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27/02/17 15:52:00 XI COLUBHE Comunicações Individuais Eixo Percursos da Pesquisa Tendencias Metodológicas

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27/02/17 15:52:00

XI COLUBHE

Comunicações Individuais

Eixo

Percursos da Pesquisa Tendencias Metodológicas

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ID: 26

HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NA AMAZÔNIA BRASILEIRA:

balanço historiográfico Autor: Rafaela Paiva Costa Felipe Tavares de Moraes Filiação: Universidade Federal de Minas Gerais Universidade de São Paulo

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RESUMO

Este trabalho propõe uma análise da produção acadêmica sobre História da Educação na Amazônia brasileira, tomando por base as teses e dissertações defendidas nos Programas de Pós-Graduação em Educação e em História da região desde as suas fundações. O objetivo é construir um exame crítico sobre a estruturação regional do campo na perspectiva conceitual do lugar institucional de produção. Temas de pesquisa, corpus documental, periodizações e aportes teórico-metodológicos foram as categorias observadas nos trabalhos. Consideramos também outros balanços realizados em âmbito nacional e regional, que nos serviram de marcos referenciais. Em essência, o interesse está na formulação de um modelo compreensivo sobre a produção em História da Educação nessa parte do Brasil, relacionado ao seu desenvolvimento institucional geograficamente marcado.

PALAVRAS-CHAVE

História da Educação no Brasil, Pós-Graduação, Amazônia.

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1. INTRODUÇÃO

A proposta deste artigo é desenvolver um panorama da produção em História da Educação no Norte do Brasil, que também compreende a região amazônica no seu território. Optamos por focar, especificamente, em teses e dissertações defendidas nos programas de pós-graduação em História e em Educação, cuja categoria consideramos de maior fôlego e representatividade das tendências na área, uma vez que grande parte das demais publicações decorrem desse gênero de produção.

Selecionamos, então, 13 programas – 10 deles de Educação e 3 de História –, de acordo com a última avaliação da CAPES, de 2013 (que será detalhada na próxima seção). Foi conferida toda a sua produção, de acordo com os anos de instalação e a disponibilidade de acesso. Nem todos, no entanto, apresentaram trabalhos na área de História da Educação, pelo menos dentre os concluídos até o segundo semestre de 2015.

Dos programas nos quais foram identificados trabalhos de História da Educação, observamos uma concentração em dois únicos estados, Pará e Amazonas: o Programa de Pós-Graduação em Educação e o Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM); o Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Pará (UEPA); o Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia, o Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemáticas e o Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal do Pará (UFPA).

A base do levantamento foi, no geral, a plataforma online dos próprios programas, que disponibilizam suas teses e dissertações defendidas. Nenhuma tese foi identificada. Assim, compuseram este levantamento 50 dissertações, 47 defendidas em programas de Educação (94%) e apenas 3 nos de História (6%). Além disso, 19 delas estão vinculadas às instituições do Estado do Amazonas (38%) e 31 ao do Pará (62%).

Não é nossa intenção pressupor que as inferências construídas a partir desse conjunto sejam necessariamente estendidas a toda produção do campo, assim como afirmar que estes trabalhos representam a totalidade da produção sobre a temática nos programas listados, mesmo porque nem todas as instituições disponibilizaram o acervo completo dos trabalhos defendidos. Ainda assim, acreditamos que se trate de um volume expressivo.

Mas é igualmente relevante pontuar que um número considerável de teses e dissertações, cujos objetos compreendem a história da educação na região Norte, tem sido desenvolvido em programas de pós-graduação de outras partes do país, inclusive em centros de referência desse campo – o que, aliás, não é um fenômeno recente. Um indicativo disso são os locais de titulação dos docentes nas instituições perscrutadas. A investigação desse quadro nos encaminha para os lugares de produção e os marcadores que tais formações – dentro e fora de cada região – conferem às práticas e aos resultados das pesquisas.

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2. OS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO DO NORTE DO BRASIL

Para compreender o lugar que esta produção local/regional ocupa no panorama geo-político-institucional nacional, partimos de considerações a respeito dos seus desempenhos na Avaliação do Sistema Nacional de Pós-Graduação, sob responsabilidade da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

A avaliação é realizada trienalmente desde 1998, com o objetivo de certificar a qualidade da pós-graduação brasileira, orientando a distribuição de recursos de fomento à pesquisa; a identificação de assimetrias regionais e de áreas estratégicas do conhecimento; e o incentivo à criação e expansão dos cursos.

São verificados, entre outros fatores, a produção científica do corpo docente e discente, aspectos curriculares e a infraestrutura das instituições. Os programas recebem notas entre 3 e 7, e a avaliação também determina o descredenciamento daqueles tidos como fracos ou deficientes (1 ou 2)1.

69%

23%

8%

Conceito 3 Conceito 4 Conceito 5

FIG. 1 | Conceitos dos Programas de Pós-Graduação da região Norte do país

1 Informações sobre a Avaliação do Sistema Nacional de Pós-Graduação da CAPES disponíveis em: <https://www.capes.gov.br/avaliacao/sobre-a-avaliacao>, acessado em 23 de agosto de 2014.

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Por meio dessa avaliação é possível verificar um dado sintomático a respeito da distinção regional que marcou o desenvolvimento da pós-graduação e da produção acadêmica brasileira: nenhum programa de pós-graduação nos campos da História ou da Educação situado nas regiões Norte, Nordeste ou Centro-Oeste do país está ou já esteve entre aqueles qualificados com notas 6 ou 7, isto é, de excelência em nível internacional.

Todos estão vinculados a instituições de ensino superior do Sul e, sobretudo, do Sudeste do Brasil – que concentra uma proporção de quase 75% desses mais bem-conceituados cursos, a julgar pelas últimas três avaliações da agência. Aliás, nos campos que nos interessam (Educação e História), o Norte do Brasil só obteve sua primeira nota 5 em 2013, quando o Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia foi considerado muito bom.

Portanto, é documentada e oficial a discrepância regional na produção acadêmica brasileira, e nas áreas de História e Educação, em específico. Mas na maioria dos balanços que consultamos esse é um dado que não vai muito além da constatação estatística e da retórica histórica. Quer dizer, não identificamos um esforço direcionado ao exame e compreensão crítica da especificidade dessa produção avaliada como menor, quantitativa e qualitativamente, em relação às demais regiões – sobretudo, ao Sudeste.

Ora, quais as implicações desse quadro de formação e produção acadêmica para o exercício da pesquisa? Que relações ele estabelece com as demais regiões e, especialmente, com os chamados centros de referência? De que lugar se fala quando são determinadas as características e tendências de um campo? Qual a relevância das produções regionais na composição de uma historiografia que se pretende nacional?

3. O PERFIL DA PESQUISA EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NA AMAZÔNIA

Buscamos, nessa seção, traçar um perfil da produção acadêmica em História da Educação na Amazônia brasileira, a partir de quatro principais categorias: os eixos temáticos, os recortes temporais e espaciais, as fontes documentais e os aportes teórico-metodológicos. A análise delas é realizada em comparação com balanços de mesma natureza em outras regiões do país, assim como sobre a própria região

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Norte2. A maior parte dos resultados encontrados se filia às tendências observadas em outros estudos, compondo uma certa unidade nos encaminhamentos da área de pesquisa, cujos motivos também nos interessamos em perscrutar.

A primeira dessas categorias é a dos Eixos Temáticos. Ela se refere aos grandes temas aos quais os objetos das teses e dissertações produzidas nos programas de pós-graduação da região Norte estão vinculados. Como é possível observar no gráfico abaixo, dois temas tradicionais da historiografia educacional ainda representam, juntos, quase metade de todos os estudos aqui apreciados:

12%

8%

8%

14%

14%

20%

28%

Outros

Formação de Professores e Profissionais da Educação

Movimentos Sociais e Educação Não Escolar

Currículo, Disciplinas Escolares e Práticas Pedagógicas

Intelectuais, Ideias e Representações

Políticas Educacionais

Instituições

FIG. 2 | Eixos Temáticos das pesquisa em História da Educação na Amazônia

Instituições – de formação, escolares e científicas – foi o tema mais pesquisado na região Norte do Brasil (28%), e ele é seguido pelas Políticas Educacionais (20%). No geral, estas investigações se debruçaram sobre a trajetória histórico-educacional

2A maior parte dos balanços com os quais trabalhamos foram publicados em 2005, no livro Pesquisa em história

da educação no Brasil, sob a organização de José Gonçalves Gondra. Nos dedicamos especialmente aos capítulos

referentes à região Sudeste do país, historicamente o berço dessa produção e locus das principais instituições,

grupos de pesquisa e pesquisadores de maior referência no campo. São, basicamente, os balanços dos estados de

São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. No mesmo livro há um único capítulo que se dedica às regiões Norte e

Nordeste juntas; ele também foi levado em consideração. Já os trabalhos produzidos dentro e sobre a região

Norte foram publicados como artigos científicos e também estão listados na bibliografia.

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de escolas de expressiva relevância para uma comunidade, cidade ou estado; assim como sobre as principais reformas pedagógicas em determinados contextos políticos.

Também nos balanços referentes aos estados da região Sudeste (especificamente, Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais), esta tendência foi observada, os dois eixos se revesando. A maioria deles considerou não somente teses e dissertações, mas outras produções científicas circulantes em periódicos e eventos especializados. Por isso, consideramos que a expressão desses dados é ainda mais incisiva em relação aos contornos que o campo tem assumido nas últimas décadas, desde que passou a se consolidar no Brasil no ambiente da pós-graduação.

Já no balanço destinado às regiões Norte e Nordeste, uma vez quantificados em conjunto, os dados apresentaram uma singularidade. Políticas Educacionais ainda polariza grande parte dos estudos, mas a atuação da Igreja Católica no Nordeste também se destacou.

Em seguida, Intelectuais, Ideias Pedagógicas, Representações, História do Currículo e das Disciplinas Escolares, bem como das Práticas Pedagógicas foram temas frequentes nos trabalhos de mestrados e doutorados em Educação e em História na Amazônia. Movimentos Sociais, Educação Não Escolar e Formação de Professores e Profissionais da Educação marcaram uma parte menor mas não menos relevante dos estudos. Nesses eixos, objetos menos tradicionais foram responsáveis por algumas inovações da produção em História da Educação, sobretudo no que diz respeito às documentações utilizadas3.

Quase metade dessas teses e dissertações assentou seus objetos em um limite espacial específico: a capital do estado de origem do estudo (44%). E, uma vez que a produção se concentrou historicamente nos estados do Pará e Amazonas, Belém e Manaus foram, portanto, os mais frequentes locus das pesquisas.

3Educação indígena, Trajetória de Educadores, Educação Rural, Memória, Infância, e História do Livro e da

Leitura foram temas agrupados no eixo Outros, cujo volume foi, individualmente, menos expressivo (no geral, um

ou dois trabalhos).

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[]% []%[]%

[]%

[]%

[]%

Internacional Nacional Regional Interior do Estado Estado Capital

FIG. 3 | Recorte Espacial das pesquisa em História da Educação na Amazônia

O segundo mais frequente recorte espacial observado nas pesquisas foi o

estadual (34%). Isso quer dizer que quase de 80% dos trabalhos centraram-se na capital ou no estado de origem da instituição ao que esteve vinculado, como limite geográfico das investigações. Outros 10% se debruçaram sobre outros municípios destes estados; e a exceção ficou com trabalhos que construíram seus objetos no conjunto da região amazônica (4%), no país (4%) e em análises comparativas de intelectuais brasileiros e estrangeiros (4%). Portanto, 92% dos trabalhos centraram-se na própria região ou em recortes dentro dela.

Quanto aos recortes temporais, iniciamos nossa categorização pela natureza das temporalidades propostas nos estudos no que se refere à tradição historiográfica. O resultado que consideramos mais relevante, e um avanço para o campo, é o de que a maioria absoluta dos estudos propõe marcos temporais intimamente vinculados aos fenômenos educacionais investigados (98%), independente das sistematizações políticas tradicionais.

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2%

52%

46%

Tradicional Tradicional Não Restrita Não Tradicional

FIG. 4 | Periodizações das pesquisa em História da Educação na Amazônia

Do total, a maior parte se enquadra ainda naquilo que chamamos de

periodizações tradicionais não restritas (52%): trabalhos que, ainda que propondo recortes temporais próprios – como no caso da longevidade de determinadas instituições escolares ou científicas, ou ainda do período de vigor de alguma reforma ou política educacional – situam-se no interior de periodizações políticas tradicionais.

Por sua vez, um número igualmente relevante expressa a tendência crescente das pesquisas no avanço desta autonomia, uma vez que 46% desconsiderou esses limites temporais tradicionais. Quer dizer, esses trabalhos construíram seus objetos em zonas que abarcaram mais de um desses grandes blocos – Colônia (1500-1822), Império (1822-1889), Primeira República (1889-1930), Era Vargas (1930-1945), Experiência Democrática (1945-1964), Ditadura Militar (1964-1985) e Nova República (1985-2000)4.

Creditamos este comportamento da pesquisa não apenas na região Norte do Brasil como parte de um movimento geral do campo da História da Educação que, nos últimos anos, tem se consolidado no sentido de construir periodizações mais

4Esses blocos temporais tradicionais, limitados, no geral, por marcos políticos, são representados por meio de

terminologia que variam muito pouco. Estes termos citados foram nossa opção representativa. Além deles,

escolhemos também trabalhar com a categoria “Século XXI” para identificar os objetos assentados nos últimos

quinze anos.

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condizentes com seus próprios objetos de pesquisa, sem prejuízo para o diálogo já estabelecido com os grandes ramos da historiografia nacional e internacional.

Aliás, esta aproximação dos trabalhos históricos educacionais com o campo historiográfico, observada nas duas últimas décadas do século passado, possibilitou o aprimoramento da produção de conhecimento na História da Educação, “seja pelo exercício de levantamento, organização e ampliação da massa documental a ser utilizada nas análises, seja pelo acolhimento de protocolos de legitimidade da narrativa historiográfica” (Faria Filho, Vidal & Paulilo 2004, p. 142).

Abaixo, ainda utilizamos essa categorização tradicional para ilustrar os períodos mais acionados nas pesquisas em História da Educação do Norte brasileiro. Quantificamos todas as vezes em que tais períodos foram acionados, independente da pesquisa trabalhar mais de um, como nos casos acima descritos.

[]%

[]%

[]%

[]%

[]%

[]%

[]%

[]%

Colônia

Império

Primeira República

Era Vargas

Experiência Democrática

Ditadura Militar

Nova República

Século XXI

FIG. 5 | Periodizações das pesquisa em História da Educação na Amazônia

É evidente a permanência de dois períodos tradicionais na historiografia

educacional, como evidenciado pelos demais balanços: Primeira República (45,8%) e Nova República (35,4%). Outros balanços levantaram hipóteses para o caso dos recortes temporais privilegiados (Vidal & Faria Filho 2003). Destacam-se:

1) uma suposta tendência dos historiadores da área a optarem por recortes para os quais já haja uma determinada quantidade de trabalhos, evitando períodos inéditos ou pouco abordados;

2) a consideração do recorte temporal de acordo com a maior oferta de fontes disponíveis;

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3) a disseminação de um certo presentismo no campo da história da educação; 4) a preferência pela história oral, o que naturalmente limitaria a imersão no

passado. Não por acaso, é observável uma tendência à diversificação dos documentos

pequisados no campo, em consonância com a proprosição de objetos e tratamentos metodológico-conceituais de maior popularidade na historiografia atual. Se por um lado, este movimento amplia o limite dos objetos elaborados atualmente, por outro, impulsiona a própria compreensão da educação como um objeto histórico, um conjunto muito vasto de temáticas para as quais distintas abordagens são possíveis, vinculado, porém não determinado por regimes políticos – ação ou consequência de conjunturas específicas (Veiga 2008).

Vamos às fontes:

9,3%

6,9%

6,9%

6,9%

6,9%

16,2%

32,5%

34,8%

34,8%

Outros

Relatos e Correspondências

Literatura

Movimentos Sociais

Imprensa Pedagógica

Produção Científica

Documentação Escolar

Legislação Educacional

Documentação Oficial

FIG. 6 | Tipologia Documentaldas pesquisa em História da Educação na Amazônia

As tipologias documentais utilizadas pelas pesquisas consultadas buscaram

abarcar a diversidade dos processos histórico-educativos entre as instâncias do Estado, da sociedade civil e da escola. No entanto, ainda se concentram majoritariamente entre o Estado e a escola pública. A Documentação Oficial e a Legislação Escolar, ambos com 34,8%, representam as ações do Estado em geral e os seus expedientes administrativos na organização da educação: desde os decretos, mensagens e relatórios mais gerais da administração pública, até as legislações, regimentos e programas com conteúdos propriamente educacionais. A Documentação Escolar, com 32,5%, diz respeito à movimentação institucional da

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escola, seus regimentos, programas, projetos político-pedagógicos, quer dizer, aqueles documentos que conformam e organizam o cotidiano escolar – mas não registram os modos pelos quais o cotidiano e as práticas educacionais tomam vida no seu interior.

Por sua vez, a Produção Científica (16,2%) corresponde às obras impressas (geralmente livros), boletins ou periódicos científicos, produzidas por intelectuais que tratavam dos debates científicos e educacionais. Parte desta produção exclusivamente educacional era veiculada pela Imprensa Pedagógica (6,9%), jornais e revistas dedicados a divulgação e debate educacional. A Literatura – fontes literárias – (6,9%) e Relatos/Correspondências (6,9%) – relatos autobiográficos, relatos de viajantes e cartas jesuíticas –, bem como Outros (6,9%): álbuns familiares, fotografias de Belém e livros escolares, são as fontes menos acionadas nas pesquisas selecionadas, a despeito da riqueza de informações para a História da Educação na Amazônia.

Em balanço anterior sobre a História da Educação na região, essa tendência já havia sido observada por Corrêa (2011), embora seu estudo recorte os trabalhos dedicados ao “Ensino Superior”, entre 1998 e 2009: na maioria das dissertações houve a predominância de fontes documentais oficiais, no qual o Estado e suas instituições são os agentes históricos dos fenômenos educativos.

Nesse sentido, outros balanços foram realizados com diferentes recortes, fossem outras regiões brasileiras (Vidal et al 2005; Araújo 2005; Alves 2005; Faria Filho, Gonçalves, Caldeira 2005) fossem eventos (Faria Filho, Catani 2005) e revistas científicas da área (Galvão, Moraes, Gondra, Biccas 2008). Neles, observou-se que a predominância de fontes documentais oficiais era uma característica da produção em História da Educação entre as décadas de 1970 e 1980, e modificada nos anos 1990 e 2000 com a crescente introdução dos protocolos da pesquisa historiográfica (dentre eles, a diversidade de fontes) no campo da pesquisa em História da Educação.

Diante destes dados, é possível fazer duas observações. Primeiro, a pesquisa em História da Educação na Amazônia acompanha uma tendência historicamente estabelecida no campo de utilização de fontes documentais oficiais, mesmo que datada e superada. Segundo, essa produção já aponta para a tendência atual de diversidade e complexidade dos registros históricos dos processos educativos escolares e não-escolares: cada vez mais investiga o cotidiano e a cultura produzida no interior da própria escola, bem como perscruta fenômenos educativos não-escolares nos domínios da sociedade civil.

Notamos essa coexistência de tendências que, por sua vez, não é nem “atrasada” em relação as outras regiões – notadamente, o Sudeste, apesar da longevidade dos seus programas de pós-graduação, se comparados aos do Norte, bem mais recentes – e que talvez possibilite perceber quais são as peculiaridades da produção da região, conforme seus processos histórico-educacionais específicos e a introdução crescente aos protocolos da pesquisa historiográfica.

Uma das dificuldades na triagem das informações das dissertações de mestrado selecionadas ocorreu na delimitação clara do aporte teórico-metodológico adotado

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nas pesquisas. Na maioria dos estudos, a identificação do tipo de abordagem escolhida foi realizada. No entanto, houve aqueles em que não foi possível identificar ou simplesmente não há qualquer informação. Mesmo sendo a minoria dos estudos, consideramos esse tipo de falta de cuidado com a clareza das informações uma fragilidade em trabalhos que deveriam se pautar pelo rigor e pela probidade da redação com caráter científico.

