Walter Benjamin. Passagens Arquivo M 1

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M1, Passagens

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  • to FLNEUR) I

    "Uma paisagem obsedante, intensa como o pio."

    Mallarm

    "Ler o que nunca foi escrito."2

    Hofmannsthal

    "E eu viajo para conhecer minha geografia."

    Um louco, in: Marcel Rja, L 'Art Chez les Fous, Paris,1907, p. 131.

    "Tudo o que est alhures est em Paris."

    Victor Hugo, Les Misrables, in: uvres Compltes,Romances, vol. VII, Paris, 1881, p. 30

    CEcce Paris, ecce homo").

    Mas as grandes reminiscncias, o calafrio histrico, so uma esmola que ele (o flneur)deixa para o viajante, que acredita poder acercar-se do genius loci com uma senha militar.Nosso amigo tem o direito de se calar. Com a aproximao de seus passos, o lugar jcomea a se animar; sem fala e sem esprito, sua simples e ntima proximidade j d sinais

    instrues. Ele est diante da Notre-Dame de Lorette, e suas solas recordam: este olugar onde outrora o cavalo suplementar o cheval de renfort se atrelava ao nibus quesubia a Rue des Martyrs at Montmartre. Ele ainda daria tudo o que sabe sobre o domicliode Balzac ou de Gavarni, sobre o lugar de um assalto ou mesmo de uma barricada, emtroca dacapacidade de farejar uma soleira ou de reconhecer pelo tato um ladrilho, como ofaria qualquer cao domstico.

    rua conduz o flneur em direo a um tempo que desapareceu. Para ele, qualquer rua ngreme. Ela vai descendo, quando no em direo s Maes,3 pelo menos rumo a um

    Na reviSo da traduo deste arquivo temtico foi consultada tambm a traduo de Jos Carlos

    2Martins Barbosa, publicada em OE III, pp. 185-236. (w.b.)Hugo von Hofmannsthal, "Der Tor und der Tod" (O Tolo e a Morte, 1894), in:

    Gesammelte Werke.org. por Herbert Steiner, (s. 1.1, 1952, p. 220). (R.T.), nota para MO, 25. (w.b.)

  • passado que pode ser to mais enfeitiante por no ser seu prprio passado

    particular. Entretanto, este permanece sempre o tempo de uma infncia.

    tempo de sua vida vivida? No asfalto sobre o qual caminha, seus passos des

    surpreendente ressonncia. A iluminao a gs que recai sobre o Calamento lana

    ambgua sobre este duplo cho.

    Uma embriaguez apodera-se daquele que, por um longo tempo, caminha

    ruas. A cada passo, 0 andar adquire um poder crescente; as sedues das lojas, dos

    e das mulheres sorridentes vo diminuindo, cada vez mais irresistvel torna-se o

    da prxima esquina, de uma longnqua massa de folhagem, de um nome de magnetismorua. Ento

    chega a fome. Ele nem quer saber das mil e uma possibilidades de saci-la. Como umanimal asctico, vagueia por bairros desconhecidos at desmaiar de exausto em seu quarto,que o recebe estranho e frio.

    [M 1,31

    Paris criou o tipo do flneur. estranho que no tenha sido Roma. Qual a razo? Naprpria Roma, o sonho no percorreria ruas pr-traadas? E no est aquela cidadedemasiadamente saturada de templos, praas cercadas e santurios nacionais, para poderentrar inteira no sonho do transeunte, com cada paraleleppedo, cada tabuleta de loja,cada degrau e cada porto? possvel explic-lo em parte tambm pelo carter nacionaldos italianos. Pois no foram os forasteiros, mas eles, os prprios parisienses, que fizeram deParis a terra prometida do flneur, a paisagem construda de pura vida", como Hofmannsthalcerta vez a chamou. Paisagem nisto que a cidade de fato se transforma para o flneur.Ou mais precisamente: para ele, a cidade cinde-se em seus plos dialticos. Abre-se paraele como paisagem e fecha-se em torno dele como quarto.

