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1 VI SEMINÁRIO DO PROGRAMA DA PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA (PPGCS/UFRB) GT 01 - CULTURA POPULAR, FESTEJOS E RITUAIS PERCURSOS DO FORRÓ PÉ DE SERRA: TRÂNSITOS CULTURAIS DE PROCESSOS MIGRATÓRIOS CIRANILIA CARDOSO DA SILVA UFRB 2016

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VI SEMINÁRIO DO PROGRAMA DA PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO

RECÔNCAVO DA BAHIA (PPGCS/UFRB)

GT 01 - CULTURA POPULAR, FESTEJOS E RITUAIS

PERCURSOS DO FORRÓ PÉ DE SERRA: TRÂNSITOS CULTURAIS DE PROCESSOS MIGRATÓRIOS

CIRANILIA CARDOSO DA SILVA

UFRB 2016

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PERCURSOS DO FORRÓ PÉ DE SERRA: TRÂNSITOS CULTURAIS DE

PROCESSOS MIGRATÓRIOS*

Ciranilia Cardoso da Silva (UFRB)

RESUMO

O forró, ao longo de sua história, enquanto gênero musical e dança, sofreu uma série de variações e recriações de estilos estéticos. Entre as categorias mais representativas, destaca-se o forró pé de serra, o forró universitário e o forró eletrônico. Entendemos o forró pé de serra tradicional enquanto sonoridade baseada em instrumentos como sanfona, triângulo e zabumba, podendo incluir cavaquinho, pandeiro, rabeca e violão de sete cordas, sendo comum em suas temáticas o universo rural do sertão nordestino como faziam artistas como Luiz Gonzaga, Marinês, Jackson do Pandeiro, Gordurinha, Sivuca, Dominguinhos e muitos outros. Este trabalho propõe uma abordagem sobre o forró pé de serra, apresentando-o como um fenômeno cultural, originário da região Nordeste e historicamente vinculado aos processos migratórios dos nordestinos para o Sudeste e outras regiões do Brasil, levando consigo memórias, costumes, modos de vida e saudades presentes nos forrós cantados pioneiramente por seu ícone Luiz Gonzaga, cujas obras tornaram-se sucesso no país, fazendo desse gênero musical um dos símbolos mais expressivos associados a sua cultura, sobrevivendo à contemporaneidade. Palavras-chave: Forró pé de serra; migrações; cultura; contemporaneidade. Histórico

O forró é uma das manifestações que integram a riqueza de costumes e tradições do Brasil

sendo, amplamente difundido em todo pais, representativo ícone vinculado a cultura

nordestina, se trata de gênero musical e dança provenientes de processos históricos de

migrações dos povos nordestinos, para quem esses deslocamentos representavam fuga da

exploração econômica e limitações referentes a falta de oportunidade em seus contextos locais

e simultaneamente lhes acresciam expectativas e possibilidades de novos horizontes,

ascensão econômica e melhores condições de vida, e assim esses nordestinos cheios de

esperança ofertaram sua força de trabalho e disseminaram suas culturas em diferentes

localidades.

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Em 1930 o Brasil ainda se apropriava de referencias musicais estrangeiras, a partir desse

período, iniciou-se uma busca de um som nacional que apresentasse aspectos de brasilidade.

Neste período a rádio era o mais importante meio de comunicação, pois quase todos tinham

acesso. Na década seguinte em 1940, Luiz Gonzaga ganha destaque com suas “músicas

nordestinas” e torna-se conhecido ao obter nota máxima na Radio Nacional do programa de

calouros de Ary Barroso, alvo de grande audiência e notoriedade. Cuja biografia resume

panoramicamente o autor:

“É na década de quarenta que surge Luiz Gonzaga como criador da “música nordestina”, notadamente do baião. Ele, depois de passar por São Paulo, onde compra uma sanfona que desejava havia muito tempo, chega ao Rio de Janeiro em 1939, após dar baixa do exército, onde tinha sido corneteiro entre 1930 a 1938. Nascido na fazenda Caiçara, município de Exu, Pernambuco, em 1912, Gonzaga era filho de camponeses pobres; Januário, seu pai, era sanfoneiro, artesão que consertava sanfona e que animava bailes rurais nos fins de semana. Por isso para sobreviver no rio de janeiro, ele toca em cabarés, dancings e gafieiras do Mangue, zona de meretrício, onde executa tangos, valsas, boleros, polcas, mazurcas, toda uma série de sons dançantes de origem estrangeira. Gonzaga participa ainda como músico dos programas de calouros de Ary Barroso, o que lhe rende no máximo cinco tostões. É neste programa, na Rádio Nacional, que em 1940, após executar o forró Vira e Mexe , conquista a nota máxima e é contratado pela rádio, a mais importante do país e que congregava artistas de todos os lugares. (ALBUQUERQUE, 2011 p. 174)

