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X Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-graduação - SEPesq Centro Universitário Ritter dos Reis X Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-graduação SEPesq 20 a 24 de outubro de 2014 VAMOS AO TRABALHO: UM ESTUDO SOBRE A REPRESENTAÇÃO DO UNIVERSO LABORAL EM LETRAS DE MÚSICAS DE RAUL SEIXAS Éderson Cabral Mestre em Linguística Aplicada Centro Universitário Ritter dos Reis [email protected] Resumo: Neste estudo intencionamos buscar a representação do trabalho por meio de enunciados em produtos culturais, isto é, no gênero discursivo letra de música. O aporte teórico está sob à luz da teoria da linguagem elaborada por Émile Benveniste e a abordagem ergológica do trabalho. Benveniste (1995, p. 32), não só concebe a cultura como meio humano, isto é, tudo o que dá vida às atividades humanas e também forma, sentido e conteúdo, como diz que é pela língua que o homem assimila a cultura, a perpetua e a transforma. A música não só faz parte da trama social, mas também, através de sua significância, mostra amplas conexões culturais de um povo. Nesta proposta, visamos interpretar o(s) sentido(s) da atividade de trabalho que pode(m) estar presente(s) em obras musicais. Assim, selecionamos seis letras compostas por Raul Seixas em parceria com outros compositores, no período de 1971 a 1988, que possuem os seguintes significantes lexicais: “trabalho” e “emprego”. Este é um estudo que visa fazer emergir indicadores sobre universo das atividades industriosas que possam ser aplicáveis e transferíveis a outras áreas de conhecimento e mostrar que a teoria da linguagem pela perspectiva de Benveniste pode promover interfaces com os estudos da cultura e do trabalho. 1 Introdução Este trabalho nasce não somente do gosto pela música brasileira, mas também do gosto pela linguagem e pela dramática do universo do trabalho. A música está presente no nosso cotidiano, seja na rádio, na internet, na trilha sonora de um filme, na abertura de grandes eventos. Ao ministrar um minicurso intitulado “As manifestações da linguagem no trabalho”, no IFRS, e uma disciplina no PRONATEC, “Acolhimento, orientação profissional e cidadania”, coletei diversas músicas, tanto para ilustrar os conceitos da abordagem ergológica, quanto para discutir e ressignificar o conceito de trabalho com os participantes. A coleta de músicas ganhou uma proporção maior que esperava: percebi que poderia se construir um corpus de investigação, pois havia dezenas de músicas de vários compositores e intérpretes que tinham como temática o universo laboral. Na epóca, estava refletindo sobre enunciados presentes na nossa sociedade que revelam uma falta de sentido na esfera laboral, pois, geralmente, tende-se pensar e viver o trabalho relacionando-o diretamente com

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Centro Universitário Ritter dos Reis

X Semana de Extensão, Pesquisa e Pós-graduação SEPesq – 20 a 24 de outubro de 2014

VAMOS AO TRABALHO: UM ESTUDO SOBRE A

REPRESENTAÇÃO DO UNIVERSO LABORAL EM LETRAS DE MÚSICAS DE RAUL SEIXAS

Éderson Cabral Mestre em Linguística Aplicada Centro Universitário Ritter dos Reis [email protected]

Resumo: Neste estudo intencionamos buscar a representação do trabalho por meio de enunciados em produtos culturais, isto é, no gênero discursivo letra de música. O aporte teórico está sob à luz da teoria da linguagem elaborada por Émile Benveniste e a abordagem ergológica do trabalho. Benveniste (1995, p. 32), não só concebe a cultura como meio humano, isto é, tudo o que dá vida às atividades humanas e também forma, sentido e conteúdo, como diz que é pela língua que o homem assimila a cultura, a perpetua e a transforma. A música não só faz parte da trama social, mas também, através de sua significância, mostra amplas conexões culturais de um povo. Nesta proposta, visamos interpretar o(s) sentido(s) da atividade de trabalho que pode(m) estar presente(s) em obras musicais. Assim, selecionamos seis letras compostas por Raul Seixas em parceria com outros compositores, no período de 1971 a 1988, que possuem os seguintes significantes lexicais: “trabalho” e “emprego”. Este é um estudo que visa fazer emergir indicadores sobre universo das atividades industriosas que possam ser aplicáveis e transferíveis a outras áreas de conhecimento e mostrar que a teoria da linguagem pela perspectiva de Benveniste pode promover interfaces com os estudos da cultura e do trabalho.

