12

Click here to load reader

Variação fonológica: o indivíduo e o léxico como atratores na perspectiva dos sistemas complexos

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Variação fonológica: o indivíduo e o léxico como atratores na perspectiva dos sistemas complexos

627

Variação fonológica: o indivíduo e o léxico como atratoresna perspectiva dos sistemas complexos

Marco Antônio de Oliveira

AbstractIn this paper I go back to a case of phonological variation which occurs in Brazilian Portuguese (BP) and involves the phonetic realization of unstressed mid vowels. In BP one finds a maximum contrast between vowels in stressed position, with a total of seven vowels: {a, , e, i, , o, u}. In unstressed positions, however, this maximum contrast fades away and a phonetic variation takes place involving the features [ATR] and [HIGH]. This case of variation has resisted analyses cast in a neogrammarian spirit, mostly for the lack of any clear conditioning effects for the variants. Also, analyses based on the OT framework have failed to provide an elegant account for it. This paper revisits this case and tries to offer a new perspective to deal with phonological variation in language. I intend to show, on the basis of general principles of the language, that linguistic variation should be located at an abstract level and that it has the status of an epiphenomenon. Also, I propose that variation should be seen as the manifestation of emergences triggered by strange attractors which operate inside the limits of a phase space. In short, I argue that the case I examine here is an evidence to conceive language as a complex system.

Keywords : attractors, Brazilian Portuguese, complex systems, emergences, phase space, phonological variation

1. Introdução

Neste texto remeto minhas considerações a um caso de variação linguística que ocorre no português brasileiro e que, em minha opinião, levanta algumas questões interessantes com relação à descrição e à explicação da variação fonológica. Além disso, pretendo mos-trar, num exemplo concreto, como uma concepção de linguagem em termos de um sistema adaptativo complexo pode acomodar melhor os fatos a serem examinados.

2. Os fatos

No português brasileiro, podemos observar um contraste máximo entre as vogais orais na posição tônica, num total de sete vogais. Contudo, nas posições átonas, esse contraste máximo se desfaz, e observamos aí uma flutuação fonética com relação aos traços [ATR] e [ALTO], como se vê em (1).

(1) a. Sílaba tônica {, E, e, i, , , } b. Sílaba pretônica e pós-tônica não final {, E, e, i, i, , , , u} c. Sílaba pós-tônica final {, i, }

Page 2: Variação fonológica: o indivíduo e o léxico como atratores na perspectiva dos sistemas complexos

Marco Antônio de Oliveira628

Vários trabalhos interessantes já foram escritos sobre essa questão e certamente merecem ser considerados. Conforme se pode observar em (1), as vogais médias pretônicas podem variar entre uma média aberta, uma média fechada e uma vogal alta. Consideran- do-se os fatos da variedade de Belo Horizonte, podemos pensar em dois processos dife-rentes para dar conta dessa flutuação fonética: um processo de harmonia vocálica (HV), responsável pela ocorrência de vogais médias pretônicas abertas, sob certas condições, e um processo de redução vocálica (RV), responsável pela ocorrência de vogais altas. Os fatos de (2), a seguir, exemplificam casos de flutuação fonética encontrados na comunidade de fala de Belo Horizonte:

(2) e, HV, RV, Boletim OK * OK

Dedal OK * OK

Moderno OK OK> OK

Colégio OK OK> OK

Legítimo OK * OK

Como se pode observar, cada uma das formas de (2) apresenta, pelo menos, duas pos-sibilidades de pronúncia, configurando, portanto, um caso de variação. Duas das formas em (2), moderno e colégio, apresentam uma terceira possibilidade, resultante do processo de HV. Na verdade, esta é a pronúncia mais frequente. Nesses dois casos, assim como em outros, o processo de HV parece ser regulado pela presença de uma vogal média aberta na sílaba tônica. É exatamente esse contexto que irá favorecer, entre outras, pronúncias como as de (3)

