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IV ENCONTRO NACIONAL DE HISTÓRIA DA MÍDIA GRUPO DE TRABALHO: HISTÓRIA DA MÍDIA ALTERNATIVA COORDENADORES: PROFª MS. Karina Woitowicz e Prof° MS. Ed Wilson Araújo. “Vozes que Ecoam e não se Calam: o Programa de Rádio Axé, Cultura como ferramenta no combate às intolerâncias Afro- Religiosas”. Gerson Carlos Pereira Lindoso¹, [email protected] Sérgio Figueiredo Ferretti (Orientador). 1.0 INTRODUÇÃO O ensaio tem como objetivo principal retomar discussões em torno da comunicação popular e mídia alternativa, a partir de pesquisas iniciadas anteriormente (anos 2002-2004) sobre a história da mídia afro- religiosa maranhense na Universidade Federal do Maranhão. Como foco essencial analisaremos o programa radiofônico Axé, Cultura, que tem como temática primeira as religiões afro-brasileiras no Maranhão. Palavras-Chave: Programa Axé, Cultura; Comunicação Popular, Mídia Alternativa, Religiões afro- brasileiras. No Maranhão precisamente na década de 70, programas radiofônicos englobando as religiões afro-brasileiras surgiram como elementos diferenciadores e de reivindicação não somente por respeito, mas por um espaço nos meios de comunicação. Em trabalhos anteriores (LINDOSO, 2005, 2004, 2002) analisamos de variadas maneiras como as religiões

Vozes que Ecoam e não se Calam: o Programa de Rádio Axé

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IV ENCONTRO NACIONAL DE HISTÓRIA DA MÍDIAGRUPO DE TRABALHO: HISTÓRIA DA MÍDIA ALTERNATIVA

COORDENADORES: PROFª MS. Karina Woitowicz e Prof° MS. Ed Wilson Araújo.

“Vozes que Ecoam e não se Calam: o Programa de Rádio Axé, Cultura como ferramenta no combate às intolerâncias Afro-Religiosas”.

Gerson Carlos Pereira Lindoso¹, [email protected] Sérgio Figueiredo Ferretti (Orientador).

1.0 INTRODUÇÃO

O ensaio tem como objetivo principal retomar discussões em torno da comunicação popular e mídia alternativa, a partir de pesquisas já iniciadas anteriormente (anos 2002-2004) sobre a história da mídia afro-religiosa maranhense na Universidade Federal do Maranhão. Como foco essencial analisaremos o programa radiofônico Axé, Cultura, que tem como temática primeira as religiões afro-brasileiras no Maranhão.

Palavras-Chave: Programa Axé, Cultura; Comunicação Popular, Mídia Alternativa, Religiões afro-brasileiras.

No Maranhão precisamente na década de 70, programas radiofônicos englobando

as religiões afro-brasileiras surgiram como elementos diferenciadores e de reivindicação

não somente por respeito, mas por um espaço nos meios de comunicação. Em trabalhos

anteriores (LINDOSO, 2005, 2004, 2002) analisamos de variadas maneiras como as

religiões afro-brasileiras (povo-de-santo ou afro-religiosos) estão inseridos ou mesmo

participando dos meios massivos no Maranhão.

Observamos ainda nas nossas pesquisas de iniciação científica (PIBIC-CNPq-

UFMA) sob um viés antropológico (etnografia), como o Tambor de Mina¹ e demais

vertentes afro-religiosas no Estado (Cura ou Pajelança³, Umbanda4) são representados

nos jornais, televisão e rádio.

1-Bacharel em Comunicação Social (Jornalismo) e Mestrando pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão.2-Religião de matriz africana própria do Maranhão e que em outros Estados brasileiros recebe outras denominações como Candomblé na Bahia, Xangô em Pernambuco, Batuque no Rio Grande do Sul, etc. Possui duas casas ou templos afro-religiosos importantes fundados por africanos e sobreviventes até os dias atuais: Casa das Minas (Jeje/ewe-fon) e Casa de Nagô (nação nagô).3-4. Culto afro-ameríndio, largamente difundido na Amazônia com destaque para a figura do Pajé e os encantados (FERRETTI, 1996, p.303) e no Maranhão é comum falar em salões de curadores ou pajés. A Umbanda é uma religião de matriz afro, surgida no Brasil no primeiro quadriênio do séc. XX, concentrando elementos espíritas, ameríndios, africanos e esotéricos, etc.

