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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO) CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE PRIMEIRA VERSÃO ANO I, Nº01 MAIO - PORTO VELHO, 2001 Volume I ISSN 1517-5421 EDITOR NILSON SANTOS CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL - Geografia MIGUEL NENEVÉ - Letras VALDEMIR MIOTELLO - Filosofia Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows” deverão ser encaminhados para e-mail: [email protected] CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO TIRAGEM 150 EXEMPLARES EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA ISSN 1517-5421 lathé biosa 1 ANTES QUE SEJA TARDE, RETIREMOS A UNIVERSIDADE DO GERÚNDIO NILSON SANTOS αΩ PRIMEIRA VERSÃO

Volume I

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Volume I do Primeira Versão (Maio/Agosto de 2001)

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Page 1: Volume I

UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO I, Nº01 MAIO - PORTO VELHO, 2001

Volume I

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia FABÍOLA LINS CALDAS - História

JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL - Geografia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO - Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

[email protected]

CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 150 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 1

ANTES QUE SEJA TARDE, RETIREMOS A UNIVERSIDADE DO GERÚNDIO

NILSON SANTOS

αΩ

PRIMEIRA VERSÃO

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ISSN 1517 - 5421 2

Caro Leitor

O Centro de Hermenêutica do Presente tem a satisfação de apresentar sua

mais recente publicação: PRIMEIRA VERSÃO. Trata-se de produção indexada destinada a divulgar ensaios breves na área

de Ciências Humanas.

Esta publicação prioriza:

- resultados iniciais de pesquisas, dada a importância de seu registro;

- discussões setorizados como temas de aulas, seminários e palestras.

- reflexões em torno de obras recém lançadas no mercado editorial.

- considerações teóricas de temas polêmicos da vida universitária.

A tiragem de cada edição será de 150 exemplares, distribuídos na própria

universidade e encontrados também no Centro de Hermenêutica do Presente.

Por dedicar cada número a um único trabalho, sua elaboração, impressão e

caráter gráfico têm uma dinâmica diferente dos periódicos da universidade. Desta

forma, a PRIMEIRA VERSÃO pretende ser presença efervescente no quotidiano da

universidade.

Além do ensaio, a publicação terá uma seção final chamada VITRINE com

avisos de lançamentos de livros, informes sobre pesquisas, links importantes para

consulta na internet e outros assuntos de interesse acadêmico.

As contribuições de ensaios e comunicações para a VITRINE devem ser

encaminhadas por e-mail, diretamente para o editor, ou para o Conselho Editorial.

Primeira versão é uma publicação de distribuição gratuita e pode ser encontrada no hall de entrada da biblioteca do campus.

NILSON SANTOS

EDITOR

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Nilson Santos ANTES QUE SEJA TARDE, RETIREMOS

Professor de Filosofia e História da Educação A UNIVERSIDADE DO GERÚNDIO

[email protected]

Estamos atravessando dias, ou melhor, anos procurando por ventos mais lúcidos. Mas nossa paciência parece estar sendo esgotada, na mesma proporção de

nosso ânimo. Procurando superar os pesadelos de uma origem mal digerida da universidade como misto de escolão de segundo grau e curso profissionalizante, e

recuperada a normalidade acadêmica, ficamos pensando que viria a bonança; e confessemos: continuaremos até o último momento sonhando com isto.

Sempre foi elemento de unificação e pacificação dos espíritos discordantes a crença de que a universidade só estaria saindo do cadafalso quando estivesse

carreando todas as suas energias para o ensino, para a pesquisa e para a extensão (desculpem a falta de originalidade, mas os docentes vivem esquecendo a finalidade

da universidade) afinal, deveríamos encontrar TODOS os docentes ensinando e pesquisando, com os alunos aprendendo, participando e pesquisando.

E aqui começa o pântano do gerúndio, que transforma a certeza inicial em dúvida mais que sartreana, ao ouvirmos tantos: estamos estudando, estamos

implementando, está sendo projetado, estamos liberando, estamos conseguindo, estamos planejando, estamos reunindo, estamos debatendo, estamos buscando,

estamos consolidando, estamos viabilizando, estamos lendo, num eterno gerúndio, que nunca se materializa em tempo verbal algum.

Em tempos de pós modernidade onde nada é sólido, tudo está desmanchado ou melhor desmanchando; ao menos desta forma podemos sentir que estamos

participando da “Pós” Modernidade, vivendo as glórias da vanguarda!

Até quando vamos ficar andando em cima do muro da mesmice, sem um divisor de águas sólido?

Ao nos despojarmos das gosmentas palavras de ordem deveríamos ter posto a criação para ficar fomentando coisas novas, mas o tempo acabou trazendo um

corpo sem forma, sem vontade, sem alma, sem sonho, sem nada para professar ou professorar.

Até quando vamos continuar dependentes do voluntarismo bem intencionado, que acaba construindo tão pouco?

Por enquanto só há uma resposta uníssona: estamos estudando.

Lembremos que se no Gênese alguém tivesse afirmado: estamos fazendo, teríamos até hoje um projeto inacabado.

Este bálsamo que vai encobrindo nossos sabidos e pretendendo fazer sarar as feridas da vontade, acaba cansando e calando os descontentes que se vão,

ficando a plena sensação de paz, a verdadeira “pax romana”, onde nada acontece. Aliás, há anos nada está acontecendo, a não ser uma ou outra patetada buscando um

poleiro à desocupar.

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Deveria estar sendo alvo de nossas reflexões a procura não só destas perguntas sem resposta, mas a identificação da engrenagem que está nos emperrando,

mastigando nosso juízo, lobotomizando alunos e professores. Porém o grau de dificuldade para tal movimento está parecendo ser parte da resposta. É muito fácil

elaborar um discurso identificando o mal que habita fora, ele é visível, personificado por vezes, tem nome, é passível de ser neutralizado, mas quando estamos fazendo

parte dele, quando nos vemos comungando com ele, quando estamos sendo ele, é pouco provável que se consiga tal abstração, afinal, a mão que estaria extirpando o

lado podre estaria cortando seu próprio ombro.

Assim, não estamos mergulhando numa crise, somos produtivos, somos responsáveis, temos bons cursos de graduação, realizamos pesquisas relevantes, temos

uma boa inserção na sociedade, estamos nos empenhando por enfrentar os dilemas existenciais do nosso tempo. Nos achamos, portanto, os melhores, e continuamos a

fazer carreira.

Dentro desta lógica da ilusão, não há incoerências, ninguém está perdendo o sono, pois estamos sendo o máximo daquilo que queremos ser. É uma

reflexão tautológica sempre se justificando, não gerando desconfiança, porque sentimos a convicção do valor do nosso trabalho. Kant disse que antes de

realizarmos qualquer exercício racional, deveríamos questionar as nossas razões; fazer a crítica. Assim, perguntar-se pela legitimidade de qualquer atitude

não nos torna críticos, apenas perseguidoras de justificativas.

O presente mais que perfeito da nossa universidade é o gerúndio, quem não conjuga sua existência desta maneira, faz discurso anacrônico.

Por isso o discurso de Miguel de Unamuno pode parecer aos desavisados um discurso fora de lugar.

O DISCURSO DE MIGUEL DE UNAMUNO

Em 1936, no início da Guerra Civil Espanhola, Unamuno era reitor vitalício da Universidade de Salamanca. No dia 12 de outubro daquele ano,

durante uma sessão pública no campus universitário, o general Millán Astray fez um discurso veemente criticando os adversários do franquismo, sobretudo a

ação dos intelectuais. É nesse discurso que o general profere o famoso grito: “Abajo la inteligencia! Viva la muerte!” Fez-se um silêncio gelado na

assembléia. Ninguém ousara até então desafiar os militares e todos aguardaram, com expectativa a palavra do reitor. Desafiar o general seria o mesmo que

desafiar o franquismo. A palavra de Unamuno não se fez esperar:

“Estais esperando minhas palavras. Me conheceis bem e sabeis que sou incapaz de permanecer em silêncio. Às vezes, permanecer calado equivale a

mentir. Porque o silêncio pode ser interpretado como consentimento. Quero fazer alguns comentários ao discurso do general Millán Astray, que se encontra

entre nós. Deixarei de lado a ofensa pessoal que supõe sua repentina contra bascos e catalões. Eu mesmo, como sabeis, nasci em Bilbao. O Bispo, queira ou

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não, é catalão, nascido em Barcelona. Porém, agora, acabo de ouvir o necrófilo e insensato grito ‘Viva a morte’. E eu que passei minha vida compondo

paradoxos que incitavam a ira de alguns que não os compreendiam, devo lhes dizer, como conhecedor da matéria, que este ridículo paradoxo me parece

repugnante. O general Millám Astray é um inválido. Não é necessário que digamos isto em baixo tom. É um invalido de guerra. Também Cervantes o foi.

Porém, desgraçadamente na Espanha, existem hoje mutilados em demasia. E se Deus não nos ajudar rapidamente aumentarão ainda mais. Me atormenta o

pensar que o general pudera ditar as normas da psicologia das massas. Um mutilado que carece da grandeza espiritual de Cervantes. É de se esperar que

encontra um terrível alívio vendo como se multiplicam os mutilados ao seu redor.”

Neste momento, o general gritou: “Abaixo a inteligência! Viva a morte”

“Este é o templo da inteligência. E eu sou seu sumo sacerdote. Estais profanando este recinto sagrado. Vencereis porque tens força bruta de sobra. Porém, não

convencereis. Para convencer, há que persuadir. E para persuadir necessitareis algo que os falta: razão e direito na luta. Me parece inútil pedir-lhe que pense na

Espanha.” ESTADO DE SÃO PAULO – FOLHETIM – 15.02.81 – p. 36

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO I, Nº02 MAIO - PORTO VELHO, 2001

Volume I

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia

FABÍOLA LINS CALDAS - História JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL - Geografia

MIGUEL NENEVÉ - Letras VALDEMIR MIOTELLO - Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

[email protected]

CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 150 EXEMPLARES EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

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EM BUSCA DO SUJEITO A SER CONSTRUÍDO

VALDEMIR MIOTELLO

αΩ

PRIMEIRA VERSÃO

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ISSN 1517 - 5421 7

Valdemir Miotello Professor de Filosofia e Doutor em Linguística [email protected]

EM BUSCA DO SUJEITO A SER CONSTRUÍDO

Gosto de Alvin Toffler quando ele estabelece os processos civilizatórios como se fossem ondas que, partindo de um ponto central atingem todas as

sociedades mundiais. Ele identifica até agora, na história da humanidade, apenas três grandes ondas: a primeira onda é o agriculturismo, que produziu mudanças

incríveis na forma de vida dos grupos nômades, permitindo a eles resolver o grave problema da alimentação, ampliar seu grupo, mudar a concepção de família,

instalar novas formas de poder, construir pequenas cidades; essa onda principiou em meados do ano 8.000 a.C. nas margens do Mediterrâneo e foi se espalhando até

atingir praticamente todos os povos. A segunda grande onda é bem mais recente e é o industrialismo, instalado em meados do século XVIII na Inglaterra, França e

Bélgica, e que permitiu produzir excedentes inimagináveis tanto de produtos industrializados quanto na agricultura ao levar para esta suas máquinas fantásticas,

substituindo a força humana milhares de vezes; esta onda permitiu também resolver o grave problema de produção de bens, instalou nova concepção de família,

construiu novas formas de comunicação e transporte, implantou escolas, mudou o Estado, constituiu as classes sociais e já atingiu praticamente todas as sociedades

humanas. A terceira grande Onda está começando a espalhar suas marolas em velocidade vertiginosa desde a década de 60 deste nosso século, e é o

Informacionismo, com suas estruturas eletrônicas se multiplicando qual tentáculos de polvo na velocidade do pensamento e rapidamente atingindo e mudando a vida

de praticamente toda a humanidade; esta onda também vai mudar tudo: concepção de governo, educação, família, comunicação etc.

Claro que poder-se-ia apresentar uma série de problematizações a esta proposta de análise da história da humanidade, e principalmente acusar cada processo

desse de ser centrista, permitindo que apenas um conjunto de tecnologias se instale enquanto hegemônico para toda a humanidade, e também que ele se constitui em

processo que produz exclusão em larga escala. Tudo isso é verdade. Além disso, ele modeliza um processo avassalador, sem concorrências, que constitui sujeitos à

sua imagem e semelhança, qual criatura bíblica arrancada do barro e soprada pelo criador. Sendo que no processo civilizatório a criatura também constitui seu

criador, soprando-lhe ar renovado de volta, que atualiza e pereniza a força ondulatória. Se na onda agricultora o sujeito se constituiu na relação com o mundo e a

natureza, subsidiado pelos mitos, pela filosofia clássica e pela religião, na onda industrial ele se constituiu na relação com o mundo e as máquinas, com apoio da

filosofia racionalista, da ciência e da educação escolar. E nesta nova e derradeira onda informacional, como o sujeito vai se constituir e quais serão e quem colocará

as bases ideológicas?

Sem entendermos o sujeito como se constituindo de fora para dentro, de modo que o que ele é é resultado de sua inserção no meio mais próximo e mais

distante, e se entendermos o sujeito como se constituindo a partir de signos, que, sendo parte da realidade, tanto revelam quanto escondem o real, e se entendermos o

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mundo sígnico como sendo o mundo ideológico, uma vez que tudo o que é signo é ideológico, então podemos pensar um pouco mais sobre como o sujeito vai se

constituir nesta terceira Onda. Afinal, cada sociedade, em cada tempo histórico, cria e constitui o sujeito de que necessita, ao mesmo tempo em que é constituída

pelos sujeitos históricos, existentes então. Se tal grupo social optar por ser constituída de guerreiros, formará guerreiros; se decidir ter sujeitos letrados, investirá

todas as suas ações para constituir sujeitos letrados.

Ao aceitarmos que esta Onda é Informacional devemos colocar no centro do seu desenvolvimento o que comanda a informação - os meios de comunicação

de massa. E a televisão ocupa o lugar central entre as mídia, por sua capacidade de amplificar sua mensagem, pelo volume de aparelhos atingidos por seu sinal, pela

dominação estabelecida pelos monopólios, pela palavra monossêmica da classe dominante disseminada por seu intermédio, pela capacidade de repetir

exaustivamente os mesmos símbolos de forma atraente e contínua. A comunicação de massa não é a única forma de comunicação e nem de disseminação de

informação, pois ela concorre com milhares de outros meios de comunicação, como rádio, jornal, outdoor, folhetos, livros, revistas, e modernamente a internet.

Enquanto a comunicação de massa trabalha os símbolos já estabelecidos, que poderíamos chamar de símbolos oficiais e estabilizados na prática social, os demais

meios de comunicação trabalham, em escala crescente, os símbolos não oficiais, os símbolos do cotidiano, ainda instabilizados e, portanto, em choque permanente.

Estes dois grandes conjuntos de signos dialogam entre si e se mudam constantemente. Além disso, cada conjunto desses ainda carrega dentro de si uma disputa

interna acirrada, resultado da luta das classes, na tentativa de impor seu conjunto ideológico e sua visão de mundo. Quanto mais alto na escala, mais o signo já está

estabilizado, e decidida está sua representação ideológica, o que não impede que ele interaja com a ideologia fluídica e volúvel e em permanente construção no dia a

dia.

Que sujeito os aparelhos midiáticos de massa constituem? Se entendermos que os instrumentos de comunicação de massa são propriedade privada de pessoas

e grupos da classe dominante, então não custa aceitar que eles estão a serviço destas pessoas e destes grupos que buscam perpetuar-se nesta posição social e

econômica, fincando suas garrras no Estado, enquanto propriedade pura. Para que eles consigam manter esta sociedade desta forma, com esta constituição, eles

precisam convencer a todos que o mundo e a sociedade é desse jeito deste todo o sempre. Ao naturalizar o que é criação social e cultural, os dominantes garantem a

manutenção de seu status. Mas além de significar um modelo de sociedade, a classe dominante usa dos meios de informação de massa para constituir o sujeito que

vai habitar este mundo; e o constitui enquanto sujeito trabalhador, como alguém que sente necessidade do trabalho, ao mesmo tempo em que o constitui como sujeito

consumidor, como alguém que sente necessidade do que é produzido.

Como este sujeito é constituído? É constituído na disseminação do sistema ideológico dominante, e pela utilização de signos de todas as espécies, como

qualquer palavra, gesto, som, imagem ou objeto que esteja indicando ou representando outra coisa. Já vimos que este processo não é tranqüilo, visto que as

ideologias produzidas no dia a dia, também pelas classes trabalhadoras, interagem constantemente com as ideologias já assumidas enquanto dominantes por aquela

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sociedade. Isso significa que o sujeito é constituído no embate dos signos, e que a classe dominante não descuida de estabelecer sua visão de mundo, utilizando-se

para tanto de instrumentos poderosos e sofisticados. E nos últimos séculos já se serviu da Igreja, da escola e agora serve-se dos meios de comunicação de massa, que

invadem a casa das pessoas intensivamente, compondo sua visão de mundo e construindo também suas utopias e mexendo em seus desejos, até os mais secretos. E

isso se dá de acordo com cada cultura e com o momento histórico vivido por aquele povo, grupo ou classe social. Podemos pensar em como é modelizada a visão

estética de um determinado grupo - comida, roupa, tipo de cabelo, tipo corporal preferido; ou a visão ética - noção do belo, do justo, do errado; ou a sensibilidade -

que sentimentos são cultivados naquele momento histórico e naquele lugar; ou as necessidades - o que se precisa ter, específico para cada sociedade, seja no Brasil,

seja na Suíça ou na África; e até mesmo como são modelizados os imaginários, a visão de futuro, a idéia de povo, de sociedade, as esperanças e as utopias. E aqui é

preciso que se diga que nesse processo de constituição do sujeito ele, para se individuar, vai assumindo os jogos estabelecidos pela linguagem, pelos códigos e pelos

símbolos daquela determinada sociedade histórico-cultural, o que produz uma alternância de determinação e escolhas. Se somos determinados pela sociedade em

todo o processo de construção da subjetividade, também interferimos em todo esse processo, modificando continuamente esta mesma sociedade que nos constrói.

Provavelmente os imaginários sociais impingem maior mudança que as transformações econômicas.

Até aqui busco o sujeito se constituindo. Nesta Onda Informacional as pessoas se ocuparão com o trabalho de plantar e colher, talvez apenas de 5 a 7% delas,

com o trabalho de produzir produtos industrializados, talvez apenas de 15 a 18% delas, e o restante das pessoas, um montante imenso de gente, na ordem de 75 a

80%, estará ocupada em fazer nada produtivo ou trabalhando na prestação de serviços, e de forma bem personalizada. As imensas construções das fábricas deixarão

de estar na paisagem, e o lugar de trabalho provavelmente retornará para dentro da própria casa. Tudo isso implica em mudanças fantásticas. Ter ou não acesso à

informação será fundamental nessa sociedade; ser detentor e dominar a produção e distribuição de informações é mais fundamental ainda. Ficarão para trás

categorias como patrão/empregado, trabalhador ativo/desempregado, e precisaremos construir um sujeito enquanto empreendedor, inserido no coletivo. As riquezas

se construirão em novas bases.

Se um mundo novo está se dando, que se construa também um novo homem e uma nova mulher; enfim, que se constitua um NOVO SUJEITO.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO I, Nº03 MAIO - PORTO VELHO, 2001

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deverão ser encaminhados para e-mail:

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EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

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LIBERTINAGEM E LITERATURA

ALBERTO LINS CALDAS

αΩ

PRIMEIRA VERSÃO

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Alberto Lins Caldas LIBERTINAGEM E LITERATURA

Professor de Teoria da História [email protected] O "numeroso auditório" sai sempre "desenganado" e se engana sempre com o escritor que, per-vertido, se tornou um libertino. "Ouçamos", se conseguirmos

ouvir como sempre se ouviu, a palavra que não é mais palavra, a palavra que vem do antes e do depois e não mais do dentro e que não é mais um corpo: perdeu a

casca e perdeu as entranhas de inseto morto. O libertino já não vem de perto, já não é conhecido, já não faz parte de uma língua, de uma música, de um ethos.

