Weber a Ciencia Como Vocacao

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    A Cincia como Vocao

    Max Weber

    Tradutor: Artur Moro

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    Max Weber

    Falar-vos-ei, segundo o vosso desejo, da cincia como vocao.-nos peculiar a ns, economistas, um certo pedantismo, ao qual gosta-ria de me ater; consiste ele em partir sempre das relaes externas, aqui,portanto, da questo: como se configura, hoje, a cincia enquanto pro-fisso, no sentido mais material do termo? Do ponto de vista prtico,significa isto, em especial: qual hoje a situao de um licenciado,decidido a consagrar-se profissionalmente cincia, no seio da vidaacadmica? Para compreender em que consiste a este respeito a par-ticularidade da nossa situao alem, conveniente proceder de modocomparativo e recordar como esto as coisas no pas estrangeiro que,quanto a estas questes, mais contrasta com o nosso, isto , nos EstadosUnidos.

    Entre ns como se sabe a carreira de um jovem que se con-sagra cincia como profisso, comea normalmente pela funo dePrivatdozent. Aps uma conversa com o titular da especialidade e oseu consentimento, qualifica-se para tal, com base num livro e numexame quase sempre formal perante a faculdade, numa universidade,na qual, sem salrio e sem mais retribuio alm da que retira da matr-

    As ideias seguintes foram, na origem, expressas oralmente, num encontro deestudantes, que pretendia uma orientao sobre questes profissionais [Nota de Ma-rianne Weber].

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    cula dos estudantes, oferece cursos cujo objecto ele prprio fixa dentrodos limites da sua venia legendi.

    Na Amrica, a carreira comea normalmente, de forma muito di-ferente, a saber, com a nomeao de assistant. De modo anlogoao que costuma acontecer entre ns nos grandes institutos das facul-dades de cincias e de medicina, em que s uma pequena parte dosassistentes e, muitas vezes, j tarde, aspira habilitao formal comoPrivatdozent. O contraste significa, na prtica, que, entre ns, a carreirade um homem de cincia se constri, em ltima anlise, totalmente empressupostos plutocrticos. Pois um risco extraordinrio para um ci-entista jovem, sem bens de fortuna, expor-se s condies da carreiraacadmica. Deve, pelo menos durante alguns anos, poder sustentar-secom os seus prprios meios, sem saber se, mais tarde, ter a possibi-lidade de obter um lugar que lhe permita viver. Nos Estados Unidos,pelo contrrio, vigora o sistema burocrtico. O jovem remunerado,desde o incio. Com moderao, sem dvida. O salrio, na maioria doscasos, dificilmente corresponde ao nvel da remunerao de um ope-rrio medianamente qualificado. De qualquer modo, ele comea comuma posio aparentemente segura, pois recebe um salrio fixo. A re-gra, porm, tal como acontece com os nossos assistentes, ele poderser despedido, e deve contar com isso de um modo bastante impiedoso,se no corresponder s expectativas. Consistem estas em ele ser capazde encher a sala. Eis algo que no pode acontecer a um Privatdozentalemo. Uma vez nomeado, j no pode ser destitudo. No tem di-reitos, certo; mas dispe da convico natural de, aps vrios anosde actividade, ter uma espcie de direito moral a alguma consideraopor ele. Inclusive isto , muitas vezes, importante quando se tratada eventual habilitao de outros Privatdozent. A questo de se, nofundo, se devem habilitar os graduados comprovadamente competen-tes ou se importa tomar em considerao as necessidades docentes,portanto, se haver que conceder um monoplio aos Privatdozent j emfunes, um dilema penoso, estreitamente ligado dupla face da pro-fisso acadmica, da qual, em seguida, nos iremos ocupar. Na maioria

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    dos casos, decide-se a favor da segunda alternativa. Mas isto aumen-tar o perigo de o professor ordinrio interessado, por maior que seja asua conscincia moral subjectiva, dar a preferncia aos seus discpulos.Pessoalmente para dizer tudo segui o princpio seguinte: quem co-migo se graduou tem de fazer as suas provas e de se habilitar com outroprofessor e noutro lugar. Mas o resultado foi este: um dos meus melho-res discpulos foi rejeitado noutra instituio, porque ningum ali quisacreditar que a razo fosse justamente essa.

    Outra diferena entre o nosso sistema e o americano: entre ns,o Privatdozent tem, em geral, de se ocupar menos do que desejariacom a docncia. Em princpio, tem o direito de dar aulas sobre ostemas da sua especialidade. Mas isso surge como uma inaudita falta deconsiderao para com os docentes mais antigos e, em geral, o titular que d as grandes lies; o Privatdozent contenta-se com cursossubsidirios. H aqui uma vantagem: embora, em parte, contra a suavontade, ele tem assim a liberdade de se dedicar ao trabalho cientfico,durante os seus anos de juventude.

    Na Amrica, as coisas, em princpio, tm outra organizao. Comorecebe um salrio, justamente durante os seus primeiros anos queo docente se encontra mais sobrecarregado. Num departamento degermanstica, por exemplo, o professor ordinrio far, porventura, umcurso de trs horas semanais sobre Goethe, e basta enquanto o jovemassistente se pode dar por muito satisfeito se, nas suas doze horas se-manais, alm de ensinar os rudimentos da lngua alem, se ocupa aindade poetas da categoria de Uhland. As autoridades do ramo que deter-minam o programa e o assistant tem de se ajustar a ele, tal como entrens acontece com os assistentes dos institutos.

    Podemos agora, entre ns, ver com clareza que a recente amplia-o da universidade para acolher no seu seio novos ramos da cinciase est a fazer de acordo com padres americanos. Os grandes ins-titutos de medicina ou de cincias so empresas de capitalismo deEstado . No podem ser administradas sem meios empresariais degrande envergadura. E surge neles a mesma situao que em toda a

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    parte onde intervm a empresa capitalista: a separao do trabalhadore dos meios de produo . O trabalhador, portanto o assistente, estvinculado aos meios de trabalho que o Estado pe sua disposio; ,por conseguinte, to pouco independente frente ao director do institutocomo um empregado numa fbrica pois o director do instituto pensa,com total boa f, que este seu, e actua como se efectivamente ofosse. A sua situao , muitas vezes, to precria como qualquer outraexistncia proletaride, como acontece tambm com o assistant dauniversidade americana.

    A vida universitria alem americaniza-se, como em geral se ame-ricaniza toda a nossa vida em pontos muito importantes , e estou con-vencido de que, com o tempo, esta evoluo se estender tambm sdisciplinas onde, como hoje acontece em grande parte com a minha, oprprio artfice proprietrio dos meios de trabalho (essencialmente dabiblioteca), do mesmo modo que, no passado, o artfice era proprietrioda sua oficina. A evoluo encontra-se em pleno desenvolvimento.

    As vantagens tcnicas desta situao so indubitveis , como emtodas as empresas capitalistas e burocratizadas. Mas o esprito, quenelas reina, est muito longe da velha atmosfera histrica das univer-sidades alems. No interior e no exterior, existe um imenso abismoentre o chefe de uma empresa universitria e capitalista deste gneroe o habitual professor ordinrio de velho estilo. O mesmo se passa naatitude interior. No desejo aqui insistir mais nisto. Tanto no interiorcomo no exterior, a velha constituio da universidade tornou-se fict-cia. Conservou-se, porm, e at se intensificou, um elemento peculiarda carreira acadmica: a questo de se um Privatdozent ou um assis-tente tero, alguma vez, oportunidade de ocupar um lugar de professorordinrio ou de director de um instituto continua a depender do acaso. Sem dvida, no s a casualidade que impera, mas ela reina numgrau muito elevado. Dificilmente conheo na terra uma carreira em queo acaso desempenhe semelhante papel. Estou tanto mais qualificadopara assim falar quanto eu, pessoalmente, tenho de agradecer a certascasualidades absolutas ter sido nomeado, ainda muito jovem, professor

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    ordinrio de uma disciplina em que outros colegas mais velhos j en-to tinham produzido obras mais importantes do que a minha. Graasa esta experincia, creio ter uma viso muito apurada para perceber oimerecido destino de muitos, para os quais o acaso jogou e joga emsentido contrrio e que, apesar de toda a sua competncia, no chegama ocupar o lugar que merecem, devido a este aparelho selectivo.