    [M 1, 41

    Aquela embriaguez anamnsica, na qual o flneur vagueia pela cidade, no se nutre apenas

    daquilo que lhe passa sensorialmente diante dos olhos, mas apodera-se freqentemente do

    simples saber, de dados inertes, como de algo experienciado e vivido. Este saber sentido

    transmite-se de uma pessoa a outra, sobretudo oralmente. Porm, no decorrer do sculoXIX, ele se depositou tambm em uma literatura vastssima. J antes de Lefeuve, que

    descreveu Paris "rua por rua, casa por casa", pintou-se reiteradamente este cenrio paisagstico

    do sonhador ocioso. O estudo destes livros constituiu para o flneur uma segunda existncia,

    j totalmente preparada para o devaneio, e aquilo que ele apreendeu deles ganhava a forma

    de uma imagem em seu passeio vespertino antes do aperitivo. No deveria ele ento sentir

    sob os seus ps mais ngreme a subida atrs da igreja de Notre-Dame de Lorette, se sabia

    que era aqui, quando Paris recebeu seus primeiros nibus, que se atrelava o terceiro cavalo'

    o cheval de renfort, diante do veculo? [M 1,51

    Deve-se tentar compreender a constituio moral absolutamente fascinante do flneur

    apaixonado. A polcia que se revela aqui, como em tantos outros assuntos de que tratam0S

    como um verdadeiro perito fornece a seguinte indicao, no relatrio de um agen

    secreto parisiense, de outubro de 1798 (?): " quase impossvel lembrar dos bons costumes

    e mant-los numa populao amontoada, em que cada indivduo, de certa

    forma

    desconhecido de todos os outros, esconde-se na multido e no precisa enrubescer

  • 10 463

    dos olhos de ningum." Cit. em Adolf Schmidt, Pariser Zustnde tvhrend der Revolution,vol. III, lena, 1876. O caso em que o flneur se distancia totalmente do tipo do passeadofilosfico e assume os traos do lobisomem a vagar irrequieto em uma selva social foi fixadopela primeira vez e de maneira definitiva por Poe em seu conto "O homem da multido".(M 1,61

    As manifestaes de superposio, de sobreposio (berdeckung), que aparecem sob oefeito do haxixe devem ser compreendidas atravs do conceito de semelhana. Quandodizemos que um rosto se assemelha a outro, isto quer dizer que certos traos deste segundorosto se manifestam no primeiro, sem que este deixe de ser o que era. As possibilidades deque as coisas assim se manifestem, porm, no esto sujeitas a nenhum critrio, sendo,portanto, ilimitadas. A categoria da semelhana, que tem uma importncia muito restritapara a conscincia desperta, adquire uma importncia ilimitada no mundo do haxixe.Neste, com efeito, tudo rosto-e-viso (Gesicht), tudo tem a intensidade de uma presenaencarnada, que permite procurar nele, como em um rosto, os traos manifestos. Sob taiscircunstncias mesmo uma proposio adquire um rosto (sem falar da palavra isolada), eeste rosto assemelha-se quele da proposio oposta. Assim, cada verdade remete de maneiraevidente a seu contrrio, e com base neste fenmeno explica-se a dvida. A verdade torna-se algo vivo, existindo apenas no ritmo em que a proposio e seu contrrio trocam de lugarpara se pensarem.

    [M 1a, 11

    Valry Larbaud sobre o "clima moral da rua parisiense". "As relaes comeam sempre nafico da igualdade, da fraternidade crist. Nessa multido, o inferior est disfarado comosuperior, e o superior como inferior. Moralmente disfarados, um e outro. Em outrascapitais, o disfarce mal ultrapassa a aparncia, e as pessoas insistem, visivelmente, emrealar suas diferenas, fazem um esforo de pagos e de brbaros para se separarem. Aquielas procuram apagar as diferenas tanto quanto possvel. da que provm essa doura doclima moral da rua parisiense, o encanto que encobre a vulgaridade, o laisser-aller, a monotoniadessa multido. a graa de Paris, a sua virtude: a caridade. Multido virtuosa. .. " ValryLarbaud, "Rues et visages de Paris: Pour l'album de Chas-Laborde", Commerce VIII, verode 1926, pp. 36-37. Seria correto descrever este fenmeno inteiramente com as categoriasda virtude crist, ou no se trataria aqui talvez de um assemelhar-se, sobrepor-se, assimilar-se, embriagado, que se revela mais forte nas ruas desta cidade do que a vontade de prestgiosocial? Seria preciso evocar a experincia do haxixe em "Dante e Petrarca"5 e medir oImpacto da experincia inebriante na proclamao dos direitos humanos. Tudo isso nosleva para muito longe da cristandade.