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Além das investigações do discurso desses meios, percebemos através da história

dos programas afro-religiosos maranhenses (Na Ronda dos Orixás/Jorge Oliveira,

Programa de Umbanda de José Cupertino, Programa de Rádio do pai-de-santo

Ubaldo/Educadora; Viva a Oxalá/Sebastião do Coroado; Cultura Mística/José

Itaparandi, Povo-de-Santo/Magno Cruz e Axé, Cultura/Itabajara) a relevância do rádio

como porta de entrada desse segmento religioso no universo dos meios de comunicação.

É inegável que as relações do rádio com as religiões afro-brasileiras podem ser

definidas pela própria divulgação, conhecimento e legitimação delas na sociedade,

quando aparecem nas letras de músicas. Na maioria das vezes aparecem de maneira

positiva e outras são visualizadas com o reforço de preconceitos e idéias desfavoráveis

como afirma Prandi (2005, p.187):

Por outro lado, a presença dos orixás e de muitos elementos do Candomblé e da Umbanda em letras de músicas, divulgadas no rádio, desde seu surgimento, tem servido ao lado de outros meios culturais, para divulgar as religiões afro-brasileiras, tornar conhecidos seus deuses, espíritos e personagens, divulgar mitos e valores, popularizar suas práticas e mistérios. As letras das músicas, em sua maioria, fazem referências positiva às religiões afro-brasileiras, enquanto outras como é de se esperar, reforçam preconceitos e reafirmam idéias desfavoráveis (PRANDI, 2005, p. 187)

As referências de elementos das religiões afro-brasileiras nas canções do rádio são

datadas, desde o início do séc. XX e se confundem com a própria instalação da indústria

fonográfica e do rádio no país (PRANDI, 2005, p.188). No Maranhão alguns trabalhos

fonográficos de maior amplitude sobre o tambor de Mina são destaque como ‘Tambor

de Mina, Cura e Baião na Casa Fanti-Ashanti’ (1993); A Lenda do Rei Sebastião

(1999); Tambor de Mina na Virada Pra Mata (2000) e Imbarabô-Mina do

Maranhão (2003), havendo também outros de menor amplitude ou divulgação, que

abordam cânticos da Mina.

Em face de nosso objeto de pesquisa nesse momento ser o programa de rádio Axé,

Cultura voltamos todas nossas atenções para a estrutura, características e objetivos desse

programa de rádio, que comunga idéias com os outros acima citados como o objetivo de

combate às intolerâncias afro-religiosas. Utilizamos os seguintes métodos de pesquisa: a

observação-participante, pesquisa em material bibliográfico específico (Antropologia

das religiões afro, Comunicação, Cultura Popular, etc.); conversas informais e

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entrevistas com o pai Itabajara e acompanhamento do programa Axé, Cultura ao vivo

para o desenvolvimento de nosso trabalho aqui atualizado.

Nosso ensaio está dividido em alguns tópicos “O Espelho Infiel: as religiões afro-

brasileiras retratadas pela mídia”; Vozes que não se calam: o programa Axé, Cultura e

as Considerações finais. Retomamos mais uma vez pesquisas voltadas para as religiões

afro-brasileiras inseridas no universo dos meios de comunicação, a partir de nossas

incursões mais uma vez em torno do programa Axé, Cultura.

Estivemos no ano de 2003, em contato com esse programa pela primeira vez,

oportunidade na qual conhecemos o pai Itabajara e o Axé, Cultura em si, ainda na rádio

comunitária Conquista, bairro do Coroado. Apresentamos nossas intenções de pesquisa

a direção e passamos a analisar o programa, notando suas especificidades e diferenças,

quando comparado aos outros já observados, além de outras implicações.