    Que o acaso, e no s a competncia, desempenhe um to grandepapel no depende apenas, e nem sequer principalmente, das fraquezashumanas que, decerto, se fazem sentir nesta seleco como em qual-quer outra. Seria injusto atribuir as responsabilidades s fraquezas pes-soais das Faculdades ou dos Ministrios pela circunstncia de, sem d-vida, haver tantas mediocridades que desempenham nas universidadesum papel importante. Mas tal radica nas leis da cooperao humana,que, neste caso, a colaborao de vrias corporaes: as Faculdadesque propem e o Ministrio. Um exemplo equivalente: a eleio pa-pal, cujos processos podemos seguir ao longo dos sculos e que omais importante exemplo controlvel da seleco de pessoas. S emraras ocasies se viu contemplado o cardeal tido por favorito; emgeral, isso aconteceu com aquele que ocupava o segundo ou terceirolugar. Outro tanto acontece com os presidentes dos Estados Unidos.S excepcionalmente consegue a nomeao partidria e, em seguida,o triunfo eleitoral, o candidato mais notrio e famoso; em geral, am-bos vo para aquele que ocupa o nmero dois ou trs. Os americanoscunharam j expresses sociolgicas tcnicas para designar este tipode homens e seria muito interessante indagar, nestes exemplos, as leisde uma seleco realizada atravs de uma vontade colectiva. No ofaremos hoje, aqui. Essas leis valem tambm para os colgios universi-trios; no de admirar que haja erros frequentes, mas sim que, apesarde tudo, o nmero de nomeaes acertadas seja to significativo. Pode estar-se certo de que as mediocridades indolentes ou os carreiristas stm possibilidades a seu favor quando, por razes polticas , tem lugar,como em certos pases, a interveno dos parlamentos ou, como entrens, dos monarcas outrora e dos lderes revolucionrios, agora.

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    Nenhum professor universitrio recorda com gosto as discussesacerca da sua nomeao, pois elas raramente so agradveis. E, noentanto, posso garantir o seguinte: nos numerosos casos que so domeu conhecimento, esteve presente, sem excepo, a boa vontade dedecidir por motivos puramente objectivos.

    Importa, ademais, ter ideias claras: no se deve s insuficinciada seleco por meio de uma deciso colectiva que a deciso dos des-tinos acadmicos surja como um acaso. Todo o jovem que se sentechamado profisso acadmica deve ter uma conscincia clara de quea tarefa que o espera apresenta uma dupla vertente. Deve qualificar-seno s como sbio, mas tambm como professor. E estas duas facetasesto muito longe de coincidir. Pode algum ser um sbio excepcio-nal e, ao mesmo tempo, um professor horrivelmente mau. Recordo-meda actividade docente de homens como Helmholtz ou Ranke. E nose trata de excepes raras. As coisas esto de tal modo organizadasque as nossas universidades, sobretudo as pequenas, se encontram en-tre si numa ridcula concorrncia pelo nmero de estudantes. Os quealugam casas nas cidades universitrias galanteiam com uma festa oestudante nmero mil, mas honram de preferncia, com um desfile detochas, o estudante nmero dois mil. O rendimento derivado das matr-culas h que reconhec-lo afectado por uma ocupao atractivadas ctedras mais prximas; mas, se abstrairmos disso, evidente queo nmero de ouvintes constitui um sinal de xito, apreensvel em ter-mos quantitativos, ao passo que a qualidade cientfica impondervele, muitas vezes (e de modo inteiramente natural), contestada aos ino-vadores audazes. Tudo fica subordinado sugesto da infinita bnoe ao valor do grande nmero de ouvintes. Quando de um docente sediz que um mau professor, isso para ele, na maioria dos casos, umasentena de morte acadmica, ainda que seja o maior sbio do mundo.Mas a questo de saber se algum bom ou mau professor recebe umaresposta atravs da assiduidade com que algum se v honrado pelossenhores estudantes. Ora, um facto que a circunstncia de os estu-dantes acorrerem em chusma a um professor determinada, em ampla

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    medida, por factores puramente extrnsecos: o temperamento, e at otimbre da voz num grau que se no consideraria possvel. Tenho,graas a uma experincia mais do que suficiente e a uma sbria refle-xo, uma profunda desconfiana frente aos cursos muito concorridos,por inevitveis que eles sejam. Que a democracia exista onde lhe com-pete. Mas a educao cientfica, como por tradio a devemos cultivarnas universidades alems, uma questo de aristocracia espiritual; eno h que tapar os olhos a tal respeito. Por outro lado, tambm ver-dade o seguinte: a exposio dos problemas cientficos de modo queeles sejam compreensveis para uma cabea no educada, mas recep-tiva, e que chegue para ns a nica coisa decisiva a ter sobre elesideias autnomas, talvez a mais difcil de todas as tarefas pedaggi-cas. No , todavia, o nmero de ouvintes que decide do seu xito.E para voltarmos de novo ao nosso tema esta arte um dom pes-soal, que de nenhum modo coincide com as qualidades cientficas deum sbio . Diferentemente da Frana, no temos nenhuma corporaodos imortais da cincia; antes, de harmonia com a nossa tradio, asuniversidades ho-de responder dupla exigncia da investigao e doensino. Se as capacidades para estas duas funes confluem num s emesmo indivduo puro acaso.

    A vida acadmica , portanto, um acaso incontrolvel. quase im-possvel arcar com a responsabilidade de aconselhar o jovem que vempedir orientao em vista da sua habilitao. Se for um judeu, diz-se-lhe naturalmente: lasciate ogni speranza. Mas a qualquer outro deve,em conscincia, perguntar-se: Pensas que conseguirs suportar, semamargura e sem prejuzo, que, ano aps ano, sejas ultrapassado por me-diocridade aps mediocridade? Em seguida, a resposta que se recebe, evidentemente, esta: Claro, vivo s para a minha vocao daminha parte, pelo menos, conheci muito poucos que tenham suportadoisto sem dano interior

    Eis o que me parecia necessrio dizer sobre as condies exterioresda profisso acadmica.

    Mas creio que estveis espera de ouvir falar de outra coisa: da

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    vocao ntima para a cincia. Na actualidade, a postura interior emface da prtica cientfica como vocao est condicionada, em primeirolugar, pelo seguinte: a cincia entrou num estdio de especializao,antes desconhecido, e esta situao ir persistir para sempre . No s no plano externo, no, mas tambm internamente que as coisas seapresentam assim: o indivduo pode adquirir a conscincia segura derealizar algo de efectivamente perfeito no campo cientfico s no casoda mais rigorosa especializao. Todos os trabalhos que se estendema outras reas vizinhas, como os que ocasionalmente fazemos, comoos que os socilogos repetidamente devem fazer, esto onerados coma conscincia resignada de que, quando muito, se facultam ao especia-lista questes teis que ele, do ponto de vista da sua especialidade, noimaginaria com facilidade; que o seu trabalho deve necessariamentepermanecer incompleto. S graas a uma especializao rigorosa podeo trabalhador cientfico ter este sentimento pleno, que decerto s acon-tece uma vez e nunca mais se repete na vida: realizei, aqui, algo queir durar . Hoje, um feito realmente definitivo e importante sempreobra de especialistas. Quem, pois, no possuir a capacidade de, porassim dizer, pr uns antolhos e de conceber que o destino da sua almadepende de ele comprovar justamente esta conjectura nesta passagemdeste manuscrito, ficar sempre longe da cincia. Jamais conseguirclarificar em si o que se poderia chamar de vivncia da cincia . Semesta estranha embriaguez, ridcula para todos os que a contemplam defora, sem esta paixo, sem este sentimento de que tiveram de passarmilnios, antes de teres nascido, e outros milnios aguardaram em si-lncio que confirmasses tal conjectura, no se tem vocao para acincia; que faa outra coisa. Pois nada tem valor para o homem en-quanto homem, se o no puder fazer com paixo.

    Ora um facto que, por grande, autntica e profunda que seja estapaixo, no possvel forar o resultado. Ela , sem dvida, uma con-dio prvia daquilo que decisivo: a inspirao. Nos crculos juve-nis est, hoje, muito difundida a ideia de que a cincia se transformounum exemplo de clculo que se fabrica nos laboratrios ou nos arquivos

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    estatsticos com o frio entendimento, e no com toda a alma, exac-tamente como numa fbrica. Importa aqui, antes de mais, observaro seguinte: na maioria dos casos, no existe clareza alguma nem sobreo que se faz numa fbrica nem sobre o que se passa num laboratrio.Aqui e alm, deve ao homem sobrevir alguma coisa e decerto o que adequado para produzir algo de valioso. Mas esta inspirao nopode ser forada. Nada tem a ver com o frio clculo. Tambm este ,sem dvida, uma condio prvia . Nenhum socilogo, por exemplo,se pode lamentar de ter de se dedicar, durante meses, e talvez na suavelhice, a realizar operaes perfeitamente triviais. Paga-se caro o in-tento de se esquivar a esta tarefa com a ajuda de meios mecnicos, se que realmente dela se pretende tirar algo e o que dela se extrai ,muitas vezes, quase nada. Mas se no lhe ocorrer algo de concretosobre a direco do seu clculo e, enquanto este se efectua, sobre oalcance dos seus resultados singulares, nem sequer este quase nada seobter. S no terreno de um duro trabalho se prepara normalmente ainspirao. Decerto, nem sempre . A inspirao de um diletante pode,no campo da cincia, ter o mesmo alcance, ou at maior do que a doespecialista. Devemos a diletantes muitos dos nossos melhores proble-mas e conhecimentos. O diletante s se distingue do especialista (comoHelmholtz dizia de Robert Mayer) porque lhe falta a firme seguranado mtodo de trabalho e no est, portanto, na maioria dos casos, emcondies de controlar e apreciar ou, inclusive, de dar corpo inspi-rao. Esta no substitui o trabalho. E este, por seu turno, no podesubstituir nem forar a inspirao, como tambm o no consegue fa-zer a paixo. Trabalho e paixo podem sobretudo quando unidos provoc-la, mas ela surge quando quer, e no quando nos apraz. Defacto, verdade que as melhores coisas ocorrem a algum enquantofuma o charuto no sof, como relata Ihering; ou como de si prpriodiz Helmholtz, com preciso de fsico, enquanto passeia numa rua le-vemente ascendente, ou de modos semelhantes; seja como for, surgemquando menos se espera, e no enquanto se matuta e se inquire se-cretria. Claro que nunca surgiriam, se algum no tivesse atrs de si