O libertino semeia não mais uma palavra social, humana ou mesmo divina como o "pregador evangélico que saiu a semear a palavra divina": o libertino

perdeu a origem: sua palavra não é sequer mais palavra. Seu livro, que não é mais livro, não pertence mais. Definitivamente não pertence mais. O libertino não sai

mais a semear sua não-palavra: não há mais "o dia da messe" e nem quem possa nos "medir a semeadura" e não hão de nos poder "contar os passos". Essa palavra

não "colhe fruto", não deita raízes ou muito menos flutua. O libertino é diferente tanto dos que "saem a semear" quanto os que "semeiam sem sair": por não semear,

gerando uma palavra que não é mais palavra, o libertino não pertence mais a um lugar e tampouco a outro lugar: sem origem, o lugar da sua fala não é mais a fala de

um lugar. Os que saiam a semear "à Índia, à China, ao Japão" levavam o seu lugar; os que "semeiam sem sair" e "se contentam com pregar na Pátria" exercitam a

pátria, a palavra enraizada, a palavra que dá frutos. O libertino perdeu o lugar: e todos os lugares não criam um lugar: todos os lugares é sempre antes e depois de

todos os lugares: há, na verdade, um asco dos lugares e das permanências, um horror das raízes. O libertino, fora dos lugares da palavra e das palavras dos lugares,

não tem mais a "sua razão": perdeu a razão: nele nada mais "tem sua conta".

Em canto algum o libertino será pago: nada ou ninguém poderá lhe pagar "a semeadura": sua semeadura é falsa e seu destino sempre duvidoso: o

esquecimento é sua forma de eternidade: suas palavras não são consumíveis: não circulam como mercadoria: não são feitas para a boca, o estômago ou o intestino. O

libertino, diferente do antigo escritor, não pode mais ser medido pela semeadura ou medido por seus passos: não há passos a medir ou semeadura a ser vista ou

tocada. Definitivamente não há para o libertino o "Dia do Juízo": suas palavras estão depois do juízo e depois de todos os dias: é uma palavra criando esquecimento,

além do próprio esquecimento.

Podiam voltar os que partiam e partir os que ficaram: o libertino nem parte porque ficou nem retorna porque partiu: suas palavras não nascem da Fé, da

Terra, da Comunidade, do Trabalho, da Língua, do Livro, do Corpo, do Tempo: suas palavras não se propagam e não se professam: ele ou as palavras que

provisoriamente podemos dizer que são dele (pois já não pertencem nem mesmo mais a ele nem nele têm sua origem, ele que nem mesmo é sua origem ou é alguma

coisa) não vão e não retornam.

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Nada governa o libertino ou as palavras que atravessam o libertino vindas do canto algum do sem origem: sem rédeas que lhe governem o antigo e

desativado espírito, livre dos im-pulsos desse espírito, livre das arqui-teturas interiores e das brechas possíveis e abertas sempre com o com-sentimento e o poder

desse com-sentimento, as palavras libertas de si mesmas e do libertino nem permanecem nem partem: elas se desintegram nos fluxos sem corpo e sem in-tenções. Só

a antiga palavra, o antigo olho, o antigo ouvido, o antigo corpo, a antiga circulação não conseguem apalpar o óbvio desse nada e continuam como se nada houvesse

acontecido.

O antigo corpo, o antigo lugar do corpo e das palavras desse corpo, fecha o campo e armam contra o libertino e as palavras que ainda parecem ser do

libertino (ele é culpado juridicamente por elas como se fossem nascidas dele, como se fossem coisas, como se: o antigo corpo não cessa facilmente: o libertino é

somente culpado de inocência) "espinhos" e "pedras" e lhe fecham "os caminhos" como se "pedras", "espinhos" e caminhos "fechados" cortassem um tipo de fluxo

que está "além da imaginação" desses "corpos naturais". O libertino não tem mais a degustação masoquista ou mesmo sádica das contradições e dos contrários.

Uma parte das palavras do libertino não cai "entre espinhos", afogada entre espinhos; uma outra parte não cai "sobre pedras", secando nas pedras "por falta

de umidade"; outra parte dessas palavras que não são palavras não cai no caminho que não há e não são pisadas pelos homens e muito menos serão comidas pelas

aves. "Ora vede como todas as criaturas do Mundo se armaram contra esta sementeira" que não é sementeira, não é semente, não é parte e não faz parte: para ela não

há espinhos, pedras, caminhos, homens, pássaros: não há sequer o libertino. Para essa palavra não há "criaturas do mundo" ou criaturas no mundo: não há gêneros,

não há "criaturas racionais, como os homens; criaturas sensitivas, como os animais; criaturas vegetativas, como as plantas; criaturas insensíveis, como as pedras":

"não há mais" nada como antes havia. E tudo se arma contra o libertino: até mesmo o libertino é contra si mesmo. Sem fazer parte de nada "A natureza insensível o

persegue nas pedras, a vegetativa nos espinhos, a sensitiva nas aves, a racional nos homens": as esperam secá-lo a ele, o libertino, e às suas palavras; os espinhos

esperam afoga-los; as aves esperam comê-lo; e os homens esperam pisa-los: não há mais o que afogar, comer, pisar. Não há como apedrejar o que não existe, não

resiste, não posiciona, não circula, não nasce e nem morre.

Ele o libertino não recebe a ordem "Ide, e pregai a toda a criatura": nem sua palavra é para nenhuma criatura: para essa palavra e para o libertino "Os animais

não são criaturas"; "As árvores não são criaturas"; "As pedras não são criaturas"; os homens não são criaturas: elas as palavras do libertino e o libertino não podem

mais "pregar às pedras"; "pregar aos troncos"; "pregar aos animais"; pregar aos homens ou "pregar a todas as nações do Mundo": para essa palavra e para o libertino

não há o homem e as criaturas: não há "homens degenerados em todas as espécies de criaturas": ela não procura os "homens homens"; "homens brutos"; "homens

troncos"; "homens pedras": não há mais o mundo. A "Grande desgraça" cessou para essa palavra, mas contra ela se armam "todas as criaturas", todas as más-

vontades, todas as iniqüidades que não cessam enquanto não devoram santamente nalgum altar o libertino.

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Essa palavra, não indo e não vindo, não padece nela o que padeceu o libertino: são duas não-coisas. Se o libertino acha que por essa palavra ficou "mirrado",

"afogado", "comido", "pisado" nada disso padece a palavra do libertino: uma palavra sem pai, sem mãe, sem família: uma palavra que não dura na passagem e não

pesa no seu existir. A essa palavra o libertino não é um pai ou uma mãe ou uma origem qualquer: ela nada lhe deve e nada lhe representa e nada lhe diz. Não é ela

que lhe devora e lhe afoga e lhe mirra o corpo. Ela não sendo não nasce dele nem a ele pode voltar, e a ninguém se destina. E o libertino feliz e livre diz somente

"Não me queixo". Para o libertino não há glórias; ele não definha pelas palavras libertas; ele não é o seu "autor"; ele não sente amor por elas; ele não se afoga por

elas; ele não é comido por elas; ele não é pisado e perseguido por elas; ele só tem um crime: deixa-las passar, fluir através dele, aberto como por uma passagem corre

o vento. Mas esse se-abrir não o mata e não o representa: não foi ele que se abriu e muito menos elas que o forçaram a se abrir: de repente ele estava aberto e elas

fluíram através dele como o vento por uma passagem como se ele fosse sempre aberto e elas sempre fluindo em busca das aberturas; ou como a lava vindo através

dos caminhos da terra para o vulcão. Também não há prazer nessa abertura e nesse se abrir e deixar passar. Mas se esse passar também o leva, não o esgota e nem o

diz: o multiplica até a deformação.

Quem vai a esse lugar nenhum dessa palavra nenhuma não vai a um campo ouchega depois de muito trabalho a esta "condição": essa palavra nenhuma e esse

não ser do libertino não é fruto de uma evolução pessoal, coletiva ou lingüística, de um progresso, de uma conquista: é somente a decomposição, a ruína, a

corrupção, a degeneração, o esgarçamento até nada mais haver de uma posição, de um corpo, de uma interioridade, de um campo, de uma rede de forças, de palavras

de ordem: não há um novo lugar, um novo corpo, uma nova palavra. Não se vai adiante e não se retorna: não é um trabalhador o libertino; não é uma palavra a sua

palavra. Não é algo que deva ser protegido. Não é algo que "nasceu, cresceu, espigou, amadureceu, colheu-se, mediu-se": não é uma palavra que seja semente: não é

um grão que "multiplicara cento". Não traz "grandes esperanças" porque não é uma "sementeira"; não dá nenhum "exemplo" porque não há "semeador". Nessa

palavra se perdem todos os trabalhos inclusive as últimas partes. E o libertino perde a vida inteiramente nesse deixar passar o nada que o atravessa.

Essa palavra é sempre enganadora; o libertino é sempre enganado e enganador: dele não é mais que uma brecha onde passam as palavras que não são nem

podem ser. Estas palavras não estão nem na virtualidade nem no caos de não-onde foram formatadas a existência, o existente e o existir.

O silêncio, o fluxo de nada e o não ser da palavra fissurada do libertino é o que antigamente se entendia como "a palavra de Deus"; a palavra do mito; aquilo

que não nos pertence; aquilo que vem do "além" e volta através de nós para esse antes que é depois, para esse dentro que é fora [o fluxo discursivo que é a própria

virtualidade]. Seu destino não é o corpo, não é a alma como a antiga palavra. Seu destino não atravessa "os diversos corações dos homens". Tanto os "corações

embaraçados com cuidados, com riquezas, com delícias" quanto "os corações duros e obstinados": tanto os leitores cuidadosos, ricos e macios em sua leitura quanto

os duros e obstinados morrem sem conhecerem as palavras do libertino. Os leitores espinhentos e os leitores secos: leitores do coração: não podem ler as palavras

libertinas. Nesses leitores as palavras devem criar raízes, devem significar, devem florescer e ensinar: são cordiais: leitores do coração: frágeis ou rudes não escapam

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do coração. Os "corações inquietos e perturbados com a passagem" das palavras que não são palavras do libertino também não são os leitores dessa palavra: "todas

passam" por esses corações. Eles, os leitores do coração, atendem ou prezam essas palavras. Querem ouvi-las. Há também os "bons leitores": de "corações bons ou

os homens de bom coração": nesses se "prende e frutifica a palavra" "com tanta fecundidade e abundância" que são os piores leitores do mundo: são crentes da

palavra: através deles corre a palavra do libertino sem os tocarem: ele sente somente o arrepio da impossível compreensão. Eles colhem muito de nada: pensam que

aquela palavra é ainda uma palavra: são inocentes.

Também os leitores dos olhos e da língua não podem compreender ou sentir as palavras libertinas: eles ainda são leitores corporificados, carnais. Mas então

qual o verdadeiro e bom leitor da palavra libertina? A resposta poderia ser somente uma: o libertino, mas o libertino não consegue ler mais seu significado pois sabe

que elas somente fluem sem significar. O libertino não pode ser mais leitor: o libertino é o fim da leitura como ele mesmo é o outro do escritor e suas palavras são o

outro da palavra. O libertino e suas palavras não sobem mais "ao púlpito". Ele não fica mais "suspenso e confuso" . Sua palavra não é mais eficaz ou poderosa como

antes era a palavra de deus. Dela não nascem frutos e nela não se plantam sementes. Ela não "frutifica cento por um" nem "um por cento". Ela não se contenta, não

se converte e não emenda nenhum homem. Nela não há fé nem autoridade, muito menos experiência ou passado. Ela não se recorda de nada e nem vive nada. Ela

não pode ser pregada: no ar, no fluxo, na parede, nos ouvidos, no papel, na tela, nos olhos, nos sonhos, no libertino. Ela não pode ser pregada. Dela não nasce

"histórias", "pecados convertidos", "mudança de vida", "reformação de costumes", "riquezas e vaidades do Mundo", "as mocidades e as gentilezas" : "Nada disto":

talvez somente repetição, simetria e desejo.

Tempo da palavra: mas jamais da palavra libertina: ela não é do tempo: não é determinável. Não é dita. A antiga palavra podia ser e ser poderosa ou frágil: a

palavra libertina além de não ser palavra e não ser, está antes e depois da fragilidade, da força e do poder. Ela não é de um meio, de um instrumento, de uma técnica,

de um método, de uma teoria. Para "senti-la" é preciso aprender a não ouvir, não ver, não sentir, não respirar, não ser. Somente assim o leitor e ela se com-vertem no

mesmo flu-ir.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO I, Nº04 MAIO - PORTO VELHO, 2001

Volume I

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia FABÍOLA LINS CALDAS - História

JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL - Geografia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO - Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

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BATOM NO ESPELHO

NILZA MENEZES

αΩ

PRIMEIRA VERSÃO

Page 16: Volume I

ISSN 1517 - 5421 16

Nilza Menezes BATOM NO ESPELHO Centro de Documentação Histórica – TJ/RO [email protected]

Como a proposta desse suplemento é a de apresentar uma grande variedade de assuntos, optamos por falar em mulher. Vamos tomar aqui como exemplo um

processo judicial do Centro de Documentação Histórica do Tribunal de Justiça de Rondônia. Omitiremos os nomes porque o interesse principal é discutir a questão

feminina e histórica, além da divulgação dos documentos disponíveis no acervo do CDH/TJRO.

O documento que vamos usar como referencial e transcrever em alguns pontos refere-se a uma ação de indenização impetrada por “A” mulher, contra “B” homem,

na década de 60. A ação ajuizada é um pedido de indenização onde “A” conta a sua história de empregada doméstica em casa de “B”, ela viúva, ele casado.

Entregando-se arduamente aos trabalhos domésticos dentro dos preceitos ditados pela C.L.T., desenvolvendo-se após, entre patrão e empregada doméstica, grande

afeição; “A” conta ainda, através do seu advogado, que por quase vinte anos “B” beneficiou-se dos seus trabalhos, tanto no plano doméstico ou caseiro

(alimentando-se dos seus cozidos, vestindo as roupas que suas mãos lavavam e passavam, desfrutando da paz domiciliar que só uma boa dona de casa sabe dar,

assistindo nas horas de doenças pelas suas mãos benfazejas...) continua sua histórica dizendo que ela foi responsável pelo sucesso profissional, de “B”. Que

conhecera apenas um vendedorzinho ambulante transformado com a ajuda dela em grande proprietário e comerciante. Insisti na importância da sua contribuição para

o sucesso de “B”, dando-lhe filhos, e requerendo seus direitos, alegando que mesmo não sendo ela casada com “B”, vivera ao longo dos anos como se fosse.

Defende-se, alegando não ter sido apenas uma concubina, uma amante para “numa relaxada concubinagem de relações e fornicações emergenciais”

Histórias idênticas aparecem com freqüência entre as ações judiciais, com grande incidência nas décadas de 50, 60 e 70. Com o surgimento da Delegacia da

Mulher a década de 80 vai apresentar as mulheres mais agressivas, lutando na busca dos caminhos motivados pela maior divulgação dos direitos femininos, contudo,

historias como essas ainda fazem parte do cotidiano da justiça.

É comum observarmos que quando essas situações acontecem, as mulheres tomam uma posição de vítimas. Colocam-se como as empregadas que não foram

reconhecidas. Cobram seus direitos como lavadeiras, passadeiras, cozinheiras e enfermeiras. Reclamam que foram exploradas na sua força de trabalho, pedem

pagamento pelos trabalhos prestados misturando afetividade com economia, vendendo afeto. Quando a situação chega a esse ponto a mulher assume uma situação de

vendedora dos seus sentimentos, da sua condição de parideira, dos seus carinhos o que leva homens a considerarem as mulheres todas como prostitutas.

Não estou querendo dizer com isso que mulheres que ficaram em casa lavando e passando não têm nenhum direito, mas vai longe o tempo em que pioneiras

da luta da mulher, no começo do século XX, como Virginia Woolf mandavam que as mulheres matassem o anjo de dentro delas e fossem à luta para ocuparem os

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seus lugares. Com outras palavras uma autora quer gosto de citar, a chilena Gabriela Mistral, na década de 30 recomendava às mulheres que lutassem para terem a

terra e não para terem um homem, porque “la tierra es la posibilidad de todos los bienes, porque el mar no sirve sino como caminho entre los pedazos de ella y viene

a ser uma espécie de hermoso criado terrestre”.

Trazendo para os dias de hoje, a terra da mulher é o seu emprego, a sua independência, a sua profissão. O amor, o casamento é o mar que une dois pedaços

de terra, o homem e a mulher.

É preciso que se saiba separar afetividade, relacionamentos e trabalho. A grande arma da mulher está na sua posição frente à vida para não ter que reclamar

direitos de lavadeira nem cozinheira como “A”.

Para concluir “A” desistiu da ação, voltando a paz doméstica. “B” ao sentir-se ameaçado no seu patrimônio, em ter que partilhá-los, declarou a “A”, através

de petição nos autos por seu advogado que a amava, que tudo não passava de um pequeno desentendimento de casal. E ela que não queria bens, mas sim seu homem,

aceitou-o para continuar lavando e cozinhando.

Page 18: Volume I

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO I, Nº05 JUNHO - PORTO VELHO, 2001

VOLUME I

ISSN 1517-5421

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NILSON SANTOS

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POESIA PARA INÍCIO DE CONVERSA

MILENA MAGALHÃES

αΩ

PRIMEIRA VERSÃO

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ISSN 1517 - 5421 19

Milena Magalhães POESIA PARA INÍCIO Professora de Literatura Brasileira DE CONVERSA [email protected]

Leitora desde sempre de prosa, ando às voltas com a poesia. Isso quer dizer que eu não tinha lido poemas antes? Quase isso. Na construção do gosto da

leitura, acabamos fazendo escolhas e as minhas não se detiveram sobre a tal, provavelmente seguindo a trilha dos que fazem dela a arte menos consumida. Porém, os

gêneros estão longe de terem suas fronteiras (tão) delimitadas e, lendo prosa, sem saber, eu já era leitora de poesia: Clarice e sua narrativa poética, Calvino com seus

fragmentos, o fluxo de palavras/imagens do Saramago. Poesia. E estando às voltas, interajo estes mundos, numa relação que vem a partir das descobertas que tenho

feito nas visitas a essa casa de imagens:

A poesia É uma menina levada

Que bagunça a vida do poeta E depois

Diz que não fez nada (Binho, in, na ponta da língua)

Num jogo auto-reflexivo, o poeta já nos dá a dica. E outro completa: Poesia/ é brincar com palavras/ como se brinca/ com bola, papagaio/ pião. (José Paulo

Paes). Daí reside a mágica que nos pode aproximar dessa “menina levada”. Não existem, portanto, receitas. Cada qual escolhe a melhor forma de brincar. Porém se

existe uma dica, talvez essa outra voz nos possa ajudar: “A maior parte das pessoas lê poesia como se fosse prosa. A maior parte quer ‘conteúdos’ – mas não percebe

formas. Em arte, forma e conteúdo não podem ser separados.” (Décio Pignatari).

Primeiro estranhamento causado em mim - leitora inicial de poesia. A busca pelo significado aparentemente é o motor diretriz de qualquer leitura e nenhum

leitor em “sã consciência “imagina que a busca não deve ser apenas esta. O poeta e teórico Ezra Pound, porém, já nos alerta que a palavra significado é camaleã,

exige diversas trilhas: “... mas o significado não é algo tão definido e predeterminado como o movimento do cavalo ou do peão num tabuleiro de xadrez. Ele surge

com raízes, com associações, e depende de como e quando a palavra é comumente usada ou de quando ela tenha sido usada brilhante e memoravelmente”.

Caminhando ainda mais, outro teórico, Jacques Derrida, afirma que a busca pelo significado é uma grande perda de tempo, que o trabalho com a linguagem é um

jogo, significante produzindo outros significantes. Nem tanto ao mar nem tanto à terra. O significado pode e deve ser visto não como mera explicação, compreensão

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ISSN 1517 - 5421 20

do conteúdo, mas como elaboração do pensamento do leitor a partir do dito e do não-dito que constitui qualquer texto, especialmente o poético. Já foi dito: “Forma e

conteúdo não podem ser dissociados”, a poesia é um trabalho com a linguagem e, nós, enquanto leitores, devemos deter-nos sobre esse trabalho:

o s e u o l h a r m e l h o r a

o m e u (arnaldo antunes)

Indo além do significado que surge na superfície e nos remete, por exemplo, a um ideal romântico, podendo ser vista como simples frase de amor que,

imaginamos nós, pode sair da nossa boca a qualquer hora, é impossível não se questionar quais as razões de o poema estar disposto dessa forma, a escolha das

palavras e o ritmo que elas provocam (as rimas, os sons). A disposição das letras insinua outras formas de leitura por meio do desdobramento, brincadeiras que

podem surgir, como quando crianças: o olhar olha o meu/ o seu olhar me olha. A desautomatização (singularidade, estranhamento) a partir da forma. A fuga da

simplicidade prosaica: o seu olhar melhora o meu.

