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FRANCISCO ADOLFO VARNHAGEN
HISTRIA GERAL DO BRASIL
LEITURA BSICA
Antonio Paim (organizador)
CENTRO DE DOCUMENTAO DO
PENSAMENTO BRASILEIRO (CDPB)
2011
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SUMRIO
Introduo: Varnhagen e os alicerces da historiografia
brasileira Antonio Paim
Indicaes sobre a transcrio Antonio Paim
PRIMEIRO SCULO (sculo XVI)
Texto de Varnhagen
SEGUNDO SCULO (sculo XVII)
Nota introdutria - Antonio Paim
Texto de Varnhagen
TERCEIRO SCULO (sculo XVIII)
Texto de Varnhagen
INDEPENDNCIA DO BRASIL
Texto de Varnhagen
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FRANCISCO ADOLFO DE
VARNHAGEN
H I S T R I A G E R A L D O B R A S I L
LEITURA BSICA
Antonio Paim (organizador)
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CENTRO DE COCUMENTAO
DO PENSAMENTO BRASILEIRO
CDPB
2011
INTRODUO: Varnhagen e os
alicerces da historiografia brasileira
Antonio Paim
Francisco Adolfo de Varnhagen (1816/1878) era filho de
Frederico Guilherme de Varnhagen (1782/1842), alemo de
nascimento. Seu pai veio para o Brasil contratado como diretor da
fundio organizada em So Joo de Ipanema, So Paulo, com a
denominao de Fbrica de Ferro de Ipanema. Tratava-se de
iniciativa de D. Rodrigo de Sousa Coutinho, chefe do primeiro
governo organizado no Brasil pelo futuro D. Joo VI. D. Rodrigo
buscava ciosamente alternativas econmicas. Criou ainda uma outra
fundio em Minas Gerais.
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Embora a de Ipanema funcionasse desde 1810, considera-se
que somente na gesto de Varnhagen (1815 a 1821) que ocorreria
a superao da precariedade do material ali produzido.
Francisco Adolfo de Varnhagen nasceria no segundo ano
(1816) de permanncia do seu pai no Brasil. Presentemente a
localidade de So Joo de Ipanema denomina-se Iper,
municipalidade resultante dos desmembramentos de Sorocaba.
Tradicionalmente Varnhagen dado como tendo nascido nesta
ltima cidade. Ele prprio tinha-se nessa conta. Como nutria a
aspirao de que seus restos mortais viessem a ser enterrados no
local de seu nascimento, a consumao dessa aspirao teve lugar em
Sorocaba, como parte das comemoraes do primeiro centenrio de
sua morte, ocorrido em 1978.
Frederico Guilherme de Varnhagen demitiu-se da fundio
em 1821. Acredita-se que esse gesto deveu-se a desentendimento
com as autoridades a que se achava subordinado. Formalmente
anunciou que pretendia assegurar a boa educao do filho, ento com
cinco anos, razo pela qual regressaria Europa. Radicou-se em
Portugal, certamente pelo fato de que se casara com portuguesa ( D.
Maria Flvia de S Magalhes) e esta, de presumir-se, desejaria
viver junto de sua famlia. Assinala-se este fato na medida em que
explica a afeio que o jovem Francisco Adolfo iria revelar pela
ptria de origem de um dos ramos de seus ancestrais.
Francisco Adolfo de Varnhagen estudou no Real Colgio
Militar da Luz, em Lisboa. Quando se d a transferncia de seu pai
para Portugal (1821), ali recm iniciara, com a Revoluo do Porto,
a transio da monarquia absoluta para a constitucional. Esse
processo acabaria paralisando o pas e levando-o, por fim, guerra
civil, que durou de 1828 a 1834.
Como se sabe, esses acontecimentos tiveram amplo reflexo
no Brasil, notadamente pelo fato de que, durante o seu transcurso, em
1826, ocorre o falecimento de D. Joo VI o que torna D. Pedro I
herdeiro do trono da nao de que nos dissociaramos, reabrindo a
discusso em torno da Independncia. Acontece que o falecimento
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do Rei explicita a divergncia entre os dois filhos, D. Miguel
disposto a preservar a monarquia absoluta e D. Pedro a monarquia
constitucional. Agastado com a emergncia de setores hostis sua
permanncia no trono, D. Pedro opta, em 1831, por assumir a
liderana anti-miguelista na guerra civil a que nos referimos,
abdicando da condio de Imperador do Brasil. Talvez essa
circunstncia haja decidido o jovem Varnhagen a participar da luta,
na tropa liderada por D. Pedro. Em 1834, quando se d o seu
desfecho, tinha 18 anos de idade. Como parte dessa carreira militar
ento iniciada, Varnhagen freqentou a Real Academia de
Fortificao, concluindo o curso de engenharia militar em 1939, aos
23 anos de idade.
Ainda naquela dcada revelaria a sua verdadeira vocao e o
tema a que se dedicaria. Entre 1835 e 1838, ocupa-se do texto que
submeteu Academia das Cincias de Lisboa, dedicado a Gabriel
Soares de Sousa, que se tornaria o principal documento relativo ao
primeiro sculo da colonizao portuguesa no Brasil, cuja autoria
seria justamente estabelecida por nosso autor. Graas a essa primeira
contribuio nossa historiografia, tornou-se scio correspondente
da instituio. Para que se tenha, desde logo, idia da relevncia da
iniciativa, basta por agora indicar que a prpria Academia o havia
publicado, em 1825, sem qualquer aluso ao autor. Por sua
relevncia, voltaremos a considera-lo da forma pormenorizada que
merece.
Justamente essa vocao que o levaria a regressar ao Brasil,
em 1840. Logo ingressa no Instituto Histrico e Geogrfico
Brasileiro, criado em 1838, passando a integrar o seu ncleo
dirigente ao assumir o cargo de primeiro secretrio. Em 1844, obtm
a nacionalidade brasileira, sendo admitido no corpo diplomtico.
Como diplomata, serviu em Lisboa e Madrid, nas dcadas de
quarenta e cinquenta, condio de que se valeu para institucionalizar
o levantamento sistemtico da documentao apta a orientar a
reconstituio de nossa histria, atividade que se coroa com a
primeira verso da Histria geral do Brasil (1854/57). Em tpico
7
autnomo, iremos considerar mais detidamente como atuou para
sedimentar tais procedimentos, essenciais constituio da
historiografia brasileira, verificada ainda no sculo XIX.
Entre 1858 e 1867, Varnhagen serviu em alguns pases da
Amrica do Sul, ocupando-se basicamente da questo dos limites do
Brasil com seus vizinhos. Atuou, respectivamente, no Paraguai
(1858/1861), seguindo-se uma curta estada na Venezuela (agosto a
dezembro, 1861); Equador (dezembro, 1861/abril, 1863); Venezuela
(abril-setembro, 1863); Peru (outubro-dezembro, 1863); breve estada
no Chile, entre janeiro e maio de 1864, ocasio em que contrai
matrimnio com a chilena Carmen Ovalle; volta breve ao Peru
(junho-setembro, 1864); retorno ao Chile (outubro a dezembro,
1865) e, por fim, nova e prolongada estada no Peru (dezembro, 1865
a agosto, 1867).
Os relatrios que encaminhou ao Itamaraty, dando conta da
atividade desenvolvida nesses pases foram tornados pblicos no
livro Francisco Adolfo Varnhagen. Correspondncia ativa,
coligida e anotada por Clado Ribeiro de Lessa (Rio de Janeiro,
Instituto Nacional do Livro, 1961, pgs. 424-503). Notcia do seu
contedo consta da obra Varnhagen. Subsdios para uma
bibliografia (So Paulo: Editoras Reunidas, 1982, pgs. 364-413)
da autoria de Hans Juerguem Wilhelm Horsh.
Encerrou a carreira diplomtica como nosso representante em
Viena, ustria, onde faleceu (1878), aos 62 anos de idade.
O sentido que deu sua investigao
No livro que de certa forma coroa os diversos estudos que
mereceram a obra de Varnhagen --Estado, Histria, Memria;
Varnhagen e a construo da identidade nacional (1999)-- Arno
Wehling indica que a influncia intelectual mais importante nas
origens do Instituto Histrico seria o historicismo. Naturalmente
essa vertente terica tem uma longa trajetria em que revelaria as
suas sucessivas facetas. No caberia, nesta oportunidade, cuidar de
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sua reconstituio, sobretudo tendo em vista que o prprio Arno
Wehling desincumbiu-se dessa tarefa em outros de seus livros, em
especial em A inveno da histria. Estudos sobre o historicismo
(1994)
Creio que no seria simplificao grosseira, assinalar que o
eixo central da nova viso da histria, conhecida com a indicada
denominao, seria superar a viso escatolgica, segundo a qual
obedeceria a um desgnio da providncia, sendo ademais passvel de
previso. A superao em apreo deu origem importante linhagem
que remonta a Giambatista Vico (1668/1744), apropriada pelos
alemes, a partir de Johann Gottfried Herder (1744/1803). Sua obra
bsica --Idias para a filosofia da histria humana--, publicada em
quatro volumes entre 1784 e 1791-- iria influenciar grandemente a
historiografia do ciclo subseqente, marcado pelo apogeu dos
grandes filsofos Kant e Hegel. A estrela que despontaria sobretudo
na dcada de trinta, quando Varnhagen forma o seu esprito, seria
Leopold Von Ranke (1796/1886), a quem coube a tarefa de difundir
a idia de que era preciso documentar as afirmaes acerca dos
acontecimentos histricos.
A medida em que esse ambiente marcou o esprito de
Varnhagen pode ser aquilatado a partir da verdadeira fixao com
que cuida de demonstrar a seus pares, a partir de exemplos prticos,
que a reconstituio da histria do Brasil passa obrigatoriamente pela
busca obsessiva do documento.
O trabalho que desenvolveu para estabelecer a autoria do
relato sobre o Brasil, em fins do primeiro sculo, de Gabriel Soares
de Sousa serviu para fixar-lhe no s o estilo de investigao que
adotaria como, igualmente, apontando as lacunas a preencher. Nesse
documento, a que deu o ttulo Tratado Descritivo do Brasil em
1587, seu autor est mais voltado para os aspectos fsico-geogrficos,
bem como em fixar os contornos do litoral desde a foz do Amazonas.
Saltava s vistas a necessidade de reconstituir os aspectos
institucionais, isto , formas de organizao governamental adotadas,
procedimentos para a ocupao do territrio, disputas com potencias
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estrangeiras. Enfim, o que pesava na histria da nao independente
recm constituda era precisamente os trs sculos da colonizao
portuguesa. No estabelecimento daqueles marcos que iriam,
progressivamente, facultar-nos uma viso de conjunto, o papel de
Varnhagen seria decisivo. Neste tpico vamos nos limitar ao que nos
pareceu essencial na fase que precedeu o aparecimento dos dois
volumes da Histria Geral do Brasil, publicados, respectivamente,
em 1854 e 1857.