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    esse matutar secretria e a demanda apaixonada. De qualquer modo,o trabalhador cientfico tem de ter em conta este acaso, subjacente atodo o trabalho cientfico: vir, ou no, a inspirao? possvel serum trabalhador insigne e nunca ter tido uma inspirao valiosa. umerro grave pensar que tal acontece s na cincia e que, por exemplo, ascoisas se passam de modo distinto num laboratrio e num negcio. Umcomerciante ou um grande industrial sem fantasia comercial, isto ,sem inspiraes, inspiraes geniais, ser sempre, ao longo da sua vida,um homem que, quando muito, permanecer dependente ou um funci-onrio tcnico: nunca criar novas organizaes. No de modo algumcerto que a inspirao desempenhe um papel maior na cincia do quena soluo dos problemas da vida prtica por um empresrio moderno embora a sobranceria dos cientistas tal no admita. E contra umacrena muito frequente tambm no menor o seu papel na cinciado que no campo da arte. uma ideia infantil a de que um matem-tico pode chegar a um resultado cientificamente valioso, trabalhando mesa com uma regra clculo, com qualquer outro meio mecnico ouuma mquina de calcular: sem dvida, tanto pelo sentido como pelosresultados que tem em vista, a fantasia matemtica de um Weierstrassest orientada de modo muito diferente da de um artista e dela quali-tativamente se distingue. Mas no segundo os processos psicolgicos.Ambas so embriaguez (no sentido da mania platnica) e inspira-o.

    Se algum tem inspiraes cientficas algo que depende de umdestino que nos est oculto e, alm disso, de certos dons. Na basedesta verdade indubitvel originou-se uma atitude, muito popular, porrazes bem compreensveis, entre a juventude, de auto-rendio a al-guns dolos, de cujo culto encontramos exemplos em todas as esquinase em todos os jornais. Tais dolos so a personalidade e a vivn-cia. Ambos esto estreitamente ligados: predomina a ideia de quea segunda contribui a primeira, a cuja essncia pertence. As pessoasatormentam-se por acumular vivncias pois isso faz parte do estilode vida peculiar de uma personalidade e, se no o conseguirem, de-

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    vem ao menos comportar-se como se tivessem recebido esse dom dagraa. Outrora, tal vivncia chamava-se em alemo sensao [Sen-sation]. E, segundo me parece, tinha-se uma ideia mais correcta do que e do que significa a personalidade.

    Estimados ouvintes! No campo da cincia, s tem personalidadequem est pura e simplesmente ao servio da causa. E no s nombito cientfico que tal acontece. No conhecemos nenhum grandeartista que tenha feito outra coisa alm de servir a sua obra, e s a ela.Inclusive, numa personalidade do calibre da de Goethe, a arte foi pre-judicada pela liberdade que o artista teve de querer fazer da sua vidauma obra de arte. Talvez se ponha isto em dvida mas, de qualquermodo, preciso ser um Goethe para a si se permitir tal liberdade, etodos, ao menos, concordaro que at um homem como ele, que saparece uma vez em cada mil anos, no deixa de pagar um preo. Omesmo se verifica na poltica, da qual hoje nada diremos. No campocientfico, absolutamente certo que carece de personalidade quementra em cena como empresrio da causa a que se deveria consa-grar, ou tenta legitimar-se mediante a sua vivncia e continuamentepergunta: Como demonstrarei que sou algo mais do que um simplesespecialista? Como fazer para dizer algo que, na forma ou no fundo,ningum ainda, como eu, tenha dito? eis um fenmeno hoje muitogeneralizada, que indefectivelmente minora e rebaixa aquele que talpergunta faz, ao passo que, pelo contrrio, a devoo interior tarefa, es a ela, o eleva altura e dignidade da causa. Tambm as coisas noso diferentes no caso do artista.

    Mas, apesar da existncia destas condies prvias, comuns ao nossotrabalho e arte, o trabalho cientfico est submetido a um destino queo distingue profundamente da actividade artstica. O trabalho cient-fico est inserido na corrente do progresso. No campo da arte, pelocontrrio, no existe neste sentido nenhum progresso.

    No certo que uma obra de arte de uma poca que dispe de no-vos meios tcnicos ou que elaborou as leis da perspectiva esteja, s porisso, acima de outra obra desprovida de todo o conhecimento desses

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    meios e dessas leis contanto que esta ltima seja material e formal-mente justa, isto , contanto que tenha escolhido e configurado o seuobjecto como era possvel faz-lo artisticamente, na ausncia dessascondies e dessas leis. Uma obra de arte, que seja realmente aca-bada, nunca ser ultrapassada, nunca envelhecer; o indivduo podeapreciar de modo distinto a importncia que para ele, pessoalmente,tem essa obra, mas jamais algum poder dizer de uma obra, realmenteconseguida em sentido artstico, que foi ultrapassada por outra, quetambm seja uma realizao plena. Na cincia, pelo contrrio, cadaqual sabe que aquilo que produziu ficar antiquado dentro de dez, vinteou cinquenta anos. Tal o destino, o sentido do trabalho cientfico eao qual este, diferentemente de todos os outros elementos da cultura,tambm eles sujeitos mesma lei, est submetido e votado: toda a re-alizao cientfica significa novas questes e quer ser ultrapassada,envelhecer. Quem pretende dedicar-se cincia tem de contar com isto.Sem dvida, h trabalhos cientficos que podem conservar a sua impor-tncia de modo duradouro como instrumentos de fruio, por causada sua qualidade artstica ou como meios de formao para o trabalho.Seja como for, importa repetir que ser cientificamente ultrapassado no s o destino de todos ns, mas tambm toda a nossa finalidade. Nopodemos trabalhar sem esperar que outros ho-de ir mais longe do quens. Este progresso, em princpio, no tem fim. Chegamos assim aoproblema do sentido da cincia. De facto, no evidente que algo sub-metido a semelhante lei tenha em si mesmo sentido e seja em si com-preensvel. Porque cultivar algo que, na realidade, no tem nem jamaispode ter fim? Uma primeira resposta a de que isso se faz em vista defins puramente prticos ou, numa acepo mais ampla, tcnicos: parapoder orientar a nossa conduta prtica em funo das expectativas quea experincia cientfica nos oferece. Correcto. Mas isto s tem sentidopara o homem prtico. Qual , porm, a atitude ntima do homem decincia em relao sua profisso? no caso, naturalmente, de dela seocupar. Afirma ele que cultiva a cincia por si mesma, e no porqueoutros alcanam com ela xitos tcnicos ou econmicos, ou se podem

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    alimentar, vestir, iluminar ou governar melhor. Mas em que sentidojulga ele que tem de realizar algo destinado inevitavelmente a envelhe-cer, a mergulhar nesta empresa dividida em parcelas especializadas edesprovida de termo final? A resposta a esta questo exige algumasconsideraes de ordem geral.

    O progresso cientfico constitui um fragmento, decerto o mais im-portante, do processo de intelectualizao a que, desde h milnios, es-tamos submetidos e perante o qual, alm disso, se adopta hoje, muitasvezes, uma atitude extraordinariamente negativa.

    Tentemos, antes de mais, ver claramente que que significa, doponto de vista prtico, esta racionalizao intelectualista atravs da ci-ncia e da tcnica cientificamente orientada. Significa, porventura, quehoje cada um dos que esto nesta sala tem um conhecimento das suasprprias condies de vida mais amplo do que um ndio ou um ho-tentote? Dificilmente. Excepto se for um fsico, nenhum de ns, aoviajar de comboio, far ideia alguma de como ele se move. Alis, tam-bm no precisa de saber. Basta-lhe contar com o comportamento docomboio e orientar assim a sua prpria conduta; mas no sabe comofazer comboios que funcionem. O selvagem sabe incomparavelmentemais acerca dos seus utenslios. Se se trata de gastar dinheiro, apostoque, embora nesta sala haja economistas, obteramos tantas respostasdistintas quantos os sujeitos a que se propusesse esta questo: como que com a mesma quantidade de dinheiro podemos, segundo as oca-sies, comparar diferentes quantidades da mesma coisa? O selvagem,pelo contrrio, sabe muito bem como obter o seu alimento quotidi-ano, e quais as instituies que nisso o ajudam. A intelectualizaoe a racionalizao geral no significam, pois, um maior conhecimentogeral das condies da vida, mas algo de muito diverso: o saber oua crena em que, se algum simplesmente quisesse, poderia, em qual-quer momento, experimentar que, em princpio, no h poderes ocultose imprevisveis, que nela interfiram; que, pelo contrrio, todas as coi-sas podem em princpio - ser dominadas mediante o clculo. Queristo dizer: o desencantamento do mundo. Diferentemente do selvagem,

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    para o qual tais poderes existem, j no temos de recorrer a meios m-gicos para controlar ou invocar os espritos. Isso consegue-se graasaos meios tcnicos e ao clculo. Tal , essencialmente, o significado daintelectualizao.