O formalista russo Chklowski percorreu a idéia de um tipo especial de imagem relacionada à arte que tinha como objetivo não “tornar mais próxima de nossa

compreensão a significação que ela traz, mas criar uma percepção particular do objeto, criar uma visão e não o seu reconhecimento”. A imagem que produz não um

significado único, mas percepções várias. Chklowski estaria antevendo a relação mágica que se desenvolve entre cada leitor e cada texto, transformando o texto em

vários. A singularização da palavra, Antunes parece nos querer dizer, é a busca constante da poesia: labirintos atrás de uma forma nova de dizer velho, que inova e

ressurge.

Daí o leitor não poder querer ver apenas o imediato, o aparente. A poesia não se presta a isso. A literatura em geral deve ser vista como constante perguntar,

um buraco de Alice (Caldas) onde o leitor não deve ter medo de cair. Um poeta contemporâneo, Péricles Cavalcante, nos diz em forma de poesia: se eu não disser

nada/ como é que eu vou saber/ onde fica a entrada/ do castelo do querer/ qual é a resposta/ me diga, então/ qual é a pergunta? A resposta é uma pergunta, é ela que

nos dá a chave da poesia, que são sempre várias chaves. Já nos disse Drummond: “a linguagem na superfície estrelada de letras. Sabe lá o que ela quer dizer?” Por

não ter medo de questionar, Rimbaud construiu um tipo de poesia jamais vista antes e que continua a nos assombrar. Como se recusar a assombrar-se diante desta

“menina”, já que ela própria nos faz esse convite a partir do momento que está sempre atrás do novo?

Eu faço versos como os saltimbancos Desconjuntam os ossos doloridos.

A entrada é livre para os conhecidos... Sentai, Amadas, nos primeiros bancos!

Vão começar as convulsões e arrancos

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ISSN 1517 - 5421 21

Sobre os velhos tapetes estendidos... (Mário Quintana)

O poeta nos faz o convite usando exclamações, reticências e – mais na frente – interrogações, num gesto de quem pensa a poesia como imaginação disposta

a sair do natural para percorrer – com convulsões e arrancos – os caminhos do verso.

Tenho aprendido que se ficamos diante da poesia como que detetives atrás de sentidos, não nos podemos esquecer do tipo de matéria que estamos tratando:

“Cada palavra poética é assim um objeto inesperado, uma caixa de Pandora de onde saem voando todas as virtualidades da linguagem, é portanto produzida e

consumida com uma curiosidade particular, uma espécie de gulodice sagrada. Essa Fome da Palavra, comum a toda a poesia moderna, faz da palavra poética uma

palavra terrível e desumana. Institui um discurso cheio de buracos e cheio de luzes, cheio de ausências e de signos supernutritivos ...” (Roland Barthes).

É com essa mesma fome que devemos sentir, percorrer, perscrutar, problematizar a poesia. Verbos-ação - que darão sentidos aos signos supernutritivos. Se

estamos condenados, como críticos e leitores, a produzir sempre uma metapalavra que esta seja produzida ao menos com gulodice. Para concordar ou discordar - ser

paradoxal.

Certamente, assumindo-se como leitora-aprendiz de poesia, alguns dirão que não tenho autoridade para falar sobre o assunto. Por isso, essa escolha para

início de conversa. É sempre como aprendiz que quero estar no mundo. Penso que a poesia – que ocupa um espaço de deslocamento do sujeito à medida que exige

uma reflexão apurada – também nos pode servir para refletir sobre o nosso lugar no mundo e nos diz involuntariamente que não nos devemos contentar em ocupar

lugares previamente determinados. Embora pareça ingênuo falar em paixão quando nos referimos ao saber, ainda ouso pensar que devemos cultivar a paixão e a

ousadia. Sem elas, seremos apenas reprodutores de conhecimentos já existentes. Não devemos ser apenas diluidores, mas também inventores e mestres – ainda

pensando na poesia com Ezra Pound.

Page 22: Volume I

22

UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO I, Nº06 JUNHO - PORTO VELHO, 2001

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OS RATOS NO SÓTÃO DE UMA MEMÓRIA ROCK’N’ROLL

RUBENS VAZ CAVALCANTE (BINHO)

αΩ

PRIMEIRA VERSÃO

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ISSN 1517 - 5421 23

Rubens Vaz Cavalcante (Binho) OS RATOS NO SÓTÃO Professor de Teoria da Literatura DE UMA MEMÓRIA ROCK’N’ROLL [email protected] Dyonelio Machado. OS RATOS. São Paulo, Ática, 1999.

De há muito uma mania me acompanha: ler poesia e prosa escutando rock’n’roll. Resquícios do antigo roqueiro que virou intelectual? Ressaca do atual

literato que nunca deveria ter saído da boêmia? De qualquer modo não é o momento nem vale a pena resolver tal impasse. Talvez o grande lance seja mantê-lo

irresoluto. O que importa é que essa mania é uma saudável recorrência na vida do leitor que me freqüenta. Digo assim das minhas idiossincrasias não por uma

questão personalista, mas para ilustrar uma experiência que se dá no encontro das duas formas de expressão da arte que mais admiro: música e literatura. Quem

quiser pode chamar a esta experiência de intersemiótica – eu deixo.

No final de semana próximo-passado (sempre senti vontade de usar essa justaposição), tive a oportunidade rara de ler o romance Os ratos, do escritor gaúcho

Dyonelio Machado (1895-1985), publicado pela primeira vez em 1934. Modernista contemporâneo da geração de 30 - psiquiatra, jornalista e político militante do

PCB -, Dyonelio publicou sua obra entre 1927 (Um pobre homem) e 1982 (Passos perdidos), em meio a um viver pontilhado de prisões e prêmios literários. A

maioria de seus livros só foi publicada nas décadas de 60, 70 e 80. Os mais acolhidos pela crítica foram: Os ratos (1934) e O louco do Cati (1942). Particularmente

(vejam o tamanho da peça que o cânone acadêmico nos prega), só tomei conhecimento da obra do Dyonelio Machado através do livro 40 Escritos, do Arnaldo

Antunes, no qual o multiartista republicou um artigo escrito para a Folha em 26/6/85, dez dias depois da morte do autor d’Os ratos. No referido artigo, o Arnaldo se

confessa estranhado com a notícia da morte de Dyonelio: “O cara se abaixou para amarrar os sapatos, levou um tombo e morreu”. Antunes viu a poesia ligando a

morte e a obra do “cara”, mas viu também que pouco ou nada se sabe do escritor gaúcho. Ouve-se ratos roendo a memória literária brasileira.

O livro Os ratos narra a saga de um dia na vida de um homem simples: Naziazeno Barbosa. Do “pega” com o leiteiro, logo nas primeiras horas do dia, por

conta do atraso no pagamento, até o amanhecer do dia seguinte, o tempo do protagonista (e da narrativa) é desdobrado em espaços físicos e ambientes psicológicos

nos quais são elencados comportamentos e tipos humanos esdrúxulos e vários. O tempo é quase simultâneo: “o tempo de uma história ou de uma seqüência narrativa

desdobrada no espaço”, diria Benedito Nunes. O narrador, num simulacro de discurso cinematográfico, finge contar a história como se estivesse fora da ação, por

detrás das câmeras, mas seu envolvimento é tal que nos momentos de quase desistência do protagonista é ele quem o anima a continuar, criando novas perspectivas:

“Se ele botasse no estômago qualquer coisa, mesmo um cafezinho, ainda agüentaria mais uma hora. E com esses cinco mil réis tentaria... a sorte!” (p. 57). Naziazeno

atravessa as 24 horas mais longas da sua sedentária vida, entre funcionários públicos, agiotas, casas de penhores, guichês do bicho e cafés, em busca de uma

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felicidade que parecia custar pouco mas que lhe era cara: pagar o leiteiro. Nunca fantástica inversão de valores, vê seu problema resolvido, a duras penas, pela

marginália representada por Duque (“o agente, o corretor da miséria”), Alcides (“o vigarista”) e Mondina (“o rábula”), depois de ter sido ridicularizado pelo Dr.

Romeiro, seu diretor, diante dos outros funcionários (“ – Tenho eu porventura alguma fábrica de dinheiro?...”). Há mais ética no submundo que nas relações

legalizadas? Em vários momentos a voz que conduz a narrativa vê focinho no protagonista, “A seu lado, Naziazeno ergue-lhe um focinho humilde” (p. 83), e

também nos adjuvantes: “o seu ar de pobreza, aquele focinho quieto e manso que vem ali ao seu lado, tiram-lhe qualquer ilusão”(p. 85), referindo-se a Alcides; “Seu

focinho perdeu aquela expressão neutra e mansa” (p. 88), falando de Mondina; “Duque caminha meio passo na frente. Vai puxando... baixou o focinho, recolheu-o

um pouco...” (p. 100). Afinal quem são os ratos? Humanos personalizados mamíferos roedores? Quem com Kafka fere com Kafka será ferido.

O que isso tem a ver com rock’n’roll? Tudo. O romance do Dyonelio é um autêntico thriller contemporâneo, na medida em que transforma o leitor num

investigador dos maneirismos humanos. E um bom thriller tem sempre como trilha sonora uma boa seleção de rock. Apesar de até o presente instante não se ter

falado em música, o próprio romance traz o seguinte enunciado:

Uma “ária” (ou qualquer coisa desse gênero). Vem de longe e de dentro da casa. Tem o som um tanto velado. Vai-se definindo melhor à medida que

Naziazeno avança. Pouco a pouco aumenta de intensidade e clareza. É uma voz masculina, de tenor. Coisa conhecida... Soa muito forte, quando ele defronta a casa

onde o rádio está tocando. Todo o bangalô parece estar vibrando – enorme caixa de música... A ária depois diminui, quase se apaga no intervalo das casas. Mas

agora vem crescendo... crescendo... Até que ressoa com toda força outra vez defronte doutro prédio, doutra janela entreaberta... E dessa forma ela nunca se extingue.

(p. 45)

Umberto Eco diz que “entre a intenção do autor ... e a intenção do intérprete ... existe a intenção do texto”. Ele que me perdoe a superinterpretação mas,

consideradas as intenções, isso que o texto canta é música urbana. Minha cultura musical intui que a música que sai pela “janela entreaberta” é uma ária-rock:

Strange Days; a “voz masculina, de tenor” é a do poeta maldito do psicodelismo pop: Jim Morrison. Quem atualiza o texto não é o leitor? Então? Antes que alguém

se pergunte vou adiantar: no momento em que eu lia esse trecho do livro, o CD Surfing With the Alien, do Joe Satriani, era a trilha sonora da minha leitura. E a

música? Crushing Day. Coincidência ou não, a relação temática dessas músicas com o estranho e esmagador dia do Naziazeno é, no mínimo, instigante.

Continuando o investimento neste delírio lírico, reporto-me aos últimos capítulos do livro de Dyonelio Machado, momento em que se narra a noite em claro

do protagonista, agenciada pelo chiado do que ele supunha ser insetos e intercalada pelos fragmentos da memória de seu dia de cão. O discurso fragmentário desse

movimento do livro nos deixa ver cenas concomitantes como no cinema. O leitor assiste a narrativa cheio de temores e ânsias controladas, em parte pelo comodismo

medroso do herói (ou seria anti-herói?) e em parte pelo retardamento do desfecho do enredo: são seis capítulos de extrema tensão e mistério até o desembocar num

clímax revelador:

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ISSN 1517 - 5421 25

Um rufar – um pequeno rufar – por sobre a esfera do chiado, no forro... Ratos... são ratos! Naziazeno quer distinguir bem. Atenção. O pequeno rufar – um

dedilhar leve – perde-se para um dos cantos do forro...

Ele se põe a escutar agudamente. Um esforço para afastar aquele conjunto amorfo de ruidozinhos, aquele chiado... Feito de várias notinhas geminadas,

fininhas...

São os ratos!... (pp. 137-138)

No headphone do discman, Hot rats, do Frank Zappa, a todo volume, alimenta minha imaginação. A sintaxe do texto literário e a do texto melódico, suas

sintonias: as frases fragmentárias, cheias de reticências e cortes abruptos; as escalas entrecortadas, cheias de silêncios e ruídos amorfos. A invenção narrativa

digitalizada no virtuosismo sugestivo do tema instrumental: casamento perfeito entre os riffs dos ratos e os guinchos das guitarras... roendo... roendo... roendo... ratos

quentes...

Caberia aqui contar o desfecho do romance. Os ratos roeram o dinheiro que pagaria o leiteiro? Naziazeno conseguiu dormir e ser feliz? Não contarei. Leiam

o livro. Fico questionando cá com os botões: será que o Cazuza, como o Arnaldo, leu Os ratos? Assim mesmo vou cantarolando um trecho de O tempo não pára:

“sua piscina está cheia de ratos/ suas idéias não correspondem aos fatos/ o tempo não pára”.

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CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO I, Nº07 JUNHO - PORTO VELHO, 2001

VOLUME I

ISSN 1517-5421

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NILSON SANTOS

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BACHELARD - IMAGINÁRIO E MODERNIDADE: CIÊNCIA E IMAGINAÇÃO

ARNEIDE CEMIN

αΩ

PRIMEIRA VERSÃO

Page 27: Volume I

ISSN 1517 - 5421 27

Arneide Cemin BACHELARD - IMAGINÁRIO E MODERNIDADE: Professora de Sociologia CIÊNCIA E IMAGINAÇÃO [email protected]

Bachelard é reconhecidamente um homem de ciência, seus textos epistemológicos fundamentam-se nos dados das Ciências físicas e químicas.

Homem de ciência, Filósofo da Ciência, que, entretanto, ao mesmo tempo contribuiu de forma decisiva para uma Metafísica da Imaginação, uma Filosofia

da Imaginação entendida enquanto poética, no sentido de poiésis, de criação. De acordo com o desenvolvimento Filosófico da modernidade – Metafísica

Crítica/Kant, e Fenomenologia/Husserl, o autor indaga acerca da contextura própria dos fenômenos Ciência e Imaginação. Mas, como procede Bachelard

para abordar os domínios da ciência e da poiésis?

Faz uso de uma de suas categorias epistemológicas, a noção de “ruptura” ou “corte epistemológico” que, no caso, configura-se em corte na imagem

pela qual ilustra duplamente o homem. A partir da consideração das funções psíquicas fundamentais, tais como a função do real e a função do irreal;

distingue e analisa o homem da ciência, “homem diurno”, que deve atuar no domínio da consciência, locus da técnica reprodutora; e o homem da poiésis,

“homem noturno”, enraizado nos domínios mais arcaicos, profundos, e ainda desconhecidos da psique, locus da criação. De modo que propõe uma

psicanálise da razão e da imaginação.

Ao mesmo tempo, Bachelard, no conjunto de sua obra, potencializa a razão, purificando-a do “pré-saber”, incluindo as cosmologias tradicionais e

os representantes das pulsões: intimações cósmicas e orgânicas, respectivamente, recomendando que a razão científica seja “psicanalizada” para que se

torne razão consciente. No mesmo movimento, limita o projeto da razão, evidenciando que ela não vai ao ontológico, ao “lócus” de criação do ser, uma

vez que atua a nível pré-consciente e consciente, quando bem conduzida.

Para que a ciência realize adequadamente sua contextura fenomenológica, ele propõe os procedimentos epistemológicos suscetíveis de orientar a

razão científica: o já citado “corte epistemológico”; a “superação dos obstáculos” (resistências, inércias, imagens primeiras); e, a “vigilância

epistemológica”.

Quanto à objetividade científica, ele argumenta que não há verdade com validade universal; cada ciência cria a sua verdade; assim, além dos

parâmetros de validade intrínsecos a cada ciência, para além das verdades suscitadas pelas epistemologias regionais, a objetividade deve ser intersubjetiva,

dizendo respeito à verificação coletiva, ao estabelecimento de critérios públicos e à circulação e confrontação de idéias no interior das comunidades

científicas.

Page 28: Volume I

ISSN 1517 - 5421 28

Ao discutir o confronto entre o Determinismo e o Indeterminismo, aborda a causalidade salientando que desde a teoria da relatividade sabemos que

o tempo é inseparável do espaço. Sendo assim, a causa não pode ser unívoca, ela é um estado escolhido entre outros estados possíveis, e estes, por sua vez,

não se inserem em um instante particular retirado de uma temporalidade absoluta, mas são, eles próprios (a multiplicidade dos estados), fundados em um

instante singular.

Compreende que a Filosofia da Ciência só pode ser histórica, e argumenta que a história da ciência é feita de descontinuidades, rupturas e

retificações sobre o seu “tecido de erros”. Entretanto, a ciência não vive apenas de descontinuidades; assim, a relação entre o passado, o presente e o devir

não é ignorada por ele que a especifica através da noção de “recorrência epistemológica”.

Afirmando que ciência e poiésis são dois projetos distintos, deve o homem de ciência abdicar da imaginação? A resposta é não. Dissemos que

Bachelard contribuiu para o prestígio da imaginação, ao considera-la como tema de reflexão, reafirmando que ela é função psíquica fundamental e

definindo-a como poiésis, criação. Constituindo-se como a experiência mesma da novidade e da abertura antropológica entre o homem, ele próprio, e o

mundo.

Entretanto, sua pedagogia adverte que, quando se trata de fazer ciência, as “imagens primeiras”, oriundas das solicitações pulsionais, cósmicas e

socais devem ser “purificadas” pelos procedimentos epistemológicos do corte, da superação e da vigilância.

Mas com essa formulação Bachelard nos colocaria diante do dilema ciência ou poiésis? Não, se considerarmos o que decorre da pedagogia do

autor, pois o que ele nos propõe é uma atitude filosófica. Um chamamento para que nos tornemos filósofos, amantes da sabedoria e, com isso, a cada vez,

termos a possibilidade demiúrgica de sermos os criadores dos fenômenos aos quais nos dedicamos: conhecimento, elucidação.

A ciência, diz ele, é invenção humana, é “fenomenotécnica”, fenômeno humano, artefato cultural. E o fato científico se “conquista”, contra o senso

comum – nosso e do meio; se “constrói” – não é dado natural; e, se “comprova”, através da substituição das metafísicas intuitivas e imediatas pelas

metafísicas discursivas, passando constantemente da descrição ao comentário teórico.

Sendo a ciência produto do espírito humano relacionado ao mundo exterior, não se sustentam as unilateralidades postas pelo Racionalismo e pelo

Idealismo de um lado; e, pelo Realismo e pelo Empirismo de outro, visto que a cultura científica ocorre entre essas duas metafísicas contraditórias, porém

complementares, pois a demonstração científica se apóia tanto na experiência (empiria) quanto no raciocínio (razão).

Assim, a psicologia do espírito cientifico requer a síntese das contradições e exige que o direcionamento do vetor epistemológico vá do racional

para o real. Embora, não haja positividade absoluta nem do experimento nem da razão, pois a relação entre a teoria e a experiência é tão estreita no

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ISSN 1517 - 5421 29

pensamento científico contemporâneo que ele deve ser flexível, móvel para, a cada vez, reordenar os seus dados, retificando os seus erros; bem como,

deve dar conta das ambigüidades.

O epistemólogo deve colocar-se entre o realismo e o racionalismo para perceber o movimento duplo pelo qual a “ciência simplifica o real e

complexifica a razão”. A ciência moderna baseia-se no projeto que obriga a refletir antes de observar, construir os instrumentos de observação, levando

em conta que os instrumentos são “teorias materializadas”. Sendo o fenômeno um “tecido de relações”, é preciso construí-lo por métodos múltiplos,

rompendo com a crença de que o “ser é sempre o sinal da unidade”, inscrever no ser os caracteres complementares e “fundar uma ontologia do

complementar menos asperamente dialética que a metafísica do contraditório”.

É preciso realizar a nível psicológico o projeto epistemológico da ciência contemporânea que é “racionalismo aberto” porque “racionalismo

aplicado”, e a interação entre a prática e a teoria permite as surpresas tanto de uma nova imagem ou nova associação de imagens, quanto as surpresas

criadas pelas sugestões do pensamento teórico.

Entretanto, ele argumenta que o fundamento da surpresa é a função imaginante e que a felicidade do sábio é unir o poder da ação racionalista ao

poder da ação criadora, ao poder da ação poética. Indica que reconhecemos a marca do progresso através daquilo que põe na nossa razão segurança e

felicidade, pois a “compreensão tem um eixo dinâmico, é um impulso espiritual, é um impulso vital”. Torna-se necessário, pois, abolir o pensamento

usual, o pensamento sem esforço. Retomando Nietzsche, ele estabelece a “filosofia do não”, do porque não, pois cita: “tudo o que é decisivo só nasce

apesar de. Apesar da evidência, apesar da experiência imediata.

BIBLIOGRAFIA: BACHELARD, Gaston. O Novo Espírito Científico. Lisboa, Edições 70, 1986.