O prprio Varnhagen limitou este perodo inicial ao ano de
1850, ao fazer uma relao de suas publicaes que colocaria venda
e que Hans Horch considera como uma autntica bibliografia.
Tomando isoladamente os de cunho estritamente historiogrfico
(nesse perodo ocupou-se tambm da poesia brasileira e da
arquitetura portuguesa) mereceriam maior destaque aqueles referidos
a seguir.
1530, sob a capitania mor de Martim Afonso de Sousa, escrita por
estabelecer o significado da estada no Brasil, entre 1530 e 1532, do
fidalgo portugus Martim Afonso de Sousa (1500/1564). Compunha-
se sua frota de cinco navios, transportando cerca de 400 pessoas,
tripulantes e passageiros. Entre os ltimos muitos nobre ilustres que
tiveram participao no povoamento do pas. O objeto do relato,
tornado pblico por Varnhagen, corresponde s atividades
desenvolvidas pela expedio.
Martim Afonso percorreu toda a costa, desde a foz do
Amazonas at a bacia do Prata e concebeu uma estratgia de
ocupao que posteriormente seria generalizada, com a fundao de
So Vicente. Consistia na escolha de um local abrigado para
construir vila e erigir fortificaes, disseminando atividade agrcola
nas proximidades, mediante doao de terras (denominadas
sesmarias) a pessoas capazes de explor-las. Em seguida ao regresso
de Martim Afonso a Portugal foi o pas dividido em capitanias
hereditrias, entregues a nobres portugueses que deveriam mobilizar
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os recursos exigidos por sua explorao. Esse sistema durou mais ou
menos vinte anos, sendo em parte revogado ao criar-se um governo
geral no Brasil e capitanias reais (1549).
No seu primeiro ano de estada no Brasil (1840), editou em
livro --pela Tipografia J. Villeperva, do Rio de Janeiro-- a serie de
artigos publicados em Panorama, que se editava na capital
portuguesa, dedicados ao Descobrimento do Brasil.
Em Lisboa, n
narrativa epistolar de uma viagem e misso jesutica pela Bahia,
Ilhus, Porto Seguro, Pernambuco, Esprito Santo, Rio de Janeiro, S.
Vicente (So Paulo), etc., desde o ano de 1583 ao de 1590, indo por
visitad
Provincial em Portugal pelo padre Ferno Cardim, ministro do
Colgio da Companhia em vora. Segundo indicao de Varnhagen,
-se na Biblioteca de vora,
em Portugal. Alm das atividades da companhia, fornece
informaes que complementam o texto anterior, relativas ao
primeiro sculo.
Nesse mesmo ano (1847), no Rio de Janeiro foram editadas
as Memrias para a histria da Capitania de So Vicente (1797),
de Frei Gaspar da Madre de Deus, prefaciada por Varnhagen.
Completa-
biografias de grandes e vrias personagens que muito avultam na
portuguesa Panorama, no perodo indicado, sendo inteno do autor
reuni-las numa publicao autnoma, pretenso que no chegou a
efetivar-se.
Praticamente em todos os nmeros da Revista do Instituto
Histrico, da dcada de quarenta e incio da seguinte, consta
colaborao de Varnhagen. Com exceo da lista de brasileiros ou
colonos estabelecidos no Brasil, condenados pela Inquisio nas
primeiras dcadas do sculo XVIII, e de algumas das biografias antes
referidas, consistem de documentos com os quais se foi deparando e
entendeu que devia copi-los para guarda da instituio. So de teor
11
muito variado. No nmero do primeiro trimestre de 1850, por
1817.
Pelas indicaes precedentes acredito haver demonstrado que
Varnhagen achava-se empenhado em convencer o grupo que assumiu
o encargo de estruturar o Instituto Histrico que todos os esforos
deveriam ser direcionados para a pesquisa das fontes documentais
disponveis. Naturalmente esse trabalho deveria complementar-se por
sua sistematizao, de que daria exemplo com a publicao da
Histria geral do Brasil.
O estilo de trabalho de Varnhagen
Ao dar conta, ao Instituto Histrico, do trabalho que
desenvolvera em busca do original de Gabriel Soares de Sousa,
datado de maro de 1851, e das razes que o levava a t-lo por
acabado, v-se como atuou de modo obstinado no estabelecimento
das fontes documentais imprescindveis estruturao de nossa
historiografia.
da Biblioteca de Paris o que mais me levou a essa Capital do mundo
literrio em 1847. No h dvida de que, alm deste cdice, tive eu
ocasio de examinar uns vinte mais. Vi trs na Biblioteca Eborense,
mais trs na Portuense e outro na das Necessidades em Lisboa. Vi
mais de dois exemplares existentes em Madrid; outro mais que
pertenceu ao convento da Congregao das Misses e trs da
Academia de Lisboa, um dos quais serviu para o prelo, outro se
guarda no seu arquivo e, o terceiro na Livraria Conventual de Jesus.
Igualmente vi trs cpias de menos valor que h no Rio de Janeiro
(uma das quais chegou a estar licenciada para impresso); a avulsa da
coleo de Pinheiro na Torre do Tombo, e uma que em Neuwied me
mostrou o velho prncipe Maximiliano, a quem na Bahia fora dado
de presente. Na Inglaterra deve seguramente existir, pelo menos o
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cdice que possui Southey, mas foram inteis as buscas que a fiz
aps ele, e no Museu Britnico nem sequer encontrei notcia de
--a
meu ver-- o original e baldados foram todos os meus esforos para
descobrir este, seguindo indicaes de Nicolau Antonio, de Barbosa,
de Leon Pinelo e de seu adicionador Barcia
que disso proveio que o nome do autor ficasse esgarrado, o ttulo se
A existncia de tantas cpias no deixa de ser expressivo
indicador do sucesso que alcanou em seu tempo e tambm da
curiosidade e falta de informao sobre o Brasil.
Comparando essas diversas cpias, Varnhagen pode
estabelecer qual delas conteria menos omisses. Na cuidadosa edio
que preparou do mencionado Tratado Descritivo, numerou as
diversas sees, de modo a introduzir as correes, em forma de
apndice, muitas das quais dizem respeito a denominaes que
caram em desuso.
O texto de Gabriel Soares de Sousa registra a descoberta do
Brasil por Pedro lvares Cabral mas no refere documentos. Comete
aqui muitos erros histricos, a exemplo da suposio de que o
Tratado de Tordesilhas (1494) tivesse sido negociado por D. Joo III,
cujo reinado inicia-se em 1521. Varnhagen os corrige no Apndice
(intitulado Breves Comentrios) mas soube valorizar as preciosas
informaes sobre o estado da civilizao ao longo do litoral, que
conhecia por ter visitado. Sobretudo esse texto h de ter-lhe indicado
as lacunas a preencher.
A descrio em apreo seciona-se do seguinte modo: parte do
rio Amazonas --dando notcia do que sabia sobre incurses que se
tenham efetivado em seu leito-- e segue at o Maranho. So
registros sucintos, assinalando distncias percorridas (em lguas),
entre os cursos dgua existentes, e ainda as respectivas coordenadas
geogrficas. O trecho seguinte, partindo desse ponto, vai at o Rio
Jaguaribe (Cear). E assim, por diante, at o extremo Sul
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interessante destacar que onde o sistema das capitanias
logrou avanos no processo de colonizao, Gabriel Soares de Sousa
detm-se na sua descrio. Tomo o exemplo do Esprito Santo.
biografia, registra os embates com os indgenas, etc. Enfim, busca
estabelecer a sua histria.
A essa parcela da obra denominou de Primeira Parte. A
segunda certamente mais interessante. Comea com o que chamou
descrio dos acidentes geogrficos, da flora e da fauna. Igualmente
Deste modo, inclusive pelas omisses, o Tratado descritivo
do Brasil em 1587 insere um primeiro esboo do caminho a
percorrer em matria historiogrfica. Varnhagen saber valoriza-lo
devidamente, na medida em que h de ter-lhe permitido atuar a partir
do que se poderia ch
como se deu a opo por determinado modelo de colonizao o ter
levado a localizar o material que permitiu estabelecer o papel
desempenhado pela misso de Martim Afonso de Sousa, entre 1530 e
1532. E, tambm, de dar-se conta de que os relatrios do Governo
Geral seriam a fonte privilegiada para a reconstituio da histria das
diversas capitanias.
Louvo-me das indicaes deixadas pelo prprio Varnhagen
acerca do valor que atribua ao trabalho dos que o precederam. A
propsito da edio do livro de Gabriel Soares de Sousa, pela
realizou a tarefa da primeira edio completa a Academia de Lisboa;
mas o cdice de que teve de valer-se foi infelizmente pouco fiel, e o
revisor no entendido na nomenclatura das coisas de nossa terra.
Ainda assim muito devemos a essa primeira edio; ela deu
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publicamente importncia ao trabalho de Soares, e sem ela no
teramos tido ocasio de fazer sobre a obra os estudos que hoje nos
fornecem a edio que proponho, a qual, mais que a mim, a deveis
Esse trecho consta do documento que encaminhou ao Instituto
Histrico em 1851
A correspondncia de Varnhagen, que se preservou e foi
publicada, fornece outras elementos para definir o que batizamos de
seguir.
Na dcada de quarenta, como foi referido, serviu na
embaixada de Portugal. Em 1846, foi-lhe dada, pelo governo
imperial, a incumbncia de verificar na Espanha a existncia de
documentao relacionada aos limites do Brasil com as Guianas.
Alis, no decnio em que serviu em embaixadas da Amrica do Sul
(1858/1867) tambm tinha por encargo documentar as bases para a
definitiva fixao de nossas fronteiras com os vizinhos (contribuio
que seria assinalada pelo Baro de Rio Branco, a quem coube a tarefa
de lev-la a bom termo).
Veja-se como, sem embargo no zelo no cumprimento das
mencionadas disposies, no o abandonava a preocupao com o
preenchimento de outras lacunas documentais relacionadas histria
do pas. Escreve nessa carta (de dezembro de 1846), endereada ao
Embaixador do Brasil em Portugal (Antonio Vasconcelos Drumond):
ital (Lisboa) pelo primeiro paquete imediato
quela data, aproveitei da minha estada em Cadiz para me
desenganar de no existirem ali papeis manuscritos que nos
interessassem. Percorri tambm as lojas de livros, em geral nessa
cidade mais abastecidas do que nas outras de Espanha, de obras
sobre a Amrica, e disso resultou a compra do Dicionrio
geogrfico da Amrica, do Coronel Salcedo, feita com
recomendao minha e autorizao de V. Excia., por D. Jos Esteves
prossegui no
15
primeiro vapor, tive mais de dois meses de persistncia examinando
o Arquivo das ndias
Como se v, dedicou toda a existncia adulta ao que caberia
referir como a constituio de slidos fundamentos para a
historiografia brasileira.
