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VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA: ETNOGRAFIA DE UMA COMUNIDADE NO FACEBOOK Clarissa Sousa de Carvalho 1 RESUMO O presente artigo discute a questão da violência obstétrica como violência de gênero e suas imbricações com a construção simbólica do corpo feminino e dos processos de gravidez e parto nas sociedades ocidentais contemporâneas. Partindo do entendimento de que o gênero é uma forma de distribuição de poder na sociedade e de que essa distribuição repercute no acesso e na utilização dos serviços de saúde, bem como nas determinações do sistema saúde/doença, cabe ressaltar a questão da violência obstétrica como uma violência de gênero e, principalmente, como uma violência que muitas vezes passa despercebida pelas vítimas, que entendem procedimentos e técnicas aplicados a seus corpos como “naturais” e necessários. O termo, cunhado no meio acadêmico em 2014, pelo presidente da Sociedade de Obstetrícia e Ginecologia da Venezuela, Dr. Rogelio Pérez D’Gregorio, refere-se a um tipo de violência que ocorre em ambiente hospitalar, principalmente, mas não apenas, no momento do parto. Esse tipo de violência se caracteriza por qualquer ato exercido por profissionais de saúde no que cerne ao corpo e aos processos reprodutivos das mulheres, expresso através de uma atenção desumanizada, abuso de ações intervencionistas, medicalização e transformação patológica dos processos de parturição fisiológicos, bem como a negação do direito de ser informada e de opinar em relação aos procedimentos a serem exercidos em seu corpo. Realizou-se pesquisa etnográfica na comunidade “Vamos falar sobre violência obstétrica?”, no Facebook. Foram analisados relatos de violência obstétrica e os comentários relativos a eles. Para melhor entender o fenômeno da violência obstétrica, foi preciso situar o parto como evento produzido na e pela cultura, inscrevendo-o historicamente no processo de disciplinarização dos corpos e de produção de um saber científico sobre o corpo. Para tanto, buscou-se o aporte teórico de autores como Foucault (1985, 1995, 2009), Martin (2006), Meyer (2005) e Tornquist (2004), dentre outros. 1 Bacharel em Comunicação Social/Jornalismo (UFPI/2003), Mestra em Antropologia e Arqueologia (UFPI/2012), Doutoranda em Comunicação Social (PUC/RJ). Professora do curso de Comunicação Social (UESPI/Picos). E-mail: [email protected]

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VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA: ETNOGRAFIA DE UMA COMUNIDADE

NO FACEBOOK

Clarissa Sousa de Carvalho1

RESUMO

O presente artigo discute a questão da violência obstétrica como violência de gênero e

suas imbricações com a construção simbólica do corpo feminino e dos processos de

gravidez e parto nas sociedades ocidentais contemporâneas. Partindo do entendimento

de que o gênero é uma forma de distribuição de poder na sociedade e de que essa

distribuição repercute no acesso e na utilização dos serviços de saúde, bem como nas

determinações do sistema saúde/doença, cabe ressaltar a questão da violência obstétrica

como uma violência de gênero e, principalmente, como uma violência que muitas vezes

passa despercebida pelas vítimas, que entendem procedimentos e técnicas aplicados a

seus corpos como “naturais” e necessários. O termo, cunhado no meio acadêmico em

2014, pelo presidente da Sociedade de Obstetrícia e Ginecologia da Venezuela, Dr.

Rogelio Pérez D’Gregorio, refere-se a um tipo de violência que ocorre em ambiente

hospitalar, principalmente, mas não apenas, no momento do parto. Esse tipo de

violência se caracteriza por qualquer ato exercido por profissionais de saúde no que

cerne ao corpo e aos processos reprodutivos das mulheres, expresso através de uma

atenção desumanizada, abuso de ações intervencionistas, medicalização e transformação

patológica dos processos de parturição fisiológicos, bem como a negação do direito de

ser informada e de opinar em relação aos procedimentos a serem exercidos em seu

corpo. Realizou-se pesquisa etnográfica na comunidade “Vamos falar sobre violência

obstétrica?”, no Facebook. Foram analisados relatos de violência obstétrica e os

comentários relativos a eles. Para melhor entender o fenômeno da violência obstétrica,

foi preciso situar o parto como evento produzido na e pela cultura, inscrevendo-o

historicamente no processo de disciplinarização dos corpos e de produção de um saber

científico sobre o corpo. Para tanto, buscou-se o aporte teórico de autores como

Foucault (1985, 1995, 2009), Martin (2006), Meyer (2005) e Tornquist (2004), dentre

outros.

1 Bacharel em Comunicação Social/Jornalismo (UFPI/2003), Mestra em Antropologia e Arqueologia

(UFPI/2012), Doutoranda em Comunicação Social (PUC/RJ). Professora do curso de Comunicação Social

(UESPI/Picos). E-mail: [email protected]

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Palavras-chave: violência obstétrica; parto; parturição.

O presente ensaio busca discutir a questão da violência obstétrica como

violência de gênero e suas imbricações com a construção simbólica do corpo feminino e

dos processos de gravidez e parto nas sociedades ocidentais contemporâneas. O

entendimento da gravidez e do parto como fenômenos patológicos é fruto de

desenvolvimentos históricos. Para entender a institucionalização desse evento, que a

partir do século XX passou a exigir saberes científicos, e não mais empíricos, passando

das mãos de parteiras mulheres a médicos homens, é preciso situar o parto como evento

produzido na e pela cultura.