2.0 O Espelho Infiel: as religiões afro-brasileiras retratadas pela mídia

Na história das culturas negras no Brasil as religiões de matriz e descendência

africana, por serem religiões de transe, sacrifício animal e de culto a espíritos

(divindades africanas, etc.) foram associadas à magia negra, superstições, feitiçaria

(SILVA, 2005, p.13) indo de encontro do modelo judaico cristão ocidental

(Catolicismo) vigente, dando margens para que o negro viesse ser discriminado

fortemente e a criar estratégias de sobrevivência para suas formas de religião. Apesar da

imposição religiosa, os afro-descendentes criaram várias maneiras de conservar às suas

crenças nos voduns, orixás e demais deuses e uma delas foi os ‘sincretismos’, que

Ferretti (1995, p.91) afirma não ser algo exclusivo da religião, possuindo sentidos

diversificados:

O sincretismo ocorre na religião, na filosofia, na ciência, na arte e pode ser de tipos muito diversificados. Nas religiões afro-brasileiras podemos localizar vários tipos, conforme o aspecto que se esteja estudando ou a ênfase do estudo. Apesar dos aspectos pejorativos que prevalecem, sincretismo é um fenômeno que existe em todas as religiões, está presente na sociedade brasileira e deve ser analisado quer gostemos ou não (FERRETTI, 1995, p. 91).

Reiteramos ainda que o sincretismo é um dos elementos recorrente nos meios de

comunicação de massa sendo bastante enfatizado, no intuito de jornalistas e demais

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profissionais da comunicação possam explicar melhor ou fazer com que as religiões afro

sejam melhor entendidas para os seus públicos. Na seguinte matéria jornalística

“Terreiros homenagearam Ogum” (1980) podemos observar ao longo da construção

textual as associações feitas entre santos católicos e orixás (deuses africanos),

característica peculiar de matérias de jornais em geral ao abordarem as religiões afro-

brasileiras:

Dois dos principais terreiros de São Luís renderam homenagens a São Jorge, que sincretiza com Ogum. Os terreiros de Sebastião do Coroado e de Jorge da Fé em Deus, durante dois dias (22 e 23) movimentaram seus fiéis com ladainhas e procissões, além da distribuição de comidas e bebidas ao público presente.

Usualmente, nas matérias jornalísticas (imprensa escrita) referentes aos ritos e

demais assuntos ligados às religiões de matriz afro vão aparecer idéias, explicações e

divagações sobre o sincretismo, no que diz respeito à identificação de uma cultura

comparada à outra. Na verdade o Catolicismo com seus santos em comparação com os

deuses africanos (orixás, voduns, inquices, entre outros) não deixa de ser uma estratégia

de jornalistas para explicar melhor a teogonia das religiões afro, a exemplo de Maria,

mãe de Jesus relacionada à Iemanjá, deusa iorubana que no Brasil, devido ao

sincretismo adquire o status de a grande mãe perdendo suas características de mulher

guerreira e de amante ardorosa, provavelmente em função de suas aproximações com

Nossa Senhora-mãe, virgem e casta (VALLADO, 2002).

Outro aspecto intrínseco a ser mencionado ligado às intolerâncias afro-religiosas

na mídia são as investidas da polícia ou as batidas policiais aos terreiros com a

repressão as religiões afro-brasileiras e que usualmente apareceram no jornalismo

impresso da primeira metade do século passado. Na primeira metade do séc. XX, essas

investidas policiais repressivas aos terreiros de São Luís foram constantes, no qual os

períodos antecedentes as duas grandes guerras mundiais foram críticos, arrefecendo

entre 1930 e 1935, mas tomando corpo até meados de 1950, Estado Novo (SANTOS,

1989,p.117).