    [M 1a, 21

    O "fenmeno de colportagem do espao" a experincia fundamental do flneur. Comoele tambm se manifesta sob um outro aspecto nos intrieurs de meados do sculo XIX,no se pode descartar a suposio de que o florescimento da flnerie tenha ocorrido namesma poca. Graas a esse fenmeno, tudo o que aconteceu potencialmente neste espao percebido simultaneamente. O espao pisca para o flneur: Ento, o que ter acontecido

    4= "pensar", no manuscrito, provavelmente um erro, em lugar de [sichl decken

    "(se)A palavra denken

    sobrepor". Neste caso, haveria uma retomada e um reforo da idia de berdeckung = "sobreposio

    da frase inicial. (R.T.; E/M)

    5 Cf. W. Benjamin, "Haschisch in Marseille", GS IV, 41 5; "Haxixe em Marselha", OE II. p. 254. (EM; Wb,)

  • 464 Passagens

    em mim? verdade que resta ainda a explicar como este fenmeno se relaciona com acolportagem.6 Histria

    (M 1a, 31

    Um verdadeiro baile de mscaras do espao deve ter sido o que a embaixada inglesa organizou

    em 17 de maio de 1839. "Tinham encomendado para a ornamentao da festa, alm dasflores de jardins e estufas, magnficas, de mil a mil e duzentas roseiras; diz-se que soitocentas puderam ser colocadas nos aposentos, mas isso j vos d uma idia daquelasuntuosidade mitolgica. O jardim, coberto por um toldo, estava arranjado como umagrande sala de conversao. E que salo! As delicadas platibandas repletas de flores eramjardineiras colossais que todos vinham admirar; a areia das alamedas estava oculta sob telas

    frescas, um cuidado para com os sapatos brancos de cetim; grandes canaps de seda e dedamasco substituam os bancos de ferro; sobre uma mesa redonda estavam os livros elbuns, e era uma delcia vir respirar nesse imenso boudoir, de onde se ouvia, como um

    canto mgico, o som da orquestra, e de onde se viam passar como sombras felizes, nas trs

    galerias de flores que o circundavam, tanto as moas alegres que iam danar quanto asjovens mulheres mais srias que iam cear..." H. D'Almeras, La Vie Parisienne sous leRgne de Louis-Philippe, Paris, 1925, pp. 446-447. O relato deve-se a Madame deGirardin. Intrieur Hoje, o lema no mistura e sim transparncia. (Le Corbusier!)

    [M 1a, 41

    O princpio da ilustrao de colportagem estendido grande pintura. "Os relatos sobregrandes combates e batalhas colocados nos catlogos para explicar os momentos escolhidos

    pelo pintor, mas que no atingem este objetivo vm habitualmente acompanhadostambm por citaes das obras das quais foram extrados. Assim, encontra-se com freqncia

    a indicao entre parnteses: Campagnes d'Espagne, do marechal Suchet; Bulletin de IaGrande Arme et Rapports Officiek, Gazette de France, nmero... etc.; Histoire de Ia Rvolution

    Franaise, do Sr. Thiers, volume..., pgina...; Victoires et Conqutes, volume..., pgina .etc., etc." Ferdinand von Gall, Paris und seine Salons, Oldenburg, 1844, pp. 198-199.

    A categoria da viso ilustrativa fundamental para o flneur. Como Kubin, ao produzirAndere Seite, o flneur compe seus devaneios como legendas para as imagens.

    [M 2, 21

    Haxixe. Imitam-se certas coisas que conhecemos atravs da pintura: uma priso, a Pontedos Suspiros, uma escadaria em forma de cauda de vestido.

    [M 2, 31

    Sabe-se que naflnerie o longnquo de pases ou pocas irrompe na paisagem e no instantepresente. Quando se inicia a fase propriamente inebriante desse estado, comea a latejar osistema arterial do afortunado, seu corao assume a cadncia de um relgio e, tanto pordentro como por fora, tudo se passa como em um daqueles "quadros mecnicos" que foramto apreciados no sculo XIX (alis, tambm anteriormente), nos quais se v em primeiroplano um pastor tocando flauta, a seu lado, duas crianas que se embalam no ritmo, musatrs, dois caadores ao encalo de um leo e, bem ao fundo, um trem que atravessa umaponte ferroviria. (Chapuis e Glis, Le Monde des Automates, Paris, 1928, vol. I, p. 330.)

