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    FRANCISCO ADOLFO VARNHAGEN

    HISTRIA GERAL DO BRASIL

    LEITURA BSICA

    Antonio Paim (organizador)

    CENTRO DE DOCUMENTAO DO

    PENSAMENTO BRASILEIRO (CDPB)

    2011

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    SUMRIO

    Introduo: Varnhagen e os alicerces da historiografia

    brasileira Antonio Paim

    Indicaes sobre a transcrio Antonio Paim

    PRIMEIRO SCULO (sculo XVI)

    Texto de Varnhagen

    SEGUNDO SCULO (sculo XVII)

    Nota introdutria - Antonio Paim

    Texto de Varnhagen

    TERCEIRO SCULO (sculo XVIII)

    Texto de Varnhagen

    INDEPENDNCIA DO BRASIL

    Texto de Varnhagen

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    FRANCISCO ADOLFO DE

    VARNHAGEN

    H I S T R I A G E R A L D O B R A S I L

    LEITURA BSICA

    Antonio Paim (organizador)

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    CENTRO DE COCUMENTAO

    DO PENSAMENTO BRASILEIRO

    CDPB

    2011

    INTRODUO: Varnhagen e os

    alicerces da historiografia brasileira

    Antonio Paim

    Francisco Adolfo de Varnhagen (1816/1878) era filho de

    Frederico Guilherme de Varnhagen (1782/1842), alemo de

    nascimento. Seu pai veio para o Brasil contratado como diretor da

    fundio organizada em So Joo de Ipanema, So Paulo, com a

    denominao de Fbrica de Ferro de Ipanema. Tratava-se de

    iniciativa de D. Rodrigo de Sousa Coutinho, chefe do primeiro

    governo organizado no Brasil pelo futuro D. Joo VI. D. Rodrigo

    buscava ciosamente alternativas econmicas. Criou ainda uma outra

    fundio em Minas Gerais.

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    Embora a de Ipanema funcionasse desde 1810, considera-se

    que somente na gesto de Varnhagen (1815 a 1821) que ocorreria

    a superao da precariedade do material ali produzido.

    Francisco Adolfo de Varnhagen nasceria no segundo ano

    (1816) de permanncia do seu pai no Brasil. Presentemente a

    localidade de So Joo de Ipanema denomina-se Iper,

    municipalidade resultante dos desmembramentos de Sorocaba.

    Tradicionalmente Varnhagen dado como tendo nascido nesta

    ltima cidade. Ele prprio tinha-se nessa conta. Como nutria a

    aspirao de que seus restos mortais viessem a ser enterrados no

    local de seu nascimento, a consumao dessa aspirao teve lugar em

    Sorocaba, como parte das comemoraes do primeiro centenrio de

    sua morte, ocorrido em 1978.

    Frederico Guilherme de Varnhagen demitiu-se da fundio

    em 1821. Acredita-se que esse gesto deveu-se a desentendimento

    com as autoridades a que se achava subordinado. Formalmente

    anunciou que pretendia assegurar a boa educao do filho, ento com

    cinco anos, razo pela qual regressaria Europa. Radicou-se em

    Portugal, certamente pelo fato de que se casara com portuguesa ( D.

    Maria Flvia de S Magalhes) e esta, de presumir-se, desejaria

    viver junto de sua famlia. Assinala-se este fato na medida em que

    explica a afeio que o jovem Francisco Adolfo iria revelar pela

    ptria de origem de um dos ramos de seus ancestrais.

    Francisco Adolfo de Varnhagen estudou no Real Colgio

    Militar da Luz, em Lisboa. Quando se d a transferncia de seu pai

    para Portugal (1821), ali recm iniciara, com a Revoluo do Porto,

    a transio da monarquia absoluta para a constitucional. Esse

    processo acabaria paralisando o pas e levando-o, por fim, guerra

    civil, que durou de 1828 a 1834.

    Como se sabe, esses acontecimentos tiveram amplo reflexo

    no Brasil, notadamente pelo fato de que, durante o seu transcurso, em

    1826, ocorre o falecimento de D. Joo VI o que torna D. Pedro I

    herdeiro do trono da nao de que nos dissociaramos, reabrindo a

    discusso em torno da Independncia. Acontece que o falecimento

  • 6

    do Rei explicita a divergncia entre os dois filhos, D. Miguel

    disposto a preservar a monarquia absoluta e D. Pedro a monarquia

    constitucional. Agastado com a emergncia de setores hostis sua

    permanncia no trono, D. Pedro opta, em 1831, por assumir a

    liderana anti-miguelista na guerra civil a que nos referimos,

    abdicando da condio de Imperador do Brasil. Talvez essa

    circunstncia haja decidido o jovem Varnhagen a participar da luta,

    na tropa liderada por D. Pedro. Em 1834, quando se d o seu

    desfecho, tinha 18 anos de idade. Como parte dessa carreira militar

    ento iniciada, Varnhagen freqentou a Real Academia de

    Fortificao, concluindo o curso de engenharia militar em 1939, aos

    23 anos de idade.

    Ainda naquela dcada revelaria a sua verdadeira vocao e o

    tema a que se dedicaria. Entre 1835 e 1838, ocupa-se do texto que

    submeteu Academia das Cincias de Lisboa, dedicado a Gabriel

    Soares de Sousa, que se tornaria o principal documento relativo ao

    primeiro sculo da colonizao portuguesa no Brasil, cuja autoria

    seria justamente estabelecida por nosso autor. Graas a essa primeira

    contribuio nossa historiografia, tornou-se scio correspondente

    da instituio. Para que se tenha, desde logo, idia da relevncia da

    iniciativa, basta por agora indicar que a prpria Academia o havia

    publicado, em 1825, sem qualquer aluso ao autor. Por sua

    relevncia, voltaremos a considera-lo da forma pormenorizada que

    merece.

    Justamente essa vocao que o levaria a regressar ao Brasil,

    em 1840. Logo ingressa no Instituto Histrico e Geogrfico

    Brasileiro, criado em 1838, passando a integrar o seu ncleo

    dirigente ao assumir o cargo de primeiro secretrio. Em 1844, obtm

    a nacionalidade brasileira, sendo admitido no corpo diplomtico.

    Como diplomata, serviu em Lisboa e Madrid, nas dcadas de

    quarenta e cinquenta, condio de que se valeu para institucionalizar

    o levantamento sistemtico da documentao apta a orientar a

    reconstituio de nossa histria, atividade que se coroa com a

    primeira verso da Histria geral do Brasil (1854/57). Em tpico

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    autnomo, iremos considerar mais detidamente como atuou para

    sedimentar tais procedimentos, essenciais constituio da

    historiografia brasileira, verificada ainda no sculo XIX.

    Entre 1858 e 1867, Varnhagen serviu em alguns pases da

    Amrica do Sul, ocupando-se basicamente da questo dos limites do

    Brasil com seus vizinhos. Atuou, respectivamente, no Paraguai

    (1858/1861), seguindo-se uma curta estada na Venezuela (agosto a

    dezembro, 1861); Equador (dezembro, 1861/abril, 1863); Venezuela

    (abril-setembro, 1863); Peru (outubro-dezembro, 1863); breve estada

    no Chile, entre janeiro e maio de 1864, ocasio em que contrai

    matrimnio com a chilena Carmen Ovalle; volta breve ao Peru

    (junho-setembro, 1864); retorno ao Chile (outubro a dezembro,

    1865) e, por fim, nova e prolongada estada no Peru (dezembro, 1865

    a agosto, 1867).

    Os relatrios que encaminhou ao Itamaraty, dando conta da

    atividade desenvolvida nesses pases foram tornados pblicos no

    livro Francisco Adolfo Varnhagen. Correspondncia ativa,

    coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa (Rio de Janeiro,

    Instituto Nacional do Livro, 1961, pgs. 424-503). Notcia do seu

    contedo consta da obra Varnhagen. Subsdios para uma

    bibliografia (So Paulo: Editoras Reunidas, 1982, pgs. 364-413)

    da autoria de Hans Juerguem Wilhelm Horsh.

    Encerrou a carreira diplomtica como nosso representante em

    Viena, ustria, onde faleceu (1878), aos 62 anos de idade.

    O sentido que deu sua investigao

    No livro que de certa forma coroa os diversos estudos que

    mereceram a obra de Varnhagen --Estado, Histria, Memria;

    Varnhagen e a construo da identidade nacional (1999)-- Arno

    Wehling indica que a influncia intelectual mais importante nas

    origens do Instituto Histrico seria o historicismo. Naturalmente

    essa vertente terica tem uma longa trajetria em que revelaria as

    suas sucessivas facetas. No caberia, nesta oportunidade, cuidar de

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    sua reconstituio, sobretudo tendo em vista que o prprio Arno

    Wehling desincumbiu-se dessa tarefa em outros de seus livros, em

    especial em A inveno da histria. Estudos sobre o historicismo

    (1994)

    Creio que no seria simplificao grosseira, assinalar que o

    eixo central da nova viso da histria, conhecida com a indicada

    denominao, seria superar a viso escatolgica, segundo a qual

    obedeceria a um desgnio da providncia, sendo ademais passvel de

    previso. A superao em apreo deu origem importante linhagem

    que remonta a Giambatista Vico (1668/1744), apropriada pelos

    alemes, a partir de Johann Gottfried Herder (1744/1803). Sua obra

    bsica --Idias para a filosofia da histria humana--, publicada em

    quatro volumes entre 1784 e 1791-- iria influenciar grandemente a

    historiografia do ciclo subseqente, marcado pelo apogeu dos

    grandes filsofos Kant e Hegel. A estrela que despontaria sobretudo

    na dcada de trinta, quando Varnhagen forma o seu esprito, seria

    Leopold Von Ranke (1796/1886), a quem coube a tarefa de difundir

    a idia de que era preciso documentar as afirmaes acerca dos

    acontecimentos histricos.

    A medida em que esse ambiente marcou o esprito de

    Varnhagen pode ser aquilatado a partir da verdadeira fixao com

    que cuida de demonstrar a seus pares, a partir de exemplos prticos,

    que a reconstituio da histria do Brasil passa obrigatoriamente pela

    busca obsessiva do documento.

    O trabalho que desenvolveu para estabelecer a autoria do

    relato sobre o Brasil, em fins do primeiro sculo, de Gabriel Soares

    de Sousa serviu para fixar-lhe no s o estilo de investigao que

    adotaria como, igualmente, apontando as lacunas a preencher. Nesse

    documento, a que deu o ttulo Tratado Descritivo do Brasil em

    1587, seu autor est mais voltado para os aspectos fsico-geogrficos,

    bem como em fixar os contornos do litoral desde a foz do Amazonas.

    Saltava s vistas a necessidade de reconstituir os aspectos

    institucionais, isto , formas de organizao governamental adotadas,

    procedimentos para a ocupao do territrio, disputas com potencias

  • 9

    estrangeiras. Enfim, o que pesava na histria da nao independente

    recm constituda era precisamente os trs sculos da colonizao

    portuguesa. No estabelecimento daqueles marcos que iriam,

    progressivamente, facultar-nos uma viso de conjunto, o papel de

    Varnhagen seria decisivo. Neste tpico vamos nos limitar ao que nos

    pareceu essencial na fase que precedeu o aparecimento dos dois

    volumes da Histria Geral do Brasil, publicados, respectivamente,

    em 1854 e 1857.

