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FILOSOFIA DO DIREITO NA ANTIGÜIDADE O alicerce grego na construção de uma Filosofia do Direito Hilda Helena Soares Bentes A história da Filosofia do Direito deve percorrer os mesmos caminhos onde o pensamento reflexivo começa a desenhar os seus primeiros sinais. É pela admiração que o homem passa a desenvolver a sua capacidade racional de decifrar os mistérios da natureza e do mundo que o circunda, tal como assinalam Platão e Aristóteles, respectivamente, no Teeteto (155a) e na Metafísica (Livro I, 982b). E esse canal possibilitador de interrogação e problematização do saber filosófico encontra-se nos primeiros passos dados pelos pensadores pré-socráticos em vários âmbitos do conhecimento. A singularidade do grego reside na capacidade de forjar um pensamento paulatinamente liberto das crenças e dos mitos rumo a um patamar de racionalidade que irá abrir caminhos fecundos para a criação de vários campos de investigação: a Ciência, a Ética, a Política, o Direito, a Estética, a Filosofia. Para os gregos, a palavra filosofia possui um sentido abarcante (etimologicamente: amizade, amor à sabedoria), englobando todos os saberes como centro de indagação especulativa. Conquanto seja incontroverso que os gregos auferem inúmeros ensinamentos da sabedoria oriental, constitui fato notável que esses 1 Notas do Professor Roberto Kennedy Doutora em filosofia do Direito e do Estado da PUCSP, Professora assistente do Programa de Pós-Graduação em Direito da UGF. O sentido utilizado aqui para “pensamento reflexivo” é justamente o que podemos chamar de filosofia. Pouco a pouco, lentamente. Sem controvérsia. Colher, obter, lucrar. Práticos e desorganizados. “Milagre grego” é como os estudiosos do mundo helênico chamam ao desenvolvimento cultural dos gregos que, segundo estes, não teriam recebido nenhuma influência exterior. Todo o desenvolvimento intelectual, como a filosofia, teria sido fruto exclusivo desse povo. Há, contudo, controvérsias que não cabem aqui o debate. Que não remetem a nenhum ordenamento religioso, mas absolutamente civil. Penetrante, profundo. Essa experiência “radical” não tem o sentido de extremismo, mas de raiz; de origem; de principio. Unida, ligada, contraída. “Polis” é o termo cunhado

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FILOSOFIA DO DIREITO NA ANTIGÜIDADE

O alicerce grego na construção de uma Filosofia do Direito

Hilda Helena Soares Bentes

A história da Filosofia do Direito deve percorrer os mesmos caminhos onde o pensamento reflexivo começa a desenhar os seus primeiros sinais. É pela admiração que o homem passa a desenvolver a sua capacidade racional de decifrar os mistérios da natureza e do mundo que o circunda, tal como assinalam Platão e Aristóteles, respectivamente, no Teeteto (155a) e na Metafísica (Livro I, 982b). E esse canal possibilitador de interrogação e problematização do saber filosófico encontra-se nos primeiros passos dados pelos pensadores pré-socráticos em vários âmbitos do conhecimento. A singularidade do grego reside na capacidade de forjar um pensamento paulatinamente liberto das crenças e dos mitos rumo a um patamar de racionalidade que irá abrir caminhos fecundos para a criação de vários campos de investigação: a Ciência, a Ética, a Política, o Direito, a Estética, a Filosofia. Para os gregos, a palavra filosofia possui um sentido abarcante (etimologicamente: amizade, amor à sabedoria), englobando todos os saberes como centro de indagação especulativa.

Conquanto seja incontroverso que os gregos auferem inúmeros ensinamentos da sabedoria oriental, constitui fato notável que esses conhecimentos, caracterizadamente empíricos e assistemáticos, penetram na Grécia para receber aí um impulso racional extraordinário, fruto de um gênio particularmente helênico que vinha gradativamente manifestando-se nos setores da atividade humana. Forçoso é constatar que o milagre grego surge em decorrência de um longo processo de fermentação de ideias que culmina com um nível de racionalização propício para o advento da reflexão filosófica. Importa salientar que o aparecimento de formas secularizadas de pensamento sinalizam a passagem de uma estrutura mítica da realidade para uma concepção mais racional. A passagem do mito à razão corresponde a uma evolução histórica, marcada por fatos sociais, políticos e econômicos, que irá transformar substancialmente as formas de pensamento.