O que queremos destacar ao evidenciar as atitudes repressoras da polícia

direcionada aos terreiros ou templos afro-religiosos, é que em grande parte das vezes a

imprensa escrita (produtores das matérias jornalísticas) utilizavam esse espaço para

dificultar e mesmo perseguir essas religiões, denunciando seus praticantes e acusando-

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os de práticas de feitiçaria, magia negra e outros mistérios, assim focaliza Braga (1995,

p.24) citando Nina Rodrigues (2004):

Nina comenta, também, a maneira como a imprensa se compraz em noticiar, sem a necessária isenção de ânimos, as freqüentes incursões da polícia, a diferentes terreiros de Candomblé. Aliás, o tom irônico, quase de deboche, vai estar sempre presente em quase todas as notícias jornalísticas que tratam da repressão policial (BRAGA, 1995, p.24)

A imprensa escrita vai ser um espaço de denúncias e ao mesmo tempo de

estranhamento e de incentivo para que as religiões afro-brasileiras sejam reprimidas e

contidas, apelando muitas vezes, para que a polícia seja mais enérgica com seus

adeptos. Na matéria jornalística “No Antro da Feitiçaria”, Jornal A Tarde (29/05/1923)

exemplificamos essa assertiva: ‘Nesses antros de feitiçaria, dispersos pela cidade, onde

ocorrem cenas monstruosas, impressionantes, não raro vitimando os imprudentes que se

prestam às bruxarias a polícia ignora ou fecha os olhos propositadamente’ (BRAGA,

1995, p.154).

É nítida a preocupação do jornalista com a repressão da polícia diante das religiões

afro-brasileiras (Candomblé, nesse caso), sendo os terreiros classificados como

verdadeiros antros de feitiçaria para a prática do mal, algo totalmente contra o seu real

significado. Citamos também outros casos de notícias em jornais, referências de

Rodrigues (2004) que ilustram com evidência a perseguição ao Candomblé baiano, a

partir de denúncias de funcionamento: Diário da Bahia (1898 e 1900), ‘Continua a

perturbar o silêncio público e a ser um verdadeiro foco de imoralidade e conflitos um

terrível candomblé na estrada das boiadas’. No Gantois, 2º distrito da Vitória, há dias

está funcionando um selvagem Candomblé que até 11 horas da noite incomoda o

sossego público (RODRIGUES, 2004).

Brandão (2002) no seu estudo sobre análise do discurso diz que o posicionamento

de quem fala e o próprio discurso está pautado no momento histórico vivido da época,

nesse caso primeira metade do séc. XX (foco das repressões às religiões afro-brasileiras

no país). Concordamos com a autora, mas inferimos que as posições do discurso

jornalístico direcionado a essas formas religiosas perpassam a sua função de informar,

educar, entreter para simplesmente servir de arma contra elas, perseguindo e incitando a

sociedade e a polícia contra as mesmas.

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Nem mesmo a centenária Casa das Minas, terreiro de tambor de Mina fundado por

africanos jejes em meados do séc. XIX (FERRETTI, S., 1996), escapou do preconceito

da mídia impressa (jornais) como atesta a matéria da Pacotilha (1923), documentada no

acervo do grupo de pesquisa Mina, Religião e Cultura Popular do Departamento de

Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Maranhão:

Outra palhaçada é o candomblé das “minas”. Palhaçada ou cachaçada, que é a melhor definição. Que eu saiba, há por cá, entre outras, a “Casa Grande chefiada por uma mãi” qualquer numa das ruas da própria capital, e fora dela o sítio da “Cota do Barão”. Nas suas costumeiras reuniões vai gente de toda cor, mais sempre da pior espécie. Consulta, pede, roga, bebe e acaba caindo na surubanda infernal. A princípio, enquanto todo respeito é pouco. Numerosos assistentes rodeiam algumas velhas negras que cantam coisas incompreensíveis e se rebolam macabramente ao som dos tambores e tabaques e outros instrumentos ensurdecedores, rola a cachaça à ufa! Algumas mulheres, já pelo meio da festança, gesticulam tragicamente, caindo aos berros pelo chão, e levantando-se aos esgarres de quem morrendo congestionado. E o santo que “entra” nelas. Este “santo” é um perigo. Adivinha as coisas, dá remédios, pinta o sete, mas deixa as mulheres esbodegadas... E a dança continua, desenfreada. E os cantos enchem soturnamente o espaço... “Santa Bárbara beirando o mar, Santa Bárbara nas ondas do mar; Santa Bárbara beirando o mar, Santa Bárbara nas ondas do mar...” Após estes vêm outros: “Rio todo cheio, Ogunjá!” E mais outros: “Toca no agugô, P’ra sabe. Toca no agugô P’ra sabe...” E mais ainda “O Aruchuchá que é relampuê, Minha Santa Bárbara que relampuá!”... A cachaça continua a correr. Quase ninguém mais se entende. Alguns ressoam pelos cantos. Outros dançam ainda cambaleando. Há conversas animadas e intermináveis discussões. Pilherias e cínicas risadas. E no meio de tudo isso a maior parte das consulentes esquece o motivo que o levou ali e se confunde com as “minas, bebendo, cantando e dançando”. Que só assim, sinão remédio, ou menos esquecimento às suas grandes misérias. Assis Garrido. [GRIFO NOSSO]

As descrições são completamente preconceituosas, os insultos são explícitos e

direcionados, tais como “palhaçada e cachaçada”, onde o autor da matéria Assis Garrido

afirma que o ‘culto em si’ é apenas um pretexto para as orgias ou a ‘surubanda infernal’

como ele mesmo classifica. Em relação aos deuses ele debocha escancaradamente

dizendo que os santos são ‘perigosos’ e que adivinham, dão remédios e ‘pintam o sete’,

onde o transe religioso é percebido como algo estranho e exótico.

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Reiteramos que esse tipo de postura de ataque direto e mais explícito às religiões

afro-brasileiras infelizmente ainda é presenciado nos meios de comunicação,

provenientes de igrejas neopentecostais, dentre eles a Igreja Universal do Reino de Deus

que declara uma verdadeira ‘Guerra Santa’ às religiões de matriz africana no Brasil e

como conseqüência disso tudo, casos radicais de agressões físicas de adeptos, tentativas

de invasões de centros e terreiros foram parar na imprensa, delegacias de polícia e

justiça (MARIANO, 2005, p.122). Ricardo Mariano (2005, p.122-123) registra algumas

matérias de jornais e revista que abordam incidentes, frutos dessa guerra da IURD,

Igreja Universal do Reino de Deus, contra os afro-religiosos, e até exemplos de

vilipêndios de programas radiotelefônicos afro pela IURD:

“O Procurador Geral da República, Aristides Junqueira Alvarenga, encaminhou despacho à seção da Procuradoria no Rio de Janeiro pedindo abertura de inquérito contra a Igreja Universal do Reino de Deus, por calúnia e difamação aos cultos afro-brasileiros. Foram citados no despacho os pastores evangélicos Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus, do Rio, e Gilmar Teixeira Rosas, da Universal do Reino de Deus de Salvador. Entre as agressões constavam violências físicas contra membros das religiões afro, tentativas de invasão de terreiros, livros anunciando ligações do candomblé com o diabo e programas radiotelefônicos afro vilipendiados” (Aconteceu, 523, 7-13.11.89) (MARIANO, 2005, p.123).

É necessário frisar que os ataques da IURD as religiões afro no país contam como

armas ou ferramentas nessa batalha um arsenal poderoso e tecnológico de meios de

comunicação de massa no intuito de atingir uma grande dimensão da população

brasileira (67 emissoras de TV, 40 rádios, 2 gráficas, 2 jornais, 1 revista ), proselitismo

religioso via mídia (MORETTI, 2005, p.43). Entre os inúmeros ataques massivos da

IURD as religiões afro-descendentes, o povo-de-santo através do pai Francelino

Shapanan (dirigente da Casa das Minas Thoya Jarina, Diadema SP, de religião MINA,

descendente do terreiro de Iemanjá em São Luís do Maranhão) foi à Brasília em junho

de 1989 prestar queixas contra as ações discriminatórias da IURD. Depois de 13 anos

de luta e do processo instaurado contra a universal, o povo-de-santo brasileiro ganhou

direito de resposta em duas emissoras de televisão (Rede Record e Rede Mulher) para

que muitos assuntos pudessem ser esclarecidos sobre o verdadeiro objetivo delas

(MORETTI, 2005).