A responsabilidade com que encarava essa tarefa explica que,
ao publicar, dois anos antes de falecer, em 1876, a segunda edio
da Histria Geral do Brasil no a considerava obra acabada, tendo
deixado as indicaes da forma pela qual deveria ser
complementada. Encontraria na pessoa de Rodolfo Garcia
(1873/1949) a pessoa que dedicou quele mister vrios anos de sua
vida.
Depois da publicao da primeira verso da Histria geral
do Brasil, nos meados da dcada de cinqenta, ocupou-se dos temas
de que d conta nas edies adiante relacionadas.
A continuidade da pesquisa
Em 1858, publica em Paris indicaes iniciais sobre Amrico
Vespuci --navegador considerado adventcio que, entretanto, daria
nome Amrica--, texto que retomaria em outra ocasio, isto , em
1864, quando se encontrava em Lima, e o amplia. Em Viena, em
1878 (ltimo ano de vida), edita e comenta as cartas em que esse
personagem descreve suas trs viagens ao Brasil.
Ainda em 1858, aparece em Madrid, pelas
Sousa.
Em 1863, em Berlim, tem lugar a edio em francs de sua
Histria da literatura brasileira, iniciativa que se supe fizesse
parte de seu empenho de tornar conhecido o Brasil nos meios cultos
da Europa.
Em 1871, publica-se em Viena a Histria das lutas com os
holandeses no Brasil (desde 1624 a 1654). No ano seguinte teria
lugar a impresso desse texto em Portugal (Tipografia de Castro
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Irmo, Lisboa), com reedio em 1874. A edio brasileira somente
se daria em 1945.
Em 1872, em Viena, publica estudo bibliogrfico dos autores
que contriburam para tornar usual a denominao de Amrica.
Nesse mesmo ano, no Rio de Janeiro, o Arquivo Nacional publica
textos de sua autoria sobre a Prosopopia, de Bento Teixeira Pinto e
sobre o livro Peregrino da Amrica, de Nuno Marques Pereira
(1652/1753), sucessivamente reeditado no sculo XVIII; e, em
Lisboa, pela Tipografia de Castro Irmo, Estudo biogrfico de
Salvador Corra de S e Benevides.
Em 1874, em Viena, texto descritivo do Maranho.
Em 1878, aparece no Rio de Janeiro, a Biografia de Santa
Rita Duro
No perodo indicado, preparou a Histria da Independncia
do Brasil, somente publicada em 1916, na Revista do Instituo
Histrico, sendo editada pela Imprensa Nacional, no ano seguinte.
Em que pese essa edio autnoma, na verdade se constitui no tpico
final da Histria geral, como bem entendeu Rodolfo Garcia.
Merece os comentrios que se seguem na medida em que
comprova como era escrupuloso, no tocante s responsabilidades do
historiador.
Na correspondncia de Varnhagen com o Imperador Pedro II,
comentada por Hlio Viana (1908/1972) --na apresentao da obra
antes mencionada--, em comeos da dcada de cinqenta, quando
ultimava a publicao da Histria geral do Brasil, explica as
razes pelas quais estava em dvida quanto aos eventos com os quais
a concluiria. Segundo indica, imaginava que seria o ano de 1825,
nstituio; o reconhecimento da Me-Ptria
e o nascimento de V.M.I, mas no me foi possvel. To espinhosa
por enquanto a tarefa de imparcial marcao desse perodo,
orao).
Pelo que foi indicado, optou finalmente por 1822.
17
Compreende-se a dificuldade de Varnhagen, quando se vivia
pouco mais de uma dcada na busca dos caminhos para estabelecer o
vez, o pas iria alcanar o normal funcionamento das instituies
governamentais. No ciclo em apreo, no devia haver o necessrio
distanciamento para escolher os documentos que pudessem dar uma
idia do que Octvio Tarqunio c
caracterizar os dois decnios que se seguiram Independncia.
fcil dar-se conta da consistncia de seus argumentos se tivermos
presente a incapacidade dos republicanos de valorizar a nossa
primeira experincia de governo representativo, vale dizer do
Segundo Reinado, persistindo no tom planfetrio do perodo em que
se tratava de popularizar a idia do novo regime, o que at hoje
dificulta conceber instituies capazes de reproduzir o meio sculo
de estabilidade poltica que nos proporcionou aquela primeira
experincia.
A opo por levar a Histria Geral at a Independncia ter
tardado tanto muito provavelmente porque se tratava, como era de
com o Brasil c -lo,
ainda Varnhagen quem esclarece, prende-
apreciaes (que) se nos apresentaram em vista de novos documentos
e informaes fidedignas por ns recolhidas, s vezes inteiramente
em oposio s que se encontram admitidas pelos escritores que nos
Aproveita o ensejo para explicitar um dos princpios que,
entende, devem nortear a ao de quem se proponha dedicar-se a
adivinhar a
existncia de documentos que no so de domnio pblico e no
encontra, e cumpre com o seu dever quando, com critrio e boa f e
imparcialidade, d, como em um jurado, mui conscienciosamente o
seu veredictum, cotejando os documentos e as informaes orais
apuradas com o maior escrpulo que, custa do seu ardor em
18
A Histria da Independncia corresponde a um verdadeiro
primor em matria de utilizao da documentao disponvel. Assim,
por exemplo, a convico (ou talvez sobretudo a esperana) da
entourrage de D. Joo VI, diante da Revoluo do Porto, era a de que
no conseguiria sustentar-se. Essa evidncia, contudo, transmitida
atravs de sucessivos documentos e acaba por saltar s vistas do
leitor pela simples apresentao da correspondncia daquelas
autoridades --e do prprio Rei-- com as Cortes de Lisboa, que
acabaram sendo divulgadas. O Ministrio da poca --ao qual um
partidrio da monarquia constitucional como Palmella no conseguiu
ajustar-se, terminando por pedir demisso--, com a anuncia de D.
Joo VI, obviamente tratava de ganhar tempo. Conclui-se que
estavam empenhados na preservao da monarquia absoluta, sem que
essa tese seja alardeada.
Deste modo, a ascenso de Silvestre Pinheiro Ferreira ao
governo sugere que D. Joo VI convencera-se de que seria obrigado
a negociar. Sua escolha para chefiar o governo correspondia a
acontecimento inusitado no contexto, a ponto de que o prprio, no
tendo tomado conhecimento de dois chamados anteriores do Rei,
acabou sendo conduzido preso a palcio. Silvestre Pinheiro Ferreira
tivera oportunidade de indicar ao Rei a necessidade de antecipar-se
transio, de modo a trilh-la de forma pacfica.
Diante da intransigncia das Cortes, fracassada a tentativa de
negociao empreendida por Silvestre Pinheiro Ferreira, tornando
impossvel a convivncia tanto com o Rei como com a nova
liderana emergente no Brasil, no lhe restava outro caminho seno o
de exilar-se na Frana.
Cito estes fatos para mostrar como o tratamento escrupuloso,
do material histrico disponvel, pode facultar nova luz na
compreenso do processo em seu conjunto.
Do que precede acredito ter tornado patente que Varnhagen
estava imbudo dos princpios que, no sculo XIX, lanaram as bases
das novas regras de estabelecimento da objetividade histrica.
19
Indique-se, adicionalmente, que na Histria geral do Brasil
menciona expressamente cada um dos historiadores que o
antecederam, prestando-lhes o devido tributo.
No tpico subseqente tentaremos destacar as regras que
Varnhagen procurou estabelecer para a histria geral do pas, regras
essas que, preservadas sem revestir-se de tom dogmtico ou
impositivo, permitiram a geraes posteriores de historiadores
revisitar muitos dos temas ento abordados, aprimorando o seu
conhecimento, sem embargo do que se indicar acerca do quadro
atual.
A concepo do formato adequado
ao carter geral da obra
Como se sabe, quando os instituidores do Instituto Histrico
discutiam o formato de que deveria revestir-se uma Histria do
Brasil, tinha-se dvida inclusive de onde comear, cogitando-se
mesmo da hiptese de faz-lo a partir de 1808. nesse ambiente que
sobressai a contribuio de Varnhagen, estabelecido o consenso de
que se partiria do descobrimento.
Na poca, a questo das fronteiras ainda era sensvel, na
medida em que faltava acertar detalhes onde as divergncias eram, a
bem dizer, inevitveis, cabendo soluciona-las de forma a no deixar
seqelas, feito notvel alcanado pelo Baro do Rio Branco.
Prudentemente, no cita as coordenadas geogrficas,
passando diretamente s razes provveis da escolha do nome,
acidentes geogrficos, clima, fauna, etc. Tudo indica que o fez
deliberadamente, na medida em que se ocupara especificamente do
tema quando do exerccio de funes diplomticas nos pases
vizinhos. Com o passar do tempo, a lacuna seria preenchida, cabendo
registrar, na matria, a dedicao com que Max Guedes reconstituiu
a histria da cartografia dedicada ao pas. Os outros aspectos fsicos
tambm vieram a ser fartamente ilustrados, mencionados em nota por
Rodolfo Garcia.
20
Seguem-se a reunio das informaes que se preservaram
sobre os aborgines e do contexto histrico em que se d o
descobrimento.
Quanto aos indgenas, considero que a informao reunida
por Varnhagen deve ser preferida dos jesutas que se ocuparam dos
primeiros passos da catequese. Sem embargo do papel que
desempenharam no estabelecimento das bases de um dos elementos-
chave da unidade nacional --a religio crist--, deram preferncia
queles aspectos da cultura aborgine que poderiam facilitar a
transmisso de sua mensagem. Outras fontes a que recorreu
Varnhagen, a exemplo de Gabriel Soares de Sousa, a descreveram
sem segundas intenes sendo talvez mais fidedignas. A verdade
que o convvio com os portugueses tornou cada vez mais difcil
apreend-la em sua pureza original, como se pode comprovar dos
percalos experimentados por Couto de Magalhes (1837/1898),
nesse mister, conforme se pode ver dos resultados de suas pesquisas,
sistematizadas em O selvagem (1876).
No caso, historiografia competiria dar conta dos seus
valores originrios, incumbncia que no abrange avaliaes. No se
trata tambm de evitar que sejam efetivadas mas apenas de precisar
que tal deve dar-se em lugar prprio.