    O prprio Varnhagen limitou este perodo inicial ao ano de

    1850, ao fazer uma relao de suas publicaes que colocaria venda

    e que Hans Horch considera como uma autntica bibliografia.

    Tomando isoladamente os de cunho estritamente historiogrfico

    (nesse perodo ocupou-se tambm da poesia brasileira e da

    arquitetura portuguesa) mereceriam maior destaque aqueles referidos

    a seguir.

    1530, sob a capitania mor de Martim Afonso de Sousa, escrita por

    estabelecer o significado da estada no Brasil, entre 1530 e 1532, do

    fidalgo portugus Martim Afonso de Sousa (1500/1564). Compunha-

    se sua frota de cinco navios, transportando cerca de 400 pessoas,

    tripulantes e passageiros. Entre os ltimos muitos nobre ilustres que

    tiveram participao no povoamento do pas. O objeto do relato,

    tornado pblico por Varnhagen, corresponde s atividades

    desenvolvidas pela expedio.

    Martim Afonso percorreu toda a costa, desde a foz do

    Amazonas at a bacia do Prata e concebeu uma estratgia de

    ocupao que posteriormente seria generalizada, com a fundao de

    So Vicente. Consistia na escolha de um local abrigado para

    construir vila e erigir fortificaes, disseminando atividade agrcola

    nas proximidades, mediante doao de terras (denominadas

    sesmarias) a pessoas capazes de explor-las. Em seguida ao regresso

    de Martim Afonso a Portugal foi o pas dividido em capitanias

    hereditrias, entregues a nobres portugueses que deveriam mobilizar

  • 10

    os recursos exigidos por sua explorao. Esse sistema durou mais ou

    menos vinte anos, sendo em parte revogado ao criar-se um governo

    geral no Brasil e capitanias reais (1549).

    No seu primeiro ano de estada no Brasil (1840), editou em

    livro --pela Tipografia J. Villeperva, do Rio de Janeiro-- a serie de

    artigos publicados em Panorama, que se editava na capital

    portuguesa, dedicados ao Descobrimento do Brasil.

    Em Lisboa, n

    narrativa epistolar de uma viagem e misso jesutica pela Bahia,

    Ilhus, Porto Seguro, Pernambuco, Esprito Santo, Rio de Janeiro, S.

    Vicente (So Paulo), etc., desde o ano de 1583 ao de 1590, indo por

    visitad

    Provincial em Portugal pelo padre Ferno Cardim, ministro do

    Colgio da Companhia em vora. Segundo indicao de Varnhagen,

    -se na Biblioteca de vora,

    em Portugal. Alm das atividades da companhia, fornece

    informaes que complementam o texto anterior, relativas ao

    primeiro sculo.

    Nesse mesmo ano (1847), no Rio de Janeiro foram editadas

    as Memrias para a histria da Capitania de So Vicente (1797),

    de Frei Gaspar da Madre de Deus, prefaciada por Varnhagen.

    Completa-

    biografias de grandes e vrias personagens que muito avultam na

    portuguesa Panorama, no perodo indicado, sendo inteno do autor

    reuni-las numa publicao autnoma, pretenso que no chegou a

    efetivar-se.

    Praticamente em todos os nmeros da Revista do Instituto

    Histrico, da dcada de quarenta e incio da seguinte, consta

    colaborao de Varnhagen. Com exceo da lista de brasileiros ou

    colonos estabelecidos no Brasil, condenados pela Inquisio nas

    primeiras dcadas do sculo XVIII, e de algumas das biografias antes

    referidas, consistem de documentos com os quais se foi deparando e

    entendeu que devia copi-los para guarda da instituio. So de teor

  • 11

    muito variado. No nmero do primeiro trimestre de 1850, por

    1817.

    Pelas indicaes precedentes acredito haver demonstrado que

    Varnhagen achava-se empenhado em convencer o grupo que assumiu

    o encargo de estruturar o Instituto Histrico que todos os esforos

    deveriam ser direcionados para a pesquisa das fontes documentais

    disponveis. Naturalmente esse trabalho deveria complementar-se por

    sua sistematizao, de que daria exemplo com a publicao da

    Histria geral do Brasil.

    O estilo de trabalho de Varnhagen

    Ao dar conta, ao Instituto Histrico, do trabalho que

    desenvolvera em busca do original de Gabriel Soares de Sousa,

    datado de maro de 1851, e das razes que o levava a t-lo por

    acabado, v-se como atuou de modo obstinado no estabelecimento

    das fontes documentais imprescindveis estruturao de nossa

    historiografia.

    da Biblioteca de Paris o que mais me levou a essa Capital do mundo

    literrio em 1847. No h dvida de que, alm deste cdice, tive eu

    ocasio de examinar uns vinte mais. Vi trs na Biblioteca Eborense,

    mais trs na Portuense e outro na das Necessidades em Lisboa. Vi

    mais de dois exemplares existentes em Madrid; outro mais que

    pertenceu ao convento da Congregao das Misses e trs da

    Academia de Lisboa, um dos quais serviu para o prelo, outro se

    guarda no seu arquivo e, o terceiro na Livraria Conventual de Jesus.

    Igualmente vi trs cpias de menos valor que h no Rio de Janeiro

    (uma das quais chegou a estar licenciada para impresso); a avulsa da

    coleo de Pinheiro na Torre do Tombo, e uma que em Neuwied me

    mostrou o velho prncipe Maximiliano, a quem na Bahia fora dado

    de presente. Na Inglaterra deve seguramente existir, pelo menos o

  • 12

    cdice que possui Southey, mas foram inteis as buscas que a fiz

    aps ele, e no Museu Britnico nem sequer encontrei notcia de

    --a

    meu ver-- o original e baldados foram todos os meus esforos para

    descobrir este, seguindo indicaes de Nicolau Antonio, de Barbosa,

    de Leon Pinelo e de seu adicionador Barcia

    que disso proveio que o nome do autor ficasse esgarrado, o ttulo se

    A existncia de tantas cpias no deixa de ser expressivo

    indicador do sucesso que alcanou em seu tempo e tambm da

    curiosidade e falta de informao sobre o Brasil.

    Comparando essas diversas cpias, Varnhagen pode

    estabelecer qual delas conteria menos omisses. Na cuidadosa edio

    que preparou do mencionado Tratado Descritivo, numerou as

    diversas sees, de modo a introduzir as correes, em forma de

    apndice, muitas das quais dizem respeito a denominaes que

    caram em desuso.

    O texto de Gabriel Soares de Sousa registra a descoberta do

    Brasil por Pedro lvares Cabral mas no refere documentos. Comete

    aqui muitos erros histricos, a exemplo da suposio de que o

    Tratado de Tordesilhas (1494) tivesse sido negociado por D. Joo III,

    cujo reinado inicia-se em 1521. Varnhagen os corrige no Apndice

    (intitulado Breves Comentrios) mas soube valorizar as preciosas

    informaes sobre o estado da civilizao ao longo do litoral, que

    conhecia por ter visitado. Sobretudo esse texto h de ter-lhe indicado

    as lacunas a preencher.

    A descrio em apreo seciona-se do seguinte modo: parte do

    rio Amazonas --dando notcia do que sabia sobre incurses que se

    tenham efetivado em seu leito-- e segue at o Maranho. So

    registros sucintos, assinalando distncias percorridas (em lguas),

    entre os cursos dgua existentes, e ainda as respectivas coordenadas

    geogrficas. O trecho seguinte, partindo desse ponto, vai at o Rio

    Jaguaribe (Cear). E assim, por diante, at o extremo Sul

  • 13

    interessante destacar que onde o sistema das capitanias

    logrou avanos no processo de colonizao, Gabriel Soares de Sousa

    detm-se na sua descrio. Tomo o exemplo do Esprito Santo.

    biografia, registra os embates com os indgenas, etc. Enfim, busca

    estabelecer a sua histria.

    A essa parcela da obra denominou de Primeira Parte. A

    segunda certamente mais interessante. Comea com o que chamou

    descrio dos acidentes geogrficos, da flora e da fauna. Igualmente

    Deste modo, inclusive pelas omisses, o Tratado descritivo

    do Brasil em 1587 insere um primeiro esboo do caminho a

    percorrer em matria historiogrfica. Varnhagen saber valoriza-lo

    devidamente, na medida em que h de ter-lhe permitido atuar a partir

    do que se poderia ch

    como se deu a opo por determinado modelo de colonizao o ter

    levado a localizar o material que permitiu estabelecer o papel

    desempenhado pela misso de Martim Afonso de Sousa, entre 1530 e

    1532. E, tambm, de dar-se conta de que os relatrios do Governo

    Geral seriam a fonte privilegiada para a reconstituio da histria das

    diversas capitanias.

    Louvo-me das indicaes deixadas pelo prprio Varnhagen

    acerca do valor que atribua ao trabalho dos que o precederam. A

    propsito da edio do livro de Gabriel Soares de Sousa, pela

    realizou a tarefa da primeira edio completa a Academia de Lisboa;

    mas o cdice de que teve de valer-se foi infelizmente pouco fiel, e o

    revisor no entendido na nomenclatura das coisas de nossa terra.

    Ainda assim muito devemos a essa primeira edio; ela deu

  • 14

    publicamente importncia ao trabalho de Soares, e sem ela no

    teramos tido ocasio de fazer sobre a obra os estudos que hoje nos

    fornecem a edio que proponho, a qual, mais que a mim, a deveis

    Esse trecho consta do documento que encaminhou ao Instituto

    Histrico em 1851

    A correspondncia de Varnhagen, que se preservou e foi

    publicada, fornece outras elementos para definir o que batizamos de

    seguir.

    Na dcada de quarenta, como foi referido, serviu na

    embaixada de Portugal. Em 1846, foi-lhe dada, pelo governo

    imperial, a incumbncia de verificar na Espanha a existncia de

    documentao relacionada aos limites do Brasil com as Guianas.

    Alis, no decnio em que serviu em embaixadas da Amrica do Sul

    (1858/1867) tambm tinha por encargo documentar as bases para a

    definitiva fixao de nossas fronteiras com os vizinhos (contribuio

    que seria assinalada pelo Baro de Rio Branco, a quem coube a tarefa

    de lev-la a bom termo).

    Veja-se como, sem embargo no zelo no cumprimento das

    mencionadas disposies, no o abandonava a preocupao com o

    preenchimento de outras lacunas documentais relacionadas histria

    do pas. Escreve nessa carta (de dezembro de 1846), endereada ao

    Embaixador do Brasil em Portugal (Antonio Vasconcelos Drumond):

    ital (Lisboa) pelo primeiro paquete imediato

    quela data, aproveitei da minha estada em Cadiz para me

    desenganar de no existirem ali papeis manuscritos que nos

    interessassem. Percorri tambm as lojas de livros, em geral nessa

    cidade mais abastecidas do que nas outras de Espanha, de obras

    sobre a Amrica, e disso resultou a compra do Dicionrio

    geogrfico da Amrica, do Coronel Salcedo, feita com

    recomendao minha e autorizao de V. Excia., por D. Jos Esteves

    prossegui no

  • 15

    primeiro vapor, tive mais de dois meses de persistncia examinando

    o Arquivo das ndias

    Como se v, dedicou toda a existncia adulta ao que caberia

    referir como a constituio de slidos fundamentos para a

    historiografia brasileira.