Até o século XVI o conhecimento sobre o corpo feminino se detinha,

sobretudo, quanto à sua capacidade reprodutora. O partejar era de domínio

exclusivo das mulheres, não apenas por ser do âmbito do privado mundo

feminino como principalmente por ser considerado de pouca importância

para que dele se ocupassem os homens (AGUIAR, 2010, p.39).

Badinter (1980) defende que, no último terço do século XVIII, inicia-se uma

revolução das mentalidades. Ocorre uma transformação nas práticas de cuidados

dispensados à crianças, que passam a ter valor inestimável. As mulheres são alçadas à

posição de interlocutoras entre o Estado e a família, e responsáveis pela nação.

Marilyn Yalom (1997) refere-se à “politização do seio feminino” para descrever

o processo que posicionou a mulher, como mãe, no centro das politicas de gestão da

vida nas sociedades ocidentais modernas. Nesse contexto, há um processo de educação

e medicalização dos corpos das mulheres em nome de sua responsabilidade na criação

de filhos saudáveis para a salvação da sociedade.

A medicalização do corpo das mulheres acontece dentro de um contexto maior

de medicalização da vida privada, através de mecanismos de biopoder (FOUCAULT,

2009) que visam o controle populacional, a disciplinarização da força de trabalho e a

higienização dos espaços e das relações sociais. Para Michel Foucault, a partir do século

XVII, opera-se um intenso processo de politização dos corpos, através do qual

desenvolve-se a organização do poder sobre a vida.

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Nos processos em que se exerce o biopoder, acontece, ao mesmo tempo, uma

extensa produção de saber. A produção de um saber científico sobre o corpo se dá

concomitantemente à politização do corpo, que passa a ser objeto de controle. Nesse

contexto, se processa uma medicalização minuciosa dos corpos e do sexo das mulheres

em nome da responsabilidade que elas teriam em relação à saúde de seus filhos, à

solidez da instituição familiar e à salvação da sociedade como um todo (FOUCAULT,

2009).

É ainda no século XVIII que a Medicina se configura como área de saber

técnico-científico, de domínio exclusivamente masculino. A medicalização social ocorre

como dispositivo biopolítico, redescrevendo eventos fisiológicos até então considerados

como naturais. Diante da nova condição de responsáveis pelo bem-estar dos filhos –

pela população, portanto - as mulheres, assim como as crianças, são atingidas

prioritariamente pela medicalização de seus corpos.

A necessidade de controlar as populações, aliada ao fato de a reprodução ser

focalizada na mulher, transformou a questão demográfica em problema de

natureza ginecológica e obstétrica, e permitiu a apropriação do corpo

feminino como objeto de saber (COSTA et.al., 2006, p.368-369).

Assim, ao longo dos séculos XIX e XX, emergem vários discursos sobre

cuidados a serem dispensados aos corpos femininos, principalmente aos corpos de

mulheres-mães. Meyer (2005) entende que a rede discursiva de cuidados específicos

com os corpos das mulheres-mães que se intensifica no Ocidente leva a uma politização

da maternidade, que “atualiza, exacerba, complexifica e multiplica investimentos

educativo-assistenciais que têm como foco mulheres-mães” (p.82), instituindo lugares

específicos para essas mulheres.

A medicalização do corpo das mulheres se mostrou de forma especial nos

processos relativos à gravidez e parto. “Centradas, inicialmente, em uma visão bastante

pessimista da natureza feminina, a obstetrícia e a ginecologia justificarão toda uma série

de inovações científicas (...) que tornaram a mulher um corpo passivo” (TORNQUIST,

2004, p.72).

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Emily Martin (2006) argumenta que a partir do emergência do capitalismo, o

corpo passou a ser visto como uma máquina, uma força de produção. O parto passa a ser

entendido como uma linha de montagem, nos moldes tayloristas, onde seriam

produzidos humanos. A mulher deixa de ser a protagonista do próprio parto, que agora é

comandado pelos médicos. Os saberes femininos relacionados à gestação e parto são

rechaçados em favor dos saberes médico-científicos. Parteiras e comadres, que assistiam

parturientes baseadas em saberes construídos pela experiência própria e pela tradição,

são proibidas de partejar. O fórcepis permite a intervenção masculina e se torna

instrumento de um novo paradigma do parto, agora entendido como um evento

patológico e que deve ser controlado pelo médico homem. O parto assistido por

parteiras passa a ser visto como sinônimo de atraso e rusticidade, enquanto o parto

medicalizado é associado à civilidade.

O declínio da parteira e a ascensão do parto mecanicamente

manipulado e assistido por homens seguiu de perto a grande aceitação

cultural da metáfora do corpo-como-máquina no Ocidente e a

aceitação da metáfora do corpo feminino como uma máquina

defeituosa – uma metáfora que afinal formou a fundação filosófica da

obstetrícia moderna (DAVIS-FLOYD, 2003, p.51)2.

Assim, percebe-se, a partir do século XX, a transformação do parto, que era

entendido como evento fisiológico, natural, feminino e empírico, “em um evento

patológico, que necessita, na maioria das vezes, de tratamento medicamentoso e

cirúrgico, predominando a assistência hospitalar no parto, tornando-o, a partir daí,

institucionalizado” (CRIZÓSTOMO; NERY; LUZ, 2007, p.99), e deslocando a mulher

da posição de sujeito à de objeto do parto.