Como podemos observar o próprio Luiz Gonzaga já estava inserido nesse processo

migratório, tornando-se um representante musical e cultural do Nordeste, o artista criou uma

indumentária típica que reunia a roupa do vaqueiro nordestino com o chapéu que costumavam

usar os cangaceiros, representações que se aliavam ao seu sotaque e temáticas regionais para

referenciar nuclearidades culturais do sertão nordestino, seu exemplo foi seguido pela maioria

de seus contemporâneos e sucessores artistas que cantavam e tocavam forró, sendo o uso de

indumentárias com essas características, um destaque, não apenas nos shows e apresentações,

mas também nas capas dos discos de forró nessa época.

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Figura. 1- Luiz Gonzaga

Figura. 2- Marinês

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Figura. 3- Dominguinhos

Deste modo sua música passou a ser associada a uma identidade regional que era uma tônica

desejada desde 1930. Assim, conforme Albuquerque (2011), a partir de uma elaboração

oriunda de uma série de sons, ritmos e temas nordestinos, surge o baião influenciado pelo

samba carioca e outros ritmos que Luiz Gonzaga tocava anteriormente, tornando se

representativo enquanto “música do Nordeste”, por ter suas temáticas inspiradas no sertão

dessa região. Elemento de composição do baião narrado na música “Braia Dengosa” de Zé

Dantas e Luiz Gonzaga:

O maracatu dança negra E o fado tão português No Brasil se juntaram Não sei que ano ou mês Só sei que foi Pernambuco Quem fez essa braia dengosa Quem nos deu o baião Que é dança faceira e gostosa Português cum fado e guitarra Cantava o amor E o negro ao som do batuque Chorava de dor Com mele, com gonguê Com zabumba, e cantando nagô Ôi, foi a melodia do branco E o batucado em zulú Tem no teu baião Que nasceu do fado e do maracatu (Braia dengosa: Compositor Zé Dantas e Luiz Gonzaga)

Tratando-se dessas especificidades arquetípicas regionais, o Nordeste é uma das principais

referências quando se trata de uma região que possui atribuições de alegorias culturais

associadas aos seus costumes, afinal o povo nordestino migrou para diversas regiões,

sobretudo para os pólos de industrialização e desenvolvimento econômico, o Sudeste e o

Centro Oeste, compartilhando sua força de trabalho enquanto espraiava sua cultura país

adentro, motivando assim uma dinâmica de fortalecimento e resistência de algumas práticas,

adaptação e ressignificação de outras (ABREU, 2007), mas, antes de tudo, a criação de um

imaginário coletivo estereotipado em torno do Nordeste que o petrificou no tempo do mesmo

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modo que o tornou fonte poética de toda produção referente a este lócus (ALBUQUERQUE,

2011).

Na composição deste Nordeste idealizado, variados costumes foram apropriados como

referência da cultura local. A este exemplo, a culinária, a linguagem e o sotaque, as paisagens,

as questões sociais, a poesia de cordel, as festividades e, obviamente, a música e a dança

(ALBUQUERQUE, 2011). Quanto a estes últimos aspectos não é novidade que, quando se

trata de música do Nordeste, um dos principais ícones das suas expressividades culturais é o

forró. A construção de estereótipos é um conceito abordado por Lippmann (2008) como

produto de intercâmbios que definem os indivíduos dentro de categorias sociais.

“a identidade e a diferença são estreitamente dependentes da representação. É por meio da representação, assim compreendida, que a identidade e a diferença adquirem sentido (...) e passam a existir. Representar significa, neste caso, dizer (...) ‘essa é a identidade’,

identidade é isso”. (SILVA, 2000, p. 91).

