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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE PSICOLOGIA VINCULAÇÃO PRÉ-NATAL E ORGANIZAÇÃO PSICOLÓGICA DO HOMEM E DA MULHER DURANTE A GRAVIDEZ: RELAÇÃO COM O TIPO DE PARTO E COM A PATOLOGIA OBSTÉTRICA DOS II E III TRIMESTRES DE GESTAÇÃO Ana Paula Forte Camarneiro DOUTORAMENTO EM PSICOLOGIA Especialidade de Psicologia Clínica 2011

Vinculação Pré-natal e Organização Psicológica Do Homem e Da Mulher Durante a Gravidez- Relação Com o Tipo de Parto e Com a Patologia Obstétrica Dos II e III Trimestres de

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Vinculação pré-natal e parto

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  • UNIVERSIDADE DE LISBOA

    FACULDADE DE PSICOLOGIA

    VINCULAO PR-NATAL E ORGANIZAO PSICOLGICA DO HOMEM E DA MULHER DURANTE A GRAVIDEZ: RELAO COM O TIPO DE PARTO E COM A PATOLOGIA OBSTTRICA DOS II E III TRIMESTRES DE GESTAO

    Ana Paula Forte Camarneiro

    DOUTORAMENTO EM PSICOLOGIA Especialidade de Psicologia Clnica

    2011

  • UNIVERSIDADE DE LISBOA

    FACULDADE DE PSICOLOGIA

    VINCULAO PR-NATAL E ORGANIZAO PSICOLGICA DO HOMEM E DA MULHER DURANTE A GRAVIDEZ: RELAO COM O TIPO DE PARTO E COM A PATOLOGIA OBSTTRICA DOS II E III TRIMESTRES DE GESTAO

    Ana Paula Forte Camarneiro

    Tese orientada pelo Professor Doutor Joo Manuel Rosado de Miranda Justo

    DOUTORAMENTO EM PSICOLOGIA Especialidade de Psicologia Clnica

    2011

  • Esta investigao foi apoiada pelo Programa de Apoio Formao Avanada de Docentes do Ensino Superior Politcnico (PROTEC) 2009, concedido pela Fundao para a Cincia e Tecnologia, com a referncia

    SFRH/PROTEC/49389/2009.

  • Aos meus filhos Carolina e Gonalo

    Ao Paulo

  • H muito mais continuidade entre a vida intra-uterina e a primeira infncia do que a impressionante cesura do acto de nascimento nos deixaria pensar

    (Freud, 1926)

  • Agradecimentos

    Ao terminar esta Tese, resta-me manifestar os meus agradecimentos a todos aqueles que, de diferentes formas, contriburam para a sua concretizao.

    Agradeo ao meu Orientador Professor Doutor Joo Manuel Rosado de Miranda Justo pela sua disponibilidade, dedicao, saber, transmisso de conhecimentos e contnuo incentivo ao longo deste percurso. Desde a sua gnese, durante o Curso de Formao Avanada, na elaborao da candidatura Bolsa de Investigao (PROTEC) e em todos os momentos de discusso e reflexo, a sua orientao e apoio foram inestimveis.

    Os meus agradecimentos ao Professor Jonh Condon pela cedncia para adaptao da escala central do estudo, a Maternal and Paternal Antenatal Attachment Scale, e a todos os Professores que amavelmente me facilitaram a utilizao de medidas psicomtricas da sua autoria ou por si adaptadas. Agradeo Escola Superior de Enfermagem de Coimbra os apoios prestados e o ter sido Instituio de acolhimento do programa PROTEC 2009.

    s instituies que colaboraram neste estudo, agradeo e manifesto o meu reconhecimento pela disponibilidade com que me receberam e permitiram a sua realizao.

    Aos casais que aceitaram participar nesta investigao, agradeo a generosidade com que preencheram os questionrios sempre que foram solicitados respondendo a questes to pessoais num perodo sensvel das suas vidas. A eles, o meu muito obrigada.

    Enfermeira Olinda Oliveira expresso a minha gratido pela sua amizade num momento crucial da investigao.

    A todas as enfermeiras que colaboraram comigo na investigao, em particular s Enfermeiras Ana Abreu, Isabel Precatado e Teresa Viseu pela pacincia com que me acolheram diariamente, durante longo tempo, nos seus servios.

    Um agradecimento especial s colegas que me ajudaram a trilhar caminhos em alguns Centros de Sade da Regio Centro.

    Aos colegas que comigo partilharam reflexes e saberes, estou muito reconhecida, assim como a todos aqueles que de alguma forma colaboraram na concretizao deste projecto.

    Aos meus amigos, pelo apoio e estmulo dado em todos os momentos. Finalmente, minha famlia, agradeo o incentivo, a compreenso e a tolerncia que tiveram para comigo ao longo deste trabalho.

  • Resumo

    A vinculao pr-natal (VPN) a representao da vinculao dos pais ao feto. Est ligada a variveis psicossociais que influenciam a sade da gravidez e o resultado do parto.

    Foram objectivos desta investigao: estudar a articulao entre a VPN e as variveis psicolgicas que influenciam o resultado do parto e a ocorrncia de patologia obsttrica; comparar as variveis psicolgicas dentro do casal e entre homens e mulheres na gravidez e depois do nascimento; identificar a influncia das variveis psicolgicas das grvidas sobre a patologia obsttrica e no resultado do parto; averiguar o efeito do resultado do parto e da patologia obsttrica sobre a vinculao ps-natal.

    Realizaram-se trs estudos quantitativos do tipo longitudinal (no segundo trimestre de gravidez, imediatamente aps o parto e 8 a 12 meses depois do parto). A amostra inicial constituiu-se com 407 casais. Nos primeiro e terceiro estudos, foram aplicadas as seguintes escalas: EVPNMP (Escala de vinculao Pr-natal Materna e Paterna), EAGM (Escala de Atitudes sobre a Gravidez e a Maternidade), EASAVIC (Escala de Avaliao da Satisfao em reas da Vida Conjugal), IRP (Inventrio de Resoluo de Problemas), DASS-42 (Depression, Anxiety and Stress Scale), PSS (Perceived Stress Scale), adaptao ao contexto profissional e BSI (Brief Symptoms Inventory).

    Os resultados indicaram que a VPN influenciada pelas variveis psicolgicas, pela idade e pelo planeamento da gravidez. A VPN materna e as caractersticas sociodemogrficas no influenciam a ocorrncia de patologia obsttrica, tipo de parto, idade gestacional e sade do recm-nascido. A sensibilidade interpessoal materna e o coping pedido de ajuda influenciam a ocorrncia de patologia obsttrica.

    Aps o nascimento, os nveis de vinculao ao beb mantm-se nas mulheres e aumentam nos homens; o stress e os sintomas psicopatolgicos so mais elevados nas mulheres; a satisfao conjugal decresce no casal e aumentam os valores da ideao paranide e do controlo interno/externo dos problemas; as variveis psicolgicas, sociodemogrficas e clnicas no comprometem a vinculao ps-natal.

    Concluiu-se que a VPN sensvel a variveis psicolgicas, idade e planeamento da gravidez mas no influencia a patologia obsttrica nem o resultado do parto. Aps o nascimento, a vinculao paterna aumenta; a satisfao conjugal diminui e h mais risco psicolgico nas mulheres. Estes so perodos crticos para os casais.

    Palavras-chave: Vinculao pr-natal materna e paterna; organizao psicolgica na gravidez; satisfao conjugal; patologia obsttrica; resultado do parto; vinculao ps-natal.

  • Abstract

    Prenatal attachment is the representation of parents attachment to their fetus. It is connected to psychosocial variables which influence health in pregnancy and delivery outcomes.

    This research aimed: to understand the link between prenatal attachment and the psychological variables which influence delivery outcomes and the occurrence of obstetrical pathology; to compare the psychological variables within the couples, and between men and women, during pregnancy and after birth; to identify the influence of pregnant womens psychological variables upon the occurrence of an obstetric disease and on delivery outcomes; to analyze the impact of delivery outcomes and obstetric disease on postnatal attachment.

    Three quantitative longitudinal studies were carried out (during the second pregnancy trimester, immediately after delivery and 8-12 months after delivery). The initial sample was composed by 407 couples. In the first and third studies, the following scales were applied: EVPNMP (Maternal and Paternal Antenatal Attachment Scale), EAGM (Pregnancy and Maternity Attitudes Scale), EASAVIC (Marital Satisfaction Assessment Scale), IRP (Problems Resolution Inventory), DASS-42 (Depression, Anxiety and Stress Scale), PSS (Perceived Stress Scale) for laboral context, and BSI (Brief Symptoms Inventory).

    Results showed that prenatal attachment is influenced by psychological variables, by age, and by pregnancy planning. Maternal prenatal attachment and socio-demographic characteristics do not influence the occurrence of an obstetrical pathology, the type of delivery, the gestational age and the newborns health. The maternal interpersonal sensitivity and the use of help-seeking coping strategies do influence the occurrence of obstetrical pathology.

    After delivery, it was observed that: women remain equally attached and men become more attached to the baby; women show increases in stress and in psychopathological symptoms; the couple is less satisfied with their married life; the levels of paranoid ideation and internal/external control coping increase; and that psychological, sociodemographic and clinical variables do not compromise postnatal attachment.

    It was concluded that prenatal attachment is sensitive to psychological variables, age and pregnancy planning, but it does not influence obstetrical pathology or delivery outcomes. After birth, paternal attachment increases; marital satisfaction decreases and there is a higher psychological risk for women. These are critical periods for couples.

    Keywords: Maternal and paternal prenatal attachment; psychological organization during pregnancy; marital satisfaction; obstetrical pathology; delivery outcomes; postnatal attachment.

  • ndice

    ndice

    Introduo

    PRIMEIRA PARTE - ENQUADRAMENTO TERICO

    Captulo I. Experincia psicolgica na gravidez e transio para a parentalidade

    1. A mulher durante a gravidez e na transio para a maternidade 1.1. Breve perspectiva temporal da gravidez e da maternidade 1.2. O desejo de ter filhos 1.3. Desenvolvimento psicolgico da mulher durante a gravidez

    1.3.1. Transformaes da identidade 1.4. Manifestaes psicofisiolgicas da gravidez 1.5. Representao psquica do feto 1.6. O nascimento psquico do beb 1.7. A transio para a maternidade

    2. O homem durante a gravidez e na transio para a paternidade 2.1. Emergncia de uma nova perspectiva de paternidade 2.2. Desenvolvimento psicolgico do homem durante a gravidez

    2.2.1. A construo do lugar do pai 2.3. Envolvimento paterno durante a gravidez 2.4. Manifestaes psicossomticas

    2.5. A transio para a paternidade 3. O casal, a parentalidade e a adaptao conjugal

    3.1. A adaptao conjugal na transio para a parentalidade 3.2. Adaptao parental no primeiro ano ps-natal 3.3. A comunicao entre o beb e os pais

    Captulo II. Perturbaes psicolgicas da gravidez e do puerprio

    1. Psicopatologia da gravidez 1.1. Perturbaes do humor

    1.1.1. Ansiedade 1.1.2. Depresso

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    37

    39 40 42

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    107

    109 111

    111

    114

  • Vinculao pr-natal e organizao psicolgica do homem e da mulher durante a gravidez