(3) a. mca,

b. pba,

c. fba,

d. sla

O que esses fatos nos mostram é que os falantes da variedade de português de Belo Horizonte são capazes de atribuir duas (ou mais) formas fonéticas diferentes a uma mesma categoria fonêmica. As palavras listadas em (2) pertencem, no que se refere à vogal pretô-nica, às classes e e . As evidências que podemos dar para isso são, basicamente, três:

1.º A ocorrência de e, como uma das variantes possíveis;

2.º O fato de algumas variedades do português só admitirem, em casos como esses, as formas e, , e

Page 3: Variação fonológica: o indivíduo e o léxico como atratores na perspectiva dos sistemas complexos

Variação fonológica: o indivíduo e o léxico como atratores na perspectiva dos sistemas complexos 629

3.º O fato de e, não serem alternantes possíveis para as pretônicas em palavras como bigode, sinuca ou piada, todas elas da classe pretônica i e impossíveis, em qualquer variedade do português brasileiro, como *begode, *senuca e *peada, assim como em churrasco, guloso ou fuzarca, todas elas da classe pretô-nica e impossíveis, em qualquer variedade do português brasileiro, como

*chrrasco, *gloso e *fzarca.

Podemos dizer, portanto, que estamos diante de um caso legítimo de variação lin-guística e, se considerarmos o que ocorre na comunidade como um todo, realmente vamos encontrar as três variantes para cada uma das vogais médias pretônicas apontadas. Este caso já foi tratado em vários trabalhos anteriores, numa perspectiva variacionista, na tentativa de revelar possíveis condicionamentos estruturais e não estruturais para esta alternância (cf. Bisol (1981), Viegas (1987, 2001), Silva (1989), Oliveira (1991, 2006), Lee e Oliveira (2003, 2006), Oliveira e Lee (2006) entre outros).

Mas há pelo menos dois fatos a serem observados aqui: primeiro, a presença de uma vogal média aberta na sílaba tônica não garante que todos os falantes produzam uma média aberta na sílaba pretônica; (v. os casos de colégio e moderno); segundo, há palavras que contêm uma vogal média aberta na sílaba tônica e que nunca são pronunciadas com uma vogal pretônica aberta por nenhum falante da comunidade de fala de Belo Horizonte. É o caso de palavras como as de (4), todas elas com RV na sílaba pretônica:

(4) a. mca (enquanto mca não ocorre)

b. J (enquanto J não ocorre)

c. tte (enquanto tte não ocorre)

d. bca (enquanto bca não ocorre)

Ou seja, o processo de harmonia vocálica é um tanto problemático. Contudo, inde-pendentemente dos problemas que possam cercar a HV, que deixamos de lado por hora, há ainda outros fatos mais intrigantes, relacionados ao processo de RV, conforme podemos ver em (5):

(5) e, i,RV

corisco * OK coriza OK * boliche OK * bolacha * OK folia * OK fobia OK *

Page 4: Variação fonológica: o indivíduo e o léxico como atratores na perspectiva dos sistemas complexos

Marco Antônio de Oliveira630

mochila * OK modista OK * pomada * OK pomar OK * toalha * OK toada OK * tesoura * OK tesouro OK * vestido * OK vestígio OK * semestre * OK semana OK *

entre outrasO que a lista (5) nos mostra, com base nas pronúncias categóricas para estas palavras,

é que é muito difícil, senão impossível, prever por regra a ocorrência de RV na variedade de português de Belo Horizonte. Aparentemente, não há variação se considerarmos as pala-vras individualmente, e não as vogais envolvidas e seus respectivos contextos. As formas não ocorrentes na variedade de Belo Horizonte são, contudo, compreensíveis para estes mesmos falantes. Na verdade, as formas que não são produzidas pelos falantes de Belo Horizonte ocorrem em outras variedades do português brasileiro.

