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8 População de rua jornalmarcolaboratóriodocursodejornalismodapucminasjornalmarcolaboratóriodocursodejornalismodapucminasjornalmarcolaboratóriodocursodejornalismodapucminasjornalmarcolaboratóriodocursodejornalismodapucminasjornalmarcolaboratóriodocursodejornalismodapucminas BÁRBARA SOUTO MARIANA CAMPOLINA E PERÍODOS Na rua Pará de Minas esquina com a Professor Tito Novaes, vê-se muito: a Feira Coberta, o Centro Cultural Padre Eustáquio e a Academia a Céu Aberto. O movimento de pessoas e carros é intenso. E é bem ali, onde é correria, traba- lho, passagem e lazer para alguns, que fica a casa de outros. Sentados em roda, acei- tam quem queira se juntar a eles e bater um papo. Se quiser saber suas histórias, não é preciso cerimônia. É chegar e ser bem acolhido. “Claro que pode sentar. Ô, sem dúvida. Se não tiver orgulho, nóis é nóis (sic)”, dizem, sorrindo. Atrás da feira, ao lado do centro e em frente à academia, existe uma casa com muros de papelão, teto de lona e fogão de ti- jolos. A rua é o quintal, onde ficam os cachorros, o varal e uma carroça. Os mesmos olhos que veem as construções da cidade nem sempre alcançam a vida por trás desses muros de papelão, tampouco a re- alidade presente ali. “Mo- radores de rua também são humanos”, diz Andreia. Com o sonho de melho- rar a vida da mãe, que apa- nhava diariamente do pai, Andreia saiu de casa ainda criança, aos 13 anos. A jo- vem menina foi para a rua para estudar, já que o pai não deixava. “Vim pra rua no escuro, foi assustador, eu não sabia nada. Não sabia onde buscar comida, Vidas que ninguém vê Moradores em situação de rua contam suas histórias e experiências. Prefeitura de BH quantifica população através de Censo e oferece atendimento Histórias de quem um dia mudou de vida “Eu fiz de tudo pra sobreviver. Usei dro- gas, fui pedinte”, conta Andreia que silencia e logo confessa: “Roubei também. Só não me prostituí, graças a Deus. Para morar na rua eu tive que virar homem, tive que ser um ho- mem no corpo de mulher. Tem que ter muita coragem.” Andreia lembra, a todo momento, que não tem vergonha da sua história e, por isso, não esconde dos filhos o lugar de onde veio e as lutas que enfrentou, mas não deseja essa realidade para eles. “Os dois ainda estão de- sempregados, já são maiores de idade, mas vão conseguir algo. Quero que retomem os estudos, é o mais importante”, pontua. O filho caçula, de 18 anos, escuta atento as histórias da mãe, sentado ao lado de sua mulher e do filho de apenas um ano e meio. “Eu dava banho nele aqui. Enchia uma bacia e dava banho com gente passando e olhando mesmo”, conta Andreia, que conse- guiu sair das ruas quando os filhos ainda eram pequenos. “Quero que eles sejam hu- mildes, reconheçam suas raízes.” Enquanto o sonho de ver os filhos empre- gados não se realiza, é ela quem paga as con- tas da casa, como o aluguel, a luz e a água, com dinheiro da pensão deixada pelo marido, falecido há cinco anos. “Ele se ‘perdeu’ nas drogas. Era trabalhador, mas o dinheiro vi- nha e ele comprava crack”, relata. Após 25 anos juntos, a mulher o en- controu, morto, na sala de casa após uma overdose. “Era noite de Natal”, relembra com pesar. “O amei muito. Ainda amo, mas meus filhos se perderam depois da morte do pai e tive que resgatá-los. Eu lutei e continuo lutando por eles. Sou corajosa.” Um novo lar do outro lado da rua Alex tem 43 anos, é morador de rua há 12. Encontrou na rua um lar quando se se- parou da mulher. Hoje, tudo o que tem são memórias da antiga família e a lealdade dos amigos que fez nas ruas. “Deixei tudo que tinha pra minha filha. Hoje ela mora a três quarteirões daqui”, conta, com lágrimas nos olhos e a humildade de quem teve pouco. Até a visão é limitada. Hoje enxerga com apenas 