    1.1.3. Stress

    1.2. Perturbaes da personalidade 2. Alteraes psicolgicas e complicaes obsttricas frequentes

    2.1. O parto pr-termo 2.2. Os recm-nascidos pequenos para a idade gestacional

    3. Psicopatologia do puerprio 3.1. Blues ps-parto 3.2. Psicose puerperal

    3.3. Depresso ps-parto

    Captulo III. Representao da vinculao pr-natal: articulao com a experincia psicolgica da gravidez e da parentalidade

    1. Vinculao, conceito e desenvolvimento da teoria 1.1. O conceito psicolgico de vinculao 1.2. Desenvolvimento da teoria da vinculao 1.3. Dissidncias e convergncias entre a teoria da vinculao e a psicanlise

    2. A vinculao pr-natal materna e paterna

    2.1. Construo do conceito 2.2. Investigao e psicometria

    2.2.1. Maternal-Fetal Attachment Scale 2.2.2. Prenatal Maternal Attachment Scale

    2.2.3. Prenatal Attachment Inventory 2.2.4. Maternal and Paternal Antenatal Attachment Scale 2.2.5. Escala para la Evaluacin de la Vinculacin Afectiva e la Adaptacin

    Prenatal

    2.3. Determinantes da vinculao pr-natal materna e paterna 2.3.1. Variveis sociodemogrficas 2.3.2. Variveis ginecolgicas e obsttricas 2.3.3. Qualidade das relaes interpessoais 2.3.4. Variveis intrapessoais 2.3.5. Boas prticas de sade

    3. Vinculao pr-natal e ps-natal: estudos longitudinais 4. Crticas ao constructo

    122

    125 126 130 141

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    189 190 191 193 198 201 209 213 220

  • ndice

    SEGUNDA PARTE - CONCEPTUALIZAO DO ESTUDO EMPRICO

    Captulo IV. Problema de investigao, objectivos e hipteses

    1. Problema de investigao 2. Objectivos gerais e especficos 3. Hipteses

    3.1. Primeiro estudo A vinculao pr-natal em articulao com as variveis psicolgicas sociodemogrficas e clnicas durante a gravidez

    3.2. Segundo estudo - Influncia das caractersticas psicolgicas e sociodemogrficas na patologia da gravidez e no resultado do parto

    3.3. Terceiro estudo - Comparao das variveis psicolgicas pr e ps-natais e estudo da influncia das variveis obsttricas na vinculao ps-natal

    Captulo V. Metodologia

    1. Delineamento da investigao em trs estudos 2. Critrios de amostragem e de recolha da amostra 3. Instrumentos de recolha de dados

    3.1. Seleco e organizao

    3.2. Descrio dos instrumentos de pesquisa e das caractersticas psicomtricas das escalas utilizadas em cada estudo 3.2.1. Questionrio Sociodemogrfico e Clnico QSDC 3.2.2. Escala de Atitudes sobre a Gravidez e a Maternidade EAGM

    3.2.2.1. Caractersticas psicomtricas da EAGM no primeiro estudo 3.2.3. Perceived Stress Scale PSS-14, adaptao ao contexto Profissional

    3.2.3.1. Caractersticas psicomtricas da PSS-14 adaptada ao contexto profissional, no primeiro estudo

    3.2.3.2. Caractersticas psicomtricas da PSS adaptada ao contexto profissional, no terceiro estudo

    3.2.4. Depression, Anxiety and Stress Scale DASS-42 3.2.4.1. Caractersticas psicomtricas da DASS-42 no primeiro estudo 3.2.4.2. Caractersticas psicomtricas da DASS-42 no terceiro estudo

    3.2.5. Brief Symptoms Inventory BSI

    225

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    259

    261 262 263 266 268

  • Vinculao pr-natal e organizao psicolgica do homem e da mulher durante a gravidez

    3.2.5.1. Caractersticas psicomtricas do BSI no primeiro estudo 3.2.5.2. Caractersticas psicomtricas do BSI no terceiro estudo

    3.2.6. Escala de Avaliao da Satisfao em reas da Vida Conjugal EASAVIC 3.2.6.1. Caractersticas psicomtricas da EASAVIC no primeiro estudo 3.2.6.2. Caractersticas psicomtricas da EASAVIC no terceiro estudo

    3.2.7. Maternal and Paternal Antenatal Attachment Scale MPAAS 3.2.7.1. Verso Portuguesa, a EVPNM e a EVPNP

    3.2.7.2. Caractersticas psicomtricas da EVPNM e da EVPNP na amostra em estudo

    3.2.8. Escala de Vinculao Ps-Natal Materna (EVPsNM) e Paterna (EVPsNP): adaptao da EVPNM e da EVPNP ao perodo ps-natal

    3.2.9. Inventrio de Resoluo de Problemas IRP 3.2.9.1. Caractersticas psicomtricas do IRP no primeiro estudo 3.2.9.2. Caractersticas psicomtricas do IRP no terceiro estudo

    3.2.10. Questionrio de Sade Obsttrica e Resultado do Parto QSORP 4. Questes ticas

    Captulo VI. Apresentao e anlise dos resultados

    1. Caracterizao da amostra nos ts estudos 1.1. Caracterizao sociodemogrfica da amostra 1.2. Caracterizao clnica da amostra - primeiro estudo

    1.2.1. Situao obsttrica da mulher no momento da entrevista 1.2.2. Histria ginecolgica e obsttrica da mulher 1.2.3. Histria da maternidade e da paternidade em casamentos/coabitaes

    anteriores

    1.2.4. Caracterizao da gravidez actual na mulher e no homem 1.3. Caracterizao clnica da amostra nos II e III trimestres de gravidez e no

    resultado do parto - segundo estudo 1.3.1. Caracterizao clnica dos II e III trimestres de gravidez 1.3.2. Caractersticas do parto e sade do beb no momento do nascimento

    1.4. Caracterizao da sub-amostra do terceiro estudo 1.4.1. Caractersticas sociodemogrficas

    271

    273

    276 277

    279 281 285

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    290 293 294 298 300

    300

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    305 305 306

    308 309

    310

    310 311

    312 312

  • ndice

    1.4.2. Caractersticas clnicas durante a gravidez 1.4.3. Caracterizao clnica dos II e III trimestres de gravidez 1.4.4. Caractersticas do parto e da sade do beb no momento do

    nascimento

    1.5. Sntese dos resultados sociodemogrficos e clnicos da amostra nos estudos 2. Testes de hipteses

    2.1. Primeiro estudo A vinculao pr-natal em articulao com as variveis psicolgicas, sociodemogrficas e clnicas durante a gravidez

    2.2. Segundo estudo - Influncia das caractersticas psicolgicas e sociodemogrficas na patologia obsttrica e resultado do parto

    2.3. Terceiro estudo - Comparao das variveis psicolgicas pr e ps-natais e influncia das variveis obsttricas no perodo ps-natal

    Captulo VII. Discusso dos resultados

    1. Discusso dos resultados obtidos nos estudos realizados 1.1. Primeiro estudo - A vinculao pr-natal em articulao com as variveis

    psicolgicas, sociodemogrficas e clnicas durante a gravidez 1.2. Segundo estudo - Influncia das caractersticas psicolgicas e

    sociodemogrficas na patologia obsttrica e no resultado do parto 1.3. Terceiro estudo - Comparao das variveis psicolgicas pr e ps-natais e

    influncia das variveis obsttricas no perodo ps-natal 2. Limitaes dos estudos 3. Estudos a realizar no futuro

    Concluses

    Bibliografia

    Apndices Apndice 1 - Material construdo Apndice 2 - Caractersticas psicomtricas das escalas Apndice 3 - Resultados descritivos de caracterizao da amostra Apndice 4 - Testes de hipteses

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    315 315

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    390

    405

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    427

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    482

    494 495

    497

    513

    550 551 574 636 656

  • Vinculao pr-natal e organizao psicolgica do homem e da mulher durante a gravidez

  • ndice de Figuras

    Figura 1. Modelo de vinculao proposto por Mary Muller 178 Figura 2. Modelo hierrquico da vinculao parental 179 Figura 3. Modelo conceptual da investigao

    230 Figura 4. Padres de vinculao pr-natais maternos e paternos obtidos a partir do cruzamento das dimenses da Escala de Vinculao Pr-Natal

    283

  • ndice de Quadros

    Pg. Quadro 1. Itens considerados nas subescalas da EAGM e alfa de Cronbach, na verso original e no estudo actual

    257 Quadro 2. Medidas descritivas e teste de normalidade observadas nas sub-escalas da EAGM

    258 Quadro 3. Medidas descritivas e teste de normalidade observadas na PSS, adaptao ao contexto profissional, em mulheres e homens, no primeiro estudo

    261 Quadro 4. Medidas descritivas e teste de normalidade observadas na PSS, adaptao ao contexto profissional, em mulheres e homens, no terceiro estudo

    262 Quadro 5. Mdias, desvios-padro, mximos, mnimos e medianas da DASS-42 263 Quadro 6. Medidas descritivas e teste de normalidade observadas na DASS-42 e suas dimenses, em mulheres e homens, no primeiro estudo

    264 Quadro 7. Valores normativos da DASS-42 265 Quadro 8. Medidas descritivas e teste de normalidade observadas na DASS-42 e suas dimenses, em mulheres e homens, no terceiro estudo

    267 Quadro 9. Estatstica descritiva para as pontuaes do BSI 270 Quadro 10. Alfa de Cronbach das dimenses do BSI, em mulheres e em homens, no primeiro estudo e na verso portuguesa

    271 Quadro 11. Medidas descritivas e teste de normalidade observadas no BSI e suas dimenses, em mulheres e homens (n = 380), no primeiro estudo

    272 Quadro 12. Medidas descritivas e teste de normalidade observadas no BSI e suas dimenses, em mulheres e homens (n = 67), no terceiro estudo

    274 Quadro 13. Medidas descritivas e teste de normalidade observadas na EASAVIC e suas dimenses, em mulheres e homens, no primeiro estudo

    278 Quadro 14. Medidas descritivas e teste de normalidade observadas na EASAVIC e suas dimenses, em mulheres e homens, no terceiro estudo

    280 Quadro 15. Medidas descritivas em valor percentual e teste de normalidade observadas na EVPN materna e paterna e nas suas dimenses

    289 Quadro 16. Medidas descritivas em valor percentual e teste de normalidade observadas na EVPsN Materna e Paterna e suas dimenses (n = 67)

    292 Quadro 17. Medidas descritivas e teste de normalidade observadas no IRP e suas dimenses, em mulheres e homens, no primeiro estudo

    296 Quadro 18. Medidas descritivas e teste de normalidade observadas no IRP e suas dimenses, em mulheres e homens, no terceiro estudo

    299 Quadro 19. Correlaes de Pearson entre as variveis psicolgicas e suas dimenses, da amostra feminina (f) e masculina (m) durante a gravidez

    322

  • Vinculao pr-natal e organizao psicolgica do homem e da mulher durante a gravidez

    Quadro 20. Comparao de mdias, com o teste de medidas repetidas, da VPN total, QV e IP nos casais, tendo em conta as covariveis idade e escolaridade

    325 Quadro 21. Comparao de mdias, com o teste de medidas repetidas, da satisfao com a vida conjugal total (SAVIC), funcionamento conjugal (FC), amor (A), casal (C), o outro (O) e o prprio (P) nos casais, tendo em conta as covariveis idade e escolaridade