Ainda quanto a esse aspecto, na poca de Varnhagen
acreditava-se ser possvel estabelecer, em bases cientficas, a sua
origem. Embora se haja detido nesse aspecto em outro lugar --
Lorigine touraniene des Americans Tupi-Caribes et des anciens
Egyptiens indiquee par la Philologie compare et notice d`une
emigration em Amerique effetue travs lAtlantique sicles
avant notre era.Vienne, 1876--, tudo indica que o interesse por esse
tipo de especulao haja desaparecido. De todos os modos, no faz
muito sentido, na Histria do Brasil, deter-se na reconstituio desse
debate.
No que respeita ao descobrimento, Varnhagen procurou
escrupulosamente registrar no s o contexto da poca como as
conquistas da navegao portuguesa e o fato de que, no perodo em
21
que Cabral aporta a Porto Seguro, outros navegadores registraram a
existncia dessa parte do continente.
Entendo que a abordagem clssica e definitiva sobre o tema
coube a Capistrano de Abreu (1853/1927) no ensaio com esse ttulo
concurso a que se submeteu no Pedro II (1881). Desde ento tornou-
se praxe public-los em conjunto. Publicao autnoma do primeiro
ensaio pode ser acessado em www.cdpb.org.br/leiturabasica
glria de ter descoberto o Brasil: a Frana, a Espanha e Portugal.
pendncia soluo magistral.
O elemento unificador dos trs primeiros sculos corresponde
ao estabelecimento e efetivao da poltica portuguesa de
colonizao. Parece tautolgico mas assim no foi entendido pelos
desbravadores de nossa historiografia. Tenha-se presente o exemplo
de Southey, que fixou como a chave da compreenso do processo a
disputa entre potncias estrangeiras e a comunidade de destino
histrico entre o Brasil e os pases limtrofes.
Varnhagen, por sua vez, foi logo ao ponto. Reconstitui
minuciosamente os percalos da definio da mencionada poltica e
enfatiza o papel de Martim Afonso de Sousa. A expedio desse
nobre portugus mereceria o devido destaque, no s descrevendo-a
como detendo-se no que colheu da prpria expedio bem como o
sumrio de seus resultados imediatos. Tais aspectos mereceram nada
menos que trs captulos.
Seguindo o alvitre de Gabriel Soares de Sousa trata, em
particular, vale transcrever a referncia ao acar.
nia (So Vicente) a
primeira que apresentou um engenho de acar moente e corrente,
havendo para esse fim o donatrio feito sociedade com alguns
estrangeiros entendidos nesse ramo, como os Venistes, Erasmos e
Adornos, sem dvida no Brasil mestres e propagadores de tal
http://www.cdpb.org.br/leiturabasica22
indstria, que primeiro permitiu que o pas se pudesse reger e pagar
seus funcionrios, sem sobrecarregar o tesouro da metrpole. Se
alguns destes no eram j vindos das ilhas da Madeira e So Tom,
no h dvida que muitos dos principais operrios da vieram, no s
para o Brasil, como para as colnias tropicais da Amrica espanhola,
onde ainda so portugueses muitos nomes nos engenhos, como
interessante frisar o fato de que tivesse desde logo
assinalado qual o significado do que, mais tarde, seria batizado de
-
tempo, embora contestado em toda a nossa histria, mesmo em
momentos de grandes riscos para a nossa sobrevivncia como na
transio do trabalho escravo para o livre, at hoje satanizada por
expressivos segmentos da intelectualidade.
Varnhagen dedica captulo autnomo vida dos primeiros
colonos e suas relaes com os ndios, logo consignando que
comearam por adotar muitos de seus usos habituais, enumerando-
os. Dizem respeito basicamente a espcies vegetais incorporadas
alimentao, palavras, etc. Parece-lhe contudo que, no tocante ao
trabalho --que se revelou uma questo essencial, cabe enfatizar--
deixaram de atentar para o hbito que tinham de trabalhar poucas
horas, evitando faz-lo na parte mais quente do dia. Vista distncia,
mais parece uma iluso, certamente acalentada pelo desconforto que
revela, no captulo seguinte, em relao alternativa adotada
(trabalho escravo). A exemplo do comum dos conservadores
brasileiros da poca, tinha presente os riscos que enfrentava o pas
no imperativo da transio para o trabalho livre. Se no fosse
encontrada uma sada --como veio a ocorrer com a inveno do
original sistema de parceria (que combinava trabalho remunerado
com atividade empresarial autnoma)-- iramos enfrentar uma crise
da qual ningum sabe qual seria o desfecho.
Duas inferncias podem ser efetivadas da circunstncia
descrita. Primeira: mesmo um historiador escrupuloso como
23
Varnhagen pode deixar-se influir, na anlise de determinado evento,
por uma preocupao ocasional. Segunda: a importncia para a
normal sobrevivncia do pas de que se revestia, na segunda metade
do sculo XIX, a eliminao do trabalho escravo de modo a
assegurar a manuteno do modelo agro-exportador. O mnimo que
se pode dizer dos que, ainda hoje, nutrem a convico de que a
pequena propriedade, conduzida por colonos estrangeiros, poderia
desempenhar tal papel que no sabem fazer contas.
Depois de descrever os aspectos enumerados --que, sem
dvida proporcionam uma idia (esttica) do Brasil como um todo,
no ciclo subseqente descoberta--, no formato idealizado por
Varnhagen a fim de reconstituir a sua histria, chega-se ao
estabelecimento do governo geral (Captulo XV). Completa o que, na
sua viso, seria o essencial: a poltica portuguesa de colonizao,
elemento constitutivo daquilo que viemos a ser nos trs primeiros
sculos.
A organizao do governo geral deu-se em 1549,
praticamente meio sculo aps a descoberta. No perodo
transcorrido, evidenciaram-se duas questes prioritrias: a defesa e a
organizao de uma atividade produtiva que pudesse, como foi
o de que teria
prosseguimento a pesquisa de riqueza mineral, basicamente ouro e
diamantes. No registro do evento, Varnhagen chama a ateno para
um outro aspecto.
delegar parte de sua autoridade em todo o Estado do Brasil num
governador geral, que pudesse coibir os abusos e desmandos dos
capites-mores donatrios, ou de seus locotenentes ouvidores, que
acudisse s capitanias apartadas em casos de guerras dos inimigos ou
de quaisquer arbtrios, autorizando que fiscalizasse enfim os direitos
da coroa, conciliando ao mesmo tempo os dos capites e os dos
colonos, determinou fixar a sede do governo geral na Bahia, por ser o
24
A questo nova para a qual chama a ateno --a necessidade
de assegurar-se a Lei e a Ordem-- viria a merecer aprofundamento na
obra de Oliveira Viana (1883/1951), sobretudo em Populaes
meridionais do Brasil (1920). O aprofundamento em causa repousa
na anlise da forma de que se revestiu a organizao da atividade
produtiva central (grandes fazendas e engenhos), assumindo ao fim
dos trs primeiros sculos a feio de autnticos cls. O pas corria o
risco da anarquia que certamente resultaria se diante dos chefes
desses cls no se tivesse erguido a autoridade do que denomina de
capites gerais (autoridades fixadas nas capitanias onde as
populaes foram se deslocando para o interior ou somente neste se
localizassem, a exemplo de So Paulo e Minas Gerais) para
distinguir dos capites-mores, denominao que lhe parecia deveria
ser usada por referncia a esse tipo de autoridade que logo foi
instituda nos ncleos populacionais do litoral.
A tese de Oliveira Viana, que nos parece bastante consistente,
tem o mrito de bem precisar o papel da aristocracia rural no
povoamento do pas, sem idealiz-la, ao mesmo tempo em que fixa
com propriedade o papel do Estado. Enterra a simplificao que seria
Ainda no que respeita ao tema da colonizao, cumpre
consignar a contribuio definitiva de Capistrano de Abreu ao
principais estudiosos de sua obra, considere que os Captulos de
Histria Colonial formam um todo que deve ser lido (ou estudado)
em conjunto, o prprio Capistrano reuniu outros ensaios dando-lhe o
ttulo antes referido, que justamente uma sntese extraordinria do
papel da iniciativa privada na ocupao do interior do pas.
Enfim, bem fixadas as caractersticas da poltica portuguesa
de colonizao, para Varnhagen os acontecimentos passariam a ser
descritos em perodos histricos com certa homogeneidade. No
primeiro sculo, toma por base, exclusivamente, os governos gerais -
-talvez para fazer sobressair o seu entendimento de que, com a sua
25
criao ganhamos fonte documental primorosa--, detendo-se na
dcada de oitenta para a introduo de uma espcie de balano geral,
data escolhida mais para homenagear os estudiosos precedentes
como Cardim, Gandavo ou Gabriel Soares de Souza do que registrar
o incio do perodo filipino. Nas centrias subseqentes, com tantos
eventos extraordinrios como as guerras holandesas, no segundo, e o
Tratado de Madrid e a mudana radical da coroa portuguesa de
subservincia Igreja Catlica, com a ascenso de Pombal, a
subdiviso teria que refletir a nova realidade.
sculo XVIII... obra exclusiva de Varnhagen, o primeiro a escrev-
la integralmente, como bem observou Capistrano de Abreu. Para o
tempo em que foi escrita, pode considerar-se completa ou quase
considerada como adequada formulao de outro princpio que rege a
historiografia, enriquecendo o legado de Varnhagen nessa matria.
Vejamos de que se trata.
abarca os descobrimentos das minas, os movimentos
emancipacionistas, as lutas com os espanhis no Sul, que testemunha
o povoamento inslito do Brasil, sua maior expanso territorial, sua
mais acentuada importncia poltica e administrativa: aquele perodo
tem sido, depois de Varnhagen, objeto de pesquisas mais acuradas,
de estudos mais aprofundados, medida que os depsitos de
documentos se tornam mais acessveis, e medida tambm que
forem surgido monografias especiais elucidativas de fatos nele
Esse precisamente o entendimento que cabe preservar do
significado do trabalho desenvolvido pelos que criaram a
historiografia nacional, entre os quais Varnhagen ocupa lugar dos
mais proeminentes.
A esse propsito no poderia deixar de registrar aqui a viso
renovada que tem sido proporcionada do mencionado sculo XVIII,
justamente seguindo uma das pistas abertas pelo insigne mestre.
26
Como antes se referiu, Varnhagen registra a atuao da
Inquisio no Rio de Janeiro, na primeira metade do sculo XVIII, a
fim de destacar o carter odioso da instituio.
O significado da presena do Santo Ofcio, em nossa histria,
corresponde a um dos aspectos mais enriquecidos pela investigao
subseqente. Assinalo o que me parece essencial.
Omer MontAlegre (1913/1989) havia correlacionado a
intensificao da atividade inquisitorial, no perodo mencionado, isto
, primeira metade do sculo XVIII, ao desmantelamento do
empreendimento aucareiro --na obra Acar e capital (Rio de
Janeiro, Instituto do Aucar e do lcool (IAA), 1974). De fornecedor
praticamente monopolista no sculo XVII e incio do seguinte, chega
condio de participante marginal, nesse mercado, no fim da
centria (13,7% das exportaes mundiais em 1796).