77,5

10,2

12,2

Identificado Não Identificado Não Informado

FIG. 7 | Aporte Teórico-Metodológicodas pesquisa em História da Educação na Amazônia

Dos trabalhos identificados, a maioria afirma filiar-se aos domínios da História Cultural – ou citam autores que estão relacionadas a essa abordagem historiográfica. O Marxismo – ou a termos que dizem respeito ao espectro epistemológico do marxismo, como “materialismo histórico”, “materialismo histórico-dialético”, “método histórico-dialético” etc. – é reivindicado por 28,2% das dissertações consultadas. Os Outros, que perfazem 23%, são: História Social, Pierre Bourdieu, Giovanni Levi, Roger Chartier e Michel Foucault.

Essa mesma dificuldade de identificação foi constatada por Corrêa (2011): “Chamou atenção constatar que somente um trabalho foi revestido por uma abordagem histórico-crítica [quer dizer, marxista], totalizando 25%, enquanto os demais 75%, mesmo que não tenham feito qualquer alusão a essa perspectiva, acabaram incursionando por um estudo histórico-educativo iluminado por prismas diferenciados” (Corrêa 2011, p.167).

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28,2%

48,7%

23%

Marxismo

História Cultural

Outros

FIG. 8 | Abordagem Teóricadas pesquisa em História da Educação na Amazônia

Assim, a maioria dos balanços citados anteriormente, nos seus diferentes recortes e objetos de análise, são unânimes em afirmar: a partir dos anos 1990, a História Cultural é a abordagem historiográfica predominante nos estudos em História da Educação, isto em razão do predomínio desta abordagem na pesquisa histórica. Convém dizer que a abordagem marxista perdeu a predominância conquistada nos anos 1970 e 1980, porém não deixou de ser uma referência importante dos estudos em História da Educação.

Nesse sentido, a produção em História da Educação na Região Norte pauta-se pelas abordagens predominantes em outras regiões, notadamente, o Sudeste. Mas é interessante notar que, ao mesmo tempo, ainda utiliza-se tipologias documentais associadas ao Estado e à escola, o que, por sua vez, em parte, vai na contramão dos pressupostos epistemológicos da História Cultural: os processos e sujeitos culturais nas margens do poder, suas dinâmicas conflituosas com as relações de poder no seio da sociedade civil, ou em instâncias educativas não-escolares, em suma, a ampliação dos processos educacionais no próprio interior da escola e para além dos seus muros.

Desse aparente descompasso, temos duas observações e uma possível explicação. O indicativo dos estudos avançarem na diversidade das fontes conforme os princípios da História Cultural. No entanto, talvez seja uma peculiaridade da produção da região a utilização de tipologias documentais oficiais analisados pelos aportes da História Cultural, em razão das dificuldades acessibilidade/consulta/conservação dos arquivos e acervos públicos de documentação, a utilização das fontes oficiais (mais bem conservadas, em alguns

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casos, digitalizadas e disponíveis na internet) seja uma estratégia utilizada pelos pesquisadores da região para viabilizar suas pesquisas. Agora, a avaliação dos procedimentos analíticos da História Cultural sobre essa documentação oficial é algo que foge dos quadros deste estudo e já se apresenta como objeto de futuras pesquisas.

No que tange a abordagem metodológica, a maioria dos estudos utilizou Entrevistas (39,2%), enquanto 28,5% trabalharam com a Análise de Conteúdo e 17,8%, com a Análise do Discurso. Outros (14,2%) constituem-se em: Etnometodologia, método biográfico (Franco Ferrorelli), História Oral e observação participante.

FIG. 9 | Aporte Metodológicodas pesquisa em História da Educação na Amazônia

Conforme Corrêa (2011, p. 166), os estudos investigados “definiram a análise documental e a análise de conteúdo enquanto tecnologia auxiliar das investigações, representando 75% dos casos”. Quer dizer, ele também identificou a Análise de Conteúdo entre as principais abordagens utilizadas pelas pesquisas. Geralmente, os balanços associam aporte “teórico-metodológico”, uma vez que o pressuposto básico da pesquisa em História da Educação é a pesquisa documental (portanto, a natureza das fontes utilizadas) e os autores/conceitos empregados na pesquisa. Como esse não foi o caso, observamos que a uso mais intenso da Entrevista deve-se a recortes temporais mais próximos do presente, nos quais os sujeitos da pesquisa estejam disponíveis para depoimentos orais.

4. O LUGAR DE PRODUÇÃO DA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO AMAZÔNICA

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Nos orientamos pelas formulações de Michel de Certeau a propósito da construção do conhecimento histórico, ou o que ele chamou de operação historiográfica: “Toda pesquisa historiográfica se articula com um lugar de produção socioeconômico, político e cultural”, e é “em função deste lugar que se instaura os métodos, que se delineia uma topografia de interesses, que os documentos e as questões, que lhes serão propostas, se organizam” (Certeau 1982, p. 66-67 – grifo nosso).

O lugar social no qual o discurso histórico é constituído obedece a determinadas regras da disciplina, condições sociais, políticas e culturais e à própria subjetividade do sujeito do conhecimento – o historiador. Orientado por esse conjunto de relações e imposições, o conhecimento histórico é produzido e dado a ler no interior de uma comunidade, assim como para o público em geral.

As regras da disciplina, as leis do meio científico, construídas por grupos ou instituições de saber e pesquisa, postulam o permitido e o interdito: indica quais objetos podem ser investigados e os códigos de sua leitura. A origem social (classe, raça, credo, região), suas preferências políticas (esquerda, direita, progressista, conservadora) ou os critérios de seleção de projetos de pesquisa (instituição de fomento) são os condicionantes sociais e institucionais que organizam o gradiente de escolhas e preferências do historiador na seleção de seu objeto de estudo. O seu discurso é originário de um lugar e é encaminhando por uma prática, por um fazer, e por procedimentos e técnicas de pesquisa. As regras da disciplina, referências do trabalho do historiador, estabelecem a seleção dos documentos relevantes para investigar o passado. Este processo de investigação é permeado por modelos de análise que servem de baliza entre a capacidade explicativa e seu limite (Certeau 1982).

Essa é a nossa perspectiva conceitual para a análise da produção em História da Educação na Amazônia. Percebemos que a região tem verificado um considerável crescimento na conformação de um campo de pesquisa. Os trabalhos têm acompanhado diversos encaminhamentos da disciplina em outras regiões, especialmente em relação à diversificação dos documentos e à inserção de referenciais teórico-metodológicos vinculadas aos domínios da História Cultural e História Social, como no caso de discussões em torno da cultura escolar, história do currículo e das disciplinas escolares. Investigações sobre instituições e livros escolares também compõe boa parte dos estudos. Além disso, no Norte, como em quase todas as regiões do país, a maioria dessas teses e dissertações tem se concentrado nos programas de pós-graduação em Educação, mesmo quando da inexistência de linhas e grupos de pesquisa específicos de História da Educação.

Mas, a despeito dessas convergências, verificamos que a incorporação das inclinações do campo é apenas parcial – e esse não é um dado cujo juízo deva ser antecipado. Uma de nossas hipóteses é que tais tendências podem ser entendidas como projeções próprias de determinados lugares de produção responsáveis pela estruturação das diretrizes do campo. Os pesquisadores, uma vez inseridos em programas de excelência reconhecida, contam com estruturas de visibilidade

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institucional e circulação nos principais meios de divulgação da área que, por consequência, lhes legitimam o status de referência. Assim, é estabelecida uma rede de consumo e de influência da produção acadêmica na qual vários aspectos da natureza metodológica e conceitual das pesquisas são definidos. Mas como resultado de lugares de produção específicos, a adoção de seus parâmetros em contextos históricos, sociais, políticos, econômicos e culturais distintos demanda prudência. O lugar de produção vincula muito mais do que determina as diretrizes e tendências de pesquisa na composição geograficamente desigual do campo acadêmico da História da Educação no Brasil.

Na apresentação do livro “Pesquisa em História da Educação no Brasil” (2005), José Gonçalves Gondra e Carlos Eduardo Vieira afirmam que a publicação:

(...) permite, além de uma idéia do quadro nacional dessa especialidade, reconhecer continuidade e descontinuidades na história intelectual do campo, singularidade próprias das regiões, estados ou programas de pós-graduação e, também, perceber como os autores concebem o exercício da pesquisa e da escrita da história da educação que analisaram e que praticaram (Gondra, Vieira 2005, p. 9).

A partir dessa constatação, Gondra e Vieira lançaram duas questões – “como reagir ao que estamos fazendo em pesquisa histórica e quais as possibilidades de construirmos plataformas mais homogêneas de estudos historiográficos para dar seqüência aos avanços representados pela coleção ora reunida?” – e nove pontos de reflexões – dentre os quais, o que mais nos interessou foi o oitavo sobre “o crescimento e a distribuição da pesquisa”, que consistiu no reconhecimento da ampliação dos lugares de produção no país, se comparado aos anos 1980 e 1990, da concentração da pesquisa no Sudeste, mas um dos resultados do crescimento e distribuição da produção “é o surgimento de nuanças locais sobre temas consagrados da história da educação”.

A escrita deste balanço é uma forma de reação sobre o que estamos fazendo em pesquisa histórica no Norte do país, no contexto de programas de pós-graduação recentes e corpus de produção acadêmica em construção, embora já apresente um perfil de pesquisa. Como foi demonstrado, este perfil apresenta continuidades e descontinuidades em relação aos parâmetros estabelecidos pela produção em regiões com programas de pós-gradução consolidados – notadamente, o Sudeste – e que acabam, naturalmente, postulando as tendências e diretrizes do campo, e vinculando, por sua vez, as regras da disciplina, as leis do meio científico, o que é permitido e o que é interdito. Deste modo, devemos observar as descontinuidades, porque são nelas que estão presentes as peculiaridades do perfil da pesquisa em História da Educação na Amazônia.

Considerando que uma tradição de pesquisa é estabelecida por um lugar de produção (no caso, a pós-graduação) com suas respectivas operações historiográficas: um lugar social (ou regional, ou epistemológico), os procedimentos

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de análise (diferentes documetanções, diferentes metodologias) e uma escrita (diferentes formas de narrativa). Na verdade, as outras regiões já constituíram suas tradições de pesquisa: a partir dos seus processos históricos específicos, com suas temporalidades e temáticas e os corpus documentais possíveis em seus acervos públicos e privados, analisados por metodologias e aporte teóricos apropriados.

Acreditamos que a região Norte esteja construindo sua própria tradição, conforme seus processos histórico-educacionais específicos e os registros históricos possíveis para a produção do conhecimento histórico educacional. Reconhecidos as pontecialidades e limites desta tradição, será muito mais profícuo o diálogo e os intercâmbios com a diferentes tradições – sendo necessário construirmos plataformas heterogênas que abarquem a diversidade da produção, cuja unidade seja garantida pelos protocolos da pesquisa historiográfica – que constituem a pesquisa em História da Educação no Brasil.

BIBLIOGRAFIA

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O PARLAMENTO E A GÉNESE DE REFORMAS EDUCATIVAS. O

OITOCENTISMO PORTUGUÊS Autor: Áurea Adão Filiação: UIDEF do Instituto de Educação, Universidade de Lisboa

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RESUMO

Esta comunicação focaliza-se na construção da reforma de 2 de maio de 1878, promulgada por um Governo regenerador chefiado por Fontes Pereira de Melo e tendo como ministro do Reino António Rodrigues Sampaio. Faz parte de um estudo sobre um espaço temporal longo (1820-1880), em que a então chamada instrução primária se foi transformando com vista à sua modernização, a um ritmo muito lento consonante com a evolução da sociedade e, em especial, segundo os contextos políticos e as estruturas de Administração central que decidiam e executavam. Conhecida vulgarmente pelo nome deste Ministro, corresponde à primeira reforma descentralizadora do ensino primário a ser posta em execução, ao mesmo tempo que contempla disposições orientadas para o desenvolvimento de um ensino moderno e inovador. É nos anos de 1870 que se começa a antever a possibilidade de modificações profundas no ensino primário. Mas é depois de longos anos de trabalhos parlamentares que a nova reforma foi aprovada e que correspondeu a grande viragem legislativa do regime liberal-constitucional português no concernente ao funcionamento do ensino primário. Contudo, as câmaras municipais cedo manifestam as suas apreensões quanto à possibilidade de aplicação da então chamada descentralização, ou, vão mais longe, declarando-se contrárias a ela.

PALAVRAS-CHAVE

Ensino primário, Parlamento e educação, Políticas educativas

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1. Para o século XIX, o termo reforma pode ser tomado no sentido de grandes alterações de todo o sistema educativo ou de algum dos seus subsistemas, postas em execução por meio de leis e decretos, aprovados pelo poder legislativo.

Segundo Justino Magalhães, foi a Revolução liberal que “legitimou a estatalização da escola, mas a legitimação da Revolução e do Estado liberal foram essencialmente fruto da nacionalização da escola e da cultura escolar” (2010, p. 169). A sua plena concretização obedeceu à execução das diversas políticas educativas que se foram desenhando ao longo de Oitocentos, de acordo com orientações prioritárias emanadas do poder central, em ocasiões diversas, e sustentadas em valores sociais, morais e culturais dos seus autores. Ou, como tão bem sintetiza Antonio Viñao:

Sans ignorer l’importance d’autres aspects idéologiques, sociaux, économiques, culturels, et même internes à l’institution éducative, il est évident que le développement et la configuration (...) des systèmes éducatifs ne peuvent être compris sans être rapportés aux aspects politiques relatifs à la configuration et à l’action, ou à l’inaction, de l’État, qui, eux-mêmes, mettent aussi en jeu des éléments idéologiques, sociaux, économiques, culturels et éducatifs. (Viñao 2012, p. 81)

O tema desta comunicação faz parte de um estudo desenvolvido sobre um espaço temporal longo (1820-1880), em que o ensino primário − então chamado instrução primária – se foi transformando com vista à sua modernização, a um ritmo muito lento consonante com a evolução da sociedade e, em especial, segundo os contextos políticos e as estruturas de Administração central que decidiam e executavam. Aqui irei ocupar-me somente da construção da reforma de 2 de maio de 1878, promulgada por um Governo regenerador chefiado por Fontes Pereira de Melo e tendo como ministro do Reino António Rodrigues Sampaio. Conhecida vulgarmente pelo nome deste Ministro, corresponde à primeira reforma descentralizadora do ensino primário a ser posta em execução, ao mesmo tempo que contempla disposições orientadas para o desenvolvimento de um ensino moderno e inovador.

Desde a publicação da Carta constitucional de 1826, relativamente ao poder legislativo, funcionavam em paralelo uma Câmara dos Deputados, de caráter eletivo e temporário, e uma Câmara dos Pares, vitalícia e hereditária, cujos membros pertenciam, em regra geral, a estratos da alta burguesia e da nobreza, representando interesses particulares e defendendo as tradições nacionais, ou políticos liberais que obtinham o pariato com recompensa dos trabalhos prestados à Monarquia Constitucional portuguesa. Neste contexto, a Câmara dos Deputados era a assembleia política por excelência, onde estavam representadas as diversas correntes de opinião e onde se aprovava as grandes reformas, se debatia os problemas de governo e se criticava a administração pública.

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Na Câmara dos Deputados, não eram frequentes debates prolongados ou intervenções relacionados com o ensino primário. E, quando eles se registavam, eram geralmente poucos os parlamentares que intervinham e, muitas vezes, em repetidas ocasiões. Para esta comunicação, foram analisados pormenorizadamente os discursos parlamentares focalizados nos temas definidos e fontes primárias emanadas da Administração central, produzidas quer pelos seus diretos responsáveis, quer por funcionários periféricos deles dependentes. Como auxílio para algumas interpretações, recorremos a trabalhos publicados na época, cujos autores nos mereceram credibilidade não só pelos seus estudos aprofundados como pelas suas vivências políticas e educativas.

2. É nos anos de 1870 que se começa a antever a possibilidade de modificações

profundas no subsistema de ensino primário de modo a colocá-lo ao nível do de outras nações. A 13 de setembro de 1871, o Governo do Marquês d’Ávila e de Bolama dá lugar ao primeiro Executivo presidido por Fontes Pereira de Melo. A partir de então, Portugal terá António Rodrigues Sampaio, como ministro do Reino, durante um período bastante invulgar para a época1. É nesse espaço de tempo que terão lugar iniciativas consistentes por parte dos decisores políticos com vista a uma reforma adaptada à época e concretizadora da vontade do presidente do Conselho de Ministros, Fontes Pereira de Melo, no que respeita à Administração pública:

O nosso pensamento é entrar em uma larga descentralização administrativa, preparando elementos para a vida local, interessando os povos nos seus melhoramentos progressivos, e contribuindo assim para o desenvolvimento da instrução pública, sem a qual não podem radicar-se entre nós os hábitos e as práticas de uma esclarecida liberdade.2

No início de 1872, não renovando a iniciativa de nenhum dos projetos que se encontravam pendentes para apreciação parlamentar, o Ministro do Reino apresenta uma nova proposta de lei de reforma do ensino primário, que se seguiu a uma outra de reforma do Código administrativo3. A proposta retomou muitas das inovações apresentadas em projetos anteriores, nomeadamente no que se refere à descentralização da administração escolar. Tem como novidades, a criação de juntas escolares, o estabelecimento de uma “quota cívica de instrução” paga pelos pais, a formação de comissões promotoras de beneficência e de ensino e a criação de asilos

1 Entre 13 de setembro de 1871 e 5 de março de 1877. O mandato foi confirmado nesta última data com a tomada de posse do 1.º Governo do rotativismo (05-03-1877 a 29-01-1878) e do 2.º Governo do fontismo (29-01-1878 a 01-06-1879).

2 Primeira intervenção de Fontes Pereira de Melo, enquanto Presidente do Conselho de Ministros, na sessão parlamentar de 13 de setembro de 1871. Diario da Camara dos Senhores Deputados da Nação Portugueza. 1871, p. 626.

3 A proposta de lei de reforma do Código administrativo foi apresentada a 12 de janeiro e a do ensino primário na sessão de 20 de janeiro de 1872.

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de educação que precediam as escolas de ensino primário. Como se diz no relatório introdutório, a proposta permite a redução considerável das despesas e ainda: “Ter o número suficiente de escolas em harmonia com a população; Propagar a instrução primária por todas as classes; Aplicar à educação nacional do povo a dotação que ele tem o direito de reclamar para si, em nome da descentralização”4.

A administração e dotação das escolas transitam inteiramente para os municípios. A nomeação dos professores passa a ser da competência camarária, com a seguinte salvaguarda: “Mas para que eles não possam em caso algum ser vítimas de injustiças locais, e conservem na escola a independência do lugar que exercem, o governo reserva para si o direito de os demitir, depois de processo instaurado no distrito”. Ou seja, não seria aplicada uma descentralização completa porque o poder central, além desta prerrogativa relativamente ao pessoal docente ficava obrigado a inserir no Orçamento de Estado uma verba “destinada a auxiliar o estabelecimento de escolas de instrução primária e de asilos de educação, e a construção de casas para as escolas”. Quanto aos fundos municipais e paroquiais destinados ao ensino, provinham dos diferentes meios que já haviam sido propostos por projetos anteriores, desde a venda ou exploração de baldios até às contribuições de instituições religiosas e outras.

A grande novidade estava na proposta de criação de uma junta escolar em cada concelho, destinada a “superintender nas escolas” e a funcionar como “delegações das câmaras”5. Seriam compostas por: três vogais, eleitos pela câmara municipal; o subinspetor do círculo escolar; um representante das associações de beneficência e de ensino, ou, “na falta deste, de um chefe de família, designado pela câmara municipal”. Definia-se para elas um conjunto de 23 funções, desde a aprovação do processo de construção de edifícios escolares, o cumprimento da frequência escolar, a adoção de compêndios, à vigilância sobre os professores e sobre os delegados das paróquias nas suas relações com as escolas, à passagem de certificados de frequência do ensino primário. O desempenho destas funções era obrigatório e gratuito; cada mandato tinha a duração de três anos.