Mas como explicar o fato de que certas palavras exibem, categoricamente, RV, enquanto outras, não? Como explicar o fato de que a HV não atinge todas as palavras que, em princípio, seriam suscetíveis à sua aplicação? Como explicar o fato de que alguns indiví-duos produzem formas resultantes da HV, enquanto outros, não? A partir das considerações feitas sobre as listas em (2) e (5), podemos ter, – e de fato temos –, as seguintes situações mostradas em (6):

(6) a. Falante A: bulitSi), dZidw, mçdE˙nu RV, RV, HV

b. Falante B: boletSi), dedaw, mçdE˙nu Faith,Faith, HV

c. Falante C: bulitSi), dedaw, mçdE˙nu RV, Faith, HV

d. Falante D: bulitSi),dZidw, mudE˙nu RV, RV, RV

Por que a escolha do processo fonológico varia de acordo com o indivíduo e com o item lexical? Se as possibilidades de pronúncia não são sempre múltiplas, quando obser-vamos falantes diferentes e itens lexicais diferentes, não seremos levados a pensar que o comportamento do indivíduo é mais homogêneo do que o comportamento da comunidade de fala? Casos como esse são problemáticos para qualquer abordagem fonológica que se

Page 5: Variação fonológica: o indivíduo e o léxico como atratores na perspectiva dos sistemas complexos

Variação fonológica: o indivíduo e o léxico como atratores na perspectiva dos sistemas complexos 631

baseie em alguma versão da noção de opcionalidade, uma vez que outputs múltiplos, por indivíduo, ou são inexistentes, ou são reduzidos. E são problemáticos também para uma análise variacionista tradicional, em termos de regras probabilísticas baseadas no comporta-mento da comunidade de fala, e que focalize os sons e não as palavras.

Neste ponto, podemos nos perguntar qual é o cenário que temos pela frente. Resu-midamente, temos o seguinte cenário se focalizarmos o caso das vogais médias pretônicas conforme os dados da variedade de português de Belo Horizonte:

1. As vogais médias pretônicas podem aparecer em três formas fonéticas distintas: média aberta, média fechada ou alta, configurando um caso de variação;

2. A variante média aberta e a variante alta resultam, respectivamente, dos processos de HV e RV;

3. Quando as palavras individuais são focalizadas, observa-se que alguns itens lexicais apresentam variação, enquanto outros só aparecem numa das três formas possí-veis;

4. Para os itens lexicais que apresentam variação, alguns falantes optam, categorica-mente, por uma variante, enquanto outros falantes optam, categoricamente, por outra variante;

5. Não obstante as opções lexicais e as opções individuais, essa situação não coloca nenhum problema de compreensão para a totalidade dos falantes da comunidade de fala de Belo Horizonte.

Fatos como esses que ocorrem na variedade de Belo Horizonte irão se repetir, em sua essência, mas não necessariamente em seus detalhes, em outras variedades do português brasileiro. E, além disso, vão colocar alguns problemas interessantes para uma análise lin-guística.

Um deles se refere ao status fonêmico dessas vogais. Que fonema temos aí? De acordo com análises consagradas do português brasileiro, como a de Câmara Jr. (1970), na posição pretônica temos ee . As três evidências que apresentei anteriormente confirmam a proposta de Câmara Jr.. Mas, como nos diz Câmara Jr. (1970: 34), as oposições entre ee i, por um lado, e, por outro lado, entre /o/ e /u/, na posição pretônica, “[...] ficam preju-dicadas pela tendência a harmonizar a altura da vogal pretônica com a da vogal tônica [...]”. De fato, muitos dados do português de Belo Horizonte confirmam a afirmação que Câmara Jr. faz para o dialeto do Rio de Janeiro: conforme vimos, ocorrem, em Belo Horizonte, formas como c[u]risco, f[u]lia, f[i]liz e v[i]stido. Por outro lado, não temos nada como *c[u]riza, *f[u]bia, *f[i]lino ou *v[i]stígio. Ampliando seus comentários, Câmara Jr.(1970) nos diz que encontramos algo semelhante em hiatos com /a/ tônico, como em v[u]ar e pass[i]ar. De novo, se transpusermos essa observação para o português de Belo Horizonte, vamos nos

Page 6: Variação fonológica: o indivíduo e o léxico como atratores na perspectiva dos sistemas complexos