Louva-se da freqncia com que se encontram senhores de
engenho e outros ligados quela atividade, nos dados ento
conhecidos sobre os autos-de-f, bem como na denncia efetivada,
nesse sentido, por D. Lus da Cunha (1662/1749) em documentos
dirigidos ao Rei e outras autoridades que, ainda que tudo indique
tivessem sido do conhecimento de setores da elite, quando de sua
elaborao, somente no incio da transio para a monarquia
constitucional, devida Revoluo do Porto (1820), vieram a ser
divulgados com o ttulo de Testamento poltico, obra posteriormente
reeditada em diversas oportunidades, a partir de sua incluso nas
Obras inditas de D. Lus da Cunha (Lisboa, Imprensa nacional,
1821). Nas indicaes apresentadas ao Rei encarece a necessidade de
ser proibido o confisco dos bens dos senhores de engenho, a que se
dedicava a Inquisio, nada indicando que haja sido atendido.
A confirmao definitiva dessa hiptese resultaria do
extraordinrio trabalho de pesquisa desenvolvido pela professora da
USP, Anita Novinski. Conseguiu identificar a profisso de parcela
representativa dos processados pela Inquisio no mencionado
perodo, permitindo concluir que cerca de 70% eram pessoas
abastadas, entre estes senhores de engenho e outros personagens
27
ligados ao acar. A sistematizao desses estudos constam de Rol
dos culpados. Fontes para a histria do Brasil --sculo XVIII (Rio
de Janeiro, Expresso e Cultura) e Inquisio.prisioneiros do
Brasil. Sculos XVI a XIX (So Paulo, Perspectiva, 2009).
A intensificao da atividade do Santo Ofcio, na primeira
metade do sculo XVIII, no governo de D. Joo V, sendo inquisidor
o cardeal D. Nuno da Cunha, acha-se igualmente documentada por
Francisco Bethencourt (Histria das Inquisies --Portugal,
Espanha e Itlia, Lisboa, 1987).
De minha parte, efetivei a periodizao da Inquisio em
Portugal (Momentos decisivos da histria do Brasil --Martins
Fontes, 2000).
Tivemos oportunidade de referir os escrpulos de Varnhagen
no tocante abrangncia da Histria Geral do Brasil, optando por
encerr-la ordenando a vasta documentao que conseguiu reunir
acerca da Independncia.
O imperativo de preservarmos a
herana cultural de nossos antepassados
Com a capacidade ordenadora do real (para usar uma
expresso kantiana) que sempre tem demonstrado, Arno Wehling
conseguiu bem situar tanto o papel formativo da obra de Varnhagen
como os aspectos de que se ocuparam os que a consideraram desse
ngulo. Seriam os seguintes: a) estudos biobibliogrficos
(incompletos os do sculo XIX e parciais os do sculo XX); b) a
crtica cientificista (Capistrano, Silvio Romero e Pedro Lessa,
reivindicando uma viso sociolgica da histria); c) crtica erudita,
apologticos ou buscando defeitos, embora proclamando qualidades;
e d) reavaliaes contemporneas.
A crtica cientificista era parte de movimento renovador da
cultura brasileira, que teve desdobramentos positivos e negativos do
ponto de vista de nossas tradies culturais. Abriu novos caminhos --
a exemplo do culturalismo de Tobias Barreto-- mas tambm reforou
28
o cientificismo com efeitos catastrficos para a historiografia,
presentes sobretudo no que Arno Wehling denomina de
A tradio historiogrfica digna do nome, mesmo quando no
registra especificamente a Varnhagen, soube preservar os princpios
que, de fato, eram consensuais aos criadores da historiografia
brasileira. Arno Wehling refere o caso de Oliveira Viana que, como
A reavaliao contempornea, desde as dcadas de sessenta e
setenta, notadamente por influncia francesa, consiste, como diz,
posies marxistas e naquelas vinculadas ao movimento dos Annales
e da Nouvelle Histoire. -se sobre
universitrio e na pesquisa, inspiradores do ensino primrio e
De minha parte, entendo que a rejeio no atinge apenas
Varnhagen mas o conjunto da historiografia e s diversas linhas de
pesquisa dedicadas cultura brasileira, de um modo geral.
Essa avassaladora ocupao da praa representa
empobrecimento cultural de tal magnitude que exige uma reao
altura.
O Brasil jamais ultrapassar o subdesenvolvimento --que
longe est de limitar-se economia-- se no for capaz de avaliar com
propriedade as contribuies daqueles que nos precederam. Graas
simples comemorao dos quinhentos anos --que parece ter sido
esquecida quando transcorreu apenas uma dcada-- perdemos o
direito de continuarmos nos conformando com o atraso, reconhecido
em anlise isenta de qualquer domnio do conhecimento, a pretexto
29
Encontrar as formas de permitir que as novas geraes
tenham acesso s mencionadas contribuies um dever de que no
podemos nos furtar.
ANEXOS
Nota sobre o modelo historiogrfico de Southey
Justifico nesta nota a afirmativa de que o trabalho pioneiro de
crtica obra de Gabriel Soares de Sousa que ter inspirado
Varnhagen na concepo do modelo que adotou na sua Histria
Geral do Brasil. Como a edio da mencionada obra, ocorrida em
1825, havia sido precedida pela publicao da Histria do Brasil de
Robert Southey (1774/1843), trs volumes em ingls, efetivada em
Londres entre 1810 e 1819 (a traduo portuguesa somente ocorreria
em 1862, a cargo da Livraria Garnier, Rio de Janeiro), o mais
plausvel seria admitir que adviria desta o modelo em causa,
notadamente por abranger o perodo colonial em sua quase totalidade
enquanto o livro de Gabriel Soares de Souza apenas o primeiro
sculo. Lembro aqui que traa as caractersticas fsico-geogrficas,
descreve os aborgenes, destaca o significado da Expedio de
Martim Afonso, em matria de fixao da poltica colonial
portuguesa e, talvez o que seria mais relevante, estabelece distino
entre as capitanias, ocupando-se das que considerava bem sucedidas
por t-las visto de perto. Essa distino que iria permitir reconhecer
que, nesta fase inicial lanam-se as bases da prspera civilizao
implantada na Zona da Mata de Pernambuco e no Recncavo Baiano,
anteriores ao surto minerador. Naturalmente insere omisses e erros,
conforme foi assinalado.
A questo magna que interessa a Southey corresponde
disputa pela posse do Brasil. Registra a presena francesa mas de
fato ocupou-se mais vivamente daquela que atribui Espanha.
Numa primeira aproximao, esse tipo de preocupao decorreria da
existncia do perodo filipino, quando de fato se estabelece o
30
tivesse sido outra e at a insinua, como iremos referir. O certo
entretanto que no h um texto contnuo sobre o Brasil mas
entremeado pela histria de pases vizinhos. Vejamos alguns
exemplos.
No primeiro volume, depois de indicar as viagens ao Brasil e
registrar a de Cabral, embora a detalhe, logo a mistura com as de
Amrico Vespuci e passa ao captulo II onde o tema a descoberta
do Rio da Prata. Embora neste figure a referncia subdiviso do
Brasil em capitanias, no d qualquer indicao de seu significado,
em termos de poltica portuguesa de colonizao. Nem parece ter-se
dado conta de que proviria da Expedio de Martim Afonso de
Sousa. A par disto, o relato acha-se entremeado por indicaes
estes mesmos tempos se formou outra capitania, a de Pernambuco.
Um navio de Marselha ali havia estabelecido uma feitoria, deixando
nela setenta homens, pensando em manter a possesso. Mas o navio
foi apresado na volta, e sabendo-se assim em Lisboa do ocorrido
No satisfeito com esta forma de apresentar a sua Histria do
Brasil, o captulo III est dedicado fundao de Buenos Aires. No
captulo IV, que se segue, supostamente volta ao Brasil, desta vez
dedicando-se ao Maranho. Mas o projeto de ocupao de que se
trata diz respeito a sdito de Espanha e explicita tratar-se do
Somente na parte final alude-se ao fracasso desta tentativa espanhola
de colonizao mas portuguesa, que a sucedeu, dedica umas poucas
qual no se teve
No captulo seguinte (V) o tema o Prata, com nfase no
Paraguai passando a nfase, no captulo VI, ao Peru. No VII, volta ao
Brasil mas para se ocupar de Hans Staden.
Estamos num tero do volume I, quando se chega ao governo
geral.
31
Qual a imagem que nos transmite da rea descoberta h
poucos sculos? Primeiro, no que se refere especificamente
Amrica do Sul, no haveria distines a assinalar entre as partes
componentes. A potncia que destaca no Portugal mas a Espanha.
No que respeita propriamente ao Brasil, sobressaem as disputas por
sua posse enquanto o domnio na parcela restante (Nova Espanha)
parece inconteste. No se apercebeu da mudana estabelecida na
poltica portuguesa de colonizao em decorrncia da expedio de
Martim Afonso de Sousa.
No restante deste primeiro volume, como de resto nos dois
subseqentes (o ltimo, terceiro, chega a Pombal, expulso dos
seu estado ao tempo de passar ali a
diversa: disputa pela posse e integrao ao conjunto. Em relao ao
seu propsito h uma indicao esclarecedora no III volume (pg.
1428 da edio do Senado). Transcrevo-
tivessem previsto quo depressa iam ver-se envolvidos, numa guerra
com a Espanha, teriam logo tomado parte na justa contenda do Rei
de Portugal, a respeito de Nova Guiana, em vez de lhe excitarem
ressentimento e a m vontade, intervindo unicamente para emplastar
a desavena te
Cumpre esclarecer que estas indicaes dizem respeito
apenas questo do modelo adotado por Southey --contrastando-o
com o que preside Histria geral do Brasil-- e nem de longe por
em causa os mritos de sua obra. Prestou-nos enorme servio, dando
a conhecer aos ingleses algo acerca do Brasil. H de ter contribudo
para torn-los nosso aliado, quando passamos a carecer do
reconhecimento internacional vista da Independncia.
Nota sobre o livro Histria da Colonizao Portuguesa do
Brasil
Em sucessivas oportunidades o nome de Varnhagen tem sido
associado obra em epgrafe. Levando em conta esse fato, pareceu-
32
me que seria adequado proporcionar ao leitor uma breve notcia de
seu contedo. Ver-se- que a associao em apreo prende-se
sobretudo ao fato de que, tratando-se de documentar o feito
considerado, a grande autoridade que os autores invocam a do
fundador da nossa historiografia. Com efeito, os documentos que
permitiram fazer-nos uma idia dos percalos experimentados por
aquela maravilhosa aventura, praticamente em sua totalidade,
tornaram-se acessveis graas dedicao daquele mestre, como tem
sido apontado e pode-se ver do seu livro bsico.