A proposta foi entregue à Comissão parlamentar de Instrução Pública que inicia de imdediato o trabalho de transformá-la em projeto de lei. Dois meses depois, o deputado Joaquim Pires de Lima pretende saber se a Comissão aprovou ou rejeitou as bases governamentais apresentadas. E, concretamente, questiona-a sobre a questão mais polémica e que dividia o Parlamento:

se a comissão aceita a descentralização dos encargos da instrução, tão larga, tão violenta e tão radical, como é a proposta apresentada pelo governo, ou se pelo contrário julga que a descentralização na reforma intentada pelo sr. ministro do reino vai mais longe do que deve ir para ser doce e suave (como a

4 Sessão de 20 de janeiro de 1872. Idem, p. 105.

5 Idem, ibidem.

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prudência aconselha) a transição do sistema atual para o sistema que se pretende inaugurar.6

De, naquela legislatura, parecia eminente a aprovação de uma reforma do ensino primário que substituísse a Lei de 20 de Setembro de 1844, devida ao então ministro do Reino, a Costa Cabral, o certo é que um ano depois, está ainda aquele mesmo deputado a criticar o atraso:

Mas há uma reforma que eu nunca imaginei que s. ex.ª pudesse preterir, é a reforma da instrução pública. (…) O que tem feito s. ex.ª a este respeito? Apresentou-nos uma magra reforma que passou rapidamente nesta casa para se ir sumir nos limbos da comissão, donde provavelmente nunca mais sairá. Uma magra reforma, talvez a pior de todas as reformas que têm sido trazidas ao parlamento.7

E, passado mais um ano, eram ainda frequentes as chamadas de atenção para o atraso na apreciação da proposta apresentada por Rodrigues Sampaio, uma vez que os vencimentos dos professores continuavam extremamente baixos e era grande a insuficiência de instalações escolares adequadas. Rodrigues de Freitas, que fora eleito com o apoio do Partido Reformista e, dois anos depois, o primeiro deputado representante do Partido Republicano, denuncia assim a inoperância do Governo de Fontes Pereira de Melo e do Parlamento em matéria de instrução pública:

esta câmara, que já tem quatro sessões, uma extraordinária e 3 ordinárias, bem podia dar-se a tão importante trabalho; até porque quase não tem feito senão algumas leis de impostos, umas leis de expediente e outras para aumentar as despesas públicas (apoiados), quase não há lei que a iniciativa do governo se tenha manifestado de outro modo; e contudo parecia-me que devia ser empenho de todos os partidos, e não menos da parte do governo, contribuir para que a instrução primária nos colocasse um pouco mais distante da África e um pouco mais perto do centro da Europa.8

As alterações relativas à descentralização a introduzir na administração escolar não poderiam avançar sem que fosse publicado um novo Código administrativo para cuja revisão já existia no Parlamento uma proposta governamental que tardava, ela também, a ser discutida e aprovada. Este adiamento persistente é bastante para que a Oposição insista. E, durante três anos tanto as iniciativas governamentais como as particulares são mantidas na gaveta da Comissão parlamentar de Instrução Pública. Como diz João Gualberto de Barros e Cunha, autor de um projeto também esquecido

6 Sessão de 5 de março de 1872. Idem, p. 587.

7 Sessão de 12 de fevereiro de 1873. Diario da Camara dos Senhores Deputados da Nação Portugueza. 1873, p. 402.

8 Sessão de 9 de fevereiro de 1874. Diario da Camara dos Senhores Deputados da Nação Portugueza. 1874, p. 339.

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e que se ocupava especialmente da construção de edifícios escolares e do cumprimento da obrigatoriedade escolar: “Adquirimos (…) variados regulamentos, programas tão extensos como inexequíveis; temos circulares, fantásticas; só não temos o que devíamos ter: escolas onde se aprenda, mestres que ensinem”9.

No início de 1875, não se limitando a renovar a iniciativa da sua proposta de lei de 1872, o ministro António Rodrigues Sampaio apresenta nova proposta de reforma do ensino primário10. O conteúdo não se afastava do da primeira, apenas com “algumas alterações ou modificações sugeridas posteriormente pelo estudo e pela experiência”, como pode ler-se na curta introdução.

Uma das novidades estava na possibilidade das câmaras poderem criar escolas centrais com três ou quatro professores ou professoras, nas cidades de Lisboa e Porto e nas outras sedes de distrito, onde houvesse mais de uma escola complementar ou elementar. Ou seja, estendia-se a todo o país aquele tipo de escolas, quando para Lisboa tinha sido autorizada a primeira em finais de 1869. Também na composição das juntas escolares concelhias, se registava uma pequena alteração: em 1872, seria incluído um representante das “associações de beneficência e ensino”, enquanto em 1875, passa a ser um representante das “corporações de piedade e beneficência”, o que parece pretender-se afastar deste novo órgão de gestão os estabelecimentos de ensino privado com fins lucrativos. No que respeita às suas funções, as alterações são mais profundas: deixa de depender delas a aprovação dos projetos relativos a construções escolares mas apenas ficam com o encargo de exarar parecer; não terão intervenção na realização das conferências escolares; perdem a capacidade de passar “os atestados de instrução primária” bem como de fixar “o sistema de aplicação do fundo da pensão de escola nas paróquias”. No que respeita à dotação do ensino, a única diferença encontrava-se na renúncia à ideia de impor um subsídio obrigatório de 5% sobre o rendimento de todas as irmandades e confrarias. Tal como as propostas anteriores, também esta foi enviada à Comissão parlamentar de Instrução Pública para um estudo aprofundado.

Durante a apreciação do Orçamento do Ministério do Reino para 1875-1876, assistiu-se a uma discussão mais alargada sobre o ensino primário. O Governo de Fontes Pereira de Melo atribuiu-lhe verbas muito superiores às restantes da rubrica Instrução Pública, justificadas pelas “condições desfavoráveis” em que se encontrava este primeiro nível educativo. E o Ministro do Reino mostra-se esperançado de que a nova reforma do ensino primário venha a ser ainda discutida durante a legislatura, reconhecendo todavia:

Eu talvez mesmo tenha sido importuno em solicitar do relator da comissão o seu parecer, que decerto trará um trabalho melhorado. Não tenho contudo pressa. Há-de vir amadurecido. Não há-de trazê-lo sem o ter estudado e sem

9 Sessão de 12 de janeiro de 1875. Diario da Camara dos Senhores Deputados da Nação Portugueza. 1875, p. 53.

10 Na sessão de 23 de janeiro de 1875. Idem, pp. 148-155.

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poder responder às objeções que se fizerem. Eu posso afirmar que o ilustre relator deste projeto tem todo o desejo de levar a cabo este assunto.11

O relator do projeto, o regenerador Illidio do Valle, confirma a dificuldade do trabalho que, “pela sua grande importância não pode ser tratado superficialmente”, uma vez que estão a ser simultaneamente estudados outros projetos apresentados por dois deputados a título individual12.

A 15 de março de 1875 foi, finalmente, apresentado à Mesa o projeto de lei preparado pela Comissão, o qual só virá a transformar-se em decreto, passados três anos, a 2 de maio de 1878.

3. A apreciação do projeto de lei da autoria da Comissão parlamentar de

Instrução Pública e preparado com base na proposta apresentada por António Rodrigues Sampaio em inícios de 1872, ficou finalmente agendado para discussão, no período da Ordem do dia da sessão de 20 de março de 1875. Precedido de uma longa introdução, é praticamente igual à proposta ministerial contendo apenas uma ou outra alteração, considerada “de importância muito secundária”13. Embora atribuísse as funções administrativas às câmaras municipais, respeitando o princípio da descentralização, a Comissão omitiu a criação de juntas escolares – uma das inovações propostas − por não lhe ter parecido oportuna, quando ainda não existia “uma boa lei de administração” e porque haveria dificuldade para encontrar em muitos municípios, “os elementos suficientes para constituir um corpo auxiliar com o zelo e dedicação suficientes para o desempenho cabal das importantes funções gratuitas e obrigatórias”14. Outra das alterações consistiu na retirada de funções inspetivas aos órgãos de administração local, colocando-as a cargo do poder central, justificando-se que é com a inspeção que se consegue “a unidade de ação e independência precisas para velar pelo exato cumprimento da lei (…) e imprimir à instrução o impulso vigoroso que se necessita”15.

A discussão parlamentar começa, desde logo, por ser ensombrada pela falta da revisão aprovada do Código administrativo, sem a qual não seria viável a aplicação de uma nova lei descentralizadora do ensino primário que sobrecarregaria as câmaras municipais em mais de 400 000$000 réis. Por outro lado, a Oposição mostrava-se cético quanto à capacidade financeira dos municípios para suportar mais encargos. E lamenta que ele tenha vindo a discussão no final de um ano parlamentar: “Eu penso que temos sido um pouco exagerados, no que toca aos melhoramentos materiais, e que havemos sido demasiado avaros no que diz respeito

11 Idem, p. 352.

12 João Gualberto de Barros e Cunha e Marianno Cyrillo de Carvalho. Idem, ibidem.

13 Idem, ibidem.

14 Sessão de 20 de março de 1875. Idem, p. 914.

15 Idem, pp. 914-915.

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aos melhoramentos morais, que hão-de, a par daqueles, produzir no futuro o máximo desenvolvimento da nossa civilização”16.

No entanto, o relator do projeto (Illydio do Valle) e procura desmistificar algumas das críticas, declarando que “descentralizar não é pulverizar, e o resultado dessa pulverização administrativa, permita-se-me a frase, seria não somente a impossibilidade ou a anarquia na administração, mas também a substituição do poder central pela tirania, mil vezes mais detestável, de pequenas oligarquias locais”. Lembra que muitos dos estudiosos que se ocupavam do assunto defendiam que o melhor meio de se conseguir algum resultado aproveitável seria “descentralizando talvez pouco a pouco alguns serviços, de modo a ensaiar as forças dos municípios; e aqueles que não pudessem satisfazer os seus encargos obrigatórios, por si mesmos, proporiam então a sua anexação ou associação com outros. (Apoiados)”17.

Os pedidos de adiamento da discussão não foram aceites pela maioria parlamentar e o projeto proveniente da Comissão parlamentar de Instrução Pública foi aprovado na generalidade. Contudo, não prosseguiu a sua apreciação na especialidade, porque a Câmara dos Deputados encerrou os trabalhos a 3 de abril de 1875.

No início do ano seguinte, o Ministro do Reino (Rodrigues Sampaio) mostra-se empenhado na continuação da discussão do projeto, na especialidade, o que veio a acontecer em finais de janeiro. Foram feitas muitas intervenções, algumas das quais não chegaram a ser publicadas. Das 36 proferidas por Marianno de Carvalho, autor de um projeto não apreciado, apenas conhecemos uma pois ele não entregou os outros discursos. O mesmo aconteceu com Joaquim Pires de Lima que se vinha mostrando muito interessado numa reforma do ensino primário, mas não chegou a enviar à Mesa os seus oito discursos18. Este incumprimento processual, quanto a nós, pode indiciar o trabalho continuado a que os deputados estiveram sujeitos não lhes sobrando tempo para a revisão das intervenções proferidas, cuja divulgação devia merecer um cuidado especial devido aos temas abordados, que iriam repercutir-se na governação municipal.

Durante a apreciação na especialidade, desencadeou-se novamente grande polémica. As primeiras divergências surgem na apreciação do capítulo sobre o ensino obrigatório, matrículas e frequência escolar. Mas, a discussão mais acesa situou-se na questão da dotação do ensino e nas obrigações dos municípios, ou seja, na aplicação plena do princípio da descentralização administrativa do ensino básico, ou no papel do Estado como agente centralizador. Se, para o Executivo de Fontes Pereira de Melo e, nomeadamente, para o seu ministro António Rodrigues Sampaio, era necessário

16 Intervenção do deputado progressista José Luciano de Castro. Idem, p. 926.

17 Idem, p. 924.

18 Também Illydio do Valle, relator do projeto, não devolveu sete dos seus discursos, Osorio de Vasconcellos, dois. Também o Visconde Guedes Teixeira e Francisco de Albuquerque não devolveram o único que proferiram.

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descentralizar para instruir, para alguns dos deputados, seria primeiramente preciso instruir para descentralizar.

Contudo, a maior oposição resultava da falta de verbas dos municípios para satisfazer as obrigações que lhes estavam a ser atribuídas e, muito especialmente, o encargo com os vencimentos dos professores. Por exemplo, o deputado regenerador Mello e Simas, apoiante de Fontes Pereira de Melo, opõe-se ao modo de dotação previsto, lembrando que as câmaras não têm sobras nos seus orçamentos e até têm despesas obrigatórias a que não podem satisfazer. Argumenta ele:

Estou intimamente convencido de que este projeto há-de trazer a desorganização de todos os serviços municipais; porque para se pagar aos professores de instrução primária com a preferência e pontualidade que este projeto de lei determina hão-de deixar de pagar-se as mais despesas, como são as da secretaria das câmaras, da administração dos concelhos, as próprias despesas dos expostos e outras. E não se pagando o trabalho, é impossível exigir que ele se faça regularmente.19

Os deputados que se opõem, insistem que o aumento da receita, tanto pelo Estado como pelas câmaras só se pode realizar por meio dos impostos diretos ou dos indirectos e que as populações já não aceitariam novas imposições tributárias.

Quando se discute o capítulo sobre a inspeção, o regenerador Ferreira de Mesquita chama ao debate a questão da criação de juntas escolares concelhias, que a Comissão parlamentar de Instrução Pública tinha rejeitado, ainda que as propostas governamentais de 1872 e 1875 as tivessem introduzido como grande inovação. Assim, omitindo a figura da junta escolar, Ferreira de Mesquita propõe que se acrescente um artigo referente à nomeação pelas câmaras de uma comissão escolar com um mandato de dois anos, composta por três membros, vereadores ou não, tendo por fim coadjuvar o subinspetor, atendendo às extensas áreas geográficas que tanto o inspetor como o subinspetor tinham de percorrer, pelo que dificilmente poderiam desempenhar bem esse serviço20.

Esta emenda que é decerto aceite com agrado pelo Ministro do Reino, leva a Comissão parlamentar a reintroduzir no projeto final as juntas escolares, compostas por três vereadores ou outros quaisquer cidadãos. As funções que lhes competiriam não ficaram especificadas, mas simplesmente “auxiliar as câmaras municipais e os inspetores nas atribuições a seu cargo”21. Todavia, esta alteração de última hora não chega a ser discutida em plenário, desconhecendo nós a abrangência da sua aceitação.

19 Idem, ibidem.

20 Sessão de 31 de janeiro de 1876. Diario da Camara dos Senhores Deputados da Nação Portugueza. 1876, p. 224.

21 Sessão de 20 de março de 1876. Idem, p. 714.

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A discussão do projeto, na especialidade, prolongou-se por onze sessões não consecutivas22. Depois de aprovado, devia seguir para apreciação na Câmara dos Pares. Mas essa apreciação não chegou então a ter lugar uma vez que o ano parlamentar terminou entretanto.

Depois das vicissitudes por que passou a preparação da reforma de António Rodrigues Sampaio, a sua aprovação pelo poder legislativo iria ainda conhecer entraves e arrastar-se por mais dois anos. Esses adiamentos estavam sobretudo na futura responsabilização administrativa dos municípios relativamente ao primeiro nível do sistema educativo e na introdução dela no Código administrativo português. Ora, a apreciação do projeto de reforma administrativa só terá lugar no início da sessão legislativa de 187723, podendo finalmente proporcionar viabilidade à execução da reforma do ensino primário. Com uma curta interrupção governativa de Fontes Pereira de Mello (06-03-1877 a 29-01-1878), esse andamento só teve lugar, mais um ano depois.

O projeto proveniente da Câmara dos Deputados e com a data de 24 de março de 1876, é apreciado na Câmara dos Pares em finais de abril de 187824, não deixando de ser criticada a urgência posta na discussão, em finais de ano parlamentar. Das poucas intervenções havidas nenhuma se ocupou dos futuros encargos municipais e das vantagens ou desvantagens da aplicação de uma reforma descentralizadora do ensino primário.

É, finalmente, na sessão de 30 de abril de 1878, passados mais de dois anos, que a Câmara dos Deputados dá por concluído o seu trabalho, aprovando as emendas propostas pela Câmara dos Pares, que não modificavam a estrutura nem a conceção ideológica do projeto, mas procurando apenas compatibilizar as disposições da reforma do ensino primário com o novo Código administrativo, entretanto publicado.

4. A nova reforma da instrução primária, resultante de longos anos de trabalho e

de expectativa, foi promulgada a 2 de maio de 1878, ficando conhecida como a reforma de Rodrigues Sampaio, contendo um conjunto de modificações e de inovações, desde a uniformização dos vencimentos dos professores e das professoras assim como o seu aumento e a criação de dois níveis de ensino primário – o elementar e o complementar −, com um extenso elenco de disciplinas comuns aos dois géneros, à expansão do ensino normal, introdução de um corpo permanente de inspeção e realização de conferências escolares.

No nosso entender, a reforma correspondeu a grande viragem legislativa do regime liberal-constitucional português no concernente ao funcionamento do ensino primário. As soluções aprovadas para o financiamento e administração das escolas, a

22 Sessões de 24, 25, 26, 28, 29 e 31 de janeiro, 7, 8 e 9 de fevereiro, 20 e 24 de março de 1876.

23 Sessões de 23, 24, 26 e 27 de janeiro de 1877.

24 Sessões da Câmara dos Pares de 22, 23, 24 e 27 de abril de 1878.

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serem cumpridas, iriam impor a tendência de consolidação de um sistema educativo moderno. Do mesmo modo, a criação de um corpo permanente de inspetores e subinspetores iria normalizar o processo de ensino, a disciplina escolar e a conduta dos professores, podendo colocar a escolarização dos portugueses ao nível da de outros países europeus. E estava, assim, concretizado o desejo do deputado Gualberto de Barros e Cunha, que António Rodrigues Sampaio “assinalasse a sua passagem pelo ministério do reino, legando a este país, como mr. Guizot legou à França, uma boa lei de instrução primária…”25.

A nova reforma terá início de execução num prazo de dois anos. Mas precisava de ser completada por regulamentos sobre a obrigatoriedade escolar, exames, organização das escolas normais, inspeção escolar, conferências escolares, elaboração e adoção de livros escolares, documentos que exigiam uma trabalho profundo e demorado. Logo no início de 1879, começam a surgir críticas por parte de deputados da Oposição governamental relativamente à falta desses regulamentos. O deputado republicano Rodrigues de Freitas diz-se admirado da falta desses regulamentos “pelos quais se provasse que os desejos dos reformadores não tinham desaparecido logo que se votara a lei e as casas do parlamento se fecharam”26.

O Ministro Rodrigues Sampaio descansa os deputados: “Esses trabalhos não estão descurados, e se não vemos tudo aquilo que está feito, não se pode concluir que se não fez coisa nenhuma (Apoiados.); (…) essa obra não se pode começar separadamente e esses regulamentos não são fáceis (Apoiados.)”27. Todavia, a lei entrará em vigor não dois, mas três anos depois.

Embora só em 1881-1882 a responsabilidade dos vencimentos dos professores deva ser transferida para os municípios, cedo os professores começam a exigir o pagamento de acordo com os melhoramentos que a reforma lhe concede, como o confirma uma representação enviada à Câmara dos Deputados, que começa assim:

A posição extremamente precária em que se acham os professores e professoras de ensino público de instrução primária de todo o reino, não pode tragar-se por mais tempo. Por isso, em voz uníssona, o professorado primário português, torturado com a sua negrejante sorte, vem, com o maior acatamento, submeter à sábia apreciação da ilustre câmara legislativa a impossibilidade absoluta de continuar a exercer, com decência, as suas funções, enquanto os seus ordenado não forem regularmente aumentados. (apud Ferreira, 1884, p. 50)

O Governo regenerador de Fontes Pereira de Melo foi substituído, no dia primeiro de junho de 1879, por um Executivo progressista. Um ano depois de ter

25 Sessão de 11 de fevereiro de 1875. Diario da Camara dos Senhores Deputados da Nação Portugueza. 1875, p. 351.

26 Sessão de 7 de fevereiro de 1879. Diario da Camara dos Senhores Deputados da Nação Portugueza. 1879, p. 365.

27 Idem, p. 367.

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assumido funções, o novo Ministro do Reino José Luciano de Castro, procede a clarificações de algumas das disposições daquele documento normativo, ou procura tornar outras exequíveis relativamente ao cumprimento da municipalização escolar28. A mais significativa diz respeito à possibilidade de as câmaras lançarem um imposto especial para o ensino primário, quando não possuam recursos suficientes. E, para assegurar o funcionamento e conservação das escolas no seu território, devem as juntas de paróquia constituir um fundo escolar, com o produto de legados, heranças, donativos, bens próprios da paróquia que não tenham aplicação própria, verbas provenientes de vendas, aforamento ou arrendamento de baldios, subsídios concedidos pelo Governo.