1 Introdução Este trabalho nasce não somente do gosto pela música brasileira, mas

também do gosto pela linguagem e pela dramática do universo do trabalho. A música está presente no nosso cotidiano, seja na rádio, na internet, na trilha sonora de um filme, na abertura de grandes eventos. Ao ministrar um minicurso intitulado “As manifestações da linguagem no trabalho”, no IFRS, e uma disciplina no PRONATEC, “Acolhimento, orientação profissional e cidadania”, coletei diversas músicas, tanto para ilustrar os conceitos da abordagem ergológica, quanto para discutir e ressignificar o conceito de trabalho com os participantes. A coleta de músicas ganhou uma proporção maior que esperava: percebi que poderia se construir um corpus de investigação, pois havia dezenas de músicas de vários compositores e intérpretes que tinham como temática o universo laboral.

Na epóca, estava refletindo sobre enunciados presentes na nossa sociedade que revelam uma falta de sentido na esfera laboral, pois, geralmente, tende-se pensar e viver o trabalho relacionando-o diretamente com

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a troca monetária1. Desse modo, não é raro escutarmos: “Tempo é dinheiro”. Enunciado óbvio, entretanto difícil de apreender: nossas vidas são feitas de tempo e do que, de fato, fazemos com ele. Há outro enunciado que escutamos: “O dinheiro não compra a felicidade”. Esse dito cotidiano parece irrelevante, mas não é; principalmente, quando pensamos sob este ângulo: a satisfação na vida se eleva com cada aumento de renda; da mesma forma, a angústia ascende com a renda baixa.

Nesses enunciados citados, circunscritos no tema trabalho, vemos uma relação entre tempo, dinheiro e felicidade. No entanto, neste artigo, intencionamos refletir sobre a representação do trabalho por meio de enunciados em produtos culturais: letras de músicas, pois elas não só fazem parte da trama social, mas também, através de sua significância, mostram amplas conexões culturais de um povo. Para isso, selecionamos seis letras compostas por Raul Seixas em parceria com outros compositores, no período de 1971 a 1988, que possuem os seguintes significantes lexicais: “trabalho” e “emprego”. 2 Cultura

A relação entre linguagem, trabalho e cultura está ligada ao nosso cotidiano, tanto no âmbito da vida privada, quanto da vida social, pois nós, seres humanos, agimos tanto pela linguagem, instância comum a todas as áreas, assim como em nossas atividades laborais, imersos na cultura, a qual, para Yves Schwartz (2008), filósofo francês,

não é o privilégio das elaborações linguísticas sábias, mas que se enriquece de todas as transformações geradas pela actividade humana. [...] O desafio é que cada um conheça o contributo da cultura-patrimônio da humanidade mas que se reconheça também como criador de cultura.

Somos criadores de cultura e, ainda, poderíamos acrescentar que também somos consumidores de produtos culturais, pois, de fato, experienciamos relações de interação continua com a cultura.

Émile Benveniste, linguista francês, concebe a cultura como meio humano, isto é, tudo o que dá vida às atividades humanas e também forma, sentido e conteúdo. Para ele,

a cultura, é um fenômeno inteiramente simbólico, pois define-se como um conjunto muito complexo de representações, organizadas por um código de relações e de valores, ou seja, tudo isso de que o homem, onde quer que nasça, será impregnado no mais profundo de sua consciência e que dirigirá o seu comportamento em todas as formas da sua atividade (BENVENISTE,1995, p. 32)

1 Assim, deixamos de atingir a complexidade inerente das atividades laborais, pois a sociedade - de modo generalizado – experiência a troca de tempo de existência por alguma remuneração.