30% da capacidade e é assim que perambula por BH, pedindo dinhei- ro para comer e dando um jeito de sobre- viver aos perigos das ruas. O sorriso que não some de seu rosto nem por um minuto, apesar dos poucos dentes, ajuda-o a saudar quem passa. No homem que a vida parece ter tirado tanto, encontra-se muito. Muitas histórias, muita experiência e criatividade. “Posso cantar um rap evangélico?”, toma um gole no copo de pinga, ri e começa: “Essa é a família, restaurando vidas, se liga aí ban- dido, essa é a saída.” Sua saída foi aceitar o lar por trás dos muros de papelão. Mas foi também a bebi- da. Entre pingas e cachaças, encontrou uma maneira para sobreviver aos desafios que a rua impõe. “De noite a gente quase não dorme. Pra conseguir dormir eu tomo pinga. Vou morrer de cirrose”, afirma. onde tomar banho. Quan- do você tem uma casa, mesmo que você não pense que ali esteja a sua família, você pelo menos tem uma cama”, conta a moça que hoje, aos 40, é mãe e avó e já não mora mais na rua. Ela, agora, tem uma casa de apoio, onde vive com seus filhos e netos, mas, frequentemente, re- torna ao local onde morou. “É daqui que eu vim. Posso morar em um castelo que vou continuar vindo aqui. Não posso esquecer mi- nhas raízes.” A coragem e a fé que Andreia deposita em Deus, acredita, trouxeram-lhe uma nova família. “Eles são a minha família. Aqui eles me chamam de ‘mãe da rua’, porque eu protejo e aconselho os que acabam de chegar. Sou defensora dos fracos e oprimidos”, conta, sorrindo. Reunidos, conversam, riem entre si e brincam com conhecidos que pas- sam pela rua. Cada um tem sua história e, os tan- tos motivos que os levaram a se encontrarem ali, é o que os tornam semelhan- tes. “Aqui a gente divide tudo. A gente se ajuda”, acrescenta. Nos encontros e desen- contros de ruas e histórias que se cruzam, a de An- dreia cruzou com a de Alê, o mais novo dali, com 34 anos. De olhar compassi- vo, conta que ele chegou às ruas ainda novo e que certa vez teve o corpo queimado. “É o protegido da família”, revela. O homem, de poucas palavras, permanece ob- servador, enquanto os ou- tros assumem a sua voz e contam sua história. Per- deu a irmã em um aciden- te de carro e o “amor da vida” para a Aids. Depois disso, não foi mais o mes- mo. “Desistiu, veio morar na rua. Cada um tem seu motivo para estar aqui, ninguém está aqui só por- que quer”, diz Andreia. Andreia (3ª da esq. para a dir.) leva sua família ao local que por muito tempo foi sua casa Alex conta as dificuldades que já passou na rua Jovem cria projeto Com o intuito de mostrar a história por trás das vidas que, tantas vezes, não são vistas e nem ouvidas, Gustavo Mota, de apenas 14 anos, idealizou o “Pelas Ruas de BH”. A ideia é mostrar a voz que vem das ruas, através de postagens (facebook. com/PelasRuasDeBH). Gustavo, aluno do Cefet, conta com a ajuda dos amigos, tanto nas entrevis- tas quanto na hora de fazer as postagens. “Perguntamos a mensagem ou a história que gostaria de passar pra frente, porque vemos que muitas dessas pessoas têm mui- ta coisa dentro delas e só estão esperando alguém que sente ao lado pra conversar”, comenta Gustavo. O projeto teve início neste ano e sjá reu- niu diversas histórias. Como a de Cláudio, morador de rua há 25 anos, que, quando perguntado o que diria ao mundo se to- dos pudessem ouvi-lo, respondeu: “Ah ô, gente! Como que tá ocês? (sic).” “Quase todas as vezes saem coisas lindas de dentro dos nossos entrevistados. E a simplicidade da fala me tocou, um ‘como que tá ocê?’, pode mudar uma vida!”, comenta Gusta- vo. Ainda segundo ele, o encontro com os moradores de rua é enriquecedor pois seus depoimentos permitem, para o observador, captar uma outra realidade. Na cozinha improvisada, os alimentos são preparados Lucas Félix Lucas Félix Lucas Félix