Vieira (2002) afirma que a medicalização do corpo feminino, objetificado

como corpo reprodutor, naturaliza um papel social de mãe, que é tomado como seu

destino biológico. Para isso, foi preciso construir um ideal de natureza feminina:

2 Tradução minha. No original: The demise of the midwife and the rise of the male-attended,

mechanically manipulated birth followed close on the heels of the wide culturally acceptance of the

metaphor of the body-as-a-machine in the West and the accompanying acceptance of the metaphor of

the female body as a defective machine – a metaphor that eventually formed the philosophical

foundation of modern obstetrics.

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A ideia de “natureza feminina” baseia-se em fatos biológicos que ocorrem no

corpo da mulher – a capacidade de gestar, parir e amamentar, assim como

também a menstruação. Na medida em que essa determinação biológica

parece justificar plenamente as questões sociais que envolvem esse corpo, ela

passa a ser dominante, como explicação legítima e única sobre aqueles

fenômenos. Daí decorrem ideias sobre a maternidade, o instinto maternal e

divisão sexual do trabalho como atributos “naturais” e “essenciais” à divisão

de gêneros na sociedade (VIEIRA, 2002, p.31).

A fim de entender a construção do corpo feminino a partir de sua capacidade

reprodutora, recorremos à categoria gênero, de Joan Scott (1995). A autora afirma que

“o gênero é um elemento constitutivo das relações sociais baseado nas diferenças

percebidas entre os sexos” (p.86). Por outro lado é, também, “uma forma primária de

dar significado às relações de poder” (p.86).

Como elemento constitutivo das relações sociais implica símbolos culturalmente

disponíveis, que evocam representações simbólicas; conceitos normativos, que

expressam interpretações dos significados desses símbolos, expressos nas doutrinas

religiosas, educativas, científicas e que afirmam o significado do masculino e do

feminino; inclusão de uma noção de política assim como uma referência às instituições

e à organização social nas análises de gênero; e a identidade subjetiva, que analisa

como são construídas e a relação com organizações sociais e representações culturais.

Gênero é “um campo primário no interior do qual, ou por meio do qual, o poder

é articulado” (SCOTT, 1995, p. 89). Embora não seja o único campo, parece ter

constituído uma forma persistente de possibilitar a significação do poder no ocidente,

nas tradições judaico-cristãs e islâmicas. Baseando-se em Pierre Bourdieu, a autora

afirma que, à medida que as diferenças de gênero estruturam a percepção e a

organização simbólica de toda a vida social e estabelecem distribuições de poder

(controle ou acesso diferencial a recursos materiais e simbólicos), o gênero se articula à

concepção e à construção do próprio poder.

BARATA (2012) chama a atenção para a utilização do conceito de gênero na

área de saúde

para marcar características próprias aos comportamentos de grupos de

sujeitos sociais e para estabelecer o contraste entre masculino e feminino,

mas, prinmcipalmente, para enfocar as relações que se estabelecem entre

masculino e feminino no âmbito social e que apresentam repercussões para o

estado de saúde e para o acesso e utilização dos serviços de saúde (p.73).

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Partindo do entendimento de que o gênero é uma forma de distribuição de poder

na sociedade e de que essa distribuição repercute no acesso e na utilização dos serviços

de saúde, bem como nas determinações do sistema saúde/doença, cabe ressaltar a

questão da violência obstétrica como uma violência de gênero, como violência contra a

mulher e, principalmente, como uma violência que muitas vezes passa despercebida

pelas vítimas, que entendem procedimentos e técnicas a ela aplicados como “naturais” e

necessários.

Mas é preciso, primeiro, esclarecer o que queremos dizer com “violência

obstétrica”. O termo refere-se a um tipo de violência contra a mulher que ocorre em

ambiente hospitalar, principalmente, mas não apenas, no momento do parto. Podemos

dizer que esse tipo de violência se caracteriza por qualquer ato exercido por

profissionais de saúde no que cerne ao corpo e aos processos reprodutivos das mulheres,

expresso através de uma atenção desumanizada, abuso de ações intervencionistas,

medicalização e transformação patológica dos processos de parturição fisiológicos, bem

como a negação do direito de ser informada e de opinar em relação aos procedimentos a

serrem exercidos em seu corpo (JUAREZ et al; 2012).

O termo foi cunhado no meio acadêmico em 2014, pelo presidente da Sociedade

de Obstetrícia e Ginecologia da Venezuela, Dr. Rogelio Pérez D’Gregorio, em editorial

do Journal of Gynechology and Obstetrics. É, portanto, um termo novo que nomeia um

tipo de violência bastante antigo, mas que passa, ou passava, despercebido devido ao

entendimento cultural do corpo feminino como destinado ao sofrimento no momento do

parto, o que justifica diversas práticas médicas que vieram a reboque da hospitalização

do parto.

Em 2013, o Estado venezuelano reconheceu em lei3 a existência deste tipo de

violência, tipificando-o e determinando pena específica para os perpetradores de

violência obstétrica. No Brasil, os debates sobre o assunto têm acontecido

principalmente no âmbito do Movimento pela Humanização do Parto e do Nascimento.