    Mas pode perguntar-se se este processo de desencantamento, emaco durante milnios na cultura ocidental, se este progresso, emque a cincia se insere como elemento e fora propulsora, tem algumsentido que transcenda o puramente prtico e tcnico. Encontrareisesta questo exposta de modo exemplar nas obras de Leo Tolstoi, quechega a ela por um caminho peculiar. Todo o problema do seu matu-tar se centra cada vez mais numa s questo: , ou no, a morte umfenmeno com sentido? E a sua resposta esta: para o homem cul-tural, a morte no tem sentido. Sem dvida, porque a vida individualcivilizada, inserida no progresso, no indefinido, incapaz, segundo oseu sentido imanente, de termo algum. H sempre um progresso ulte-rior para l do j conseguido; nenhum mortal pode chegar aos pncarossituados no infinito. Abrao ou qualquer campons dos velhos tem-pos morria velho e saciado de vida, porque estava dentro do crculoorgnico da vida; porque, segundo o seu sentido, a sua vida lhe dera,j no crepsculo dos seus dias, tudo o que ela podia oferecer; porque,para ele, j no restava nenhum enigma que desejasse decifrar e, podia,podia sentir-se satisfeito.

    Pelo contrrio, um homem civilizado, submergido no enriqueci-mento incessante da civilizao com saberes, ideias e problemas, podesentir-se cansado de viver, mas no saciado. O que apreende da-quilo que a vida do esprito continuamente d luz to-s uma partemnima, e sempre apenas algo de provisrio, nunca definitivo; por isso,a morte , para ele, um facto sem sentido. E como a morte carece desentido, tambm o no tem a vida cultural enquanto tal, pois justa-mente esta que, com a sua absurda progressividade, pe na morte amarca do absurdo. Em todos os seus romances tardios se encontra estepensamento como tonalidade fundamental da arte de Tolstoi.

    Que pensar de tudo isto? Tem o progresso enquanto tal um sen-

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    tido reconhecvel que v alm do tcnico, de tal modo que a dedicaoa ele constitua uma vocao significativa? H que levantar esta ques-to. O problema, assim, j no s o da vocao para a cincia, o dosignificado que a cincia, enquanto profisso, tem para aquele que a elase dedica; trata-se j de outra coisa: Que a vocao da cincia dentroda vida inteira da humanidade? E qual o seu valor?

    ingente a diferena que, neste ponto, existe entre o passado e opresente. Recordai o maravilhoso quadro que nos descrito no comeodo livro stimo da Repblica de Plato: aqueles homens prisioneirosnuma caverna, com o rosto virado para a parede do fundo, tendo atrsde si a fonte da luz, que no conseguem ver, de tal modo que s divisamas sombras que ela projecta na parede e tentam averiguar a relaoque entre elas existe. Por fim, um deles consegue quebrar as cadeias,vira-se e olha para o sol. Ofuscado, move-se s apalpadelas e contabalbuciando o que viu. Os outros dizem que ele est louco, mas, poucoa pouco, ele aprende a ver na luz e, em seguida, empreende a tarefa dedescer at onde os seus companheiros ficaram para os libertar das suascadeias e os conduzir a ela. Ele o filsofo; a luz do sol a verdadeda cincia, que no busca as aparncias e as sombras, mas o verdadeiroser.

    Quem que, hoje, tem uma atitude semelhante em face da cin-cia? O sentimento hoje predominante, sobretudo entre a juventude, antes o contrrio: as construes intelectuais da cincia so hoje, paraos jovens, um reino trasmundano de artificiosas abstraces que, comas suas plidas mos, tentam captar o sangue e a seiva da vida real, semjamais conseguir. Aqui, na vida, naquilo que para Plato era apenas umjogo de sombras nas paredes da caverna, que pulsa a verdadeira reali-dade: tudo o mais so fantasmas inermes dela desviados, e nada mais.Como se realizou esta mudana? O apaixonado entusiasmo de Platona Repblica explica-se, em ltima anlise, pelo achamento recente dosentido de um dos maiores instrumentos do conhecimento cientfico: oconceito . Foi este descoberto por Scrates no seu alcance. Mas, nomundo, no apenas por ele. J na ndia se podem encontrar elementos

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    lgicos muito semelhantes aos de Aristteles. Mas em nenhum lugarfora da Grcia se tem conscincia da sua importncia. Aqui, pela pri-meira vez, surgiu um instrumento utilizvel, graas ao qual qualquerum se pode instalar no torno da lgica e dele no sai sem confessar, ouque nada sabe, ou que esta, e no outra, a verdade eterna que, diferen-temente das aces e das obras dos homens cegos, jamais passar. Eisa inaudita vivncia dos discpulos de Scrates. E dela, segundo parece,necessariamente se deduzia que, se algum tivesse encontrado o cor-recto conceito do belo, do bom, da coragem, da alma ou de qualqueroutra coisa, se podia tambm encontrar o seu verdadeiro ser, ficandoassim aberto o caminho que permitiria saber e ensinar qual o modojusto de se comportar rectamente na vida e, acima de tudo, como ci-dado. Para o heleno, cujo pensamento radicalmente poltico, tudodepende, de facto, desta questo. Por isso se pratica a cincia.

    Alm desta descoberta do esprito helnico surgiu, como fruto dapoca renascentista, o segundo grande instrumento do trabalho cient-fico: o experimento [Experiment] racional, como meio de uma experi-ncia [Erfahrung] controlada e fidedigna, sem a qual no seria possvela actual cincia emprica. Tambm j antes desta poca se havia ex-perimentado: na fisiologia, por exemplo, na ndia em prol da tcnicaasctica do Ioga; na matemtica, tanto na Grcia como na Europa me-dieval, alm com o fito da tcnica militar e, aqui, para a exploraode minas. Mas a elevao do experimento a princpio da investigaoenquanto tal obra do Renascimento. Os pioneiros desta senda so osgrandes inovadores no campo da arte: Leonardo e os seus pares, sobre-tudo, e muito caracteristicamente, os experimentadores na msica dosculo XVI, com os seus clavicrdios de ensaio. O experimento tran-sitou deles para o seio da cincia, sobretudo atravs de Galileu, paraa teoria, graas a Bacon e, mais tarde, acolheram-no tambm as disci-plinas cientficas singulares nas universidades do continente, antes demais, as italianas e as holandesas.

    Que significado tinha a cincia para estes homens situados no li-miar da modernidade? Para os artistas experimentadores do tipo de

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    Leonardo e dos inovadores musicais, a cincia significava o caminhopara a arte verdadeira o que, para eles, era tambm o da verdadeiranatureza. Era necessrio elevar a arte categoria de cincia, e istoequivalia sobretudo a elevar o artista, no plano social e pelo sentido dasua vida, categoria de um doutor. Esta a ambio que, por exem-plo, subjaz ao tratado de pintura de Leonardo. E hoje? Ver a cinciacomo o caminho para a natureza soaria como uma blasfmia nosouvidos da juventude. No, antes ao invs: libertao do intelectua-lismo da cincia para retornar nossa natureza e, assim, natureza emgeral! Como caminho que leva integralmente arte? Isto nem sequerprecisa de crtica. Mas, na poca do nascimento das cincias exactasda natureza, ainda delas se esperava mais. Se vos recordardes da frasede Swammerdam (Ofereo-vos aqui, na anatomia de um piolho, aprova da Providncia divina vereis ento o que o trabalho cientfico,(indirectamente) influenciado pelo protestantismo e pelo puritanismo,considerava, naquela poca, como sua tarefa prpria: ser o caminhopara Deus. Eis uma atitude que j se no encontra nos filsofos coe-vos, nos seus conceitos e dedues: que j no era possvel encontrarDeus por esse caminho, onde O procurara a Idade Mdia, sabia-o toda ateologia pietista da altura, sobretudo Spener. Deus est oculto, os seuscaminhos no so os nossos caminhos, nem os seus pensamentos soos nossos pensamentos. Mas nas cincias exactas da natureza, onde assuas obras se podiam fisicamente apreender, esperava-se poder acharo vestgio dos seus desgnios acerca do mundo. E hoje ? Afora algu-mas crianas grandes, com que se depara nas cincias naturais, quem que ainda hoje acredita que os conhecimentos da astronomia, da biolo-gia, da fsica ou da qumica nos podem ensinar algo sobre o sentido domundo ou, inclusive, sobre o caminho no qual se poderia encontrar umvestgio desse sentido se que ele existe? Se eles se prestam a algumefeito antes o de secar na raiz a f na existncia de algo que se possater por sentido do mundo. A cincia, caminho para Deus ? Ela,que um poder especificamente alheio divindade? Admita-se ou no,ningum, hoje, duvidar, no mais fundo do seu ser, de que a cincia