Vidas que ninguém vêsjpmg.org.br/trofeudeliorocha2015/wp-content/uploads/2016/04/p-gina-8.pdfO movimento de pessoas e carros é intenso. E é bem ali, onde é correria, traba-

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Page 1: Vidas que ninguém vêsjpmg.org.br/trofeudeliorocha2015/wp-content/uploads/2016/04/p-gina-8.pdfO movimento de pessoas e carros é intenso. E é bem ali, onde é correria, traba-

8População de rua

jornalmarcolaboratóriodocursodejornalismodapucminasjornalmarcolaboratóriodocursodejornalismodapucminasjornalmarcolaboratóriodocursodejornalismodapucminasjornalmarcolaboratóriodocursodejornalismodapucminasjornalmarcolaboratóriodocursodejornalismodapucminas

BÁRBARA SOUTO

MARIANA CAMPOLINA

4° E 5º PERÍODOS

Na rua Pará de Minas esquina com a Professor Tito Novaes, vê-se muito: a Feira Coberta, o Centro Cultural Padre Eustáquio e a Academia a Céu Aberto. O movimento de pessoas e carros é intenso. E é bem ali, onde é correria, traba-lho, passagem e lazer para alguns, que fica a casa de outros.

Sentados em roda, acei-tam quem queira se juntar a eles e bater um papo. Se quiser saber suas histórias, não é preciso cerimônia. É chegar e ser bem acolhido. “Claro que pode sentar. Ô, sem dúvida. Se não tiver orgulho, nóis é nóis (sic)”, dizem, sorrindo.

Atrás da feira, ao lado do centro e em frente à academia, existe uma casa com muros de papelão, teto de lona e fogão de ti-jolos. A rua é o quintal, onde ficam os cachorros, o varal e uma carroça. Os mesmos olhos que veem as construções da cidade nem sempre alcançam a vida por trás desses muros de papelão, tampouco a re-alidade presente ali. “Mo-radores de rua também são humanos”, diz Andreia.

Com o sonho de melho-rar a vida da mãe, que apa-nhava diariamente do pai, Andreia saiu de casa ainda criança, aos 13 anos. A jo-vem menina foi para a rua para estudar, já que o pai não deixava. “Vim pra rua no escuro, foi assustador, eu não sabia nada. Não sabia onde buscar comida,

Vidas que ninguém vêMoradores em situação de rua contam suas histórias e experiências. Prefeitura de BH quantifica população através de Censo e oferece atendimento

Histórias de quem um dia mudou de vida“Eu fiz de tudo pra sobreviver. Usei dro-

gas, fui pedinte”, conta Andreia que silencia e logo confessa: “Roubei também. Só não me prostituí, graças a Deus. Para morar na rua eu tive que virar homem, tive que ser um ho-mem no corpo de mulher. Tem que ter muita coragem.”

Andreia lembra, a todo momento, que não tem vergonha da sua história e, por isso, não esconde dos filhos o lugar de onde veio e as lutas que enfrentou, mas não deseja essa realidade para eles. “Os dois ainda estão de-sempregados, já são maiores de idade, mas vão conseguir algo. Quero que retomem os estudos, é o mais importante”, pontua.

O filho caçula, de 18 anos, escuta atento as histórias da mãe, sentado ao lado de sua mulher e do filho de apenas um ano e meio. “Eu dava banho nele aqui. Enchia uma

bacia e dava banho com gente passando e olhando mesmo”, conta Andreia, que conse-guiu sair das ruas quando os filhos ainda eram pequenos. “Quero que eles sejam hu-mildes, reconheçam suas raízes.”

Enquanto o sonho de ver os filhos empre-gados não se realiza, é ela quem paga as con-tas da casa, como o aluguel, a luz e a água, com dinheiro da pensão deixada pelo marido, falecido há cinco anos. “Ele se ‘perdeu’ nas drogas. Era trabalhador, mas o dinheiro vi-nha e ele comprava crack”, relata.

Após 25 anos juntos, a mulher o en-controu, morto, na sala de casa após uma overdose. “Era noite de Natal”, relembra com pesar. “O amei muito. Ainda amo, mas meus filhos se perderam depois da morte do pai e tive que resgatá-los. Eu lutei e continuo lutando por eles. Sou corajosa.”

Um novo lar do outro lado da ruaAlex tem 43 anos, é morador de rua há

12. Encontrou na rua um lar quando se se-parou da mulher. Hoje, tudo o que tem são memórias da antiga família e a lealdade dos amigos que fez nas ruas. “Deixei tudo que tinha pra minha filha. Hoje ela mora a três quarteirões daqui”, conta, com lágrimas nos olhos e a humildade de quem teve pouco.