No contexto da presente discussão, Jodelet (2001, p.22) assinala que as representações

possuem uma relação com variados processos individuais e coletivos nas expressões dos

grupos e em suas dinâmicas identitárias, afirmando que esta “contribui para a construção de

uma realidade comum a um conjunto social”.

Não apenas a sonoridade dos ritmos do forró vai estabelecer uma representatividade

discursiva de “nordestinidade” entre Luis Gonzaga e seus contemporâneos serão um conjunto

de elementos visuais, lingüísticos e sonoros que contribuirão para fortalecer esses arquétipos

que Albuquerque considera estereotipo generalizantes e preconceituosos

“Sua forma de cantar, as expressões locais que utiliza, os elementos culturais populares e, principalmente, rurais que agencia, a forma de vestir, de dar entrevistas, o sotaque, tudo vai “significar” o Nordeste. O sotaque a escuta da voz pode ser um som familiar que aproxima as pessoas ou provoca estranhamento , separação. Ele funciona como um dos primeiros índices de identificaçãoe também de estereotipia. (ALBUQUERQUE, 2011 p. 176)

O forró é uma sonoridade genuinamente brasileira que passou por transformações ao longo de

sua trajetória, desmembrando-se em diferentes estilos, entre os principais estão o forró pé de

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serra ou tradicional e o forró eletrônico ou estilizado, o qual, nesta abordagem, não será o foco

da nossa discussão. O forro pé de serra, tratado como um dos expoentes dessa cultura

nordestina é um gênero musical composto por ritmos como baião, xaxado, forró, arrasta pé,

xote chorado, xote matuto e sonoridades genuinamente brasileiras de origem nordestina.

Lopes (2007), em sua abordagem sobre o forró pé de serra conceitua o forró enquanto gênero

musical e dança, apresentando-o como um fenômeno cultural, originário da região Nordeste e

historicamente vinculado aos processos migratórios dos nordestinos para as regiões Sudeste,

Sul e Centro-Oeste, ao longo do processo de desenvolvimento industrial do Brasil.

Os processos migratórios no Brasil representaram muito mais que deslocamentos

populacionais de mãos de obra de pessoas que buscavam melhores oportunidades de trabalho,

conforme Vainer (2000) e Pena (1998), estes tiveram enquanto sua principal Tônica uma

dimensão cultural. De acordo com Silva (2003, p.76) “para compreender o forró é necessário

compreender o imigrante e seu imaginário, sua relação com a cidade grande e as pessoas que

moram nela, sua busca de identidade”, visando a necessidade de pensar o Nordeste e suas

questões nos cabe ressaltar que ao migrar para essas regiões, este povo levou consigo suas

memórias, costumes, modos de vida e saudades de sua terra. Conjunto de elementos que

culminaram num contexto favorável e receptivo a sonoridades e temáticas que narravam suas

nuclearidades culturais.

Luis Gonzaga e tornou aquele artista capaz de atender a necessidade do migrante de escutar coisas familiares, sons que lembravam sua terra, sua infância, sons que o levavam até eeste spaço da saudade em meio toda polifonia do meio urbano. Mas atribuição desta identidade regional a sua música foi possível por uma produção discussiva que a tomou como objeto. (ALBUQUERQUE, 2011 p. 177)

Dentro de uma perspectiva crítica acerca dessas “nodertinidades Albuquerque (2011) trata

essa associação como conseqüência de uma construção generalizante e estereotipada de um

“retrato” geográfico e temporal do sertão nordestino. Segundo o autor, esse contexto

influenciou não só a obra de Gonzaga, mas de seus contemporâneos, pois se tornara uma fonte

de imaginários para criações referentes a diferentes linguagens artísticas, gerando

identificação do público, principalmente dos nordestinos e seus descendentes.

Conforme Marcelo e Rodrigues (2012), ao longo de sua história na musicalidade brasileira, o

forró passou por sucessões de declínios e apogeus. Inicialmente despontaram como pioneiros

e referencias principais do forró, alem de Luiz Gonzaga, artistas como Marinês, Jackson do

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Pandeiro, Gordurinha, Sivuca, Dominguinhos, Trio Nordestino, Anastácia, Genival Lacerda,

Antonio Barros, Trio Mossoró, Messias Holanda e muitos outros que produziam um forró

cuja sonoridade se baseava em instrumentos como sanfona, triângulo e zabumba, podendo

incluir cavaquinho, pandeiro, rabeca e violão de sete cordas, apresentando em suas temáticas

o universo rural do sertão nordestino e menções autobiográficas do próprio forró.