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    justamente assim. A emancipao relativamente ao racionalismo e aointelectualismo da cincia constitui a pressuposto fundamental da vidaem comunidade com o divino: esta expresso ou outra anloga quantoao sentido um dos enunciados fundamentais que dimana do senti-mento da nossa juventude religiosa ou daquela parte dela que aspira ater uma vivncia religiosa. O que lhe interessa no apenas a vivnciareligiosa, mas a vivncia em geral. Estranho , sim, o caminho que seadopta e que consiste, em ltima anlise, em elevar conscincia e prsob a sua lupa a nica coisa que, at agora, se no vira afectada pelo in-telectualismo, as esferas do irracional. Eis onde desemboca, na prtica,o moderno romantismo intelectualista do irracional. O caminho paraa emancipao a respeito do intelectualismo leva justamente ao pontooposto daquilo que, como meta, se propunham os que o empreende-ram. Aps a crtica devastadora que Nietzsche moveu aos ltimoshomens que tinham encontrado a felicidade, posso deixar de ladoo ingnuo optimismo que enalteceu a cincia, isto , a tcnica cientifi-camente fundamentada da dominao da vida, como o caminho para afelicidade. Quem que ainda acredita nisso afora algumas crianasgrandes que habitam as ctedras ou as salas de redaco dos jornais?

    Voltemos atrs. Qual , ento, sob estes pressupostos, o sentidoda cincia como profisso, aps o naufrgio de todas as antigas ilu-ses: caminho para o verdadeiro ser, caminho para a verdadeiraarte, caminho para a verdadeira natureza, caminho para o verda-deiro Deus, caminho para a felicidade autntica? A resposta maissimples a que Tolstoi forneceu com as seguintes palavras: A cinciacarece de sentido, pois no tem resposta algum para a nica questoque nos interessa Que devemos fazer? Como devemos viver?. Di-ficilmente se pode contestar o facto de que ela, com efeito, no facultanenhuma resposta a esta questo. O problema apenas este: em quesentido no oferece ela nenhuma resposta? Ser que, em vez disso,a cincia nem sequer poderia facult-la a quem levanta correctamentea questo? Hoje, costuma, com frequncia, falar-se de uma cinciasem pressupostos. Existir tal coisa ? Tudo depende do que por tal

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    se entende. Todo o trabalho cientfico tem sempre como pressuposto avalidade das regras da lgica e da metodologia, que so os fundamen-tos gerais da nossa orientao no mundo. Ora, estes pressupostos nosuscitam grandes problemas, pelo menos no tocante nossa questoparticular. Mas pressupe-se ainda que o resultado do trabalho cient-fico importante, no sentido de que digno de ser sabido. E aquiresidem, evidentemente, todos os nossos problemas. Pois semelhantepressuposto no , por seu lado, passvel de uma demonstrao cient-fica. S se pode interpretar de acordo com o seu sentido ltimo, e deverejeitar-se ou aceitar-se de harmonia com a atitude derradeira que cadaum tem perante a vida.

    O tipo de relao do trabalho cientfico com estes pressupostos ,alm disso, muito diferente, em consonncia com a sua respectiva es-trutura. As cincias naturais, como a fsica, a qumica ou a astronomia,pressupem como algo evidente que as leis do acontecer csmico tanto quanto a cincia as consegue construir so dignas de ser conhe-cidas. No s porque, com tais conhecimentos, se podem obter xitostcnicos, mas tambm, se necessariamente se tratar de uma vocao,por mor de si mesmas. Este pressuposto no em si mesmo de-monstrvel. Igualmente se no pode demonstrar se o mundo, que elasdescrevem, digno de existir, se tem um sentido ou se tem sentidoexistir nele. As cincias da natureza no se interrogam a este respeito.Ou encarai agora, por exemplo, uma arte to altamente desenvolvida,do ponto de vista cientfico, como a medicina moderna. O pres-suposto geral da actividade mdica , em termos triviais, a tarefa deconservar a vida enquanto tal e de minorar, quanto possvel, o sofri-mento. E isto problemtico. O mdico, com os seus meios, mantmvivo o enfermo incurvel, embora este suplique que o liberte da vida,embora os parentes, para os quais essa vida j no tem valor, que que-rem v-la livre da dor ou que j no podem suportar os custos da suamanuteno trata-se, porventura, de um louco miservel desejam edevem desejar, confessada ou inconfessadamente, a morte do doente.S os pressupostos da medicina e o cdigo penal impedem que o m-

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    dico se desvie desta linha de conduta. Ser a vida digna de ser vivida,e quando? a medicina no se questiona a este respeito. Todas as ci-ncias da natureza respondem a esta pergunta: Que devemos fazer, sequeremos dominar tecnicamente a vida? Mas deixam inteiramente delado a questo de se devemos e queremos ter esse domnio tcnico, ese isso, no fundo, ter sentido ou, ento, pressupem j uma respostapara os seus fins. Abordemos agora uma disciplina como a cincia daarte. A esttica parte do facto de que h obras de arte. Procura averi-guar em que condies surge este estado de coisas. Mas no levantaa questo de se o reino da arte no ser, porventura, um reino do es-plendor diablico, um reino deste mundo que , por isso mesmo, noseu mais profundo sentido, contrrio a Deus e, quanto ao seu espritoprofundamente aristocrtico, anti-fraterno. Portanto, ela no perguntase deve haver obras de arte. Ou atentai ainda na jurisprudncia: estabe-lece ela o que vlido segundo as regras do pensamento jurdico, emparte estritamente lgico e, em parte, vinculado por esquemas conven-cionalmente aceites: portanto, se so obrigatrias determinadas regrasjurdicas e determinados mtodos da sua interpretao. Mas no res-ponde questo de se deve existir o direito, ou se importa estabelecerjustamente estas regras, e no outras; s pode declarar que se algumquiser obter o resultado, ento o meio apropriado para o alcanar, deacordo com as normas do nosso pensamento jurdico, esta regra ju-rdica. Ou considerai, por fim, as cincias histricas da cultura. En-sinam elas a compreender os fenmenos polticos, artsticos, literriose sociais, a partir das condies do seu aparecimento. Mas carecemde resposta para a questo de se tais fenmenos culturais tinham, outm, de existir, e no respondem pergunta de se vale a pena cansar-sepor conhec-los. Pressupem que existe um interesse de, mediante talprocesso, participar na comunidade dos homens civilizados, mas soincapazes de provar cientificamente a algum que, de facto, assim .Pressupor a existncia deste interesse no chega, porm, para o tornarevidente por si mesmo. Na realidade, no o de modo algum.

    Detenhamo-nos agora nas disciplinas que me so mais afins, isto

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    , na sociologia, na histria, na economia, na teoria do Estado e nessaespcie de filosofia da cultura que se prope como tarefa a sua interpre-tao. Diz-se, e subscrevo, que a poltica no tem cabimento nos audi-trios universitrios. Ela no se ajusta bem aos estudantes. Lamentaria,por exemplo, se, no auditrio do meu antigo colega, Dietrich Schafer,os estudantes pacifistas de Berlim se amontoassem volta da ctedra efizessem tanto alarido como os estudantes antipacifistas, diante do pro-fessor Foerster, de quem, nas minhas ideias, me afasto o mais possvel.Mas a poltica tambm no incumbe ao professor. Sobretudo, e menosdo que nunca, quando, do ponto de vista cientfico, se ocupa da poltica.A tomada de posio poltico-prtica e a anlise cientfica das estrutu-ras e dos partidos polticos so duas coisas muito distintas. Se, numaassembleia popular, se fala de democracia, no se faz ento nenhumsegredo da posio pessoal: pois tomar partido de uma forma clara ao maldito dever e a obrigao. As palavras que nessa altura se utilizamno so instrumento de anlise cientfica, mas de propaganda polticaem vista da tomada de posio dos outros. No so relhas de arado paraabrir o campo do pensamento contemplativo, mas espadas contra o ini-migo: meios de luta. Em contrapartida, utilizar assim a palavra numaaula ou numa conferncia seria um sacrilgio. Quando ento se fala dedemocracia, haver que apresentar as suas distintas formas, analisaro modo do seu funcionamento, indicar que consequncias tem, para ascondies de vida, cada uma delas, contrap-las s formas no demo-crticas de ordenamento poltico e tentar que, na medida do possvel,o ouvinte seja capaz de poder tomar posio a tal respeito, a partir dosseus postremos ideais. Mas o genuno docente coibir-se- de forar, doalto da ctedra, a qualquer tomada de posio, quer de expressamente,quer por sugesto pois esta seria, sem dvida, a forma mais desleal,se que se trata de deixar falar os factos.