    IM 2,41

    6 Esta passagem uma adaptao do texto de Benjamin sobre sua segunda experincia de haxixe;cf. GS VI, 560-566, especialmente, p. 564. Ver tambm GO, 5, 1 2, 6, 1 2a, 1 e R 2a. 3,

    (E/M)

  • A atitude do flneur uma abreviatura da atitude poltica das classes mdias durante oSegundo Imprio.

    IM 2.51

    Com o aumento constante do trfego, foi somente graas macadamizao" das ruas quese a conversar nos terraos dos cafs sem precisar gritar nos ouvidos das pessoas.

    (M 2, 61

    O laisser-faire do flneur tem sua contrapartida at nos filosofemas revolucionrios da poca."Sorrimos diante da pretenso quimrica (de Saint-Simon) de atribuir todos os fenmenosfsicos e morais lei da atrao universal. Contudo, esquecemos facilmente que esta pretensono era isolada, e que, sob a influncia das revolucionrias leis naturais da fsica mecnica,

    e nascer uma corrente da filosofia natural que via no mecanismo da natureza a prova deum mecanismo idntico na vida social, e at nos acontecimentos em geral." Willy Sphler,Der Saint-Simonismus, Zurique, 1926, p. 29.

    (M 2, 71

    Dialtica daflnerie : de um lado, o homem que se sente olhado por tudo e por todos,como um verdadeiro suspeito; de outro, o homem que dificilmente pode ser encontrado,o escondido. provavelmente esta dialtica que se desenvolve em "O homem da multido".

    [M 2, 81

    "Teoria da metamorfose da cidade em campo: era ... a tese principal de meu trabalhoinacabado sobre Maupassant... Tratava-se da cidade como territrio de caa, sobretudo, oconceito de caador tinha um papel importante (por exemplo, para a teoria do uniforme:todos os caadores se parecem)." Carta de Wiesengrund, de 5 de junho de 1935.

    [M 2, 91

    O princpio da flnerie em Proust. "Ento, longe de todas essas preocupaes literrias esem me prender a nada, de repente um teto, o reflexo do sol em uma pedra, o cheiro de um

    caminho detinham-me pelo prazer singular que me proporcionavam, e tambm porquepareciam esconder, para alm do que eu via, algo que me convidavam a buscar e que, apesar

    de meus esforos, no consegui descobrir." Du Ct de Chez Swann, vol. I, Paris, 1939,

    p. 256 7 Esta passagem permite reconhecer claramente como o antigo sentimentoromntico da paisagem se desfaz e como surge uma nova viso romntica dela, que parece

    ser sobretudo uma paisagem urbana, se verdade que a cidade o autntico solo sagrado

    daflnerie. isto que dever ser exposto aqui pela primeira vez desde Baudelaire (em cuja

    obra no aparecem as passagens, embora fossem tantas em seu tempo).IM 2a, 11

    Assim o flneur passeia em seu quarto: "Quando Johannes, s vezes, pedia licena para sair,

    o mais das vezes isso lhe era negado; vez por outra, entretanto, seu pai lhe propunha, como

    compensao, passear pelo assoalho, segurando-o pela mo. primeira vista, isto pod

    parecer um pobre sucedneo, no entanto, ali se ocultava algo totalmente diferente. A

    sugesto era aceita e Johannes era livre para decidir por onde caminhar. Saam ento pela

    entrada rumo a um palacete prximo, ou dirigiam-se praia, ou apenas perambulavam

    pelas ruas, exatamente como desejava Johannes; pois o pai era capaz de tudo. Enquanto

    7 M. Proust, Ia Recherche du Temps Perdu, l, p, 178. (J.L,)

  • 466 Passagens

    passeavam pelo assoalho, o pai relatava

    tudo o que viam; cumprimentavam os

    veculos passavam por eles fazendo um

    rudo forte que encobria a voz do pai; as

    carameladas da confeiteira eram mais convidativas

    do que nunca..." Um texto do jovem

    Kierkegaard, segundo Eduard Geismar, Sren

    Kierkegaard, Gttingen, 1929, pp. 12_13.

    Eis a chave para 0 esquema de

    VoyageAutour de ma Chambre.8

    (M2Q1

    "O industrial passa sobre o asfalto apreciando

    sua qualidade; o velho procura-o com cuidado

    seguindo por ele tanto quanto possvel e fazendo alegremente

    ressoar nele sua bengala,

    lembrando-se com orgulho que viu construir as primeiras caladas; o poeta ... anda pelo

    asfalto indiferente e pensativo, mastigando versos; o corretor da bolsa o percorre calculando as

    oportunidades da ltima alta da farinha; e o desatento, escorrega." Alxis Martin, "Physiologie

    de l'asphalte", Le Bohme, I, no 3, 15 abr. 1855 Charles Pradier, redator-chefe.