    327 Quadro 22. Comparao de mdias, com o teste de medidas repetidas, do coping total (C), pedido de ajuda PA (F1), confronto e resoluo activa dos problemas e planificao da estratgia CRAPPE (F2), abandono passivo perante a situao APS (F3), controlo interno/externo dos problemas CI/EP (F4), estratgias de controlo das emoes ECE (F5), auto-responsabilizao e medo das consequncias ARMC (F8) nos casais, tendo em conta as covariveis idade e escolaridade

    328 Quadro 23. Comparao de mdias, atravs do teste de medidas repetidas, do stress em contexto profissional (PSS) nos casais, tendo em conta as covariveis idade e escolaridade

    329 Quadro 24. Comparao de mdias, atravs do teste de medidas repetidas, do total dos estados emocionais negativos (DAS), da ansiedade, do stress e da depresso nos casais, tendo em conta as covariveis idade e escolaridade

    330 Quadro 25. Comparao de mdias, atravs do teste de medidas repetidas, dos sintomas psicopatolgicos somatizao (SOM), obsesses-compulses (O-C), sensibilidade interpessoal (SI), depresso (DEP), ansiedade (ANS), hostilidade (HOST), ansiedade fbica (ANS FOB), ndice geral de sintomas (IGS), total de sintomas positivos (TSP), ideao paranide (IP), psicoticismo (PSI) e ndice de sintomas positivos (ISP) nos casais, tendo em conta as covariveis idade e escolaridade

    332

    Quadro 26. Teste t de Student de diferena de mdias para a idade e para a escolaridade, nas mulheres, quanto s gestaes e nos homens quanto ao nmero de filhos

    334

    Quadro 27. Estatsticas descritivas das subescalas da EAGM em primigestas e multigestas

    337 Quadro 28. Teste de MANCOVA para o efeito do nmero de gestaes e covariveis na EAGM

    337 Quadro 29. Teste de ANCOVA para o efeito do nmero de gestaes e covariveis nas subescalas da EAGM

    338 Quadro 30. Estatsticas descritivas da EVPNM total e suas dimenses em primigestas e multigestas

    339 Quadro 31. Teste de MANCOVA para o efeito do nmero de gestaes e das covariveis na EVPNM

    339

  • ndice de Quadros

    Quadro 32. Teste de ANCOVA para o efeito do nmero de gestaes nas subescalas e no total da EVPNM

    340 Quadro 33. Estatsticas descritivas da EASAVIC-F total e suas dimenses em primigestas e multigestas

    340 Quadro 34. Teste de MANCOVA para o efeito do nmero de gestaes e das covariveis na EASAVIC-F

    340 Quadro 35. Teste de ANCOVA para o efeito do nmero de gestaes nas subescalas e no total da EASAVIC-F

    341 Quadro 36. Teste de MANCOVA para o efeito do nmero de gestaes e covariveis nas dimenses da IRP-F

    342 Quadro 37. Estatsticas descritivas da DASS-F total e suas dimenses em primigestas e multigestas

    342 Quadro 38. Teste de MANCOVA para o efeito do nmero de gestaes e covariveis na DASS-F

    342 Quadro 39. Teste de ANCOVA para o efeito do nmero de gestaes e covariveis nas subescalas e no total da DASS-F

    343 Quadro 40. Teste de ANCOVA para o efeito do nmero de gestaes e covariveis na PSS-F

    344 Quadro 41. Teste de MANCOVA para o efeito do nmero de gestaes e covariveis no BSI-F

    345 Quadro 42. Estatsticas descritivas da EVPNP total e suas dimenses em homens com (n = 260) e sem filhos (n = 146)

    345 Quadro 43. Teste de MANCOVA para o efeito do nmero de filhos e covariveis nas dimenses da EVPNP

    346 Quadro 44. Teste de ANCOVA para o efeito entre sujeitos do nmero de filhos nas subescalas e no total da EVPNP

    346 Quadro 45. Estatsticas descritivas da EASAVIC total e suas dimenses em homens sem filhos (n = 260) e em homens com filho(s) (n = 146)

    347 Quadro 46. Teste de MANCOVA para o efeito do nmero de filhos e das covariveis na EASAVIC-M

    347 Quadro 47. Teste de ANCOVA para o efeito do nmero de filhos nas subescalas e no total da EASAVIC-M

    348 Quadro 48. Teste de MANCOVA para o efeito do nmero de gestaes e covariveis no IRP-M

    348 Quadro 49. Teste de MANCOVA para o efeito do nmero de filhos e covariveis na DASS-M

    349 Quadro 50. Teste de ANCOVA para o efeito do nmero de filhos na PSS-M 349 Quadro 51. Teste de MANCOVA para o efeito do nmero de filhos e covariveis no BSI-M

    349

  • Vinculao pr-natal e organizao psicolgica do homem e da mulher durante a gravidez

    Quadro 52. Correlaes de Pearson entre a EVPNM total e dimenses QVM e IPM e as variveis psicolgicas maternas em estudo

    351 Quadro 53. Correlaes de Pearson entre a EVPNP total e dimenses QVP e IPP e as variveis psicolgicas paternas em estudo

    356 Quadro 54a. Comparao de mdias, com o teste de ANOVA, da vinculao pr-natal materna segundo a idade das mulheres por faixas etrias

    363 Quadro 54b. Teste pos-hoc de Bonferroni para comparao de mdias da vinculao pr-natal materna e dimenses conforme as faixas etrias

    363 Quadro 55. Teste t de Student de diferena de mdias da vinculao pr-natal da mulher segundo o tipo de habitao

    365 Quadro 56a. Comparao de mdias, com o teste de ANOVA, da vinculao pr-natal materna e o estatuto socioeconmico do casal

    366 Quadro 56b. Teste pos-hoc de Bonferroni de comparao de mdias da IPM e da QVM segundo o estatuto socioeconmico do casal

    366 Quadro 57. Teste t de Student, de diferena de mdias, da vinculao pr-natal materna conforme o planeamento da gravidez pela mulher

    367 Quadro 58. Teste t de Student de diferena de mdias da vinculao pr-natal materna segundo a aceitao, pela mulher, da gravidez no planeada

    367 Quadro 59. Diferena de mdias, com o teste t de Student, da vinculao pr-natal materna consoante a existncia de razes para o surgimento de gravidez no planeada

    368 Quadro 60. Teste t de Student, de diferena de mdias, da vinculao pr-natal materna conforme a existncia de doenas em gravidezes anteriores

    369 Quadro 61. Teste t de Student de diferena de mdias da vinculao pr-natal na mulher consoante a existncia de gravidez em casamento ou coabitao anterior

    370 Quadro 62. Teste de ANOVA para comparao de mdias da vinculao pr-natal nos homens segundo a idade por faixas etrias

    372 Quadro 63. Teste t de Student para comparao de mdias da vinculao pr-natal paterna conforme o estatuto ocupacional do homem

    373 Quadro 64. Comparao de mdias, com o teste de ANOVA, da vinculao pr-natal paterna, conforme o agregado familiar

    374 Quadro 65. Teste de ANOVA para comparao de mdias da vinculao pr-natal paterna conforme o estatuto socioeconmico do casal

    375 Quadro 66. Teste t de Student para diferena de mdias da vinculao pr-natal paterna conforme o planeamento da gravidez

    375 Quadro 67. Teste t de Student para comparao de mdias da vinculao pr-natal paterna consoante a existncia de razes para o aparecimento da gravidez no planeada

    376 Quadro 68. Regresso linear mltipla da QVM tendo em conta as variveis

  • ndice de Quadros

    psicolgicas, sociodemogrficas e clnicas introduzidas nos diferentes modelos 380 Quadro 69. Variveis preditoras da QVM no modelo 7 da regresso linear mltipla

    381 Quadro 70. Regresso linear mltipla da IPM tendo em conta as variveis psicolgicas, sociodemogrficas e clnicas introduzidas nos diferentes modelos

    382 Quadro 71. Variveis preditoras da IPM no modelo 7 da regresso linear mltipla 382 Quadro 72. Regresso linear mltipla da EVPNM total tendo em conta as variveis sociodemogrficas, clnicas e psicolgicas introduzidas nos diferentes modelos

    383

    Quadro 73. Variveis preditoras da EVPNM total no modelo 7 da regresso linear mltipla

    384 Quadro 74. Regresso linear mltipla da QVP tendo em conta as variveis sociodemogrficas, clnicas e psicolgicas introduzidas nos diferentes modelos

    385 Quadro 75. Variveis preditoras da QVP no modelo 6 da regresso linear mltipla 386 Quadro 76. Regresso linear mltipla da IPP tendo em conta as variveis sociodemogrficas, clnicas e psicolgicas introduzidas nos diferentes modelos

    387 Quadro 77. Variveis preditoras da IPP no modelo 6 da regresso linear mltipla 388 Quadro 78. Regresso linear mltipla da EVPNP total tendo em conta as variveis sociodemogrficas, clnicas e psicolgicas introduzidas nos diferentes modelos

    388

    Quadro 79. Variveis preditoras da EVPNP total no modelo 6 da regresso linear mltipla

    389 Quadro 80. Associao, atravs do teste de Qui quadrado, entre o nmero de filhos e o tipo de parto

    395 Quadro 81. Associao, atravs do teste de Qui quadrado, entre a sade do beb e a existncia de doenas aps as 25 semanas de gestao

    396 Quadro 82a. Teste t de Student para comparao de mdias das variveis psicolgicas maternas consoante a ocorrncia de patologia obsttrica

    397 Quadro 82b. Teste de ANOVA para comparao de mdias das variveis psicolgicas maternas entre os grupos de grvidas conforme a patologia obsttrica

    400 Quadro 83. Teste t de Student para comparao de mdias da vinculao pr-natal paterna consoante a existncia de patologia obsttrica dos II e III trimestres de gravidez das suas mulheres

    402 Quadro 84. Teste t de Student para comparao de mdias da vinculao pr-natal materna conforme o estado de sade do recm-nascido no momento do nascimento

    403 Quadro 85a. Comparao de mdias da vinculao pr-natal materna conforme o tipo de parto com o teste One-Way ANOVA

    404 Quadro 85b. Teste pos-hoc de Bonferroni para comparao da QVM segundo o

  • Vinculao pr-natal e organizao psicolgica do homem e da mulher durante a gravidez

    tipo de parto 404 Quadro 86. Correlaes de Pearson entre as caractersticas psicolgicas das mulheres e dos homens no perodo ps-natal (n = 67)

    406 Quadro 87. Teste de medidas repetidas, tendo em conta as covariveis idade e escolaridade para comparao da vinculao ps-natal total (VPsN), da qualidade da vinculao ps-natal (QVPsN) e da intensidade da preocupao ps-natal (IPPsN) nos casais.