    Porque que, em rigor, no devemos fazer isto? Refiro, antes demais, que alguns colegas muito estimados so da opinio de que im-possvel, em geral, levar a cabo esta autolimitao e que, se isso fossepossvel, no passaria de um capricho. Ora a ningum se pode de-

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    monstrar cientificamente qual deve ser o seu dever enquanto professoruniversitrio. Apenas se lhe pode exigir a propriedade intelectual dediscernir que h dois tipos de problemas de todo heterogneos: por umlado, a constatao dos fatos, a determinao de contedos lgicos oumatemticos ou da estrutura interna dos bens culturais; por outro, aresposta questo do valor da cultura e dos seus contedos singularese de como se deve agir no seio da comunidade cultural e das associ-aes polticas. Se algum perguntar porque que, num auditrio, seno devem abordar estes dois ltimos temas, ento a resposta ser esta:porque o profeta e o demagogo no devem ocupar a ctedra de umasala de aulas. Tanto ao profeta como ao demagogo se diz: Vai pelasruas e fala publicamente. Ou seja, onde a crtica possvel. Num au-ditrio, deve o professor falar diante dos seus ouvintes, e estes guardarsilncio; os estudantes, em vista da sua progresso, esto obrigados afrequentar as aulas de um professor e nelas no permitido fazer crti-cas. Considero, pois, uma irresponsabilidade que o docente aproveiteesta circunstncia para estampar nos ouvintes as suas prprias ideiaspolticas, em vez de se limitar a cumprir a sua tarefa: ser til com osseus conhecimentos e com as suas experincias cientfica. Sem dvida, possvel que um indivduo s em parte consiga excluir as suas sim-patias subjectivas. Expe-se ento mais viva crtica no foro da suaconscincia. Mas isto nada prova, pois tambm so possveis outros er-ros puramente objectivos, e todavia nada demonstram contra o dever debuscar a verdade. A minha recusa parte tambm, e to s, do interessecientfico. Apoiando-me nas obras dos nossos historiadores, pretendomostrar o seguinte: sempre que o homem de cincia surge com o seuprprio juzo de valor, cessa a plena compreenso dos factos. No en-tanto, esta questo ultrapassa em grande parte o tema do sero de hojee exigiria longas discusses.

    Pergunto apenas: como possvel, num curso, levar alguma vezum crente catlico e um mao a uma valorao idntica destas coi-sas: as formas eclesiais e estatais ou a histria das religies? No hhiptese. E, no entanto, o professor deve em si ter o desejo e a exign-

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    cia de ser til a um e a outro, com os seus conhecimentos e mtodos.Podereis, com razo, dizer: mas o crente catlico nunca aceitar aviso dos factos circunstanciais, presentes na origem ao cristianismo,que um professor, sem os seus pressupostos dogmticos, lhe apresenta.Sem dvida! Mas a diferena reside no seguinte: a cincia sem pres-supostos, no sentido da rejeio de toda a vinculao religiosa, noreconhece, da sua parte, nem o milagre nem a revelao. Se osaceitasse, seria infiel aos seus pressupostos, ao passo que o crente osreconhece a ambos. E aquela cincia sem pressupostos exige deleno menos mas tambm no mais do que a seguinte aquiescncia:se a origem do cristianismo se deve explicar sem ter em conta aque-las interferncias sobrenaturais, que uma explicao emprica excluircomo momentos causais, ento ela deve elucidar-se, como se pretende.E o catlico pode aquiescer, sem ir contra a sua f.

    Mas, ento, no ter o contributo da cincia sentido algum paraaquele a quem o facto enquanto tal indiferente e apenas importantea tomada de posio prtica? Talvez. Mas depressa se nos apresentao seguinte: se algum um professor eficiente, ento a sua primeiratarefa ensinar os seus alunos a reconhecer os factos incmodos, ouseja, aqueles factos que so incmodos para a sua opinio partidria;e para todas as opinies partidrias inclusive, a minha h factosextremamente incmodos. Creio que quando o docente universitrioobriga os seus ouvintes a habituar-se a si, lhes d algo mais do que umsimples contributo intelectual; chegaria, inclusive, imodstia de paratal utilizar a expresso contributo moral, embora soe talvez como umtermo demasiado pattico para qualificar uma evidncia to trivial.

    At agora, falei somente das razes prticas para evitar uma im-posio da tomada de posio pessoal. Mas as coisas no ficam poraqui. A impossibilidade de uma defesa cientfica das posies pr-ticas excepto no caso da elucidao dos meios para alcanar um fimde antemo solidamente estabelecido deriva de razes muito maisprofundas. Essa defesa j, em princpio, absurda, porque as diferen-tes ordens de valores do mundo esto entre si numa luta sem soluo

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    possvel. O velho Mill, cuja filosofia, alis, no pretendo louvar, diznuma ocasio, e neste ponto tem razo: quando se parte da simplesexperincia, chega-se ao politesmo. A formulao parece superficiale paradoxal, mas contm alguma verdade. Se h algo que, hoje, vol-tamos a saber que algo pode ser sagrado, no s porque no belo,mas porque e na medida em que no belo no captulo 53 do livrode Isaas e no Salmo 22 encontrareis as referncias a tal respeito etambm que algo pode ser belo, no s apesar de no ser bom, mas jus-tamente naquilo em que no bom. Sabemo-lo desde Nietzsche e, almdisso, encontramo-lo realizado em As flores do mal, como Baudelaireintitulou o seu livro de poemas. Por fim, da sabedoria quotidiana quealgo pode ser verdadeiro, embora no seja nem belo, nem sagrado, nembom. Mas estes so apenas os casos mais elementares da luta que entresi travam os deuses dos ordenamentos e valores singulares. Como serpossvel pretender decidir cientificamente entre o valor da culturafrancesa e o da alem coisa que no enxergo. Tambm aqui dife-rentes deuses lutam entre si, e para sempre. Acontece, embora noutrosentido, o mesmo que ocorria no mundo antigo, quando ainda se notinha desencantado dos seus deuses e demnios: tal como os Gregosofereciam sacrifcios, umas vezes, a Afrodite, outras a Apolo e, sobre-tudo, aos deuses da sua cidade, assim acontece ainda hoje, embora oculto se tenha desmistificado e carea da plstica mtica, mas intima-mente verdadeira, daquela conduta. Sobre estes deuses e a sua eternaluta decide o destino, no decerto uma cincia. Apenas se pode com-preender o que seja o divino para uma e outra ordem ou numa e noutraordem. Acaba aqui tudo o que h a explicar numa ctedra ou por meiode um professor o que no quer dizer, claro est, que chegue ao fim oterrfico problema vital a implcito. Mas poderes muito diferentes dosdas ctedras universitrias tm aqui a palavra. Quem ousaria refutarcientificamente a tica do Sermo da Montanha, ou o princpio queordena no resistais ao mal ou a parbola que aconselha a oferecera outra face? E, no entanto, claro que, do ponto de vista intramun-dano, uma tica da indignidade que assim se prega: h que escolher

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    entre a dignidade religiosa que esta tica oferece e a dignidade virilque advoga algo de inteiramente diverso: Resiste ao mal pois, deoutro modo, sers corresponsvel do seu triunfo. Segundo a posioderradeira de cada qual, um destes princpios ser ou Deus ou o diabo,e cada indivduo tem de decidir qual dos dois , para ele, Deus ou odemnio.

    E assim acontece em todos os ordenamentos da vida. O grandiosoracionalismo de uma vida tica e metodicamente ordenada, que emanade toda a profecia religiosa, destronou aquele politesmo em prol donico necessrio mas depois, confrontado com as realidades davida interna e externa, viu-se obrigado aos compromissos e s relati-vizaes, que conhecemos da histria do cristianismo. Hoje, isso odia-a-dia religioso. Os numerosos deuses antigos, desmistificadose convertidos em poderes impessoais, levantam-se dos seus tmulos,querem dominar as nossas vidas e recomeam entre si a eterna luta.O que to duro se afigura ao homem moderno, sobretudo geraojovem, estar altura de semelhante dia-a-dia. Toda a caa da vivn-cia nasce desta debilidade, pois debilidade a incapacidade de encararo rosto severo do destino da poca.

    Mas o destino da nossa cultura voltar a tomar conscincia claradessa situao que tnhamos deixado de perceber, ofuscados, duranteum milnio inteiro, pela orientao exclusiva ou que se pretendiaexclusiva em funo do pathos grandioso da tica crist.

    Mas, chega j destas questes que to longe nos levam. Com efeito,o erro em que incorre uma parte da nossa juventude, se a tudo istoreplicasse: Sim, mas viemos s aulas para vivenciar algo mais do quesimples anlises e verificaes de factos o erro buscar no professoralgo diverso do que eles encaram um chefe, e no um docente, mass como docentes nos concedida a ctedra. Trata-se de duas coisasmuito distintas e fcil convencer-se desta dualidade. Permiti que merefira de novo Amrica, porque ali onde, com frequncia, se podemver estas coisas na sua mais flagrante originalidade.