A referncia a seguinte: Histria da Colonizao
Portuguesa do Brasil. Edio comemorativa do primeiro centenrio
da Independncia do Brasil. Coordenao de Carlos Malheiros Dias.
Porto: Litografia Nacional, 1921-1924, 3 vols. A obra acha-se
fartamente ilustrada e tem estas dimenses: 37 x 28 cm.
Indique-se que a publicao intitula-se, merecidamente, sem
Na ilustrao de abertura constam estas notas: Planisfrio de
Jernimo Marini (1511), onde pela primeira vez aparece a Amrica
do Sul com a denominao de Brasil. O volume I inclui a carta de
Pero Vaz de Caminha a El-Rei D. Manuel, verso em linguagem
atual, com anotaes da doutora D. Carolina Michaelis de
Vasconcelos, professora de Filologia, na Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra, v. 2., p. 86-99.
Os documentos inseridos nos diversos volumes, geralmente
localizados por Varnhagen, so transcritos em fac-smile e, por
vezes, acompanhados da impresso do seu contedo com a ortografia
da data da edio. A presena de Varnhagen assinalada logo no
incio ao ser transcrito o fac-simile das recomendaes que levaram
Cabral a afastar-se da costa. A esse propsito teria oportunidade de
esclarecer na Histria geral do Brasil
recebeu e das quais chegaram providencialmente s nossas mos
alguns fragmentos da maior importncia, foi-lhe recomendado que na
altura de Guin se afastasse quanto pudesse da frica, para evitar
suas morosas e doentias calmas.Obediente a essas instrues, que
33
haviam sido redigidas pelas insinuaes de Gama, Cabral se foi
amarando da frica, e naturalmente ajudado a levar pelas correntes
ocenicas ou pelgicas, quando se achava com mais de quarenta dias
Em
-simile ou borro da primeira folha do
rascunho ou borro dessas instrues, por ns encontrada e mandada
A atribuio a Vasco da Gama --de responsabilidade de
Varnhagen-- veio a ser confirmada pelos eruditos portugueses que
prepararam a obra que estamos considerando, apenas com a preciso,
efetivada por Antonio Baio, de que seriam notas tomadas pelo
secretrio de Estado Alcaova Carneiro, ouvido o parecer de Vasco
e inicia-se, como foi indicado, pelo fac-simile das instrues
recebidas por Pedro lvares Cabral. Tem como propsito atestar que,
-se a circunavegao costa a costa,
aventurando- tificar a transcrio
de documentos que, no entender dos compiladores, permitiram
deduzir da intencionalidade da descoberta. apresentado o inteiro
teor do Tratado de Tordesilhas.
Alm dos documentos --todos antecedidos por longas
introdues--, este primeiro volume contm a caracterizao da Era
--
--Prof. Duarte Leite (captulo
III
(captulo IV). Ao todo o volume tem 226 pginas, em grande nmero
ocupadas por ilustraes.
O volume II intitula- -se
composto apenas por ensaios de eruditos portugueses, a saber: A
expedio de Cabral --Jaime Cortezo (captulo V); De Restelo a
Vera Cruz --H. Lopes Mendona (captulo VI); A semana de Vera
Cruz --C. Malheiro Dias (captulo VII); A expedio de 1501 --C.
34
Malheiro Dias (captulo VIII); O mais antigo mapa do Brasil --Prof.
Duarte Leite (captulo IX); A expedio de 1503 --C. Malheiro Dias
(captulo X); O comrcio do Pau Brasil --Antonio Baio (captulo
XI); e O descobrimento do Rio da Prata --F. Esteves Pereira
(captulo XII). O volume abrange das pginas 227 a 458.
O terceiro e ltimo volume saiu a lume em 1924 e intitula-se
-1580). Quer marcar a mudana de
orientao, em seguida morte de D. Manuel I (fins de 1521). Na
ndia dos esplendores
inesperadamente aparecia transformada em sugadouro de cabedais e
contra os males de um aparente gigantismo, que produziu a obra
O volume III segue o modelo do antecedente, isto , compe-
se de ensaios eruditos (desta vez com a participao brasileira),
adiante relacionados. Assinale-se que o livro obedeceu a numerao
autnoma das pginas, o mesmo acontecendo com os captulos.
Segue-se a enumerao:
Captulo I --A Metrpole e suas conquistas nos reinados de
D. Joo III, D. Sebastio e
Cardeal Henrique C. Malheiro Dias (p. 2-58)
Captulo II --A expedio de Cristovam Jacques Antonio
Baio e C. Malheiro Dias .
(p.59-96)
Captulo III A expedio de Martim Afonso de Sousa --
Jordo de Freitas (p.97-166)
Captulo IV A soluo tradicional da colonizao do Brasil -
-Prof. Paulo Mera
(p. 167-193)
Captulo V --Os primeiros donatrios --Pedro Azevedo (p.
194-220)
Captulo VI --O regime feudal das donatarias --C. Malheiro
Dias (p. 221-258)
Apndice de documentos ( p. 259-286)
35
Captulo VII --A nova Lusitnia --Oliveira Lima ( p. 287-
326)
Captulo VIII --A instituio do governo geral --Pedro
Azevedo p. 327-344
Apndice de documentos ( p. 350-383)
Indicaes sobre a transcrio
Antonio Paim
Consta da Histria Geral do Brasil este subttulo
Subdivide-se em cinco tomos, que totalizam 1.795 pginas,
aos quais foi acrescida a Histria da Independncia do Brasil (365
p.). Essa separao prende-se ao fato de que Varnhagen a publicou
depois de dar ao prelo os cinco tomos precedentes. Acertadamente,
entendeu Rodolfo Garcia que corresponde parte final da Histria
Geral. De sorte que, o comum das reedies mantm esse formato,
sem embargo de que em nada prejudica o conjunto sua publicao
em separado.
Varnhagen adotou a denominao de seco, ao invs de
captulo.
Por razes que transcendem o objetivo central da transcrio
(dar uma idia do conjunto da obra), optamos por inserir de forma
36
autnoma --e logo no incio-- a informao de que dispunha da
atuao da Inquisio, no Rio de Janeiro, no sculo XVIII, razes
essas que aponto na breve nota introdutria que a antecede..
No tomo primeiro, no chega a completar-se o relato
dedicado ao primeiro sculo, a que se refere a transcrio
subsequente, merecendo entretanto breves comentrios.
Na transcrio em causa, cujo propsito consiste em facilitar
o conhecimento do magistral trabalho desenvolvido por Varnhagen,
no estabelecimento dos marcos essenciais, a limitamos aos captulos
que fixam os rumos que seriam seguidos para assegurar a ocupao
do territrio, dada a circunstncia de no ter sido localizada riqueza
mineral, de imediato, ao tempo em que a posse era disputada por
potncias europias concorrentes.
Pareceu-nos que o mencionado objetivo seria alcanado pela
apresentao das seces VII; VIII e IX, dedicadas expedio de
Martim Afonso (1530) e seus resultados imediatos. Para definir o
caminho a seguir, incumbiu seu irmo de fazer uma viagem
exploratria, de que deu conta em documento localizado por
Varnhagen. Concebeu uma estratgia de ocupao que depois seria
generalizada. Segue-se a seco XV, em que aborda a criao do
governo central na Bahia (1549). Por fim, no que respeita ainda ao
sculo XVI, transcreve-se a Seco XIII (com que se inicia o Tomo
Segundo) que insere uma espcie de balano. Intitula-
de Sousa, autor do Tratado Descritivo do Brasil. A publicao do
trabalho historiogrfico desenvolvido por Varnhagen e muito
influenciaria no rumo que adotou e empreendeu. No conseguiu
determinar a data em que teria sido escrito (na edio de que se
incumbiu havia adotado 1587), questo a que Rodolfo Garcia
dedicou uma de suas notas.
A parte restante desse tomo segundo contm indicaes sobre
a colonizao do Norte e
37
as guerras holandesas. A estas acham-se dedicadas as ltimas
seces, a saber:
XVII -Perda e recuperao da Bahia, acrescida de
notcia da marcha da
colonizao
XVIII Desde a invaso de Pernambuco at chegar
Nassau
XXIX Governo de Nassau at levantar o stio da Bahia
XXX Desde o stio da Bahia at a partida de Nassau
O assunto tem seguimento no tomo terceiro, deste modo:
XXXI Revoluo de Pernambuco at a primeira ao
dos Guararapes
XXXII Desde a recuperao de Angola at o fim da
guerra
Varnhagen reuniu ampla documentao sobre o assunto
indicado que, subsequentemente, tem sido muito estudado. No nos
pareceu que fosse o caso de transcrev-los em parte, no tendo
cabimento faz-lo no todo.
A parte restante do tomo terceiro compreende o fim do
perodo filipino, com a aclamao de D. Joo IV rei de Portugal.
Conforme declara Varnhagen, tem agora as atenes voltadas para o
novo ordenamento institucional do pais, com a diviso em dois
Estados. No tocante ao recente Estado do Maranho, d grande
importncia aos atritos com os jesutas, a propsito de sua utilizao
dos ndios como mo de obra, vetada ao comum dos colonos. Como
conduziu ao desfecho dado por Pombal --a sua expulso--e talvez por
melindroso, com a prudncia que as c
A esse propsito transcreve trecho de uma representao
encaminhada aos governantes, transcrita na Revista do Instituto
38
Histrico
foram os Apstolos de Cristo e so aqueles que no tm terras, nem
rendas, nem propriedades, nem outros bens, alguns aonde assistem, e
no aqueles que, com ttulo de servio de Deus e bem das almas,
andam procurando terras e mais terras, com o pretexto de que so
para os ndios. O ttulo santo: o intuito diablico: porque com o
seu nome se procuram as terras e os ndios, para se servirem deles
como escravos, para todas as suas lavouras, comrcios, negcios e
A situao descrita provocou atritos dos mais srios na regio
abrangida pelo Estado do Maranho, notadamente no Par, onde os
moradores chegaram a levantar-se em armas para expulsar os
jesutas, consumada em sucessivas oportunidades e em vrias
localidades. Manifestaes contra a Ordem tiveram lugar mesmo em
So Lus, tendo se mobilizado em, favor dos colonos portugueses, os
rgos que ento eram os autnticos institutos da representao
popular, as Cmaras Municipais.
Varnhagen tinha conhecimento da Crnica da Misso dos
Padres da Companhia de Jesus no Estado do Maranho, de
autoria do padre jesuta Joo Filipe Bettendorff, considerado como o
depoimento mais confivel do mencionado conflito. Nessa obra h
padres
Crnica
compreende a segunda metade do sculo XVII (o segundo da
colonizao). O Senado Federal editou, em 2010, a verso integral
desse documento, que tem nada menos que 803 pginas.