    409 Quadro 88. Correlaes de Pearson entre as caractersticas psicolgicas das mulheres no perodo pr-natal e no perodo ps-natal

    412 Quadro 89. Correlaes de Pearson entre as caractersticas psicolgicas dos homens no perodo pr-natal e no perodo ps-natal

    413 Quadro 90. Comparao de mdias, com o teste t de Student para amostras emparelhadas, da DASS-42 e suas dimenses observada nas mulheres no perodo pr (1) e ps-natal (2)

    416 Quadro 91. Teste t de Student para amostras emparelhadas de comparao de mdias no BSI e suas dimenses nas mulheres no perodo pr (1) e ps-natal (2)

    417 Quadro 92. Teste t de Student para amostras emparelhadas de comparao de mdias na EASAVIC e suas dimenses nas mulheres no perodo pr (1) e ps-natal (2)

    418 Quadro 93. Teste t de Student para amostras emparelhadas de comparao de mdias no IRP e suas dimenses nas mulheres no perodo pr (1) e ps-natal (2)

    419 Quadro 94. Teste t de Student para amostras emparelhadas de comparao de mdias na EASAVIC e suas dimenses nos homens no perodo pr (1) e ps-natal (2)

    420 Quadro 95. Teste t de Student para amostras emparelhadas de comparao de mdias na EVPsN e suas dimenses nos homens no perodo pr (1) e ps-natal (2)

    420

    Quadro 96. Teste t de Student para amostras emparelhadas de comparao de mdias no IRP e suas dimenses nos homens no perodo pr (1) e ps-natal (2)

    421 Quadro 97. Correlaes de Pearson entre a vinculao ps-natal materna e a satisfao com a vida conjugal materna e entre a vinculao ps-natal paterna e a satisfao com a vida conjugal paterna, no perodo ps-natal

    423

  • 29

    Introduo

    A vinculao pr-natal materna e paterna um aspecto fundamental das relaes que os pais estabelecem com os filhos. Tem incio durante a gravidez e forma os alicerces de todas as relaes posteriores. Define-se, segundo Condon (1993), por lao emocional que se estabelece entre os pais e o filho antes do nascimento ou, de acordo com Moulder (1994), pelo desenvolvimento de sentimentos dos pais pelo beb antes de este nascer. Embora se trate de um conceito representacional dos pais em relao ao feto (Walsh, 2010) designada, pelos vrios autores que se dedicam ao seu estudo, apenas por vinculao pr-natal.

    A gnese da vinculao pr-natal, enquanto constructo terico includo nos pressupostos da teoria da vinculao de Bowlby, data dos anos oitenta e deve-se ao consenso encontrado entre alguns investigadores a propsito da associao entre a representao da vinculao da me ao seu filho, depois do nascimento, e a representao da vinculao materno-fetal, passando a ser descrita como um dos mecanismos originrios das relaes me-criana (e.g., Bretherton, 1982; Dickstein, Seifer, & Albus, 2009; Isabella & Belsky, 1985; Fonagy, Steele & Steele, 1991, 1996). Esta perspectiva mostrou-se muito til na compreenso dos estilos de vinculao entre a criana e a me (Ainsworth et al., 1979), das representaes da vinculao entre a me e a criana (George & Solomon, 1999; Miljkovich, 2001) e da promoo de vinculaes seguras que minimizam os riscos para a sade e promovem o desenvolvimento harmonioso das crianas (Bretherton, 1982).

    Contudo, desde a dcada de 40, um corpo terico crescente vinha salientando a existncia e o desenvolvimento de relaes pr-natais entre pais e filhos, primeiro materno-fetais pela relao biolgica evidente da gravidez na mulher e, mais tarde, tambm entre o pai e o feto (e.g., Bibring, 1959; Bloom, 1995; Condon, 1993; Deutsch, 1945/1974; Fuller, 1990; Grace, 1989; Leifer, 1977; Raphael-Leff, 2009; Reading, Cox, Sledmere & Campbell, 1984, Rubin, 1975). Nos anos oitenta deu-se incio investigao nesta rea, com instrumentos de medida criados para avaliao do constructo, tal como foi operacionalizado por alguns autores e, apesar de controvrsias, tambm nesta poca que o conceito comea a ser integrado pelos seguidores de Bowlby.

    A vinculao pr-natal no pode ser confundida com o investimento da mulher na gravidez, um processo activo que implica, por exemplo, a realizao das tarefas (Moulder,

  • Vinculao pr-natal e organizao psicolgica do homem e da mulher durante a gravidez

    30

    1994), o perodo da gravidez , antes, o tempo do incio das relaes de vinculao entre os pais e o filho, esse lao afectivo que se funda e se perpetua para alm do real.

    A vinculao pr-natal ao feto, tal como acontece com a vinculao ps-natal ao

    beb, articula-se com outras variveis psicolgicas, as mesmas que interferem na formao de todas as relaes que a influenciam e a determinam. Presentemente, contamos com um grande nmero de estudos publicados que incidem sobre a influncia das variveis psicossociais na vinculao pr-natal da me e, tambm, embora em menor nmero, do pai (e.g., Brandon, 2007; Condon & Corkindale, 1997; Hart & McMahon, 2006; Heidrich & Cranley, 1989; Kunkel & Doan, 2003; Laxton-Kane & Slade, 2002; Lindgren, 2001; Scharfe, 2007; Siddiqui, Hagglof, & Eisemann, 2000b; etc.). Estas investigaes apontam razes suficientes para presumirmos que os estados psicolgicos negativos dos pais afectam a vinculao pr-natal, assim como os estados psicolgicos positivos se tornam protectores dessa mesma vinculao. Contudo, os resultados so, por vezes, contraditrios pelo que sentimos necessidade de contribuir para o desenvolvimento desses trabalhos, o que concretizamos com uma parte da investigao que aqui apresentamos.

    Para alm das variveis psicolgicas, que tm um papel fundamental no tipo de vinculao que os pais desenvolvem com o feto, h outros factores, nomeadamente sociodemogrficos e clnicos, que esto presentes durante a gravidez e que influenciam a vinculao pr-natal materna e paterna (e.g., Armstrong, 2002; Bloom, 1995; Brandon et al., 2008; Bouchard, Boudreau, & Hbert, 2006; Caccia, Johnson, Robinson, & Barna, 1991; Condon, 1985; Condon e Esuvaranathan, 1990; Damato, 2000; Fish & Stifter, 1993; Grace, 1989; Heidrich & Cranley, 1989; Lawson & Turriff-Jonasson, 2006; Lindgren, 2001; Lorensen, Wilson, & White, 2004; Reading et al., 1984; Righetti, DellAvanzo, Grigio, & Nicolini, 2005; Siddiqui, Hagglof, & Eisemann, 1999, 2000b; Tsartsara & Johnson, 2006; Vedova, Dabrassi, & Imbasciati, 2008; White, McCorry, Scott-Heyes, Dempster, & Manderson, 2008).

    Os padres de vinculao tm correspondncia ao longo das geraes e parecem influenciar o sentido de si e o modo como os outros constituem um apoio emocional e social (Dickstein, Seifer, & Albus, 2009). Uma vinculao forte antes do nascimento est ligada a uma forte vinculao depois do nascimento, promovendo a sade e o bem-estar da me e do beb (Condon & Corkindale, 1997; Condon & Dune, 1987; Cox et al., 1984; Siddiqui & Hagglof, 2000).

  • Introduo

    31

    A articulao dos diversos factores, neste perodo, pode comprometer a sade obsttrica da mulher, o resultado do parto e a sade do beb e, ainda, a estabilidade psicolgica entre os perodos pr e ps-natal.

    Em face destas consideraes, levantaram-se-nos as questes orientadoras deste estudo que so: Como que a vinculao pr-natal se articula com as variveis psicolgicas presentes na gravidez e com as variveis sociodemogrficas e clnicas que influenciam o resultado do parto e a ocorrncia de patologia obsttrica nos II e III trimestres de gestao?; Ser que o resultado do parto e a ocorrncia de patologia obsttrica nos II e III trimestres de gravidez alteram a estabilidade psicolgica entre o perodo pr e o perodo ps-natal?.

    A resposta a estas questes permite encontrar factores psicolgicos explicativos das influncias, das inter-relaes e das consequncias de um conjunto de variveis psicolgicas articuladas com a representao da vinculao pr-natal materna e paterna, na evoluo da gravidez e no resultado do parto, em casais grvidos no segundo trimestre que frequentam consultas de vigilncia da gravidez na regio centro do pas.

    Um conjunto de objectivos gerais foi enunciado para responder s questes colocadas, posteriormente operacionalizadas em hipteses de investigao. Esses objectivos so: (1) Estudar a articulao entre a vinculao pr-natal entre os pais e o feto e as variveis psicolgicas que influenciam o resultado do parto e a ocorrncia de patologia obsttrica nos II e III trimestres de gravidez; (2) Comparar as variveis psicolgicas dentro do casal, durante a gravidez; (3) Identificar a influncia das variveis psicolgicas das mulheres grvidas sobre o resultado do parto e na ocorrncia de patologia obsttrica nos II e III trimestres de gravidez; (4) Averiguar o efeito do resultado do parto e da ocorrncia de patologia obsttrica nos II e III trimestres de gravidez sobre a vinculao ps-natal materna e paterna e (5) Comparar as variveis psicolgicas quer das mulheres, quer dos homens, antes e depois do nascimento e comparar as variveis psicolgicas dentro do casal, no perodo ps-natal.

    A investigao realizada de natureza observacional, longitudinal e analtico-prospectiva (Hulley, Cummings, Browner, Grady, & Newman, 2008; Pais-Ribeiro, 1999, 2007; Rossi, 2000). Tem uma amostra de 814 sujeitos que perfazem 407 casais. constituda por trs estudos. No primeiro, debruamo-nos sobre as questes centrais da gravidez no que se refere vinculao pr-natal materna e paterna e s suas relaes com as variveis psicolgicas, sociodemogrficas e clnicas nos homens, nas mulheres e nos casais. No segundo estudo, conhecemos a articulao entre a vinculao pr-natal materna e

  • Vinculao pr-natal e organizao psicolgica do homem e da mulher durante a gravidez

    32

    paterna e as variveis psicolgicas e sociodemogrficas da mulher que influenciam o resultado do parto e a ocorrncia de patologia obsttrica nos II e III trimestres de gravidez. No terceiro estudo, dando continuidade ao anterior, compreendemos de que forma se altera a representao da vinculao dos pais ao beb e as variveis psicolgicas da mulher e do homem, 8 a 12 meses aps o nascimento, comparativamente com o tempo de gravidez. O segundo e o terceiro estudos acompanham os sujeitos ao longo de um perodo de tempo, no qual se observar o desfecho, ou as variveis dependentes.

    O trabalho que apresentamos est organizado em duas partes, dividindo-se cada uma em captulos e subcaptulos. A primeira parte destina-se ao enquadramento terico e constituda por trs captulos distintos. O primeiro captulo aborda a experincia psicolgica na gravidez e transio para a parentalidade, primeiro na mulher, onde se desenvolvem as questes relativas ao desejo de ter filhos, ao desenvolvimento psicolgico e transformaes na identidade, as manifestaes psicofisiolgicas, a representao psquica do feto e a transio para a maternidade. Depois, ainda neste captulo, evidenciada a experincia psicolgica do homem, comeando pela perspectiva actual da paternidade, seguida da abordagem ao seu desenvolvimento psicolgico, ao envolvimento paterno, s manifestaes psicossomticas e transio para a paternidade. Finalmente, acerca do casal, aborda-se a parentalidade e a adaptao conjugal, apresenta-se a transio para a parentalidade e os seus efeitos no casal enquanto cnjuges e agora pais, e as implicaes desta transio para ambos, entre si e na comunicao com o beb.

    O segundo captulo comea por ilustrar a psicopatologia mais frequente da gravidez, como as perturbaes do humor, da personalidade e as alteraes psicolgicas associadas a complicaes obsttricas importantes e, depois, expe a psicopatologia do puerprio, enfatizando a problemtica da depresso ps-parto.