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Notas do Professor Roberto Kennedy

Doutora em filosofia do Direito e do Estado da PUCSP, Professora assistente do Programa de Pós-Graduação em Direito da UGF.

O sentido utilizado aqui para “pensamento reflexivo” é justamente o que podemos chamar de filosofia.

Pouco a pouco, lentamente.

Sem controvérsia.

Colher, obter, lucrar.

Práticos e desorganizados.

“Milagre grego” é como os estudiosos do mundo helênico chamam ao desenvolvimento cultural dos gregos que, segundo estes, não teriam recebido nenhuma influência exterior. Todo o desenvolvimento intelectual, como a filosofia, teria sido fruto exclusivo desse povo. Há, contudo, controvérsias que não cabem aqui o debate.

Que não remetem a nenhum ordenamento religioso, mas absolutamente civil.

Penetrante, profundo.

Essa experiência “radical” não tem o sentido de extremismo, mas de raiz; de origem; de principio.

Unida, ligada, contraída.

“Polis” é o termo cunhado pelos gregos para denominar a experiência coletiva do agrupamento das famílias (demos).

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Trata-se de explicar como essa transmutação se opera, uma vez que implica um novo modelo de sociedade e novas articulações discursivas, capazes de enfrentar os desafios de um espaço público aberto, segundo apreciação percuciente de Jean-Pierre Vernant. A palavra é destituída de suas conotações mágico-religiosas, míticas, para se converter em logos ( ; palavra, razão), em discurso filosófico. Aλόγος contraposição mýtho-logos ( ; mýthos, mito, palavra,μύϑος narrativa) traz implícita a necessidade de fundar uma nova linguagem, baseada em conceitos que expressem a racionalidade emergente.

A experiência radical dos gregos concentrada no logos permite admitir que a Grécia antiga elabora uma fundação original e, consequentemente, a Filosofia do Direito é uma particular invenção helênica. Contudo essa construção está limitada a um fator específico, na análise de Jean-Cassien Billier: “ela constitui uma história da Filosofia do Direito adstrita ao Direito ocidental, sem embargo da produção de normas e da reflexão, principalmente no que se refere à Moral, sobre elas realizada no Oriente, na China e Índia”. Outro traço deve ser ressaltado na construção grega dos alicerces de uma Filosofia do Direito: a concepção de completitude na abordagem do Direito, que abarca todos os aspectos da vida humana e, em especial, a inserção do indivíduo na coletividade, donde se conclui que o Direito está intrinsecamente ligado à política e à ética; e que se estende até o sentido de legalidade das leis positivas, fazendo o contraponto com a doutrina do Direito Natural, reconhecendo-se, em larga medida, a amplitude conceitual da dicotomia phýsis ( ; natureza) e Φύσις nómos ( ;νομος norma, convenção) a ser esboçada nos quadros de uma Filosofia jurídica marcadamente nascente no pensamento grego.

A Completitude do Direito na Polis

O sentido de completitude do Direito marca profundamente o pensamento helénico a ponto de criar-se uma cisão entre o mundo grego e o dos bárbaros, ou melhor o dos não gregos. No que tange especificamente ao Direito, os gregos vangloriam-se de possuir uma percepção nítida da legalidade intrínseca, vale dizer, do dever de obediência à Lei estatuída, ao contrário dos bárbaros, que necessitam de

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Notas do Professor Roberto Kennedy

Doutora em filosofia do Direito e do Estado da PUCSP, Professora assistente do Programa de Pós-Graduação em Direito da UGF.

O sentido utilizado aqui para “pensamento reflexivo” é justamente o que podemos chamar de filosofia.

Pouco a pouco, lentamente.

Sem controvérsia.

Colher, obter, lucrar.

Práticos e desorganizados.

“Milagre grego” é como os estudiosos do mundo helênico chamam ao desenvolvimento cultural dos gregos que, segundo estes, não teriam recebido nenhuma influência exterior. Todo o desenvolvimento intelectual, como a filosofia, teria sido fruto exclusivo desse povo. Há, contudo, controvérsias que não cabem aqui o debate.

Que não remetem a nenhum ordenamento religioso, mas absolutamente civil.

Penetrante, profundo.

Essa experiência “radical” não tem o sentido de extremismo, mas de raiz; de origem; de principio.

Unida, ligada, contraída.