Page 30: Volume I

30

UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO I, Nº08 JUNHO - PORTO VELHO, 2001

VOLUME I

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia FABÍOLA LINS CALDAS - História

JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL - Geografia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO - Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

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ISSN 1517-5421 lathé biosa 8

FILOSOFIA PARA CRIANÇAS

NILSON SANTOS

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

αΩ

PRIMEIRA VERSÃO

Page 31: Volume I

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Nilson Santos FILOSOFIA PARA CRIANÇAS

Professor de Filosofia e História da Educação

[email protected]

A década de 60 representa para a Escola Nova uma interrupção abrupta no que tange ao seu apogeu e esgotamento, pois o Golpe Militar de 64 pretendia

representar o fim do debate pedagógico, ao instalar o tecnicismo como pedagogia oficial. Portanto a agonia do Regime propiciou o rompimento da padronização

imposta na educação e o retorno do debate pedagógico fundamental à inteligência, e, por conseguinte, supérfluo ao imaginário burocrático-militar.

A década de 80 parecia representar para o Estado, o início do fim dos modelos autoritário e burocrático, revividos nos anos atuais sem a truculência da

ditadura, mas impregnada de prepotência e tecnicismos.

As políticas públicas da época desgastadas pelo clientelismo, pelo favorecimento ilícito, pela incompetência, pelos megaprojetos, que trouxeram mais

problemas que soluções, somadas à crise do petróleo e ao fim do milagre econômico mantido com empréstimos do exterior, obriga o governo a fazer concessões, a

permitir uma maior participação da sociedade civil nos destinos do país.

Neste período, muitos setores da sociedade organizada pressionavam. Se por um lado temos o governo exaurido de projetos de qualidade, de poder político e

econômico, mergulhado numa “escola” de corrupção acobertada pelos militares (cujos “alunos” mais aplicados aparecem diariamente nos jornais), por outro temos a

sociedade civil disputando o loteamento dos espaços existentes, fracionando o poder político através da eleição de lideranças mais democráticas, ao menos ampliando o

poder da fala e da contestação, diminuindo a distância entre Estado e Sociedade, poder e povo.

A educação militarizada tem um comportamento semelhante. A proposta tecnicista imposta por militares de competência duvidosa, pedagogos iludidos com o

poder, e advogados (que dispensam adjetivos) dedicados a legislação do ensino, trouxe muito mais desvios que resultados satisfatórios: a febre legiferante criou uma

teia de leis que buscava modelar a atuação do professor (chegando ao absurdo de “sugerir” a roupa que deveriam usar) retirando-lhe a autoridade e a dignidade (o

professor da famigerada disciplina de Educação Moral e Cívica só estaria habilitado se conseguisse atestado de “bons antecedentes” na delegacia mais próxima, ou seja

somente os mais alienados ou os cães de guarda do regime estariam aptos).

Tudo o que não estivesse de acordo com a tecnocracia era ilegal. Este modelo de ensino revelou a incapacidade de lidar com o ensino ou a efetiva

despreocupação com ele, uma vez que foram criados diversos cursos profissionalizantes com a ausência de laboratórios (ou quando existentes, os equipamentos eram

Page 32: Volume I

32

obsoletos), com falta de professores capacitados, ou ainda cursos incompatíveis com a região. A capacidade criativa é banida, pois, oficialmente o que não nascia do

poder era subversão a ele.

É a partir desse sistema desmantelado, que surgem discussões, buscando recuperar o tempo perdido. O debate pedagógico reaparece com vigor, deixando de

ficar restrito ao ambiente universitário.

Neste instante retoma-se a discussão acerca da volta do ensino da Filosofia no 2º grau. Surge, em 1984, a Sociedade de Estudos e Atividades Filosóficas -

SEAF; em 1985 acontece o I Encontro Estadual de Professores de Filosofia em Santos - SP. O Departamento de Filosofia da USP começa a se preocupar em organizar

cursos de reciclagem para os profissionais atuarem no 2º grau, já que durante o militarismo sua atuação se restringiu ao ensino de Filosofia nas Universidades e nos

Seminários Religiosos.

Dentro deste contexto de desconfiança no passado, confiança hipotética no futuro e incertezas no presente, a Filosofia renasce para as escolas públicas de 2º

grau. Nos debates que se sucederam algumas instituições de renome como USP, PUC-SP e PUCCAMP, se agregam defendendo a volta da Filosofia no 2º grau.

As preocupações e os cuidados neste momento são redobrados, afinal deixava-se o "fim do túnel" e eram sentidas ações que buscavam mergulhar novamente o

país na linha dura; como a explosão de duas bombas no dia 30 de abril de 1981, num show comemorativo ao Dia do Trabalho, onde morreram dois membros do

exército, além da forte recessão e o alto índice de desemprego destes anos girando em torno de 28,4%, alimentando as incertezas e as avaliações mais pessimistas.

Dentro deste contexto chega ao Brasil o Programa de Filosofia Para Crianças, surgindo o Centro Brasileiro de Filosofia Para Crianças - CBFC, fazendo nascer

a mais bem estruturada proposta não governamental de educação reflexiva, voltada para crianças da História da Educação Brasileira.

O grande desafio dos promotores do Programa, no Brasil, parecia ser primeiramente a resistência que os educadores e filósofos brasileiros mantinham com o

que "vinha de fora", especialmente dos EUA.

E não era por menos. Os acordos MEC-USAID destruíram grande parte do potencial crítico e criativo da universidade; chegando nos dias de hoje onde os

cursos são cada vez mais técnicos e menos reflexivos.

O Programa de Filosofia Para Crianças surgia na contra-mão do momento de auto-afirmação da sociedade civil brasileira. Porém, a persistência e a ousadia

tornaram evidentes os propósitos dele preocupados em discutir temas de conteúdo existenciais fundamentais ao homem do nosso tempo, garantindo às crianças, desde

tenra idade, a possibilidade de buscar bases significativas para a vida, buscando respostas para perguntas que os adultos há muito deixaram de fazer: VIVER PARA

QUE?

Este método parte do pressuposto de que as escolas vêm tendo grande preocupação com os conteúdos escolares, em detrimento de fortalecer nos alunos uma

série de habilidades de raciocínio, que são fundamentais para vida e também para a aprendizagem.

Estas habilidades envolvem a nossa capacidade de pensar de forma ordenada, coerente, criativa e auto-corretiva.

Page 33: Volume I

33

A escola continua a estar apoiada basicamente na memória como instrumento de aprendizagem; quem não se lembra das noites decorando tabelas de verbos

irregulares de inglês, os elementos da tabela periódica, os títulos e autores das obras da literatura, as datas e vultos - ou visagens - da história. Os exercícios ou as

experiências realizadas pelos professores (como se fossem inovações pedagógicas) têm como objetivo a assimilação da matéria, em nada diferente da memorização.

Em alguns casos são permitidas pelos professores algumas construções ou associações livres, porém, o aluno não desenvolve seu próprio juízo acerca das coisas, nem

consegue entender os nexos entre os conteúdos, pois não pode ultrapassar a matéria dada pelo professor.

Neste sentido, o Programa de Filosofia para Crianças, pretende justamente propiciar aos alunos uma série de discussões de cunho filosófico, onde o

fundamental é ser crítico, ser inventivo, viabilizar alternativas, estabelecer cooperação intelectual, exigir razões, explicitar os sentidos, e comprometer-se com uma

forma de pensamento que seja auto-corretiva pelo diálogo.

Educar implica em aprender e fazer, em fazer e pensar, em compreender e justificar, em dizer e construir, em buscar e discordar, em criar e destruir. Mas como

ninguém consegue ensinar o que não aprendeu, o caminho ainda parece longo.

Page 34: Volume I

34

UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO I, Nº9 JULHO - PORTO VELHO, 2001

VOLUME I

ISSN 1517-5421

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NILSON SANTOS

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A UNIVERSIDADE NAS RONDÔNIAS

ALBERTO LINS CALDAS

αΩ

PRIMEIRA VERSÃO

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35

Alberto Lins Caldas A UNIVERSIDADE NAS RONDÔNIAS Professor de Teoria da História [email protected]

"Primeiro a razão. Depois o pau nas costas, que ninguém é de ferro." Todos, quase sem exceção, estão tentando desesperadamente estrangular a universidade. Sejam advogados, politiqueiros, repórteres, ex-reitores, professores ratuínos ou alunos pelegos e direitistas. Todos resolveram, puros como são, santos como pretendem, heróis como se apresentam, "sem nenhum interesse a não ser o bem comum", esmagar por todos os lados a universidade. Vejamos porque. Pela primeira vez em sua história a Universidade Federal de Rondônia conseguiu formar uma equipe de pesquisadores, que publicam e criam dentro da universidade, dirigindo uma instituição que estava desacreditada, cheia de professores-ratos (aqueles que pensam somente em dinheiro), administradores de um poço quase sem fundo, destruindo o dinheiro público, centros e laboratórios por descaso, burrice e inaptidão (os mesmos que agora arregimentam uma legião de bem-feitores, heróis e policiais: todos por baixo do pano e dizendo que foi o outro). A qualificação de professores cresceu numa progressão geométrica e a pesquisa tornou-se sólida e confiável, saindo da condição de escola, de colégio de faculdade de ponta de esquina e caça níquel. Abriram-se mestrados institucionais (um aprovado pela CAPES e três em processo de aprovação), mestrados e doutorados interistitucionais para os professores. Mas todos agora querem "informar a sociedade" de uma podridão escondida: como se houvesse algo escuso, se esquecermos suas próprias intenções. Querem forçar um atropelamento de leis e normas que jamais existiu. Resumindo: está iniciada a antiga maneira portovelhaca de se iniciar o processo eleitoral na universidade: processos, mentiras, trucagens, truculências: ainda estão fazendo as mesmas travessuras de um tempo onde a maioria dos professores da universidade eram professores de segundo grau. É uma lástima. Mas não há como fugir! E nem queremos fugir. Não adianta fingir. Estamos começando a enfrentar as antigas hordas. Mas vamos por partes. Precisamos, primeiro, entender a origem da Universidade Federal de Rondônia (UFRO, que teima-se em chamar de UNIR, nome de colégio) para perceber o quanto seus limites são estreitos, suas projeções tacanhas e o quanto é preciso ainda caminhar para transformar esse colégio-grande numa verdadeira Universidade. Não começou como todas as outras Universidades que podem se chamar assim. Nasceu com "professores de segundo grau", por decreto, por ordem do Estado, para servir aos interesses desse Estado, por indivíduos muito abaixo de qualquer vínculo, experiência ou paixão intelectual: lutavam somente para sobreviver: sua única mercadoria eram as aulas: saíram dos colégios, das escolas para um lugar que é, essencialmente, um espaço de criação. Vieram do segundo grau sem passar pela experiência universitária (que não é somente estudar, mas pesquisar enquanto aluno, criando conhecimento desde o começo, fazendo circular conhecimento, debate e discordância): arrebanhando qualquer um, simplesmente para dizer que havia uma Universidade: selva letrada: anta travestida de onça. E todos os professores dessas escolinhas pensaram, tiveram certeza que uma Universidade é um colégio-grande, onde eles ensinariam e administrariam da mesma maneira: entraram pela janela, sem passar pelo longo e doloroso aprendizado: porque fazer diferente? E ainda hoje a grande maioria dos professores desta universidade continuam, em grande parte, "professores de colégio", e, exatamente por isso, não sabem que são de-colégio. Tornaram-se professores por serem "interessados no assunto": e viraram professores daquela matéria! E isso nenhum mestrado, nenhum doutorado cura, arrefece, abranda ou anula: continua a mesma anta (anta-titulada). Para se formar um professor universitário o processo, necessariamente, tem que ser outro. Não basta ser "o melhor da turma" em Matemática, em Biologia, em Português, em História, em Geografia, em letrinhas. É busca bem mais profunda e complexa, envolvendo a vida inteira. É vontade de redimensionar a sociedade, força viva de reflexão, busca polifônica pelo mundo, pela cultura e pelos outros. Ser professor de uma Universidade é enfrentar todas as conseqüências da criação do conhecimento desde a sala de aula (momento de criação do saber e não da tola transmissão de informações, como se a Universidade fosse um lugar de vendas de um

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produto, a informação, e sua grande função não fosse precisamente desmantelar o mundo da informação) até dedicar a vida inteira a essa criação. E se não vivemos essa tormenta de busca e criação constantes, devíamos ter, pelo menos, vergonha e começar a desconfiar da nossa atuação como professores. Essa falta de desconfiança sobre nossa atuação, essa falta absoluta de crítica e auto crítica, pode caracterizar tudo, menos o professor de Universidade. "Quem não percebeu a invasão dos idiotas não entenderá, jamais, o Brasil dos nossos dias." E nem tampouco a universidade ou a nossa educação. Para o "homem comum", aquele que acredita no Estado, na Igreja e no sentido, apesar de tudo, a Universidade seria o berçário das inteligências, o clube dos sábios, a academia dos melhores. Mesmo com toda a desmoralização da educação ainda se acredita nisso. Pois é exatamente o contrário. Todos os idiotas procuram a Universidade, para serem professores ou para administrá-la (adestrá-la?/amestrá-la? Mamá-la?), os que adoram e dedicam a vida, como se gerissem um banco, uma loja, um estábulo, seja para serem alunos. Temos somente o falso inteligente, o enrolão, aquele que vive de pose, que mesmo sem falar é aluno ou professor da universidade, como se isso o mudasse, ou o tornasse diferente, quando todos sabem que seus trabalhos são escritos por outros (quando não, é tão inútil quanto se fosse), desde a magra monografia até a gorda tese de doutorado; quando todos sabem que nunca leu um livro ou um livro que preste na vida: quando todos sabem que suas aulas não passam de borrões; todos sabem que é somente um saco vazio flutuando no ex-paço. E tudo isso como conseqüência do monstruoso processo de massificação. Já não temos aquele que sabe mas aquele que finge saber. E onde mais se finge é na universidade, verdadeiro teatro do absurdo. O sujeito aproveita todo o imaginário que sempre rondou a Universidade e se coloca dentro dele como se isso fosse a coisa mais normal do mundo. Ele se vê e age como se fosse A Universidade. No entanto jamais pesquisou (diz que pesquisa e todos acreditam), jamais escreveu (usa pedaços dos trabalhos obrigatórios como publicação), jamais criou uma idéia sequer, ou deu um passo a mais do que aprendeu. Mas precisamos compreender melhor os atores deste teatro ridículo. Nosso primeiro tipo é o professor de sala de aula, aquele que somente e porcamente ensina. Esse tipo não consegue entender a necessária criação do conhecimento sequer na sala de aula: sem isso não há Universidade, que não é somente transmissão de conhecimento, coisa que, necessariamente, se faz ao ir se criando tanto o conhecimento quanto a própria didática e o diálogo que os criam. Ser professor da Universidade, não de uma universidade, deveria ser produzir em diálogo o conhecimento e os novos aprendizes do diálogo, pondo em xeque esse próprio diálogo, o que é o mesmo que entender como destruir os monólogos do Poder e dos poderes. Mas o nosso professor, compatível com o mundo em que vive, só transmite conhecimento de livros sem profundidade. O nosso segundo tipo é o professor burocrata (sempre um covarde de meia pataca), aquele que além de dar as aulas do anterior, ou não (por poder a nossa Anta, no mercado burocrático da universidade sem dar aula, pesquisar ou publicar), vive e somente viverá dentro dos poderes da universidade, não conseguindo respirar sem um cargo que lhe dê razão de viver e poder de maltratar (quando sai da burocracia tenta por todos os meios voltar, mesmo que para isso tenha que vender a mãe, prostituir a mulher ou trair o amigo). Somente quem vive e convive com esse tipo de burocrata pode saber a capacidade para distorcer, para mal servir àqueles que criam e pesquisam numa universidade. Sua vida é, obscuramente e com segurança para si mesmo, fazer a vida do outro mais difícil, mais angustiada, mais ainda sem saída. E sai sempre vitorioso: sabem por que? Porque são a imensa maioria. É a unanimidade física da universidade. Praticamente todos os professores do primeiro tipo são potencialmente parte do segundo tipo. E tudo pela Universidade. E voltam sempre: são como ratos, piolhos, gripes e burrice: são recorrentes e inescapáveis. E se "qualificam", e "pesquisam", e "publicam" somente para voltar, pois agora têm que ser doutor para ocupar cargos. Nosso terceiro tipo é o professor rapinante. É um perigo: só pensa em dinheiro. No entanto diz exatamente o contrário. Se cria um curso, cobra caro gritando a deus e ao mundo que está fazendo o bem, que essa é uma grande coisa: "para o bem da sociedade" eles escrevem em seus projetos imorais. Vivem ensinando em colégios, em faculdadezinhas, em cursinhos, em qualquer lugar: dia e noite - noite e dia: a desculpa? é porque "o governo não paga bem", "a vida está difícil", "quem tem família não vive com esse salário": frases típicas de um "professor de segundo grau". Um "professor de primeiro grau", aquele que vive realizando seu sonho e sua criação conseguirá viver daquilo que o apaixona, sem se vender como uma prostituta sem saída. O professor criador, nossa quarta categoria, é parte da esmagadora minoria é o que garante à universidade sua dignidade. É o mais angustiado, aquele que além de não ser ouvido, todos afirmam que só diz besteira. Esse professor escreve mas não consegue dinheiro ou apoio para suas pesquisas ou publicações e quando publica, os amigos e os colegas fazem para seu trabalho ouvidos de mercador, ficam em silêncio, não dizem absolutamente nada, como se não existisse, como se aquilo não fosse com eles e com ninguém: o silêncio é seu destino; ser chamado de trapaceiro é seu cotidiano. No entanto suas vitórias são as vitórias da Universidade: mas os

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professores rapinantes e os professores burocratas partem do mesmo princípio para devorarem: dizem que pesquisam, dizem que ensinam, dizem que publicam: disso tudo eles ficam somente com o dinheiro. Mas a grande maioria dos alunos não é diferente dos professores: fingem-se de mortos e continuam com a ignorância inerte dos que escolheram a

passividade, a normalidade, o de sempre e o esperado: vocações supremas de um nada que ainda não apreendeu nem a ser humano nem a enfrentar a vida

além dos horizontes da novela da oito, das fúteis conversas de fim de expediente e do natural nascimento da prole. Não sabem ouvir, não sabem falar, não

sabem e não agüentam a leitura (leitura de nada: de livro, de madeira, de argila, de vento, de comidas: de nada), não sabem se tornar, e o pior, não sabem que

não sabem, são arrogantes por essa dupla ignorância, a única verdadeiramente perniciosa. São fascistas por desconhecimento, hedonistas por descaso, cegos

e mudos por opção, que ninguém pode alegar inocência, e, acima de tudo, profundamente mal-educados, bárbaros de um tempo reacionário e morto: fuligem

de outras ondas, de outros mares destroçados por "golpes de estado" e o estado dos golpes. São mentirosos, fúteis, covardes e, acima de tudo "funcionários

públicos", o pior tipo de aluno desta universidade infeliz.

Os alunos que carreguem alguma possibilidade fetal de devaneio, de reflexão e de criatividade, os professores, como reprodutores do nada, vão fazer definhar

com um tédio mortal, o tédio daquilo que é inútil mas não sabe. Esses professores não destroem os conhecimentos enganosos, não ferem o real desumano e mesquinho,

não se arriscam numa guerrilha contra os poderes e os saberes naturalizados nem dispedem um grama de saliva com as injustiças de classe. Eles só destroem o

diferente, o que não está embaixo da sua língua e do seu sexo impotente: representam o ensino morto e tudo aquilo que não deixará marca nem lembrança: somen

te aleijões, e de aleijões esse pobre e tolo país está mais que farto.

Page 38: Volume I

38

UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO I, Nº10 julho - PORTO VELHO, 2001

VOLUME I

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NILSON SANTOS

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ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia FABÍOLA LINS CALDAS - História

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O SONHO NO EXÍLIO

CARLOS MOREIRA

αΩ

PRIMEIRA VERSÃO

Page 39: Volume I

ISSN 1517 - 5421 39

Carlos Moreira O SONHO NO EXÍLIO Poeta [email protected]

Não estamos mais no fundo do poço: estamos mordendo o fundo para ver onde vai dar. E não nos espantamos com o sangue e os dentes que vamos deixando

para trás, como se nossos dentes e sangues fossem eternos, como se nossa paciência fosse eterna, como se fôssemos eternos. Está quase tudo morto dentro e fora

desta universidade, e não adianta culpar a instituição – que é virtual – nem a realidade social – que é irreal – nem o país – que é surreal. A maioria está morta por

dentro, está morta burramente e já há algum tempo. Não sei se a universidade é reflexo desta cidade (mesmo sendo apenas conceitual) ou se a cidade é o reflexo da

universidade. Mas pouco importa. São o mesmo território morno, a mesma cidadela de cegos e leprosos. E parece não haver água que nos livre desse mal. Há em

todas as consciências o cartaz amarelo que diz que é proibido sonhar. E há na maioria dos professores desta Casa de Mortos a recriminação tácita por alguém existir,

e há nos olhares dos alunos a memória vaga de um mundo que poderia ter sido mais inteligente. Há um tédio mortal de deserto fedorento entre as salas mal

iluminadas de consciências e entre os vultos mal arrumados de funcionários apenas públicos que dominaram o espaço. Mas é a mesma cena estúpida que se vê pelas

ruas e salas e rodas de conversa desta cidade. Se uma guerra se avizinhasse, se o meteoro já despontasse no céu, vá lá. Mas não. Pura mediocridade aceita como

calma, burrice institucionalizada que se aceita como empáfia. Enquanto escrevo isto há meia-dúzia de pseudo-literatos discutindo nos pombais universitários o sexo

dos pronomes e a geometria rubra e cansada da nova poesia velha. Falo de literatura porque é dela que posso falar e dela falando falo de tudo ao mesmo tempo.