A publicização de casos de violência obstétrica compõe a agenda de movimentos pelos

3 Ley Orgánica sobre el derecho de las mujeres a uma vida libre de violência.

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direitos reprodutivos e sexuais principalmente a partir da divulgação de pesquisa4, em

2010, em que foi constatado que uma em cada quatro mulheres brasileiras relatam ter

sofrido maus-tratos durante trabalho de parto e parto (PULHEZ, 2013). Embora seja

ainda pouco conhecido, o termo tem ganhado espaço nas mídias sociais, como

Facebook e blogs maternos e já começa a chamar atenção também de instituições

públicas responsáveis pela garantia de direitos dos cidadãos e também pela saúde

pública.

A Defensoria Pública do Estado de São Paulo, reconhecendo esse tipo de

violência, lançou em 2014 uma cartilha educativa sobre assunto. Embora a violência

obstétrica não exista de forma tipificada na lei brasileira, esse é um importante passo

para seu reconhecimento jurídico.

O material, desenvolvido pelo Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos

Direitos da Mulher da Defensoria, pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de

São Paulo e pela Ong Artemis, caracteriza a violência obstétrica como:

Apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres por

profissionais de saúde, através de tratamento desumanizado, abuso de

medicalização e patologização dos processos naturais, causando a perda da

autonomia e capacidade de decidir livremente sobre seus corpos na

sexualidade (p.1)

O parto medicalizado como evento ritualístico – a eficácia simbólica da tecnologia

médica

Robbie Davis-Floyd (2003) recorre à concepção de rito de passagem do

antropólogo Van Gennep (2011) para analisar o parto hospitalar. A partir do

entendimento de que a ciência, a medicina e a tecnologia são também sistemas de

crença, Davis-Floyd defende que, ao invés de haver eliminado os aspectos ritualísticos

do parto, a medicalização do mesmo levou a um exagero desses aspectos:

Ao contrário, eu sugiro que o deslocamento do nascimento para o

hospital resultou na proliferação de rituais em torno desse evento

4 Fundação Perseu Abramo & SESC. Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado, 2010.

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natural fisiológico mais elaborados que qualquer um conhecido até

hoje no mundo “primitivo”. Esses rituais, também conhecidos como

“procedimentos padrão para parto normal”, trabalham para

efetivamente transmitir os valores centrais da sociedade americana

em relação ao parto (DAVIS-FLOYD, 2003, p.3)5.

Os valores chave da sociedade tecnocrática e industrial seriam reforçados no

parto hospitalar: a separação corpo e mente, a submissão da mulher, a priorização da

tecnologia em detrimento de outras formas de assistência, o caráter patológico do parto.

A cesariana seria a forma mais completa de ilustrar esses valores,

uma vez que neste caso a mulher se submete a uma cirurgia da qual

não participa enquanto sujeito, sendo apenas um objeto na mão dos

cirurgiões, e todas as etapas do ritual estão carregadas dos símbolos

da sociedade tecnocrática (TORNQUIST, 2004, p.300).

Sheila Kitzinger (1996) argumenta que as maternidades modernas, assim como

as comunidades camponesas, têm sua cultura própria e seus rituais. Segunda a autora, a

relação médico-paciente é sempre assimétrica, uma vez que o detentor dos

conhecimentos que possibilitarão o parto é o médico, ao qual a mulher se submete de

forma passiva, ao contrário do que acontece nas sociedades pré-industriais.

O ritual de parto começa com a admissão da mulher no hospital: marido e

mulher são separados, e a mulher passa pela preparação que consiste por um lado no

registro de dados clínicos sobre a mulher e o feto, e por outro lado, em “ritos

predominantemente cerimoniais: rapar os pelos púbicos, clister, banho, vestir a camisola

de noite impessoal do hospital e ir para a cama”(KITZINGER, 1996, p.129).

A separação da mulher e sua despersonalização a partir da rotina de tirar suas

roupas e adereços fazem parte do ritual moderno de parto hospitalar. A rotina médica de

raspar os pelos pubianos é entendida por Kitzinger (1996) e outros estudiosos de

antropologia do parto, como Tornquist (2004) e Davis-Floyd (2003), como uma forma

de assexuar a paciente, justificando sua execução como ato meramente ritual, uma vez

que “(...) que não há qualquer prova de que rapar o períneo reduza a quantidade de 5 Tradução minha. No original: On the contrary, I suggest that the removal of birth to the hospital has

resulted in a proliferation of rituals surrounding thus natural physiological event more elaborate than

any heretofore known in the “primitive” world. These rituals, also known as “Standard procedures for

normal birth”, work to effectively convey the core values of American society to birthing women.

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bactérias da pela mas, na realidade, há indícios de que a possibilidade de infecções

secundárias aumentem porque a lâmina raspa as células da superfície, permitindo assim

a introdução de bactérias” (KITZINGER, 1996, p.130-131).

Outra forma de despersonalização da área genital da mulher é a rotina de isolar a

parte de baixo de seu corpo com panos, de forma que a vagina fica visível apenas para o

médico e demais profissionais envolvidos no parto, e não para a mulher. A ideia de que,

ao isolar a parte de baixo do corpo da mulher, cria-se um campo esterilizado para

manipulação médica é visto por Kitzinger (1996) como uma “ficção conveniente, por

meio da qual ele assegura os seus direitos e insiste em que a mulher não toque no seu

próprio corpo, que lhe fica fora do alcance” (p. 131).

O uso de tecnologia de imagem é também rotina nos hospitais modernos, com

monitoramento das condições da parturiente e do feto, através de aparelhos que medem

a intensidade das contrações, batimentos fetais e outros sinais da evolução do trabalho

de parto. Os sinais que obstetras e demais profissionais recebem e interpretam não vêm

diretamente da mulher, mas de monitores e outras máquinas.