Com este conjunto de legislação, a reforma devida a António Rodrigues Sampaio poderia finalmente ser posta em execução e colocar o ensino primário português nos caminhos da modernidade e a par com outas nações. Contudo, as câmaras municipais cedo manifestam as suas apreensões quanto à possibilidade de aplicação da então chamada descentralização, ou, vão mais longe, declarando-se contrárias a ela. Conhecer a nova realidade na década de 1880, exige um projeto de investigação demorado, incidindo não só no trabalho em arquivos e bibliotecas nacionais e distritais, como também e, preferencialmente, em arquivos municipais.

BIBLIOGRAFIA

Magalhães, J. (2010). Da cadeira ao banco. Escola e modernização (séculos XVIII-XX). Lisboa: Educa, Unidade de I&D de Ciências da Educação.

Ribeiro, J. S. (1878). Historia dos estabelecimentos scientificos, literários e artisticos de Portugal nos sucessivos reinados da monarchia. (Vol. VII). Lisboa: Academia Real das Sciencias.

Viñao, A. (2012). État et éducation dans l’Espagne contemporaine (XIXe XXe siècles). Histoire de l’Éducation, (134), avril-juin, 81-107.

28 Lei de 11 de junho de 1880.

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ID:43

INTEGRALISMO LUSITANO, NACIONALISMO CATÓLICO E

EDUCAÇÃO: CONEXÕES ENTRE INTELECTUAIS BRASILEIROS E

PORTUGUESES (1913-1934)

Autor: Mauro Castilho Gonçalves Filiação: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Universidade de Taubaté, São Paulo

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RESUMO

A pesquisa examinou as conexões estabelecidas entre intelectuais portugueses e brasileiros vinculados ao integralismo lusitano e ao nacionalismo católico, durante a década de 1910 até princípios dos anos de 1930. Objetivou-se compreender como se processou, nos âmbitos da educação escolar e da cultura mais geral, o diálogo entre pensadores desses dois países, por meio da publicação e divulgação de revistas periódicas, do intercâmbio de lançamentos bibliográficos e viagens, que resultaram em publicações, conferências, dentre outros suportes de divulgação científica.

PALAVRAS-CHAVE

Integralismo Lusitano, Nacionalismo Católico, Intelectuais.

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Introdução

O presente artigo apresenta os resultados da pesquisa sobre as conexões e contatos efetivados entre intelectuais portugueses e brasileiros, nomeadamente os católicos, durante a década de 1910 até princípios dos anos de 19301. Objetivou-se compreender como se processou no campo da educação e, em alguns casos, no campo da cultura mais geral, o diálogo entre pensadores desses dois países, por meio da publicação e divulgação de revistas periódicas, do intercâmbio de lançamentos bibliográficos e viagens que resultaram em publicações, conferências, dentre outros suportes de divulgação científica. Maior atenção foi dada à circulação de ideias, projetos e ações de grupos e redes ideologicamente vinculadas ao integralismo lusitano e ao nacionalismo católico brasileiro e o impacto percebido, particularmente, no campo da formação cultural e da educação.

O pressuposto preliminar que motivou a investigação fundamentou-se na hipótese segundo a qual os dois movimentos supracitados expressaram diferenças internas e aproximações estratégicas, provocadas pela complexa rede de interesses e projetos comuns ou contraditórios, a considerar o profícuo debate que marcou aquelas décadas em ambos os países.

Receberam centralidade analítica periódicos, livros, cartilhas, boletins, correspondências, conferências, dentre outros materiais empíricos, sob a guarda da Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), em Lisboa, do Arquivo Municipal Alfredo Pimenta (AMAP) e da Sociedade Martins Sarmento (SMS), ambos localizados no município de Guimarães. O quadro abaixo apresenta a relação das principais fontes pesquisadas:

1Inicialmente o recorte cronológico indicava para as décadas de 1920-1930. A incursão nas fontes inferiu uma outra demarcação no período pesquisado. Diante disso, a nova cronologia indica o espaço temporal entre os anos de 1913 a 1934.

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Periódicos Período Arquivo

Alma Portuguesa 1913 BNP

Nação Portuguesa

1914-1916 1922-1924 1924-1928

BNP

Integralismo Luistano 1932-1934 BNP e SMS Lvsitânia 1924-1927 BNP Labareda 1924-1925 BNP Gil Vicente 1925-1934 BNP e SMS Estudos 1922-1928 BNP Educação Nova 1924-1925 BNP

TABELA 1 | Periódicos. Fonte: BNP // FMS (Quadro elaborado pelo autor).

A seleção da documentação foi efetuada a partir da leitura das revistas listadas no quadro acima, a partir de critérios específicos de rastreamento: a) a divulgação das obras e das revistas periódicas em Portugal e no Brasil durante o período demarcado (1913-1934); b) a orientação doutrinária e ideológica das produções expressas em editoriais, prólogos, prefácios, resenhas etc.; c) o vínculo com os dois movimentos definidores do eixo temático da pesquisa: o Integralismo Lusitano e o Nacionalismo Católico e referências explícitas às conexões entre Portugal e Brasil2.

O material empírico foi organizado tendo em vista duas categorias, a saber: as denominadas fontes periódicas, ou seja, produções caracterizadas por um ciclo de existência, orientação doutrinária, assinantes e política de divulgação editorial. O conjunto documental foi analisado como “estruturas de sociabilidade” (SIRINELLI, 2003), lugares de relação, disputa e luta hegemônica. Espaços de atuação e convivência e, ao mesmo tempo, de sobrevivência política, social e cultural. O ponto de partida foi o conteúdo expresso, mas não apenas isso: em síntese, o esforço foi no sentido de captar o como foi dito ou escrito, além de considerar a situação, o lugar, o contexto de inserção dos sujeitos da produção.

1. Integralismo Lusitano: gênese e propósitos

2 Diante do substantivo material coletado, não foi possível, nesta primeira fase da pesquisa, o mapeamento

de fontes adversas aos movimentos supracitados.

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O Integralismo Lusitano (IL) foi um movimento político e cultural que nasceu no bojo da proclamação da República portuguesa3. O IL caracterizou-se por uma intensa produção intelectual, aglutinada, particularmente, em periódicos e de relativa circulação nos meios acadêmicos, científicos e culturais lusitanos. Os intelectuais nele envolvidos estavam também presentes em outros organismos e instituições, tais como imprensa, escolas, universidades e na militância católica. Defendiam teses conservadoras e um projeto político antiliberal, a favor da restauração da monarquia em Portugal e atuavam pela “regeneração da alma portuguesa” que, segundo seus protagonistas, perdera sua caracterização original com o avanço das políticas liberais em terras lusitanas.

Em 1913, três anos após a proclamação republicana, um grupo de intelectuais criou a revista Alma Portuguesa, sob a direção de Domingos de Gusmão Araujo4. O periódico denominava-se “Órgão do Integralismo Lusitano” e apresentava-se como uma revista de Filosofia, Literatura, Arte, Sociologia, Educação, Instrução e Atualidades. Seu primeiro número foi publicado em Louvain, Bélgica, por intelectuais emigrados e defensores da ideologia monárquica. Participavam do corpo editorial da revista, além de Gusmão Araujo, Ramos Ribeiro, Rolão Preto, D. Antonio Alves Pereira e Ascenso de Siqueira. O expediente do primeiro número registra o Brasil como uma das nações de circulação do periódico. (Alma Portuguesa, série I, n. 1. mai. 1913)

Em editorial, os articuladores da iniciativa abrem a revista destacando o grau de insatisfação que, no exílio, os emigrados manifestavam em razão do que entendiam estar Portugal mergulhado numa crise política, moral e religiosa, acentuada a partir de 1910

Posto que longe da nossa Pátria, que cada vez mais amamos, não é menor nem menos imperioso o nosso dever de concorrer, na medida das nossas forças, para resolver a grave crise que ela atravessa: a mais grave da sua história. Amargura nosso coração de patriotas a indiscutível decadência que, em Portugal há anos se vem acentuando em todas as manifestações da atividade tanto pública quanto particular. É preciso que a maravilhosa terra de Nun´Alvarez resurja; que volte a ocupar o lugar a que tem direito; que viva

3 O Integralismo Lusitano foi examinado, a partir de diferentes perspectivas, por uma gama de autores. Destacam-se os estudos de Ascensão (1943), Ferrão (1964), Cruz (1979; 1982), Pinto (1982), Silva (1982), Quintas (2004), dentre outros.

4 Segundo Cruz (1982), nota n. 5, p. 139, Leão Ramos Ascensão, em seu livro O Integralismo Lusitano (1943), afirmou ter sido o periódico Aqui d´Rei, que surgiu em Lisboa no ano de 1914, o primeiro veículo a divulgar a doutrina integralista em bases sistemáticas. No decorrer da sua história, o movimento criou série de periódicos, como consta no quadro apresentado na Introdução do presente artigo.

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livre, próspera, honrada e feliz sob a benção de Deus (Alma Portuguesa, série I, n. 1, mai.1913, p. 1)5

Preliminarmente, estes precursores apresentaram os fundamentos políticos, filosóficos e culturais do projeto editorial de criação de um veículo que pudesse alcançar um universo ampliado de leitores e potenciais militantes da causa monárquica, integralista e nacionalista. Do conteúdo expresso no editorial da segunda edição da revista, lançada em setembro de 1913, é possível perceber o grau de insatisfação e mobilização desta plêiade lusitana, por meio de um discurso que objetivava o apoio e a adesão da sociedade portuguesa letrada e elitizada. O periódico apresentava-se preocupado em debater arte, literatura, política, filosofia e instrução (educação).

A bandeira dos primeiros integralistas aglutinados na Alma Portuguesa, e que serviu de base para fundamentar a reflexão da geração atuante nos anos posteriores, foi, sem dúvida, o discurso antirrevolucionário registrado nas páginas deste pioneiro periódico e o lamento insistente de uma sociedade que, segundo seus articulistas, passava por uma crise sem precedentes. Denunciavam a ausência de uma “consciência portuguesa” e reivindicavam a formação de um coletivo forte, atuante e unívoco em seus propósitos:

Salientaremos como causas mais importantes da tremenda crise: a desorganização da nossa sociedade, a falta de espírito nacional, a indisciplina intelectual e moral e a ausência de correntes de opinião, indispensáveis para tornar fecunda e seguramente progressiva a vida da nação. Havendo ainda, embora adormecida uma alma portuguesa, consolidada através de milagres de heroísmo e de fé, falta-nos inteiramente uma consciência portuguesa, sem a qual a vida coletiva é impossível (…) Uma desastrada orientação política afastou as forças vivas nacionais da participação nos assuntos que mais as deviam interessar. Centralizou-se tudo; condenaram-se a morte as energias locais e regionais; postergaram direitos sagrados. (Alma Portuguesa, série I, n. 1, mai.1913, p. 2)

Propugnavam, portanto, a defesa da tradição, da família, da retomada dos mitos e heróis portugueses, localizados na longínqua Idade Média e o arsenal ideológico e moral do catolicismo. Segundo eles, a França, por exemplo, que não era paradigma a ser seguido, iniciou sua derrocada quando optou pela exclusão da religião católica da pauta política e social. Reivindicavam, explicitamente, a articulação entre o

5Sobre Nun´Alvarez e a produção e divulgação deste “mito heroico” em Portugal, consultar Leal (1998 e 2000). Optou-se, por razões estéticas e de entendimento, registrar as citações originais em grafia atualizada.

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catolicismo e o nacionalismo como a solução dos males que assolavam Portugal e a sociedade ocidental.6

O âmbito da instrução também foi objeto de interesse e esteve na pauta deste periódico de vida curta7. O editorial do primeiro número dedica algumas poucas linhas à análise do fenômeno. Para eles, “nas escolas quer primárias, quer superiores não se educava. Fornecia-se uma instrução incompleta, falsa, baseada nos maus modelos franceses, meramente verbal e postiça.”8 . Por “maus modelos franceses” leia-se, obviamente, o projeto levado a cabo pelo vitorioso “liberalismo revolucionário”, reiteradamente denunciado pelos quadros integralistas que se juntaram em diferentes redes de diálogo e atuação até princípios dos anos de 1930.

Mas é no segundo número que a instrução recebe uma atenção específica da revista, por meio do artigo assinado de João da Cruz intitulado “Instrução e educação”. O autor parte para o ataque à ideologia liberal, defendendo a tese da prioridade da “formação do caráter”, bandeira histórica do catolicismo, em detrimento à “instrução pura e simples”. Além disso, aponta a “educação da vontade” e a “cultura dos sentimentos” como caminhos seguros para a formação integral dos sujeitos.

Cruz rebate o predomínio da orientação liberal na filosofia orientadora das políticas e métodos educacionais em voga na ocasião, todas elas inspiradas, segundo ele, nos preceitos da tradição francesa, fundamentados em diferentes tendências do Iluminismo. 9 Ressalta-se que, no editorial de abertura do primeiro número da revista, ficou patente o interesse do movimento - pelo menos anunciado - em apresentar-se na pauta das discussões educacionais e pedagógicas levado a cabo nos primeiros anos da década de 1910.

Um trecho, especificamente, é esclarecedor neste sentido e revela a intenção em debater um projeto educacional que promovesse a articulação entre a formação individual, do caráter, da educação física, moral e religiosa das novas gerações lusitanas. Note-se, de relance, uma referência a princípios pedagógicos modernos, sem perder a base da tradição:

Orientem-se as escolas de forma a robustecer a iniciativa individual; a preparar homens armados para a luta da vida, com a consciência dos seus direitos e dos seus deveres, fisicamente fortes, solidamente instruídos, certos do destino superior que lhes assegura a religião sem a qual não há moral, como

6 Cf. Alma Portuguesa, série I, n. 1, mai. 1913, p.4.

7Alma Portuguesa publicou apenas dois números, a saber: maio e setembro de 1913. Cf. Cruz (1982), nota n. 5, p. 138.

8 Cf. Alma Portuguesa, série I, n. 1, mai. 1913, p. 2.

9 Cf. Alma Portuguesa, série I, n. 2, p. 23-25.

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demonstra Brunetière, um dos mais altos espíritos da França Republicana. (Alma Portuguesa, série I, n. 1, mai. 1913, p.25)

A criação da Alma Portuguesa no ano de 1913 pode ser, portanto, considerado como o ponto de gênese do movimento integralista em Portugal. No decorrer das décadas de 1910 e 1920, adquiriu maturidade e, ao mesmo tempo, caracterizou-se por diferenças internas e de contraditórias intenções, marcadas por conjunturas de um processo histórico dinâmico, de uma sociedade que saiu do regime monárquico, aderiu ao republicanismo até atingir a ditadura, consubstanciada no Estado Novo salazarista.

Em julho de 1933, o núcleo central anuncia a dissolução do movimento, por meio de um manifesto publicado na revista Integralismo Lusitano – Estudos Portugueses, encerrada em março de 1934:

Pela nota publicada neste fascículo, deixam de existir a organização política do Integralismo Lusitano e o organismo que a tem dirigido. Estes fatos se atestam para conhecimento de amigos e adversários, os quais ficarão sabendo que os monárquicos portugueses obedecem todos às direções da Causa Monárquica, nos diferentes graus de sua hierarquia. A designação Integralismo Lusitano, de hoje em diante, exprimirá apenas um conceito doutrinário, a reivindicação totalitária dos princípios da Monarquia Portuguesa que continuarão a ser expostos e defendidos nesta revista, sob a exclusiva responsabilidade pessoal dos seus diretores (Integralismo Lusitano – Estudos Portugueses, vol. II, fasc. IV, jul. 1933, p. 239-240)10

Com a ascensão do Estado Novo no início dos anos de 1930, integrantes do IL passaram a militar no setor público e defender o projeto de “União Nacional”, propugnado por Salazar e defendido pelos quadros oficiais da Igreja portuguesa, sob a liderança do Cardeal Cerejeira, patriarca de Lisboa, e por acadêmicos oriundos dos quadros da Faculdade de Direito de Coimbra. (MENESES, 2011).

2. Nacionalismo católico: o caso brasileiro

O arrazoado acima exposto sistematiza as justificativas do recorte cronológico definido (1913-1934), a partir da consulta às fontes e da temática central da investigação, objetivando a análise das circunstâncias históricas que marcaram as relações entre intelectuais portugueses e seus produtos com redes de pensadores brasileiros que atuaram particularmente nas décadas de 1910, 1920 e princípios dos anos de 1930. Ressalta-se, ainda, que a pesquisa considerou as possíveis conexões do

10 Revista lisboeta, cujo primeiro número foi publicado em abril de 1932, foi resultado de um projeto coletivo e de iniciativa derradeira. De vida curta, encerrou suas atividades em março de 1934. Seus primeiros diretores foram Luís de Almeida Braga e Hipólito Raposo. (Cf. CRUZ, 1982, p. 174-175)

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movimento lusitano com intelectuais brasileiros ligados ao espectro doutrinário do catolicismo, nos âmbitos da hierarquia oficial e do laicato militante.

Nas primeiras décadas do século XX, o episcopado brasileiro mobilizou-se em torno da criação de dioceses, reorganização estrutural dos seminários e uma ampla atuação no âmbito da imprensa periódica. O discurso e as ações das elites católicas pautaram-se pela defesa do ensino religioso nas escolas (públicas e privadas), na proteção da indissolubilidade do matrimônio, na divulgação editorial de uma bibliografia doutrinária, dentre outras iniciativas de igual monta. Do ponto de vista político, a Igreja no Brasil, mesmo antes da proclamação da república, por meio da ação dos seus prelados, defendeu bandeiras militantes para blindar seu legado doutrinário e cultural.

Esse panorama geral pode auxiliar na compreensão do quanto foi decisiva para a Igreja católica no Brasil a implantação da república, em novembro de 1889, experiência que a sociedade portuguesa vivenciou alguns anos mais tarde, no ano de 1910. Inspirado nas diferentes vertentes do positivismo, o movimento republicano, em linhas gerais, pelo menos do ponto de vista ideológico, pautou-se, fundamentalmente, pela defesa da separação do Estado e da Igreja e pelo laicismo no campo da educação escolar.

A proclamação da república mobilizou setores eclesiásticos durante as primeiras décadas do século XX. No Brasil foram centrais as “pastorais coletivas” 11 , documentos inspirados em cartas pontifícias, pela luta na preservação dos princípios católicos e instrumentos de diálogo com o “mundo moderno”. Registra-se, ainda, que ocorreu, em princípios do século XX, um fenômeno político e sociológico da “diocesanização do catolicismo no Brasil”, um complexo processo de territorialização da ação pastoral e missionária da Igreja (AQUINO, 2012).

A historiografia, mais precisamente a educacional, explorou de forma variada esta faceta da Igreja nas primeiras décadas do século XX (MICELI, 1988; 2001; CARVALHO, 1998; RODRIGUES, 2006). Setores da hierarquia e do laicato militante, em seus projetos, ideias e ações instituíram condições materiais de defesa de um arcabouço doutrinário fundamentado na tradição dogmática, na cultura medieval e no nacionalismo em termos de organização sistêmica da sociedade.

3. Conexões, intercâmbio, redes

Em 1921, a Livraria Catholica do Rio de Janeiro publicou Do nacionalismo na hora presente. Carta de um católico sobre as razões do movimento nacionalista no Brasil. E o que, em tal movimento, é possível determinar, redigido pelo intelectual católico Jackson de Figueiredo. A missiva foi dirigida a Francisco Bustamante, amigo do autor e atuante, como ele, em favor da causa católica no Brasil. Figueiredo, na

11CARTAS PASTORAIS COLETIVAS DO EPISCOPADO BRASILEIRO (1890, 1900, 1910 e 1915).