    A responsabilidade com que encarava essa tarefa explica que,

    ao publicar, dois anos antes de falecer, em 1876, a segunda edio

    da Histria Geral do Brasil no a considerava obra acabada, tendo

    deixado as indicaes da forma pela qual deveria ser

    complementada. Encontraria na pessoa de Rodolfo Garcia

    (1873/1949) a pessoa que dedicou quele mister vrios anos de sua

    vida.

    Depois da publicao da primeira verso da Histria geral

    do Brasil, nos meados da dcada de cinqenta, ocupou-se dos temas

    de que d conta nas edies adiante relacionadas.

    A continuidade da pesquisa

    Em 1858, publica em Paris indicaes iniciais sobre Amrico

    Vespuci --navegador considerado adventcio que, entretanto, daria

    nome Amrica--, texto que retomaria em outra ocasio, isto , em

    1864, quando se encontrava em Lima, e o amplia. Em Viena, em

    1878 (ltimo ano de vida), edita e comenta as cartas em que esse

    personagem descreve suas trs viagens ao Brasil.

    Ainda em 1858, aparece em Madrid, pelas

    Sousa.

    Em 1863, em Berlim, tem lugar a edio em francs de sua

    Histria da literatura brasileira, iniciativa que se supe fizesse

    parte de seu empenho de tornar conhecido o Brasil nos meios cultos

    da Europa.

    Em 1871, publica-se em Viena a Histria das lutas com os

    holandeses no Brasil (desde 1624 a 1654). No ano seguinte teria

    lugar a impresso desse texto em Portugal (Tipografia de Castro

  • 16

    Irmo, Lisboa), com reedio em 1874. A edio brasileira somente

    se daria em 1945.

    Em 1872, em Viena, publica estudo bibliogrfico dos autores

    que contriburam para tornar usual a denominao de Amrica.

    Nesse mesmo ano, no Rio de Janeiro, o Arquivo Nacional publica

    textos de sua autoria sobre a Prosopopia, de Bento Teixeira Pinto e

    sobre o livro Peregrino da Amrica, de Nuno Marques Pereira

    (1652/1753), sucessivamente reeditado no sculo XVIII; e, em

    Lisboa, pela Tipografia de Castro Irmo, Estudo biogrfico de

    Salvador Corra de S e Benevides.

    Em 1874, em Viena, texto descritivo do Maranho.

    Em 1878, aparece no Rio de Janeiro, a Biografia de Santa

    Rita Duro

    No perodo indicado, preparou a Histria da Independncia

    do Brasil, somente publicada em 1916, na Revista do Instituo

    Histrico, sendo editada pela Imprensa Nacional, no ano seguinte.

    Em que pese essa edio autnoma, na verdade se constitui no tpico

    final da Histria geral, como bem entendeu Rodolfo Garcia.

    Merece os comentrios que se seguem na medida em que

    comprova como era escrupuloso, no tocante s responsabilidades do

    historiador.

    Na correspondncia de Varnhagen com o Imperador Pedro II,

    comentada por Hlio Viana (1908/1972) --na apresentao da obra

    antes mencionada--, em comeos da dcada de cinqenta, quando

    ultimava a publicao da Histria geral do Brasil, explica as

    razes pelas quais estava em dvida quanto aos eventos com os quais

    a concluiria. Segundo indica, imaginava que seria o ano de 1825,

    nstituio; o reconhecimento da Me-Ptria

    e o nascimento de V.M.I, mas no me foi possvel. To espinhosa

    por enquanto a tarefa de imparcial marcao desse perodo,

    orao).

    Pelo que foi indicado, optou finalmente por 1822.

  • 17

    Compreende-se a dificuldade de Varnhagen, quando se vivia

    pouco mais de uma dcada na busca dos caminhos para estabelecer o

    vez, o pas iria alcanar o normal funcionamento das instituies

    governamentais. No ciclo em apreo, no devia haver o necessrio

    distanciamento para escolher os documentos que pudessem dar uma

    idia do que Octvio Tarqunio c

    caracterizar os dois decnios que se seguiram Independncia.

    fcil dar-se conta da consistncia de seus argumentos se tivermos

    presente a incapacidade dos republicanos de valorizar a nossa

    primeira experincia de governo representativo, vale dizer do

    Segundo Reinado, persistindo no tom planfetrio do perodo em que

    se tratava de popularizar a idia do novo regime, o que at hoje

    dificulta conceber instituies capazes de reproduzir o meio sculo

    de estabilidade poltica que nos proporcionou aquela primeira

    experincia.

    A opo por levar a Histria Geral at a Independncia ter

    tardado tanto muito provavelmente porque se tratava, como era de

    com o Brasil c -lo,

    ainda Varnhagen quem esclarece, prende-

    apreciaes (que) se nos apresentaram em vista de novos documentos

    e informaes fidedignas por ns recolhidas, s vezes inteiramente

    em oposio s que se encontram admitidas pelos escritores que nos

    Aproveita o ensejo para explicitar um dos princpios que,

    entende, devem nortear a ao de quem se proponha dedicar-se a

    adivinhar a

    existncia de documentos que no so de domnio pblico e no

    encontra, e cumpre com o seu dever quando, com critrio e boa f e

    imparcialidade, d, como em um jurado, mui conscienciosamente o

    seu veredictum, cotejando os documentos e as informaes orais

    apuradas com o maior escrpulo que, custa do seu ardor em

  • 18

    A Histria da Independncia corresponde a um verdadeiro

    primor em matria de utilizao da documentao disponvel. Assim,

    por exemplo, a convico (ou talvez sobretudo a esperana) da

    entourrage de D. Joo VI, diante da Revoluo do Porto, era a de que

    no conseguiria sustentar-se. Essa evidncia, contudo, transmitida

    atravs de sucessivos documentos e acaba por saltar s vistas do

    leitor pela simples apresentao da correspondncia daquelas

    autoridades --e do prprio Rei-- com as Cortes de Lisboa, que

    acabaram sendo divulgadas. O Ministrio da poca --ao qual um

    partidrio da monarquia constitucional como Palmella no conseguiu

    ajustar-se, terminando por pedir demisso--, com a anuncia de D.

    Joo VI, obviamente tratava de ganhar tempo. Conclui-se que

    estavam empenhados na preservao da monarquia absoluta, sem que

    essa tese seja alardeada.

    Deste modo, a ascenso de Silvestre Pinheiro Ferreira ao

    governo sugere que D. Joo VI convencera-se de que seria obrigado

    a negociar. Sua escolha para chefiar o governo correspondia a

    acontecimento inusitado no contexto, a ponto de que o prprio, no

    tendo tomado conhecimento de dois chamados anteriores do Rei,

    acabou sendo conduzido preso a palcio. Silvestre Pinheiro Ferreira

    tivera oportunidade de indicar ao Rei a necessidade de antecipar-se

    transio, de modo a trilh-la de forma pacfica.

    Diante da intransigncia das Cortes, fracassada a tentativa de

    negociao empreendida por Silvestre Pinheiro Ferreira, tornando

    impossvel a convivncia tanto com o Rei como com a nova

    liderana emergente no Brasil, no lhe restava outro caminho seno o

    de exilar-se na Frana.

    Cito estes fatos para mostrar como o tratamento escrupuloso,

    do material histrico disponvel, pode facultar nova luz na

    compreenso do processo em seu conjunto.

    Do que precede acredito ter tornado patente que Varnhagen

    estava imbudo dos princpios que, no sculo XIX, lanaram as bases

    das novas regras de estabelecimento da objetividade histrica.

  • 19

    Indique-se, adicionalmente, que na Histria geral do Brasil

    menciona expressamente cada um dos historiadores que o

    antecederam, prestando-lhes o devido tributo.

    No tpico subseqente tentaremos destacar as regras que

    Varnhagen procurou estabelecer para a histria geral do pas, regras

    essas que, preservadas sem revestir-se de tom dogmtico ou

    impositivo, permitiram a geraes posteriores de historiadores

    revisitar muitos dos temas ento abordados, aprimorando o seu

    conhecimento, sem embargo do que se indicar acerca do quadro

    atual.

    A concepo do formato adequado

    ao carter geral da obra

    Como se sabe, quando os instituidores do Instituto Histrico

    discutiam o formato de que deveria revestir-se uma Histria do

    Brasil, tinha-se dvida inclusive de onde comear, cogitando-se

    mesmo da hiptese de faz-lo a partir de 1808. nesse ambiente que

    sobressai a contribuio de Varnhagen, estabelecido o consenso de

    que se partiria do descobrimento.

    Na poca, a questo das fronteiras ainda era sensvel, na

    medida em que faltava acertar detalhes onde as divergncias eram, a

    bem dizer, inevitveis, cabendo soluciona-las de forma a no deixar

    seqelas, feito notvel alcanado pelo Baro do Rio Branco.

    Prudentemente, no cita as coordenadas geogrficas,

    passando diretamente s razes provveis da escolha do nome,

    acidentes geogrficos, clima, fauna, etc. Tudo indica que o fez

    deliberadamente, na medida em que se ocupara especificamente do

    tema quando do exerccio de funes diplomticas nos pases

    vizinhos. Com o passar do tempo, a lacuna seria preenchida, cabendo

    registrar, na matria, a dedicao com que Max Guedes reconstituiu

    a histria da cartografia dedicada ao pas. Os outros aspectos fsicos

    tambm vieram a ser fartamente ilustrados, mencionados em nota por

    Rodolfo Garcia.

  • 20

    Seguem-se a reunio das informaes que se preservaram

    sobre os aborgines e do contexto histrico em que se d o

    descobrimento.

    Quanto aos indgenas, considero que a informao reunida

    por Varnhagen deve ser preferida dos jesutas que se ocuparam dos

    primeiros passos da catequese. Sem embargo do papel que

    desempenharam no estabelecimento das bases de um dos elementos-

    chave da unidade nacional --a religio crist--, deram preferncia

    queles aspectos da cultura aborgine que poderiam facilitar a

    transmisso de sua mensagem. Outras fontes a que recorreu

    Varnhagen, a exemplo de Gabriel Soares de Sousa, a descreveram

    sem segundas intenes sendo talvez mais fidedignas. A verdade

    que o convvio com os portugueses tornou cada vez mais difcil

    apreend-la em sua pureza original, como se pode comprovar dos

    percalos experimentados por Couto de Magalhes (1837/1898),

    nesse mister, conforme se pode ver dos resultados de suas pesquisas,

    sistematizadas em O selvagem (1876).

    No caso, historiografia competiria dar conta dos seus

    valores originrios, incumbncia que no abrange avaliaes. No se

    trata tambm de evitar que sejam efetivadas mas apenas de precisar

    que tal deve dar-se em lugar prprio.

