes e estendendo outros caminhos. Mergulhada em suas frondes, a tristeza é uma esperança bebendo a vazia sombra. Águas que vão caminhando dispersam nos mares fundos mel de beijo e sal de pranto. Levam tudo, levam tudo agasalhado em seus braços. Campo imenso-com meu vulto... E ao longe cantam os pássaros. Cecília Meireles

Explicação O pensamento é triste; o amor, insuficiente; e eu quero sempre mais do que vem nos milagres. Deixo que a terra me sustente: guardo o resto para mais tarde. Deus não fala comigo- e eu sei que me conhece. A antigos ventos dei as lágrimas que tinha. A estrela sobe, a estrela desce... - espero a minha própria vinda. (Navego pela memória sem margens. Alguém conta a minha história e alguém mata os personagens. ) Cecília Meireles

Luar Face do muro tão plana, como sabugueiro florido. O luar parece que abana as ramagens na parede. A noite toda é um zumbido e um florir de vaga-lumes. A boca morre de sede junto à frescura dos galhos. Andam nascendo os perfumes na seda crespa dos cravos. Brota o sono dos canteiros como o cristal dos orvalhos. Cecília Meireles

Madrugada no Campo Com que doçura esta brisa penteia a verde seda fina do arrozal – Nem cílios, nem pluma, nem lume de lânguida lua, nem o suspiro do cristal. Com que doçura a transparente aurora tece na fina seda do arrozal aéreos desenhos de orvalho! Nem lágrima, nem pérola, nem íris de cristal... Com que doçura as borboletas brancas prendem os fios verdes do arrozal com seus leves laços! Nem dedos, nem pétalas, nem frio aroma de anis em cristal. Com que doçura o pássaro imprevisto de longe tomba no verde arrozal! - Caído céu, flor azul, estrela última: súbito sussurro e eco de cristal. Cecília Meireles

Sugestão Sede assim — qualquer coisa serena, isenta, fiel. Flor que se cumpre, sem pergunta. Onda que se esforça, por exercício desinteressado. Lua que envolve igualmente os noivos abraçados e os soldados já frios. Também como este ar da noite: sussurrante de silêncios, cheio de nascimentos e pétalas. Igual à pedra detida, sustentando seu demorado destino. E à nuvem, leve e bela, vivendo de nunca chegar a ser. À cigarra, queimando-se em música, ao camelo que mastiga sua longa solidão, ao pássaro que procura o fim do mundo, ao boi que vai com inocência para a morte.

Sede assim qualquer coisa serena, isenta, fiel. Não como o resto dos homens. Cecília Meireles Epigrama do espelho infiel (A João de Castro Osório) Entre o desenho do meu rosto e o seu reflexo, meu sonho agoniza, perplexo. Ah! pobres linhas do meu rosto, desmanchadas do lado oposto, e sem nexo! E a lágrima do seu desgosto sumida no espelho convexo! Cecília Meireles

Cantar Cantar de beira de rio: Água que bate na pedra, pedra que não dá resposta. Noite que vem por acaso, trazendo nos lábios negros o sonho de que se gosta. Pensamento do caminho pensando o rosto da flor que pode vir, mas não vem Passam luas - muito longe, estrelas - muito impossíveis, nuvens sem nada, também. Cantar de beira de rio: o mundo coube nos olhos, todo cheio, mas vazio. A água subiu pelo campo, mas o campo era tão triste... Ai! Cantar de beira de rio. Cecília Meirelles

INSCRIÇÃO Sou entre flor e nuvem, estrela e mar. Por que havemos de ser unicamente humanos, limitados em chorar? Não encontro caminhos fáceis de andar Meu rosto vário desorienta as firmes pedras que não sabem de água e de ar E por isso levito. É bom deixar um pouco de ternura e encanto indiferente de herança,em cada lugar. Rastro de flor e estrela, nuvem e mar. Meu destino é mais longe e meu passo mais rápido: a sombra é que vai devagar. Cecília Meireles

Metal Rosicler – Poema 26

Mais louvareis a rosa, se prestardes ouvido à fala com que nos descreve a razão de ser bela em manhã breve para a derrota de todas as tardes. Sabereis que ela mesma não se atreve a fazer de seus dons grandes alardes, pois o vasto esplendor de seu veludo e as jóias de seu múltiplo diadema não lhe pertencem: a razão suprema de assim brilhar formosamente tudo, é prolongar na vida o sonho mudo da roseira - de que é fortuito emblema.

Cecília Meireles

Metamorfose

Súbito pássaro dentro dos muros caído, pálido barco na onda serena chegado. Noite sem braços! Cálido sangue corrido. E imensamente o navegante mudado. Seus olhos densos apenas sabem ter sido. Seu lábio leva um outro nome mandado. Súbito pássaro por altas nuvens bebido.

Pálido barco nas flores quietas quebrado. Nunca, jamais e para sempre perdido o eco do corpo no próprio vento pregado.

Cecília Meireles

EPIGRAMA N°5 Gosto da gota d'água que se equilibra na folha rasa, tremendo ao vento. Todo o universo, no oceano do ar, secreto vibra: e ela resiste, no isolamento. Seu cristal simples reprime a forma, no instante incerto: pronto a cair, pronto a ficar - límpido e exato. E a folha é um pequeno deserto para a imensidade do ato. Cecília Meireles

Quinto motivo da rosa Antes do teu olhar, não era, nem será depois, - primavera. Pois vivemos do que perdura, não do que fomos. Desse acaso do que foi visto e amado: - o prazo do Criador na criatura... Não sou eu, mas sim o perfume que em ti me conserva e resume o resto, que as horas consomem. Mas não chores, que no meu dia, há mais sonho e sabedoria que nos vagos séculos do homem. Cecília Meireles

Vento Passaram os ventos de agosto, levando tudo. As árvores humilhadas bateram, bateram com os ramos no [chão. Voaram telhados, voaram andaimes, voaram coisas imensas: os ninhos que os homens não viram nos galhos, e uma esperança que ninguém viu, num coração. Passaram os ventos de agosto, terríveis, por dentro da noite. Em todos os sonos pisou, quebrando-os, o seu tropel. Mas, sobre a paisagem cansada da aventura excessiva -- [sem forma e sem eco, o sol encontrou as crianças procurando outra vez o vento para soltarem papagaios de papel. Cecília Meireles

Pequena Canção Pássaro da lua, que queres cantar, nessa terra tua, sem flor e sem mar? Nem osso de ouvido Pela terra tua. Teu canto é perdido, pássaro da lua... Pássaro da lua, por que estás aqui? Nem a canção tua precisa de ti! Cecília Meireles

Modinha Tuas palavras antigas deixei-as todas, deixei-as, junto com minhas cantigas, desenhadas nas areias. Tantos sóis e tantas luas brilharam sobre essas linhas, das cantigas - que eram tuas - das palavras - que eram minhas! O mar, de língua sonora, sabe o presente e o passado. Canta o que é meu, vai-se embora que o resto é pouco e apagado. Cecília Meireles

Arte de ser feliz (trecho) Houve um tempo em que a minha janela se abria sobre uma cidade que parecia feita de giz. Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco. Era numa época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre homem com um balde, e, em silêncio, ia atirando com a mão uma gota de água sobre as plantas. Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros, e meu coração ficava completamente feliz. As vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor. Outras vezes encontro nuvens espessas. Avisto crianças que vão para escola. Pardais que pulam pelo muro. Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com os pardais. Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar. Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega. Às vezes, um galo canta. Às vezes, um avião passa. Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino. E eu me sinto completamente feliz. Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas, e

outros finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim. Cecília Meireles