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Nessa perspectiva, a cultura é um universo de símbolos que se integram em uma determinada estrutura. Benveniste (1995, p.32), diz que é pela língua que o homem assimila a cultura, a perpetua e transforma. Dessa maneira, cada cultura emprega um aparato específico de símbolos pelo qual cada sociedade se identifica. A música brasileira, aqui não a conceituo propositalmente e a deixo em sua amplitude, é um símbolo nacional e mostra diversas facetas do nosso povo e, como símbolo, ela prende o elo vivo entre o homem, a língua e a cultura. É nesse sentido que se direciona nossa reflexão. 3 Trabalho

Tanto em estudos anteriores (TEIXEIRA e CABRAL, 2009; 2010), quanto nesta proposta, abordamos o conceito de trabalho na perspectiva da atividade, ou seja, como um depósito de energia, como um impulso de vida experienciado no tempo (SCHWARTZ, 2008). Na atividade de trabalho, há uma dimensão dramática, capaz de transformar a relação com o meio e com as pessoas, e que expressa, talvez melhor do que outra forma, o agir humano (SCHWARTZ, 2011, p. 133).

Portanto, vemos o trabalho além de uma situação ordinária, na qual se tem, como obrigação, o desenvolvimento de alguma atividade que preencha o tempo de nossas vidas, ou seja, muito do tempo de nossas vidas é destinado à alguma atividade, na qual se despende grande atenção à remuneração. De acordo com Yves Schwartz (2011), nossa “cultura moderna tem a tendência a limitar o trabalho ao que foi desenhado e circunscrito pela Revolução Industrial e pelo assalariamento: a porção de tempo trocado por remuneração”.

De certa forma, somos muito conscientes do nosso status social e tentamos melhorá-lo, manter-nos, chegar ao topo, ou a uma situação melhor pelo rota das atividades. Uma pessoa, através do seu uso de si2, desenvolve-se nos esferas de suas atividades cotidianas e declara o seu estado de (in)satisfação, ou a busca pelo objeto que está procurando.

É possível dizer que as pessoas são efeito de sua atividade e isso pode estar marcado em enunciados cotidianos expressos na cultura, porque a linguagem passa por e expõem experiências (por experiências de vida e de trabalho). 4 Linguagem

A linguagem3 é um meio privilegiado, com o qual podemos entender e desbravar o universo do trabalho, pois ela passa por experiências subjetivas que podem revelar aspectos velados da nossa cultura (TEIXEIRA; CABRAL,

2 Uso de si: todo o trabalho, porque é o lugar de um problema, apela um uso de si. Isto quer dizer que não há simples execução mas uso, convocação de um indivíduo singular com capacidades bem mais amplas que as enumeradas pela tarefa (DURRIVE; SCHWARTZ, 2008). 3 Pela concepção de Émile Benveniste (1995).

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2009). Assim, vemos o ser humano, inserido no mundo pela linguagem e como ser cognoscente, buscando significado em suas atividades. Por essa busca, as pessoas agem e enunciam nas mais variadas instâncias. Através da linguagem, somos capazes de oferecer representações do que nos falta, do que nos angustia, do que nos deprecia, do que nos valoriza, do que nos explora, do que nos reconhece, etc. Em outras palavras, pela via dos enunciados, tentamos encontrar o que nos falta ou o que almejamos ao desenvolver nossas atividades. Assim, esses fatos sociais podem encontrar expressão em produtos culturais. Logo, nesta proposta, visamos interpretar o(s) significado(s)/sentido(s) da atividade de trabalho que pode(m) estar presente(s) no gênero discursivo específico letras de música em nossa cultura. 5 Letras de músicas: produto cultural

As letras de música são mais do que um meio de expressão artística, pois remetem e evidenciam diversas temáticas, em diferentes épocas. Além disso, as letras de música, assim como outros produtos culturais, não são neutras, tampouco descompromissadas, uma vez que podem servir para propagação de denúncias, ideias, apoios, apologias, críticas e, assim, de maneira explícita ou simbólica, tendem a mostrar a (dis)posição dos seus compositores e de parte da sociedade diante de certos temas como o trabalho.