    Ainda quanto a esse aspecto, na poca de Varnhagen

    acreditava-se ser possvel estabelecer, em bases cientficas, a sua

    origem. Embora se haja detido nesse aspecto em outro lugar --

    Lorigine touraniene des Americans Tupi-Caribes et des anciens

    Egyptiens indiquee par la Philologie compare et notice d`une

    emigration em Amerique effetue travs lAtlantique sicles

    avant notre era.Vienne, 1876--, tudo indica que o interesse por esse

    tipo de especulao haja desaparecido. De todos os modos, no faz

    muito sentido, na Histria do Brasil, deter-se na reconstituio desse

    debate.

    No que respeita ao descobrimento, Varnhagen procurou

    escrupulosamente registrar no s o contexto da poca como as

    conquistas da navegao portuguesa e o fato de que, no perodo em

  • 21

    que Cabral aporta a Porto Seguro, outros navegadores registraram a

    existncia dessa parte do continente.

    Entendo que a abordagem clssica e definitiva sobre o tema

    coube a Capistrano de Abreu (1853/1927) no ensaio com esse ttulo

    concurso a que se submeteu no Pedro II (1881). Desde ento tornou-

    se praxe public-los em conjunto. Publicao autnoma do primeiro

    ensaio pode ser acessado em www.cdpb.org.br/leiturabasica

    glria de ter descoberto o Brasil: a Frana, a Espanha e Portugal.

    pendncia soluo magistral.

    O elemento unificador dos trs primeiros sculos corresponde

    ao estabelecimento e efetivao da poltica portuguesa de

    colonizao. Parece tautolgico mas assim no foi entendido pelos

    desbravadores de nossa historiografia. Tenha-se presente o exemplo

    de Southey, que fixou como a chave da compreenso do processo a

    disputa entre potncias estrangeiras e a comunidade de destino

    histrico entre o Brasil e os pases limtrofes.

    Varnhagen, por sua vez, foi logo ao ponto. Reconstitui

    minuciosamente os percalos da definio da mencionada poltica e

    enfatiza o papel de Martim Afonso de Sousa. A expedio desse

    nobre portugus mereceria o devido destaque, no s descrevendo-a

    como detendo-se no que colheu da prpria expedio bem como o

    sumrio de seus resultados imediatos. Tais aspectos mereceram nada

    menos que trs captulos.

    Seguindo o alvitre de Gabriel Soares de Sousa trata, em

    particular, vale transcrever a referncia ao acar.

    nia (So Vicente) a

    primeira que apresentou um engenho de acar moente e corrente,

    havendo para esse fim o donatrio feito sociedade com alguns

    estrangeiros entendidos nesse ramo, como os Venistes, Erasmos e

    Adornos, sem dvida no Brasil mestres e propagadores de tal

    http://www.cdpb.org.br/leiturabasica
  • 22

    indstria, que primeiro permitiu que o pas se pudesse reger e pagar

    seus funcionrios, sem sobrecarregar o tesouro da metrpole. Se

    alguns destes no eram j vindos das ilhas da Madeira e So Tom,

    no h dvida que muitos dos principais operrios da vieram, no s

    para o Brasil, como para as colnias tropicais da Amrica espanhola,

    onde ainda so portugueses muitos nomes nos engenhos, como

    interessante frisar o fato de que tivesse desde logo

    assinalado qual o significado do que, mais tarde, seria batizado de

    -

    tempo, embora contestado em toda a nossa histria, mesmo em

    momentos de grandes riscos para a nossa sobrevivncia como na

    transio do trabalho escravo para o livre, at hoje satanizada por

    expressivos segmentos da intelectualidade.

    Varnhagen dedica captulo autnomo vida dos primeiros

    colonos e suas relaes com os ndios, logo consignando que

    comearam por adotar muitos de seus usos habituais, enumerando-

    os. Dizem respeito basicamente a espcies vegetais incorporadas

    alimentao, palavras, etc. Parece-lhe contudo que, no tocante ao

    trabalho --que se revelou uma questo essencial, cabe enfatizar--

    deixaram de atentar para o hbito que tinham de trabalhar poucas

    horas, evitando faz-lo na parte mais quente do dia. Vista distncia,

    mais parece uma iluso, certamente acalentada pelo desconforto que

    revela, no captulo seguinte, em relao alternativa adotada

    (trabalho escravo). A exemplo do comum dos conservadores

    brasileiros da poca, tinha presente os riscos que enfrentava o pas

    no imperativo da transio para o trabalho livre. Se no fosse

    encontrada uma sada --como veio a ocorrer com a inveno do

    original sistema de parceria (que combinava trabalho remunerado

    com atividade empresarial autnoma)-- iramos enfrentar uma crise

    da qual ningum sabe qual seria o desfecho.

    Duas inferncias podem ser efetivadas da circunstncia

    descrita. Primeira: mesmo um historiador escrupuloso como

  • 23

    Varnhagen pode deixar-se influir, na anlise de determinado evento,

    por uma preocupao ocasional. Segunda: a importncia para a

    normal sobrevivncia do pas de que se revestia, na segunda metade

    do sculo XIX, a eliminao do trabalho escravo de modo a

    assegurar a manuteno do modelo agro-exportador. O mnimo que

    se pode dizer dos que, ainda hoje, nutrem a convico de que a

    pequena propriedade, conduzida por colonos estrangeiros, poderia

    desempenhar tal papel que no sabem fazer contas.

    Depois de descrever os aspectos enumerados --que, sem

    dvida proporcionam uma idia (esttica) do Brasil como um todo,

    no ciclo subseqente descoberta--, no formato idealizado por

    Varnhagen a fim de reconstituir a sua histria, chega-se ao

    estabelecimento do governo geral (Captulo XV). Completa o que, na

    sua viso, seria o essencial: a poltica portuguesa de colonizao,

    elemento constitutivo daquilo que viemos a ser nos trs primeiros

    sculos.

    A organizao do governo geral deu-se em 1549,

    praticamente meio sculo aps a descoberta. No perodo

    transcorrido, evidenciaram-se duas questes prioritrias: a defesa e a

    organizao de uma atividade produtiva que pudesse, como foi

    o de que teria

    prosseguimento a pesquisa de riqueza mineral, basicamente ouro e

    diamantes. No registro do evento, Varnhagen chama a ateno para

    um outro aspecto.

    delegar parte de sua autoridade em todo o Estado do Brasil num

    governador geral, que pudesse coibir os abusos e desmandos dos

    capites-mores donatrios, ou de seus locotenentes ouvidores, que

    acudisse s capitanias apartadas em casos de guerras dos inimigos ou

    de quaisquer arbtrios, autorizando que fiscalizasse enfim os direitos

    da coroa, conciliando ao mesmo tempo os dos capites e os dos

    colonos, determinou fixar a sede do governo geral na Bahia, por ser o

  • 24

    A questo nova para a qual chama a ateno --a necessidade

    de assegurar-se a Lei e a Ordem-- viria a merecer aprofundamento na

    obra de Oliveira Viana (1883/1951), sobretudo em Populaes

    meridionais do Brasil (1920). O aprofundamento em causa repousa

    na anlise da forma de que se revestiu a organizao da atividade

    produtiva central (grandes fazendas e engenhos), assumindo ao fim

    dos trs primeiros sculos a feio de autnticos cls. O pas corria o

    risco da anarquia que certamente resultaria se diante dos chefes

    desses cls no se tivesse erguido a autoridade do que denomina de

    capites gerais (autoridades fixadas nas capitanias onde as

    populaes foram se deslocando para o interior ou somente neste se

    localizassem, a exemplo de So Paulo e Minas Gerais) para

    distinguir dos capites-mores, denominao que lhe parecia deveria

    ser usada por referncia a esse tipo de autoridade que logo foi

    instituda nos ncleos populacionais do litoral.

    A tese de Oliveira Viana, que nos parece bastante consistente,

    tem o mrito de bem precisar o papel da aristocracia rural no

    povoamento do pas, sem idealiz-la, ao mesmo tempo em que fixa

    com propriedade o papel do Estado. Enterra a simplificao que seria

    Ainda no que respeita ao tema da colonizao, cumpre

    consignar a contribuio definitiva de Capistrano de Abreu ao

    principais estudiosos de sua obra, considere que os Captulos de

    Histria Colonial formam um todo que deve ser lido (ou estudado)

    em conjunto, o prprio Capistrano reuniu outros ensaios dando-lhe o

    ttulo antes referido, que justamente uma sntese extraordinria do

    papel da iniciativa privada na ocupao do interior do pas.

    Enfim, bem fixadas as caractersticas da poltica portuguesa

    de colonizao, para Varnhagen os acontecimentos passariam a ser

    descritos em perodos histricos com certa homogeneidade. No

    primeiro sculo, toma por base, exclusivamente, os governos gerais -

    -talvez para fazer sobressair o seu entendimento de que, com a sua

  • 25

    criao ganhamos fonte documental primorosa--, detendo-se na

    dcada de oitenta para a introduo de uma espcie de balano geral,

    data escolhida mais para homenagear os estudiosos precedentes

    como Cardim, Gandavo ou Gabriel Soares de Souza do que registrar

    o incio do perodo filipino. Nas centrias subseqentes, com tantos

    eventos extraordinrios como as guerras holandesas, no segundo, e o

    Tratado de Madrid e a mudana radical da coroa portuguesa de

    subservincia Igreja Catlica, com a ascenso de Pombal, a

    subdiviso teria que refletir a nova realidade.

    sculo XVIII... obra exclusiva de Varnhagen, o primeiro a escrev-

    la integralmente, como bem observou Capistrano de Abreu. Para o

    tempo em que foi escrita, pode considerar-se completa ou quase

    considerada como adequada formulao de outro princpio que rege a

    historiografia, enriquecendo o legado de Varnhagen nessa matria.

    Vejamos de que se trata.

    abarca os descobrimentos das minas, os movimentos

    emancipacionistas, as lutas com os espanhis no Sul, que testemunha

    o povoamento inslito do Brasil, sua maior expanso territorial, sua

    mais acentuada importncia poltica e administrativa: aquele perodo

    tem sido, depois de Varnhagen, objeto de pesquisas mais acuradas,

    de estudos mais aprofundados, medida que os depsitos de

    documentos se tornam mais acessveis, e medida tambm que

    forem surgido monografias especiais elucidativas de fatos nele

    Esse precisamente o entendimento que cabe preservar do

    significado do trabalho desenvolvido pelos que criaram a

    historiografia nacional, entre os quais Varnhagen ocupa lugar dos

    mais proeminentes.

    A esse propsito no poderia deixar de registrar aqui a viso

    renovada que tem sido proporcionada do mencionado sculo XVIII,

    justamente seguindo uma das pistas abertas pelo insigne mestre.

  • 26

    Como antes se referiu, Varnhagen registra a atuao da

    Inquisio no Rio de Janeiro, na primeira metade do sculo XVIII, a

    fim de destacar o carter odioso da instituio.

    O significado da presena do Santo Ofcio, em nossa histria,

    corresponde a um dos aspectos mais enriquecidos pela investigao

    subseqente. Assinalo o que me parece essencial.

    Omer MontAlegre (1913/1989) havia correlacionado a

    intensificao da atividade inquisitorial, no perodo mencionado, isto

    , primeira metade do sculo XVIII, ao desmantelamento do

    empreendimento aucareiro --na obra Acar e capital (Rio de

    Janeiro, Instituto do Aucar e do lcool (IAA), 1974). De fornecedor

    praticamente monopolista no sculo XVII e incio do seguinte, chega

    condio de participante marginal, nesse mercado, no fim da

    centria (13,7% das exportaes mundiais em 1796).