“Processo iniciado na segunda metade da década de 1970, quando o mercado fonográfico foi tomado por uma onda que reconfigurou o que o resto do país entendia como música do Nordeste. Esta passava a ser associada a nome como os de Elba, Fagner, Zé Ramalho, Amelinha e Alceu Valença. Em julho de 1978, o fenômeno tinha sido identificado e classificado pela Folha de S. Paulo como “a família transnordestina” (MARCELO E RODRIGUES, 2012. P. 308)

Apesar da formação universitária e presença marcante em festivais os artistas passaram a

compor o cenário da MPB e a nomenclatura forró universitário, só se estabeleceu em sua

segunda fase, a partir da década de 90. Este forró é uma fusão do forró pé de serra com a

linguagem da música urbana, ou seja, utilizava como referência o forró pé de serra, porém

inserindo temáticas urbanizadas somadas às sonoridades de instrumentos elétricos de cordas e

baterias. Este som, de acordo com Silva (2003), foi protagonizado por bandas como

Falamansa, Rastapé, Forroçacana entre outras, as quais conquistaram o público jovem e se

tornou sucesso no país. Sonoridade modernizada, letras que retratam cenários cotidianos,

urbanos e românticos, sua visualidade mais se aproximam dos temas litorâneos.

Figura 4 – Banda Falamansa

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A dança nesse período também se modificou, ganhou influencia de outras modalidades da

dança de salão, agregando passos com giros e coreografias modernas, o forró universitário se

constituiu não apenas como sonoridade do forro , mas também como estilo de dança que se

distanciou do passos básicos do forró tradicional passando a ter passos elaborados, sendo esta

transformação resultante desse contexto migratório do forró pé de serra do nordeste para o

Sudeste.

Figuras 5, 6 e 7- danças com giros no forró universitário e pé de serra.

Conforme Marcelo e Rodrigues (2012), até o aparecimento de suas diferentes modalidades, a

nomenclatura forró era suficiente para identificar o gênero, sendo essa realidade transformada

a partir da década de 1990, pois nesse período surgiram dois estilos contemporâneos

denominados forró eletrônico e forró universitário, gerando assim a necessidade de agregar

um elemento diferenciador, e o que antes se chamava apenas forró, passou a ser denominado

pé de serra. Santos (2012) em sua abordagem contribui para nossa compreensão acerca desse

contexto, através de seus estudos em torno das polarizações entre o forró pé de serra versus

forró eletrônico e universitário, no que se refere às suas características, de acordo com o autor,

as bipolarizações limitam as perspectivas, acerca da diversidade de vertentes e variações que

podem ser consideradas desmembramentos do forró.

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Retomada do forró pé de serra e o movimento Roots

Se, em sua origem, o Nordeste era o lócus do forró, com o deslocamento do circuito do forró

pé de serra para o Sudeste, a região passa a exportar não apenas poéticas inspiradoras, mas

também artistas e músicos forrozeiros em busca de público para o seu trabalho, como foi o

caso dos famosos Trio Nordestino, Trio Virgulino, Trio Juriti e muitos outros, uma vez que na

região nordestina o forró pé de serra é mais solicitado em períodos juninos, devido à perda de

espaço para o forró eletrônico e outros gêneros. Contexto diferente do Sudeste, onde se tem

uma programação de forró pé de serra indiscutivelmente mais intensa.

Como já fora dito, o forró é um gênero ícone de referência do povo nordestino brasileiro, no

entanto esse forró pé de serra considerado por muitos como o autêntico em estilo e

procedência se faz mais presente e dinâmico na região Sudeste e Centro-oeste, de modo que

no próprio Nordeste não há mais tanta força, tendo em vista que lá o forró se transformou,

produzindo sucesso com outros estilos como forró estilizado ou eletrônico. Neste sentido,

percebemos uma prática paradoxal, a saber, um deslocamento cultural aliado a uma retomada

da tradição.