Marco Antônio de Oliveira632

deparar com mais algumas dificuldades: em Belo Horizonte não encontramos nada como *r[i]al, *d[u]ar ou *t[u]ada, muito embora encontremos casos como t[u]alha. Casos como esses são tratados por Câmara Jr. (1970: 35) como casos de debordamento. Trata-se, na verdade, de um overlapping fonêmico, algo que foi veementemente rejeitado pela teoria fonológica clássica, conforme se pode ver em Bloch (1941: 280-281). Essa rejeição se fun-damenta numa visão aristotélica das categorizações: um som não pode pertencer, ao mesmo tempo, a duas categorias diferentes. Pode-se dizer, portanto, que o overlapping fonêmico é, em última instância, um problema de classificação. Mas, se os falantes do português não falam do mesmo modo, nem interdialetalmente e nem intradialetalmente, como é que eles se entendem? Dito de outra forma: como é que o plano do conteúdo pode ser garantido se o plano da expressão se apresenta de modo tão diversificado? Como é que os falantes diferen-ciam s[]co, s[o]co e s[u]co, mas não fazem distinção entre c[]légio, c[o]légio e c[u]légio? Fato é que em posição pretônica não discriminamos, tanto na série anterior quanto na série posterior, entre realizações fonéticas que compartilhem o traço [– baixo]. Por outro lado, não é verdade que os falantes possam oscilar livremente, em termos de produção, entre as várias formas fonéticas marcadas como [– baixo]. Conforme exemplifiquei, há opções dife-rentes quando comparamos variedades diferentes do PB. Por exemplo, há fortes restrições impostas à ocorrência de vogais médias abertas em posição pretônica na variedade de Belo Horizonte, se comparadas à sua ocorrência mais livre nas variedades do norte e nordeste do Brasil. Além disso, mostrei também que, mesmo quando consideramos uma mesma varie-dade do PB, como a de Belo Horizonte, não é verdade que os falantes façam opções idên-ticas quanto à forma fonética dessas vogais. A questão agora é a seguinte: como esses fatos podem ser descritos?

3. A linguagem como um sistema adaptativo complexo

Em um texto anterior (Oliveira 2009: 112), propus que apenas um nível de repre-sentação deveria ser suficiente para se lidar com fatos como esses. Volto a essa ideia, aqui, apoiando-me em Hauser, Chomsky e Fitch (2002). Os autores discutem o conceito de faculdade de linguagem, fazendo uma distinção clara entre o seu sentido largo e o seu sentido estreito. Em seu sentido largo, a faculdade de linguagem inclui três sistemas:

(a)um sistema computacional interno,(b)um sistema sensório-motor, e(c)um sistema conceitual-intensional.

O primeiro deles, ou faculdade de linguagem no sentido estreito, é um sistema compu-tacional linguístico abstrato que interage com os outros dois sistemas. Segundo os autores, esse sistema computacional “[...] gera representações internas e as mapeia na interface

Page 7: Variação fonológica: o indivíduo e o léxico como atratores na perspectiva dos sistemas complexos

Variação fonológica: o indivíduo e o léxico como atratores na perspectiva dos sistemas complexos 633

sensório-motora através do componente fonológico, e na interface conceitual-intensional através do sistema semântico (formal) [...]” (Hauser, Chomsky & Fitch 2002: 1571) [minha tradução]. Ou seja, é ele, o sistema computacional, que gerencia o emparelhamento entre som e sentido.

Num outro ponto do texto, ao comentarem a produção e a percepção da fala, os autores dizem que os seres humanos, assim como outras espécies, mostram uma grande habilidade para fazer discriminações entre sons vocais e, além disso, para fazer generalizações sobre esses sons. As pesquisas realizadas até agora mostram, nas palavras dos autores, “[...] evi-dências não apenas para a percepção categórica, como também para uma habilidade de dis-criminar entre exemplares prototípicos de fonemas diferentes.” (Hauser, Chomsky & Fitch 2002: 1574) [minha tradução].

Podemos supor, então, que nosso sistema sensório-motor contenha restrições que sejam determinadas pela sua própria natureza. Uma restrição desse tipo, para o caso das vogais, poderia ser, por exemplo,

(7) Em posição átona, discrimine primeiramente [α BAIXO] e [β RECUADO].