Até a visão é limitada. Hoje enxerga com apenas 30% da capacidade e é assim que perambula por BH, pedindo dinhei-ro para comer e dando um jeito de sobre-viver aos perigos das ruas. O sorriso que não some de seu rosto nem por um minuto, apesar dos poucos dentes, ajuda-o a saudar

quem passa.No homem que a vida parece ter tirado

tanto, encontra-se muito. Muitas histórias, muita experiência e criatividade. “Posso cantar um rap evangélico?”, toma um gole no copo de pinga, ri e começa: “Essa é a família, restaurando vidas, se liga aí ban-dido, essa é a saída.”

Sua saída foi aceitar o lar por trás dos muros de papelão. Mas foi também a bebi-da. Entre pingas e cachaças, encontrou uma maneira para sobreviver aos desafios que a rua impõe. “De noite a gente quase não dorme. Pra conseguir dormir eu tomo pinga. Vou morrer de cirrose”, afirma.

onde tomar banho. Quan-do você tem uma casa, mesmo que você não pense que ali esteja a sua família, você pelo menos tem uma cama”, conta a moça que hoje, aos 40, é mãe e avó e já não mora mais na rua.

Ela, agora, tem uma casa de apoio, onde vive com seus filhos e netos, mas, frequentemente, re-torna ao local onde morou. “É daqui que eu vim. Posso morar em um castelo que vou continuar vindo aqui. Não posso esquecer mi-nhas raízes.”

A coragem e a fé que Andreia deposita em Deus, acredita, trouxeram-lhe uma nova família. “Eles são a minha família. Aqui eles me chamam de ‘mãe da rua’, porque eu protejo e aconselho os que acabam de chegar. Sou defensora dos fracos e oprimidos”, conta, sorrindo.

Reunidos, conversam, riem entre si e brincam com conhecidos que pas-sam pela rua. Cada um tem sua história e, os tan-tos motivos que os levaram a se encontrarem ali, é o que os tornam semelhan-tes. “Aqui a gente divide tudo. A gente se ajuda”, acrescenta.

Nos encontros e desen-contros de ruas e histórias que se cruzam, a de An-dreia cruzou com a de Alê, o mais novo dali, com 34

anos. De olhar compassi-vo, conta que ele chegou às ruas ainda novo e que certa vez teve o corpo queimado. “É o protegido da família”, revela.

O homem, de poucas palavras, permanece ob-servador, enquanto os ou-tros assumem a sua voz e contam sua história. Per-deu a irmã em um aciden-te de carro e o “amor da vida” para a Aids. Depois disso, não foi mais o mes-mo. “Desistiu, veio morar na rua. Cada um tem seu motivo para estar aqui, ninguém está aqui só por-que quer”, diz Andreia.

Andreia (3ª da esq. para a dir.) leva sua família ao local que por muito tempo foi sua casa

Alex conta as dificuldades que já passou na rua

Jovem cria projetoCom o intuito de mostrar a história por

trás das vidas que, tantas vezes, não são vistas e nem ouvidas, Gustavo Mota, de apenas 14 anos, idealizou o “Pelas Ruas de BH”. A ideia é mostrar a voz que vem das ruas, através de postagens (facebook.com/PelasRuasDeBH).

Gustavo, aluno do Cefet, conta com a ajuda dos amigos, tanto nas entrevis-tas quanto na hora de fazer as postagens. “Perguntamos a mensagem ou a história que gostaria de passar pra frente, porque vemos que muitas dessas pessoas têm mui-ta coisa dentro delas e só estão esperando alguém que sente ao lado pra conversar”,

comenta Gustavo.O projeto teve início neste ano e sjá reu-

niu diversas histórias. Como a de Cláudio, morador de rua há 25 anos, que, quando perguntado o que diria ao mundo se to-dos pudessem ouvi-lo, respondeu: “Ah ô, gente! Como que tá ocês? (sic).” “Quase todas as vezes saem coisas lindas de dentro dos nossos entrevistados. E a simplicidade da fala me tocou, um ‘como que tá ocê?’, pode mudar uma vida!”, comenta Gusta-vo. Ainda segundo ele, o encontro com os moradores de rua é enriquecedor pois seus depoimentos permitem, para o observador, captar uma outra realidade.

Na cozinha improvisada, os alimentos são preparados

Lucas Félix

Lucas Félix

Lucas Félix