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carta, expressou todo o sentimento e adesão à causa nacionalista fundamentada na dogmática e na tradição. O debate, neste caso, era com setores da elite intelectual portuguesa, igualmente envolvida no cadinho ideológico do nacionalismo lusitano. Havia, à época, um imbróglio teórico entre as posições de Figueiredo e Antonio Sardinha12, apesar da amizade que os unia.13

As questões de fundo versavam sobre as relações entre Portugal e Brasil, nacionalidade e nacionalismo, tradição, autonomia cultural, entre outros temas correlatos. (SARDINHA, 1934 e OLIVEIRA, 1972). A militância de Jackson de Figueiredo no campo nacionalista católico foi, por algumas vezes, anunciada e referida por periódicos lusitanos de orientação integralista, com destaque à revista Nação Portuguesa.14

Este periódico circulou em duas fases distintas, 1914-1916 e 1922-1928 15 . Aglutinou parcela significativa da elite intelectual lusitana defensora dos princípios monárquicos, com destaque para Alberto Monsaraz, Alfredo Sardinha, Luiz de Almeida Braga, Hipólito Raposo, Amadeu de Vasconcelos, Pequito Rebelo, Alfredo Pimenta, entre outros. Autodenominava-se “Revista de Filosofia e Política” e, no primeiro número, publicou as bases doutrinárias e ideológicas do Integralismo Lusitano: monarquia orgânica e antiparlamentar, a defesa da Pátria, da família e dos micro poderes regionais: a província, o município, a paróquia, as comunidades. No campo da cultura e da educação pleiteava o

Desenvolvimento artístico, subsídios pelo município, província e governo central; restituição às províncias das obras de arte que lhes pertencem; indústrias artísticas locais; museus regionais e defesa do patrimônio artístico da província; museus nacionais e defesa do patrimônio artístico da nação; ciência: desenvolvimento da instrução e prestação de subsídios e auxílio material pelo município, província e governo central, a par da autonomia de alguns órgãos de instrução;instrução primária no município;instrução secundária na província; universidade autônoma (Coimbra); escolas e universidades livres; escolas industriais regionais;religião: liberdade e privilégios da religião tradicional Católica, Apostólica, Romana (Nação Portuguesa, ano I, n. 1, 8 abr.1914, p. 4)

12 Antonio Sardinha (1887-1925). Historiador e poeta português, atuou nos quadros do IL e dirigiu a revista Nação Portuguesa.

13 Nação Portuguesa, 3ª série, n. 3, 1925, p. LXIX; 3ª série, n. 9-10, 1926, p. CCVI; série IV, n. 5, tomo I, s/d, p. 396.

14 Nação Portuguesa, 3ª série, n. 2, 1924, p. LIV; 3ª série, n. 3, 1925, p. LXIX; 3ª série, n. 9-10, 1926, p. CCVI; Série IV, n. 5, tomo I, s/d, p. 396.

15 A base para a demarcação destes dois ciclos pautou-se na consulta ao referido periódico arquivado na Biblioteca Nacional de Portugal.

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Esta plataforma cultural e educacional apresentada pela revista sintetiza as motivações doutrinárias do movimento. A Nação Portuguesa exaltou, por vezes sucessivas, o protagonismo intelectual e político de Jackson de Figueiredo, sua adesão incondicional ao catolicismo, sua obediência à hierarquia e a preocupação com a formação moral, educacional e cultural pautada nos princípios longevos da dogmática católica. Os destaques eram enfáticos com relação, principalmente, à liderança exercida por Figueiredo na criação do Centro D. Vital e do seu veículo de divulgação doutrinário, a revista A Ordem:

Com o n. 53 entrou no 6º ano de sua existência a notável revista fluminense A Ordem, órgão do Centro D. Vital, que Jackson de Figueiredo, uma das fortes personalidades do movimento católico brasileiro, vigorosamente dirige. É-nos muito agradável saudar neste momento alguns simpatizantes do movimento nacionalista português e, simultaneamente, alguns dos mais desassombrados defensores da unidade católica brasileira. E saudando A Ordem não queremos deixar de estender a nossa saudação aos seus redatores, entre os quais a nossa amizade tem empenho em destacar Perilo Gomes, jornalista violento, doutrinador desempoeirado e Jackson de Figueiredo, que foi dos mais decididos amigos de Antonio Sardinha no Brasil. (Nação Portuguesa, série IV, n. 5, tomo I, s/d, p. 391)

A atenção dada pela Nação Portuguesa à Jackson de Figueiredo e ao seu protagonismo insere-se, dentre outros motivos, no contexto das relações de amizade e debate intelectual entre ele e Antonio Sardinha, liderança de destaque no espectro integralista lusitano, por sua militância doutrinária e política. Sardinha, após seu exílio na Espanha (1919-1921), assume, em 1922, a direção do periódico em epígrafe, inaugurando sua segunda fase.16

Não por acaso que nas seções da revista dedicadas à divulgação de periódicos parceiros, A Ordem, do Centro D. Vital, quase sempre esteve presente, assim anunciada: “A Ordem. Órgão do Centro D. Vital. Diretor Jackson de Figueiredo. Grande revista do Rio de Janeiro.”17

Numa das edições da revista do ano de 1926, na seção intitulada “Na Feira das Letras”, três livros de autores brasileiros receberam, em resenha, avaliações positivas. Era a estratégia dos editores da revista em divulgar para os portugueses que havia, no Brasil, parceiros na luta pelo mesmo ideal nacionalista. Manuel Múrias, autor das três resenhas, resenhou as obras de Jackson de Figueiredo (Literatura Reacionária), de Perilo Gomes (Jackson de Figueiredo – o doutrinador

16 Cf. Nação Portuguesa, 2ª série, n. 1, julho de 1922, p. 1-2. Sobre a trajetória intelectual e política de Antonio Sardinha, consultar Desvignes (2006). A autora pesquisou o espólio de Sardinha arquivado na Biblioteca João Paulo II da Universidade Católica Portuguesa.

17 Cf. Nação Portuguesa, 2ª série, n. 12, 1923.

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político) e de Vicente Licínio Cardoso (I- Pensamentos Brasileiros – Golpes de Vista, II; - Vultos e Ideias: III - Figuras e conceitos; IV – Afirmações e comentários), este último um dos protagonistas e intelectual atuante no âmbito da Associação Brasileira de Educação (ABE), criada no Rio de Janeiro, em 192418.

O Centro D. Vital, lócus de atuação política de intelectuais católicos no Brasil, mereceu da Nação Portuguesa a mesma atenção. Listas de livros editados pelo Centro carioca foram divulgadas pela revista lusitana. Além de obras de Jackson de Figueiredo, estão na relação Perilo Gomes, Durval de Moraes, Hamilton Nogueira e Mario de Alcântara Vilhena.19

Além da revista A Ordem, outros periódicos brasileiros editados e que circularam no período em questão, receberam menções nas revistas portuguesas pesquisadas. Foram os casos de América Brasileira, criada no início da década de 1920 e dirigida por Elysio de Carvalho20 e a Revista do Brasil, de Paulo Prado e Monteiro Lobato, divulgada como

a mais antiga das revistas de alta cultura que se publicam no Brasil. Durante os oitos anos de sua ininterrupta publicação, tem publicado inéditos não só dos maiores escritores nacionais, como dos novos mais prometedores. Literatura, arte, ciência, política, todas as altas manifestações do pensamento nacional encontram seu lugar nas páginas da REVISTA DO BRASIL. (g.a.) (Nação Portuguesa, 2ª série, n. 11, out. 1923, s/p)

Nota-se que os editores de a Nação Brasileira, um dos principais veículos de divulgação doutrinária do Integralismo Lusitano, enfatiza a presença de “novos” escritores nas páginas da Revista do Brasil, criada por iniciativa de Monteiro Lobato, Paulo Prado e outros intelectuais brasileiros ligados ao campo nacionalista. O próprio Lobato atuou, como se sabe, na Sociedade Eugênica de São Paulo e sua editora publicou os boletins desta organização (STEPAN, 2005).

Os “novos”, lembrados pelos integralistas, eram os que representavam a emergente geração de intelectuais engajados na causa nacionalista. Gilberto Freyre foi um “nome novo” citado algumas vezes e teve um artigo publicado num dos periódicos analisados. 21 A revista Portugalia 22 publicou uma conferência que Gilberto Freyre proferiu no Recife em 1924. Nela, o autor de Casa Grande & Senzala

18 Cf. Nação Portuguesa, série IV, n. 1, tomo I, 1926, p. 92-95.

19 Cf. Nação Portuguesa, série IV, n. 1, tomo I, 1926, p. 96.

20 Cf. Nação Portuguesa, 3ª série, n. 3, 1925, p. LXVIII-LXIX; Lvsitânia, fasc. I, vol. II, set. 1924, p. 131; fasc. II, mar. 1924, p. 302; Gil Vicente, 1ª série, 1º ano, jan./dez.1925, p. 144.

21 Cf. Nação Portuguesa, 2ª série, n. 11, out. 1923, p. 523-525; 3ª série, n. 2, 1924, p. LIV.

22 Dirigida por Fidelino de Figueiredo e editada pelo Conselho Diretor Central das Juventudes Monárquicas Conservadoras, Portugália, cujo o primeiro número data de outubro de 1925, intitulava-se uma “Revista de Cultura, Tradição e Renovação Nacional”.

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apresentou sua defesa à causa nacionalista, referenciando nomes que, segundo ele, cumpunham à nova geração de intelectuais engajados nesta causa: Agrippino Grieco, Oliveira Viana, Jackson de Figueiredo, Antonio Torres, Gilberto Amado, Ronald de Carvalho, Renato Almeida, Tristão de Atayde, Perilo Gomes, Andrade Muricy e Tasso da Silveira. Vejamos um trecho da conferência23:

E por toda parte o programa de pensamento e ação da mocidade é hoje um programa de retificação. No Brasil, é preciso que retifiquemos os falsos valores de que há cinquenta anos vivemos, reintegrando-nos no Brasil brasileiro dos nossos avós. Contra o ideal absorvente de transformar o país num vasto 202 de Jacintho24, ideal que é desde a República a tendência, agora acentuada pela fartura de dinheiro, ergamo-nos, os novos homens do Brasil. Que exceda o conforto dos fogões a gás, dos water-closetsde porcelana, da luz elétrica, o ideal de cultura e de vida brasileira. Que a Nossa Senhora do Brasil tenha mais de Maria do que de Martha.Felizmente, da nova geração brasileira surgem esboços de leaders e sobras de profetas.(Portugalia, n. 2, nov. 1925, p. 102)

Gilberto Freyre, deste modo, assim como outros sujeitos aqui abordados, discursava da perspectiva das “elites”25, uma plêiade de jovens intelectuais, entre vinte e trinta anos, insatisfeita com a conjuntura e com seu passado recente (dos seus pais e avós), porém atenta às circunstâncias. A intelectualidade lusitana desta geração, envolvida na causa integralista e nacionalista, apostava no Brasil (ou pelo menos em alguns brasileiros) como parceiro desta luta. Tratava-se, portanto, de mais uma faceta do diálogo que os portugueses procuraram manter com setores da elite brasileira, conexão fundamentada em alguns princípios doutrinários.

O campo católico português expressou-se e atuou de forma variada, aglutinando o laicato militante em diferentes instituições políticas, acadêmicas e de cultura.26 Em Coimbra, por exemplo, o Centro Acadêmico de Democracia Cristã (C.A.D.C.), que reuniu intelectuais como Manuel Cerejeira, Antonio Salazar e Martinho Nobre de Melo, dialogou com o IL, mas procurou, a seu modo, não se afastar das orientações doutrinárias da Igreja católica oficial.

Nas “Cartas aos novos”, publicadas na revista Estudos do C.A.D.C., Gonçalves Cerejeira defendeu a necessidade da obediência irrestrita à tradição dogmática católica e às orientações do Vaticano. Numa delas, Cerejeira sistematizou uma

23 Cf. Freire, Gilberto. Apologia: pro generatione sua (Conferência). In: Portugalia, n. 2, nov. 1925, p. 89-102.

24 Personagem do romance de Eça de Querioz, A Cidade e as Serras.

25 O uso desta categoria analítica segue a abordagem sugerida por Charle (2006) e Love e Barickman (2006).

26 Para o entendimento da complexa rede de relações e atuação dos católicos em Portugal no período, consultar Simpson (2014). O autor analisou, a partir de fontes dos arquivos no Vaticano, na Torre do Tombo em Portugal e no Archivium Romanum Societatis Iesus, as relações entre a Igreja católica e o Estado Novo salazarista.

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análise detalhada sobre a “questão da Action Française”27, movimento antiliberal e monárquico, condenado pelo Vaticano em 1926. Um ano antes, o papa Pio XI, por meio da Carta Encíclica Quas Primas, instituiu a festa de Cristo-Rei. O documento papal provocou uma reviravolta no campo católico português, em especial no núcleo duro do IL. A questão de fundo estava implícita nos debates sobre o modelo de regime monárquico defendido pelas diferentes correntes internas existentes naquele movimento.

A revista Nação Portuguesa, ícone principal, publicou um artigo intitulado “Na festa de Cristo-Rei”, expressando seu alinhamento às normas doutrinárias do Vaticano, como forma de acalmar os ânimos integralistas envolvidos no debate sobre a retomada do regime monárquico em Portugal e o modelo de sistema a ser adotado28. Em conferência realizada na Liga Naval Portuguesa, em 23 de março de 1925, Hipólito Raposo, na tentativa de esclarecer as diferenças doutrinárias e ideológicas do IL em relação à Action Française e, estrategicamente atento à conjuntura política de Portugal, pretendeu enquadrar o movimento que liderava no arcabouço oficial do catolicismo.29

Ressalta-se que foi nesta conjuntura atribulada que ocorreu o golpe militar em maio de 1926, que instalou a ditadura militar no país, fato que provocou uma “melhoria global das relações entre a Igreja e o Estado e a elite católica procurou aproveitá-la ao máximo.” (SIMPSON, 2014, p. 45)

Os principais periódicos integralistas e os de orientação nacionalista-católica apresentaram-se alinhados ao movimento internacional a favor do que denominavam “literatura reacionária”, ou, mais precisamente, ao movimento de recuperação da tradição medieval que, segundo estes movimentos, havia se perdido com a “vitória equivocada” do liberalismo. Além dos autores integralistas, as seções divulgavam, igualmente, obras produzidas pelo espectro ideológico católico não alinhado diretamente ao integralismo lusitano. Um caso emblemático foram os livros publicados por Cerejeira, A Igreja e o pensamento contemporâneo.

Nesta primeira edição, que data de 1924, o autor propõe uma incursão analítica no debate sobre as relações entre a fé, a ciência e a modernidade e o papel da Igreja neste âmbito. Vale registrar que na segunda edição da obra, publicada em 1928, Cerejeira acrescenta um item no capítulo IV, intitulado “A reação católica no Brasil”, no qual tece considerações elogiosas ao movimento de resistência católica ao laicismo e à maçonaria. Refere-se ao Centro D. Vital, aos escritores católicos do Brasil e à nova geração militante. Sem dúvida, Cerejeira foi um dos principais interlocutores portugueses junto à elite católica brasileira durante a década de 1920 e

27Cf. Estudos, ano V (fasc. VII), n. 55, nov. 1926, p. 463-479.

28Cf. Nação Portuguesa, série V, tomo II, 1928, p. 399-406.

29Cf. RAPOSO, Hipólito. Dois nacionalismos. L´Action Française e o Integralismo Lusitano. Lisboa: Ferin, 1929.

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princípios dos anos de 1930. A visita que realizou no Brasil em 1934, corrobora a tese de suas estreitas ligações com católicos brasileiros.

Cerejeira não atuou diretamente junto ao núcleo duro do integralismo português, mas foi, por diversas vezes, citado pelas revistas integralistas. Estes mesmos periódicos referiram-se ao Brasil, especialmente apontando a emergência de uma elite jovem e combativa no campo do nacionalismo católico e de outras iniciativas de igual monta. Alguns exemplos podem ser destacados para corroborar a tese destas conexões que resultaram em contatos recíprocos e alinhamentos ideológicos nos campos da cultura e da educação.

O caso mais emblemático foi o de António Figueirinhas que em suas Impressões sobre a instrução no Rio de Janeiro e São Paulo, publicado em 1929, descreve a visita que realizou em instituições e órgão de educação no sudeste brasileiro. Da visita, Figueirinhas destacou os contatos que estabeleceu com Lourenço Filho e Fernando de Azevedo. O livro foi publicado por sua editora, localizada no Porto, e divulgada com destaque pela Gil Vicente30, revista da cidade de Guimarães que nunca escondeu, em suas páginas, o alinhamento ao integralismo lusitano31.

Martinho Nobre de Melo, intelectual formado pela Universidade de Coimbra, foi outro nome envolvido no cadinho das atribulações que a sociedade portuguesa sofre durante as décadas de 1910-1920 e princípios dos anos de 1930. Transitou pelas revistas integralistas e nacionalistas, realizou conferências e sua interlocução com o Brasil foi importante durante o período em destaque. Próximo a Salazar e Cerejeira, chefiou durante uma década a embaixada portuguesa sediada em terras brasileiras. Mas antes disso, sua atuação junto ao campo nacionalista-católico foi intensa.32.

O seu livro Ritmo novo (Palavras de um português no Brasil), publicado pela editora carioca Schmidt em 1932,33 foi prefaciado por Alceu de Amoroso Lima, um dos mais destacados líderes católicos do século XX. Lima destacou a atuação de Nobre de Melo junto aos quadros do nacionalismo português: Sidonio Paes, Sardinha, Cerejeira, Salazar e fez referência à histórica atuação de Jackson de Figueiredo no campo do nacionalismo católico, corroborando a tese da existência de uma rede que acabou por viabilizar conexões variadas entre grupos defensores do ideário integralista lusitano com setores específicos do nacionalismo católico brasileiro entre as décadas de 1910 e princípios dos anos de 1930, conjuntura

30Cf. Gil Vicente, vol. I, n. 1 e 2, 1930, p. 32.

31Cf. Id., ib., 2ª série, ano II, jan./dez. 1926, p. 32; 2ª série, ano II, jan./dez. 1926, p. 149; vol. IV, n. 9 e 10, 1928, p. 225-230; vol. V, n. 1 e 2, 1929, p. 26, dentre outras referências.

32Cf. Gil Vicente, 2ª série, ano II, jan./dez. 1926, p. 149; vol. VIII, n. 3 e 4, 1932, p. 63; Nação Portuguesa, 3ª série n. 9-10, 1926, p. CLXXVII; Labareda, n. 9 e 10, jan./fev. 1926, p. 228; Vasco da Gama, Ano II, n. 6, jan./mar. 1926-1927, p. 56-62; Integralismo Lusitano – Estudos Portugueses, vol. I, fasc. X, jan.1932, p. 576; vol. I, fasc. XI, fev.1932, p. 720-722.

33 Discurso de Martinho Nobre de Melo no jantar que intelectuais e jornalistas brasileiros ofereceram ao novo embaixador no dia 30/10/1932, no Cassino Beira-Mar, no Rio de Janeiro.

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marcada pela consolidação dos projetos intervencionistas de Getulio Vargas e Antonio de Oliveira Salazar.

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ID:60

TÍTULO TOBIAS BARRETO DE MENEZES E A EDUCAÇÃO NO

BRASIL MODERNO Autor: Raylane Andreza Dias Navarro Barreto Filiação: Universidade Tiradentes

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RESUMO

No campo que vem se consolidando e que tem por objeto os intelectuais, vários são os autores que intentam desvelar seus meandros e suas ações como que dando corpo ao campo, incluindo um viés metodológico. Nesse sentido, entender o Brasil sob a perspectiva dos intelectuais e mais precisamente desses dedicados ao campo da educação, pode revelar não apenas o Brasil pensado, projetado, mas, sobretudo as motivações, as necessidades, os pontos nevrálgicos que fizeram com que determinados problemas fossem evocados, analisados e em alguns casos, superados. Como forma de contribuir com a história do campo, o que propus foi, através das ideias, propostas e práticas de Tobias Barreto de Menezes, um dos autores expoentes dos oitocentos brasileiro, entender as questões educacionais do período, em especial no nordeste brasileiro e qual solução ele encontrou/propôs. Nesse sentido, o que objetivei foi entender a origem e o alcance de suas ideias, propostas e práticas em prol da educação com vistas a um Brasil moderno.