E é apenas isso o que encontramos, na maioria dos dialetos do português, para a posição átona final. Num texto de Jakobson e Halle (1967: 134-135), é exatamente isso o que se prevê quando os autores falam da cisão do triângulo primário em dois triângulos secundá-rios, o consonantal e o vocálico. No triângulo vocálico, a primeira distinção se faz entre /a/, /i/ e /u/. Portanto, parece haver uma hierarquia na aquisição desses contrastes vocálicos. Quando nada, são estes os sons vocálicos que são discriminados em primeiro lugar.

Uma restrição como (7) nos informa, simplesmente, que em posição átona se faça pri-meiro uma distinção entre vogais [+ baixo] e [– baixo], assim como entre aquelas que são [+ recuado] e as que são [– recuado]. Nada impede que outras distinções além dessas sejam feitas, mas, como numa escala implicacional, qualquer outra distinção deve ser precedida pela distinção prevista pela restrição (7).

É bom observar que, nesse caso, precisamos reconhecer que os fonemas emergem como categorias cognitivas/mentais, psicologicamente reais, como sons, e não como listas subespecificadas de traços. Note-se, também, que a distinção, em posição átona, entre vogais altas e vogais médias, todas elas [– BAIXO], está fora de uma discriminação inicial que possa ser feita pelo sistema sensório-motor. Distinguimos, aí, os sons [+ BAIXO] (isto é, /a/) dos [– -BAIXO] (i.e., /i/,/e/,/E/,/u/,/o/,//) e, em seguida, discriminamos, entre esses últimos, os [+ RECUADO] (i.e., /u/,/o/,//) daqueles que são [– RECUADO] (isto é, /i/,/e/,/E/). No caso do português, nenhuma distinção conceitual posterior se faz entre os elementos marcados como [α RECUADO] em posição pretônica.

Mas o que é que uma restrição como essa nos garante? Garante que sejamos capazes de entender, como sendo a mesma coisa, formas fonéticas diferentes como c[]légio, c[o]légio e c[u]légio, bloqueando, ao mesmo tempo, a possibilidade de variantes como *c[a]légio ou

Page 8: Variação fonológica: o indivíduo e o léxico como atratores na perspectiva dos sistemas complexos

Marco Antônio de Oliveira634

*c[i]légio . Ou seja, uma restrição como (7), para o caso em foco, garante-nos que formas fonéticas diferentes sejam associadas a uma mesma categoria (ou fonema), mesmo que algumas dessas formas possam se associar, também, a outras categorias. Por exemplo, em posição tônica cada uma das três variantes encontradas para e e se associa a um fonema diferente: E, e, i, , , ou .

Dadas essas considerações, temos uma questão a ser respondida: Como é que vamos lidar com o overlapping fonêmico? Como é que podemos explicar casos de variação como este? Essa pergunta não é complicada e, na verdade, sua resposta decorre, pelo menos em parte, da restrição (7). Se formos capazes de discriminar segmentos [- baixo, α recuado], então reconheceremos, como sendo a mesma coisa, em posição átona, os membros dife-rentes do conjunto [E~ e ~ i], assim como os membros diferentes do conjunto [~ ~ ], mesmo que alguns membros desses conjuntos sejam compartilhados por outros fonemas. E é isso que fazem os falantes do português. Em resumo, eles reconhecem as categorias fonêmicas ee em posição átona, como sendo classes de sons. O que eles farão, em termos de produção, é outra questão, à qual retorno mais adiante.

De qualquer forma, o problema não se resume apenas a uma descrição dos fatos, mas exige também uma explicação para eles. Que tipo de teoria nos permite fazer descrições como esta, supondo-se que ela esteja correta? De que teoria estes fatos podem decorrer como são? Um ponto me parece um tanto óbvio: nenhum som pode ser isoladamente atri-buído a uma ou outra categoria fonêmica. Sua atribuição a uma categoria específica só pode ser efetuada num contexto maior, o da palavra. Por outro lado, nenhuma palavra precisa ocorrer em apenas uma composição sonora. No caso das vogais pretônicas, uma restrição como (7) libera, por assim dizer, a variação.