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Constatamos que a mídia impressa (jornais) serviu como poderosa arma no

combate e denúncia dessas culturas afro-religiosas, idéia comprovada nas inúmeras

matérias de jornais que empregam as seguintes adjetivações depreciativas mais

comuns: perturbadoras, macumba feitiçaria, locais de orgias e bebedeiras.

Em grande parte das vezes não eram vistas como religiões, mas apenas como

espaços de diversão, magia negra e, quando alguns jornalistas com o objetivo de dar um

tom mais sério e de respeito a elas, passavam a idéia de folclore e de folclorização em

torno dos cultos.Demos uma vazão maior para o jornalismo até aqui, devido a questão

da documentação dessas matérias e notícias, que ficam em parte conservados com o

passar do tempo e que facilitam mais a consulta nos acervos, diferente da televisão e

rádio.

A mídia impressa consideravelmente merece destaque nesse processo de análises,

pois ao longo do tempo nos seus inúmeros textos foi arma de combate a esse público

afro-religioso, confundindo muito mais do que esclarecendo a diversidade religiosa

presente no Brasil, a partir dessas formas de culto. Nos outros meios como Televisão,

Rádio, cinema e mesmo internet, temos exemplos e mais exemplos diferenciados, onde

os sensacionalismos, espetacularizações e exotismos das imagens televisivas com temas

afro-religiosos são preferências na elaboração de reportagens ou documentários

televisivos.

No cinema citamos os polêmicos filmes Yaô do ano de 1976 de Geraldo Sarno,

que causou muitas discussões por mostrar cenas secretas dos momentos de iniciação do

Candomblé e ‘Egungum’ (dirigido por Carlos Blajsblat), que focaliza os cultos

ancestrais na Bahia (culto de Babá Egum) de maneira exótica e sensacionalista

(RODRIGUES, 2001, p. 99-100). A internet como meio de comunicação mais recente é

uma porta imensa de informações a respeito dessas religiões e que concentra um

universo acentuado de informações, havendo ou não páginas de ataques e

discriminação a elas: páginas do orkut (Rede de encontro de pessoas, através de

mensagens e comunidades virtuais de temáticas variadas), que atualmente estão sendo

denunciadas e deletadas por ter conteúdo racista e intolerante, por exemplo ‘Eu

odeio...’

Finalmente, afirmamos que o rádio foi um espaço que acolheu mais os afro-

religiosos como protagonistas de suas histórias, possuindo seus próprios programas

radiofônicos no Maranhão: ‘Na Ronda dos Orixás (Jorge Itaci, década de 70); Programa

de Umbanda de José Cupertino (anos 70); Programa afro-religioso de pai Ubaldo

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(Rádio Educadora); Viva a Oxalá (programa de rádio que migrou para a televisão) de

Sebastião do Coroado (anos 80); Cultura Mística (Pai Itaparandi-Rádio comunitária do

Maiobão); Programa Axé Cultura (Rádio Timbira, Pai Itabajara) e Povo-de-Santo

(Magno Cruz-Rádio Conquista, Coroado). No rádio as respostas desse público muitas

vezes puderam vir à tona.

3.0 Vozes que não se calam: o programa de rádio Axé, Cultura

O programa de rádio Axé, Cultura apresenta uma trajetória incisiva no combate

ao preconceito e discriminações afro-religiosas ao longo de quase quatro anos de

existência, como atesta o apresentador e pai-de-santo Itabajara:

‘Olha, havia a necessidade de fazer um programa desse... Nosso povo precisava de um programa para mostrar a parte positiva da religião’ (Entrevista com Pai Itabajara em 03/05/2006).