Não só as máquinas se tornaram o centro da atenção, mas também

imobilizaram a parturiente, que não se pode pôr de pé e caminhar, ou

mesmo mudar de posição na cama; pelo contrário nas sociedades pré-

industriais as parteiras encorajam-nas a adoptar várias posições e a

moverem-se a fim de facilitarem a descida da cabeça do bebé. Na

nossa sociedade, as modificações de comportamento durante o parto

foram aceites como necessárias devido à maquinaria, sem que

houvesse qualquer investigação sobre os possíveis efeitos dessas

transformações (KITZINGER, 1996, p. 134).

A posição tradicionalmente adotada pela mulher no parto hospitalar ocidental é

sintomática da relação entre obstetra e paciente. “Só na nossa civilização tecnológica do

Ocidente a parturiente tem de ficar deitada de costas com as pernas no ar, numa posição

psicologicamente desvantajosa pra fazer força” (KITZINGER, 1996, p.134). A posição

deitada favorece a intervenção do obstetra, mas dificulta o processo fisiológico de parir,

que se dá de forma mais fácil e rápida em posição vertical ou de cócoras.

O uso rotineiro de episiotomia – incisão feita no períneo para alargar a via de

passagem do bebê – é também uma forma de facilitar o parto para a equipe médica, que

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pode apressar a expulsão do bebê, resultando em pontos e em uma cicatrização

frequentemente dolorosa.

É uma mutilação ritual pela qual tem de passar a maioria das

mulheres na nossa sociedade, a fim de serem mães. Embora seja

evidente que algumas mulheres precisam dessa intervenção e que

alguns bebés têm que nascer depressa, a episiotomia de rotina

praticada em 100% das mulheres, tal como acontece hoje em dia nos

Estados Unidos, é efectuada por ser o obstetra que comanda o parto e

porque ele quer o trabalho acabado tão rápida e eficientemente quanto

possível, sem perder tempo nem confiar nos caprichos da natureza, ou

em ritmos biológicos que não se conjugam com horários hospitalares

(KITZINGER, 1996, p. 134).

Para Davis-Floyd (2003) a prática rotineira de episiotomia em parturientes se

justifica em parte pelo fato de que a cirurgia é o núcleo central da medicina ocidental: “a

legitimação da obstetrícia necessitou da transformação do parto em um procedimento

cirúrgico” (p.130)6. A rotinização dessa prática se justifica também por reforçar a

mensagem de que o corpo feminino é uma máquina defeituosa que não pode fornecer o

produto (bebê) sem a ajuda do homem e da tecnologia.

Internet como esfera pública: relatos de violência obstétrica

Embora ainda não haja no Brasil uma tipificação jurídica desse tipo de violência,

a exemplo de países como Argentina e Venezuela, percebe-se nos ambientes de internet

uma publicização de casos e um questionamento de práticas rotineiras da assistência à

gravidez e parto. Pode-se pensar a internet como uma esfera pública digital, onde

anseios, reivindicações e demandas são expostas e compartilhadas.

Sem desconsiderar que o acesso à internet e aos saberes dos quais dependem seu

uso não acontece de forma democrática, principalmente em se tratando de países em

vias de desenvolvimento, como o Brasil, torna-se relevante perguntar de que maneiras

grupos organizados se utilizam dessa infraestrutra tecnológica, ou mesmo se organizam

através dela, para publicizar discursos que não encontram espaço nas mídias tradicionais

6 Tradução minha. No original: (…) the legitimization of obstetrics necessitated the transformation of

childbirth into a surgical procedure.

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e debater demandas sociais de grupos específicos com pouco ou nenhum espaço na

agenda pública. Para Massimo Di Felice (2012), “o que se manifestou foi a assunção,

através do uso de uma nova tecnologia comunicativa, de um novo protagonismo

sociopolítico emerso da descentralização das redes” (p. 35).

Rousiley Maia (2014) destaca que na sociedade contemporânea emergem

variadas possiblidades democráticas de representação na esfera civil, a fim de defender

interesses e anseios de grupos étnicos ou de minorias de gênero ou sexuais, entre outros.

(...)novos vocabulários precisam ser criados, a fim de problematizar o que antes não

era reconhecido como problema, no contexto social. (...) Particularmente em casos

em que não há direitos garantidos, algo moralmente relevante, porém ainda não

tematizado, precisa ser mostrado, revelado como injustiça enraizada nas regras de

convivência ou nos arranjos institucionais mais gerais da sociedade (MAIA, 2014,p.

83).

A apropriação do ciberespaço, de forma organizada nas diferentes estruturas,

orquestrada com outras ações de natureza política, parece ser uma maneira que grupos

minoritários encontram para se fazer visíveis e levar suas demandas e necessidades para

a esfera política de decisão.

É a partir dos discursos construídos pelas experiências cotidianas de pessoas que

se consideram afetadas por algum tipo de injustiça que se constroem formas de

representação legítima. No entanto, a experiência subjetiva dos indivíduos não é

suficiente para a justificação na esfera pública.

(...)é preciso criar discursos abstratos e gerais de justificação que possam, inclusive,

ser representados politicamente em ambientes legislativos e executivos. Defendo o

argumento de que a geração de legitimidade deve ser buscada, sobretudo, através de

práticas discursivas contínuas (MAIA, 2014, p.81).

A autora entende ainda que os representantes informais são os que desenvolvem

recursos e uma estrutura de oportunidades para sustentar o debate na esfera pública.