PALAVRAS-CHAVE

Brasil, Eduaçao, Tobias Barreto de Menezes

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INTRODUÇÃO34

No cenário político do século XVIII brasileiro, vários foram os autores que se destacaram por suas críticas políticas sociais. Fossem em artigos de jornais ou em livros, temas que envolviam justiça, liberdade, verdade, razão, dentre outros foram estampados nos escritos oitocentistas. Na seara de escritores brasileiros estão, dentre outros, Rui Barbosa, Joaquim Nabuco e Sylvio Romero. A tais nomes se somam outros que mais do que escritores também se envolveram na política, ratificando o prenunciado por Max Weber em “Ciência e política: duas vocações” no qual ele afirma que o homem que vive da política não pode ser o mesmo que vive para a política. Há, de acordo com Weber, um impedimento que faz com que a sintonia não saia a contento, isto porque o cientista se compromete com os fatos enquanto que o político nem sempre pode se dedicar as causas e sim as consequências deles. Nesse sentido, muitos são os exemplos que podem ser recolhidos ao longo da história, inclusive da brasileira e que revelam homens que ao assumir algum tipo de poder político, deixou de lado as suas descobertas enquanto homem de ciência, da mesma forma que homens de ciência, uma vez experienciando a política, a concebeu como um lugar distinto daquele onde se pode está quando se quer implementar novas ideias. Isso porque no campo político muitos são os “acordos” que se devem atar em prol da consecução de uma ideia e estes nem sempre são éticos como convém ao trabalho responsável.

Goethe ao escrever a sua versão do mito de “Fausto” dá um bom exemplo disso, quando mostra um Fausto cientifico que dá lugar a um homem do mundo e que depois se transforma em um ateu “praticante” que faz pacto com o demônio, o que culmina ser ele um grande dono de terras e “gestor” público. A história de Fausto termina com ele e a “inquietude” dialogando sobre suas ações e suas angústias e o que delas decorrem. Na vida real esse diálogo pode até ser feito, mas pouco divulgado uma vez que os afazeres políticos não dão margem a publicização das angustias individuais. Se por um lado são poucos os homens públicos que têm essa verve, por outro, é ao homem de ciência, ao técnico do saber humano, na concepção de Bobbio (1997), que cabe o dever de não somente pensar, mas de criticar e por vezes propor soluções para os problemas candentes. Se são factíveis, isso já é outro aspecto a ser analisado, pois se seguirmos a linha proposta por Julien Blenda (Apud Bobbio 1997) o intelectual é o produtor de conhecimento e não se envolve com política.

No campo que vem se consolidando e que tem por objeto os intelectuais, vários são os autores que intentam desvelar seus meandros e suas ações como que dando corpo ao campo, incluindo um viés metodológico. Nesse sentido, entender o Brasil sob a perspectiva dos intelectuais e mais precisamente desses dedicados ao campo da

34 O texto que aqui apresento faz parte do Programa de Pesquisa do meu pós-doutoramento realizado na Universidade de Lisboa, sob a supervisão do Professor Doutor Justino Pereira de Magalhães com a concessão de bolsa Capes e está vinculado ao Projeto “Modernidade e educação em Tobias Barreto de Menezes (1839-1889)” financiado através do edital MCTI/CNPq n.º14/2014.

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educação, pode revelar não apenas o Brasil pensado, projetado, mas sobretudo as motivações, as necessidades, os pontos nevrálgicos que fizeram com que determinados problemas fossem evocados, analisados e em alguns casos, superados. Na tradição da educação brasileira, há que se considerar que foram muitas as transições. Seja no modelo de educação seguido, seja nos métodos de ensino, seja nas distintas grades curriculares que, por sua vez, acompanharam os níveis de ensino e as propostas pedagógicas. O que fica claro é que a educação brasileira enquanto campo teve em determinados personagens, divisores de água. Não que necessariamente as rupturas ocorridas tenham alavancado o país como se queria, mas as mudanças ocorridas não podem deixar de ser computadas, quando da escrita da história. Isto porque é de homens e de ações que a história se constitui.

Como forma de contribuir com a história do campo, o que propus foi, através das ideias, propostas e práticas de Tobias Barreto de Menezes, um dos autores expoentes dos oitocentos brasileiro, entender as questões educacionais do período, em especial no nordeste brasileiro e qual solução ele encontrou/propôs. Tobias é autor de vários artigos e livros, além de idealizador e criador de jornais. Foi também professor e mentor de uma escola filosófica, denominada Escola de Recife, dentro da Faculdade de Direto, na província de Pernambuco da qual foi professor entre 1882 e 1889. Tais ações o fizeram constar na hierarquia intelectual brasileira, mas a recepção de suas ideias pelos seus contemporâneos deixou a sua figura senão incógnita, indistinta para as gerações posteriores no que tange ao estrado da educação. No campo jurídico, entretanto, seus escritos ecoam até os dias de hoje, principalmente no que tange ao direito penal. Nesse sentido e com foco no campo da educação, o que objetivei foi entender a origem e o alcance de suas ideias, propostas e práticas em prol da educação com vistas a um Brasil moderno. Para tanto o que fiz foi elencar aspectos específicos sobre a educação no período de 1860 em que ele começou a lecionar, tendo inclusive criado sua escola (25 de março) na cidade de Recife e 1879 quando, na condição de deputado provincial de Pernambuco, cria um projeto de lei intitulado Paternogógio em que propõe a criação de uma escola superior profissionalizante feminina. Tobias também defendeu a educação profissionalizante voltada para a indústria e no tocante aos escravos, uma “servidão ao solo”.

1. ASPÉCTOS DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA NOS OITOCENTOS

O Brasil dos oitocentos foi marcado por uma serie de aspectos e de divisores de águas. A lei do Ventre Livre, a Lei dos Sexagenários, a Abolição da escravatura, a Guerra da Tríplice Aliança o que, segundo Inácio Filho e Silva (2011, p. 218) consideram, ter modificado significativamente a visão dos generais do exercito sobre Estado, nação “e, sobretudo, da necessidade de alterar os rumos da formação dos militares brasileiros.” Somado a isso estava o regime de padroado, o surto das ideias novas no Brasil a exemplo do positivismo, do cientificismo, do ecletismo religioso, do darwinismo social e do germanismo. Em defesa dessas ideias, como já ressaltado, muitos foram os homens que as alardearam e estas por sua vez, tiveram na

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necessidade brasileira e nos exemplos estrangeiros a tônica para a mudança. Para tanto foram vários os repertórios mobilizados, sobretudo aqueles que vinham da França como foi o caso do positivismo comtiano. O Brasil, na verdade, assim como vários outros países que tinham por incumbência a independência econômica e intelectual, buscou nos exemplos mais bem sucedidos, modelos. Na análise de Tôrres (1973):

O interessante, porém, é que não haveria uma linha única, mas fontes inspiradoras diversas em política – o constitucionalismo francês, o parlamentarismo britânico, o federalismo americano, tendências comunistas ou fascistas de várias origens, em filosofia, o ecletismo, o positivismo, o spencerismo, o “germanismo” de Tobias Barreto, assim como diferentes modalidades modernas, bem conhecidas. (Tôrres 1973, p. 211)

Assim, o Brasil se caracterizava não por uma corrente filosófica ou politica, mas por está em contato com muitas das correntes de pensamento à época, o que incidiu em equívocos, mas que por certo caracterizou o Brasil dos oitocentos. O modo como tais correntes acometeram a educação do brasileiro, pode ser apreendido, sobretudo através dos estudos acerca das escolas superiores, em especial das faculdades de Direito de São Paulo e de Recife, onde o lastro profissional se somava, de modo contundente, ao intelectual. Vários foram os personagens dessas duas escolas que estiveram a frente de movimentos decisivos na história do Brasil, fosse nos campos do direito e politico, fosse no campo das artes, da literatura e da educação.

No campo especifico da educação, o que se viu depois da independência do Brasil em 1822 foi uma ampla tentativa de organização do ensino com vistas a tornar o Brasil de fato “civilizado”, embora com uma cultura que embora mestiça e hibrida. Nesse sentido, existiram as tentativas datadas de 1823 quando o imperador Pedro II por ocasião da inauguração da Assembleia legislativa, conclamou os legisladores a necessidade de uma comissão de Instrução Pública com vistas a criar um sistema educativo brasileiro. Nesse sentido foram criados dois projetos a saber: O Projeto do Tratado de Educação para a Mocidade Brasileira e o Projeto de Criação de universidades. Ambos os projetos não foram levados adiante pois emperraram na concordância em remunerar o autor do projeto com a recompensa solicitada. (Socorro; França 2003).

Uma nova tentativa foi encabeçada em 1827 e contemplava a criação de simples escolas primárias. Após algumas altercações, o projeto foi aprovado em 18 de setembro e transformado em Decreto imperial em 15 de outubro de 1827. Embora com objetivos simples e passiveis de criticas, tal decreto primava pelos conteúdos a serem ministrados e pela formação de professores, embora bastante incipientes, mesmo para a época. Com relação ao conteúdo, as Escolas de Primeiras Letras “deveriam ensinar a leitura, a escrita, as quatro operações de cálculo, as noções gerais de geometria prática, a gramática da língua nacional e a doutrina católica.” (Socorro; França 2003).

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Ainda segundo Socorro e França:

Quanto a formação de professores, dispunha que deveria ocorrer, em curto prazo, nas escolas da capital, devendo os alunos arcar com todas as suas despesas. Nota-se aí que não havia qualquer incentivo, por parte do poder público, para a formação do professorado; posteriormente atribuiriam o mal funcionamento da Escola de Primeiras Letras e o fracasso de sua implantação a má qualidade do trabalho docente. (Socorro; França 2003, p. ).

Tal situação vigorou até a segunda metade do XIX quando as escolas de formação de professores foram criadas com vistas a dotar a educação de um tônus mais cientifico, aspecto que recairia em uma escola moderna onde se associariam disciplinas e conteúdos científicos de matriz europeia com valores que incidissem sobre o patriotismo que deveriam ter por fundamentos a língua, a história e a geografia local.

Foi nesse sentido que projetos de escolas normais foram difundidos por todo o território nacional, sendo algumas delas implementadas. Tendo por base modelos europeus, e, por práticas reformas sanitárias, higienistas e arquitetônicas, o que se pretendia era alavancar o país colocando em pé de igualdade com as nações mais civilizadas. O que se viu não foi o pretendido. Nas palavras de Herschmann e Pereira (1994, p. 150) o que tivemos foi:

|...| a instalação de uma modernização conservadora, estatizante, reformista e higienista, cultuando a ordem como geradora do progresso, uma cultura taxonômica, hierarquizada, com as elites no topo determinando as normas e administrando a vida nacional, pública e privada.

Em se tratando do nordeste do Brasil, tanto as escolas normais, quanto as escolas primárias seguiram essa lógica e fossem de origem religiosa, pública ou privada escolas foram criadas. A capital da Província de Pernambuco contava com a presença de algumas instituições mistas e outras só para um sexo (meninos ou meninas). Durante o período estudado, havia dois colégios para órfãos: um para meninos e outro para meninas, a Casa dos Expostos, que recebia meninos e meninas, além do Colégio de Bom Conselho fundado pelos Capuchinhos, destinado às meninas pobres e da Colônia Orfanológica Isabel, também fundada pelos Capuchinhos e que recebia meninos.

Tais insituições educativas respeitando o seu regimento e a sua missão foram capazes de impulsinar a cultura letrada de seus alunos dotando-os de um capital suficiente para divulgar e excpandir uma cultura escolar, mas aquem da real necessidade do Brasil em modernização. Ao que parace, sem medo de parecer etnocêntrica, foi que na ânsia de imitar ou transplantar uma cultura estrangeira, não se considerou, pelo menos nos moldes de um pais eminentemente rural, as reais e verdadeiras necessidades de educação do seu povo. Considero para tal afirmativa a situação dos escravos alforriados, que sem formação não tinham emprego e

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remuneração para seu sustento, as mulheres pobres para qual não existia mercado de trabalho e sem formação especifica, muito menos e para boa parte dos homens pobres sem formação, para os quais restavam apenas os trabalhos basedados na força física.

2. AS IDEIAS TOBIÁTICAS EM PROL DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA

Por certo nos discursos de políticos e/ou intelectuais brasileiros fosse em livros, artigos de jornais, em mandatos políticos, cargos públicos ou mesmo no magistério a tônica que vinha das leituras e traduções priorizavam as teorias e práticas educacionais que implicavam o novo, o moderno e a modernização em detrimento das velhas práticas que teimavam, e, por certo ainda teimam, em permanecer no campo. A ideia de alavancar o país pela educação e formação de quadros profissionais foi, por certo, o impulso dado por muitos daqueles que pensaram a orgnização da sociedade brasileira durante o século XIX.

Foi nessa ótica que Tobias Barreto que fora professor do ensino particular, jornalista, advogado, deputado provincial pela cidade de Escada e tempos depois professor da Faculdade de Direito do Recife conseguiu pensar o seu pais, a sua região e a província onde residia. Ao se deparar com um pais em estado vil de desenvolvimento, mesmo com condições materiais de ascender, buscou as origens e os principais pontos nevrálgicos de sua letargia e encontrou sobretudo na falta de preparo do seu povo a maior causa. Soma-se a ela a má administração politica e a corrupção do seu povo. Ao eleger a cidade de Escada como lócus de uma de suas muitas análises, ele deixa claro quão insensível poderia ser a classe política ao destinar os maiores percentuais à polícia em detrimento da educação, por exemplo.

Na contramão dessa história e com vistas a mudar o cenário brasileiro ele busca nos exemplos de outras nações, argumentos para propor ora a escola superior feminina nos moldes alemães (paternogógio), ora o ensino profissionalizante dos brasileiros o que inclui a mulher, ora o incentivo a educação artística como categoria de trabalho (BARRETO 2015). Ao atentar para os montantes destinados as artes, fosse estimulando a formação de artistas, fosse comprando e preservando as obras de arte, de países como França, Béligica, Prússia e ainda a Saxônia e a Baviera, ele surpreende ao chegar a conclusão de que.

Antes de tudo, a situação geral das finanças de qualquer país é que deve dar a última palavra sobre essa questão. Se ela é de tal natureza que, feitas as despesas necessárias, e sem opressão dos contribuintes, ainda há um supérfluo que possa ser aplicado à arte, não há dúvida de que a aplicação é das mais úteis. Mas nós não queremos afagar ilusões. Qual é aí o país. – e o nosso menos que todos – capaz de apresentar esse supérfluo de sua receita? Cremos que nenhum. Já se vê que a partir daquele princípio, que aliás é justíssimo, nunca se chegaria ao fim desejado. O que importa pois é buscar tirar o melhor partido do mau estado financeiro mesmo, em que nos achamos. (BARRETO, 2012, p. 190)

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Prossegue seus argumentos deixando claro que no caso do Brasil, seria insensatez destinar verbas para tais fins, ponderando sobretudo que os costumes de um povo inculto não se muda contemplando obras de arte e nesse sentido afirma que a arte antes de aparecer como passatempo, deve ser considerada uma atividade prática, como uma “categoria do trabalho”. E é justamente sob esse prisma, o do trabalho, que Tobias considera o auxilio do Estado em algo que fosse além dos liceus de artes e ofícios.

Também nesse campo o autor do artigo “As flores perante a indústria” ressalta a necessidade e os benefícios da educação da mulher e a sua consequente participação no mercado do trabalho e por extensão na economia do país. Ao analisar a educação oferecida as mulheres e a sua pretensa compreensão de uma educação profissionalizante tendo por base o cultivo das flores sob a ótica da botânica e com um potencial de mercado significativo, ele assim se expressou:

Nenhuma das nossas escolas públicas se ocupa de tal matéria, e os pensionatos ou colégios, a cargo de particulares, talvez não tenham sequer o pressentimento da coisa. Nestes pensionatos há horas consagradas ao passeio e ao recreio, mas ninguém se lembra que não se concebe melhor recreio do que entreter-se com as flores, não no sentido de uma coquetterie, ainda mesmo inocente, porém no de uma ocupação salutar.(BARRETO, 2012, p. 197).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao atentar para a bibliográfica, sobretudo da obra de Tobias e de seus contemporâneos; e a pesquisa documental, pois alguns dos seus argumentos estão registrados em documentos que constam nos arquivos da Assembleia Legislativa de Pernambuco e na Faculdade de Direito de Recife (para onde foi sua biblioteca e arquivos), a pesquisa, embora ainda inacabada pois envereda por outras searas que vão além do Brasil, visto que uma das preocupações é entender os repertórios mobilizados em prol das suas ideias publicadas, foi possível chegar a algumas conclusões, a saber:

Tobias Barreto foi um leitor voraz da produção contemporânea estrangeira, o que demonstra sua sagacidade e preocupação em enveredar por outras culturas julgando-as umas melhores que outras. São muitos os autores mobilizados e muitas as culturas evidenciadas em seus exemplos. Da mesma forma que também são muitos os juízos de valor que revela em seus artigos. O destaque vai para Portugal considerado pelo autor atrasado, e sem pretensões teóricas e para a Alemanha considerada um modelo de civilização, cujos teóricos não só foi o alicerce de suas propostas, mas modelo a ser seguido. Tais interpretações não o impediram de ver o outro lado de ambos os países e de outras nações que, na sua ótica, também tinham suas qualidades e defeitos. O seu foco era não somente atualizar-se das ideias que estavam sendo gestadas fora do

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Brasil, mas valer-se delas em prol de um projeto que envolvesse e movimentasse a sociedade brasileira com vistas a sua modernização.

Ao mobilizar autores e ideias estrangeiras a fim de agregá-los às suas, Tobias tece críticas ferozes aos autores brasileiros. Salvo raras exceções (a maioria de seus seguidores), em seus artigos, ele destitui concepções religiosas e positivistas e envereda por um culturalismo filosófico. Para tanto mobiliza os repertórios de Charles Darwin, Ernest Heckel, Rudolf Von Jhering Herbert Spencer, Eduard Von Hartman, Noiré e Imannuel Kant dentre outros autores alemães para elaborar sua analise sobre a organização da sociedade que teve por escopo acabar com o quadro fatal da sociedade escravista brasileira. Nesse bojo uma concepção de educação é identificada e vem ao encontro de uma possível ascensão intelectual do povo brasileiro. A ideia recaiu na profissionalização, sobretudo feminina em nível superior, o que segundo Tobias, seria a maneira de acabar com o atraso advindo do desprestigio e preconceito do “sexo frágil” e igualar a capacidade de trabalho da mulher a do homem.

Nesse sentido, sua proposta de instituição educativa baseou-se nos autores Friedrich Adolf Wilhelm Diesterweg, Friedrich Froebel e Johann Heinrich Pestalozzi para quem, de uma maneira geral, a educação deveria primar pela autonomia e atender a todos indistintamente. Nesse sentido, a partir das edições do Jornal “O Industrial”, o qual Tobias dirigiu, é possível entender o peso da cultur

a, da ciência e da técnica em seu pensamento. Isto porque era pelo uso do produto da ciência que se chegaria ao progresso econômico e ao bem estar da sociedade, contrariando os preceitos senhorial e escravocrata. O objetivo de Tobias, segundo os artigos do referido jornal, era que a organização da sociedade se desse a partir das potencialidades e possibilidades do povo e não da exploração deste pelos detentores de capital. Nessa seara ele expõe a sua concepção do direito como produto cultural, da liberdade como alvo da conquista do povo e da educação como meio de ascensão intelectual e econômica. Esse Tobias não foi reeleito e, portanto o que ficou foram ideias desprovidas de práticas, mas reveadoras de atos que foram pensados em prol de um Brasil livre e moderno.

Assim como Tobias Barreto no Brasil, Adolfo Coelho em Portugal deixou clara a sua preferência pela modernização do ensino o concebendo como algo latu que iria além pelo germanismo, sobretudo quando se tratava da educação. Em seu livro “A questão do ensino” Coelho faz uma crítica bastante contunde à educação de Portugal, sobretudo ao ensino superior, o qual depois de um diagnostico com base em princípios modernos de educação e corroborando com algumas críticas externas, dizia está, ao contrário do que se tinha no século XVI, vergonhoso e decrépito. Sobre a universidade, retomando Francisco de Melo Franco, afirmava ser “O Reino da Estupidez”, onde nada se produzia de novo e de útil à ciência. Coelho lamenta que o modelo de Faculdade de Letras seguido por Portugal fosse o francês, considerado “inútil”, “esteril”, “superficial” e não o alemão, cuja cultura, considerava um modelo a ser seguido. Para embasar sua opinião mobilizou o repertório de Ernesto Renan e Eugenio Véron, que consideravam condenado e condenável o ensino oratório

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(praticado por exemplo nas Faculdades de Letras tanto de Paris quanto de Lisboa) e lamentavam não ser o modelo alemão, científico, o implantado.