As razes do conflito eram claras. Varnhagen refere que os
-se a dispor de
levantamentos circunstanciados desse patrimnio, com base nos
registros efetivados quando se deu a sua expulso, decretada por
Pombal. Ficou estabelecido, por exemplo, que as fazendas que
haviam criado na ilha de Maraj contavam com mais de cem mil
39
cabeas de gado. A fazenda de Santa Cruz (no Rio de Janeiro) era
considerada a maior em todo o Centro-Sul. Sendo os ndios a mo de
obra empregada, qual a natureza desse vnculo? Varnhagen formulou
essa questo que no foi respondida pelos que saram em defesa dos
jesutas, argumentando com o papel que desempenharam na
disseminao da religio, que ningum contesta, nem tampouco a
importncia de que se revestiu na preservao da unidade nacional.
Entendo ser suficiente o que se referiu, sendo desnecessria a
transcrio de textos do autor, dando preferncia a outros eventos.
Entre estes, aqueles em que chama a ateno para a ao do
Santo Ofcio na primeira metade do sculo XVIII. Antecedo-a de
uma nota em que destaco ter resultado na desorganizao do
empreendimento aucareiro, de onde proveio a maior parcela da
receita de nossas exportaes nos trs primeiros sculos.
Varnhagen referiu mas no deu maior desenvolvimento s
bandeiras, que desempenharam papel destacado na disseminao do
povoamento. Capistrano que feriu o tema, inclusive mostrando
como a pecuria resultou de sua atuao. Contudo, fora de dvida
que o bandeirantismo nunca recebeu de nossa parte a ateno e
destaque que merecia. Seria um grande tema para o cinema, a
exemplo da explorao que Hollywood deu Marcha para o Oeste
nos Estados Unidos.
Em compensao, deteve-se nos incidentes que seriam a
origem da disputa, que se tornaria secular, em torno do controle do
acesso bacia do Prata. Como era de seu estilo, mobilizou a
documentao disponvel. Teria amplos desdobramentos, a exemplo
do Tratado de Madrid, nesse terceiro sculo; a opo pela separao
do Uruguai, logo no incio da Independncia e mesmo o desfecho
colossal que seria a Guerra do Paraguai--, no pareceu-nos essencial
quando nos propomos apenas a manter viva a presena de Varnhagen
e assegurar a possibilidade de que as novas geraes tenham dela
notcia.
No que respeita ao tomo quarto, do uma idia do
desenvolvimento da obra as sees XLV D. Jos I e Pombal.
40
Administrao Josefina. Letras; e, XLVII -Idias e conluios em
favor da Independncia em Minas. Adicionalmente, permitem situar
a espcie de conservadorismo da elite que logrou facultar-nos uma
experincia bem sucedida de governo representativo, a que pertencia
Varnhagen.
A transcrio se conclui com textos da parte dedicada
Independncia. O propsito dar uma idia do volume da
documentao que mobilizou para conclu-los.
PRIMEIRO SCULO (sculo XVI)
SECO VII
(III da I edio)
ATENDE-SE MAIS AO BRASIL. PENSAMENTO
DE COLONIZ-LO EM MAIOR ESCALA
Os Portugueses na sia. Os Franceses no Brasil,
Recursos do foro e da diplomacia. Ango. Roger. Jacques.
Igarau e Pernambuco. Diego Garcia e Cabot. D. Rodrigo de
Acua. Porto de D. Rodrigo. Baixos de D. Rodrigo. Suas
peregrinaes. D. Rodrigo em Pernambuco. Cristvo Jacques
e os Franceses. Antnio Ribeiro. Idia de colonizao. Diogo
de Gouveia. Mritos de Gouveia. Resolve-se a colonizao do
41
Brasil. Henrique Montes. Martim Afonso de Sousa. Poderes
que trazia. Pero Lopes de Sousa. Reclamaes de Frana.
Negociaes diplomticas importantes.
Vimos na seco precedente como j no reinado de D.
Manuel e pelo menos desde 1516, haviam sido dadas algumas
providncias em favor da colonizao e cultura do Brasil.
Sabemos, alm disso, que depois o mesmo rei, ou pelo menos
o seu sucessor apenas comeou a reinar, criou no Brasil
algumas pequenas capitanias; e que de uma delas foi capito
um Pero Capico, o qual chegou a juntar algum cabedal.
Igualmente sabemos que os produtos, que iam ento do Brasil
ao reino, pagavam de direitos, na casa da ndia, o quarto e
vintena dos respectivos valores, e que, no nmero desses
produtos entravam no s alguns escravos, como, em 1526,
Decorriam, porm, os anos, e o Brasil seguia com o seu
imenso litoral merc de qualquer navio que o procurava.
No h por que fazer censuras. Os esforos e os capitais
empregados na sia produziam maior e mais imediato
interesse, nessa poca de crise comercial, em que se efetuava
em favor da Europa um grande saque das riquezas empatadas
no Oriente. Alm de que, ainda sem considerar a questo sob
miras econmicas, certo que Portugal, forando os turcos a
levar a guerra sia, aliviou por algum tempo a Europa do
seu peso ameaador, e sustentando o comrcio da especiaria
por mar, consumou o pensamento de Lull de empobrecer
bastante o Egito. Ora, no fora possvel durante essa luta
distrair muitos navios e foras para outro continente. Os
adustos campos das ento recentes glrias portuguesas, a
prpria frica, onde filhos de reis iam armar-se cavaleiros,
comeou a ser descuidada. E ainda supondo que j ento
tivesse ocorrido a idia que depois (nesse mesmo sculo)
ocorreu (1), de que no Brasil poderia vir a organizar -se um
42
grande imprio, a metrpole aguardava acaso para isso melhor
ocasio. A glria que Portugal adquiriu na sia custou-lhe,
entretanto, a perda de muita da sua populao, e o perverter
em parte a ndole dos seus habitantes, com tantas piratarias e
crueldades. Em virtude delas, o tm coberto de baldes, como
se as crueldades e as piratarias no tivessem em todos os
tempos sido apangio das conquistas. Esses heris da
antiguidade, que, em geral, s contemplamos pelo aspecto
maravilhoso, tambm praticaram muitas crueldades e muitas
injustias; porm como aos panegiristas, que nos transmitiram
seus feitos, no faltou manhoso artifcio para no-lo contarem a
seu modo, ocultando tudo quanto lhes no servia ao
panegrico, e nem todos os que lem so pensadores, sucede
que muitos, inconseqentemente, louvam e admiram na
histria como heroicidades feitos idnticos aos que em outra
poca, ou em outro pas, condenam como misrias e
pequenezas desta ou daquela gerao. Se de todas as
conquistas dos Gregos e dos Romanos tivssemos histrias
escritas pelos seus inimigos ou rivais, talvez que no
admirasse o mundo tantas proezas, nem tantos heris.
Enquanto, porm, Portugal se via a braos com grande
nmero de inimigos no litoral e mares da sia, onde, em 1521,
a sua armada constava nada menos que de uns oitenta e tantos
vasos (Doc. da Torre do Tombo), muitos armadores da
Bretanha e Normandia, j avezados navegao das costas de
Guin e da Malagueta, passavam no s a alguns excessos de
pirataria com os galees que vinham da ndia, como a traficar
nas terras do Brasil; onde adquiriam quase de graa gneros,
que nos mercados europeus obtinham grandes valores, e os
quais lhes deviam produzir maiores vantagens do que aos
contratadores portugueses; por isso mesmo que no tinham,
como estes, de indenizar a coroa pela faculdade de
comerciarem. Debalde havia Portugal proibido com duras
43
ou esferas terrestres, e o marcarem nos mapas as terras ao
suldo rio de Manicongo e das ilhas de So Tom e Prncipe
(Alov. de 13 de Nov. de 1504, na Torre do Tombo). Debalde
proibia que aceitassem seus pilotos e marinheiros (Ordenaes
Manuelinas, liv. V, tt. 98, 2; tt. 88, 11) o servio de mar
de outras naes, pensando talvez com isso obstar propagao
dos conhecimentos nuticos pela Europa. Os ousados
navegadores de Honfleur e de Dieppe freqentavam cada dia
Mais os portos do Brasil. As guerras da Frana no faziam
diminuir o ardor e a atividade dos seus homens do mar,
estimulados por tantos lucros. Em 1516 haviam chegado a
Portugal tais notcias de suas navegaes no Brasil, que el-rei D.
Manuel mandava por seus agentes representar contra elas corte
de Frana (2). E digamos desde j que to poderosos se tinham
feito alguns armadores, que nem o mesmo governo francs podia
sujeit-los, e que Portugal, depois de haver exaurido na Frana,
perante os tribunais, os parlamentos e a prpria coroa, todos os
recursos do foro e da diplomacia, se viu obrigado a transigir e a
negociar com os mais notveis corsrios, que eram Joo Afonso e
o clebre Joo Ango, ao depois visconde de Dieppe (3). Todos
estes acontecimentos merecem uma histria especial que no
duvidamos se escrever algum dia; pois sobram para ela os
documentos, dos quais somente aproveitaremos agora o que mais
de perto nos interesse. Sabemos que, j em vida de el-rei D.
Manuel, fora o seu subdito Jcome Monteiro nomeado
embaixador junto a Francisco I, com instrues para representar
acerca das tomadias e das invases nas suas conquistas,
efetuadas umas e outras por franceses. A Monteiro sucedeu Joo
da Silveira mandado por D. Joo III, apenas subiu ao trono, com
especial recomendao para que ponderasse quo triste era que
se estivessem hostilizando no mar os sditos, de dois reis e de
duas naes que se diziam amigos (4). Apesar das reclamaes
que faziam, como levamos dito, os agentes portugueses,
empreendera Hugues Roger com felicidade em 1521 uma viagem
44
nossa costa, e havia notcia de que se preparavam outros
navios. Por fim, em 11 de Fevereiro de 1526, escrevia o
embaixador Joo da Silveira, como em Frana se armavam dez
navios para virem apoderar-se das embarcaes que
encontrassem.