Porque não nos cansamos dessa falta de vergonha e não jogamos mais abertamente? Porque não soltamos nossa verborragia na estrada e na ponte e no rio e dizemos

a que viemos a este mundo curioso? Não. A falta de existência, de leitura, reflexão e diálogo da maioria impede qualquer salto, e eles continuarão lá em seus

círculos insípidos fingindo ser grande merda institucionalizada e que só por isso os alunos devem ouvi-los e segui-los. Mas é possível negar a ordem de seu discurso.

Há muito por se conversar e ser, há muito por ser dito. Há tudo por ser dito, e se já o foi é nossa vez de dizê-lo, mal dito. O que está sendo feito que escape da

mediocridade explícita? É preciso dar nomes aos bois? Vamos lá. Que movimento há no momento que gere qualquer tentativa de reflexão na universidade ou fora

dela? Escrevi com mais dois ou três sujeitos de coragem um manifesto há dois anos e por dois anos tentamos dialogar pelos jornais da cidade, tentando criar o Leitor,

o novo leitor, capaz de novas aventuras e descobertas, mais corajoso e livre que essa horrível média consumidora de livros de enredos de apartamentos de classe

média e poesia fácil fóssil flácida flatulenta e falsária. O que conseguimos? Afastar mais ainda esses candidatos a leitores. Que crítico percebeu existir nascendo aqui

uma concepção forte de literatura que dialogava com os melhores momentos dos últimos mil anos de palavra? Mas se quiserem, podemos falar de outras áreas da

criação. Vamos falar da pintura que, salvo Joesér Alvarez e Carlos Ruiz, não passa de pastiche do rupestre e artesanato das matas peladas destas terras. Nossos

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ISSN 1517 - 5421 40

pintores morrerão de fome, logo em breve. Até aí tudo bem. Não fosse Theo, Van Gogh também teria. O problema maior é que ninguém por aqui, exceto os mesmos

criadores, parecem sem capazes de enxergar os girassóis desses malucos de deus. Como podem não ser capazes de mesmo a distância não reconhecer a estatura de

um quadro alvariano, sua angústia e sua cor? A música então, melhor o silêncio. Nortista, amazônida, aquática e todo o resto que os analfabetos auditivos quiserem

denominar. Nada, quase nada. Pirarucus anêmicos que deveriam tomar nas memoráveis últimas sílabas de seus nomes. Nada contra peixes. Principalmente à mesa.

Mas sua barbatana e dimensão não combinam com a pirâmide e veneno da música que eu sonho. E já houve por aqui quem fosse capaz de fazê-la. Gláucio, parceiro

de sempre, rendeu-se a imagem da própria cabeça na mesa dos outros. Foi boicotado por todos os lados e agora vai embora com o violão entre as pernas como se não

fosse o criador musical do Caixa de Silêncio, na opinião unânime dos que de fato importam, a coisa mais original e revolucionária que já se fez por aqui em termos

de performance musical. Apresentado só uma vez e assistido por pouco mais de duzentas pessoas, não passa agora de mito e memória. Gláucio é o sujeito com

menos técnica e mais liberdade que conheço. É o Jorge Ben daqui e quase ninguém ouviu. Problema nosso. Alberto ainda será considerado o maior ficcionista do seu

tempo, mas você não sabe. Rubens Vaz Cavalcante (Binho), que enquanto músico não escapou do mapa, enquanto poeta é dos melhores do país na atualidade, está

aí, sendo ignorado tacitamente. Quase todos têm vínculo com a universidade e são todos ruidosamente esquecidos. Por que não estão nos colóquios discutindo

literatura e arte? Qual o medo? Durante a fase da guerrilha nos jornais um grupo de jovens poetas partiu para a briga na outra frente. Pois bem. Há dois meses que se

aproximaram tentando um diálogo, abrindo e forçando aberturas na discussão, o que só prova o amadurecimento de suas idéias. Mas do lado acadêmico, nada. Nem

um ovo. Nem uma pedra falsa, apenas risos e arrotos discretos. Se a universidade se furtar ao seu papel de arena e campo de criação não restará muito. É preciso

exercer este papel, o do brigão, a tarefa de irritar, provocar, chamar à briga. Não esse fascismo de donas de casa, não essa leiturazinha idiota, não esses artiguinhos

de jornais escritos por descerebrados, não esse cheiro de clorofórmio que sinto ao entrar pelos portões de vosso templo. Estou cansado da calmaria, e se puder vou

para o Japão, para Verona, para São Paulo, para o Inferno. Mas não fico por aqui. Não quero mais saber da burrice. Não me importa muito o destino sempre igual de

todos, funcionários da covardia nacional. Já fui aluno e pouco devo além da certeza do que não ser. Como artista acredito que só não nos matam e prendem e curram

a todos por falta de oportunidade. Pura falta momentânea de poder. Fosse como no caso de Lorca na guerra civil espanhola e os únicos criadores, as únicas antenas

dessa tribo seriam derrubadas, cada um enterrado em sua vala comum com uma bala vagabunda na cabeça. Não morro mais. Agora só faço poesia, mesmo aqui,

nesta verborragia santa. Mas se escrevo é porque ainda acredito que algo ou alguém ainda poderá mudar, que se escrevo e publico alguém de daqui a duzentos anos

pode achar a coisa toda ainda muito válida e sorrir e dizer que é isso mesmo, que se aquelas antas de um lugar qualquer do início de seu terceiro milênio não

aproveitaram a vida, eles não devem cometer a mesma gafe, porque o tempo não pára e apesar de tudo estamos vivos. É para o outro que escrevo. Lavo minha pena

de vossa tinta e peço outro café. Sou um jovem muito velho para os meus vinte e sete anos e não quero morrer amargo. Mas que há muita burrice por ser combatida,

isso há. E se ainda há espaço como este aberto para a cicuta que carregamos então ele deve ser utilizado até o fim, até que os piores se juntem e calem a boca do

Page 41: Volume I

ISSN 1517 - 5421 41

artista e comecem a ditar as mesmas regras de sempre. Ainda há sonho, mas não sei se há saída. Sei apenas que a raiva deve existir para romper e libertar e que

somos aquilo que nos fazemos, que podemos ser o que quisermos, e que nossa liberdade tem por único limite não destruir o outro. A vida ainda está cheia de vida, é

compacta e visível. Mas antes que esteja triunfalmente morto preciso saber sonhar, mesmo que seja numa paisagem desgraçadamente feia como a que se insiste em

pintar. E daí? Ainda há Beethoven e Jorge e Gláucio, Gogh, Ruiz e Alvarez, Borges, Dante e Alberto, Arnaldo, Rilke e Rubens, eu e todos os que quiserem existir.

Eu quero. E quem sabe talvez no fundo do sonho a gente descubra que o fosso na verdade era a mina e que o oura nos espera com seu sorriso amarelo e sua voz de

soprano?

WHEN I HEARD THE LEARNED ASTRONOMER

Quando ouvi o douto astrônomo

Quando me apresentaram em colunas as provas e os algarismos

Quando me assinalaram os mapas e os diagramas para medir,

para dividir e somar

Quando desde a minha cadeira ouvi o astrônomo que dissertava

muito aplaudido na cátedra

Quão subitamente me senti aturdido e enfastiado

Até que esgueirando-me para fora me afastei sozinho

No úmido ar místico da noite e de tempo em tempo

Olhei em perfeito silêncio as estrelas.

Whalt Whitman

Page 42: Volume I

42

UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO I, Nº11 JULHO - PORTO VELHO, 2001

VOLUME I

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia FABÍOLA LINS CALDAS - História

JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL - Geografia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO - Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

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CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

TIRAGEM 200 EXEMPLARES

EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 11

A LINGUAGEM NA ESCOLA: Um olhar sob a perspectiva da economia das

trocas lingüísticas

MARIA CELESTE S MARQUES

PRIMEIRA VERSÃO

Page 43: Volume I

ISSN 1517 - 5421 43

Maria Celeste S Marques A LINGUGEM NA ESCOLA:

Professora de Análise do Discurso um olhar sob a perspectiva da economia das trocas lingüísticas

[email protected]

A Sociolingüística ao explicar a covariação entre os fenômenos lingüísticos e os fenômenos sociais, revela as diferenças de dialetos determinadas pela classe

social do falante. Hoje, na escola brasileira, essas diferenças geram antagonismos acentuados por estarem presentes classes sociais que historicamente dela estiveram

ausentes.

Os professores, quase sempre de classe média, não percebem que muitos alunos nem entendem o vocabulário mais elaborado usado na escola. Por

vezes, nem compreendem muitas palavras usadas pelas crianças; nem percebem que tais palavras fazem parte da rica herança cultural do grupo social a que

pertencem.

Grande parte das pesquisas e estudos feitos a respeito das causa do fracasso escolar, principalmente entre crianças vindas de ambientes mais pobres,

demonstram que uma das dificuldades está na área da Linguagem.

A perspectiva de Bourdieu sobre a economia das trocas lingüísticas é muito produtiva para se compreender os problemas de linguagem que ocorrem

na escola pelo fato de ter deslocado o ângulo de análise da caracterização da linguagem para a caracterização das condições sociais onde ocorre.

Para o autor, na sociedade capitalista, os bens materiais (como a força de trabalho, as mercadorias, os serviços) e os bens simbólicos (como os

conhecimentos, as obras de arte, a música, a linguagem etc) circulam em relações de trocas desiguais. As relações de forças materiais separam os

dominantes dos dominados através da posse dos meios materiais e as relações de força simbólicas através dos meios simbólicos. Dessa forma, segundo o

referido autor, “não se deve esquecer que as trocas lingüísticas – relações de comunicação por excelência – são também relações de poder simbólico onde se

atualizam as relações de força entre os locutores ou seus respectivos grupos” (p.24).

Conforme Bourdieu, o modelo de produção e circulação lingüística é uma relação entre os habitus lingüísticos (as disposições, socialmente

modeladas) e os mercados lingüísticos nos quais eles oferecem seus produtos. A sua análise da economia das trocas lingüísticas oferece instrumentos para se

compreender fenômenos relativos à produção, distribuição e consumo da linguagem inscritos nas relações sociais, dentre elas, a escolar.

ESCOLA: UM MERCADO LINGÜÍSTICO

Page 44: Volume I

44

Na escola, os locutores (sobretudo, professores e alunos) instauram relações de comunicação lingüística em condições sociais concretas que, segundo

Bourdieu, funciona como um mercado lingüístico.

Desde os primeiros anos de escola, a criança (sobretudo das camadas populares) começa a prender uma língua estranha, que raramente é a sua ou de

seus pais: trata-se da língua escolar padrão, a única reconhecida pela escola como correta.

Toda a maneira espontânea de falar da criança

(expressões, frases, pronúncia, etc.), que não correspondem às

normas da língua escolar, é constantemente corrigida, reprimida,

penalizada pelo professor para que, de correção em correção, todas as crianças falem a língua exigida pela escola.

Se a criança demonstra não saber exprimir o que deseja, se não consegue entender direito as explicações da professora, nem consegue fixar instruções

um pouco longas, ou se tem vergonha de falar na escola, muitas vezes a dificuldade é entendida como tendo origem na criança e que ela deve ser corrigida.

Entretanto, em sua casa, essa criança consegue se comunicar perfeitamente, de falar a língua portuguesa com desembaraço em várias circunstâncias de sua

vida. Segundo Bourdieu (1998:32),

“A língua oficial está enredada com o Estado, tanto em sua gênese como em seus usos sociais. É no processo de constituição do Estado que se

criam as condições da constituição de um mercado lingüístico unificado e dominado pela língua oficial: obrigatória em ocasiões e espaços

oficiais (escolas, entidades públicas, instituições políticas etc.), esta língua de Estado torna-se a norma teórica pela qual todas as práticas

lingüísticas são objetivamente medidas. Ninguém pode ignorar a lei lingüística que dispõe de seu corpo de juristas (os gramáticos) e de seus

agentes de imposição e controle (os professores), investidos do poder de submeter universalmente ao exame e à sanção jurídica do título escolar

o desempenho lingüístico dos sujeitos falantes”.

Muitas crianças, para não correm o risco de serem criticadas por falar “errado”, preferem calar a boca e reduzir o que tiverem de escrever ao mínimo

possível, para não se expor às observações do tipo “pobreza de vocabulário”, “falta de sentido”, “erro ortográfico”, etc. Segundo a perspectiva de Bourdieu,

as palavras são bens que são trocados, na escola. O falante (o aluno) coloca seus produtos nesse mercado lingüístico que é:

“estritamente sujeito aos veredictos dos guardiões da cultura legítima, o mercado escolar encontra-se estritamente dominado pelos produtos

lingüísticos da classe dominante e tende a sancionar as diferenças de capital preexistentes. O efeito acumulado de um fraco capital escolar e de

uma fraca propensão a aumentá-lo através do investimento escolar que lhe é inerente condena as classes mais destituídas às sanções negativas

do mercado escolar, ou seja, à eliminação ou à auto-eliminação precoce acarretada por um êxito apagado. Os desvios iniciais tendem, portanto,

a se reproduzir, pelo fato de que a duração da inculcação tende a variar tanto quanto seu rendimento, fazendo com que os menos inclinados e

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menos aptos a aceitar e a adotar a linguagem escolar sejam também os que se expõem menos tempo a essa linguagem, bem como aos controles e

sansões escolares” (Bourdieu, 1998:50).

Com efeito, Bourdieu reflete sobre a relação professor-aluno, mostrando-a como tensa e não instaurada sobre a singularidade dos alunos.

Caminhando nessa mesma direção de análise Alkmin et alii afirma que é necessário muito mais

“pensar a realidade social do que a realidade lingüística. Sabemos que a utilização da língua é regida por um conjunto de regras sociais que

regulam a pertinência ou não, a adequação ou não dos comportamentos lingüísticos. Ou seja, tanto para a escrita como para a fala, existem

restrições e assentimentos quanto ao seu uso: há punições previstas para quem infringe essas regras que vão desde estar exposto à galhofa até

não ser aceito em empregos, por exemplo. Não podemos perder de vista que a hierarquização das formas lingüísticas é calçada em valores que

refletem a estrutura de uma sociedade, no caso da nossa, a de uma sociedade de classes1.

No mercado lingüístico, por exemplo, o escolar, em que a modalidade de linguagem legítima domina e se impõe, o aluno aprende também as

condições de sua aceitabilidade, que Bourdieu (1998) chama de aceitabilidade sociológica e não lingüisticamente como faz Chomsky; para ele,

aceitabilidade não é apenas o uso da língua intuitivamente “gramatical” ou “normal” (como diz Chomsky), mas um uso da língua que engloba tanto as leis

propriamente lingüísticas da gramaticalidade internalizadas pelo falante quanto a formação de preços característicos do mercado em questão. Isto significa

que “as condições de recepção antecipadas fazem parte das condições de produção, e a antecipação das sanções do mercado contribui para determinar a

produção do discurso” (Bourdieu, 1998:64).

Em suma, a escola é lugar onde a aquisição do capital cultural e do capital lingüístico pelo falante acontece de por meio de um processo formal e

intencional de inculcação de regras explícitas. O mercado lingüístico escolar tem a especificidade de ser uma instância social a serviço do mercado cultural e

lingüístico dominante para reproduzir e difundir a linguagem legítima que confere aceitabilidade. Dessa forma, é oportuno perguntar: como a escola trata das

diferenças dialetais? É o que se discutirá a seguir.

O DIALETO E LÍNGUA LEGÍTIMA

Todo falante nativo usa sua língua de acordo com as regras específicas de seu dialeto, reflexo da comunidade lingüística a que pertence. Dessa forma,

há diferenças entre as regras de um modo de falar de um dialeto e o de outro. Como afirma Alkmin et alii (19991:25), “[...] a língua é um complexo de

variantes e não existe superioridade de uma variedade sobre a outra”. No entanto nem todos possuem o mesmo valor no mercado, visto que a presença de

1. Grifo nosso.

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grupos hierarquizados é a condição para a instauração de relações de dominação lingüística. Como explica Bourdieu, no mercado lingüístico (e, neste ensaio,

em particular o escolar), o valor dos produtos lingüísticos (seu preço) rende lucro para o falante, cujas características lingüísticas correspondam às posições

econômicas e sociais privilegiadas. A linguagem legítima é aquela dos grupos dominantes. Ela se converte em capital lingüístico, favorecendo a obtenção de

lucro por aqueles que o detêm. Com efeito, conforme Bourdieu (1998:41),

“ao privilegiar as constantes lingüisticamente pertinentes em detrimento das variações sociologicamente significativas para construir este

artefato que é a língua ‘comum’, tudo se passa como se a capacidade de falar, mais ou menos universalmente difundida, fosse identificável à

maneira socialmente condicionada de realizar esta capacidade natural, cujas variedades são tantas quanto as condições sociais de aquisição”.

Para Bourdieu, as diferenças lingüísticas de pessoas provenientes de diferentes regiões se encontram relegadas ao inferno dos regionalismos, das

expressões viciosas e de erros de pronúncia que os professores corrigem. “Reduzidos ao estatuto de jargões idiomáticos ou vulgares, igualmente impróprios

em ocasiões oficiais, os usos populares da língua oficial sofrem uma sistemática desvalorização” (p.40-1).

No mesmo mercado lingüístico, as pessoas podem ter a mesma competência lingüística. No entanto, o discurso depende da posição do falante do

mercado lingüístico para poder ser reconhecido como linguagem legítima e assim se transformar em capital lingüístico. Em decorrência disso, Bourdieu

critica o conceito de competência lingüística como formulado por Chomsky porque “escamoteia a questão das condições econômicas e sociais de aquisição

da competência legítima e de constituição do mercado onde se estabelece e se impõe esta definição”. Contra a competência lingüística (abstrata) de

Chomsky, sugere o conceito de capital lingüístico, que remete a competência necessária para falar a língua legítima, visto que esta tem um mercado

lingüístico que confere autoridade, poder e dominação ao falante

A COMUNICAÇÃO PEDAGÓGICA NO MERCADO ESCOLAR

O mercado cultural e lingüístico é socialmente dotado de critérios de avaliação que conferem legitimidade aos bens simbólicos, como a própria

linguagem dos grupos dominantes econômica e socialmente. Com efeito, a cultura e a linguagem desses grupos são transformados em capital cultural e

lingüístico e sua aquisição e domínio torna-se uma exigência no mercado dos bens simbólicos enquanto que a cultura e a linguagem dos grupos dominados

são depreciados.

Uma das especificidades mais importantes da escola é ser um mercado lingüístico que usa e ensina a linguagem legítima por meio da comunicação

pedagógica, que tem como característica distintiva a de ser uma relação de força simbólica no grupo constituído pelos professores e pelos alunos.

O papel do professor, na comunicação pedagógica, é o de inculcação da cultura (capital cultural) e da linguagem legítima (capital lingüístico). No

entanto, essa comunicação pedagógica é fundamentada em bases desiguais.

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Os alunos das classes dominantes ao chegarem a escola estão em condições de usar o capital cultural e o capital lingüístico escolarmente rentável,

visto que estão familiarizados com eles em seu grupo social; já dominam, ou podem facilmente dominá-los.

Entretanto, os alunos das camadas populares familiarizadas com sua linguagem, que é considerada pelo mercado lingüístico como não-legítima -

como diz Bourdieu, não reconhecida socialmente - ao chegarem a escola, em geral, fracassam, visto que a comunicação pedagógica não atinge o objetivo de

fazê-los adquirir os bens simbólicos que constituem o capital cultural e lingüístico legítimos. O fato de não dominarem a linguagem da escola se torna difícil

para compreenderem e se expressarem na comunicação pedagógica. E por não disporem do capital lingüístico escolarmente rentável, muitos alunos

fracassam na escola.