    Louva-se da freqncia com que se encontram senhores de

    engenho e outros ligados quela atividade, nos dados ento

    conhecidos sobre os autos-de-f, bem como na denncia efetivada,

    nesse sentido, por D. Lus da Cunha (1662/1749) em documentos

    dirigidos ao Rei e outras autoridades que, ainda que tudo indique

    tivessem sido do conhecimento de setores da elite, quando de sua

    elaborao, somente no incio da transio para a monarquia

    constitucional, devida Revoluo do Porto (1820), vieram a ser

    divulgados com o ttulo de Testamento poltico, obra posteriormente

    reeditada em diversas oportunidades, a partir de sua incluso nas

    Obras inditas de D. Lus da Cunha (Lisboa, Imprensa nacional,

    1821). Nas indicaes apresentadas ao Rei encarece a necessidade de

    ser proibido o confisco dos bens dos senhores de engenho, a que se

    dedicava a Inquisio, nada indicando que haja sido atendido.

    A confirmao definitiva dessa hiptese resultaria do

    extraordinrio trabalho de pesquisa desenvolvido pela professora da

    USP, Anita Novinski. Conseguiu identificar a profisso de parcela

    representativa dos processados pela Inquisio no mencionado

    perodo, permitindo concluir que cerca de 70% eram pessoas

    abastadas, entre estes senhores de engenho e outros personagens

  • 27

    ligados ao acar. A sistematizao desses estudos constam de Rol

    dos culpados. Fontes para a histria do Brasil --sculo XVIII (Rio

    de Janeiro, Expresso e Cultura) e Inquisio.prisioneiros do

    Brasil. Sculos XVI a XIX (So Paulo, Perspectiva, 2009).

    A intensificao da atividade do Santo Ofcio, na primeira

    metade do sculo XVIII, no governo de D. Joo V, sendo inquisidor

    o cardeal D. Nuno da Cunha, acha-se igualmente documentada por

    Francisco Bethencourt (Histria das Inquisies --Portugal,

    Espanha e Itlia, Lisboa, 1987).

    De minha parte, efetivei a periodizao da Inquisio em

    Portugal (Momentos decisivos da histria do Brasil --Martins

    Fontes, 2000).

    Tivemos oportunidade de referir os escrpulos de Varnhagen

    no tocante abrangncia da Histria Geral do Brasil, optando por

    encerr-la ordenando a vasta documentao que conseguiu reunir

    acerca da Independncia.

    O imperativo de preservarmos a

    herana cultural de nossos antepassados

    Com a capacidade ordenadora do real (para usar uma

    expresso kantiana) que sempre tem demonstrado, Arno Wehling

    conseguiu bem situar tanto o papel formativo da obra de Varnhagen

    como os aspectos de que se ocuparam os que a consideraram desse

    ngulo. Seriam os seguintes: a) estudos biobibliogrficos

    (incompletos os do sculo XIX e parciais os do sculo XX); b) a

    crtica cientificista (Capistrano, Silvio Romero e Pedro Lessa,

    reivindicando uma viso sociolgica da histria); c) crtica erudita,

    apologticos ou buscando defeitos, embora proclamando qualidades;

    e d) reavaliaes contemporneas.

    A crtica cientificista era parte de movimento renovador da

    cultura brasileira, que teve desdobramentos positivos e negativos do

    ponto de vista de nossas tradies culturais. Abriu novos caminhos --

    a exemplo do culturalismo de Tobias Barreto-- mas tambm reforou

  • 28

    o cientificismo com efeitos catastrficos para a historiografia,

    presentes sobretudo no que Arno Wehling denomina de

    A tradio historiogrfica digna do nome, mesmo quando no

    registra especificamente a Varnhagen, soube preservar os princpios

    que, de fato, eram consensuais aos criadores da historiografia

    brasileira. Arno Wehling refere o caso de Oliveira Viana que, como

    A reavaliao contempornea, desde as dcadas de sessenta e

    setenta, notadamente por influncia francesa, consiste, como diz,

    posies marxistas e naquelas vinculadas ao movimento dos Annales

    e da Nouvelle Histoire. -se sobre

    universitrio e na pesquisa, inspiradores do ensino primrio e

    De minha parte, entendo que a rejeio no atinge apenas

    Varnhagen mas o conjunto da historiografia e s diversas linhas de

    pesquisa dedicadas cultura brasileira, de um modo geral.

    Essa avassaladora ocupao da praa representa

    empobrecimento cultural de tal magnitude que exige uma reao

    altura.

    O Brasil jamais ultrapassar o subdesenvolvimento --que

    longe est de limitar-se economia-- se no for capaz de avaliar com

    propriedade as contribuies daqueles que nos precederam. Graas

    simples comemorao dos quinhentos anos --que parece ter sido

    esquecida quando transcorreu apenas uma dcada-- perdemos o

    direito de continuarmos nos conformando com o atraso, reconhecido

    em anlise isenta de qualquer domnio do conhecimento, a pretexto

  • 29

    Encontrar as formas de permitir que as novas geraes

    tenham acesso s mencionadas contribuies um dever de que no

    podemos nos furtar.

    ANEXOS

    Nota sobre o modelo historiogrfico de Southey

    Justifico nesta nota a afirmativa de que o trabalho pioneiro de

    crtica obra de Gabriel Soares de Sousa que ter inspirado

    Varnhagen na concepo do modelo que adotou na sua Histria

    Geral do Brasil. Como a edio da mencionada obra, ocorrida em

    1825, havia sido precedida pela publicao da Histria do Brasil de

    Robert Southey (1774/1843), trs volumes em ingls, efetivada em

    Londres entre 1810 e 1819 (a traduo portuguesa somente ocorreria

    em 1862, a cargo da Livraria Garnier, Rio de Janeiro), o mais

    plausvel seria admitir que adviria desta o modelo em causa,

    notadamente por abranger o perodo colonial em sua quase totalidade

    enquanto o livro de Gabriel Soares de Souza apenas o primeiro

    sculo. Lembro aqui que traa as caractersticas fsico-geogrficas,

    descreve os aborgenes, destaca o significado da Expedio de

    Martim Afonso, em matria de fixao da poltica colonial

    portuguesa e, talvez o que seria mais relevante, estabelece distino

    entre as capitanias, ocupando-se das que considerava bem sucedidas

    por t-las visto de perto. Essa distino que iria permitir reconhecer

    que, nesta fase inicial lanam-se as bases da prspera civilizao

    implantada na Zona da Mata de Pernambuco e no Recncavo Baiano,

    anteriores ao surto minerador. Naturalmente insere omisses e erros,

    conforme foi assinalado.

    A questo magna que interessa a Southey corresponde

    disputa pela posse do Brasil. Registra a presena francesa mas de

    fato ocupou-se mais vivamente daquela que atribui Espanha.

    Numa primeira aproximao, esse tipo de preocupao decorreria da

    existncia do perodo filipino, quando de fato se estabelece o

  • 30

    tivesse sido outra e at a insinua, como iremos referir. O certo

    entretanto que no h um texto contnuo sobre o Brasil mas

    entremeado pela histria de pases vizinhos. Vejamos alguns

    exemplos.

    No primeiro volume, depois de indicar as viagens ao Brasil e

    registrar a de Cabral, embora a detalhe, logo a mistura com as de

    Amrico Vespuci e passa ao captulo II onde o tema a descoberta

    do Rio da Prata. Embora neste figure a referncia subdiviso do

    Brasil em capitanias, no d qualquer indicao de seu significado,

    em termos de poltica portuguesa de colonizao. Nem parece ter-se

    dado conta de que proviria da Expedio de Martim Afonso de

    Sousa. A par disto, o relato acha-se entremeado por indicaes

    estes mesmos tempos se formou outra capitania, a de Pernambuco.

    Um navio de Marselha ali havia estabelecido uma feitoria, deixando

    nela setenta homens, pensando em manter a possesso. Mas o navio

    foi apresado na volta, e sabendo-se assim em Lisboa do ocorrido

    No satisfeito com esta forma de apresentar a sua Histria do

    Brasil, o captulo III est dedicado fundao de Buenos Aires. No

    captulo IV, que se segue, supostamente volta ao Brasil, desta vez

    dedicando-se ao Maranho. Mas o projeto de ocupao de que se

    trata diz respeito a sdito de Espanha e explicita tratar-se do

    Somente na parte final alude-se ao fracasso desta tentativa espanhola

    de colonizao mas portuguesa, que a sucedeu, dedica umas poucas

    qual no se teve

    No captulo seguinte (V) o tema o Prata, com nfase no

    Paraguai passando a nfase, no captulo VI, ao Peru. No VII, volta ao

    Brasil mas para se ocupar de Hans Staden.

    Estamos num tero do volume I, quando se chega ao governo

    geral.

  • 31

    Qual a imagem que nos transmite da rea descoberta h

    poucos sculos? Primeiro, no que se refere especificamente

    Amrica do Sul, no haveria distines a assinalar entre as partes

    componentes. A potncia que destaca no Portugal mas a Espanha.

    No que respeita propriamente ao Brasil, sobressaem as disputas por

    sua posse enquanto o domnio na parcela restante (Nova Espanha)

    parece inconteste. No se apercebeu da mudana estabelecida na

    poltica portuguesa de colonizao em decorrncia da expedio de

    Martim Afonso de Sousa.

    No restante deste primeiro volume, como de resto nos dois

    subseqentes (o ltimo, terceiro, chega a Pombal, expulso dos

    seu estado ao tempo de passar ali a

    diversa: disputa pela posse e integrao ao conjunto. Em relao ao

    seu propsito h uma indicao esclarecedora no III volume (pg.

    1428 da edio do Senado). Transcrevo-

    tivessem previsto quo depressa iam ver-se envolvidos, numa guerra

    com a Espanha, teriam logo tomado parte na justa contenda do Rei

    de Portugal, a respeito de Nova Guiana, em vez de lhe excitarem

    ressentimento e a m vontade, intervindo unicamente para emplastar

    a desavena te

    Cumpre esclarecer que estas indicaes dizem respeito

    apenas questo do modelo adotado por Southey --contrastando-o

    com o que preside Histria geral do Brasil-- e nem de longe por

    em causa os mritos de sua obra. Prestou-nos enorme servio, dando

    a conhecer aos ingleses algo acerca do Brasil. H de ter contribudo

    para torn-los nosso aliado, quando passamos a carecer do

    reconhecimento internacional vista da Independncia.

    Nota sobre o livro Histria da Colonizao Portuguesa do

    Brasil

    Em sucessivas oportunidades o nome de Varnhagen tem sido

    associado obra em epgrafe. Levando em conta esse fato, pareceu-

  • 32

    me que seria adequado proporcionar ao leitor uma breve notcia de

    seu contedo. Ver-se- que a associao em apreo prende-se

    sobretudo ao fato de que, tratando-se de documentar o feito

    considerado, a grande autoridade que os autores invocam a do

    fundador da nossa historiografia. Com efeito, os documentos que

    permitiram fazer-nos uma idia dos percalos experimentados por

    aquela maravilhosa aventura, praticamente em sua totalidade,

    tornaram-se acessveis graas dedicao daquele mestre, como tem

    sido apontado e pode-se ver do seu livro bsico.