Esse processo de retomada do forró pé de serra se iniciou com o nomeado universitário,

conforme nos referimos anteriormente, se trata de um estilo mais modernizado agregador de

novos instrumentos, além da sanfona, zabumba e triângulo e integraram letras com poéticas

mais urbanas e mais desvinculadas das poéticas nordestinas. E esse movimento que

conquistou um público jovem despertou neles o interesse em conhecer as raízes que

inspiraram o forró universitário. Assim, os trios voltaram a ser valorizados, os jovens

retomaram os precursores do forró pé de serra buscando reconhecer as suas obras e essa

dinâmica passa a ter a nomenclatura de estilo roots, o qual se trata de uma produção do pé de

serra contemporâneo baseada nos clássicos, não só produzindo novidades também fazendo

uso da discotecagem com o resgate dos vinis mais antigos.

De acordo com Passmozer e Angeli (2012), o Roots é uma categoria proveniente da

dissidência com o forró universitário, de modo que parte do público do universitário, ao

conhecer suas influências referenciais tradicionais entrou em desacordo com seu estilo,

devido aos seus traços de modernidade e influências do pop e rock e sonoridades com

instrumentos elétricos e bateria, e assim foi se organizando para retomar a valorização dos

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trios que se fortaleceram, iniciando então um movimento voltado para o resgate e a

valorização das “raízes” do forró. Os autores afirmam ainda que

Foi nesse momento que surgiu a palavra “roots”, cuja tradução do inglês significa “raiz”. Para um grupo de forrozeiros que começou a curtir os trios de forró em um evento denominado , “Rootstock”, que

teve a primeira edição em 2000, os trios de forró eram a representação fiel do forró tradicional de Luiz Gonzaga , já que faziam shows apenas ao som do trio de instrumentos: triângulo, Zabumba e sanfona. A partir desse encontro a idéia foi se concretizando entre o movimento de forró pé de serra no Brasil, de modo que aqueles que se identificavam mais com os trios passaram a se autodenominar roots”, criando portanto um novo movimento de forró. (PASSMOZER; ANGELI, 2012, p.55)

Portanto, é do público de forró universitário que emergem inúmeros forrozeiros interessados

em conhecer as fontes de referências desta vertente, os quais passam a valorizar, a partir de

então o formato de forró pé de serra tradicional, retomando a formação de trios e elaborando

composições que buscam se assemelhar às referências primeiras do forró pé de serra,

adotando como exemplo a obra de Luiz Gonzaga e seus contemporâneos (Passmozer; Angeli,

2012), com o propósito de resgatar a memória de um passado para compor suas experiências

no presente, compondo revitalizando o cenário de forró pé de serra na contemporaneidade.

Além dos referidos trios, ressaltamos a importância dos DJ’s do forró Roots que, ao pesquisar

os vinis mais antigos através de suas discotecagens, têm oportunizado ao público partícipe

especialmente de shows, eventos e particulinos, o contato com as mais raras e antigas obras

que datam décadas passadas do forró-pé de serra.

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Figura 8 – DJ de Forró

A virada do século XXI pode ser considerada um marco no início da história do Roots no

forró pé de serra contemporâneo, pois, desde o ano 2000, passaram a se mobilizar e organizar

eventos com edições anuais em diferentes localidades do circuito, cujo eixo inclui

predominantemente o Sul, Sudeste e Centro-Oeste em formato de festivais (Rotstoock-SP,

Fenfit-ES, Minas Roots-MG, Nata Forrozeira-SP, MaxucaRoots-SC, Forró dos Sonhos-SP,

Forró na Ilha Bela-SP, Aldeia Roots-RJ, Forró de Gente Fina-ES, Brasil Roots-ES, etc.) e

particulinos, sendo este último, geralmente, festas com um público pequeno e sem fins

lucrativos, organizadas pelos forrozeiros em espaços particulares com o objetivo de reunir o

grupo para ouvir e dançar forró. Malluci (1999) denomina como “rede” esses grupos que

partilham coletivamente identidades referentes a uma cultura, e a ideia de circuitos culturais

discutido por Herschmamnn (2001) como lócus de atuações e práticas culturais. Ainda sob

este prima, esses eventos corroboram com a formação do que Haesbaert (2004, p.35) chama

de território simbólico que são os “espaços de referência para construção de identidades”.