Antes do Axé, Cultura fazer parte da rádio Timbira do Maranhão, rádio oficial do

Estado e que tem precisamente 65 anos de existência e com um sinal de alcance bem

elevado (mais de 100 municípios ou interiores maranhenses), o programa foi

transmitido na rádio comunitária Conquista, bairro do Coroado. Exatamente, em um

ano e meio nessa rádio o programa estreou e atingiu certo nível de popularidade em São

Luís naquele momento (2003).

Reconhecemos que os espaços na grande mídia ou no sistema de comunicação

tradicional são de uma forma ou de outra irrisórios, quando identificamos a participação

das religiões afro-brasileiras (povo-de-santo) nos veículos massivos em geral. Apesar

desses limites é importante observar as ‘brechas na indústria cultural’, que fazem passar

para o público em geral conteúdos diversos opostos a interesses das classes dominantes

e do próprio Estado (SILVA, 1986, p.52).

Pai Itabajara ao relatar um pouco de sua experiência, confirma que essa idéia do

espaço destinado às religiões de matriz africana na mídia brasileira e especialmente no

Maranhão é muito ‘pequeno’:

“O espaço ainda é muito pequeno. Eles não dão espaço...Não temos espaço agora, passe depois. De modo geral, isso acontece no rádio, imprensa escrita e televisão. Mesmo assim nós, do Axé, Cultura nos consideramos privilegiados

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com a oportunidade que temos” (Entrevista com pai Itabajara, 03/05/06)

Observamos que mesmo frente às dificuldades em conseguir uma chance para

fazer parte do rádio, televisão e mesmo imprensa, os afro-religiosos ainda conseguem

através de um contra-discurso furar muitos bloqueios, dando luz a muitas questões

intrínsecas nesse debate, como a própria invisibilidade. O percurso do pai Itabajara

reflete muito disso, pois primeiramente, ele encontrou respostas negativas para a sua

iniciativa e vontade de ter um programa de rádio, que abordasse as religiões afro-

descendentes de modo especial.

Alguns amigos dele foram acionados, inclusive como ele mesmo pontifica

‘pessoas do santo’ e com certa influência, entretanto, não houve nada mais concreto

para que sua proposta pudesse vingar ou se realizar. Dentre as tentativas, pai Itabajara

recebeu um convite do atual diretor da rádio comunitária Conquista, Magno Cruz, para

fazer parte da programação daquela emissora radiofônica com um programa de tema

voltada para as religiões afro.

Com uma temporada de pouco mais de um ano, o Axé, Cultura deixou a rádio

Conquista, devido a algumas incompatibilidades no formato do programa ditado pela

rádio, que no caso queria restringir parte do discurso crítico do pai Itabajara, que

pondera: “Ninguém, vem falar o que eu devo falar” (Entrevista, 03/05/06). Após

deixar a rádio Conquista, o programa Axé, Cultura passou seis meses fora do ar, até que

entrou para a rádio Timbira, ganhando maior abrangência e amplitude, pois além de

São Luís os interiores do Maranhão pegam o sinal do programa Axé, Cultura (mais de

100 municípios).

A transmissão do programa é feita as segundas e quartas-feiras com uma hora de

duração (21:00 às 22:00h) sob a freqüência 1290 KHz AM sendo composto pelo pai

Itabajara (apresentador), Keyla (apresentadora e filha-de-santo do pai Itabajara) e o

operador técnico Pedro Amaral (funcionário da Timbira). Basicamente, o Axé, Cultura

é constituído de um repertório musical específico (cânticos afro-religiosos e músicas

afins, próximas da temática religiosa); entrevista com convidados, leituras de textos

explicativos e matérias jornalísticas sobre as religiões afro; debates, críticas e conversas

com ouvintes no ar (telefone).

Inferimos que o programa em si encerra características importantes como: tom de

criticidade; informativo, político, religioso e interativo. Uma das preocupações

expressas pelo pai Itabajara é que o Axé, Cultura não seja um simples reprodutor de

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receitas medicinais (remédios) e de fazer previsões futuras, por conseguinte ele não

condena essas práticas, mas é enfático ao dizer que os programas que só giram em

torno disso viram ‘comércio da religião’.