    O jovem americano aprende muitssimo menos do que o nosso.

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    Apesar da incrvel srie de exames a que se v submetido, ainda seno converteu nesse puro homem do exames, como o estudante ale-mo. Com efeito, a burocracia, que pressupe o diploma como bilheteda entrada no reino dos cargos, est ali s nos seus comeos. O jovemamericano no tem respeito a nada nem a ningum, a nenhuma tradi-o, a nenhum cargo, excepto ao xito pessoal de quem o ocupa: aisto que o americano chama democracia. Por desgarradamente que arealidade se comporte frente ao sentido da palavra, o sentido este, e o que importa. Perante o professor, o jovem americano pensa: ele esta vender-me os seus conhecimentos e os seus mtodos em troca do di-nheiro do meu pai, tal como a campnia vende couves minha me. E tudo. Se, alm disso, o professor for campeo de futebol, aceit-lo-ento como chefe neste campo. Se tal no for (ou algo do mesmo estiloem qualquer outro desporto), no passar de professor, e a nenhum jo-vem americano ocorrer querer comprar vises do mundo ou regrasadequadas para a orientao da sua vida. Ora, rejeitamos semelhanteformulao. Mas pergunta-se se, neste modo de ver as coisas, quedeliberadamente exagerei, se no encerrar um lampejo de verdade.

    Companheiros e colegas! Viestes frequentar os nossos cursos, pedin-do-nos qualidades de chefe, sem pensar antes que, de cem professores,pelo menos noventa e nove no pretendem, nem podem pretender, ser,no s campees no futebol da vida, mas tambm no lderes notocante orientao da vida. Reflecti bem: o valor do homem no de-pende das suas qualidades de chefia. De qualquer modo, as qualidadesque fazem de algum um sbio renomado e um professor universitriono so as mesmas que dele fazem um lder para a orientao da vidae, sobretudo, na poltica. por mero acaso que algum possui tambmesta qualidade, e muito arriscado se algum, que ocupa uma ctedra,a pretende pr em prtica. Mais arriscado seria ainda se competisse acada professor universitrio decidir se deve, ou no, comportar-se comochefe na aula. Os mais inclinados a tal so, muitas vezes, os menos ca-pacitados e, de qualquer modo, sejam o que forem, a sua situao nactedra no oferece possibilidade alguma de o demonstrar. O profes-

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    sor, que se sente chamado a ser conselheiro da juventude e que gozada sua confiana, pode realizar o seu labor no intercmbio pessoal dehomem a homem. E se sentir em si o apelo para intervir nos conflitosentre as concepes do mundo e as opinies partidistas, que o faa napraa da vida: na imprensa, em reunies, em associaes, onde quiser. demasiado cmodo mostrar a fortaleza das suas opinies onde os pre-sentes e, porventura, os que pensam de outro modo, esto condenadosao silncio.

    Perguntareis, por fim: se tudo isto assim, que que, em rigor,a cincia traz de positivo vida prtica e pessoal? E eis-nos, maisuma vez, perante o problema da sua vocao. Antes de mais, for-nece conhecimentos sobre a tcnica que, mediante a previso, servepara dominar a vida, as coisas externas e a aco dos homens masisso apenas a campnia do jovem americano, direis vs. Essa tam-bm a minha opinio. Em segundo lugar, algo que a camponesa j nemsempre consegue fazer: mtodos de pensamento, instrumentos e a for-mao. Talvez digais: no se trata de legumes, mas so apenas meiospara os adquirir. Est bem; hoje, deixemos isto por decidir. Felizmente,nem assim acaba o contributo da cincia, mas podemos ainda mostrarum terceiro resultado importante: a claridade. Supondo, naturalmente,que a possumos. Se assim for, podemos elucidar-vos sobre o seguinte: possvel, frente ao problema axiolgico abordado peo-vos que,para simplificar, penseis no exemplo dos fenmenos sociais tomarpraticamente tais e tais posio diversas. Se tal posio se adoptar, aexperincia cientfica ensina que se ho-de utilizar tais e tais meios paraa pr em execuo. Se, por acaso, esses meios so de ndole tal que vossentis obrigados a rejeit-los, ento sereis obrigados a escolher entre ofim e os inevitveis meios. So, ou no, santificados os meios pelofim? O professor pode postar-vos perante a necessidade desta escolha,mas nada mais pode fazer enquanto permanecer mestre e se no conver-ter em demagogo. Pode, alm disso, dizer: se desejardes tal ou tal fim,devereis contar com estas ou aquelas consequncias secundrias que,segundo a nossa experincia, no deixaro de se produzir de novo,

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    a mesma situao. A verdade que estes problemas se podem apre-sentar tambm a todos os tcnicos que, em numerosos casos, tm dedecidir segundo o princpio do mal menor ou do relativamente melhor.S que a esses tcnicos costuma j estar previamente dado o principal:o fim. Eis justamente o que no nos dado, quando se lida com pro-blemas deveras postremos. E chegamos assim ao ltimo contributoque a cincia pode fazer em prol da claridade e, ao mesmo tempo, aosseus limites: podemos e devemos tambm dizer-vos: tal ou tal to-mada de posio prtica deriva lgica e honradamente, segundo o seusentido, desta e daquela postrema viso do mundo pode provir deuma s ou, talvez, de vrias , mas no de outras. Se vos decidirdespor esta posio, servis, em linguagem figurada, este deus e ofendeis ooutro. Se permanecerdes fiis a vs mesmos, chegareis internamente aestas ou quelas consequncias ltimas e significativas. Pelo menos emprincpio, isto pode realizar-se, e o que procuram levar a cabo a disci-plina especializada da filosofia e as explanaes de tipo essencialmentefilosfico de outras disciplinas individuais. Se conhecermos a nossamatria (o que, mais uma vez, aqui temos de supor), poderemos assimobrigar, ou pelo menos ajudar, o indivduo a que, por si mesmo, se dconta do sentido ltimo das suas aces. Parece-me que isto j no assim to pouco, inclusive para a vida puramente pessoal. Sinto-metentado, tambm aqui, a dizer que, quando um professor consegue isso,est ao servio de poderes morais: a obrigao de criar claridade esentimento da responsabilidade; e creio que ser tanto mais capaz de ofazer quanto mais conscienciosamente evitar, do seu lado, o desejo deimpor ou de sugerir aos seus ouvintes uma tomada de posio.

    Este pressuposto, que aqui vos apresento, dimana, sem dvida, deum facto fundamental: que a vida, na medida em que assenta em simesma e a partir de si mesma se compreende, s conhece a eterna lutadesses deuses entre si em termos no figurativos: a incompatibili-dade dos possveis pontos de vista derradeiros sobre a vida e, por con-seguinte, a indecidibilidade da luta entre eles, portanto, a necessidadede entre eles escolher. Se, em tais condies, vale a pena que algum

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    adopte a cincia como vocao, ou se ela prpria tem em si mesmauma vocao objectivamente relevante eis, de novo, um juzo devalor, a cujo respeito nada se pode dizer num auditrio universitrio.Pois o ensino que ali se d pressupe j uma resposta afirmativa. Pes-soalmente, respondo pela afirmativa a esta questo, com o meu prpriotrabalho. Mas supe ainda uma resposta prvia mesma questo oponto de vista que, como a juventude actual, faz ou quase sempre imagina fazer do intelectualismo o pior dos demnios. De facto, paraela vale a frase: Lembra-te de que o diabo velho; por isso, faz-tevelho, para o compreenderes. No se diz isto, naturalmente, a pro-psito da idade fsica, mas no sentido de que, perante tal demnio, omeio de acabar com ele, no a fuga, como hoje com tanto gosto sefaz, mas importa, primeiro, inspeccionar at ao fim os seus caminhos,para averiguar qual o seu poder e quais os seus limites.

    O facto de a cincia ser, hoje, uma profisso que se realiza atravsda especializao em prol da tomada de conscincia de si mesmo e doconhecimento de determinadas conexes reais, e no um dom gratuito,fonte de bnos e de revelaes, na mo de visionrios e de profetas,nem tambm uma parte integrante da reflexo de sbios e de filsofossobre o sentido do mundo constitui um dado inelutvel da nossa situ-ao histrica, a que no podemos escapar, se quisermos ser fiis a nsprprios. E se, de novo, Tolstoi se apresentar diante de vs e perguntar:Quem responde, j que a cincia o no faz, questo sobre o que deve-mos fazer e como devemos orientar a nossa vida? ou, na linguagemaqui empregue neste sero, quem nos dir a qual dos deuses antag-nicos havemos de servir? Ou talvez a outro de todo diferente, e quemser ele? ento, h que dizer: s um profeta ou um salvador. Setal profeta no existe, ou se j se no acredita na sua mensagem, entono o forareis de novo a baixar terra, tentando que milhares de pro-fessores, como pequenos profetas pagos ou privilegiados pelo Estado,assumam o seu papel nas salas de aula. Desse modo, apenas consegui-reis que nunca se torne vivo, em toda a fora do seu significado, o saberacerca deste facto decisivo: o profeta, por que tantos da nossa gerao

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    mais jovem anseiam no existe. Creio que, nem agora nem nunca, sefavorece o interesse ntimo de um homem real e religiosamente mu-sical, se a ele e a outros, por meio de um sucedneo, como so todasas profecias enunciadas do alto da ctedra, se ocultar este facto: tem odestino de viver numa poca sem Deus e sem profetas.