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Tendo em vista esse contexto de reproduções e repetições de práticas culturais é que se

construiu a imagem do que seria o grupo de caracteres que permeiam a tradição nordestina e o

forró como expressão significante de sua cultura, interessa-nos discutir o conceito de tradição

que é tratado por Thompson ( 2008, p.164) como “um conjunto de pressuposições, crenças e

padrões de comportamentos trazidos do passado e que podem servir como princípio

orientador para as ações e as crenças do presente”, pois será justamente a raiz desse forró

denominado pé de serra em sua sonoridade mais tradicional que o movimento Roots vai

reivindicar, vivenciando através do resgate das referências primeiras do forró o que Tompson

(2008) apresenta como “a nova ancoragem da tradição”, no sentido do uso de elementos

mediadores para ter acesso a um passado não vivido, se apropriando dessas referências para

agregá-las às experiências do presente. como explica Thompson ao inferir que:

“a tradição se libertou das limitações da interação face a face (...) para

que se expandissem, se renovassem, se enxertassem em novos contextos e se ancorassem em unidades espaciais muito além dos limites das interações face a face”. (THOMPSON , 2008, p.160)

É o discurso de relação com a tradição que irá fundamentar a composição da identidade dos

forrozeiros, sendo a compreensão dessa relação fundamental para entendermos seus modos de

representação. Tomamos como parâmetro teórico para pensar o conceito de identidade, o

posicionamento de Hall (2005) ao afirmar que as identidades são projetadas a partir de

identificações que são “móveis”, se fazem representar e se afirmam, sobretudo diante de

sistemas culturais específicos nos quais se agregam sentidos. Relacionamos o movimento de

forró Roots com a conceituação explorada por Tourane (2003), a qual define os movimentos

culturais como grupos cujas intenções e atuações se preocupam com afirmação de

pertencimento a um dado sistema cultural.

A reflexão acerca do conceito de tradição torna-se fundamental para a compreensão do

movimento Roots, na medida em que este, no seu discurso evidencia a importância da

valorização da tradição, a qual segundo o mesmo autor “pode em certas circunstâncias, servir

como fonte de apoio para o exercício do poder e da autoridade”. (THOMPSON, 2008). Nesta

perspectiva, averiguamos que o referido conceito contribui para a legitimação do grupo e a

fundamentação dos seus sentidos de pertença relacionados à memória, uma vez que a

valorização da tradição está intimamente vinculada a retomadas e criações de práticas que se

tornam constitutivas das representações de memória do grupo. Acerca dessa questão, Le Goff

afirma que

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“A memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças as quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas ou que ele representa como passadas”. (LE GOFF , 2003, p. 419)

Considerações Finais

O resultado destas misturas provocadas pelo deslocamento cultural permitiu ao forró além de

sua dimensão, vinculada a cultura nordestina, representar a musicalidade do povo brasileiro,

não sendo apenas entendido como uma música ou dança, mas passa a ser a identidade das

pessoas que o aderem, pois ele representa um estilo de vida, é uma experiência da cultura

brasileira, inclusive para quem não é nordestino. As linguagens dos retirantes nordestinos que

construíram Brasília, São Paulo e demais espaços do Sudeste e até mesmo Sul, se

estabeleceram no imaginário coletivo, fazendo-se presente inclusive na cultura daqueles que

não são seus descendentes.

O movimento do forró Roots trata-se de uma reinvenção do forró pé de serra tradicional

nordestino através de recriações e representações de seus diversos aspectos culturais. O forró

pé de serra que, durante muitas décadas, era considerado uma experiência regional associada

aos nordestinos e seus descendentes ao se reterritorializar estendeu-se à dimensão de uma

experiência da cultura brasileira na contemporaneidade. Portanto, esse movimento resulta dos

processos migratórios dos nordestinos para as regiões Sudeste, Sul e Centro Oeste do Brasil,

contexto este cujas implicações abrangem aspectos como deslocamentos geográficos,

conflitos de pertencimento, representações, expressões de identidades e invenções de

tradições.

Devemos lembrar que o referido movimento, embora carregue uma importância histórica para

a cultura e musicalidade brasileira e agregue um público numericamente expressivo, se

fazendo presente e lotando os espaços onde os eventos são promovidos, é considerado

alternativo ao circuito comercial da grande mídia sendo, portanto, pouco conhecido por

pessoas que não têm um contato com este gênero.

Referências

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