Coelho não deixa de abordar o atraso da Alemanha no século XVI e o êxito proporcionado pela sua reforma religiosa, o que na sua visão a tirou do estado de um dos povos menos civilizados da Europa e a colocou para o de mais civilizado. À reforma protestante encabeçada por Lutero foi a mola propulsora do seu sucesso intelectual. Na visão de Coelho, foi através da História e da experiência que a Alemanha teve seu alicerce analítico:

[...] a Allemanha transforma-se com rapidez sem exemplo, e apresenta ao mundo depois d’uma épocha de actividade preparatória, e a partir de Lessing e Kant, o movimento d’idéas mais prodigioso que se conhece; revolve o passado, interpretá-o, reata os laços quebrados do parentesco das maiores famílias humanas, discute a razão, analysa o pensamento peça por peça, explora todos os cantos da consciência humana, reconstroe o systema do universo, depois pára na obra, como se tivesse ido muito longe, vê-se só com seu pensamento no meio d’um mundo que ainda não está preparado para receber esse pensamento; desde então compreendo mais a Allemanha; vejo só que ella marcha á conquista e que tem uma força que esmaga. 35

Ainda segundo sua opinião, todas as nações que não aderiram a reforma declinaram, com exceção da França que de forma particular lutou contra o catolicismo. Quanto a Portugal, Coelho se revelava pessimista, pois não via nos indivíduos portugueses, conformados com a “liberdade aparente”, potenciais revolucionários. Um outro traço que o liga a Tobias é a simpatia pela pedagogia de Friedrich Froebel. Tobias o mobilizou quando do projeto da sua escola superior feminina (paternogógio) e Coelho editou uma revista com o nome do Pedagogo alemão, sendo inclusive articulista da sua vida e ideias e entusiasta dos jardins de infância em Portugal. Com tal exemplo busco mostrar a atualidade de Tobias e que a sua visão do mundo intelectual germânico não estava distorcida, mas pari passu a outros pensadores oitocentistas.

Ao analisar a trajetória e a obra de Tobias há que se expor também o quão indissociável estiveram suas ideias da sua ação política, o que não quer dizer que para se entender o/os sentido/s dos seus textos basta associá-lo ao campo da ação ou a seu contexto, mas, também, ao seu “exterior”, às suas condições pragmáticas, bem como ao trabalho de leitura e interpretação de teóricos produzidos por ele. Nesse sentido a relação de Tobias com o espaço público é mais complexa quando analisadas as ideias, nascidas de outro contexto histórico-político-social-cultural e mais simples quando se avalia que a Alemanha vinha se legitimando na medida em que suas ideias, descobertas, interpretações da realidade e teorias, sobretudo no campo do Direito, em que se insurgia contra os ideais católicos de direito natural, ganhavam

35 Coelho, 1872, p. 47

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deptos em diversos países. Tal preferência e filiação insinuam que o pensamento tobiático não foi a busca pura e simples de uma germanomania moderna, mas a tentativa de ampliação do espectro do olhar em prol de uma nação mais digna e forte capaz de assumir as rédeas de seu desenvolvimento, o que, necessariamente, passa pela educação de seu povo. E a Alemanha, para ele, era mais modelar que a França, cujos exemplos eram tão evocados no Brasil dos oitocentos. Por certos muitas foram as críticas que recebeu em funçaõ de suas ideiais, defesas e propostas, mas nada que desmereça a sua função intelectual.

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O RATIO STUDIORUM E A SISTEMÁTICA ESCOLAR MODERNA

Autor: Teresa Maria Rodrigues da Fonseca Rosa Filiação: Instituto da Educação, Universidade de Lisboa

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RESUMO

Falar do Ratio Studiorum é falar de um texto fundador que permitiu o desenvolvimento de um sistema escolar de alcance internacional. O programa combinava os estudos das humanidades com os estudos científicos. Na História da Educação, esta é talvez a primeira vez que se reconhece teoricamente a necessidade de preparar os professores para a sua atividade. Em Portugal, os Jesuítas foram responsáveis pela criação de uma importante rede de Instituições de ensino entre 1540 e 1759. Além dos vários Colégios que os inacianos possuíam desde a sua formação, juntou-se-lhes um centro Universitário com direitos e prerrogativas idênticas às da Universidade do Estado. A importante atividade pedagógica, que desempenhou a Universidade eborense ao longo de dois séculos, no seu ideário, e no seu perfil geral, ofereceu pontos de rutura, projetando-se além-fronteiras. A par de outras Instituições Jesuítas, o ensino das Ciências físico-matemáticas não foi descurado, nem essas matérias desconhecidas, mesmo antes da influência exercida pelos Oratorianos, apesar de várias abordagens acerca da sua contribuição para o atraso da cultura científica em Portugal. O presente estudo, com base em documentos originais, visa aprofundar os moldes em que o ensino e as ciências eram ministrados nessas instituições, contribuído para o debate historiográfico.

PALAVRAS-CHAVE Instituições Inacianas, Ratio Studiorum, Ensino e Ciência.

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INTRODUÇÃO

A Companhia de Jesus fundada sob a égide de Santo Inácio de Loyola e aprovada por Paulo III, a 27 de Setembro de 1540, através da Bula “Regimini Militantis Ecclesiae”, cuja formulação foi reelaborada a 21 de Julho de 1550 pela Bula “Exposcit Debitum” de Júlio III, tinha como objetivos principais: a pregação, a prática da caridade e educação da juventude.

O ideal pedagógico dos primeiros Jesuítas reflete o estilo próprio de Inácio de Loyola. A sua pedagogia nasce, sobretudo, de uma época marcada por acontecimentos profundamente relevantes que a influenciaram. Contudo, na base de todos os princípios inspiradores esteve a fé cristã e a sua visão do mundo e da vida.

A sua originalidade não se encontra apenas numa certa forma de sensibilidade religiosa, mas sim na transformação da sua experiência pessoal numa experiência de ação pedagógica, caracterizada por uma “dimensão mística”. Dirigida para o serviço dos homens numa missão de apostolado, patente não só no livro dos Exercícios Espirituais, mas também nas Constituições da Companhia de Jesus e nas diversas “ordenações de estudos”, anteriores ao texto original e definitivo do “Ratio Studiorum”, de 1599.

Essa pedagogia, não nascendo de um dia para o outro, foi mérito dos primeiros Jesuítas dos séculos (XVI a XVIII), que aproveitaram toda a riqueza cultural do Humanismo, adotando um conjunto de técnicas pedagógicas, que no tempo do seu fundador eram, sem dúvida, das mais avançadas e encontram-se representadas no “Modus Parisiensis”, isto é, na metodologia educativa desenvolvida na Universidade de Paris.

Foi este o seu ponto de partida, para todo o desenvolvimento posterior, com base em experiências pedagógicas diversas que iriam ser codificadas no Ratio Studiorum de 1599, servindo de tronco educativo a todos os Colégios inacianos. Continham toda uma série de “regras” autênticas, diretrizes de caráter prático, que se referiam a várias questões diferentes, tais como: os aspetos da formação e distribuição de professores, os programas e métodos de ensino. Nelas se dão igualmente indicações sobre o comportamento dos alunos.

O sistema pedagógico permitia, ainda, uma sólida formação em letras humanas, seguida de estudos de filosofia, que culminava nos estudos teológicos.

Tomada a decisão de incluir a instrução como um dos meios mais eficazes para atingir os objetivos a que a Companhia se propunha, tornou-se necessário elaborar um documento que orientasse essa atividade, e que ficasse consagrada na lei fundamental: as suas “Constituições”. Na parte IV, escrita em dois momentos distintos, por Inácio de Loyola, desde 1549 até à data da sua morte em 1556, encontramos o mais importante do seu pensamento sobre educação. Composta por dezassete capítulos e um prólogo intitulado “Como instruir nas letras e em outros meios de ajudar o próximo os que permanecem na Companhia” (Abranches, 1975); os restantes capítulos são dedicados às “Universidades da Companhia”. Nela encontramos os principais aspetos pedagógicos que estão na origem da

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regulamentação posterior, sendo toda dedicada à educação e à formação dos Jesuítas formados e em formação, e referente à orientação de caráter metodológico, revelando o interesse que Inácio de Loyola tinha pelo apostolado da educação, como se constata no 7.º capítulo, onde o fundador reflete essa mesma intenção:

Nas aulas siga-se um método tal que os que vêm de fora sejam bem instruídos na doutrina cristã e procure-se que se confessem uma vez por mês, se for possível e assistam frequentemente às pregações. Haja enfim a preocupação de, com a instrução, lhes incutir hábitos dignos de cristão (Abranches, 1975, p.123).68

Convém relembrar que, para Inácio, todos os conhecimentos deveriam convergir e ser integrados no saber teológico, que era a meta suprema de todos os saberes.

Nas palavras de Rosa (2005) “faltam nas Constituições, nomeadamente na parte IV, aspetos fundamentais de um documento pedagógico, como a formulação de objetivos gerais e específicos da educação” (p. 338).

Desta forma, esta parte IV não se assumiu como algo definitivo. De fato, Inácio de Loyola teve a intenção de promover a redação de documentos pedagógicos mais alargados, refletindo a necessidade de unificar os princípios comuns utilizados nos vários Colégios da Companhia.

Apesar disso, as Constituições estabelecem as bases das grandes linhas orientadoras do programa educativo nos diversos Ratio, até à versão definitiva de 1599, tal como afirma Lopes (2002), “a intenção inaciana, ao escrever estes breves dezassete capítulos […] era a de dar uma semente para futuros documentos mais específicos, especialmente o Ratio Studiorum” (p.99).

O legislador ali vai escrevendo o modo de aceitar as fundações dos Colégios; o modo de se comportarem os escolásticos; os estudos que devem seguir; a organização das diversas classes e faculdades; assim como, a educação espiritual que se devem dar aos alunos. Contudo, falar do Ratio Studiorum é falar de um texto fundador que permitiu o desenvolvimento de um sistema escolar de alcance internacional.

A rede de Colégios, que os Jesuítas criaram em toda a Europa, constituiu efetivamente um sistema escolar dotado de um plano de estudos e regulamentos próprios, cuja experiência se deve a uma reflexão prévia, que acompanhou anos de prática, em todas as províncias. Depois de muitas reformulações feitas, ao longo de meio século, virá a ser finalmente aprovado em 1599, com o título de “Ratio atque Institutio Studiorum”.

1. O RATIO STUDIORUM DE 1599

68 Constituições da Companhia de Jesus, art. 307.

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No séc. XVI, foram elaborados cinco Ratio que merecem ser destacados: os de Nadal, os de Coudret, os de Ledesma e Borja, e o definitivo de Aquaviva (quarto Prepósito Geral da Companhia, que unificou e promulgou oficialmente o Ratio atque Institutio Studiorum de 1599). Este texto foi publicado em Nápoles, em 8 de Janeiro de 1599 (Rosa, 2015, p. 75).

Com o crescente aumento do número de Colégios, tornava-se premente que a Companhia de Jesus tivesse, na medida do possível, uma ordem de estudos comuns. Na procura de um regulamento universal, salientam-se diversos companheiros de Inácio de Loyola, como o seu secretário, o Padre Polanco. Este, estudando os programas das Universidades de Valência, Salamanca, Alcalá, Coimbra, Paris, Lovaina, Colónia, Bolonha e Pádua, foi o redator das orientações dos estudos, utilizados nos primeiros Colégios.

A outro Jesuíta, Jerónimo de Nadal, que exerceu forte influência na ordem das Constituições dos estudos, cabe o mérito de redigir um primeiro Ratio, em 1548, com a autorização de Inácio de Loyola. A este Ratio deu-se o nome de “Studiis Societatis Jesu et Ordo Studiorum” e é considerado como o núcleo do futuro Ratio de Aquaviva de 1599 (Rosa, 2005, p. 372). Nadal unificou também todas as iniciativas dispersas dos Colégios de Espanha, Portugal, Itália, França e Alemanha e, para tal, muito contribuíram as suas visitas como comissário da Companhia.

A primeira originalidade do programa do Ratio consistia, por um lado, no fato de se destinar simultaneamente à formação de religiosos e de leigos, por outro, no fato de incluir, além da filosofia e da teologia, o estudo sistemático das humanidades: as línguas a literatura, a retórica, a história, o teatro escolar, sendo este, certamente, o maior distintivo da proposta pedagógica da Companhia de Jesus. O Ratio foi, tal como o próprio nome indica, a ordenação ou sistematização dos estudos, a primeira que se fez no mundo.

Assim, a palavra Ratio é entendida como sinónimo de “Ordo”, um conjunto de regras ordenadas segundo um determinado projeto educativo. Nesta perspetiva, o Ratio mais que um conjunto de princípios, pode ser considerado um verdadeiro sistema de ensino/aprendizagem. Não sendo um tratado, mas um programa de “conteúdo”, o Ratio adquiriu um caráter prático que possibilitava, a todos os encarregados da instrução, o caminho mais indicado para atingirem os seus objetivos.

Qualquer que fosse o curso a seguir, o programa de estudos do Ratio combinava os estudos das humanidades com os estudos científicos. Assim se devia formar homens que soubessem pensar e escrever; com elevados conhecimentos de literatura, de história, de geografia e de artes; com um profundo entendimento de matemática, de astronomia e as restantes ciências naturais; com desenvolvido sentido crítico, apurado pela retórica e pela filosofia. Uma sólida instrução literária era vista como um contributo indispensável para a educação do homem de bem. A todos os professores, o Ratio tornava presente que a principal finalidade dos estudos era o maior “serviço” e que todos os estudos deviam concorrer para esse fim, unir a “virtude às letras”.

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A preocupação pelo método leva os autores do Ratio a prestarem, pela primeira vez, uma cuidadosa atenção à preparação dos professores, cientes de que, para favorecer o estudo das letras, era necessário favorecer os seus mestres, começando pelas qualificações, e assegurando as suas boas disposições e compromisso pessoal na missão específica do ensino (Miranda, 2009, p. 28).

Na história da educação, esta é talvez a primeira vez que se reconhece teoricamente a necessidade de preparar os professores para a sua atividade.

A figura do professor, deveria ser a de um homem sabedor, ter método e possuir qualidades morais e pedagógicas necessárias ao elevado ministério a desempenhar. Competia-lhe ser um educador generoso, integrado com os alunos, num verdadeiro espírito familiar.

Para que se atingisse este nível ambicioso de preparação e formação dos futuros professores Jesuítas, era necessário um intenso treino e apoio contínuo na sua formação, uma vez que procuravam fazer deles verdadeiros Mestres dedicados a instrução.

Era, pois, evidente que fossem dadas ordens ao Provincial para que, na sua Província, se fundassem “seminários de formação de professores”.

a) Linhas Gerais do Currículo Escolar e Método no Ratio de 1599

No Ratio vêm delineadas, em forma de breves “regras”, as funções dos responsáveis do Colégio a diversos níveis (Provincial, Reitor, Prefeito dos Estudos e Professores); a articulação do currículo formativo; as propostas no respeitante a horários; os programas de diversas lições: os métodos educativos e didáticos.

Inicialmente, não se admitia o grau elementar ou de primeiras letras, devido à falta de professores; esta condição, contudo, veio a sofrer alterações, em virtude da necessidade de escolas, sobretudo nas pequenas povoações (Monteiro, 1991, p.49).

Nos Colégios da Companhia lecionavam-se, pois, os níveis de ensino médio e superior, e o latim foi exigido em todos os cursos.

A estrutura dos curricula, estipulada no Ratio, referia-se a três cursos. O curso de Letras, ao qual corresponde o primeiro ciclo, constituía os estudos inferiores e organizava-se do seguinte modo: três anos de gramática (classes ínfima, média e suprema), um ano de humanidades e mais um de retórica. Tinha a duração de 10 anos. A finalidade pretendida no curso de Letras era a aquisição de uma expressão oral e escrita correta e erudita, tudo porém em língua latina.

Cada classe, que era anual, tinha um professor próprio, com aulas diárias, que inicialmente eram de três horas, passando depois a duas horas e meia. A seguir, ensinava-se humanidades com preleções diárias de Cícero e estudos de textos de vários autores. A aula de retórica tinha como objetivo a formação de perfeitos oradores, assim como, a preparação na arte da poesia.

O método de ensino seguido no curso de Letras, exigia uma grande preparação dos professores e também um grande esforço de memória por parte dos alunos, que

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tinham de decorar os conteúdos estudados em cada aula para os utilizarem na hora seguinte.

Ao curso de Letras, seguia-se o curso de Filosofia ou Artes. A duração era de três anos, com seis horas de aulas diárias. As matérias abrangidas eram a dialética, a lógica, a física e a metafísica, sendo Aristóteles o principal autor estudado. Este curso visava a formação científica do aluno, por um lado, e encaminhava-se para um fim moral e religioso, por outro, tal como pretendia Inácio de Loyola. E, por último, o curso de Teologia que constituía o mais elevado grau de preparação alcançado nas Instituições da Companhia de Jesus: “as ciências são um meio e a teologia o principal”, escrevia Loyola nas suas Constituições (Rosa, 2013, p. 35). Tinha a duração de quatro anos: o hebraico era estudado durante um ano, a Sagrada escritura durante dois anos e a Teologia moral durante dois anos.

Aspeto fundamental do método de ensino dos Jesuítas era a preleção. Segundo França (1952), “a preleção é o centro de gravidade do sistema didático do Ratio” (p. 56). Consistia numa variedade de métodos utilizados pelo professor para as suas explicações, a sua finalidade era mais formativa do que informativa, visava desenvolver mais o espírito. Pressupunha uma excelente preparação destes.

Segundo as orientações do Ratio, o Mestre, que ensinava, devia assumir antes de mais, o papel de guia, orientador e estimulador dos alunos. Enquanto lente, cabia-lhe o protagonismo no ato da preleção que, juntamente com a repetição e aplicação, por parte dos alunos, constituíam os três momentos principais da atuação escolar.

Convém anotar ainda que nas aulas o Ratio requeria também aos alunos diligência, assiduidade, e cuidadosa preparação prévia das aulas e sua posterior memorização, a solicitação ao professor para que explicasse o que não fora compreendido, a anotação de tudo quanto se revelar oportuno para ajudar à ulterior memorização da matéria lecionada.

Uma outra atividade pedagógica muito estimada pelos inacianos era o Teatro escolar. Os Jesuítas privilegiaram nos seus Colégios, a atividade teatral e as disputas literárias como recursos essenciais na orientação pedagógica dos seus alunos. Utilizavam a cena como o prolongamento das suas aulas, onde os alunos do curso de Letras eram quase sempre os atores, inspirados nos dramas ou em comédias, extraídas de autores clássicos, da Bíblia e até mesmo da experiência da vida quotidiana (Rosa, 2005, pp.606-613). Este foi utilizado pelos Padres Jesuítas, como um dos elementos mais ativos do seu programa educativo.

2. O ESTABELECIMENTO DA COMPANHIA DE JESUS EM

PORTUGAL E OS COLÉGIOS CRIADOS ATÉ MEADOS DO SÉCULO XVIII

Portugal foi o primeiro reino da cristandade a solicitar os serviços da Companhia de Jesus. A procura de religiosos bem preparados, para realizar o programa de doutrinação cristã, que coexistia com o projeto económico da expansão portuguesa,

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levou D. João III a acolher em Portugal, no ano de 1540, a nova Ordem Inaciana recém-fundada que rapidamente ganhou grande estima por parte do monarca. Desta forma, não só lhes concedeu importantes meios materiais e financiamento económico, assim como a proteção política e recomendação diplomática, abrindo-lhes as “portas ao mundo”, através do vasto império ultramarino português.

A ação catequizadora da Companhia de Jesus estava a transformar-se num forte apelo ao revigoramento espiritual da população, quer pela pregação quer por meio da confissão, de acordo com uma tendência geral do catolicismo tridentino, donde resultou um aumento da devoção das camadas jovens. Rapidamente os membros do grupo fundador desta nova Ordem ganharam a perceção de que a aposta na educação seria um grande meio para transformar a velha sociedade cristã, incutindo-lhes uma nova consciência. Pelo ensino, a Companhia acreditava transformar a sociedade à luz do seu ideário “reformista católico” e, ao mesmo tempo, assegurar a sua afirmação enquanto Ordem.