    Na minha opinio, a honestidade do seu sentimento religioso deve-ria, pelo contrrio, lev-lo a revoltar-se contra tal situao. Mas estareisinclinados a perguntar: Como encarar, ento, o facto da existncia dateologia e da sua pretenso a ser cincia? No iludamos a resposta.A teologia e os dogmas no so fenmenos universais, mas tam-bm no existem s no cristianismo. Recuando no tempo, tambm osencontramos, e em forma muito desenvolvida, no islamismo, no ma-niquesmo, na gnose, no orfismo, no parsismo, no budismo, nas seitashindus, no taosmo, nos Upanishades e, naturalmente, no judasmo. Oseu desenvolvimento sistemtico , decerto, muito diferenciado. E nofoi um acaso que o cristianismo ocidental no s tenha desenvolvidosistematicamente a teologia em oposio, por exemplo, teologiado judasmo , mas lhe tenha dado tambm uma importncia histricaincomensuravelmente maior.

    uma consequncia do esprito helnico; dele emana toda a teolo-gia do Ocidente, tal como toda a teologia oriental deriva (manifesta-mente) do pensamento hindu. Toda a teologia racionalizao intelec-tual do contedo salvfico da religio. Nenhuma cincia carece inteira-mente de pressupostos, nenhuma consegue fundamentar o seu prpriovalor, frente queles que rejeitam estes pressupostos. No entanto, a te-ologia introduz, alm disso, para o seu trabalho e para a justificao dasua existncia, alguns pressupostos especficos. Cada teologia, inclu-sive a hindu, parte do pressuposto de que o mundo deve ter um sentido e a sua questo esta: como se deve ele interpretar, para que se tornepossvel pens-lo? Trata-se de uma situao idntica da teoria kan-tiana do conhecimento, que parte do pressuposto de que existe a ver-dade cientfica, e vlida e, em seguida, pergunta: Sob que pressupos-tos racionais isto (significativamente) possvel? Ou idntica tambm

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    situao dos estetas modernos, que partem do pressuposto explcito(assim B. G. von Lukcs) ou factual de que existem obras de arte e,em seguida, se interrogam: Como isto (significativamente) possvel?

    As teologias, alm disso, no se contentam em geral s com estepressuposto (essencialmente filosfico-religioso), mas partem ainda deoutro: que importa crer em determinadas revelaes como factos sal-vficos isto , como os nicos que permitem uma orientao da vida,dotada de sentido e que determinados estados e actos possuem a qua-lidade da santidade, ou seja, configuram uma conduta de vida religi-osamente significativa ou, pelo menos, as suas componentes. E a suaquesto , por sua vez, esta: Como possvel interpretar de um modosignificativo estes pressupostos, simplesmente impostos, dentro de umaglobal imagem do mundo? Esses pressupostos, para a teologia, estopara l daquilo que cincia. No constituem um saber, no sentidohabitual do termo, mas um ter. A quem no tem f ou quaisquercompetncias sacrais nenhuma teologia pode fornecer um substituto.Tambm no qualquer outra cincia. Pelo contrrio, em toda a teolo-gia positiva, o crente chega a um ponto em que se impe a mximaagostiniana: credo non quod, sed quia absurdum est. A capacidadede realizar este feito virtuosista do sacrifcio do intelecto a marcadistintiva do homem verdadeiramente religioso. E que para ele assim : um facto que, pese teologia (ou, antes, em virtude dela, pois elaque o pe a descoberto), a tenso entre a esfera axiolgica da cinciae a da salvao religiosa de todo insolvel.

    S o discpulo perante o profeta ou o crente frente Igreja faz le-gitimamente este sacrifcio do intelecto. Nunca, porm, surgiu umaprofecia nova (reitero esta imagem, para alguns escandalosa, intencio-nalmente) para que alguns intelectuais modernos tenham a necessidadede mobilar, por assim dizer, as suas almas com coisas velhas e garanti-das, e se lembrem ento de que nelas se inclui tambm a religio, quej no tm, mas, em seu lugar, constroem, como brinquedo, uma esp-cie de capelinha domstica, mobilada com santinhos de todos os pasesde gentis-homens; ou, ento, congeminam um sucedneo em todos os

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    tipos de vivncia, aos quais atribuem a dignidade de um mstico patri-mnio sagrado e com ele se instalam no mercado livreiro. Tudo istono passa de fraude ou de auto-engano. Mas no nenhuma fraude,antes algo de muito srio e verdadeiro, embora, por vezes, equvoco noseu sentido, se algumas das comunidades juvenis, que se desenvolve-ram silenciosamente nos ltimos anos, associam s suas humanas re-laes comunitrias a interpretao de uma relao religiosa, csmicaou mstica. verdade que todo o acto de autntica fraternidade se podereligar conscincia de que com ele se acrescenta algo de imperecvela um reino supra-pessoal, mas afigura-se-me muito duvidoso que essasinterpretaes religiosas aumentem a dignidade das relaes comunit-rias puramente humanas. Mas, na realidade, esta questo j cai fora donosso tema.

    O destino da nossa poca, com a sua racionalizao, intelectualiza-o e, sobretudo, desencantamento do mundo, consiste justamente emque os valores ltimos e mais sublimes desapareceram da vida pblicae imergiram ou no reino trasmundano da vida mstica, ou na fraterni-dade das relaes imediatas dos indivduos entre si. No um acasoque a nossa arte mais elevada seja, hoje, uma arte ntima e no mo-numental, ou que s no seio dos mais restritos crculos comunitrios,de homem a homem, no pianissimo , pulse algo que corresponde aoque, noutro tempo, irrompia como pneuma proftico, em fogo tempes-tuoso, no meio de grandes comunidades, fundindo-as. Se tentarmosforar e inventar uma inteno artstica monumental, surgir entoesse lamentvel espantalho que assedia muitos monumentos dos lti-mos vinte anos. Se tentarmos excogitar novas formaes religiosas,sem novas e autnticas profecias, despontar, no sentido interno, algode semelhante, com consequncias ainda piores. E a profecia de c-tedra criar apenas seitas fanticas, mas nunca uma autntica comuni-dade. A quem no conseguir suportar virilmente o destino da nossapoca h que dizer: Regresse, em silncio, lhana e simplesmente, sema habitual e pblica propaganda dos renegados, aos amplos e compas-sivos braos das velhas Igrejas. Estas no lhe levantaro dificuldades.

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    Seja como for, ter, desta ou de outra maneira, fazer inevitvel o sacrifcio do intelecto. No o condenaremos, se tal efectivamenteconseguir. Pois esse sacrifcio do intelecto em prol da dedicao religi-osa sem condies eticamente muito diferente daquele rodeio do purodever de probidade intelectual, que emerge quando algum j no tema coragem de se clarificar a si mesmo acerca da sua postrema tomadade posio, mas aligeira esse dever pelo recurso dbil da relativizao.Para mim, aquela dedicao mais elevada do que a profecia de cte-dra que no est interessada em saber que, no espao de um auditriouniversitrio, s deve existir uma virtude: a simples probidade intelec-tual. Mas ela obriga-nos a constatar que a situao de todos os que hojeesperam novos profetas e salvadores a mesma que ressoa nessa belacano da sentinela edomita, da poca do exlio, recolhida nas profe-cias de Isaas:

    Uma voz me chega de Seir, em Edom:Sentinela, quanto durar ainda a noite?Responde a sentinela:H-de chegar a manh, mas ainda noite.Se queres perguntar, volta de novo.

    O povo a quem isto foi dito perguntou e esperou durante mais dedois mil anos, e todos conhecemos o seu impressionante destino. Que-remos daqui tirar uma lio: que no basta ficar espera e almejar.Importa fazer algo mais. necessrio lanar-se ao trabalho e responder como homem e de um modo profissional exigncia de cada dia.Mas isto simples e singelo, se cada qual encontrar o demnio quesegura os cordelinhos da sua vida e lhe prestar obedincia.

    [Nota do Tradutor]

    Este texto aparece no volume Max WEBER, Trs tipos de poder eoutros escritos, Tribuna da Histria, Lisboa, 2005. O leitor poder aqui

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    encontrar ainda: O sentido da neutralidade axiolgica das cinciassociolgicas e econmicas (1917), O Socialismo (1918), A polticacomo vocao (1919). As obras de Max Weber em alemo esto, emparte, disponveis no seguinte electro-stio:

    Max Weber. Ausgewhlte Schriften

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