As letras de música podem ser usadas de modo político e ideológico; exemplo disso é que, houve, em determinado momento de nossa história, censuras e perseguições a diversos intérpretes e compositores. Logo, elas podem mostrar fatos de ordem econômica, política, social e cultural.

Dessa forma, vemos uma oportunidade de pesquisa, a qual pode revelar como se concebe a atividade de trabalho – experiência universal em termos gerais, mas com caraterísticas muito específicas vinculadas com a cultura em que está inserida. Esses enunciados podem mostrar um percurso de (in)satisfação, (des)ilusão, etc., pois as atividades laborais não são vivenciadas somente de modo singular e subjetivo. O produto cultural pode simbolizar a atividade trabalho e evidenciar as suas dramáticas, isto é, pode reapresentar/representar a experiência laboral, as dificuldades, as resistências, as lutas, as vitórias; enfim, fatores que fazem parte do universo do trabalho, que é objeto de pesquisa de diversas áreas do conhecimento. 6 Procedimentos metodológicos

Há muito tempo prestamos atenção nas músicas que estão presentes no nosso cotidiano que trazem como temática o trabalho. Desse modo, criamos um nicho de análise de situações e experiências laborais para ser pesquisada. Neste estudo, fizemos um recorte bem específico: selecionamos um compositor (Raul Seixas); um período de tempo (1971-1988), relacionando-o com a produção musical e não com o momento histórico, e um gênero musical (Rock).

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O corpus deste estudo é constituído a partir de coletas de letras de músicas que apresentam os significantes lexicais “trabalho” e “emprego”. A escolha pelas letras de músicas compostas por Raul Seixas com outros compositores se dá pela importância de sua vasta obra no âmbito nacional e pelo enorme sucesso alcançado durante sua trajetória artística.

TABELA 1: Músicas selecionadas

Música Álbum Ano Intérprete(s) Compositor(es) Significante Lexical

Estou voltando pra casa

Compacto 1971 Pedro Paulo Raulzito Seixas/Pedro Paulo

Trabalho

Ouro de tolo

Krig, ha, bandolo!

1973 Raul Seixas Raul Seixas Emprego

Meu amigo Pedro

Raul – o início, o fim e o meio

1976 Raul Seixas Raul Seixas Trabalho

Quando você crescer

Há dez mil anos atrás

1976 Raul Seixas Raul Seixas / Paulo Coelho / Jay Vaquer

Emprego

Tá na hora Mata virgem 1978 Raul Seixas Raul Seixas/Paulo Coelho

Trabalho

A lei A pedra do gênesis

1988 Raul Seixas Raul Seixas Trabalhar

Fonte: Elaborado pelo autor, com base na pesquisa realizada.

7 Exercício de análise - refletindo sobre as letras A partir da leitura interpretativa das letras, realizamos uma busca com

objetivo de ver qual é o sentido do trabalho construído nas letras. Não temos a intenção de delimitar padrões generalizáveis, mas de procurar como está representado o universo do trabalho nesse produto cultural. Toda essa representatividade do trabalho nas letras das músicas está submetida a visão de mundo do sujeito enunciador, porque “depois de Benveniste, sabemos que o discurso é sempre o ponto de vista de um sujeito, seja ele individual ou social” (FIORIN, 2013, p. 57).

Na primeira letra, “Estou voltando pra casa”, traz a concepção de trabalho desde a perspectiva de um sujeito que possui uma rotina de trabalho que o cansa e o faz refletir. Certo dia ele descobre que a esposa o deixa para ir viver uma vida melhor.