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Dessa forma, buscam dar visibilidade para questões até então negligenciadas de modo a

exercer influência contra ou dentro do Estado.

A partir do entendimento dos grupos pró humanização do parto como

minoritários em relação a uma cultura de assistência ao parto hegemônica

(medicalizada, intervencionista, patologizante, tecnocrática), aventamos que a

comunidade do Facebook “Vamos falar sobre violência obstétrica?” se organiza de

forma política, em busca de trazer visibilidade às suas causas e promover mudanças nas

esferas decisórias relativas à saúde reprodutiva feminina. Daí a importância de se buscar

o entendimento dos discursos sustentados por esse grupo e das possibilidades de

influência nas esferas decisórias.

Carneiro (2011) chama atenção para a importância do ciberespaço no

Movimento de Hukanização do Parto e do Nascimento. Entre suas informantes,

frequentadoras de cursos de preparação para o parto humanizado, a maioria tinha

ouvido falar de parto humanizado pela internet, por meio de sites, blogs e redes sociais.

O mundo cyber parecia operar como difusor e aglutinador de adeptas de

outros modos de parir e, somado ao letramento e ao acesso ao mundo digital,

vinha também um “capital cultural” ou “capital crítico”, no sentido da

existência de uma postura crítica perante o sistema de saúde do país, modelo

médico, sistema político e resguardo dos direitos sociais e individuais (p.80).

Cabe questionar, portanto, se o ciberespaço não seria locus de expressão e

construção de discursos, ao nível do indivíduo, a partir das trocas de experiências e

saberes, e também ao nível coletivo, ao facilitar a articulação dessas demandas com as

agendas públicas relativas à saúde reprodutiva feminina.

Ao entender, com Castells (1999), que há um novo espaço que adquire

importância cada vez maior na estruturação das relações sociais, um espaço como uma

instância de fluxos que se organiza a partir de conexões e não localizações, defendemos

que “o campo da etnografia poderia converter-se no estudo dos espaços de fluxos, e

estruturar-se em torno das conexões mais que sobre lugares concretos e delimitados”

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(HINE, 2000, p. 77).7 No entanto, as peculiaridades das interações que se operam no

ciberespaço trazem desafios metodológicos à aplicação da etnografia.

Para Christine Hine (2000) a metodologia de uma etnografia é inseparável dos

contextos/objetos específicos e por isso deve ser considerada a partir de uma perspectiva

adaptativa que reflete sobre o método. Ao pesquisar cibercultura, é preciso adotar uma

postura etnográfica que faça “justiça à riqueza e complexidade da Internet, uma vez que

advoga pela experimentação dentro de um gênero que responde a situações inteiramente

inovadoras” (HINE, 2000, p. 23).8

A autora sustenta, assim, que a etnografia virtual deve problematizar o uso

próprio da internet. “O status da rede como forma de comunicação, como objeto dentro

da vida das pessoas e como lugar de estabelecimento de comunidades, sobrevive através

dos usos, interpretados e reinterpretados, que se fazem dela” (HINE, 2000, p.80).9

Assim, busca-se apreender não apenas os processos de significação dos conteúdos

postados na página em estudo, mas também problematizar o uso da internet como meio

de divulgação, discussão e deliberação democráticas, e como locus de

compartilhamento de experiências relativas ao poder de decisão de mulheres nos

processos relacionados à gestação e parto.

Compartilhamento de experiências e criação de uma gramática da violência na

comunidade “Vamos falar sobre violência obstétrica?”

A página “Vamos falar sobre violência obstétrica”, do Facebook, se

propõe a receber relatos de maus tratos durante situações de gravidez e parto. O header

da página, bem como avatar, aponta para o propósito do protagonismo da mulher nos

processos reprodutivos femininos.

7 Tradução minha. No original: “(…) el campo de la etnografía podría convertirse en el estudio de

espacios de flujos, y estructurarse alrededor de las conexiones más que sobre lugares concretos y

delimitados”

8 Tradução minha. No original: “(...) justicia a la riqueza y complejidade de Internet, a La vez que aboga

por la experimentación dentro de um género que responde a situaciones enteramente novedosas”

9 Tradução minha. No original: “El estatus de la Red como forma de comunicación, como objeto dentro

de La vida de lãs personas y como lugar de establecimiento de comunidades, pervive a través de los

usos, interpretados y reinterpretados, que se hacen de ella”

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Figura 1 – Header e avatar da página

Na descrição curta, lê-se: “Página dedicada a dar visibilidade e combater a

violência obstétrica. Publique aqui seu relato, assinado ou de forma anônima”, o que

mostra a intenção clara de ser um fórum de compartilhamento de experiências entre

mulheres vítimas de V.O.