    O terceiro captulo dedicado representao da vinculao pr-natal e sua articulao com a experincia psicolgica da gravidez e da parentalidade. Neste captulo fazemos aluso teoria da vinculao, conceito e desenvolvimento, e construo do conceito de vinculao pr-natal, investigao e psicometria. Destacamos, ainda, os determinantes da vinculao pr-natal materna e paterna e apresentamos os resultados de estudos longitudinais entre os perodos pr e ps-natal. Terminamos referindo algumas crticas proferidas ao constructo.

    A segunda parte deste trabalho destina-se conceptualizao do estudo emprico e conta com mais quatro captulos. No captulo quatro apresentamos o problema de investigao, definimos os objectivos e levantamos as hipteses. No captulo seguinte,

  • Introduo

    33

    descrevemos a metodologia adoptada tendo em conta o delineamento da investigao, os critrios de amostragem e de recolha da amostra, a seleco, organizao e descrio dos instrumentos de recolha de dados. Neste subcaptulo apresentamos os resultados descritivos e o estudo psicomtrico das escalas de medida utilizadas nos diferentes estudos que realizamos. Terminamos o captulo focando as questes ticas que tivemos em ateno.

    No sexto captulo, apresentamos e analisamos os resultados. Primeiro os descritivos, de caracterizao sociodemogrfica e clnica da amostra e, em seguida, os resultados inferenciais obtidos com a testagem das hipteses. No stimo captulo procedemos discusso dos resultados obtidos nos vrios estudos, referimos as limitaes sentidas na concretizao da investigao e, por fim, apontamos estudos a desenvolver no futuro a partir do apelo dos resultados obtidos. Terminamos, apresentando as concluses deste estudo de investigao e lanando algumas propostas de interveno no futuro.

  • PRIMEIRA PARTE

    ENQUADRAMENTO TERICO

  • 37

    CAPTULO I

    EXPERINCIA PSICOLGICA NA GRAVIDEZ E TRANSIO PARA A PARENTALIDADE

  • Captulo I - Experincia psicolgica na gravidez e transio para a parentalidade

    39

    1. A mulher durante a gravidez e na transio para a maternidade

    A gravidez o perodo de gestao que medeia entre a concepo e o parto. Este perodo tem uma durao aproximadamente de 40 semanas e, considera-se a termo, a gestao cujo parto ocorre entre as 37 semanas e as 41 semanas e seis dias. Antes das 37 semanas o parto considerado pr-termo e, aps as 42 semanas, designa-se ps-termo (Gomella, 2006). Actualmente, o limite da viabilidade fetal pode recuar at s 23 ou 24 semanas, com o nascimento de bebs habitualmente designados por grandes prematuros, o que coloca importantes questes mdicas e ticas (Goudoever, 2006; Higgins, Delivoria-Papadopoulos, & Raju, 2005).

    O tempo de gravidez corresponde idade gestacional do beb. Esta concordncia evidencia o quanto a gravidez e o feto fazem parte de um nico processo que, em circunstncias normais, no existem separadamente. Quando, numa gravidez, h apenas um feto, esta designa-se gravidez de feto nico; quando h mais do que um feto, designa-se gravidez gemelar ou mltipla.

    A idade gestacional (IG) determina-se a partir da data da ltima menstruao (quando possvel determin-la, a mais exacta) ou atravs da ecografia realizada antes das 20 semanas de gestao. A IG e o peso nascena permitem a classificao do recm-nascido em trs tipos: pequeno para a IG (dois desvios-padro abaixo da mdia de peso para a IG, ou abaixo do percentil 10); adequado para a IG (assim definido atravs da mdia padronizada de peso) e grande para a IG (se o seu peso est dois desvios-padro acima da mdia de peso para a IG ou acima do percentil 90). Esta classificao um indicador importante da sade do beb, no momento do nascimento (Gomella, 2006).

    Durante a gravidez, na mulher, sucedem-se as interaces entre as alteraes fisiolgicas, o esforo psicolgico e as exigncias do meio social. Estas interaces constituem a dimenso psicossocial do processo gravdico, assim designada a partir do modelo psicossocial do desenvolvimento humano de Erikson (1971, 1972) que, para o formular, se baseou no princpio epigentico1 tendo em conta o elemento biolgico e as condies histricas e culturais que o rodeiam. Esta perspectiva tem permitido a anlise da gravidez no contexto de diferentes disciplinas, o que em muito tem contribudo para a sua compreenso. Estudos posteriores continuam a investigar o papel crucial das interaces 1A epignese define-se como a complexidade das interaces entre o meio e as snteses bioqumicas, reguladas pela programao gentica (Piaget 1974).

  • Vinculao pr-natal e organizao psicolgica do homem e da mulher durante a gravidez

    40

    com o ambiente, particularmente entre os genes, o comportamento e o ambiente no desenvolvimento das diferenas individuais, nomeadamente no campo da vinculao humana, como determinantes dos estilos de vinculao adquiridos (Bakermans-Kranenburg & van IJzendoorn, 2007).

    1.1. Breve perspectiva temporal da gravidez e da maternidade

    Ao longo dos sculos, o processo de reproduo nas sociedades humanas sempre esteve envolvido num enorme conjunto de normas comportamentais, tabus, representaes valorativas e at constrangimentos que mostram a importncia atribuda gravidez em todas as culturas. Por exemplo, durante o Renascimento dominou na Europa Ocidental uma conscincia naturalista da vida e do decorrer do tempo, a qual considerava que o dever primordial do homem, na vida, era dar vida. Nesta poca, a esterilidade no casal tornou-se uma preocupao muito sria porque no permitia ao homem o cumprimento do seu dever (Aris, Duby & cols., 1990).

    Durante o sculo XVII, a sociedade percebeu a finitude do homem e que a perpetuao do seu corpo feita atravs da sua semente, aquela que far o corpo dos seus filhos, passando, a criana, a ocupar um lugar fundamental nas preocupaes dos pais. Cem anos mais tarde, no final do sculo XVIII, foi reconhecida a importncia do amor materno, no discurso filosfico, mdico e poltico. Com Rousseau, em 1762, lanaram-se as ideias fundamentais sobre a famlia e valorizou-se o vnculo afectivo originado pelo contacto fsico entre a me e o filho. Mas, o culto maternidade surgiria apenas no sculo XIX, tornando-se, simultaneamente, importantes na sociedade, o lugar da me e o lugar da criana (Lebrun, s.d.).

    Ainda no final daquele sculo, comearam a ser esclarecidos, no seu conjunto, os mecanismos genticos, biolgicos e anatmicos que presidem a cada fecundao, isto apesar de a obstetrcia cientfica ter tido incio dois sculos antes, no sculo XVII (Bydlowski, 2006).

    Ao longo do sculo XX, desenvolveu-se a tecnologia obsttrica e a gravidez transformou-se, progressivamente, num problema mdico. Esta evoluo levou a que se esbatessem as dimenses psicolgicas e sociais da gravidez e do parto, s quais se atribua importncia, como por exemplo, o significado dado pelas mulheres a essas experincias. Em consequncia, muitas vezes, a mulher foi colocada em segundo plano aps o

  • Captulo I - Experincia psicolgica na gravidez e transio para a parentalidade

    41

    nascimento do beb e foi considerada um ser social, desprovido de emoes e de afectos, pois o nico desfecho importante da gravidez era o produto final do trabalho de parto, o novo membro social (Helman, 1994). Para alm disso, inmeras e complexas movimentaes socioeconmicas e polticas das ltimas dcadas do sculo XX tiveram os seus efeitos e alteraram radicalmente o conceito de ser me, vigente at ento. Como exemplos fundamentais daquelas movimentaes, temos: a expanso dos mtodos contraceptivos; a transformao da vida activa das mulheres; a passagem da famlia alargada famlia nuclear e a outras formas de famlia (Badinter, 1989; Helman, 1995; Leal, 2005); o alargamento dos campos de interveno nas maternidades; os avanos tecnolgicos em obstetrcia e as mudanas conceptuais no que se refere me, ao recm-nascido e, cada vez mais, ao pai; a investigao psicolgica na rea da gravidez e da maternidade; o conhecimento aumentado acerca das vivncias pessoais da grvida, das competncias do beb e do feto e do papel parental dos progenitores (Leal, 1992, 2005). Todas estas movimentaes conquistaram relevncia neste processo e permitiram o desenvolvimento de novas reas de estudo e de interveno na gravidez e na parentalidade.

    Os estudos transculturais dos costumes, mitos e supersties, descritos na literatura, tal como as crenas e tabus volta da vulnerabilidade da me e do feto durante a gestao, parto, puerprio e perodo de amamentao, assim como o desenvolvimento tecnolgico, deram um contributo valioso compreenso da dinmica psicolgica da gravidez. Houve o seu reconhecimento como um tempo demasiado importante que pode ser visto como perodo de transio entre dois estatutos sociais, o de mulher e o de me, com grande significado simblico, dinmico, de construo e de desenvolvimento, de enriquecimento e de desafio (Canavarro, 2001; Colman & Colman, 1994; Leal, 2005; Maldonado, 1991).

    No contexto actual, com as mais baixas taxas de mortalidade materna e infantil da Europa, no deixa de ser surpreendente o aumento que se verifica nas doenas da gravidez, fsicas e psicolgicas, no nmero de interrupes da gestao, na sempre crescente incidncia de partos pr-termo e no aumento das taxas de infertilidade (Leal, 2005), situaes estas que ocorrem em simultneo com as mais reduzidas taxas de natalidade, principalmente em Portugal (INE, 2010). A reduo da natalidade traz, constantemente, conscincia, o quanto a gravidez , na grande maioria dos casos, uma deciso pessoal e, precisamente por isso, influenciada por factores pessoais, intrnsecos a cada mulher, e sociais, tpicos da poca e do contexto em que vive.

  • Vinculao pr-natal e organizao psicolgica do homem e da mulher durante a gravidez

    42

    1.2. O desejo de ter filhos

    A perspectiva da gravidez e da maternidade decorrente das rpidas mudanas sociais (e.g., contracepo eficiente, inseminao artificial e livre acesso ao aborto) tiveram um papel fundamental na criao de um novo clima individual no que diz respeito ao planeamento da gravidez e ao desejo de ter filhos. Estes aspectos tornaram-se conscientes, deliberados e programados, dada a possibilidade de separar a sexualidade, a reproduo e o casamento (enquanto instituio social).

    Estas circunstncias aconteceram to rapidamente, em comparao com o tempo em que decorrem as mudanas sociais em geral, que trouxeram, por momentos, a ideia de desconstruo do conhecimento sobre o desejo humano de reproduo. No entanto, de acordo com Raphaell-Leff (2009), desenvolvimentos recentes na sociedade Ocidental mostraram que o conhecimento sobre o desejo de reproduzir no est desconstrudo no ser humano, embora no seja possvel continuar a manter o mito do instinto maternal e da anatomia do destino ou assunes teolgicas ou biolgicas acerca dos genes. O desejo humano de reproduo tem razes conscientes e inconscientes, incorporadas nas origens de cada indivduo, da famlia onde foi criado, da cultura onde nasceu e da sociedade onde se tornou adulto. Trata-se, portanto, de um desejo muito complexo, com uma dimenso altamente pessoal e desenvolvimental que, apesar de ser um projecto consciente, est, muitas vezes, infiltrado de significaes inconscientes que vo reaparecer durante a gravidez e influenciar a criana que ir nascer (Idem).

    A criana imaginria antes de ter sido concebida sendo aquela que a me e o pai vieram um dia a desejar. Ela ser investida, por cada um dos seus pais, na qualidade de objecto da psique parental, atravs de um conjunto de afectos e de representaes, de cenrios e de sinais significativos que contribuiro para a sua formao como pessoa (Bydlowski, 2006).