Estou voltando para casa Minha camisa amassada Mais um dia de trabalho que afinal chegou ao fim Estou voltando para casa Já comprei o meu jornal

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Meu café eu já tomei Todo dia é sempre assim E o ônibus não para de correr Encosto e começo a pensar Nas cenas que eu costumava ver Meu cão não vai latir quando eu chegar Venho por todo o caminho Relembrando em pedacinho Quando eu chegava em casa ela sempre estava só No portão me esperando Ansiosa me aguardando De minha mão ela tomava minha pasta e paletó Lembro quando um certo dia Bem cansado eu chegava Sem saber que me esperava um coisa bem pior Seu recado eu encontrei Quase não acreditei Dizendo que ia embora pra viver vida melhor Agora falta pouco pra chegar Mais hoje nem o cão vai latir Pois já não há ninguém a me esperar O portão sozinho eu vou abrir Vou chegar bem devagar Pendurar meu paletó E fazer meu jantar

Na segunda letra, “Ouro de tolo”, o sentido do trabalho é construído a partir de um prisma de um sujeito decepcionado com o resultado. A remuneração, o reconhecimento, o sucesso, o poder aquisitivo, a moradia não encontram significado para ele. O sujeito enunciador em um tom irônico enuncia que foi tão fácil conseguir todos esses aspectos elementares de cidadania e que ele precisa de novas perspectivas, pois apesar de todo o aspecto positivo alcançado, indiferente da profissão e da contribuição de cada cidadão no quadro social, ele se recusa a esperar a morte, segundo seu ponto de vista, destino certo para aquele que se identifica apenas com o trabalho.

Eu devia estar contente Porque eu tenho um emprego Sou um dito cidadão respeitável E ganho quatro mil cruzeiros Por mês Eu devia agradecer ao Senhor Por ter tido sucesso Na vida como artista Eu devia estar feliz Porque consegui comprar Um Corcel 73 Eu devia estar alegre E satisfeito

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Por morar em Ipanema Depois de ter passado fome Por dois anos Aqui na Cidade Maravilhosa Ah!Eu devia estar sorrindo E orgulhoso Por ter finalmente vencido na vida Mas eu acho isso uma grande piada E um tanto quanto perigosa Eu devia estar contente Por ter conseguido Tudo o que eu quis Mas confesso abestalhado Que eu estou decepcionado Porque foi tão fácil conseguir E agora eu me pergunto "E daí?" Eu tenho uma porção De coisas grandes pra conquistar E eu não posso ficar aí parado Eu devia estar feliz pelo Senhor Ter me concedido o domingo Pra ir com a família No Jardim Zoológico Dar pipoca aos macacos Ah!Mas que sujeito chato sou eu Que não acha nada engraçado Macaco, praia, carro Jornal, tobogã Eu acho tudo isso um saco É você olhar no espelho Se sentir Um grandessíssimo idiota Saber que é humano Ridículo, limitado Que só usa dez por cento De sua cabeça animal E você ainda acredita Que é um doutor Padre ou policial Que está contribuindo Com sua parte Para o nosso belo Quadro social Eu é que não me sento No trono de um apartamento Com a boca escancarada Cheia de dentes Esperando a morte chegar [...]

Na terceira letra selecionada, “Meu amigo Pedro”, há um antagonismo entre dois interlocutores. Pedro, segundo o sujeito enunciador, é um homem

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que se queixa da solidão, não consegue dimensionar o lugar do trabalho em sua vida, mas pode tentar ensinar ao amigo, que não trabalha, pelo menos não do mesmo jeito que Pedro; que a vida é séria e relaciona como uma guerra, a qual é dura. Pedro critica o amigo, o chama de vagabundo, não o deixa viver sua loucura e há uma nostalgia entre eles, pois os dois um dia pensaram sobre o mundo, mas seguiram caminhos diferentes. Embora Pedro trabalhe, é chamado de pobre, mas não apenas por usar sempre o mesmo terno, e sim por ter escolhido um caminho que não tem coração, que crítica aquele que aderiu a outra forma de viver, uma forma diferente do sistema tradicional. Pedro tentará ensinar algo, mas é mais provável que se cale.