    Sobre a tcnica dos parisienses de habitar suas ruas: "Na volta pela Rue Saint-Honor,

    encontramos um exemplo eloqente desta indstria da rua parisiense, que sabe tirar proveito

    de tudo. Em certo trecho estavam restaurando o pavimento e colocando tubos; deste

    modo, surgira no meio da rua uma rea interditada, de terra, porm levantada e coberta de

    pedras. No meio deste terreno, estabelecera-se imediatamente a indstria da rua. Cinco ou

    seis vendedores ambulantes ofereciam utenslios de papelaria e livros de bolso, artigos de

    cutelaria, abajures, ligas de meias, golas bordadas e toda a sorte de miudezas; at mesmo

    um autntico belchior tinha instalado ali uma sucursal, espalhado seu bricabraque de

    xcaras velhas, pratos, copos e coisas do gnero sobre as pedras, de modo que os negcios se

    beneficiaram com a breve interrupo, em vez de sofrer prejuzo. Eles so de fato mestres

    em transformar a necessidade em virtude." Adolf Stahr, Nach fiinfJahren, Oldenburg,1857, vol. 1, p. 29.

    [Setenta anos mais tarde, tive a mesma experincia na esquina do Boulevard Saint-Germaincom o Boulevard Raspail. Os parisienses transformam a rua em intrieur.]

    " maravilhoso que na prpria Paris se possa andar como se fosse no campo." Karl Gutzkow,Briefe aus Paris, Leipzig, 1842, vol. I, p. 61. Com isso toca-se o outro aspecto da questo.Pois assim como aflnerie pode transformar Paris em um intrieur, em uma moradia cujosaposentos so os bairros e onde estes no se separam claramente por limiares, como osaposentos propriamente ditos, assim tambm a cidade pode, por sua vez, abrir-se diantedo transeunte como uma paisagem sem limiares.

    Mas, definitivamente, s a revoluo cria o ar livre na cidade. O ar pleno das revoluesA revoluo desencanta a cidade. A Comuna na ducation sentimentale. A imagem da rua

    [M 3,31

    A rua como intrieuz da Passage du Pont-Neuf (entre a Rue Gungaud e a Rue deSeine), "as boutiques parecem armrioe.

    Tableaux de Paris, ou IMurs et Usages des Parisiens au Commencement du XIX Sicle, Paris, 1828, vol. l, p.

    34,

    8voyage Autour de ma Chambre: ttulo de obra publicada em 1794 por xavier de Maistre

  • to 467

    O ptio das Tulherias: "imensa savana plantada com bicos-de-gs em vez de bananeiras".Paul-Ernest de Rattier, Paris N 'existe Pas, Paris, 1857. Gs[M 3, 51

    Passage Colbert: "O candelabro que a ilumina parece um coqueiro no meio de uma savana...Gs Le Livre des Cent-et-un, vol. X, Paris, 1833, p. 57 (Amde Kermel, "IRS Passagesde Paris").

    [M 3, 61

    Iluminao na Passage Colbert: "Admiro a srie regular desses globos de cristal de ondeemana uma claridade ao mesmo tempo viva e suave. No se diria que so cometas emordem de batalha, esperando o sinal de partida para ir vagar no espao?" Le Livre des Cent-et-un, vol. X, p. 57. Comparar esta metamorfose da cidade em universo astral com UnAutre Monde, de Grandville. Gs

    [M 3, 71

    Em 1839, era elegante levar consigo uma tartaruga quando se passeava. Isto d uma idiado ritmo do flanar nas passagens.

    [M 3, 81

    Gustave Claudin teria dito: "No dia em que um fll deixou de ser um fil para tornar-seum chateaubriand, dizia ele; em que um carneiro guisado foi chamado de navarin; e emque o garom gritou: 'Moniteur, relgio!', para indicar que esse jornal foi pedido pelocliente sentado sob o relgio, nesse dia Paris perdeu definitivamente sua coroa!" Jules Claretie,In Vie Paris 1896, Paris, 1897, p. 100.