    Para a mulher, o desejo de ter um filho o desejo de sentir-se completa e omnipotente, mantendo um conceito idealizado de si prpria, como extenso da prpria me, aquela que cuidou de si enquanto criana. tambm o desejo de perfeio - extenso narcsica, juntamente com a fantasia de simbiose - fuso e unio com o filho. Ter um filho uma tentativa de recriar vnculos passados e de renovar relaes antigas atravs de novos relacionamentos que surgem com a sua chegada. Nasce, em ambos os pais, o desejo de se

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    rever no filho como um duplo que , ao mesmo tempo, promessa de continuao ou elo de uma longa cadeia entre o passado e o futuro (Brazelton & Cramer, 1993).

    Um filho representa, consciente ou inconscientemente, a imortalidade gentica, a transmisso cultural e a segunda oportunidade de reparar certas passagens da infncia (Raphaell-Leff, 1997, 2009). O sentimento de imortalidade pessoal (e no s biolgica), permite, aos pais, o cuidar de algum que lhes pertence e que objecto de amor e traz-lhes o sentimento de ter de volta os seus prprios pais, internamente modificados, possibilitando-lhes a condio de se sentirem adultos em pleno. Embora com uma conscincia pouco clara, um filho representa a eternidade possvel, ou a continuidade imediata das suas vidas (Erikson, 1971; Raphaell-Leff, 1997, 2009; S, 1997).

    Segundo Brazelton e Cramer (1993), o beb que ir nascer filho da fantasia e, neste sentido, so-lhe atribudos poderes mgicos para desfazer antigas separaes, negar a passagem do tempo e a dor provocada pela morte e pelo desaparecimento. algum que cura, que traz a promessa de recriar relaes adormecidas, as quais foram gratificantes no passado, que ser bem sucedido naquilo em que os seus pais falharam, representando a oportunidade de inverter compromissos e limitaes. Ser um modelo de perfeio - ideal do ego, realizando as potencialidades adormecidas. Neste caso, os pais podem vir a exercer uma grande presso sobre o filho ao temerem que ele seja um fracasso, ameaando o seu prprio fracasso, uma vez que o filho poderia ter sido experienciado como a realizao de ideais e de oportunidades perdidas.

    A deciso de engravidar, o comportamento durante a gravidez e o comportamento materno, segundo Canavarro (2001), esto interligados e so determinados pelas representaes da gravidez e da maternidade. Estes determinantes so constitudos por factores genticos, histrico-culturais e de desenvolvimento. Os mediadores daquelas representaes so a personalidade e os processos cognitivos. Nesta perspectiva, os factores genticos so, na opinio da autora, as drives fisiolgicas, as capacidades cognitivas e perceptivas, as caractersticas fsicas e os traos psicolgicos. Os factores histrico-culturais referem-se separao entre a sexualidade e a reproduo que permitiram, mulher, um maior controlo do seu corpo e, por conseguinte, da sua vida em geral. Incluem-se nestes, os avanos cientficos e tecnolgicos que permitem a reproduo artificial e o crescente controlo e monitorizao do desenvolvimento e do nascimento do beb bem como a permisso social da interrupo da gravidez, como atrs j referimos. Os factores de desenvolvimento contam com a histria do indivduo, experincias e aprendizagens ao longo da vida. Neste processo desenvolvimental, a autora supra-referenciada enfatiza os

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    marcadores relacionais, perspectivando que relacionar-se influenciar e coloca a nfase na relao estabelecida com a prpria me, ou figura materna.

    Para alm do desejo de ter um filho e da deciso de engravidar, o que se concretiza com uma gravidez bem sucedida, a gravidez e a maternidade so realidades complexas, dinmicas e distintas. A maternidade um processo de longo prazo que inclui e que ultrapassa a gravidez e requer que se deseje ser me (Leal, 1992). Para tal, a mulher deve permitir-se elaborar todo um desenvolvimento pessoal e relacional, aceitando, a priori que, depois desta experincia, estar internamente modificada e no vai voltar a ser uma pessoa singular.

    1.3. Desenvolvimento psicolgico da mulher durante a gravidez

    Durante a gravidez, a mulher vive um processo de desenvolvimento individual caracterizado por uma crescente complexidade. A mulher que vai ser me ter de se formar psicologicamente da mesma forma que o seu filho se forma fisicamente (Stern & Stern, 2005) e o tempo de gravidez que lhe permite fazer a preparao psicolgica nos domnios cognitivo, com o ensaio de papis e tarefas, afectivo, ou o ligar-se criana, e relacional, como seja o reestruturar as relaes pessoais para incluir o novo elemento na sua identidade e aprender a aceitar o feto como pessoa (Canavarro, 2001). Este perodo pode ser muito enriquecedor se a mulher o viver no apenas como um tempo de preparao psicolgica e fsica, mas tambm de preparao para o papel de me e para o incio do relacionamento com o filho (Justo, 1994).

    O perodo de gestao , habitualmente, descrito por fases, nas quais se desenvolvem um conjunto de tarefas psicolgicas que foram enunciadas e corroboradas por diferentes autores (e.g., Bibring, 1959; Bibring, Dwyer, Huntington, & Valenstein, 1961; Brazelton, 1993; Colman & Colman, 1994; Justo, Bacelar-Nicolau, & Dias, 1999). Essas fases de desenvolvimento, tal como os estdios do ciclo vital, so caracterizadas por terem um ponto crtico que exige adaptao pessoal e resoluo sequencial, de modo a poder avanar, com sucesso, para a fase seguinte. Se o estdio anterior no for resolvido, os estdios posteriores reflectiro esse fracasso na forma de um desajuste fsico, cognitivo, social ou emocional (Kaplan, Sadock, & Grebb, 1997) que indesejvel que ocorra durante a gravidez.

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    Colman e Colman (1973) propuseram a seguinte designao para as trs fases da gravidez que se referem s alteraes de comportamento e psicossomticas: fase de integrao (I), fase de diferenciao (II) e fase de separao (III). A primeira corresponde integrao da nova realidade fsica que a mulher transporta dentro de si o novo ser. Nesta altura, a mulher faz o regresso sua infncia e reavalia/reorganiza ou reelabora as suas relaes com a figura feminina-materna do passado constituindo-se um momento importante na solidificao da personalidade feminina (Justo et al., 1999, p. 16). Na segunda fase, a mulher reorganiza e reavalia o relacionamento conjugal, cujo objecto de reelaborao psicolgica passa a ser o companheiro actual, em detrimento da me da infncia. Esta fase comea com a percepo dos movimentos fetais, levando a grvida a perceber que a sua criana autnoma e tem regras prprias (Idem) nesta fase que a mulher resolve o seu problema de difuso da identidade com o feto e se dissocia dele (Colman e Colman, 1973). Na terceira fase, a mulher prepara a separao fsica e psicolgica da criana que vai nascer e que j comunica, passando esta a ser o seu objecto de reelaborao (Justo et al., 1999).

    Segundo Colman e Colman (1973), as trs fases tm bastantes semelhanas com os trimestres de gravidez, mas no coincidem totalmente. No entanto, habitual aparecerem descritas na literatura como coincidentes, principalmente, porque as modificaes comportamentais com significado na vida emocional da mulher grvida e as alteraes fsicas que lhes esto associadas se encadeiam de forma compatvel com esta viso.

    As fases descritas esto ligadas a um conjunto de tarefas que so: aceitar a gravidez; aceitar a realidade do feto; reavaliar a gerao parental anterior; reavaliar o relacionamento entre companheiros; aceitar o beb como pessoa individualizada e integrar a identidade parental (Colman & Colman, 1994). Canavarro (2001) inovou esta proposta com a apresentao de uma stima tarefa da maternidade, muito importante e muitas vezes esquecida, por si denominada reavaliar e reestruturar a relao com os outros filhos (quando os houver) .

    A mulher sabe que o conjunto de experincias consideradas originais e importantes para si, que so a gravidez, o nascimento e a maternidade, podem alterar irreversivelmente o curso da sua vida. Apesar disso, no deixam de constituir uma histria fantstica, cujo incio real ocorre com a concepo, em que dois corpos, um dentro do outro, formam uma unio que retoma a gestao da mulher, muitos anos antes, no tero da sua me (Raphaell-Leff, 2009). Para tal, neste perodo, fisiologicamente, o corpo da mulher, a partir do vulo fecundado, produz um factor (early pregnancy factor) capaz de suprimir ou inibir as defesas

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    imunolgicas para aceitar que um corpo, parcialmente estranho, resida e se desenvolva dentro de si (Caplan, 1986). Psicologicamente, a mulher revive intensamente conflitos da sua vida anterior e problemas no resolvidos, compreendidos a partir da sua histria pessoal e de vida que podem constituir, simultaneamente, um desafio e uma ameaa sua estrutura psquica (Brazelton & Cramer, 1993; Cordeiro, 1994; Maldonado, 1991).

    Do ponto de vista desenvolvimental, a experincia da gravidez essencialmente regressiva, marcada por perodos de ansiedade, curtos ou longos, aos quais esto associados sintomas fsicos prprios. A regresso vivida durante a gravidez no patolgica, mas sim, uma etapa no processo de desenvolvimento, designada "Processo Psicolgico de Regresso" (Soifer, 1991) que constitui uma crise de desenvolvimento, fundamentalmente marcada pela revivncia da vida infantil e pelo equilbrio fsico e mental que decorre da transformao da mulher em adulta. um momento de crise e de crescimento maturacional, de "transformao" ou "ponto crucial", constituindo uma poca de maior susceptibilidade face a situaes que provocam angstia (Colman & Colman, 1994).

    Maldonado (1991) referiu-se a duas significaes da gravidez, uma consciente e a outra menos consciente. No primeiro caso, a grvida sabe que poder morrer ou que pode dar vida; sabe que a gravidez termina com o parto e com o nascimento de uma criana, havendo riscos para si e para o beb. No plano menos consciente, esto o desenvolvimento psicolgico da mulher e as relaes que ela foi estabelecendo ao longo da vida. Estas significaes, na opinio de Deutsch (1974), acompanham-se de uma angstia com razes profundas que se ligam, inevitavelmente, s to conhecidas modificaes biolgicas, anatmicas e funcionais do corpo e mudana do seu papel social. Segundo Maldonado (1991, p. 22), esta apenas uma "transio existencial" que acontece de forma suave e tranquila e que, na opinio de Raphaell-Leff (2009), faz parte do processo normal do desenvolvimento, colocando cada me, em cada gestao, os seus sentimentos, esperanas, memrias e mitologias inconscientes. A histria interior , assim, diferente de gravidez para gravidez e de mulher para mulher.

    O interesse pelos processos psicolgicos da gravidez aumentou desde os anos quarenta, altura a partir da qual se vem cimentando a ideia de gravidez como crise normativa no desenvolvimento da mulher. Esta ideia tem as suas origens nos trabalhos de Benedek (1959), Bibring (1959), Bibring et al. (1961), Deutsch (1974) e evoluiu com Brazelton (1979), Bydlowski (2006), Colman e Colman (1994), Justo (1994), Raphaell-Leff (2009) e outros.