    A referncia a seguinte: Histria da Colonizao

    Portuguesa do Brasil. Edio comemorativa do primeiro centenrio

    da Independncia do Brasil. Coordenao de Carlos Malheiros Dias.

    Porto: Litografia Nacional, 1921-1924, 3 vols. A obra acha-se

    fartamente ilustrada e tem estas dimenses: 37 x 28 cm.

    Indique-se que a publicao intitula-se, merecidamente, sem

    Na ilustrao de abertura constam estas notas: Planisfrio de

    Jernimo Marini (1511), onde pela primeira vez aparece a Amrica

    do Sul com a denominao de Brasil. O volume I inclui a carta de

    Pero Vaz de Caminha a El-Rei D. Manuel, verso em linguagem

    atual, com anotaes da doutora D. Carolina Michaelis de

    Vasconcelos, professora de Filologia, na Faculdade de Letras da

    Universidade de Coimbra, v. 2., p. 86-99.

    Os documentos inseridos nos diversos volumes, geralmente

    localizados por Varnhagen, so transcritos em fac-smile e, por

    vezes, acompanhados da impresso do seu contedo com a ortografia

    da data da edio. A presena de Varnhagen assinalada logo no

    incio ao ser transcrito o fac-simile das recomendaes que levaram

    Cabral a afastar-se da costa. A esse propsito teria oportunidade de

    esclarecer na Histria geral do Brasil

    recebeu e das quais chegaram providencialmente s nossas mos

    alguns fragmentos da maior importncia, foi-lhe recomendado que na

    altura de Guin se afastasse quanto pudesse da frica, para evitar

    suas morosas e doentias calmas.Obediente a essas instrues, que

  • 33

    haviam sido redigidas pelas insinuaes de Gama, Cabral se foi

    amarando da frica, e naturalmente ajudado a levar pelas correntes

    ocenicas ou pelgicas, quando se achava com mais de quarenta dias

    Em

    -simile ou borro da primeira folha do

    rascunho ou borro dessas instrues, por ns encontrada e mandada

    A atribuio a Vasco da Gama --de responsabilidade de

    Varnhagen-- veio a ser confirmada pelos eruditos portugueses que

    prepararam a obra que estamos considerando, apenas com a preciso,

    efetivada por Antonio Baio, de que seriam notas tomadas pelo

    secretrio de Estado Alcaova Carneiro, ouvido o parecer de Vasco

    e inicia-se, como foi indicado, pelo fac-simile das instrues

    recebidas por Pedro lvares Cabral. Tem como propsito atestar que,

    -se a circunavegao costa a costa,

    aventurando- tificar a transcrio

    de documentos que, no entender dos compiladores, permitiram

    deduzir da intencionalidade da descoberta. apresentado o inteiro

    teor do Tratado de Tordesilhas.

    Alm dos documentos --todos antecedidos por longas

    introdues--, este primeiro volume contm a caracterizao da Era

    --

    --Prof. Duarte Leite (captulo

    III

    (captulo IV). Ao todo o volume tem 226 pginas, em grande nmero

    ocupadas por ilustraes.

    O volume II intitula- -se

    composto apenas por ensaios de eruditos portugueses, a saber: A

    expedio de Cabral --Jaime Cortezo (captulo V); De Restelo a

    Vera Cruz --H. Lopes Mendona (captulo VI); A semana de Vera

    Cruz --C. Malheiro Dias (captulo VII); A expedio de 1501 --C.

  • 34

    Malheiro Dias (captulo VIII); O mais antigo mapa do Brasil --Prof.

    Duarte Leite (captulo IX); A expedio de 1503 --C. Malheiro Dias

    (captulo X); O comrcio do Pau Brasil --Antonio Baio (captulo

    XI); e O descobrimento do Rio da Prata --F. Esteves Pereira

    (captulo XII). O volume abrange das pginas 227 a 458.

    O terceiro e ltimo volume saiu a lume em 1924 e intitula-se

    -1580). Quer marcar a mudana de

    orientao, em seguida morte de D. Manuel I (fins de 1521). Na

    ndia dos esplendores

    inesperadamente aparecia transformada em sugadouro de cabedais e

    contra os males de um aparente gigantismo, que produziu a obra

    O volume III segue o modelo do antecedente, isto , compe-

    se de ensaios eruditos (desta vez com a participao brasileira),

    adiante relacionados. Assinale-se que o livro obedeceu a numerao

    autnoma das pginas, o mesmo acontecendo com os captulos.

    Segue-se a enumerao:

    Captulo I --A Metrpole e suas conquistas nos reinados de

    D. Joo III, D. Sebastio e

    Cardeal Henrique C. Malheiro Dias (p. 2-58)

    Captulo II --A expedio de Cristovam Jacques Antonio

    Baio e C. Malheiro Dias .

    (p.59-96)

    Captulo III A expedio de Martim Afonso de Sousa --

    Jordo de Freitas (p.97-166)

    Captulo IV A soluo tradicional da colonizao do Brasil -

    -Prof. Paulo Mera

    (p. 167-193)

    Captulo V --Os primeiros donatrios --Pedro Azevedo (p.

    194-220)

    Captulo VI --O regime feudal das donatarias --C. Malheiro

    Dias (p. 221-258)

    Apndice de documentos ( p. 259-286)

  • 35

    Captulo VII --A nova Lusitnia --Oliveira Lima ( p. 287-

    326)

    Captulo VIII --A instituio do governo geral --Pedro

    Azevedo p. 327-344

    Apndice de documentos ( p. 350-383)

    Indicaes sobre a transcrio

    Antonio Paim

    Consta da Histria Geral do Brasil este subttulo

    Subdivide-se em cinco tomos, que totalizam 1.795 pginas,

    aos quais foi acrescida a Histria da Independncia do Brasil (365

    p.). Essa separao prende-se ao fato de que Varnhagen a publicou

    depois de dar ao prelo os cinco tomos precedentes. Acertadamente,

    entendeu Rodolfo Garcia que corresponde parte final da Histria

    Geral. De sorte que, o comum das reedies mantm esse formato,

    sem embargo de que em nada prejudica o conjunto sua publicao

    em separado.

    Varnhagen adotou a denominao de seco, ao invs de

    captulo.

    Por razes que transcendem o objetivo central da transcrio

    (dar uma idia do conjunto da obra), optamos por inserir de forma

  • 36

    autnoma --e logo no incio-- a informao de que dispunha da

    atuao da Inquisio, no Rio de Janeiro, no sculo XVIII, razes

    essas que aponto na breve nota introdutria que a antecede..

    No tomo primeiro, no chega a completar-se o relato

    dedicado ao primeiro sculo, a que se refere a transcrio

    subsequente, merecendo entretanto breves comentrios.

    Na transcrio em causa, cujo propsito consiste em facilitar

    o conhecimento do magistral trabalho desenvolvido por Varnhagen,

    no estabelecimento dos marcos essenciais, a limitamos aos captulos

    que fixam os rumos que seriam seguidos para assegurar a ocupao

    do territrio, dada a circunstncia de no ter sido localizada riqueza

    mineral, de imediato, ao tempo em que a posse era disputada por

    potncias europias concorrentes.

    Pareceu-nos que o mencionado objetivo seria alcanado pela

    apresentao das seces VII; VIII e IX, dedicadas expedio de

    Martim Afonso (1530) e seus resultados imediatos. Para definir o

    caminho a seguir, incumbiu seu irmo de fazer uma viagem

    exploratria, de que deu conta em documento localizado por

    Varnhagen. Concebeu uma estratgia de ocupao que depois seria

    generalizada. Segue-se a seco XV, em que aborda a criao do

    governo central na Bahia (1549). Por fim, no que respeita ainda ao

    sculo XVI, transcreve-se a Seco XIII (com que se inicia o Tomo

    Segundo) que insere uma espcie de balano. Intitula-

    de Sousa, autor do Tratado Descritivo do Brasil. A publicao do

    trabalho historiogrfico desenvolvido por Varnhagen e muito

    influenciaria no rumo que adotou e empreendeu. No conseguiu

    determinar a data em que teria sido escrito (na edio de que se

    incumbiu havia adotado 1587), questo a que Rodolfo Garcia

    dedicou uma de suas notas.

    A parte restante desse tomo segundo contm indicaes sobre

    a colonizao do Norte e

  • 37

    as guerras holandesas. A estas acham-se dedicadas as ltimas

    seces, a saber:

    XVII -Perda e recuperao da Bahia, acrescida de

    notcia da marcha da

    colonizao

    XVIII Desde a invaso de Pernambuco at chegar

    Nassau

    XXIX Governo de Nassau at levantar o stio da Bahia

    XXX Desde o stio da Bahia at a partida de Nassau

    O assunto tem seguimento no tomo terceiro, deste modo:

    XXXI Revoluo de Pernambuco at a primeira ao

    dos Guararapes

    XXXII Desde a recuperao de Angola at o fim da

    guerra

    Varnhagen reuniu ampla documentao sobre o assunto

    indicado que, subsequentemente, tem sido muito estudado. No nos

    pareceu que fosse o caso de transcrev-los em parte, no tendo

    cabimento faz-lo no todo.

    A parte restante do tomo terceiro compreende o fim do

    perodo filipino, com a aclamao de D. Joo IV rei de Portugal.

    Conforme declara Varnhagen, tem agora as atenes voltadas para o

    novo ordenamento institucional do pais, com a diviso em dois

    Estados. No tocante ao recente Estado do Maranho, d grande

    importncia aos atritos com os jesutas, a propsito de sua utilizao

    dos ndios como mo de obra, vetada ao comum dos colonos. Como

    conduziu ao desfecho dado por Pombal --a sua expulso--e talvez por

    melindroso, com a prudncia que as c

    A esse propsito transcreve trecho de uma representao

    encaminhada aos governantes, transcrita na Revista do Instituto

  • 38

    Histrico

    foram os Apstolos de Cristo e so aqueles que no tm terras, nem

    rendas, nem propriedades, nem outros bens, alguns aonde assistem, e

    no aqueles que, com ttulo de servio de Deus e bem das almas,

    andam procurando terras e mais terras, com o pretexto de que so

    para os ndios. O ttulo santo: o intuito diablico: porque com o

    seu nome se procuram as terras e os ndios, para se servirem deles

    como escravos, para todas as suas lavouras, comrcios, negcios e

    A situao descrita provocou atritos dos mais srios na regio

    abrangida pelo Estado do Maranho, notadamente no Par, onde os

    moradores chegaram a levantar-se em armas para expulsar os

    jesutas, consumada em sucessivas oportunidades e em vrias

    localidades. Manifestaes contra a Ordem tiveram lugar mesmo em

    So Lus, tendo se mobilizado em, favor dos colonos portugueses, os

    rgos que ento eram os autnticos institutos da representao

    popular, as Cmaras Municipais.

    Varnhagen tinha conhecimento da Crnica da Misso dos

    Padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranho, de

    autoria do padre jesuta Joo Filipe Bettendorff, considerado como o

    depoimento mais confivel do mencionado conflito. Nessa obra h

    padres

    Crnica

    compreende a segunda metade do sculo XVII (o segundo da

    colonizao). O Senado Federal editou, em 2010, a verso integral

    desse documento, que tem nada menos que 803 pginas.