“Polis” é o termo cunhado pelos gregos para denominar a experiência coletiva do agrupamento das famílias (demos).

Dito de outra forma, a experiência de cidade, que os romanos chamarão de urbis. A palavra ‘política’ deriva de polis (grego) bem como, a palavra ‘urbano’ deriva de urbis (latim) .

Separação; corte.

Legalidade=qualidade ou estado do que é legal (conforme com a lei); Intrínseca=que está dentro de uma coisa que lhe é essencial; interior; íntimo; inerente. Portanto o termo quer dizer algo que é inerente à legalidade definida, convencionada. Um exemplo dessa postura foi a de Sócrates que condenado à pena capital (de morte) negou-se a fugir da prisão ainda que seus discípulos houvessem facilitado a mesma por suborno da guarda (para maiores detalhes veja o diálogo de Platão‘Criton’).

Aqui cabe dizer que para o homem grego dessa época não existia a ideia de individualidade tal como passará a ocorrer no homem moderno. O homem grego se confunde com a polis nesse período, só passará a ocorrer uma mudança quando Alexandre da Macedônia tomar as cidades-estado gregas sob seu império. Então, a importância de saber expressar-se em público justifica a importância dos sofistas para esse período posto que esses ‘sábios práticos’ detentores da arte da retórica, tinham o preço der seus ensinamentos na mais

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um conjunto de prescrições sem conceber um verdadeiro elo com o dever legal. Esse espírito de defesa das leis constitui uma das peculiaridades do pensamento grego, encarnado em diversas expressões literárias e filosóficas, tal como é ilustrado por Heródoto pelas palavras pronunciadas por Demáratos no diálogo com Xerxes: “De fato, sendo livres eles [os helenos] não são livres em tudo; eles tem um déspota – a lei – mais respeitado pelos lacedemônios que tu pelos seus súditos” (História, livro VII, 104, p. 368).

Enfatize-se que o Direito está vinculado à consolidação da polis ( ) grega, πόλις principio de afirmação do homem livre apto a deliberar sobre os assuntos públicos. A polis representa o aperfeiçoamento do logos, liberto de qualquer influência sobrenatural ou naturalista: na verdade, a polis qualifica-se pela historicidade, posto que criação racional do homem, capaz de elaborar convenções e julgá-las. A outrora fala do poeta, do adivinho e do rei de justiça ainda é uma palavra mágico-religiosa, expressão usada por Marcel Detienne na sua obra Os mestres da verdade na Grécia arcaica, portadores de uma memória sagrada. Por isso, são os Mestres da Verdade e a palavra por eles proferida assume um estatuto soberano: ela é eficaz, pois a verdade anunciada não comporta refutações. Todavia, paralelamente à palavra mágico-religiosa, delineia-se uma nova forma de palavra: a palavra-diálogo, emergindo das decisões compartilhadas publicamente por um grupo. Deve-se enfatizar que o processo de laicização da palavra mágico-religiosa coincide com o advento de um novo sistema de pensamento: na esfera pública da polis, a verdade como Aletheia (verdade revelada, desvelamento) enfraquece e surge um discurso baseado no diálogo, instrumento eficiente para a configuração das bases da Política, do Direito, da Retórica e da Filosofia.

O Direito e a Ética

Merece destaque o reconhecimento de que o direito é produto humano, cultural, intimamente imbricado com as esferas ética e política, construindo um esforço conjunto para o alcance do ideal grego de ordem, de um princípio unificador das forças centrífugas e irracionais, instauradoras do caos, visando a construção de um cosmo bem ordenado que aflora como medida de valor, julgando todas as

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manifestações do homem. Estado político que converge para a eunomia ( ) que, na visão de Sólon (século VI a.C),εύνομια se refere a um quadro político de perfeita harmonia; ao revés, a dysnomía ( ) configura um estado em queδυσνμία prevalece o caos, ou seja, a total desagregação da vida política e jurídica e em que os males proliferam de forma avassaladora prejudicando o convívio social, conforme exame detalhado de Martin Ostwald.