A comunicação pedagógica envolve atividades que, em geral, caracterizam-se muito mais pelo reconhecimento da linguagem legítima do que seu

conhecimento. O ensino da língua caracteriza-se pelo estudo da gramática da língua legítima, leitura de textos sempre escritos em língua legítima, correção

da linguagem oral e escrita dos alunos conforme os padrões da língua legítima. Conseqüentemente, para os alunos das classes dominantes, o ensino constitui

além de uma didática do reconhecimento que já possuem da língua legítima, um aperfeiçoamento da capacidade de produção e de consumo do conhecimento.

Todavia, para os alunos pertencentes às camadas populares, a escola possibilita, em geral, apenas o reconhecimento que existe uma maneira de falar e

escrever considerada legítima e que é diferente daquela que conhecem e dominam. Tal reconhecimento se inscreve, para Bourdieu (1998:37-8), “em estado

prático nas disposições insensivelmente inculcadas pelas sanções do mercado lingüístico [...]”. Com efeito, a escola não leva esses alunos a conhecer essa

outra maneira, isto é, não os leva a produzi-la e consumi-la eficientemente, aumentando, assim, a distância entre a linguagem das classes populares e o

capital lingüisticamente social e escolarmente rentável. Segundo Bourdieu (1998:50), “[...] os mecanismos sociais da transmissão tendem a garantir a

reprodução da defasagem estrutural entre distribuição (bastante desigual) do conhecimento desta língua legítima e a distribuição (muito mais uniforme) do

reconhecimento desta língua [...]”.

Dessa forma, os bens simbólicos das classes dominantes e a comunicação pedagógica legítima são instrumentos para o fracasso escolar das classes

populares, contribuindo, assim, para a perpetuação dessas classes como dominadas e para perpetuação da estratificação social.

Retomando a discussão, cabe entender as implicações desse modo de ver a educação.A análise de Bourdieu fornece-nos importantes esclarecimentos

a respeito do sistema educacional e dos processos de ensino e seleção, especialmente com relação à natureza “classista” desses processos.

Entretanto, do ponto de vista do desenvolvimento de uma sociolingüística alternativa para compreender a educação, há limitações. Substancialmente,

uma educação vista à luz da linguagem como um mercado lingüístico não sugere uma disponibilidade para a mudança, na medida em que implica dispor o

aluno numa relação estereotipada com a precariedade do próprio momento. Logo, não é possível pensar-se num processo educacional com fronteiras

determinadas entre educação e o mercado lingüístico, sem o risco de alijar da escola o próprio processo constitutivo de sujeitos.

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Nessa perspectiva, a escola não é o campo de luta contra o fracasso escolar das camadas populares e sim um instrumento e causa para a divisão da

sociedade de classes. A solução dos problemas está na eliminação das discriminações e das desigualdades sociais e econômicas. É inegável a relação entre

escola e sociedade, mas também é verdade que muitas “dificuldades e problemas do ensino de língua materna podem ser resolvidos no âmbito de discussões

pedagógicas e didáticas” (Alkmin et alii, 1991:26).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALKMIN, T M e outros. “A Lingüística e o Ensino da Língua Materna”. In: Geraldi, J.W. (Org.). O texto na sala de aula: leitura e produção. Cascavel,

Assoeste, 1991

BOURDIEU, P. “A Economia das Trocas Lingüísticas”. In: Bourdieu, P. (1998). A economia das trocas lingüísticas. São Paulo, Edusp, 1980.

Page 49: Volume I

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO I, Nº12 JULHO - PORTO VELHO, 2001

VOLUME I

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia FABÍOLA LINS CALDAS - História

JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL - Geografia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO - Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

deverão ser encaminhados para e-mail:

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EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 12

A ERUDIÇÃO EXCEPCIONAL EM FOUCAULT

BERENICE COSTA TOURINHO

PRIMEIRA VERSÃO

Page 50: Volume I

ISSN 1517 - 5421 50

Berenice Costa Tourinho A ERUDIÇÃO EXCEPCIONAL EM FOUCAULT

Professora de Sociologia

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Foucault não nos dá teoria, não produz tese, quando muito hipóteses destinadas a uma verificação. (François Ewald)

A principal preocupação de quem quer comunicar uma idéia – que privilegia o campo científico – como dizia Bourdieu, lugar onde: “(...) o que está em jogo

especificamente (...) é o monopólio da atividade científica, (...) monopólio da competência científica, compreendida enquanto capacidade de falar e de agir

legitimamente(...)” (Bourdier, 1994), gira em torno destas principais questões referendadas pelo discurso cientificista: quem me autoriza a falar sobre isso? Quais serão

as melhores referências a dar autoridade para argumentar sobre essa ou àquela idéia? Qual corrente teórica é mais apropriada? Acredito que essa seja uma preocupação

primeira sempre que surge uma idéia a ser desenvolvida como trabalho acadêmico. Seria cômodo ficar em algum “fichamento” ou em raras incursões variantes sobre a

tese principal. Porém, Foucault nos convida a ousar além dos paradigmas cristalizados e sagrados dos cânones do discurso científicos: “discurso sem referência”

(EWALD, François, 1993), atrever-se a aceitar o seu convite de “lê-lo segundo o princípio da caixa de ferramentas” (EWALD, François, 1993)

Com a alegria em descobrir a possibilidade liberdade, ao escrever, do “fardo das grandes verdades” (EWALD, François, 1993) e apostando que esta reflexão se

configure num exercício de uma de sus propostas: “desembaraçar-nos desta espécie de preliminares. Se temos algo a dizer, dizemo-lo; sem termos de perguntar se

alguma vez teremos, o direito de o dizer” (EWALD, François, 1993).

Uma idéia particularmente chama atenção: Foucault não define a priori nenhum método específico de investigação, embora seu trabalho revele, num

bombástico conjunto de informações, a atividade de um investigador minucioso e subterrâneo, que não deseja se projetar através da construção de grandes resultados,

mas que quer revelar-se por construtos intelectuais e assim projetar um novo saber. Isso é o que interessa.

Se Foucault não utiliza, ou melhor se se recusa a utilizar um dos métodos de pesquisa comumente aceito no mundo científico:

- O que lhe dá a consistência incontestável de contudo?

- Como ele consegue criar força impactante na informação que comunica?

- De que forma ou em que forma ele organiza logicamente as informações que garimpou?

- Como ele amalgamou o sentido que permeia todo o conteúdo organizado?

- Como, trabalhando as muitas informações minuciosas de um cotidiano passado, ele “faz” a “historia do presente”? (Ewald, 1980)

- De onde vem o poder de envolvimento e cumplicidade provocado pelo seu discurso?

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- Por que o ‘meio científico’ lhe cobra constantemente a definição objetiva do traçado percorrido pela investigação?

- O que instrumentaliza Foucault de modo que ele consegue “transgredir as áreas do conhecimento”? O percorrer de forma transversal da história para a psicologia,

desta para a linguagem, etc.?

- Como ele tece o que é comum a todos esses campos do conhecimento.

Uma suspeita nos acode. Foucault tem “alma” de artista-artesão que, desempenhando o papel do arlequim; brinca com as malhas do poder que o retém, provocando o

riso ou o ciso do rei. Daí o desabafo de Clavel: “na sua obra ele entretém-se” (Ewald: 1980, 20).

Foucault faz uso contínuo de tudo que descobre, usa as próprias ferramentas que cria para se esquivar das malhas do poder e assim ele vai aperfeiçoando as

ferramentas em cada obra que escreve.

O que o torna mais solto para criar é a descoberta da operacionalização do poder e o uso contínuo, que desta descoberta faz, no decorrer do seu trabalho.

Ao criar, é um artesão que consegue fazer com que cada parágrafo possa falar por si mesmo, assim é em Vigiar e Punir. Como cada ponto dado à trama, falasse

por si mesmo do todo. É por isso que nos encontramos em seu texto.

Nos vem à lembrança a fábula de Esôpo “O leão e o ratinho”. E usando esta fábula, metaforicamente se descobre o porquê da esquiva de Foucault ser sempre

uma resposta aos intelectuais que dele cobravam uma definição de método e mesmo de postura científica.

O leão representa o poder intelectual que se debate, preso na própria rede que julga poder destruir. E quanto mais se debate, quanto mais acredita que possa se

libertar, mais preso fica. Porque o poder produz.

Foucault desempenha o papel de ratinha, revela que não é se debatendo contra uma possível origem do poder, rugindo alto contra ele, lutando como se o poder

tivesse uma essência própria, como se emanasse de um único ponto; demonstra sim, que é roendo os pequenos nós da trama que tecem a rede — mantendo a malha do

poder coesa — que é possível afrouxar o todo e alongar o espaço para a fuga no sentido da liberdade.

Embora Foucault não proponha ou fale dessa “liberdade”, em ao menos julgue se ela seria necessária, a mantém velada em seu discurso como uma

possibilidade, preservando assim a nossa capacidade de interpretá-la e decidir. Recusa-se a portador da verdade.

Essa postura de Foucault pode representar um belo presente. Preservando-nos de sua capacidade criadora, nos atribui a responsabilidade de pensar e criar,

recusando-se a ser mais um “ponto de referência”, cozido na trama do poder, como verdade a aprisionar.

François Ewald referindo-se a Vigiar e Punir diz: “Discurso feito de referências ou discurso sem referência, é coisa que se afigura pouco clara e de pouca

importância afinal: uma questão de Estilo, de Técnica de Escrita, de pura Forma. Prestemos homenagem a Foucault ao mesmo tempo pela sua Erudição, pela clareza

de seu Estilo, o seu Domínio dos documentos, e avancemos” (Ewald: 1980, 20-21).

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Discordamos da afirmativa de que “discurso de referência ou discurso sem referencia é coisa que se afigura pouco clara e de pouca importância afinal ...”, pois

o modo como Foucault utiliza a “referencia” aliada à erudição para organizar o conteúdo — do que ele vai descobrir no minucioso ‘fuçar’ de documentos do passado

— é de fundamental importância constitutiva de seu discurso, aqui está a engrenagem essencial do discurso foucaultiniano e resposta às perguntas que anteriormente

apresento como inquietação deste trabalho.

Foucault não só muda a perspectiva de como ver as coisas, mas essa mudança implica também em como organizar e como comunicar coerentemente o produto

que a leitura dessa nova perspectiva provoca.

É essa nova leitura, implica um novo instrumento que possibilite executa-la, organiza-la e comunica-la que se configura, à nossa maneira de ver, na

“inauguração de uma perspectiva nova” (Ewald: 1980, 19)

Sendo Maia, no ponto de vista adotado pela analítica do poder há uma “perspectiva eminentemente descritiva”... (Maia: 1995, 84). Em outro momento Maia

observa sobre o estilo de trabalho de Foucault: “... demarca certos domínios ― p. ex., medicina, práticas punitivas, emergências das ciências humanas no séc. XVIII e

XIX ― , submetendo-os a um minudente exame, à luz de uma Erudição Excepcional, privilegiando sempre os dados empíricos obtidos em sua pesquisa de natureza

histórico-filosóficas. (...)” (grifo nosso).

O poder do discurso de Foucault é algo que se apresenta como aparentemente incontestável. O primeiro livro de Foucault que nos caiu às mãos ‘As palavras e

as coisas, causou-nos profunda irritação; não havia introdução, apenas um prefácio de metáforas que provocava sensação da estrada que “sai de algum lugar para lugar

nenhum”. Mas, o texto demonstrou-se cativante. Como se nos obrigasse a construir junto a quem escreve, as idéias a serem comunicadas.

Acreditamos que a ordenação estrutural do texto de Foucault encerra em si mesma, como o próprio instrumento por ele criado, o seu método, que desmantela o

poder do discurso formal e detém, ao mesmo tempo outra forma capaz de organizar as informações encontradas e desmascara-las, na sua própria estrutura de poder.

O seu método de trabalho tem força de comunicação na lógica formal da linguagem adotada em seu discurso.

Foucault é também filósofo de formação. Conhece e estuda a palavra. Sabe como lidar com ela. Sabe como usar a constituição formal das palavras para

construir as idéias. Percebe a dinâmica de mudança que sofre no tempo e no espaço, tornando-se poder e criando coisas.

Por isso foi acusado de “entreter-se” em sua última obra. Tomaria isso como elogio. Ora uma das tarefas preferidas dos filósofos é o prazer de “entreter-se”

com palavras e isso produz conhecimento não utilitarista.

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O filósofo está imbuído de descobrir como as coisas são, como funcionam. Não está preocupado em tornar útil o conhecimento, em apontar aproveitabilidades.

Foucault não foge a esse exercício, inclusive negando-se a ser referência. Pensamos ser esta uma postura relevante do seu trabalho.

Coisa interessante, Maia observa que há no estudo da noção de poder em Foucault “deslocamentos” que são “modificações e diferenciações expostas e

explicitas ao longo de suas investigações: o poder disciplinar, o bio-poder e a governabilidade” (Maia, p. 84).

Em outro momento deste trabalho Maia afirma: “... que talvez este deslocamento seja quase um corolário da forma de Foucault trabalhar. Durante toda sua

carreira ficou claro em estilo onde a pesquisa, como os conseqüentes desdobramentos teóricos, avança ao sabor do material empíricas trabalhado, animadas por uma

infatigável curiosidade(...)”(Maia, 92-93)

E ainda, “... no trabalho de Foucault não há uma intuição primeira que o analista procura comprovar através dos exemplos oriundos de sua interpretação

histórica”.(...) (Maia, 93)

Não há metodologia pré-estabelecida que oriente o caminho da pesquisa. Não há prognóstico a ser esperado, hipótese pré-determinada a ser comprovada ou

refutada. No caso do trabalho de Foucault não se pode falar mesmo em metodologia na acepção do mundo científico.

Então, como se compõe à sistematização lógica de suas idéias, se não há arcabouço de ordenação de conteúdo pré-determinado? O seu método é o domínio da

linguagem, bem articulada na escrita e na fala, o que inaugura o estilo de produção de conhecimento com uma força de comunicação envolvente e forte.

O que dizer do uso das metáforas, a implicação do resultado simbólico que elas podem construir? Não é qualquer um que sabe usar as metáforas como

constructos dinâmicos da língua. Estas aparecem profusamente, principalmente quando a estrutura formal da linguagem se esgota para dar conta do novo. Do novo a

ser revelado.

Assim se entende a metáfora muito mais do que um recurso de linguagem. A metáfora está intimamente ligada ao contexto de organização da frase. Foucault a

usa com maestria.

Não se quer com isso dizer que o mérito do trabalho de Foucault resida no hábil uso da palavra – como um silogismo e seus possíveis aforismos – mas

desconfiar que esta estabilidade seja a estrutura formal do seu método de investigação. Como aborda Meksenas, interpretando Piaget, “... o ponto de partida da

confirmação do real pelo desenvolvimento da atividade cognitiva não é, obviamente, a linguagem, mas a experiência do indivíduo no mundo: a sua práxis”. (Meksenas:

1994, 33)

Page 54: Volume I

54

Não estamos aqui defendendo a tese, do estruturalismo lingüístico, na qual “a linguagem orienta o novo modo de pensar” (Meksenas, 32). Mas, acreditando

como Foucault que esta linguagem, como uma das estruturas formais sobre a qual o poder se apresenta, também produz. Daí atribuirmos a “erudição excepcional” de

Foucault o poder de método no seu trabalho.

Encerramos parcialmente esta inquietação, cumprindo advertir que este arrazoado ousa compartilhar a suspeita que podo estar seguindo uma falsa pista, por

talvez se constituir numa falsa questão. Mas esse é o preço de aceitar o convite de Foucault.

E finalmente as palavras de Foucault acodem “ ... mas eu não sou de forma alguma dessa espécie de filósofo que formula ou quer formular um discurso de

verdade sobre uma ciência qualquer. (...)” (Foucault: 1979, 154).

Referência Bibliográfica

BOURDIEU, Pierre. O campo científico. in: Renato Ortiz (Org.). Sociologia, São Paulo, Ática, 1994.

CORBISIER, Roland. Enciclopédia Filosófica. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1987.

EWALD, François. Anatomia e corpos políticos. In: Foucault – As Normas e o Direito. Lisboa, Veja, 1993.

________. Foucault, Um Pensamento Inconfesso. In: Os deuses na cozinha. Lisboa, Arcádia, 1980.

FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas – Uma Arqueologia das Ciências Humanas. São Paulo, Martins Fontes, 1990.

________. Vigiar e Punir – Historia da Violência nas Prisões. Petrópolis, Vozes, 1987.

GADOTTI, M. A dialética: concepção e método. In: Concepção Dialética da Educação – Um Estudo Introdutório. São Paulo, Cortez, 1986.

MACHADO, Roberto. Por uma genealogia do poder. In: Michel Foucault. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro, Graal, 1979.

MAIA, Antônio C. Sobre a analítica do poder de Foucault. Tempo Social; Revista de Sociologia, USP, São Paulo, 7(1-2):83-103, outubro, 1995.

MEKSENAS, Paulo. Sociedade, Filosofia e Educação. São Paulo, Loyola, 1994.

Page 55: Volume I

55

UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO I, Nº13 - AGOSTO - PORTO VELHO, 2001

VOLUME I

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia FABÍOLA LINS CALDAS - História

JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL - Geografia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO - Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows”

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CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO

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EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421 lathé biosa 13

O MENINO DO BURRO AMARRADO

ABEL SIDNEY DE SOUZA

PRIMEIRA VERSÃO

Page 56: Volume I

Abel O menino do burro amarrado Professor de Sociologia [email protected]

- Deixa de manha, menino! - Não é manha, não, mãe! - E o que é então? - Eu não sei... - Você está é com o burro amarrado! Pode parar com isso, senão vai ficar de castigo a tarde toda. Vamos! O menino ficou por ali, resmungou, limpou suas lágrimas (de crocodilo, dizia a mãe) e silenciou. O avô do menino, que morava ao lado de sua casa, apareceu mais tarde para vê-lo. A mãe, sem paciência, disse: - O seu neto está passando dos limites! Se você ouvir uns gritos, não adianta vir aqui para protegê-lo, pois ele vai apanhar mesmo! O menino, neste exato momento, apareceu correndo, abraçou o avô e anunciou: - Não se preocupe, vô. Eu já desamarrei o burro! Sogro e nora riram do menino, que continuou contando sua façanha: - Eu nem precisei pular o muro. Passei pela fresta, corri lá e soltei o pobre do bicho! A mãe, atônita: - O quê?? O avô, adivinhando o que acontecera, guardou o seu sorriso e fazendo-se de sério, perguntou: - Não vai me dizer que o senhor soltou o jumento do carroceiro? E o menino muito tranqüilo: - Mas o bicho não é um burro? Eu pensei que fosse, vô! E agora? Mas jumento e burro não é quase a mesma coisa? A mãe do menino ameaçou juntá-lo pelas orelhas, no que ele foi salvo pela intervenção do avô, conciliador: - Olha, Terezinha, o menino tomou as coisas ao pé da letra. Vou resolver isso lá com o seu Nicanor. Eu levo ele comigo, para pedir desculpas. E lá foram avô e neto para a casa do carroceiro. O homem estava arrumando a carroça, quando chegaram. O avô contou o ocorrido e todos acharam graça da

estripulia do menino. Por fim, seu Nicanor informou que o jumento não estava longe. Tinha sido visto pastando num quintal próximo e o seu filho já tinha ido buscá-lo. Mas uma coisa seu Nicanor desejava saber: o que passou pela cabeça do menino ao soltar o seu jumento? O menino, sem rodeios, respondeu:

- Não passou nada! Talvez um pouco de vento por cima do meu cabelo! Eu passei foi pelo muro e vim desamarrar o burro, senão ficava de castigo!- E você não sabia que desamarrar o burro é apenas um modo de dizer? Perguntou o avô.

- Saber eu sabia, mas não custava nada soltar de verdade o pobre do burro, que eu vejo sempre preso, sem ter culpa de nada! O que ele fez para ficar preso? Só merece ficar preso quem faz alguma coisa errada!

Seu Nicanor achou graça nas respostas do menino, mas emendou: - E você não sabe que os animais precisam de cuidados? Se eu deixar ele solto por aí, os outros abusam dele. Sobem em cima, jogam pedra... Ele preso está

mais seguro. O menino continuou: - Eu sei. É por isso que eu ainda não soltei os passarinhos da minha avó. Mas bem que eu tenho vontade! Ela diz que os seus passarinhos são todos de gaiola,

mas eu não acredito muito nisso não...

Page 57: Volume I

57

O avô, desta vez, interveio: - Você está dizendo que sua avó mentiu para você? - Não, vô, eu não disse que ela mentiu. Eu disse apenas que eu não acredito muito no que ela disse sobre os passarinhos. Ela escondeu um pouco a verdade.