    [M 3, 91

    "Localiza-se a na Avenue des Champs Elyses desde 1845: o Jardin d'Hiver, umagigantesca estufa com amplo espao para reunies sociais, bailes e concertos, que no fazjus ao nome de jardim de inverno por abrir suas portas tambm no vero." Ao criar talentrecruzamento de sala e ar livre, o planejamento do espao vem ao encontro da profundainclinao do ser humano ao devaneio, que, inclusive, constitui provavelmente a foraautntica da indolncia em relao ao homem. Woldemar Seyfarth, Wahrnehmungen inParis 1853 und 1854, Gotha, 1855, p. 130.

    [M 3, 101

    O cardpio do restaurante "Les Trois Frres Provenaux": "36 pginas para a cozinha, 4

    pginas para a adega mas pginas muito extensas, in-flio pequeno, com um textocomprimido e muitas observaes em letras midas." O livro est encadernado em veludo.

    20 entradas e 33 tipos de sopa. "46 pratos de carne bovina, entre os quais 7 de bifesdiversos e 8 tipos de fil." "34 pratos de carne de caa, 47 pratos de legumes e 71 taas de

    compotas de frutas." Julius Rodenberg, Paris bei Sonnenschein und Lampenlicht, Leipzig,

    1867, pp. 43-44. Flnerie gastronmica.[M 3a, 11

    A melhor arte de capturar, sonhando, a tarde nas malhas da noite, fazr planos. O flneur

    a fazer planos.(M 3a, 21

  • 468 Possagons

    "As casas de Le Corbusier no so definidas nem pela espacialidade, nem pela plasticidade:o ar as atravessa! O ar torna-se fator constituinte! Para tanto, no contam nem o espaonem a forma plstica, apenas a relao e o entrecruzamento! Existe apenas um espao nicoe indivisvel. Caem os invlucros entre o interior e o exterior." Sigfried Giedion, Bauen inFrankreich, Berlim, 1928, p. 85.

    As ruas so a morada do coletivo. O coletivo um ser eternamente inquieto, eternamenteagitado que vivencia, experimenta, conhece e inventa tantas coisas entre as fachadas dosprdios quanto os indivduos no abrigo de suas quatro paredes. Para este coletivo, asbrilhantes e esmaltadas tabuletas das firmas comerciais so uma decorao de parede toboa, seno melhor, quanto um quadro a leo no salo do burgus; muros com o aviso"Proibido colar cartazes" so sua escrivaninha; bancas de jornal, suas bibliotecas; caixas decorreio, seus bronzes; bancos de jardim, a moblia de seu quarto de dormir; e o terrao docaf a sacada de onde ele observa seu lar. Ali, na grade, onde os operrios do asfaltopenduram o palet, o vestbulo; e o corredor que conduz dos ptios para o porto e para

    o ar livre, esse longo corredor que assusta o burgus , para eles, o acesso aos aposentos da

    cidade. A passagem era o aposento que servia de salo. Na passagem, mais do que emqualquer outro lugar, a rua se apresenta como o intrieur mobiliado e habitado pelas massas.

    [M 3a, 41

    O inebriante entrecruzamento da rua e da moradia que se realiza na Paris do sculo XIX

    e, sobretudo, na experincia do flneur tem valor proftico. Pois este entrecruzamento fazcom que a nova arquitetura se torne uma sbria realidade. Nesse sentido, Giedion observaoportunamente: "Um detalhe de projeto annimo de engenharia uma passagem de nvel torna-se elemento da arquitetura" (em uma manso). S. Giedion, Baten in Frankreich,Berlim, 1928, p. 89.

    [M 3a, 51

    "Hugo, em Les Misrables, deu uma descrio surpreendente do subrbio Saint-Marceau:'No era a solido, havia transeuntes; no era o campo, havia casas; no era uma cidade, asruas tinham sulcos como as grandes estradas e nelas crescia o mato; no era um vilarejo, ascasas eram altas demais. O que era, ento? Um lugar habitado onde no havia ningum,um lugar deserto onde havia algum, mais selvagem noite que uma floresta, mais sombriode dia que um cemitrio.'" Dubech e D'Espezel, Histoit? de Paris, Paris, 1926, p. 366.

    (M 3a, 61

    "O ltimo nibus puxado por cavalos funcionou na linha La Villette-Saint-Sulpice emjaneiro de 1913; o ltimo bonde puxado por cavalos, na linha Pantin-Opra, em abril domesmo ano." Dubech e D'Espezel, op. cit., p. 463.