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    referido, num artigo clssico de Bibring et al. (1961), que a gravidez um perodo de crise maturacional, determinada biologicamente, tal como a puberdade e a menopausa, e que envolve alteraes somticas e psicolgicas, obrigando a novas tarefas adaptativas e resoluo de conflitos anteriores no resolvidos. Estas crises representam pontos de viragem na vida do indivduo e, por conseguinte, constituem passos importantes no seu desenvolvimento. O processo adaptativo inevitvel e a mudana irreversvel, uma vez me, j no se pode deixar de s-lo (Idem). Este um processo de no retorno, em que uma me no voltar a ser uma pessoa singular, tal como uma adolescente no voltar a ser criana depois da menarca, ou como a mulher no poder reproduzir aps a menopausa (Bibring et al., 1961; Colman & Colman, 1994; Golse, 2007).

    A crise da gravidez, tal como os outros perodos crticos, traz novas condies vida da mulher, constituindo uma crise no patolgica, mas de mudana e de adaptao ao seu novo estatuto que agora o de me (Cordeiro, 1994). Importa reafirmar que a gravidez, ainda que saudvel, um tempo desafiante a nvel psicolgico. Bibring (1959) e Bibring et al. (1961) foram pioneiros na realizao de trabalhos na rea da sade mental materna e a constatar o estado de excepo das mulheres grvidas. No contacto com grvidas, raramente encontraram estados patolgicos anteriores gravidez, embora nesta, as mulheres apresentassem neuroses e pr-psicoses e no contedo das entrevistas existisse pensamento mgico, angstias primitivas, reaces paranides e depressivas. Justo (1994, p. 111) considerou que "esta reaco gravidez representa a possibilidade de viver uma crise psicolgica sem permanecer submergido por ela.

    Por outro lado, Bibring (1959) e Bibring et al. (1961) tambm observaram a remisso rpida dos estados mais graves, com investimentos psicoteraputicos muito breves em que, estas mulheres, no mostraram dificuldades na adaptao gravidez, ao parto e maternidade. Concluram que na gravidez h uma importante crise de desenvolvimento e de adaptao s novas condies corporais, psicolgicas e familiares, observvel atravs da psicoterapia de mulheres grvidas.

    Estudos actuais confirmam que a adaptao psicolgica gravidez est associada a alguns factores individuais, relacionais e sociais com um peso muito significativo. Nestes incluem-se as variveis sociodemogrficas tais como a idade materna, o estatuto conjugal, o nvel de educao, a paridade, o estatuto ocupacional durante a gravidez que por si s no so consideradas factores de risco independentes para o resultado do parto (Rodrigues & Barros, 2007). Acresce que o planeamento da gravidez um factor de grande importncia no resultado da mesma (Messer, Dole, Kaufman, & Savitz, 2005), assim como as variveis

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    psicolgicas, individuais e relacionais, como os recursos de coping, o apoio social e a qualidade do relacionamento conjugal das grvidas. Os nveis reduzidos nestas ltimas variveis criam, na mulher, vulnerabilidade fsica e psicolgica no perodo de gravidez.

    A forma como as grvidas lidam com a gravidez reveste-se de muitas variaes individuais, desde logo na procura da informao disponvel. Algumas mulheres procuram, constantemente, informao nova, outras mulheres aceitam e ficam confortveis com a informao que lhes facultada pelos profissionais de sade. O mais importante , sem dvida, que tenham capacidade para lidar com a nova situao, atravs de estratgias que lhes permitam mudar favoravelmente, em funo da gravidez e do beb, que procurem cuidados de sade, adaptem o seu estilo de vida e suprimam consumos aditivos.

    A capacidade de lidar com problemas, ou coping, traduz-se pela resposta efectiva diminuio do stress e que melhor serve os interesses da pessoa, mesmo tendo em conta as consequncias negativas geradas por essa resposta de coping (Sowden, Sage, & Cockburn, 2007, p. 92). Durante a gravidez, segundo estes autores, a adaptao mesma e o desenvolvimento das tarefas que a mulher tem pela frente, dependem, em parte, das suas respostas de coping. Estas respostas incluem: coping com a aceitao da realidade da gravidez; coping com o enfrentar as consequncias de estar grvida; coping com as mudanas fsicas; coping com a incerteza e a imprevisibilidade; coping com a mudana de papel e de relacionamentos; coping com a gesto inesperada e indesejvel de acontecimentos e de complicaes minor da gravidez. A grvida pode apresentar dificuldades na adequao das estratgias de coping e, se tal acontecer, torna prejudicial o bom desenvolvimento das tarefas da gravidez, sendo necessrio proporcionar-lhe, ou ser-lhe proposto, um coping alternativo.

    Um estudo levado a efeito por Pereira, Santos e Ramalho (1999) sobre a adaptao gravidez explorou variveis como o relacionamento conjugal, o apoio social e o coping (a partir do sentido de coerncia) e a relao destas variveis com a sade fsica e psicolgica da grvida. Mostrou que o coping (avaliado atravs do sentido de coerncia) parece ter um efeito mediador nos factores de risco para a sade fsica e psicolgica da mulher e confirmou que a sintomatologia psicopatolgica (medida pelo BSI Brief Simptoms Inventory) tanto menor quanto maior o apoio social, o relacionamento conjugal e mais adequadas as estratgias de coping.

    O relacionamento conjugal e o apoio social mostraram-se positiva e significativamente correlacionados neste estudo mas, segundo Cranley (1981), um sistema

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    de apoio social forte no se limita s relaes conjugais e, para Belsky (1984), as relaes conjugais so apenas um dos aspectos do sistema de apoio.

    Pereira et al. (1999), ainda no estudo atrs referido, mostraram que as mulheres com boa relao conjugal vm o seu coping diminudo quando o companheiro reage negativamente gravidez. Quando a relao conjugal insatisfatria, a reaco do companheiro no condiciona o coping da mulher e, nas mulheres que tm coping elevado, o relacionamento conjugal deteriora-se quando os maridos/companheiros reagem mais ou menos gravidez, ou no sabem como reagir. Quando o coping das mulheres baixo e estas reagem mal gravidez, o relacionamento conjugal deteriora-se.

    No mesmo estudo, verificou-se que o relacionamento conjugal se agrava na presena de complicaes na gravidez quando o coping elevado e que melhora ou prospera, na ausncia dessas complicaes. Quando o coping baixo, a ocorrncia de complicaes na gravidez associa-se a uma melhoria no relacionamento conjugal.

    necessrio compreender a gravidez como um momento de crise maturativa da vida, envolvida em profundas mudanas psicolgicas e somticas, durante a qual so despertados conflitos latentes e sensaes de angstia, de modo a configurar uma transformao identitria, cuja finalidade tornar a mulher em me (Benedek, 1959; Bibring, 1959; Bibring et al., 1961; Colman & Colman, 1994; Deutsch, 1944; Golse, 2007).

    A gravidez no apenas uma passagem do tempo, pelo contrrio, segundo a perspectiva desenvolvimental, situa-se na interface entre o risco e a psicopatologia. As competncias prvias da pessoa, neste caso da grvida, oferecem maior possibilidade de ter disposio e de mobilizar recursos adaptativos, internos e externos, para se confrontar e lidar adequadamente com a nova exigncia desenvolvimental. Estes recursos so orientados pela interaco entre os factores protectores do indivduo, o contexto familiar e o contexto social a resilincia, que promover uma adaptao bem sucedida (Soares, 2000).

    1.3.1. Transformaes da identidade

    A maioria dos autores unnime em considerar que a gravidez e a maternidade transformam a mulher. Esta no voltar a ser a mesma pessoa pois, enquanto grvida, encontra-se perante um trabalho interno redobrado, de integrao de duas identidades, individual e social. A mudana no deve atemorizar, mas tambm no deve ser vivida de

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    nimo leve (e.g., Benedek, 1959; Bibring, 1959, Bibring et al., 1961; Colman & Colman, 1994; Deutsch, 1944; Golse, 2007; Stern & Stern, 2005).

    O conceito de identidade fundamental na obra de Erikson (1971). Na sua perspectiva, a identidade do ego (ego como responsvel pelo trabalho de seleco e integrao que origina o sentimento de identidade) resulta de um processo relacionado com o indivduo mas tambm com a sociedade.

    As mudanas na identidade iniciam-se desde que a mulher percebe que est grvida, pois deixa de ser uma pessoa singular e passa a viver com todas as alteraes que a condio de ser me implica. As tarefas de reavaliao e de reestruturao da identidade (Canavarro, 2001) ou de integrao da identidade parental (Colman & Colman, 1994) fazem parte do processo desenvolvimental da mulher, neste perodo da sua vida.

    Stern e Stern (2005) consideram que pouco se tem escrito acerca do mundo interior onde formada a nova identidade da mulher que vai ser me. Segundo os autores, esta organizao psquica no nasce num momento nico determinado. Vai emergindo gradualmente, a partir do trabalho desenvolvido ao longo dos meses que antecedem e que se seguem ao nascimento do beb, trabalho este conseguido no interior da mulher, na construo de uma estrutura psquica, um reino de experincias profundas e privadas (Idem, p. 11), dando forma a uma nova identidade - o significado de ser me.

    Na opinio dos autores supracitados, na mulher que vai ser me, surge uma organizao psquica materna que actuar como estrela polar na orientao da sua vida. No se trata apenas da reorganizao da sua vida mental, mas de uma organizao totalmente nova que co-existir e, muito provavelmente, influenciar a anterior. Quando a mulher se torna me, a organizao psquica pr-existente passada para segundo plano, avanando a nova organizao psquica que vai preencher o centro da sua vida interior. Isto pode durar semanas, meses ou anos e pode ser determinado por condies externas, por realidades prticas e at econmicas.

    Ainda de acordo com os mesmos autores, esta nova organizao psquica materna permanece ao longo da vida, nem sempre ocupando uma posio central e nunca desaparece. Fica em segundo plano, pronta a avanar sempre que seja necessrio. Assim, a organizao mental especfica da maternidade, profunda e contnua, torna-se uma nova e permanente parte da mulher, sendo usada intensivamente no incio da maternidade e, depois, apenas utilizada em determinadas ocasies. A presena constante desta organizao psquica, tanto em primeiro como em segundo plano, transforma a mulher, como me, num ser humano nico, no previsto pelas teorias psicolgicas j existentes.

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    1.4. Manifestaes psicofisiolgicas da gravidez

    O trabalho psicolgico elaborado pela mulher no decorrer da gravidez vantajoso no reajustamento da sua vida interior e exterior enquanto futura me. Alguns sintomas fsicos tpicos da gravidez traduzem conflitos emocionais decorrentes do contacto ntimo que a grvida tem com o seu mundo interior, ao qual d agora mais importncia. Embora a investigao psicofisiolgica aponte para a influncia das hormonas sobre o sistema nervoso central e consequentes alteraes psicolgicas (Benedek, 1970), impossvel discriminar, separadamente, as complexas inter-relaes entre os factores hormonais e os psicolgicos. As hormonas parecem no criar emoes ou influenciar a

    qualidade e o contedo de um sentimento, podem sim influenciar a intensidade dos mesmos, cuja qualidade e contedo dependem do contexto, na vida interior e exterior da grvida (Colman & Colman, 1994). Para conhecer as manifestaes psicofisiolgicas mais relevantes da gravidez, medida que esta se desenrola no interior da mulher, segue-se uma diviso em trimestres que embora no sejam estanques, nem psicologicamente estveis (Justo et al., 1999), tal como j antes referimos, facilitam a compreenso, indo ao encontro da maioria dos autores.