Mas quando eu descobrir toda a verdade, vou soltar todos os passarinhos que não são de gaiola. - A esposa de seu Nicanor, que estava ouvindo a conversa, comentou: - Mas esse menino é mesmo da pá virada! Tem cada idéia! Como é que você inventa tantas coisas assim, ó menino. - Desculpe, dona Matilde, mas meu nome é João Pedro. Desculpe de estar falando assim com a senhora, é que esses dias eu quase levei uns tapas por causa de

um desses "menino". Eu estava brincando de bola com os meus amigos, quando um deles meteu uma bicuda e a bola quebrou o vidro da casa do vizinho. O filho dele veio de lá e perguntou para um homem que estava perto da gente: "Quem foi que fez isso?" O homem disse: "Foi aquele menino ali" E apontou para o nosso lado. O problema é que havia uns dez meninos. E ele veio foi para o meu lado, querendo me bater. Eu disse para ele que tinha nome, casa, pai e mãe, e que ele não encostasse a mão em mim! Ainda bem que ele me ouviu. Senão eu ia levar uns tapas ali mesmo. No meio da confusão o autor da bicuda deu no pé. E depois foi a nossa vez, todos juntos... Pergunte se ele alcançou algum de nós?

Encantada, dona Matilde, perguntou: - E você, João Pedro, tem quantos anos? - Vou fazer sete anos! - Sete anos, meu Deus! Com essa idade, no meu tempo, as crianças não tinham essa inteligência toda, não! E seu Nicanor, já se esquecendo do que estava fazendo, propôs: - Seu Alcides, deixe este menino passar o dia com a gente. Ele almoça por aqui e à tarde eu levo ele comigo para trabalhar. Para ele vai ser divertido andar de

carroça. O avô não teve como recusar o convite. O problema foi depois convencer a mãe do menino a não buscá-lo.

...... ......

É preciso esclarecer que a história termina assim, tão de repente, pois esta é uma história emprestada. Conheço o João Pedro há muitos anos. Mas não sabia que a sua infância tinha tantas histórias interessantes, até que ele começou a contar uns episódios, ao final do expediente. Eu anotei como pude esta parte da história que acabo de relatar. Como trabalhamos juntos no mesmo jornal, no outro dia mostrei-lhe o rascunho da história. Ele entusiasmou-se tanto que decidiu tornar-se, ele próprio, o escritor do resto da história. Nada mais justo.

E como complemento, pois, temos o desfecho da história acima: "Eu conduzi a carroça, depois de almoçar, brincar com os filhos de seu Nicanor e de conversar com dona Matilde sobre a tal pá virada que ela disse que eu

era... Imponente na boléia, dei o sinal de partida. O burro, manso e obediente, iniciou a marcha. Não demorou muito e eu, inquieto, comecei a inventar, gritando para quem quisesse ouvir: - "Olha o frete! Preço de banana! Olha o frete! Preço de banana!” O bordão deu certo. Um homem acenou logo em seguida para que eu parasse. Parei. Ele perguntou quanto seria o frete para transportar umas coisinhas suas

para a rodoviária. Eu disse: umas bananinhas. O seu Nicanor ficou ali, calado, esperando o resultado da negociação. O homem concordou, pois parecia estar com muita pressa. Negócio fechado, buscamos suas coisas e o levamos para a rodoviária. Ajudei a desembarcar sua bagagem e ele foi cuidar da passagem. Voltou todo satisfeito por saber que não perdera o ônibus. Perguntou novamente quanto era o frete. E eu não tive dúvidas: "Cinco dúzias e meia de banana!" O pobre homem olhou-me desconcertado, sem saber o que responder. Olhou para o seu Nicanor, como a pedir auxílio. Este apenas resmungou: "O negócio é com o menino!" O homem olhou de um lado para o outro, como a procurar alguma coisa, até que achou uma mercearia próxima. E para lá fomos nós. Ele tomou o preço da banana, fez uns cálculos, pechinchou e me pagou. Acabou por levar meia dúzia consigo para comer durante a viagem. E agradeceu ao final, dizendo que aquele tinha sido o melhor negócio de

Page 58: Volume I

58

sua vida... Para mim também foi. Seu Nicanor também pensou a mesma coisa, tanto que voltamos para casa em seguida e fizemos uma festa com todas aquelas bananas. Dona Matilde fez doce, nós comemos, meu avô comeu e eu ainda levei banana para casa, pois precisava provar para minha mãe que, afinal de contas, o seu filho tinha futuro... ...... ......

O João Pedro entregou-me a parte dele da história e afirmou que não dava muito para a coisa; que seria sua primeira e última história infantil. No dia seguinte, ao sair para o almoço, passei pela sua mesa e não o encontrei. Não pude, no entanto, me furtar a olhar o que ele estava escrevendo. E descobri para minha alegria (e dos seus futuros leitores) que era uma história para boi dormir, literalmente:

"... o menino respondeu com precisão: - Ora, estou jogando conversa fora. Ou melhor, estou fazendo o boi dormir. O senhor não vive falando da conversa para boi dormir??!! Seu Alcides não acreditou, mas João Pedro continuou tranqüilamente a conversar com o boi, protegido pela cerca de arame farpado. O boi, que ruminava

deitado à sombra de uma árvore, com os olhos quase fechados, parecia mesmo

cochilar..."

Page 59: Volume I

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO I, Nº14 - AGOSTO - PORTO VELHO, 2001

VOLUME I

ISSN 1517-5421

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A UNIVERSIDADE EM DOIS ENSAIOS

ALBERTO LINS CALDAS

PRIMEIRA VERSÃO

Page 60: Volume I

ISSN 1517 - 5421 60

ALBERTO LINS CALDAS DIGNIDADE, EXCRESCÊNCIA E LUGAR

COMUM

Professor de Teoria da História

[email protected]

Não é tudo tão desgraçado, tão infame e tão mesquinho entre nós na Universidade Federal de Rondônia: há uma Universidade nova sendo lentamente

construída nesses últimos anos. Mas não podemos esconder que ainda há uma universidade velha, excrescência ditatorial de uma sociedade pobre, ingênua e covarde,

gorda de senso comum e ávida por dinheiro, posição e conversa fiada. Todos, naturalmente, querem somente fazer parte daquela que é digna, criativa e nova, e que está

no centro dessa coisa enganosa: mas não é fácil! A mistura se torna cada vez mais difícil. As diferenças cada vez saltam mais aos olhos. Não separar é má fé e boa

canalhice!

Vejamos porque!

Em primeiro lugar a Universidade nova é uma síntese muito bem construída entre aulas bem dadas (conhecimento em construção e não somente o típico

"ensinar de segundo grau": conhecimento e não informação); formação intelectual com formação acadêmica (quando esses elementos se dissociam ou se camuflam

normalmente temos o enrolão acadêmico: ser doutor ou mestre sem a primeira condição é absolutamente ridículo); criação e participação em Centros e Laboratórios ao

mesmo tempo em que articula-se com outros Centros e Laboratórios, dentro e fora da Universidade; pesquisa com projetos aprovados por órgãos como CAPES e

CNPq; orientação de alunos pesquisadores; publicação continuada de artigos e livros; construção de uma "visão de mundo" envolvendo outros professores e alunos em

colóquios, palestras e cursos; envolvimento integral com a Universidade, tanto na graduação quanto nos Mestrados, sem a desculpa que "precisa de trabalhar" fora para

alimentar a ninhada pois "o governo não paga bem": ratazana; e atuação cultural na cidade, isto é, suas idéias e sua ação acadêmica chega até a cidade, seus jornais e

suas conversas.

Em segundo lugar há uma nítida diferença entre o que faz hoje, e se vem fazendo há algum tempo, e o que se fazia, se desejava, se entendia e se permitia fazer

antes. Hoje a Universidade Federal de Rondônia conta com sete Mestrados Interinstitucionais; um Doutorado Interinstitucional e quatro Mestrados Institucionais, além

do incremento das especializações através de parcerias. Os Mestrados Institucionais, aqueles que melhor delineiam uma Universidade Diferente, são o Mestrado em

Biologia Experimental (aprovado pela CAPES), o Mestrado em Desenvolvimento Regional, o Mestrado em Ciências Humanas e o Mestrado em Lingüística (em

Page 61: Volume I

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Guajará-Mirim). Além dos Mestrados os quinze Laboratórios e os quatro Centros de Pesquisa, envolvendo professores e alunos pesquisadores e bolsistas, definem o

processo de crescimento diferencial da Universidade com sua própria história. Ao mesmo tempo consolidou, com muita dificuldade, sete Revistas, todas indexadas,

ligadas aos Centros e Laboratórios; juntamente com sua editora (EDUFRO), o que abre perspectivas instigantes e que em pouco tempo poderá nos pôr em circuitos até

então nem sequer sonhados.

Mas temos somente, entre os 262 professores, aproximadamente trinta doutores e oitenta e um mestres; e o envolvimento desses 262 professores com pesquisa,

publicação, orientação, Laboratórios e Centros de Pesquisa ainda é insuficiente e quase lamentável (talvez menos de um terço: talvez menos que a metade de um terço).

Mas podemos sonhar mais alto. A excrescência antiga, cercada de estranhos lugares comuns, longo campo de força vindo tanto da ditadura quanto da burrice local, vai

aos poucos cedendo lugar a outra ainda frágil realidade acadêmica, que é preciso consolidar, desenvolver e ajudar a manter.

A Universidade sendo essencialmente pesquisa, e não "sala de aula" (a aula é conseqüência da pesquisa, da publicação, do debate, da reflexão e não para se

"ministrar aulas", "assuntos", preparando "profissionais": coisa de governo e pretensão de jerico metido a besta!) ainda precisa caminhar muito. Mas os primeiros

passos foram realmente dados, apesar de serem ainda muito frágeis, podendo, a qualquer gesto burro, se quebrarem inteiramente.

A UNIVERSIDADE: ENTRE O LIXO E O CEMITÉRIO

Crônica Alegre e Bachelardiana Sobre os Lugares e seus Destinos

Tenho, somente às vezes, a estranha sensação que estou sozinho! Que não tem ninguém do outro lado da linha. Vejam bem: sei que vocês estão aí; que estão

lendo o que escrevo; que discutem, pensam, se enraivecem, se orgulham, fofocam, espalham, brecam, silenciam, roem os últimos pedaços de queijo e me desejam boa

sorte e boa vida. Sei tudo isso! Mas a sensação não cessa! Inventam além do correio a Internet, a rede hipertextual, o fluxo vivo das comunicações, a expansão do

diálogo às últimas conseqüências e ... esse silêncio! Essa covardia, essa falta de caráter, essa falta de vergonha em ficar calado quando tudo precisa ser discutido! Ficam

aí somente numa estranha masturbação, roendo os dedos e a língua com os últimos fragmentos do queijinho. E reclamam que o cemitério veio se instalar defronte a

Universidade e que, do outro lado, o lixão infesta o ar. Uma Universidade entre o lixo e a eterna paz: nada melhor que uma imagem destas, uma metáfora assim, essa

estranha hipérbole, para se começar uma conversa (será um monólogo ou estou com mania de perseguição?).

Vejam bem: o lixo e o cemitério! E a Universidade como a mediadora, o centro, o polo de referência, a articuladora, o meio de campo. E não podia ser

diferente! Os mortos e os inutilizados; os usados, os silenciados e os silenciadores: tudo faz sentido, apesar de não sermos soldados!

Page 62: Volume I

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Vejamos: ao articularmos aquilo que morreu com aquilo que foi usado e jogado fora; sendo o primeiro enterrado com ritual e sentimento; enquanto o segundo é

selecionado pelos miseráveis e depois queimado, incinerado e lavado pela chuva e levado pelo vento, temos a nós mesmo enquanto Universidade como imagem

privilegiada: cinza e chorume! vazio de cova e fumaça!

É simples, vocês não precisam quebrar a cabeça, pois não é nenhuma provocação bachelardiana, bastando mesmo um neurônio e meio para se fazer a conecção,

o link: a Universidade comunga e repete o silêncio dos mortos (a cova dos silenciadores, jamais a cova dos leões: uma pena: somente galinhas a espera das raposas),

com seu ritual estúpido e refaz o percurso do lixo, sendo consumido naquilo que já foi usado, servindo somente aos miseráveis e ao fogo: fumaça sem chama!

Vamos mais: se vivemos com uma grande massa de "professores de segundo grau", com "alunos de terceira", picaretas de primeira e futriqueiros de quarta,

podemos imaginar que o silêncio dos mortos é aquilo que mais nos deve caracterizar, pois nada dizem (são os silenciadores!), e o que dizem não é nem pode ser nada: o

silêncio, então, não é algo estranho a nossa estranha forma de viver a Universidade: não devo, pois, estranhar o silêncio, mas compreende-lo; devemos também supor

que o fogo se faz sobre e dentro da inutilidade: o fogo se faz com os materiais inúteis, jogados no lixo: na Universidade o fogo da criação se faz na lenha do inútil

desperdício de talento, inteligência e sensibilidade: mas o fogo é sempre menor e mais sutil, menos forte e mais intenso que a matéria que o faz arder: é somente cinza e

fumaça!

Mas a coisa não é nem está tão preta! Além desse buraco onde termina um cadáver, dessa cinza sufocante, dessa fumaça que a tudo infesta, e antes era mais

profunda, mais afoita e mais perigosa, há uma floresta tentando se recompor e se compor, traçando outros sentidos. Mas vejamos melhor: ainda são os pesquisadores e

os criadores uma pequena minoria entre nós; o número de alunos envolvidos com a pesquisa é ridículo; as publicações que dão pró-seguimento a uma obra (diferente

daquelas lutam desenfreadamente para arrumarem um pontinho na GED) são raríssimos: pontualidades, pedaços de dissertações e teses, desarticulações de artigos

anteriores remontados para serem novos, tatibitati que põe quase todos a rir.

Nosso lema não poderia ser outro: Entre o sono eterno e a fumaça ligeira (isso em latim, sob a maravilhosa sigla UNIR). O cemitério e o lixão: temos agora

nossas imagens fundamentais e nosso lema. Por que mais? Temos tudo!

Este lugar foi duramente conquistado: mantêm o silêncio do cemitério (até a próxima eleição ou até a próxima repartição de algum dinheiro, quando enlouquecem e

gritam e se rasgam e se denunciam e processam e tudo que a canalhice ensinou!); mantêm o vazio mal cheiroso do lixão (como a grande maioria faz parte dos

Silenciadores este odor de inhaca-do-subnitrato-do-pó-de-peido vem de dentro, vem da alma, vem do mais fundo que uma picareta pode cavar). Este lugar, que deveria

ser sagrado, o lugar da inteligência, sofre com os silenciadores: sem fluir o diálogo e a criação, temos somente um ponto vazio entre o lixo e o cemitério. O resto é

alegria!

Page 63: Volume I

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO I, Nº15 - AGOSTO - PORTO VELHO, 2001

VOLUME I

ISSN 1517-5421

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ISSN 1517-5421 lathé biosa 15

ENFRENTANDO O BICHO HOMEM

NILZA MENEZES

PRIMEIRA VERSÃO

Page 64: Volume I

Nilza Menezes ENFRENTANDO O BICHO HOMEM Centro de Documentação Histórica – TJ/RO

[email protected]

Buscando apreender falas femininas, de diversas mulheres de diferentes classes sociais, apresentamos a voz da Mazarelo, uma voz embutida, representativa,

relacionando passado com presente e o processo atual (Bosi, 1994: 9) sendo esse passado um amálgama vivo e ficcional que se apresenta inteiro, fragmentado,

esgarçado, inexistente, recriado, distorcido, lúcido, múltiplo e vivo naquilo que o narrador entende como presente (Caldas, 1999: 22).

Seu discurso trabalhado pela consciência adquirida com o passar do tempo apresenta uma mulher que buscou seu lugar de acordo com os discursos feministas

da época, apresentada com a ficcionalidade que se aloja dentro da memória (Caldas, 1999: 60).

Maria Mazarelo

Para poder contar minha vida, eu tenho que começar da minha infância, pra poder chegar até a minha liberdade. Minha infância, não posso dizer que tenha

sido sofrida, mas foi com muito preconceito.

Eu sou filha de uma mãe solteira, não prostituta, mas de uma mulher sozinha que batalhou muito pra chegar até aqui e tem uma vida muito bonita

que eu achei, assim que eu me entendi por gente eu achei muito bonita a história dela.

É o seguinte, eu aos meus sete anos eu não fui uma menina de muito luxo, mas tive o carinho dos pais estudei em bons colégios, mas não tive aquela vontade

de estudar, eu sempre tive vontade de ser dona de casa, mãe, ter um esposo, sonhava com a casa arrumada. Foi uma coisa muito bonita, foi muito bonita, cheguei até

os meus quinze anos e estudei apenas até a 5ª série depois eu não quis mais estudar.

Fiquei apaixonada por um homem que morava ao lado da minha casa, e os pais daquele tempo eles queriam que a moça casasse com um rapaz que tivesse

futuro, mas eu não queria saber de futuro eu queria ser feliz. Meus pais implicaram muito que ele era vagabundo, daí, eu sou uma mulher que toda vida gosto de viver

aquilo que é mais perigoso, não tenho medo e então eu fugi com ele, não foi nem ele que fugiu comigo, eu fugi com ele, fugi, me casei, tive meus cinco filhos e batalhei

muito pra chegar até 21 anos de casada.

Sofri muito, mas sempre fui uma mulher pra cima, nunca chorando, implorando pra onde ele ia pra onde deixava de ir, sempre cuidando de mim, Eu

trabalhava fora, em casa de famílias, mas nunca dei demonstração pra ninguém que eu era uma lavadeira ou uma empregada doméstica. Sempre elegante, tinha meus

Page 65: Volume I

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cremes, minhas roupas boas, participava em lugares bons sociais e a minha vida foi legal, durante os 21 anos de casamento, hoje sou uma funcionária publica de

forma que eu consegui a me liberar e tudo começou assim, eu vou contar essa história é boa. Uma vez eu estava na minha casa, e passou um homem vendendo livros,

e eu senti que os meus filhos tinham necessidade daqueles livros. Meu marido era empregado da Ceron. Quando ele chegou falei pra ele que tinha comprado os livros

e ele falou que eu é que iria pagar, que eu que desse meu jeito pra pagar. Eu apenas fiquei calada, também não abaixei minha cabeça, eu não devia nada a ele.

Quando foi no outro dia, amanheci o dia me arrumei, me arrumei bem arrumada mesmo, não fui procurar emprego vestida como uma peregrina não. Se

tivesse que me dar emprego era daquela forma. Fui bem arrumadinha, sapato alto, o cabelo bem arrumado com roupa bem feita mesmo, não foi trapo não. Ai quando

eu cheguei numa clinica que tinha na Tenreiro Aranha, era a clinica Sta. Helena. Sai de manhã cedinho não avisei ora aonde ia, eu andei e acabei nessa clinica,

quando eu cheguei lá tinha pra mais de 20 mulheres para uma vaga de limpeza, sorri pra todas, mas pensei: vou ficar aqui que esse emprego é meu.

Foi entrando uma, entrando outra, até que chegou a minha vez a mulher olhou pra mim e disse: você fica. Eu pensei, será que é porque ela me viu

arrumadinha e pensa que eu não vou dar conta. Do jeito que estava ali já fiquei trabalhando. Trabalhava o dia todo, até a noite, só ia ter folga no outro dia. Eu saí de

casa sem avisar nada, mas arranjei esse emprego e só fui pra casa no outro dia de manhã.

Quando eu cheguei em casa estava o marido e meus filhos na mesa tudo chorando. Quando cheguei, ele perguntou onde eu estava, o que eu estava fazendo e

eu respondi: Olha, comprei os livros e você disse na minha cara que não ia pagar e eu mostrei a você que eu vou pagar. De hoje em diante eu vou trabalhar e você vai

ficar dentro de casa junto com seus filhos.

Ai ele implorou não queria que eu trabalhasse naquele horário e mais coisas, mas eu disse: isso é pra você nunca mais duvidar de mim, do que eu sou capaz.

Não pense você que porque eu sou calada eu aceito tudo, estou estudando o que eu vou fazer. Ai tudo bem eu parei o trabalho, ele disse que ia pagar e eu disse: não,

eu vou entregar os livros. Ai nesse momento eu vi que eu podia ter um emprego lá fora, eu não queria ser uma inútil.

Procurei e arranjei um emprego no Tribunal. Tem doze anos que eu trabalho e sempre lutei. Meu marido teve um bom emprego, chegou a ter bons cargos na

Eletronorte, quando ele estava bem, tinha conseguido aquilo que ele sonhava ele me chutou. Ele achou que eu não era mais uma pessoa suficiente pra ele. Pra ele

chorar, pra ele lamentar.