Muitas vezes, Pedro, você fala Sempre a se queixar da solidão Quem te fez com ferro, fez com fogo, Pedro É pena que você não sabe não Vai pro seu trabalho todo dia Sem saber se é bom ou se é ruim Quando quer chorar vai ao banheiro Pedro as coisas não são bem assim Toda vez que eu sinto o paraíso Ou me queimo torto no inferno Eu penso em você meu pobre amigo Que só usa sempre o mesmo terno Pedro, onde você vai eu também vou Mas tudo acaba onde começou Tente me ensinar das tuas coisas Que a vida é séria e a guerra é dura Mas se não puder, cale essa boca, Pedro E deixa eu viver minha loucura Lembro, Pedro, aqueles velhos dias Quando os dois pensavam sobre o mundo Hoje eu te chamo de careta, Pedro E você me chama vagabundo Todos os caminhos são iguais O que leva à glória ou à perdição Há tantos caminhos tantas portas Mas somente um tem coração E eu não tenho nada a te dizer Mas não me critique como eu sou Cada um de nós é um universo, Pedro Onde você vai eu também vou Pedro, onde você vai eu também vou Mas tudo acaba onde começou É que tudo acaba onde começou Meu amigo Pedro

Na quarta letra, “Quando você crescer”, através de uma pergunta, o

sujeito enunciador descontrói todo um discurso de esperança e conquistas na vida adulta. O sujeito enunciador afirma que as perguntas não valem nada e

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que sempre se cairá na mesma jogada: um emprego e uma namorada. O sujeito que enuncia está numa plataforma negativa, pois ele afirma que está cada vez mais difícil de se vencer e relata que há pessoas que nasceram para perder e não são importantes, para elas é melhor sonhar do que conseguir atingir a realização. A visão de mundo apresentada pelo sujeito enunciador é que para as pessoas menos importantes, quando crescerem terão apenas um emprego, um relacionamento, uma pequena casa e uma carro pago a prestação; a aventura de suas vidas será dormir mais tarde no final de semana; estabelecer uma família e pagar as contas direito, mesmo que essas limatações doam no peito.

O que que você quer ser quando você crescer? Alguma coisa importante Um cara muito brilhante Quando você crescer Não adianta, perguntas não valem nada É sempre a mesma jogada Um emprego e uma namorada Quando você crescer E cada vez é mais difícil de vencer Pra quem nasceu pra perder Pra quem não é importante É bem melhor sonhar do que conseguir Ficar em vez de partir Melhor uma esposa ao invés de uma amante Uma casinha, um carro à prestação Saber de cor a lição Que no bar não se cospe no chão Quando você crescer Alguns amigos da mesma repartição Durante o fim-de-semana Se vai mais tarde pra cama Quando você crescer E no subúrbio, com flores na sua janela Você sorri para ela E dando um beijo lhe diz: Felicidade é uma casa pequenina e amar uma menina E não ligar pro que se diz. Belo casal que paga as contas direito bem comportado no leito Mesmo que doa no peito Quando você crescer E o futebol te faz pensar que no jogo Você é muito importante Pois o gol é o seu grande instante Quando você crescer Um cafézinho mostrando o filho pra vó Sentindo o apoio dos pais

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Achando que não está, só Quando você crescer

Na quinta letra selecionada, “Tá na hora”, o sujeito que enuncia tem

uma visão determinista do trabalho. O trabalho para ele é um atraso, pois se trabalha com o objetivo de se aponsentar, pagar seguro de vida para não se incomodar. Mas a vida inteira de trabalho o gratifica apenas com a velhice, com os remédios que deve tomar. De certo modo, esse sujeito não relaciona a vida com liberdade, pelo contrário, relaciona o trabalho a morte, sem experiências gratificantes e significativas.

É o conto do sábio Chinês! Andei durante dez anos fazendo planos para falar Com seres vindo do espaço com a resposta para me dar Porém, quando estava pronto para o contato, minha pequena, Me disse você vai ver tudo no cinema. E onde está a vida? Onde está a experiência? Já te entregam tudo pronto, sempre em nome da ciência, sempre em troca da vivência E onde tá a vida? E a minha independência? Depois de muita espera quem eu queria quis me encontrar Tomei um banho descente, escovei meus dentes para lhe beijar Guardei lugar no motel pra lua de mel que eu sempre esperei Porém na hora H eu não levantei Tá na hora do trabalho Tá na hora de ir para casaTá na hora da esposa e enquanto eu vou pra frente toda minha vida atrasa Eu tenho muita paciência Mas a minha independência Durante a vida inteira eu trabalhei pra me aposentar Paguei seguro de vida para morrer sem me aporrinhar Depois de tanto esforço patrão me deu caneta de ouro Dizendo enfia no bolso e vá se virar Tá na hora da velhice Tá na hora de deitar Tá na hora da cadeira de balanço, do pijama, do remédio pra tomar Oh! divina providência E a minha independência Ah! e minha vida e minha vida! Onde é que está? Onde é?