    As razes do conflito eram claras. Varnhagen refere que os

    -se a dispor de

    levantamentos circunstanciados desse patrimnio, com base nos

    registros efetivados quando se deu a sua expulso, decretada por

    Pombal. Ficou estabelecido, por exemplo, que as fazendas que

    haviam criado na ilha de Maraj contavam com mais de cem mil

  • 39

    cabeas de gado. A fazenda de Santa Cruz (no Rio de Janeiro) era

    considerada a maior em todo o Centro-Sul. Sendo os ndios a mo de

    obra empregada, qual a natureza desse vnculo? Varnhagen formulou

    essa questo que no foi respondida pelos que saram em defesa dos

    jesutas, argumentando com o papel que desempenharam na

    disseminao da religio, que ningum contesta, nem tampouco a

    importncia de que se revestiu na preservao da unidade nacional.

    Entendo ser suficiente o que se referiu, sendo desnecessria a

    transcrio de textos do autor, dando preferncia a outros eventos.

    Entre estes, aqueles em que chama a ateno para a ao do

    Santo Ofcio na primeira metade do sculo XVIII. Antecedo-a de

    uma nota em que destaco ter resultado na desorganizao do

    empreendimento aucareiro, de onde proveio a maior parcela da

    receita de nossas exportaes nos trs primeiros sculos.

    Varnhagen referiu mas no deu maior desenvolvimento s

    bandeiras, que desempenharam papel destacado na disseminao do

    povoamento. Capistrano que feriu o tema, inclusive mostrando

    como a pecuria resultou de sua atuao. Contudo, fora de dvida

    que o bandeirantismo nunca recebeu de nossa parte a ateno e

    destaque que merecia. Seria um grande tema para o cinema, a

    exemplo da explorao que Hollywood deu Marcha para o Oeste

    nos Estados Unidos.

    Em compensao, deteve-se nos incidentes que seriam a

    origem da disputa, que se tornaria secular, em torno do controle do

    acesso bacia do Prata. Como era de seu estilo, mobilizou a

    documentao disponvel. Teria amplos desdobramentos, a exemplo

    do Tratado de Madrid, nesse terceiro sculo; a opo pela separao

    do Uruguai, logo no incio da Independncia e mesmo o desfecho

    colossal que seria a Guerra do Paraguai--, no pareceu-nos essencial

    quando nos propomos apenas a manter viva a presena de Varnhagen

    e assegurar a possibilidade de que as novas geraes tenham dela

    notcia.

    No que respeita ao tomo quarto, do uma idia do

    desenvolvimento da obra as sees XLV D. Jos I e Pombal.

  • 40

    Administrao Josefina. Letras; e, XLVII -Idias e conluios em

    favor da Independncia em Minas. Adicionalmente, permitem situar

    a espcie de conservadorismo da elite que logrou facultar-nos uma

    experincia bem sucedida de governo representativo, a que pertencia

    Varnhagen.

    A transcrio se conclui com textos da parte dedicada

    Independncia. O propsito dar uma idia do volume da

    documentao que mobilizou para conclu-los.

    PRIMEIRO SCULO (sculo XVI)

    SECO VII

    (III da I edio)

    ATENDE-SE MAIS AO BRASIL. PENSAMENTO

    DE COLONIZ-LO EM MAIOR ESCALA

    Os Portugueses na sia. Os Franceses no Brasil,

    Recursos do foro e da diplomacia. Ango. Roger. Jacques.

    Igarau e Pernambuco. Diego Garcia e Cabot. D. Rodrigo de

    Acua. Porto de D. Rodrigo. Baixos de D. Rodrigo. Suas

    peregrinaes. D. Rodrigo em Pernambuco. Cristvo Jacques

    e os Franceses. Antnio Ribeiro. Idia de colonizao. Diogo

    de Gouveia. Mritos de Gouveia. Resolve-se a colonizao do

  • 41

    Brasil. Henrique Montes. Martim Afonso de Sousa. Poderes

    que trazia. Pero Lopes de Sousa. Reclamaes de Frana.

    Negociaes diplomticas importantes.

    Vimos na seco precedente como j no reinado de D.

    Manuel e pelo menos desde 1516, haviam sido dadas algumas

    providncias em favor da colonizao e cultura do Brasil.

    Sabemos, alm disso, que depois o mesmo rei, ou pelo menos

    o seu sucessor apenas comeou a reinar, criou no Brasil

    algumas pequenas capitanias; e que de uma delas foi capito

    um Pero Capico, o qual chegou a juntar algum cabedal.

    Igualmente sabemos que os produtos, que iam ento do Brasil

    ao reino, pagavam de direitos, na casa da ndia, o quarto e

    vintena dos respectivos valores, e que, no nmero desses

    produtos entravam no s alguns escravos, como, em 1526,

    Decorriam, porm, os anos, e o Brasil seguia com o seu

    imenso litoral merc de qualquer navio que o procurava.

    No h por que fazer censuras. Os esforos e os capitais

    empregados na sia produziam maior e mais imediato

    interesse, nessa poca de crise comercial, em que se efetuava

    em favor da Europa um grande saque das riquezas empatadas

    no Oriente. Alm de que, ainda sem considerar a questo sob

    miras econmicas, certo que Portugal, forando os turcos a

    levar a guerra sia, aliviou por algum tempo a Europa do

    seu peso ameaador, e sustentando o comrcio da especiaria

    por mar, consumou o pensamento de Lull de empobrecer

    bastante o Egito. Ora, no fora possvel durante essa luta

    distrair muitos navios e foras para outro continente. Os

    adustos campos das ento recentes glrias portuguesas, a

    prpria frica, onde filhos de reis iam armar-se cavaleiros,

    comeou a ser descuidada. E ainda supondo que j ento

    tivesse ocorrido a idia que depois (nesse mesmo sculo)

    ocorreu (1), de que no Brasil poderia vir a organizar -se um

  • 42

    grande imprio, a metrpole aguardava acaso para isso melhor

    ocasio. A glria que Portugal adquiriu na sia custou-lhe,

    entretanto, a perda de muita da sua populao, e o perverter

    em parte a ndole dos seus habitantes, com tantas piratarias e

    crueldades. Em virtude delas, o tm coberto de baldes, como

    se as crueldades e as piratarias no tivessem em todos os

    tempos sido apangio das conquistas. Esses heris da

    antiguidade, que, em geral, s contemplamos pelo aspecto

    maravilhoso, tambm praticaram muitas crueldades e muitas

    injustias; porm como aos panegiristas, que nos transmitiram

    seus feitos, no faltou manhoso artifcio para no-lo contarem a

    seu modo, ocultando tudo quanto lhes no servia ao

    panegrico, e nem todos os que lem so pensadores, sucede

    que muitos, inconseqentemente, louvam e admiram na

    histria como heroicidades feitos idnticos aos que em outra

    poca, ou em outro pas, condenam como misrias e

    pequenezas desta ou daquela gerao. Se de todas as

    conquistas dos Gregos e dos Romanos tivssemos histrias

    escritas pelos seus inimigos ou rivais, talvez que no

    admirasse o mundo tantas proezas, nem tantos heris.

    Enquanto, porm, Portugal se via a braos com grande

    nmero de inimigos no litoral e mares da sia, onde, em 1521,

    a sua armada constava nada menos que de uns oitenta e tantos

    vasos (Doc. da Torre do Tombo), muitos armadores da

    Bretanha e Normandia, j avezados navegao das costas de

    Guin e da Malagueta, passavam no s a alguns excessos de

    pirataria com os galees que vinham da ndia, como a traficar

    nas terras do Brasil; onde adquiriam quase de graa gneros,

    que nos mercados europeus obtinham grandes valores, e os

    quais lhes deviam produzir maiores vantagens do que aos

    contratadores portugueses; por isso mesmo que no tinham,

    como estes, de indenizar a coroa pela faculdade de

    comerciarem. Debalde havia Portugal proibido com duras

  • 43

    ou esferas terrestres, e o marcarem nos mapas as terras ao

    suldo rio de Manicongo e das ilhas de So Tom e Prncipe

    (Alov. de 13 de Nov. de 1504, na Torre do Tombo). Debalde

    proibia que aceitassem seus pilotos e marinheiros (Ordenaes

    Manuelinas, liv. V, tt. 98, 2; tt. 88, 11) o servio de mar

    de outras naes, pensando talvez com isso obstar propagao

    dos conhecimentos nuticos pela Europa. Os ousados

    navegadores de Honfleur e de Dieppe freqentavam cada dia

    Mais os portos do Brasil. As guerras da Frana no faziam

    diminuir o ardor e a atividade dos seus homens do mar,

    estimulados por tantos lucros. Em 1516 haviam chegado a

    Portugal tais notcias de suas navegaes no Brasil, que el-rei D.

    Manuel mandava por seus agentes representar contra elas corte

    de Frana (2). E digamos desde j que to poderosos se tinham

    feito alguns armadores, que nem o mesmo governo francs podia

    sujeit-los, e que Portugal, depois de haver exaurido na Frana,

    perante os tribunais, os parlamentos e a prpria coroa, todos os

    recursos do foro e da diplomacia, se viu obrigado a transigir e a

    negociar com os mais notveis corsrios, que eram Joo Afonso e

    o clebre Joo Ango, ao depois visconde de Dieppe (3). Todos

    estes acontecimentos merecem uma histria especial que no

    duvidamos se escrever algum dia; pois sobram para ela os

    documentos, dos quais somente aproveitaremos agora o que mais

    de perto nos interesse. Sabemos que, j em vida de el-rei D.

    Manuel, fora o seu subdito Jcome Monteiro nomeado

    embaixador junto a Francisco I, com instrues para representar

    acerca das tomadias e das invases nas suas conquistas,

    efetuadas umas e outras por franceses. A Monteiro sucedeu Joo

    da Silveira mandado por D. Joo III, apenas subiu ao trono, com

    especial recomendao para que ponderasse quo triste era que

    se estivessem hostilizando no mar os sditos, de dois reis e de

    duas naes que se diziam amigos (4). Apesar das reclamaes

    que faziam, como levamos dito, os agentes portugueses,

    empreendera Hugues Roger com felicidade em 1521 uma viagem

  • 44

    nossa costa, e havia notcia de que se preparavam outros

    navios. Por fim, em 11 de Fevereiro de 1526, escrevia o

    embaixador Joo da Silveira, como em Frana se armavam dez

    navios para virem apoderar-se das embarcaes que

    encontrassem.