A descrição longa traz uma explanação sobreviolência obstétrica e

exemplos de procedimentos que constituem V.O. Além disso, aponta para a alta

incidência de casos no Brasil:

Problema que atinge uma em cada quatro mulheres, a Violência Obstétrica

está presente rotineiramente nos hospitais. Essa violência, sofrida durante a

gestação, o parto e o período pós parto, fere a autonomia da mulher sobre

seu próprio corpo e o direito de ser protagonista no próprio parto. (...) A

violência obstétrica se caracteriza por ações e omissões que envolvem o

tratamento desumanizado, o abuso de medicalização, a patologização de

processos naturais e a perda da autonomia e da capacidade das mulheres de

decidir livremente sobre seus corpos. A ideia de que a relação entre médico e

paciente é uma relação de obediência a torna ainda mais sujeita à

impunidade, fator que tira o protagonismo da mulher sobre o próprio parto e

contribui para a perda de seu empoderamento, além de permitir que más

condutas deixem de ser questionadas, como a imposição desnecessária da

cesárea ou a prática da episiotomia de rotina. (Grifo nosso)

Percebe-se no trecho acima a ênfase na questão da autonomia e poder de decisão da

mulher sobre o próprio corpo e seus processos, apontando claramente para uma questão

de gênero. No trecho abaixo, fica ainda mais claro o entendimento de que uma cultura

machista se impõe sobre os corpos das mulheres, subjugando-as e levando-as a acreditar

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nas violências sofridas como “naturais” ou “normais”, através de uma operação

discursiva que institui um lugar específico (e subalterno) para a mulher-mãe:

Apesar do alarmante número de ocorrências, o de denúncias ainda é baixo.

Assim como acontece em casos de estupro, a vítima é culpabilizada pela

violência que sofreu. O parto ainda é visto por muitos como um momento de

penitência ou sofrimento pelo sexo praticado, pensamento baseado em

noções patriarcais. O machismo, novamente, tenta controlar o corpo da

mulher, nesse caso interferindo na medicina e em nossos partos e gestações.

A comunidade se propõe a ser um local de compartilhamento de experiências entre

mulheres, incentivando-as a denunciar casos de V.O, mesmo que anonimamente. A

partir dos relatos, é possível destacar algumas das práticas apontadas em documentos

como a cartilha da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, citado anteriormente.

Na comunidade “Vamos falar sobre violência obstétrica?”, ao narrar um caso

de diagnóstico equivocado de abortamento, uma mulher relata ter sido submetida à

tricotomia:

Antes fui vitima das violências "costumeiras" como por exemplo da

enfermeira que me trouxe um barbeador e exigiu que eu me depilasse, pois

isso seria cobrado deles pelo outro hospital, sem dar a mínima aos meus

argumentos de que eu estava sangrando muito e em risco de perder o bebê, e

que por tanto não queria ficar em pé por muito tempo (Marina Fraga).

A separação da mulher de pessoas de sua confiança (companheiro, mãe, etc.)

também é relatada em um caso, embora exista uma lei10

no Brasil que garante o direito a

acompanhante durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato, em vigor desde

2005.

Fomos logo informadas de que minha mãe não poderia ficar ali (...).Minha

mãe não pode ficar comigo e eu fui deixada sozinha, olhando para aquela

mesa de parto e todo aquele lugar fechado que me lembrava uma cela. (...)Na

manhã seguinte, tentei falar com o médico ou as técnicas sobre como seria o

procedimento, a que horas seria, se eu poderia ver minha mãe, ligar para

minha família, queria saber ate que horas seria seguro comer, etc. depois de

muitas perguntas sem respostas, eis que o medico vem e me da uma bronca,

pois eles estavam sendo muito legais e pacientes comigo e eu estava dando

10

Lei nº 11.108, de 7 de abril de 2005.

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muito trabalho toda hora querendo coisas e informações. Que eu deveria ficar

calma e confiar no trabalho dele, que ele sabia o que estava fazendo, que eu

comeria normalmente e que ia deixar minha mãe entrar rapidamente, pra eu

parar de reclamar, mas que depois não poderia mais vê-la (Marina Fraga).

Outros procedimentos, como manobra de Kristeller, que figura nas recomendações da

Organização Mundial da Saúde como “conduta frequentemente utilizada de forma

inapropriada” são denunciados na página:

Ele me abriu e mandou a assistente subir em mim pra empurrar a bebê com a

famosa manobra de Kristeller...ela saiu depois de muito sofrimento e uma

enorme episiotomia que eu senti bem... E a placenta ficou presa. Aí ele

resolveu me cortar novamente enquanto tentava tirar a placenta com a mão,

que era enorme (disse ele) que ainda continuou: "olha vc não deve ter mais

filhos não, viu, filha... seu parto é muito difícil". Deixaram minha bebê longe

o tempo todo, eu nem vi a cor dela.

Ele me costurou sem anestesia e me mandou pro quarto (Anônima).

No relato acima, há também o uso de episiotomia, sem anestesia, procedimento cuja

utilização rotineira é entendida por Davis-Floyd (2003) como peça ritual que reforça a

simbologia do corpo feminino como defeituoso e necessitado da ajuda do homem e da

tecnologia para funci0onar a contento.

Todos os relatos analisados apresentam reclamações de negação do alívio

da dor, que, na opinião das parturientes, era subestimada pelo corpo médico-

hospitalar:

(...) mas meus pesadelos estavam apenas começando, a sala lotou e eu

implorei por algo para a dor mas riram de mim e uma das enfermeiras falou

que em todos seus anos atuando em partos era a primeira vez que alguém

pedia por medicamentos pra dor (Anônima).

Eu disse que doía aí ele pegou um vidro de iodo e enquanto ele me abria o

canal da vagina com uma mão jogava o iodo pra dentro com a outra. Eu senti

queimar tudo nessa hora e gritei de dor. Ele dizia "nãooo filha assim não"....

Quando ele resolveu terminar a seção tortura, bateu sarcasticamente na minha

perna e disse, tá de alta viu, pode ir pra casa...Eu pensei, ué, pari ontem as

22:10 e agora são 7:00, como vou pra casa com essa dor? (Anônima).