Podemos supor, portanto, que a variação encontrada nas formas fonéticas seja, na ver-dade, esperada, uma decorrência de restrições mais profundas; em nosso caso, oriundas do sistema sensório-motor. Por outro lado, as variações tendem a ser resolvidas, ou seja, as lín-guas não têm como evitar a ocorrência da variação, mas, uma vez manifestada, há uma ten-dência a resolvê-la, de um modo ou de outro. Os inúmeros estudos que podemos consultar nos mostram que a variação tende a ser minimizada de várias formas:

a. Pela eliminação de uma das variantes e fixação da outra, conforme ocorre nos casos de mudança linguística;

b. Pela acomodação das variantes em termos contextuais e sociais. Um ótimo exemplo disso pode ser dado pelo estudo clássico de Labov (1972: 1-42, 165-171) sobre a centralização dos ditongos (ay) e (aw) em Martha’s Vineyard. Se observarmos a figura 7.1 (p. 168) fornecida por Labov, veremos que as formas mais centralizadas desses ditongos mostram, ao longo do tempo, uma tendência a se fixarem diante de consoantes surdas, enquanto as formas menos centralizadas vão se acomodando em outros contextos;

Page 9: Variação fonológica: o indivíduo e o léxico como atratores na perspectiva dos sistemas complexos

Variação fonológica: o indivíduo e o léxico como atratores na perspectiva dos sistemas complexos 635

c. Pela especialização semântica (como em p[o]rção e p[u]rção); ou

d. Pela categorização da forma fonética no item lexical (as palavras assumem uma ou outra das variantes possíveis).

Essas tentativas de acomodação são sempre precedidas por uma etapa em que a variação assume uma configuração um tanto caótica, sendo difícil perceber algum tipo de padrão.

Fatos como estes que acabo de mencionar sugerem que vejamos a linguagem como um sistema adaptativo complexo, aberto e não linear, em constante mutação e, ao mesmo tempo, capaz de se auto-reorganizar, assim como qualquer organismo vivo (cf. Nascimento 2009: 62-68). Ou seja, ele é, ou se torna, constantemente diferente, sendo a mesma coisa o tempo todo. O que garante que ele seja a mesma coisa o tempo todo é o limite imposto pelo espaço fase. No caso que estamos examinando, este espaço fase é delimitado pelo sistema sensório-motor, através de uma restrição como (7), que determina alguns pontos fixos. Assim, os traços [α baixo] e [β recuado], juntamente com a atonicidade, vão funcionar como as variáveis que definem os limites dentro do qual as emergências diversas podem ocorrer. Esses pontos fixos são uma forma simples de atratores (fixos), ou formadores de padrões. Contudo, sistemas não lineares apresentam, também, atratores de outro tipo, considerados geradores de comple-xidade, aqueles que não convergem para algum ponto fixo. São os chamados atratores externos (strange attractors), sempre associados a processos caóticos.

Vejamos, agora, como um modelo como esse pode nos ajudar a compreender a variação que envolve as vogais médias pretônicas no português.

4. Uma proposta de análise

Retomemos o caso apresentado para o português falado em Belo Horizonte, voltando nossa atenção, agora, para algumas questões:

1. Por que uma variedade de português opta, majoritariamente, por uma das possibi-lidades, enquanto outra variedade opta por outra?

2. Por que algumas palavras se resolvem em termos de uma das possibilidades, enquanto outras palavras se resolvem por outras possibilidades?

3. Por que alguns falantes optam por uma das possibilidades, enquanto outros falantes optam por outra?

Primeiro, vamos admitir, conforme previsto em (7), que qualquer vogal média pre-tônica possa apresentar três variantes. Embora no dialeto de Belo Horizonte não ocorra uma forma como pder (o que temos é pder), ela ocorre em algumas variedades do por-

Page 10: Variação fonológica: o indivíduo e o léxico como atratores na perspectiva dos sistemas complexos

Marco Antônio de Oliveira636

tuguês do nordeste do Brasil (cf. pudEroso). A mesma observação vale para palavras como mrango, blacha, czinha, pumar, svina, mdista, tumada que, entre outras, não ocorrem nesta forma fonética em Belo Horizonte. Parece, então, que as regiões geográficas devam ser entendidas como atratores externos, i.e., como formadores de padrões diferenciados, e que não tendem sempre para um mesmo ponto. Podemos pensar, então, que o espaço atue como um atrator externo.