    "Em 30 de janeiro de 1828, funcionou o primeiro nibus na linha dos boulevards, daBastilha Madeleine. O percurso custava vinte e cinco ou trinta centavos, o veculo paravaonde se quisesse. Ele comportava de dezoito a vinte lugares, e seu trajeto dividia-se emduas etapas, sendo a Porte Saint-Martin o ponto divisrio. A voga dessa inveno foiextraordinria: em 1829, a Compagnie explorava quinze linhas e companhias rivais lhefaziam concorrncia: Tricycles, cossaises, Barnaises, Dames Blanches," Dubech-D'Espezel, op. cit., pp. 358-359.

  • (O 469

    "Depois de uma hora da manh, as pessoas se despediram; pela primeira vez encontrei as ruas

    de paris quase desertas. Nos boulevards cruzei apenas com alguns transeuntes isolados; na Rue

    Vivienne, na Praa da Bolsa, onde durante o dia preciso abrir caminho na multido, no

    havia vivalma. Nada ouvia alm de meus prprios passos e do murmurar de alguns chafarizes

    no lugar em que, durante o dia, no h como escapar do barulho ensurdecedor. Nas cercanias

    do Palais-Royal encontrei uma patrulha. Os soldados caminhavam em ambos os lados da rua,

    junto s casas, um atrs do outro, a uma distncia de cinco a seis passos, para no serem

    atacados ao mesmo tempo e para poderem se socorrer uns aos outros. Isto me fez lembrar

    que, logo que cheguei aqui, fui aconselhado a andar desta maneira na noite de Paris se estivesse

    em companhia de outras pessoas, mas de tomar impreterivelmente um fiacre se tivesse que

    voltar para casa sozinho." Eduard Devrient, Briefe aus Paris, Berlim, 1840, p. 248.

    Sobre os nibus. "O cocheiro pra, sobem-se os poucos degraus da pequena e cmoda

    escada e se procura um lugar no veculo, no qual h bancos para 14 ou 16 pessoas direita

    e esquerda, no sentido do comprimento. Mal se coloca os ps no veculo e este j prossegue

    a viagem, o condutor j puxou novamente o cordo e, com um golpe sonoro, ele avana o

    ponteiro em um mostrador transparente, indicando que mais um passageiro subiu; o

    controle de arrecadao. Com o veculo em movimento, pega-se calmamente a carteira e

    paga-se o bilhete. Quando se est sentado longe do condutor, o dinheiro passa de mo em

    mo entre os passageiros; a dama bem vestida toma-o do operrio de macaco azul e passa-

    o adiante; tudo isso ocorre facilmente, como por hbito e sem problema. Para descer, o

    condutor puxa novamente o cordo e faz o veculo parar. Se for uma subida, o que no raro

    em Paris, e o veculo anda mais vagarosamente, os cavaleiros costumam subir e descer mesmo

    com ele em movimento." Eduard Devrient, Briefe aus Pas, Berlim, 1840, pp. 61-62.[M 4, 21

    "Depois da exposio de 1867 comearam a aparecer os velocpedes que, alguns anos mais

    tarde, deveriam alcanar um sucesso to grande quanto pouco durvel. Para comear, digamos

    que, durante o Diretrio, viam-se alguns incroyables9 usando velocferos, que eram

    velocpedes pesados e mal construdos; em 19 de maio de 1804 apresentou-se no Vaudeville

    uma pea intitulada Les Vlociferes, em que se cantava esta estrofe:

    Vocs, partidrios do trote leve,

    Cocheiros que no se apressam tanto,

    Querem vocs chegar mais cedo

    Que o mais rpido velocfero?

    Saibam substituir hoje

    A rapidez pela habilidade.

    Desde o comeo de 1868 os velocpedes circulavam, e logo os passeios pblicos se tornaram

    suas pistas; o velocemen substituiu o canoeiro. Havia ginsios, crculos de velocipedistas, e

    abriram-se concursos para estimular a habilidade dos amadores... Hoje, o velocpede

    acabou, foi esquecido." H. Gourdon de Genouillac, Paris Travers les Sicles, vol. V, Paris,

    1882, p. 288. [M 4, 31

    9 O Diretrio representava o poder executivo na Frana, de 1795 a 1799. Com o nome de incroyables (os

    incrveis), designava-se nessa poca um grupo de jovens que afetavam uma elegancia estudada em sua

    maneira de falar e de se Vestir. (E/M)