Os comentários feitos aos relatos de V.O., pelas usuárias da página do Facebook,

mesclam palavras de solidariedade e encorajamento. Frequentemente há menção à

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possibilidade de reparo judicial e o reforço à caracterização dos procedimentos como

violência contra a mulher. Também aparecem dúvidas sobre termos utilizados nos

relatos e sobre sua eficácia. A partir de tais interações, percebe-se a construção de uma

gramática da violência obstétrica que começa a ser apropriada pelas usuárias da página,

que nomeiam e reconhecem práticas obstétricas rotineiras como violentas e

desnecessárias.

Algumas considerações

Percebe-se que direitos sexuais e reprodutivos estão em disputa no campo das

políticas de saúde pública. Aguiar (2010) discute a autoridade médica nos serviços de

saúde e as bases para o exercício do poder na relação entre o profissional de saúde e a

paciente, enfatizando que tal relação é sempre atravessada por questões de gênero.

Entendemos, com Foucault (1995), que o poder se exerce de forma relacional, nas ações

de uns sobre os outros, em meandros.

No âmbito das práticas de saúde, este poder é exercido numa relação

hierárquica por definição – a relação profissional de saúde/paciente. No topo

desta hierarquia está o médico que é aquele quem dá a última palavra, ou,

dito de outra forma, é quem detém a maior autoridade sobre o corpo, a saúde,

o cuidado e o tratamento do paciente. Essa autoridade é, por assim dizer, a

fonte do poder médico (AGUIAR, 2010, p.33-34).

Os movimentos que reivindicam para a mulher o controle sobre o próprio parto

colocam o poder do médico em disputa, ao questionarem práticas obstétricas rotineiras,

classificando-as como violência obstétrica. Entendemos que essa disputa por direitos

reprodutivos e sexuais está perpassada por questões de gênero, uma vez que a

assistência (rotineiramente violenta) ao parto no Brasil se assenta em um saber/poder

sobre o corpo feminino que foi construído historicamente como corpo defeituoso, que

necessita do saber e da autoridade médicas para funcionar a contento.

A patologização dos processos naturais de gestação e parto e a medicalização do

corpo feminino aconteceram ao longo do processo de construção simbólica do corpo

feminino como fundamentalmente reprodutor, instituindo um lugar específico para as

mulheres na sociedade.

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A operação discursiva que coloca as mulheres na posição de mães “por

natureza” também as inscreve como naturalmente dispostas à dor e ao sofrimento que

são entendidos como naturais do parto. Daí a dificuldade de se reconhecer em

determinadas práticas intervencionistas perpetradas por profissionais da área de saúde

casos de violência obstétrica. Nesse contexto, pode-se pensar na impossibilidade do

saber/poder obstétrico de abarcar (encarcerar) todas as possiblidades e potências dos

corpos:

Uma existência racional não pode desenrolar-se sem uma “prática de saúde”

– hugieine pragmateia ou techne – que constitui, de certa forma, a armadura

permanente da vida cotidiana, permitindo a cada instante saber o que e como

fazer. Ela implica uma percepção, de certa forma médica, do mundo ou, pelo

menos, do espaço e das circunstâncias em que se vive. Os elementos do meio

são percebidos como portadores de efeitos positivos ou negativos para a

saúde (...) (FOUCAULT, 1985, p. 107)

Ao mesmo tempo em que se vem construindo uma prática de saúde obstétrica

baseada em uma assistência costumeiramente violenta à gravidez e parto, pode-se bem

pensar que a internet proporciona, em seus diversos ambientes, fóruns de

questionamento e ressignificação dessas práticas por parte de mulheres que desejam

outro tipo de relação com seus corpos e seus processos de gravidez e parto. O termo

“violência obstétrica”, ainda novo e carente de definições, talvez esteja sendo delineado

e burilado a partir das interações de mulheres, em ambientes de internet, a respeito de

suas experiências cotidianas.

O corpo da parturiente violentado, escamoteado, revestido por dentro pelo panóptico

médico com toda sorte de seus fluxos biopolíticos – como o corpo do louco, amarrado à sua

camisa de forças; corpo patologizado, encerrado e cansado pelo propalado obstétrico - talvez

“humanizar” o parto seja algo da ordem de uma resistência frente à violência dos maníacos dos

bisturis, um guerrilha, uma fuga desse corpo criado e revestido pelo patológico:

Somos como personagens de Beckett, para os quais já é difícil andar de

bicicleta, depois, difícil de andar, depois, difícil de simplesmente se arrastar,

e depois ainda, de permanecer sentado. Como não se mexer, ou então, como

se mexer só um pouquinho para não ter, se possível, que mexer durante um

longo tempo? É, sem dúvida, o problema central dos personagens de Beckett,

uma das grandes obras sobre os movimentos dos corpos, movimentos de si e

entre os corpos. (LAPOUJADE, 2002, p.82)

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Seguindo Peter Pál Pelbart, na esteira de Lapoujade, a questão seria desse corpo

cansado da máquina-civilizatória, máquina-médica, máquina-adestramento – corpo

farto de “(...) sua docilização por meio das tecnologias disciplinares” (PELBART,

2011). Controle dos fluídos, de práticas outras, dos desejos, dos ruídos –

encarceramento da vida, ou como prefere Agamben: uma vida nua, maquiada pelo

espetacular saber científico-médico e sua maquinaria de saber-poder.

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