“Os programas que giram somente em torno disso viram um verdadeiro comércio

da religião” (Entrevista, 03/05/06). Outra peculiaridade que destacamos é que o Axé,

Cultura não se resume em uma ferramenta de propaganda do terreiro dirigido pelo seu

apresentador principal (pai Itabajara), pois ao longo dos programas são mencionados

também de forma comum outros terreiros, dirigentes, eventos em geral do meio afro,

etc.

Como conseqüência positiva dessa vivência na rádio ou com os meios massivos, o

pai Itabajara produziu dois compact discs (CD’s) com cânticos do tambor de Mina. O

primeiro é intitulado ‘Terreiro do Pai Itabajara (Encantaria do Ilê, vol.01)’ e o segundo

“Encantaria do Ilê, vol.02, tendo ainda um terceiro que será ainda gravado e lançado

futuramente.

4.0 Considerações Finais

De maneira mais singular os meios de comunicação com destaque para o

jornalismo impresso contribuíram de formas diversificadas tanto para a divulgação,

quanto para a inferiorização das religiões de matrizes africanas ao serem representadas

em seus textos impressos e audiovisuais (televisão e em menor proporção, rádio) Pelo

que constatamos, esses meios serviram como armas de perseguição, repressão,

invisibilidade dos cultos afro-brasileiros, tendo o rádio um papel e uma relação

diferente com essas religiões, servindo de porta para uma maior democracia em termos

de espaço e de voz para esse público.

Observando os observados (pesquisados ou afro-religiosos), notamos que a

vontade em reivindicar os seus direitos, conseguindo maior respeito as suas formas de

contato com o sagrado (religiões afro-brasileiras) é contínua e atravessa diversos

meandros e dificuldades, dentre elas o próprio espaço reduzido na mídia, o preconceito

e discriminação e a invisibilidades e incompreensão das religiões afro no Brasil pelos

meios de comunicação de massa. Iniciativas e participações nos meios de comunicação

social são decisivamente oportunidades ímpares que as comunidades afro-religiosas

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têm para ‘desconstruir’ muitas inverdades tomadas como parâmetros definidores dessas

religiões e que geralmente perpassam nos veículos massivos.

O programa de rádio Axé, Cultura é um exemplo dessa maneira de desconstrução

e de reivindicação dos direitos dos afro-religiosos e a resistência é um marcador

comum, que classifica esse programa como ‘popular’ e alternativo, mesmo em uma

rádio ligada ao Estado. Atualmente, programas radiofônicos das religiões afro-

brasileiras refletem também o combate aos sensacionalismos e espetacularizações em

torno dos rituais afro-religiosos, vistos como ‘primitivos’ e exóticos’.

Referências Bibliográficas

ACERVO DE DOCUMENTOS SOBRE NEGROS, FESTAS E RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS NO MARANHÃO. GP-Mina, coordenação de Sérgio e Mundicarmo Ferretti, 2004. Crendices, Jornal Pacotilha, 15/11/1923. Matéria pesquisada por Marcelino S. Farias Filho no Arquivo Público do Estado do Maranhão.

BRAGA, Júlio. Na Gamela do Feitiço: repressão e resistência nos Candomblés da Bahia. Salvador: EDUFBA, 1995.

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DISCOGRAFIA

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FERRETTI, Mundicarmo. Tambor de Mina, Cura e Baião na Casa Fanti-Ashanti-MA. LP. São Luís: SECMA, 1991.

Tambor de Mina na virada pra mata-Casa Fanti-Ashanti. Gravado na Casa Fanti-Ashanti em julho de 2000 e prensado na Zona Franca de Manaus. Apoio A Barca, 2000.

Terreiro do Pai Itabajara-Terreiro de Mina. São Luís: Sotaque Produções, 2004. Apoio Cultural: OSECEAMA.

Encantaria do Ilê, Vol.02. São Luís. OSECEAMA

MATÉRIAS DE JORNAIS

“Terreiros homenagearam Ogum”, ‘O Jornal’, 25/04/1980

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