    Tal aviso, a nosso ver, decidiu Portugal a mandar ao

    Brasil de guarda-costa, neste mesmo ano, uma esquadrilha

    composta de uma nau e cinco caravelas, a qual findo certo

    prazo devia ser rendida por outra. Vinha por capito-mor

    Cristvo Jaques(I), e trazia de chefes subalternos Diogo

    Leite, com seu irmo Gonalo Leite, e Gaspar Correia. O

    mesmo Jaques era portador de um alvar, passado em

    Almeirim por Jorge Rodrigues, a 5 de Julho de 1526,

    autorizando a Pero Capico a retirar-se. Esse alvar era

    Christovo Jacques, que ora envio por Governador s partes do

    Brasil, que Pero Capico, Capitan de uma das capitanias (5) do

    dito Brasil, me enviou dizer que lhe era acabado o tempo da

    sua capitania, e que queria vir para este Reyno, e trazer

    comsigo todas as peas de escravos e mais fazendas que

    tivesse, Hey por bem e me praz que, na primeira caravela ou

    navio que vier das ditas partes, o deixeis vir, com todas as suas

    peas de escravos e mais fazendas; comtanto que viro

    diretamente casa da India, para nella pagarem os direitos de

    quarto e vintena, e o mais que a isso forem obrigados, na

    frma que costumam pagar todas as fazendas que vm das

    Jaques alcanou a costa do Brasil no fim do dito ano; e

    fundeando no canal que separa do continente a ilha de

    Itamarac, deu ali princpio a uma casa da feitoria no stio, que

    ois se

    colocaram para termos de demarcao, no prprio continente,

    quase em frente da entrada do sul do mesmo canal, e da antiga

    vila da Conceio, situada a cavaleiro, na prpria ilha. Esta

  • 45

    feitoria, ou outra a par desta, passou ao que parece a ser

    estabelecida pelo mesmo Jaques no porto de Pernambuco ou

    antes Paranmbuko, nome que significa furo do mar, segundo

    alguns; mas que parece antes dever derivar-se de duas palavras

    Paranambuco, sem nenhum furo ou ria (7).

    Deixando fundada essa feitoria, passou Jaques a correr

    a costa at o Rio da Prata, onde pouco tempo se demorou,

    regressando outra vez para o norte, a cometer feitos que no

    tardaremos em comemorar. Primeiro, nos cumpre dizer como

    por este mesmo tempo estacionavam ou navegavam nas guas

    do nosso litoral duas frotas, ambas de Castela. De uma, que

    constava de trs naus, era chefe Diego Garcia (8). Mandava a

    outra, com igual nmero de redondos e mais uma caravela,

    Sebastio Cabot, filho do navegador de igual apelido, que

    descobrira por Inglaterra as costas do Norte deste grande

    continente. Estas duas frotas haviam deixado a Europa um

    pouco antes que Jaques. Diego Garcia, que partira primeiro,

    aportou em So Vicente; e tantos meses a se demorou que

    parecia se esquecer do seu destino, que era subir o Rio da

    Prata. Por meio da relao que de sua viagem nos transmitiu,

    no se nos recomenda como homem verdadeiro, nem polido,

    nem superior mesquinha inveja, e deve ler-se com precauo.

    Cabot era mandato s Molucas por este lado, reforando outra

    armada maior que havia partido um ano antes, e da qual em

    breve daremos notcia. Aportou Cabot em Pernambuco(II),

    onde j encontrou a feitoria portuguesa, e seguindo a

    navegao para o sul, s avistou de novo terra nas alturas da

    ilha, a que ento ps o nome de Santa Catarina. A fundeou

    Cabot, e logo de um porto vizinho da parte do sul vieram

    visit-lo muitos castelhanos, dos quais uns ali viviam desde

    muitos anos (9), e outros desde mui pouco tempo, no havendo

    querido seguir a D. Rodrigo, de quem passaremos a tratar.

    Era D. Rodrigo de Acua o comandante da nau So

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    Gabriel pertencente a uma armada (10) que, s ordens do

    comendador Fr. Garcia Jofre de Loaysa, partira, antes de

    Cabot e de Diego Garcia, com direo s Molucas, seguindo

    derrota pelo ocidente. Essa armada, largando da Corunha em

    24 de Julho de 1525, avistara em princpios de Dezembro a

    costa do Brasil, ao sul do cabo de So Tom, e fora, pela

    maior parte, desbaratar-se junto ao Estreito de Magalhes. No

    de nosso propsito contar esse desbarato, ao qual pouco

    depois se seguiu a morte de Loaysa e do seu imediato Del

    Cano; e contentemo-nos de saber que D. Rodrigo achou

    refgio em um porto, ao sul da ilha de Santa Catarina, e

    encontrou vrios companheiros de Solis que, abastecendo-o de

    gua, lenha e mantimentos, deram da terra tais informes que

    muitos da tripulao, alborotando-se, se determinaram a ficar

    nela, em vez de exporem-se a novos perigos de mar. As

    exortaes de D. Rodrigo apenas puderam atrair-lhe alguns

    poucos dos alborotadores.

    Daqui proveio a este porto o nome de Porto de D.

    Rodrigo, com que por muito tempo foi conhecido nos mapas e

    roteiros. Acaso seria o mesmo a que Solis, dez anos antes,

    chamara Baa dos Perdidos, talvez em virtude dos

    mencionados seus companheiros que a lhe fugiram ou se

    perderam; se que esses indivduos no houvessem

    efetivamente ficado por a, voluntariamente ou desgarrados, j

    desde alguns anos antes.

    Com trinta e dois homens menos de tripulao, fez-se

    por fim D. Rodrigo de vela para o Rio de Janeiro. Neste porto

    convocou a sua gente a conselho: e nele foi resolvido que a

    nau em vez de seguir para as Molucas, voltasse Espanha,

    com alguma carregao de pau-brasil. Dirigiu, pois, D.

    Rodrigo o rumo para o norte e entrou na Bahia. A a

    tripulao se lhe diminuiu de nove homens que, indo terra, l

    ficaram devorados pelos selvagens, segundo se julgou.

    Saindo da Bahia para o norte, pela muita gua que fazia

  • 47

    a nau, tratou de arribar, e deu-se a casualidade de que, meado

    Outubro, fosse entrar justamente num porto prximo do rio de

    So Francisco, no qual se achavam carregando de brasil suas

    naus e um galeo de Frana (11). Os capites franceses ao

    princpio ofereceram proteo a D. Rodrigo, mandando-lhe at

    dois calafetes; e quando, passados oito dias, se achava a nau

    espanhola virada de crena, e impossibilitada de navegar,

    caram na fraqueza de ir acomet-la, intimando a D. Rodrigo

    que se rendesse. Vendo este que a resistncia era impossvel,

    meteu-se no batel, foi ter com os franceses, e conseguiu deles

    trguas, ficando de lhes dar vinhos e azeite que diziam

    carecer. Enquanto, porm, se negociavam estas trguas, e os

    franceses tendo o capito castelhano em refm, se

    descuidavam da nau agredida, ela conseguia, no s surgir

    boiante, como picar as amarras, e fazer-se de vela. Quando os

    franceses despertaram do seu descuido, j a nau espanhola ia

    barra fora, sem o capito, nem os marinheiros que o haviam

    acompanhado. Em vo D. Rodrigo lhes bradava e fazia sinais,

    em vo os seguia em um batel vela. A nau So Gabriel j

    nem nas promessas do seu prprio capito confiava, que tanta

    desconfiana levam os desenganos das promessas no

    cumpridas.

    Seguiu D. Rodrigo no batel todo aquele dia e parte do

    imediato. Porm... baldados esforos! a nau tinha desaparecido

    no horizonte, e o seu legtimo comandante e fiis romeiros,

    exaustos de foras, emproavam para terra e iam varar costa,

    a umas dez lguas para o norte do porto donde haviam partido:

    - naturalmente na paragem que se ficou at hoje chamando os

    Baisios de D. Rodrigo, quase defronte do rio Cururipe. Da se

    dirigiram por terra, bastante expostos aos selvagens, ao porto

    que acabavam de deixar.

    J tinham dele partido as duas naus francesas, e s

    ficara o galeo. Neste se alojaram os tristes por mais de um

    ms; mas acabando o mesmo galeo de carregar, fez-se de

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    vela, desamparando os mseros em um batel, sem mantimento

    algum!

    No havia, porm, soado a hora final aos pobres

    desamparados. Entregues providncia, seguiram pelos mares

    durante vinte dias, nutrindo-se apenas de algum marisco e de

    pouca fruta que acertavam de colher pela costa, at que na ilha

    de Santo Aleixo lhes deparou Deus porto, onde puderam

    refazer-se. Nessa ilha tiveram a fortuna de encontrar alguma

    farinha de trigo, uma pipa de bolacha molhada, um forno, e

    anzis com que apanharam muito peixe (12). De Santo Aleixo

    passaram feitoria de Pernambuco (13).

    Cristvo Jaques se negou a dar-lhes passagem para a

    Europa, primeiro em uma nau que enviava carregada de brasi l,

    e na qual mui provavelmente se embarcou, com seus haveres

    Pero Capico, e depois numa caravela que igualmente mandou

    regressar ao reino. Pela primeira escreveu D. Rodrigo ao bispo

    apreendida, e ainda hoje se guarda no arquivo pblico em

    Portugal (14). Dez meses depois escreve3u outras, uma das

    quais para el-rei D. Joo III; e estas chegaram a Lisboa, pela

    mencionada caravela, ao mando do capito Gonalo Leite. As

    que eram para Castela foram remetidas pelo embaixador em

    Lisboa (15) Lope Hurtado. Os da nau So Gabriel, depois de

    eleger por capito ao piloto Juan de Pilola, no podendo

    montar o Cabo de santo Agostinho, retrocederam Bahia, para

    querenar; porm, inquietados a por outra nau francesa,

    passaram ao Cabo Frio e, deste, a um porto mais ao sul, do

    qual se fizeram afinal de vela para a Europa, chegando a

    Bayona de Galiza aos 28 de Maio de 1527 (16).

    Quando a nau espanhola So Gabriel, ao querenar,

    sofria as bombardadas dos trs navios franceses, navegava elos

    mares braslicos, por aquela altura, a armada de Sebastio

    Cabot, que deixara Pernambuco no ms anterior. E ai dos

    aleivosos, se nessa ocasio se aproximara da costa a esquadra

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    espanhola! Porm Cabot seguia de largo, e s foi de novo

    avistar terra na ilha de Santa Catarina, como antes dissemos.

    As informaes que a Cabot deram os castelhanos, que

    nesta ilha encontrou, das riquezas do rio da Prata, o induziram,

    a pretexto de no poder empreender maior viagem por se haver

    perdido a capitnia, a subir pelo mesmo rio da Prata, em vez

    de prosseguir para as Molucas (17).

    Deixando, porm, os mais sucessos desta armada, bem

    como os outros da sua contempornea castelhana ao mando de

    Diego Garcia (18), e que no pertencem nossa histria,

    sigamos a Cristvo Jaques em seus feitos. Vimos como,

    julgando que lhe bastava ter consigo as cinco caravelas latinas,

    mandara para o reino a nau, com carga de brasil. Logo depois,

    andando a correr a costa, com quatro das ditas caravelas,

    travou peleja com trs navios de mercadores bretes, dois

    deles de cento e quarenta toneladas. Combateu um dia inteiro,

    e, saindo vencedor, levou para Pernambuco os prisioneiros em

    nmero de trezentos. Segundo nos consta por tradio, este

    combate teve lugar num recncavo, pelo rio Paraguau acima,

    junto ilha ainda chamada dos Franceses. Sabendo, porm,

    positivamente, por outro lado, que as hostilidades comearam

    de parte dos navios franceses contra uma das caravelas, pelos

    tempos contrrios esgarrada das outras,