Por fim, a sexta letra selecionada, “A lei”, o sujeito que enuncia lista uma

série de direitos que as pessoas em geral deveriam ter. Em relação ao trabalho, esse sujeito exige o direito de trabalhar quando quiser e como quiser, sem as diretrizes e normas sociais convencionais. Nessa letra, a morte não é uma consequência do trabalho ao longo dos anos, mas um direito. As pesssoas

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morrerão, mas não em decorrência daquilo que não queriam ter feito e fizeram por obrigações sociais e pela simples busca da manutenção de suas necessidades. Nessa letra, percebemos que o sujeito enunciador traz como ápice o amor e não as conquistas resultantes do trabalho, o qual recebe a conotação de escravidão.

Todo homem tem direito de pensar o que quiser Todo homem tem direito de amar a quem quiser Todo homem tem direito de viver como quiser Todo homem tem direito de morrer quando quiser [...] A lei do forte Essa é a nossa lei e a alegria do mundo Faz o que tu queres há de ser tudo da lei Fazes isso e nenhum outro dirá não Pois não existe Deus se nao o homem Todo o homem tem o direito de viver a não ser pela sua própria lei Da maneira que ele quer viver De trabalhar como quiser e quando quiser De brincar como quiser Todo homem tem direito de descansar como quiser De morrer como quiser [...]

8 Conclusões Essas letras que trouxemos para esse exercício de análise, faz parte de

um grande repertório de letras de músicas brasileiras que “exploram” a temática do universo do trabalho. Nessas seis letras, o sentido do trabalho é construído de uma forma negativa e limitadora do ser humano. Nelas há um debate de valores que coloca em oposição a realização pessoal com os efeitos colaterais de uma vida dedicada ao trabalho. A satisfação no trabalho é questionada nessas letras. Não há um contentamento e a morte aparece como uma entidade finalizadora de uma vida seca.

Há muitos limites para se desbravar ainda em relação ao reportório de músicas que trazem a temática do trabalho. Percebemos que há muito a ser analisado tanto na dimensão dialógica, quando na dimensão enunciativa, pois os enunciados presentes nos produtos culturais estão ou em oposição ou em correlação a muitos discursos do cotidiano. Análises mais aprofundadas podem contribuir para mostrar uma resposta a cultura laboral instituída por diferentes sistemas politicos e sociais.

Por fim, em estudos posteriores, a partir das letras de músicas, poderemos apontar indicadores de bem-estar psicossocial e um panorama de valores e perspectivas relacionados ao trabalho como atividade.

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Referências

BENVENISTE, Émile. Problemas de Linguística Geral. São Paulo: Pontes.1995.387 p.

DURRIVE, L.; SCHWARTZ, Y. Glossário da Ergologia. Laboreal, Lisboa, volume IV, nº1, p. 23-28, 2008.

FIORIN, José Luiz. COMUNICAÇÃO E ANÁLISE DO DISCURSO. 1ª Edição. São Paulo: Contexto, 2013. Capítulo II: ENUNCIAÇÃO E COMUNICAÇÃO, p.45-77.

SCHWARTZ, Yves. Conceituando o trabalho, o visível e o invisível. Revista Trabalho, Educação e Saúde. Rio de Janeiro, volume 9, suplemento 1, p. 19-45, 2011.

TEIXEIRA, Marlene; CABRAL, Éderson. Linguagem, subjetividade e atividade de trabalho. Caderno IHU idéias. São Leopoldo, n°132, 2010. 31 p.

_______;_______. Linguística da enunciação e ergologia: um diálogo possível. Educação UNISINOS. São Leopoldo, volume 13, n° 3, p. 236-245, setembro/dezembro 2009.