Nesse sentido, Jean-Cassier Billier afirma que os gregos descobrem a legalidade (op. Cit., 2001), ou seja, a consciência da lei e as vantagens decorrentes de seu estrito cumprimento na medida em que a ausência de leis, ou sua observância, acarretaria a anarquia. A evolução do Direito, por meio da consolidação do nómos, irá entronizar a lei como ícone definitivo da conquista da democracia. De fato, em vez de Zeus, do rei ou do tirano, a lei converte-se em rei, como comenta Werner Jaeger (Paidéia: a formação do homem grego, p. 97) sobre a célebre frase de Píndaro, símbolo de uma nova era em que a lei será a soberana distribuidora das penas e dos prêmios para todo o dêmos ( ; povo). δημος

Seria errôneo considerar que a cristalização do nómos o pensamento grego anula as antigas concepções relativas a Thémis ( ) e Θέμις Díke ( )Δίκη , como sentido de justiça divina e de prescrição imperativa, referências importantes na elaboração de um discurso de validade universal. O sentido consagrado de Thémis e Díke exsurge com mais nitidez na medida em que se investiga a origem etimológica dessas palavras: Thémis provém do sânscrito rta correspondente ao vocábulo latino ars, que significa ordem, e também de dhaman, em grego thémis, sentido de lei, cuja raiz dhe quer dizer estabelecer, colocar, ou seja, Thémis passa a representar a lei posta que tem por base uma ordem divina. Díke, por seu turno, deriva da raiz deik, resultando em grego deíknumi ( ; mostrar) e em latim δείκνυμι dico (dizer), donde o significado de mostrar verbalmente, com autoridade, uma prescrição normativa. Assim, percebe-se que nómos não está em oposição a Thémis e Díke; ao revés, cuida-se de uma relação de complementariedade entre as noções, conferindo ao nómos o estatuto de uma ordem natural harmônica, peculiar ao pensamento grego.

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Cabe enfatizar que o conceito de harmonia desempenha um papel capital na formação do ideal grego de justiça, de equilíbrio, fixando as premissas básicas da Política, do Direito, da Ética e da Estética. A doutrina sobre a harmonia aparece em Pitágoras (acme entre 540-537 a. C), geralmente associada à questão da afinação musical, relacionada à razão numérica. A ideia de harmonia como um princípio fundamental para a ordenação do universo fascinou não somente Pitágoras como também filósofos de diferentes orientações: vemos o conceito triunfar no pensamento de Anaximandro (610-540 a. C., aproximadamente), de Heráclito (acme 504-501 a. C), de Platão (427-347 a. C), de Aristóteles (384-312 a. C), e outrossim de célebres legisladores, como Sólon. Com efeito, a busca do justo equilíbrio é basilar no pensamento grego, norteando a concepção de Direito e Justiça. Funcionando como par antitético a Díke aparece a noção de híbris ( ;ΰβρις desmedida, excesso), que está associada à prática de um delito, de um ato criminoso que exige reparação, pois implica necessariamente “ ‘usurpação’ sobre um terreno interdito”, consoante Louis Gernet, constituindo uma invasão na esfera alheia.

Logo, hýbris significa a violação do nomos, do equilíbrio que cabe a cada um na partilha social e política, fundamentalmente do princípio da isonomia ( ),ϊσονομία que tal que eunomia, provém da raiz némein, némesthai ( , ), significando dar e receber emνέμειν νέμεσθαι partilha, e não do vocábulo nómos; deve-se frisar, contudo, que nómos possui o significado de divisão de território, região, distrito, ou seja, daquilo que é atribuído a alguém numa partilha, sendo eunomia precisamente a distribuição equitativa dos bens numa determinada comunidade, oposta à ação destrutiva da hýbris que pode ser concretizada em diversas violações (roubos, assassinatos), pondo em risco a ordem social. De Hesíodo a Aristóteles, assistimos à condenação da desmedida e à busca incessante da sophrosýne ( ; moderação), para a consecuçãoσωφροσύνη do ideal de um estado ético. Missão que cabe aos poetas, legisladores e filósofos executar, no papel de educadores do edifício ético-jurídico-político grego, exigindo o pleno exercício da função do sophós ( ; sábio), hábil nasσοφός atividades teoréticas e práticas.

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do milagre grego, isto é, que o pensamento grego foi absolutamente original sem sofrer influência de nenhum outro povo da antiguidade.

Que está sob interdição, isto é, proibido, privado de reger a sua pessoa e bens no sentido jurídico. Aqui, no caso, trata de algo que se encontra convencionado e que não pode ser, portanto, rompido sem significar o prejuízo (dolo) de outra pessoa, ou do Estado.