Segundo, por que nem todas as possibilidades ocorrem numa dada variedade da língua? Esse fato nos obriga a tomar um novo rumo na maneira de lidar com a variação sonora. Basi-camente, a proposta é a seguinte: devemos situar a variação sonora nos itens lexicais. Em outras palavras, estou assumindo o modelo da difusão lexical e propondo que variedades diferentes de uma mesma língua propagam os processos sonoros de maneira diferenciada pelo léxico, o que acaba envolvendo, também, a interface conceitual-intensional. Estou admitindo, então, que as possibilidades delimitadas no interior de um espaço fase possam ser empurradas para um ou outro padrão em termos do item lexical, que também atuaria como um atrator externo. Estes atratores, enquanto formadores de padrões, não garantem nenhuma forma fonética em particular e, sendo assim, não têm um papel determinístico. Mas indicam tendências. Assim, se pensarmos em termos de variantes regionais, para o caso de /e, o/ pretônicos, podemos estabelecer a seguinte representação:

(8) FPx e, [ y> ] f(Rx)

onde FPx é a forma fonética de uma palavra qualquer da classe e, pretônica, y > é a forma fonética preferencial, entre aquelas delimitadas pelo espaço fase da vogal pretônica, e Rx é uma região qualquer onde se fale o PB. Mas se pensarmos no que ocorre em palavras específicas, numa variedade específica, como a de Belo Horizonte ou qualquer outra varie-dade do português, a representação seria diferente, como em:

(9) FPi e, [y>] f(R i)

onde FPi indica a forma fonética de um item lexical específico da classe e, pretônica, y> indica a forma fonética preferencial deste item entre aquelas delimitadas pelo espaço fase, e R i é uma região específica onde se fale uma variedade do PB.

Terceiro, por que falantes diferentes, de uma mesma variedade, não apresentam a mesma forma fonética para todos os itens lexicais compartilhados? Minha hipótese é a seguinte: a montagem da forma fonética do léxico é individual, muito embora os mecanismos acionados sejam os mesmos, uma vez que são delimitados pelo espaço fase. É evidente que falantes de uma mesma variedade apresentarão mais semelhanças do que diferenças entre si, uma vez que a região na qual esta variedade é falada funciona como um atrator. Afinal todos eles desfrutarão de um mesmo nicho sociocultural no seu desenvolvimento da linguagem. E é evidente, também, que as diferenças irão crescer quando falantes de variedades dife-

Page 11: Variação fonológica: o indivíduo e o léxico como atratores na perspectiva dos sistemas complexos

Variação fonológica: o indivíduo e o léxico como atratores na perspectiva dos sistemas complexos 637

rentes são comparados. Assim sendo, devemos substituir as representações dadas anterior-mente por uma representação mais geral, como:

(10) FPie, [y]i f(R i , item lexical, indivíduo, Z)

Nesta formulação estamos dizendo, simplesmente, que a forma fonética específica, atribuída a um item lexical específico da classe e, pretônico é uma função de uma combinação de atratores: a região em que a variedade é falada, o item lexical, o indivíduo e, possivelmente, algum outro atrator Z. Em última instância, (10) representa uma rota de resolução da variação.

5. Conclusão

Temos, então, a seguinte situação: os falantes do português são capazes de lidar com fatos da variação linguística, inclusive aqueles que implicam em overlapping fonêmico, sem se confundirem. Isso é garantido pela restrição (7). Ao mesmo tempo, esses falantes optam, com pouquíssimas exceções, por pronúncias categóricas para as variantes de uma variável, conforme previsto em (10). Além disso, estou sugerindo que qualquer tentativa de se lidar com esses casos de variação, levando-se em conta apenas os sons envolvidos, encontraria enormes dificuldades factuais. Volto, então, à sugestão já feita em outra ocasião (Cf. Oliveira 2009: 111): este caso de variação, e provavelmente todos os outros, deve ser:

(a) resultante da própria arquitetura do sistema linguístico, ou língua-I, através de princípios ativos em nosso sistema sensório-motor, que delimitam um espaço fase, e

(b) propagado pela ação de atratores externos, como o par {indivíduo-item léxico}, devidamente situado em seu nicho biossociocultural, em termos de língua-E.