Meu marido viajava muito passava mês fora de casa e eu trabalhando não querendo acreditar, fazendo de tudo pra agradar. Foram vinte e um anos

de casados que nós tivemos e ele nunca perguntou onde estava a meia dele e agora quando ele fez tudo isso, quando estava no auge, quando ele achou que

não precisava mais da família, chegou a me dizer que queria viver a sua vida.

Ela, uma mulher de idade, achou que com ele que tendo um filho ele ia ficar com ela, nem pensou que ele estava abandonando cinco. Hoje ele nem está mais

com ela. Hoje ele fala que eu era uma mulher. E eu disse: eu nunca fui tua mulher. Fui tua empregada. Você não casou comigo, eu casei com você. Que ele nunca

tinha me amado.

Page 66: Volume I

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Eu disse pra ele: vocês homens são cabeça, tronco e burrice. Ele não quis entender. Eu ainda disse: é só você olhar pra traz que você vai ver tudo isso aí que

você está fazendo. Hoje em dia eu tenho cinco filhos. Batalhei pela pensão, mas eu trabalho, meus filhos estudam, graças a Deus nenhum é marginal. Tenho duas

filhas que tiveram filhos, mas eu não aceito ficar com filho de ninguém. Neta é apenas neta. Alimentação, saúde é ela quem corre atrás. Eu ajudo, agora ela é quem

cuida. Quem gosta da gente é a gente mesmo, mas eu amo meus filhos.

Eu sou de Porto Velho, aqui em Rondônia, nasci na maternidade Darci Vargas, fui registrada aqui. Nasci dia 09 de março de 1957, nunca sai daqui. Meu

marido, eu estou separada, é de Rio Branco. Minha mãe, depois que teve eu, ela foi acolhida por uma família daqui de Porto velho, e ela foi morar com essa família e

a mim também, e ela, bem os pais dela são paraibanos e não aceitavam bem as coisas. Minha mãe me teve de um soldado, soldado naquela época não casava.

Minha mãe com 15 anos ela perdeu a mãe dela, o pai dela já era aquele homem, ele bebia, não queria saber dos filhos não queria saber de nada e ela para

sobreviver tanto ela quanto os irmãos, ela teve que trabalhar em casa de família, fazer serviços em troca de um prato de comida até pra trazer para os irmãos que

ficavam em casa esperando pro ela. Então ela diz que quando ela encontrou uma pessoa ela se entregou. Ela achou que ele ia ter um homem pra sustentar ela pra ela

sair daquela vida e até poder ajudar os irmãos. Naquela época soldado não casava, ele nunca deixou de ajudar.

Meu avô queria matar meu pai, ele teve que ir embora de Porto Velho. Eu não sei o nome dele, a minha mãe apenas me falou, mas não chegou a

contar a história do meu pai. Não cheguei a conviver com meus avós. Quer dizer, a mãe da minha mãe morreu antes do meu nascimento. Eu era uma neta

ignorada, porque eu era filha do pecado. Meu avô quis esfaquear ela. Minha mãe saiu de casa, não casou, depois ela chegou a se casar, vive com ele até

hoje, são vivos. Ela, a minha mãe tem uma história muito bonita.

Eu hoje em dia não consigo mais amar, mas eu consigo me dar bem com as pessoas. Eu gosto de ser compreendida. Ninguém nesse mundo é sabido. Ninguém

nesse mundo sabe tudo, mas aprende no dia a dia. É no dia a dia que a gente aprende.

O que ela chama de sua história de vida é apresentada trazendo de frente as histórias das mulheres da sua família. Sua avó, sua mãe e suas filhas. Os homens

são coadjuvantes e exercem sempre o papel de maus. Seu avô maltratou sua mãe, seu pai ela não conheceu, e seu marido foi o homem a quem ela serviu e com quem

teve filhos.

Mazarelo tem uma história para ser contada, uma criação pessoal, uma construção polifônica da sociabilidade (Caldas, 1999: 62) onde ela trabalha os discursos

femininos. O discurso é conhecido, mas poucas mulheres conseguem dar esse salto, virar do avesso o conto de fadas. A grande maioria se sente culpada pelo sonho

fracassado. Sente vergonha em assumir que deu errado e insiste, como se tivesse a obrigação de fazer dar certo.

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Para Mazarelo não, ela retirou da sua história a fraqueza. Trabalha sua fala na vontade da verdade (Foucault, 1999: 17), sabe que ser forte, enfrentar o bicho

homem é uma forma de sobreviver. Atacar é uma maneira de evitar ataques e ela prefere ser fera para não ser a presa, mesmo que para isso tenha que viver espreitando

a vida.

Os homens das mulheres da sua família foram apenas presenças físicas. Nenhuma mulher da sua família foi feliz porque teve um homem. Sua mãe escreveu

sozinha sua própria história. Mesmo assim Mazarelo até sonhou em ter uma casa, ser a dona da casa, em ter um espaço seu, e naquele momento o construiu com um

homem dentro. Buscou uma história diferente daquela que sua mãe viveu.

Ela não quis estudar porque queria ser dona de casa e acabou por descobrir que era necessário ter um emprego, ter uma ocupação além da de ser dona de casa,

até porque ela entendeu que “dona de casa” não é a dona da casa.

O que ela chama de sua história de vida traz esse discurso por onde ela conduziu a sua vida após ter adquirido a consciência necessária para uma vida

independente do homem. Ela aprendeu a lutar pela vida no momento em que seu marido a humilha dizendo que não iria pagar os livros que ela adquirira para

os filhos de ambos. Fossem aqueles livros necessários ou não, serviram para que Mazarelo pudesse enxergar quanto era controlada. Não podia decidir nem

mesmo sobre a compra de livros que um vendedor lhe seduzira dentro do seu espaço de “mando”, sua casa.

O conto das fadas não se apresenta na vida de Mazarelo porque ela retirou do seu discurso o sonho, selecionou seu arquivo de memória (Caldas, 1999: 58). Sua

história hoje é para ser contada. Sabe que já pode usar passagens que antes poderiam causar choque, mas que hoje é até mesmo uma forma de orgulho, como forma de

mostrar o quanto foi forte e venceu na vida. Mazarelo sabe que a sua história de vida, a história que ela apresenta da sua vida é de mulheres vencedoras, fortes e livres.

É o conto de fadas ao avesso, é o avesso do sonho e que serve de modelo para as tantas mulheres que vivem histórias como a que ela viveu. Subjugadas aos maridos,

enclausuradas nos seus castelos “casas” pedindo dinheiro para comprar objetos para uso da família.

Mazarelo enfrentou o bicho homem e descobriu não por busca mas por queda livre no abismo que pode ser homem e mulher.

BIBLIOGRAFIA

BOSI, Ecléa. MEMÓRIA E SOCIEDADE: LEMBRANÇAS DE VELHOS. Companhia das Letras, São Paulo, 1994.

BURGOS, Elizabeth. ME LLAMO RIGOBERTA MENCHÚ Y ASÍ ME NACIÓ LA CONCIENCIA. Siglo Veintiuno, México, 1987.

CALDAS, Alberto Lins. ORALIDADE TEXTO E HISTÓRIA. Loyola. São Paulo. 1999.

FOUCAULT, Michel. A ORDEM DO DISCURSO. Loyola.São Paulo. 1999.

MEIHY, José Carlos Sebe Bom. MANUAL DE HISTÓRIA ORAL. Loyola, São Paulo, 1996.

VIEZZER, Moema. “SE ME DEIXAM FALAR...”. Global, São Paulo, 1984.

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ISSN 1517 - 5421 68

UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)

CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

PRIMEIRA VERSÃO ANO I, Nº16 - AGOSTO - PORTO VELHO, 2001

VOLUME I

ISSN 1517-5421

EDITOR

NILSON SANTOS

CONSELHO EDITORIAL

ALBERTO LINS CALDAS - História ARNEIDE CEMIN - Antropologia FABÍOLA LINS CALDAS - História

JOSÉ JANUÁRIO DO AMARAL - Geografia MIGUEL NENEVÉ - Letras

VALDEMIR MIOTELLO - Filosofia

Os textos de até 5 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows” deverão ser

encaminhados para e-mail:

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EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA

ISSN 1517-5421

lathé biosa 16

O DORSO DA NAVALHA

NILSON SANTOS

PRIMEIRA VERSÃO

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ISSN 1517 - 5421 69

Nilson Santos O DORSO DA NAVALHA Professor de História e Filosofia da Educação

[email protected]

Afinal, acabou o corte da navalha, ou estamos usando o lado sem corte?

A Filosofia, ou melhor, as filosofias apresentadas até a década de 80 não pouparam vigor e arrogância ao refletir os velhos problemas do Homem,

nem mesmo deixaram de buscar novos paradigmas. Afinal o ser de uma filosofia fazia-se visível sobre os corpos de outras que ela mutilara, tornando-as

impotentes diante de uma reflexão que se propunha mais rigorosa, abrangente e bem estruturada.

Hoje, nada mais demodê que falarmos em radicalismos. Preferimos, senão falar abertamente, ao menos insinuar nossas novas crenças pautadas não

numa reflexão rigorosa, mas em algo mais ameno, que seja menos exigente conosco, que nos permita viver com o mundo, sendo como ele, preocupando-se

com seus valores, usufruindo suas benesses, sem ao menos ruborizarmos. Pensamos jamais voltar ao radicalismo solitário e ousado. Preferimos errar com

a “humanidade”, a caminhar só. Afinal perdemos ou cedemos?

As reflexões negociadas parecem conter não somente o bem, o mal, mas parece ser o portador do bálsamo que alivia e estanca a sangria do

conhecimento. No lugar das feridas abertas e do corpo errante em busca do novo, preferimos ser socialmente saudável, limpo das agruras do mundo, “bem

comportado”, que nunca anda longe de casa.

Escolhemos democraticamente o que não necessariamente procurávamos: ancoramos numa praia de areia tão fina e macia, que nos envolve e

imobiliza, conquistamos um sol tão acolhedor, que não pensamos noutra coisa senão em dormir sob seus raios.

Arquitetamos um novo mundo onde estranhamente todos são dotados de vontade, de inteligência e de plena participação, sem algum tipo de valor

absoluto que cobre qualquer responsabilidade mais conseqüente, que nos poupa das longas conferências, reuniões, dos acalorados debates nos botecos, das

noites mal dormidas, das desconfianças de nós mesmos. Este mundo novo, de tão seguro, nos obriga a despojarmos nossas afiadas navalhas, nos convida a

abandonarmos a astúcia e a desconfiança. Deixamos de ser guerreiros para nos confundirmos com um bando de colegiais em férias.

Mas este cenário criado parece ao mesmo tempo acolhedor, familiar e suspeito, ao caminharmos de forma mais maliciosa, nos é permitido ver que

as novas construções são as antigas agora pintadas e com janelas maiores, para se tornarem mais agradáveis, vemos ao longe o local onde supomos ter

atracado um dia: é possível enxergar a vistosa e velha torre de ferro, que abriga em seu topo um farol, que com sua constante luz intermitente, convidou-

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nos sempre a nunca partir ou a sempre voltar. Bem abaixo nos deparamos com um velho porto e o nosso barco, que apesar do movimento do mar ao seu

encontro permanece seguro, talvez aprisionado nesta terra firme.

E a imagem suspeita se completa: são as mesmas e antigas casas, agora reformadas, os sorridentes nativos são nada menos que os antigos liberais e

aquela luz piscando revelou ser o velho e mitológico Porto Seguro, lugar que desconjuramos, fonte do maligno, que agora nos abriga.

Estranhamente, os saudosistas são aqueles que buscam arregimentar boa tripulação para de novo singrarem os mares em busca de novas odisséias

de criação.

Na verdade, quando chegamos, de volta, a maior parte da tripulação sabia onde havíamos atracado, mas num silencioso motim, embarcamos e

comemoramos todos como se tivéssemos atravessado o oceano e atingíssemos um ponto longínquo do outro lado.

Aquele espírito que de tudo duvidava, de tudo achincalhava, de tudo desacreditava, sucumbiu; o último Diógenes foi morto.

Em seu lugar, o antigo revolucionário, agora dócil cidadão, se preocupa em retirar os pontos de interrogação de cada frase, substituindo-os por

pontos finais.

A Filosofia sempre apaixonou por andar de braços com a inquietude; sempre atraiu por tornar a rir do óbvio, e torná-lo objeto de reflexões mais e

mais profundas. E agora alguns poucos em nome do bom senso, vêm nos dizer: baixem as lanças, podemos alcançar uma saída política, negociando os

problemas do homem.

Parece que percebemos que se trocarmos nossas espadas por cabos de vassoura poderemos continuar a brincar de mocinhos e bandidos, sem ferir

ninguém, com a consciência tranqüila que seremos os eternos heróis no jogo social, já que prosseguimos no nosso simulacro de duelo, vestidos de capa e

máscara, mocinhos de brinquedo contra inimigos de verdade. Enquanto isto, nem mesmo arranhamos o “status quo”. Acreditamos que podemos continuar

a falar de transformação, de dialética, de revolução, propondo remendos ou acudindo aqui e ali, um ou outro desavisado que se põe no caminho da

“história” e acaba engolido pelo mercado.

Alguns antigos bruxos medievais, quando queriam predizer o futuro, sacrificavam um animal e olhando suas vísceras. Se a prática parece pouco

aprazível, a alegoria é perfeita. A resposta, para o futuro, não está nos pronunciamentos oficiais, nem nas políticas públicas, mas nas entranhas do que não

é (e talvez não deva ser!) revelado.

Não mais nos perguntamos se um novo jogo pode ser jogado ou quando destruiremos definitivamente nosso sórdido mundo, mas nos resignamos a

pleitear alterações e alguma saída “pelo debate”, “pelo consenso”, “pela hegemonia”, devidamente expurgada dos radicalismos, garantindo de antemão que

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“em direito adquirido não se mexe”. Por covardia de perder o que temos, tornamos Gramsci um escoteiro e Marx um democrata! Queremos cúmplices para

nossos crimes! Queremos um mundo mais justo, porém ainda capitalista, como se isto fosse possível!

O Velho Continente que produziu correntes filosóficas antagônicas de um vigor ímpar, acabou por obrigar a todos, em nome da Humanidade, a

desarmar-se para realizar o diálogo que lenta e democraticamente trata novamente de excluir minorias e estrangeiros.

Não exigiria muito rememorarmos o “empoeirado” Augusto Comte, para quem o produto da Revolução Francesa foi uma anarquia indesejável.

Este quadro anarco-revolucionário, que permitia a plena capacidade criadora do indivíduo, deveria se dirigir para preservar o todo social. A Religião da

Humanidade parecia ser a catalisadora e modeladora dos sonhos do homem.

Hoje, a “Globalização da Economia”, a rede mundial de cooperação e informações, a “Aldeia Global”, dá-nos a sensação que somos todos

representados, que vivemos num mundo em busca da prosperidade e da ordem, e que aqueles que se opõe, estão se colocando contra a prosperidade

mundial. Quem estiver disposto a revelar o canto da sereia, é logo identificado anacrônico, e como tal deve ser tratado.

Temos a ordem, o desejo democraticamente expresso do homem como a luz redentora, e tudo o que se opõe, deve ser minimizado pela “Religião

da Humanidade”, ou seja, pelo novo ópio: a democracia.

Esta Pós-Modernidade nos arrasta para a ERA DA CONVERGÊNCIA INOFENSIVA (que poderia ser muito bem chamada de pós-neo-nada).

Esta necessidade de confluências de todas as forças materiais e espirituais que a democracia exige, obriga todos a se desterritorializarem, perdendo

sua identidade e sua individualidade, desfigurando e neutralizando as ideologias, as artes, as formas de exploração, para instaurarmos pelo movimento

cínico da razão calculada um mundo isento de grandes divergências ou pontas afiadas.

Assistimos todos os dias, e aplaudimos, quando vemos os mais variados grupos políticos e econômicos abrirem mão dos instrumentos de pressão e

poder que fizeram uso, para poderem de agora em diante entrar no jogo democrático. O que nos causa uma paz de espírito!

O Movimento Social Italiano deixou de ser fascista, o IRA quer dialogar, os PC´s querem o mercado. Todos querem a imagem centrista.

O passaporte de ingresso tem que ter o carimbo do expurgo; temos que ser despojados das cores do passado ou até mesmo do futuro. O cinza, da

sobriedade, dá o tom da modernidade. O negócio é dialogar, O NEGÓCIO É NEGOCIAR!

Neste sentido não há lugar mais confortável que o Justo Meio (que o Bom Senso), eqüidistante de qualquer ponto, pode ceder à todos em nome da

metafísica convivência fraterna e do valor mais sagrado que é o diálogo e a negociação.

Levantar-se da mesa de negociações, significa expor-se à encarnação do mal. Não negociar, não ser razoável significa o mesmo que opor-se à

Humanidade (ou ao mercado, tanto faz!).

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Deveria parecer estranho que a democracia virasse unanimidade entre corruptos, pacifistas, empresários, políticos profissionais, religiosos e até

militares.

Isto não representa a apologia dos extremos, mas a sensação de perdemos a capacidade de nos sensibilizarmos para o novo.

E a Razão se torna a mais pura expressão da negociata justificável e lógica. Partimos do preceito ingênuo (ou conveniente!) que todos de forma

civilizada conseguem entender e fazer-se entender.

A sensação é semelhante a do arqueiro que ao juntar todas as flechas para transportá-las resolve atar a cada ponta um chumaço de estopa, para não

ferir ninguém. Assim, a Filosofia em nome do metafísico Bem Comum, permite reduzir o pensar ao estudo das possibilidades dentro do universo existente.

Não fazemos conjecturas arrojadas, não inovamos, apenas fazemos uso da razão para combinar as premissas existentes na expectativa de conseguirmos a

saída menos traumática.

Isto pode parecer contra-censo com o que sentimos atualmente, onde não temos parâmetro para nada, valem todas as estéticas, e ao mesmo tempo

não vale nenhuma; valem todas as éticas e nenhuma.

Talvez em tempos de Pós-Neo-Nada, subsista a Moral Das Necessidades Básicas e o Direito do Consumidor.

Convergimos para a “Humanidade”, despojamo-nos de tudo, e nos tornamos nada. Dirigimos todas as nossas energias e atenções devidamente

envoltas em estopa para um alvo onde batemos com força e não podemos penetrar, pois plasmar a radicalidade e a individualidade deturpariam o jogo.

Nossa insatisfação não passa portanto, de pequena disfunção econômica de falta de distribuição de renda, seguramente perceptível pelas

mercadorias que nos faltam. Nada que um pequeno ajuste de Política Econômica e boa negociação não resolvam.

Pode parecer estranho, mas, nos transformamos em simuladores de um jogo que não quer mais ver ganhadores, senão duradouros jogadores

metafísicos. Tornamo-nos esperançosos e cúmplices.

Todos sentimos a falsidade do jogo, mas ninguém diz. Melhor o faz de conta. A navalha é a mesma, nós é que propositadamente viramos o fio para

cima.

Continuamos a realizar com vigor, o ato de cortar, porém, sabemos que nada será talhado, pois deliberadamente usamos o dorso da navalha,

usamos uma filosofia morta e uma razão bem comportada, que não quer mudar.

Vale a pena lembrar a provocação de Lacan: “Como ter certeza de que não somos impostores?”

A navalha está sobre a mesa, nós é que não queremos cortar.

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VITRINE

SUGESTÃO DE LEITURA

EM DEFESA DA SOCIEDADE

MICHEL FOUCAULT Martins Fontes

RESUMO: Neste curso, Foucault define duas formas de poder: o poder disciplinar, que se aplica ao corpo por meio das técnicas de vigilância e das instituições punitivas e aquelas que daí em diante ele denominará o biopoder, que se exerce sobre a população, a vida e os vivos. A lógica das relações entre poder e resistência que não é a do direito e sim a da luta: ela não é a ordem da lei, mas a ordem da des-ordem. SUMÁRIO: Aula de 7 de janeiro de 1976; Aula de 14 de janeiro de 1976; Aula de 21 de janeiro de 1976; Aula de 28 de janeiro de 1976; Aula de 4 de fevereiro de 1976; Aula de 11 de fevereiro de 1976; Aula de 18 de fevereiro de 1976; Aula de 25 de fevereiro de 1976; Aula de 3 de março de 1976; Aula de 10 de março de 1976; Aula de 17 de março de 1976; Resumo do Curso; Situação do curso; Índice das noções e dos conceitos. Áreas de interesse: Filosofia, História, Direito, Lingüística. Palavras-chave: poder, direito, política, análise do discurso