Tal aviso, a nosso ver, decidiu Portugal a mandar ao
Brasil de guarda-costa, neste mesmo ano, uma esquadrilha
composta de uma nau e cinco caravelas, a qual findo certo
prazo devia ser rendida por outra. Vinha por capito-mor
Cristvo Jaques(I), e trazia de chefes subalternos Diogo
Leite, com seu irmo Gonalo Leite, e Gaspar Correia. O
mesmo Jaques era portador de um alvar, passado em
Almeirim por Jorge Rodrigues, a 5 de Julho de 1526,
autorizando a Pero Capico a retirar-se. Esse alvar era
Christovo Jacques, que ora envio por Governador s partes do
Brasil, que Pero Capico, Capitan de uma das capitanias (5) do
dito Brasil, me enviou dizer que lhe era acabado o tempo da
sua capitania, e que queria vir para este Reyno, e trazer
comsigo todas as peas de escravos e mais fazendas que
tivesse, Hey por bem e me praz que, na primeira caravela ou
navio que vier das ditas partes, o deixeis vir, com todas as suas
peas de escravos e mais fazendas; comtanto que viro
diretamente casa da India, para nella pagarem os direitos de
quarto e vintena, e o mais que a isso forem obrigados, na
frma que costumam pagar todas as fazendas que vm das
Jaques alcanou a costa do Brasil no fim do dito ano; e
fundeando no canal que separa do continente a ilha de
Itamarac, deu ali princpio a uma casa da feitoria no stio, que
ois se
colocaram para termos de demarcao, no prprio continente,
quase em frente da entrada do sul do mesmo canal, e da antiga
vila da Conceio, situada a cavaleiro, na prpria ilha. Esta
45
feitoria, ou outra a par desta, passou ao que parece a ser
estabelecida pelo mesmo Jaques no porto de Pernambuco ou
antes Paranmbuko, nome que significa furo do mar, segundo
alguns; mas que parece antes dever derivar-se de duas palavras
Paranambuco, sem nenhum furo ou ria (7).
Deixando fundada essa feitoria, passou Jaques a correr
a costa at o Rio da Prata, onde pouco tempo se demorou,
regressando outra vez para o norte, a cometer feitos que no
tardaremos em comemorar. Primeiro, nos cumpre dizer como
por este mesmo tempo estacionavam ou navegavam nas guas
do nosso litoral duas frotas, ambas de Castela. De uma, que
constava de trs naus, era chefe Diego Garcia (8). Mandava a
outra, com igual nmero de redondos e mais uma caravela,
Sebastio Cabot, filho do navegador de igual apelido, que
descobrira por Inglaterra as costas do Norte deste grande
continente. Estas duas frotas haviam deixado a Europa um
pouco antes que Jaques. Diego Garcia, que partira primeiro,
aportou em So Vicente; e tantos meses a se demorou que
parecia se esquecer do seu destino, que era subir o Rio da
Prata. Por meio da relao que de sua viagem nos transmitiu,
no se nos recomenda como homem verdadeiro, nem polido,
nem superior mesquinha inveja, e deve ler-se com precauo.
Cabot era mandato s Molucas por este lado, reforando outra
armada maior que havia partido um ano antes, e da qual em
breve daremos notcia. Aportou Cabot em Pernambuco(II),
onde j encontrou a feitoria portuguesa, e seguindo a
navegao para o sul, s avistou de novo terra nas alturas da
ilha, a que ento ps o nome de Santa Catarina. A fundeou
Cabot, e logo de um porto vizinho da parte do sul vieram
visit-lo muitos castelhanos, dos quais uns ali viviam desde
muitos anos (9), e outros desde mui pouco tempo, no havendo
querido seguir a D. Rodrigo, de quem passaremos a tratar.
Era D. Rodrigo de Acua o comandante da nau So
46
Gabriel pertencente a uma armada (10) que, s ordens do
comendador Fr. Garcia Jofre de Loaysa, partira, antes de
Cabot e de Diego Garcia, com direo s Molucas, seguindo
derrota pelo ocidente. Essa armada, largando da Corunha em
24 de Julho de 1525, avistara em princpios de Dezembro a
costa do Brasil, ao sul do cabo de So Tom, e fora, pela
maior parte, desbaratar-se junto ao Estreito de Magalhes. No
de nosso propsito contar esse desbarato, ao qual pouco
depois se seguiu a morte de Loaysa e do seu imediato Del
Cano; e contentemo-nos de saber que D. Rodrigo achou
refgio em um porto, ao sul da ilha de Santa Catarina, e
encontrou vrios companheiros de Solis que, abastecendo-o de
gua, lenha e mantimentos, deram da terra tais informes que
muitos da tripulao, alborotando-se, se determinaram a ficar
nela, em vez de exporem-se a novos perigos de mar. As
exortaes de D. Rodrigo apenas puderam atrair-lhe alguns
poucos dos alborotadores.
Daqui proveio a este porto o nome de Porto de D.
Rodrigo, com que por muito tempo foi conhecido nos mapas e
roteiros. Acaso seria o mesmo a que Solis, dez anos antes,
chamara Baa dos Perdidos, talvez em virtude dos
mencionados seus companheiros que a lhe fugiram ou se
perderam; se que esses indivduos no houvessem
efetivamente ficado por a, voluntariamente ou desgarrados, j
desde alguns anos antes.
Com trinta e dois homens menos de tripulao, fez-se
por fim D. Rodrigo de vela para o Rio de Janeiro. Neste porto
convocou a sua gente a conselho: e nele foi resolvido que a
nau em vez de seguir para as Molucas, voltasse Espanha,
com alguma carregao de pau-brasil. Dirigiu, pois, D.
Rodrigo o rumo para o norte e entrou na Bahia. A a
tripulao se lhe diminuiu de nove homens que, indo terra, l
ficaram devorados pelos selvagens, segundo se julgou.
Saindo da Bahia para o norte, pela muita gua que fazia
47
a nau, tratou de arribar, e deu-se a casualidade de que, meado
Outubro, fosse entrar justamente num porto prximo do rio de
So Francisco, no qual se achavam carregando de brasil suas
naus e um galeo de Frana (11). Os capites franceses ao
princpio ofereceram proteo a D. Rodrigo, mandando-lhe at
dois calafetes; e quando, passados oito dias, se achava a nau
espanhola virada de crena, e impossibilitada de navegar,
caram na fraqueza de ir acomet-la, intimando a D. Rodrigo
que se rendesse. Vendo este que a resistncia era impossvel,
meteu-se no batel, foi ter com os franceses, e conseguiu deles
trguas, ficando de lhes dar vinhos e azeite que diziam
carecer. Enquanto, porm, se negociavam estas trguas, e os
franceses tendo o capito castelhano em refm, se
descuidavam da nau agredida, ela conseguia, no s surgir
boiante, como picar as amarras, e fazer-se de vela. Quando os
franceses despertaram do seu descuido, j a nau espanhola ia
barra fora, sem o capito, nem os marinheiros que o haviam
acompanhado. Em vo D. Rodrigo lhes bradava e fazia sinais,
em vo os seguia em um batel vela. A nau So Gabriel j
nem nas promessas do seu prprio capito confiava, que tanta
desconfiana levam os desenganos das promessas no
cumpridas.
Seguiu D. Rodrigo no batel todo aquele dia e parte do
imediato. Porm... baldados esforos! a nau tinha desaparecido
no horizonte, e o seu legtimo comandante e fiis romeiros,
exaustos de foras, emproavam para terra e iam varar costa,
a umas dez lguas para o norte do porto donde haviam partido:
- naturalmente na paragem que se ficou at hoje chamando os
Baisios de D. Rodrigo, quase defronte do rio Cururipe. Da se
dirigiram por terra, bastante expostos aos selvagens, ao porto
que acabavam de deixar.
J tinham dele partido as duas naus francesas, e s
ficara o galeo. Neste se alojaram os tristes por mais de um
ms; mas acabando o mesmo galeo de carregar, fez-se de
48
vela, desamparando os mseros em um batel, sem mantimento
algum!
No havia, porm, soado a hora final aos pobres
desamparados. Entregues providncia, seguiram pelos mares
durante vinte dias, nutrindo-se apenas de algum marisco e de
pouca fruta que acertavam de colher pela costa, at que na ilha
de Santo Aleixo lhes deparou Deus porto, onde puderam
refazer-se. Nessa ilha tiveram a fortuna de encontrar alguma
farinha de trigo, uma pipa de bolacha molhada, um forno, e
anzis com que apanharam muito peixe (12). De Santo Aleixo
passaram feitoria de Pernambuco (13).
Cristvo Jaques se negou a dar-lhes passagem para a
Europa, primeiro em uma nau que enviava carregada de brasi l,
e na qual mui provavelmente se embarcou, com seus haveres
Pero Capico, e depois numa caravela que igualmente mandou
regressar ao reino. Pela primeira escreveu D. Rodrigo ao bispo
apreendida, e ainda hoje se guarda no arquivo pblico em
Portugal (14). Dez meses depois escreve3u outras, uma das
quais para el-rei D. Joo III; e estas chegaram a Lisboa, pela
mencionada caravela, ao mando do capito Gonalo Leite. As
que eram para Castela foram remetidas pelo embaixador em
Lisboa (15) Lope Hurtado. Os da nau So Gabriel, depois de
eleger por capito ao piloto Juan de Pilola, no podendo
montar o Cabo de santo Agostinho, retrocederam Bahia, para
querenar; porm, inquietados a por outra nau francesa,
passaram ao Cabo Frio e, deste, a um porto mais ao sul, do
qual se fizeram afinal de vela para a Europa, chegando a
Bayona de Galiza aos 28 de Maio de 1527 (16).
Quando a nau espanhola So Gabriel, ao querenar,
sofria as bombardadas dos trs navios franceses, navegava elos
mares braslicos, por aquela altura, a armada de Sebastio
Cabot, que deixara Pernambuco no ms anterior. E ai dos
aleivosos, se nessa ocasio se aproximara da costa a esquadra
49
espanhola! Porm Cabot seguia de largo, e s foi de novo
avistar terra na ilha de Santa Catarina, como antes dissemos.
As informaes que a Cabot deram os castelhanos, que
nesta ilha encontrou, das riquezas do rio da Prata, o induziram,
a pretexto de no poder empreender maior viagem por se haver
perdido a capitnia, a subir pelo mesmo rio da Prata, em vez
de prosseguir para as Molucas (17).
Deixando, porm, os mais sucessos desta armada, bem
como os outros da sua contempornea castelhana ao mando de
Diego Garcia (18), e que no pertencem nossa histria,
sigamos a Cristvo Jaques em seus feitos. Vimos como,
julgando que lhe bastava ter consigo as cinco caravelas latinas,
mandara para o reino a nau, com carga de brasil. Logo depois,
andando a correr a costa, com quatro das ditas caravelas,
travou peleja com trs navios de mercadores bretes, dois
deles de cento e quarenta toneladas. Combateu um dia inteiro,
e, saindo vencedor, levou para Pernambuco os prisioneiros em
nmero de trezentos. Segundo nos consta por tradio, este
combate teve lugar num recncavo, pelo rio Paraguau acima,
junto ilha ainda chamada dos Franceses. Sabendo, porm,
positivamente, por outro lado, que as hostilidades comearam
de parte dos navios franceses contra uma das caravelas, pelos
tempos contrrios esgarrada das outras,
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