    O Primeiro Trimestre Neste primeiro perodo de gravidez, as experincias emocionais da mulher parecem

    ser determinadas pelas modificaes fisiolgicas intensas que criam um stress psicolgico especial e cuja adaptao demora o seu tempo (Rof, Blittner, & Lewin, 1993). Os clnicos consideram que estas respostas fisiolgicas so consequncia das alteraes hormonais prprias da gravidez mas sabem que o seu significado vem do interior da mulher.

    Quando se d conta que vai ser me, a mulher fica preocupada com as outras figuras maternais da sua vida e questiona-se a vrios nveis, como futura me e aos cuidados a que esteve sujeita por parte da prpria me. Esta preocupao tende a desaparecer no incio do segundo trimestre (Colman & Colman, 1994).

    O acontecimento mais relevante deste trimestre a descoberta da gravidez e tem um papel fundamental no incio da relao me-filho (S, 1997), na rede de intercomunicao familiar (Maldonado, 1991) e na vivncia bsica da gravidez, com a modificao relevante do funcionamento psicolgico da mulher (Colman & Colman, 1994). De acordo com esta perspectiva, muito importante que os dois processos gravdicos, o do tero e o do espao mental, se encontrem o mais cedo possvel.

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    Aps a descoberta da gravidez, e durante o primeiro trimestre, a ambivalncia afectiva sentida pela mulher est presente e tem uma dimenso importante. Segundo Langer (1986), todas as gravidezes produzem uma situao de maior ou menor conflito e, na opinio de Maldonado (1991), no existe uma gravidez totalmente aceite ou totalmente rejeitada e a predominncia de um sentimento no anula o sentimento oposto.

    Os primeiros sintomas a expressarem a ambivalncia so as oscilaes de humor e a sensibilidade aumentada que correspondem a uma simultaneidade ou alternncia de alegria, apreenso, irrealidade e, at por vezes, uma certa rejeio pelo feto. Esta labilidade emocional pode ter a sua origem na descoberta de uma nova situao que exige responsabilidades e aprendizagem, podendo, em consequncia, aumentar a sensibilidade e a irritabilidade da mulher (Maldonado, 1991). Segundo Justo et al. (1999), a oscilao da ansiedade e dos mecanismos de defesa tornam este trimestre um perodo muito instvel que se demarca dos dois trimestres seguintes.

    Os sintomas ou manifestaes comportamentais que ocorrem neste perodo, mostram como a gravidez pode ser imprevisvel (Idem). So as alteraes do funcionamento onrico (hipersnia e contedo dos sonhos), do funcionamento gstrico (nuseas e vmitos; desejos e averses a alimentos e/ou bebidas, isto , distrbios do apetite) e do relacionamento sexual (alteraes no desejo) que desaparecem, habitualmente, antes do meio da gravidez (Colman & Colman, 1994; Deutsch, 1974; Justo, 1994; Justo et al., 1999; Maldonado, 1991; Soifer, 1991).

    A severidade das nuseas e dos vmitos, nas primeiras 12 semanas de gestao, est associada presena de uma dieta inadequada, com refeies escassas e abundantes, mas tambm com uma comunicao medocre com o cnjuge; com uma comunicao deficiente com o obstetra; o stress; dvidas e informaes incorrectas sobre a gravidez, parto e sade do feto (Iatrakis, Sakellaropoulos, Kourkoubas, & Kabounia, 1988).

    A alterao do funcionamento psicolgico pode justificar-se a partir do investimento que a mulher passa a fazer em si mesma, em detrimento dos investimentos emocionais anteriormente colocados nas suas relaes sociais, familiares e conjugais, envolvendo ganhos e perdas. Nesta altura, a mulher "(...) comear um imperceptvel processo de desinvestimento no seu meio exterior e nas suas relaes habituais. Preocupando-se cada vez mais com o seu beb e com o desenvolvimento dos seus atributos maternos, a futura me incrementa necessariamente o seu interesse narcsico por si prpria e pela unidade me-feto" (Justo, 1994, p. 126).

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    O Segundo Trimestre Do quarto ao sexto ms, desenrola-se o segundo trimestre da gravidez constitudo

    pelos chamados meses calmos (Colman & Colman, 1994), ou a fase emocionalmente mais estvel (Maldonado, 1991; Justo et al., 1999). A mulher acredita agora na sua gravidez, no tem sintomas fsicos incmodos e j no h ameaa de aborto. Neste trimestre, o acontecimento mais importante para a grvida a percepo e a interpretao dos movimentos fetais. Salientam-se, tambm, as alteraes da imagem corporal e do contedo onrico.

    Soifer (1991), ao contrrio dos autores supracitados, afirma que, neste perodo, a ansiedade dominante levando a distores da percepo dos movimentos fetais, caracterizada pela sua negao at uma etapa tardia da gravidez ou pela projeco acerca desses movimentos como intensos e violentos. Maldonado (1991) considera que a percepo que a grvida tem dos movimentos do seu beb (suaves ou violentos) corresponde maneira como o percebe e s caractersticas que lhes atribui. No h predomnio da ansiedade neste trimestre, mas a ansiedade pode tornar-se predominante conforme a representao que a me tem acerca destes movimentos.

    Para a maior parte das mulheres, sentir o beb uma forma de gratificao pelo mal-estar que passaram nos primeiros meses contribuindo para os sentimentos de personificao do feto. A percepo dos movimentos fetais favorece a aceitao da gravidez, caso esta ainda no tenha ocorrido. Embora todas as mes sintam os movimentos fetais, h mulheres que parecem muito insensveis a estes movimentos. Provavelmente, no ser falta de sensibilidade, mas medo, pois as mes que tm muito medo de fazer mal ao beb tm muita dificuldade em falar dos movimentos do feto (Piontelli, 1995), podendo neg-los.

    Os movimentos fetais so indicadores do bem-estar fetal. A identificao da mudana na actividade fetal e a contagem de movimentos ajudam a reduzir a possibilidade de nascimento de nados-mortos. Esta circunstncia pode ser geradora de ansiedade na me, que se mantm alerta, medida que a gravidez avana. O impacto dos movimentos fetais no futuro pai, que habitualmente reage com satisfao ao tentar senti-los atravs do ventre da mulher, produz a mobilizao da inveja pela impossibilidade de sentir o feto desenvolver-se dentro de si (Maldonado, 1991). A imagem do corpo um outro aspecto fundamental vivido durante a gravidez. Neste trimestre, as mudanas corporais tornam-se evidentes e podem ser fonte de preocupao na mulher ao aperceber-se, nesta altura, que no controla totalmente essas

  • Vinculao pr-natal e organizao psicolgica do homem e da mulher durante a gravidez

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    mudanas pois elas so causadas pelo beb (Colman & Colman, 1994). Essas modificaes corporais podem ser sentidas por umas mulheres com orgulho pelo corpo grvido e, por outras, com incmodo ou como uma deformao que ocasiona dificuldades na relao com o companheiro, nomeadamente em termos sexuais. O receio da irreversibilidade da forma do corpo tem um significado simblico profundo, de modificao de si prpria como pessoa, pela experincia da maternidade, de perder a identidade anterior e de se transformar numa outra pessoa, com mais perdas do que ganhos (Maldonado, 1991). Apesar disso, para as mulheres, o aumento de peso mais aceitvel na gravidez do que fora desta (Davies & Wardle, 1994). Estes estudaram a imagem do corpo e a dieta na gravidez e concluram o seguinte: o papel de grvida, observado pela imagem do corpo, confere aceitao e respeito; as grvidas controlam muito menos o peso do que as no grvidas; as grvidas sentem-se menos insatisfeitas com o tamanho da massa corporal do que as no grvidas e a escolha de ideal de corpo para estas mulheres continua a ser o corpo no grvido. As modificaes na forma do corpo esto ligadas a alteraes da sexualidade por parte da mulher mas tambm atitude do marido face a essas modificaes. Neste perodo h registo de mulheres que dizem ter melhoria da sexualidade e sexualidade acrescida (Caplan, 1960; Colman & Colman, 1994; Master & Johnson, 1966).

    Neste trimestre, a mulher fica mais calma, retrada e concentrada em si mesma, sentindo necessidade de receber mais afecto, carinho e ateno, sobretudo por parte do marido (Maldonado, 1991). Perante o medo de no conseguir controlar as alteraes da gravidez, a grvida sente necessidade de algum que tome conta dela, podendo fazer um movimento de regresso, com transferncia da dependncia face me para a dependncia face ao companheiro (Colman & Colman, 1994).

    A mulher faz uma reavaliao da sua relao emocional, necessria para que se d a reintroduo do beb na relao. Este o momento oportuno para a primpara reavaliar as relaes crticas da sua vida, coisa que a multpara j ter feito na sua primeira gravidez e, porventura, em gravidezes seguintes se as houve (Zimmermann, Bertagni, Siani, & Micciolo, 1994). Durante este trimestre, o contedo onrico relaciona-se com algo que est a acontecer a outra pessoa, ou sobre um estranho. A mulher pode ficar pela primeira vez assustada (Colman & Colman, 1994). Este estranho, na opinio de Justo (1994), mais no que o objecto para o qual a mulher transferiu a sua dependncia - o marido, sendo necessrio consolidar o seu apoio. "O marido passa a constituir o garante da reserva de recursos necessrios para enfrentar a ameaa que a vem" (Idem, p. 135).

  • Captulo I - Experincia psicolgica na gravidez e transio para a parentalidade

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    As alteraes do sono e dos contedos onricos oferecem uma perspectiva importante na compreenso dos desafios da gravidez, dos conflitos no resolvidos e do desenvolvimento precoce de problemas. As fantasias e os sonhos desvendam alteraes no funcionamento psicolgico. "Os sonhos parecem invadir a imaginao medida que o feto ocupa o abdmen" (Colman & Colman, 1994, p. 49).

    Ablon (1994) mostrou a importncia dos sonhos durante a gravidez e de que forma estes facilitam o trabalho de anlise a longo prazo. Segundo Mancia (1990), um sonho uma espcie de pensamento totalmente dirigido ao mundo interior, numa continuao do pensar da vida diurna, povoada de fantasias inconscientes.

    O Terceiro Trimestre A partir desta altura, o beb pode nascer a qualquer momento, com viabilidade e a

    mulher comea a preparar-se para o parto, o que significa a preparao para a separao.

    Estamos num tempo de fantasias intensamente dirigidas caracterizao do filho, com atributos fsicos e psicolgicos prprios, que possibilitam a separao (Salvatierra, 1989). Trata-se de uma poca de preocupao quanto ao parto, de receios quanto possibilidade de cuidar do beb ou de ser uma boa me (Soifer, 1991).

    Rof et al. (1993) afirmaram que a ansiedade e os distrbios emocionais se tornam os sintomas mais significativos desta poca. No entanto, Justo et al. (1999) sinalizam o terceiro trimestre como um perodo estvel no que se refere ansiedade e aos mecanismos de defesa. Neste trimestre, a grvida volta ao estado de ambivalncia, para alm dos medos, das alteraes na sexualidade e do funcionamento onrico bem como dos sintomas psicossomticos.

    A ambivalncia deve-se iminncia do termo e angstia que lhe est ligada, relembrada constantemente pelo tamanho do abdmen e pelas contraces uterinas que comeam a dar sinal. Esta ambivalncia manifesta-se pelo desejo simultneo de que o nascimento acontea e de que a criana se mantenha no interior do corpo materno, para prolongar o e