Em outras palavras, estou dizendo que a variação fonológica é uma propriedade da língua-I. No caso examinado o sistema sensório-motor delimita um espaço fase no qual a emergência de diferenças é permitida, através dos atratores externos. Essas emergências são percebidas como sendo a mesma coisa, uma vez que se situam dentro do espaço fase previamente delimitado pelos atratores fixos. A manifestação das emergências, ou variação, pertence, portanto, à língua-E. O pluricentrismo pode ser atribuído, então, à atuação de atra-tores externos tais como o espaço geográfico e o par {indivíduo-item léxico}.

Page 12: Variação fonológica: o indivíduo e o léxico como atratores na perspectiva dos sistemas complexos

Marco Antônio de Oliveira638

Referências

Bisol, Leda (1981). Harmonização vocálica: uma regra variável. Tese de doutorado, Faculdade de Letras. Rio de Janeiro. Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Bloch, Bernard ( 1941). Phonemic overlapping. American Speech 16: 278-284.Câmara Jr, Joaquim Mattoso (1970). Estrutura da língua portuguesa. Petrópolis: Vozes.Hauser, M. D., N. Chomsky & W. T. Fitch (2002). The faculty of language: what is it, who has it, and how did it

evolve? Science 298: 1569-1579.Jakobson Roman.; Halle, Morris (1967). A fonologia em relação à fonética. In: Roman Jakobson, Fonema e fono

logia: ensaios. Tradução e notas, com um estudo sobre o autor por J. Mattoso Câmara Jr. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 101-146 (Filologia e Linguistica, 2).

Labov, William (1972). Sociolinguistic patterns. Philadelphia: University of Pennsylvania Press.Lee, Seung-Hwa & Marco Antônio Oliveira (2006). Phonological theory and language variation in BP mid

vowel alternation. Proceedings of the Seoul International Conference on Linguistics. Seoul: The Linguistic Society of Korea, vol.1: 298-306.

Lee, Seung-Hwa & Marco Antônio Oliveira (2003). Variação inter e intra-dialetal no português brasileiro: um problema para a Teoria Fonológica. In: Ol iveira, Hora da Dermeval & Gisella Collischonn (orgs.), Teoria linguística: fonologia e outros temas. João Pessoa: Ed. Universitária, 67-91.

Nascimento, Milton (2009). Linguagem como um sistema complexo: interfases e interfaces. In: Vera Lúcia O. Paiva & Milton Nascimento (orgs.), Sistemas adaptativos complexos: Lingua(gem) e aprendizagem. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 61-72.

Oliveira, Marco Antônio (2009). Variação fonológica: o indivíduo e a comunidade de fala. In: Arnaldo Cortina & Sílvia M. G. C. R. Nasser (orgs.), Sujeito e Linguagem. São Paulo: Cultura Acadêmica, 97-115.

Oliveira, Marco Antônio (1991). The neogrammarian controversy revisited. International Journal of the Sociology of Language 89: 93-105.

Oliveira, Marco Antônio & Seung-Hwa Lee (2006). Teoria fonológica e variação linguística. Estudos da Língua(gem) 3: 41-66.

Silva, Mirian Barbosa (1987). As pretônicas no falar baiano: a variedade culta de Salvador. Tese de doutorado em Língua Portuguesa, Faculdade de Letras. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Viegas, Maria do Carmo (1987). Alçamento das vogais médias pretônicas: uma abordagem sociolinguística. Dis-sertação de mestrado em Letras, Faculdade de Letras. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais.

Viegas, Maria do Carmo (2001). O alçamento de vogais médias pretônicas e os itens lexicais. Tese de doutorado em Letras, Faculdade de Letras. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais.

Marco Antônio
Note
Marked set by Marco Antônio