Desta forma, o êxito da atuação dos Jesuítas, nos locais onde se iam instalando, fê-los considerar a conveniência de eles próprios fundarem as suas escolas públicas, onde fosse permitida a frequência de estudantes leigos, nas quais eles, Jesuítas, fossem os mestres. Prática que veio a constituir uma das principais marcas da identidade jesuítica.

Ao mesmo tempo, este investimento na educação permitiu recrutar e formar, qualificadamente, missionários e professores das novas gerações. Porém a obra educativa dos Jesuítas situava-se especialmente nos níveis de ensino médio e superior. Embora se mostrassem reticentes, no que respeita ao ensino das primeiras letras, existem notícias de “mestres de ler e escrever” em muitos Colégios dirigidos por inacianos. Tais mestres ensinavam a “ler escrever e contar”, a doutrina cristã e o canto.

Esta nova atividade foi-se desenvolvendo, desde os anos quarenta do século XVI até à sua extinção em 1759. O número de Colégios foi aumentando invulgarmente e veio a cobrir todo o território nacional e ilhas adjacentes.

O percurso na criação dos seus Colégios, privilegiou uma implementação essencialmente urbana, nos aglomerados mais populosos das principais cidades. Esta dimensão de urbanidade, que caracterizou de forma distinta a atividade dos Jesuítas, não deixou de revelar um enlace estratégico que esta nova Ordem assumiu, para responder aos desafios da modernidade. Realcemos ainda, que a Companhia de Jesus lançou, em Portugal, as bases para a criação de uma autêntica rede de Colégios de Norte a Sul do País, não deixando de se estender às ilhas atlânticas.

Com efeito, logo no ano de 1542, foi fundada em Lisboa a primeira casa que os Jesuítas possuíram como própria, no mundo: a comunidade do Mosteiro de Santo Antão-o-Velho. No mesmo ano, foi instituída, em Coimbra, com o nome de Colégio de Jesus a primeira casa para a formação de jovens jesuítas. Em Évora, os religiosos da Companhia estabeleceram-se, no ano de 1551. Nesse ano começou de fato a funcionar o Colégio do Espírito Santo, mas apenas como casa de formação para Jesuítas e sacerdotes.

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O ensino público teve início em 1553, no Colégio de Santo Antão em Lisboa e no mesmo ano em Évora, no Colégio do Espírito Santo, que foi elevado a Universidade em 1559.

No ano de 1555, D. João III entregou ao Provincial da Companhia de Jesus, o Colégio Real das Artes que tinha sido instituído pelo monarca em 16 de Novembro de 1547. Era destinado a administrar o ensino preparatório de ingresso na Universidade de Coimbra e a licenciatura em Artes e bacharelato em Filosofia. Notemos que, ao longo destes séculos e até à sua expulsão de Portugal, em 1759, nem sempre foi pacífica a relação entre a Universidade de Coimbra e o Colégio das Artes. Este fazia parte da Universidade, mas não estava sob a jurisdição da mesma. Os mestres e alunos do Colégio tinham as mesmas prerrogativas que os lentes e estudantes das “escolas maiores”, sendo inclusivamente autónomo na organização dos exames dos bacharéis e licenciados69. Outras fundações se seguiram.

No século XVI foram fundados: o Colégio de São Paulo fundado em 1560, em Braga; o Colégio de São Lourenço fundado em 1560, no Porto; o Colégio do Santo Nome de Jesus fundado em 1561, em Bragança; o Colégio de São Manços dos Porcionistas fundado em 1563, em Évora; o Real Colégio São João Evangelista fundado em 1570, no Funchal; o Real Colégio da Ascensão de Cristo fundado em 1570, em Angra do Heroísmo; o Colégio da Purificação de Nossa Senhora fundado em 1576, em Évora; o Colégio da Madre de Deus fundado em 1583, em Évora; o Colégio de São Patrício fundado em 1590, em Lisboa; a Residência de São Miguel fundada em 1591, em Ponta Delgada; o Colégio de São Tiago fundado em 1599, em Faro. (Rosa, 2005, pp. 91-92)

No século XVII foram fundados: o Colégio de S. Sebastião fundado em 1605, em Portalegre; o Colégio de Todos os Santos, em Ponta Delgada e o Colégio de Nossa Senhora da Conceição, em Santarém, foram fundados em 1621; o Colégio de São Tiago fundado em 1644, em Elvas; o Colégio de São Francisco Xavier fundado em 1652, no Faial; o Colégio de São Francisco Xavier fundado em 1655, em Setúbal; o Colégio de São Francisco Xavier fundado em 1660, em Portimão; a Escola da vila de Pernes fundada em 1662 por uma fidalga, D. Ana da Silva, que deixou uma renda para se abrir uma escola de latim70; o Colégio São Francisco Xavier fundado em 1670, em Beja; o Colégio São Francisco Xavier fundado em 1679, em Lisboa; a Residência da Santíssima Trindade fundada em 1693, em Gouveia. No século XVIII foram fundados: o Colégio e Noviciado de São Francisco Xavier, em Arroios – Lisboa, no ano de 1705; a Escola de Nossa Senhora da Lapa, em Lisboa, em 1714; o Seminário dos Santos Réis, em Vila Viçosa e o Seminário e Noviciado das Missões, em Lisboa ambos em 1735 e, o Colégio de Santíssima Trindade em Gouveia, em 1739. (Rosa, 2005, pp. 91-92)

69 ARSI, Lus. Nº. 60, Epistolae Lusitaniae (1556-1560), fls. 46v.-47.

70 Com obrigação de uma classe de gramática latina e outra de ler e escrever. Cf. ANTT, Cartório Jesuítico, mç 72, doc. 10.

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a) O Ensino Científico nas Aulas Jesuítas

Apesar do eixo central da formação inaciana ter sido constituído pelas humanidades e, sobretudo, pela filosofia e pela teologia, as ciências naturais e as matemáticas também ocuparam um lugar de destaque nos seus Colégios e Universidades. Refere Carvalho (2011), que onde a Companhia de Jesus se “mostrou mais progressistas no panorama pedagógico no séc. XVII, em Portugal, foi no ensino da Matemática” (p. 378). Este interesse no ensino das ciências e da matemática, em particular, remonta à fundação dos primeiros Colégios da Companhia. Em 1548, Jerónimo Nadal estabeleceu o ensino da matemática no Colégio de Messina durante dois anos. Após a publicação do Ratio Studiorum de 1599, garantiu-se o ensino e difusão dessas disciplinas na maior parte dos Colégios Jesuítas.

Em Portugal, podemos destacar a importância do Colégio de Santo Antão em Lisboa, do Colégio das Artes em Coimbra e da Universidade em Évora, no ensino destas ciências.

No Colégio de Santo Antão, funcionou desde a sua fundação até ao século XVIII a “Aula da Esfera”, tendo sido a mais importante instituição de ensino e prática científica do período moderno. A única que assegurou ininterruptamente o ensino das ciências matemáticas até à expulsão dos Jesuítas em 1759. Foi o principal centro de técnicos e especialistas na arte de navegar, da cartografia, da engenharia militar. Para além da matemática aplicada à navegação, aí se estudava também astronomia, astrologia, geometria, aritmética, arquitetura, geografia, hidrografia e ótica. Além disso, aí se construíram instrumentos científicos e máquinas simples. Acima de tudo, a “Aula da Esfera” foi ponto de entrada em Portugal de muitas novidades científicas. Refere Leitão (2008) que “nenhuma outra instituição de ensino científico foi tão internacional” (p. 20).

Em Dezembro de 1573, o Cardeal Infante D. Henrique assumiu o papel de fundador do Colégio, ao assegurar da parte do rei D. Sebastião, seu sobrinho, uma renda anual perpétua para a Companhia de Jesus. Mas o Cardeal impunha, como condição que se lesse uma lição de matemática. Assim o podemos apurar através de uma carta epistolar do Arquivo Romano71 :

“[…] es saber que se acrescentassem las classes de latim que fuessem necessárias que seram hasta una o dos, y que se leysse una lecion de mathematica y um curso de artes de três em três anos, y com esto huã dotacion perpetua de la renta ya sabida del derecho de las especiarias” (fl. 272).

71 ARSI, Lus. 65, Epistolae Lusitaniae (1572-1573), fl. 272.

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No Arquivo Nacional da Torre do Tombo, podemos destacar ainda, um documento72 sobre uma visita efetuada pelo Padre Jerónimo de Nadal, à Província Portuguesa nos finais do séc. XVI, onde terá deixado em Coimbra as seguintes orientações a respeito do estudo da matemática:

“[…] os Irmãos poderiam ouvir em Casa: […] he muito proveitoso que os Mestres da humanidade e alguns dos estudantes mais aproveitados saibão a Esfera e alguã cousa de Cosmographia, e asi mesmo tenhão alguns extractos de cousas de moedas antíguas, e pedras preciosas e animaes e ervas e cousas semelhantes […]” (fl. 20).

Com efeito, sabe-se que foi o Padre João Delgado que fundou, em 1590, a aula pública da “Esfera” no Colégio de Santo Antão. A partir desta data, leciona em Coimbra, primeiro no Colégio de Jesus, um curso privado, depois no Colégio de Santo Antão, atividade que manteve durante largos anos.

Podemos afirmar também, que no Colégio de Santo Antão foi o Padre Francisco Rodrigues ainda em 1553, que iniciou o ensino da matemática, mas apenas com caráter privado, ou seja, para a educação e instrução dos novos membros da Companhia (Franco, 1726, p. 36).

Durante o tempo em que funcionou a “Aula da Esfera”, teve mais de três dezenas de professores, dos quais cerca de um terço foram estrangeiros, muitos deles provenientes de alguns dos mais célebres Colégios Europeus (Leitão, 2008, p. 20). Estes Jesuítas de renome, garantiram a lecionação da cadeira de matemática nos Colégios portugueses, ao longo do século XVII, principalmente, em períodos de menor fulgor devido ao debate epistemológico que se verificava, sobre o estatuto da matemática.

No Arquivo Romano, através da análise dos Catálogos da Província Lusitana, foi possível encontrar alguns professores de matemática que lecionaram nas instituições inacianas em Portugal, entre os séculos XVI e XVIII.

Assim, no séc. XVI73 podemos encontrar, em Coimbra: João Delgado (1587 a 1590) e Martim Soares (1593 a 1597). Em Lisboa, no Colégio de Santo Antão: João Delgado (1590 a 1593 e em 1597) e António Leitão (1594). E na Universidade de Évora, encontramos Francisco da Costa em (1597). No século XVII 74 podemos destacar em Coimbra: João Pinto do Couto (1606 e 1611); Diogo Seco (1606); João Delgado (1611); Francisco Machado (1625) e Joannnes Riston (1649). Em Lisboa, no Colégio de Santo Antão: Cristóvão Grienberguer (1601 a 1602); Francisco da Costa (1603 a 1604); João Delgado (1605 a 1608); Jorge de Campos, Sebastião Dias e Manuel do Couto (1611 a 1615); João Paulo Lembo (1617); Cristovão Gal (1621 a

72 ANTT, Manuscrito da Livraria, Nº. 1838, fl. 20.

73 ARSI, Lus. Nº. 39, Catalogus Brevis (1579-1687); Lus Nº. 44 I, Catalogus Triennales (1587-1611).

74 ARSI, Lus. Nº. 39, Catalogus Brevis (1579-1687); Lus. Nº. 44 I, Catalogus Triennales (1587-1611); Lus Nº. 45, Catalogus Triennales (1649-1676).

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1625); Christoforo Borri (1632) e Georgius Gellarte (1669 a 1693), entre outros. Na Universidade de Évora, apenas encontramos referência a André Mendes nos anos de (1669 a 1672).

Na Universidade de Évora, e principalmente no Colégio das Artes em Coimbra, a matemática parece ter sido ministrada somente durante alguns períodos de tempo, pelo menos até à reforma de ensino do Geral da Companhia de Jesus Tirso Gonzalez, entre 1692 e 1702. Apenas se manteve com regularidade no Colégio de Santo Antão, em Lisboa.

Importa ainda destacar, a importante atividade pedagógica que desempenhou a Universidade eborense. No seu ideário, e no seu perfil geral, ofereceu pontos de rutura através dos seus lentes, atingindo uma posição de relevo na história da cultura portuguesa.

No início do séc. XVIII, a pedagogia incorporou a abertura à ciência experimental e à matemática. Desde o ano de 1669, é instituída uma cadeira de matemática, primeiro para estudantes internos, e a partir de 1700, por impulso do Prepósito Geral, tornou-se pública. Chegou a ter quatro e cinco classes de matemática, durante alguns anos de lecionação (Rosa, 2013, p. 82).

Importa mencionar ainda, o nome de alguns docentes, que se destacaram na lecionação da matemática, na primeira metade do séc. XVIII, nestas instituições inacianas. Em Coimbra: Inácio Correia (1705); Inácio Vieira (1720); Eusébio da Veiga (1747 a 1749); António de Brito (1754). No Colégio de Santo Antão: Georgius Gebarte (1700 e 1717); Ludovico Gonzaga (1705 e 1726); Emanuel de Campos (1720); Dominicus Capassi (1726). E na Universidade de Évora: Joannes Hildret (1700); João Garção (1711 a 1720 e 1726); Sebastião de Abreu (1749 e 1754), entre outros75.

Na primeira metade do século XVIII, a cultura e o ensino continuou sob o domínio quase completo dos inacianos. A preponderância no ensino, adquirida durante os séculos XVI e XVII, acabou por entrar em conflito com um conjunto de homens que, através de perspetivas culturais diferentes, lhes criticavam os métodos pedagógicos e procuravam a mudança, quer das matérias a ensinar quer da mentalidade da “classe” dominante.

Em Portugal, os Jesuítas não desconheciam nem eram alheios às novidades. A sua atitude face a esses novos ideias e tendência era, em meados do século XVIII a de “simpatizantes inteligentes e de ativos colaboradores”, como sublinha Gomes (1944, p. 378). Esta opinião, é partilhada também por Santos (1945), quando refere que

“o cultivo das ciências entre os inacianos estava em franco progresso desde o início do mesmo século, e este desenvolvimento, que também se refletiu na Filosofia, é anterior à publicação do Verdadeiro Método de Estudar e à influência exercida pelos Oratorianos” (p. 28).

75 Idem, ibidem.

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Não obstante, estas posições não foram partilhadas por diversos autores da corrente contrária, que defendiam que os Jesuítas eram os principais responsáveis pelo atraso cultural e científico.

Assim, foi possível concluir: A rápida expansão da atividade escolar Jesuíta, ditou a necessidade de um

adequado sistema de governo. Todos os Colégios gozavam do mesmo plano de estudos. Passo a passo, foram-se colocando os fundamentos da moderna instituição escolar.

Nos finais do séc. XVII, os estudos matemáticos foram reorganizados em Portugal. Posteriormente caberia ao Provincial, a criação de uma especialização nessa área.

De fato, o movimento de renovação a nível científico, na primeira metade do séc. XVIII, estava a acontecer nas escolas inacianas. Vinha já do século anterior.

Com efeito, alguns Jesuítas em Portugal revelaram entusiasmo, abertura, e apelaram para a urgência de uma renovação em alguns campos; outros resistiram a essa viragem.

Também se deve registar as tentativas em alguns Colégios, no sentido de se adotar os novos métodos e incutir nos seus compêndios uma atualização com novos conhecimentos.

BIBLIOGRAFIA

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ID: 115

A POPULAÇÃO NEGRA NO ENSINO E NA PESQUISA

EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NO BRASIL Autor: Marcus Vinícius Fonseca Filiação: Universidade Federal de Ouro Preto

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RESUMO

A historiografia construiu um sólido percurso de problematização de suas formas de tratamento em relação à população negra. Esse processo resultou na produção de uma superação das narrativas que desconsidaravam os negros como um sujeito. Este movimento influenciou os procedimentos de escrita da história da educação que também passou questionar suas formas de representação dos negros. Atualmente, encontramos um investimento em pesquisas históricas que procuram reinterpretar os processos educacionais que envolveram a população negra. Isso tem possibilitado o surgimento de narrativas que colocam em primeiro plano as experiências educacionais que envolveram os negros em diferentes momentos da história. Mas, ao mesmo tempo em que encontramos um movimento de pesquisa que amplia a visão em relação à educação dos negros, encontramos também uma reafirmação dos modelos explicativos que os reduziram à escravidão. Neste texto problematizaremos algumas formas de representação dos negros na historiografia educacional brasileira procurando demonstrar os procedimentos de construção das interpretações que os desconsideraram como sujeitos, sobretudo através da negação de sua relação com os espaços escolares. Para realizar esta análise utilizaremos como referência os manuais utilizados para o ensino de história da educação que são um dos instrumentos mais comuns de difusão de ideias no campo educacional.

PALAVRAS CHAVES:

Negros – Historiografia Educacional – Ensino

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INTRODUÇÃO

A historiografia brasileira vem problematizando suas formas de abordagem em relação à população negra promovendo, com isso, uma contestação do padrão de tratamento deste segmento em suas narrativas. Este processo foi construído a partir da crítica a um padrão de abordagem que teve sua origem nas interpretações relativas à sociedade escravista, cujo a principal característica era a negação dos negros como sujeitos:

“O negro foi frequentemente associado na historiografia brasileira à condição social do escravo... para a historiografia tradicional, este binômio (negro-escravo) significa um ser economicamente ativo, mas submetido ao sistema escravista, no qual as possibilidades de tornar-se sujeito histórico, tanto no sentido coletivo como particular do termo, foram quase nulas”. (Correa, 2000, p. 87)

Na historiografia brasileira negros e escravos eram compreendidos como sinônimos. Isso resultou na construção de concepções que reduziram os membros deste grupo à condição de objetos, ou seja, indivíduos em situação de absoluta dependência, sem nenhuma capacidade de ação dentro da sociedade escravista.

Estas abordagens enfrentam um movimento de contestação que vem sendo construído a partir de interpretações que procuram recuperar a subjetividade dos negros – seja na condição de livres ou de escravos. Esta mudança tem possibilitado a descrição de um quadro diferente da ação dos membros deste grupo e de suas formas de inserção no processo de constituição da sociedade brasileira.

Este movimento influenciou os procedimentos de escrita da história da educação que também passou questionar as formas tradicionais de representação dos negros em suas interpretações dos processos educacionais. Atualmente, encontramos um investimento na produção de pesquisas históricas que procuram reinterpretar os processos educacionais que envolveram a população negra. Isso tem possibilitado o surgimento de pesquisas que colocam em primeiro plano as experiências que envolveram os negros em diferentes momentos da história.

No entanto, ao mesmo tempo em que encontramos um movimento que amplia a visão em relação à educação da população negra, encontramos também uma reafirmação dos modelos explicativos que reduziram os negros à escravidão.

Neste texto problematizaremos algumas formas de representação dos negros na historiografia educacional brasileira procurando demonstrar os procedimentos de construção das interpretações que os desconsideraram como sujeitos, sobretudo através da permanente negação de sua relação com os espaços escolares.

Para realizar esta análise utilizaremos como referência um dos instrumentos mais comuns no processo de difusão de ideias no campo educacional: os manuais utilizados para o ensino da disciplina de história da educação. Através da análise

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deste material tentaremos demonstrar a forma recorrente de manifestação das ideias que excluíram os negros de uma relação com os processos formais de educação. Para isso, selecionamos manuais que estão ligados às três correntes que são admitidas como constitutivas do movimento de construção da historiografia educacional brasileira: tradicional, marxista e aquela que se estabeleceu mais recentemente a partir dos aportes teóricos da história cultural. Procuramos selecionar obras que são reconhecidas como representativas do padrão de narrativa de cada uma destas correntes para, com isso, analisar as formas recorrentes de estigmatização e exclusão dos negros da história da educação brasileira.

O NEGRO NAS ABORDAGENS DA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO TRADICIONAL

Uma das formas mais usuais do ensino da disciplina de história da educação ocorre através de obras organizadas na forma de manuais. Os manuais de história da educação são utilizados desde os anos de 1930 quando a disciplina foi definida como um dos conteúdos para a formação de professores. Este tipo de produção se caracteriza por sua finalidade didática, tendo como objetivo o tratamento da educação a partir de uma descrição que pretende demarcar suas linhas de desenvolvimento ao longo da história. Inicialmente, tratavam apenas da história geral da educação, mas foram progressivamente se especializando passando também a conferir destaque a história da educação brasileira (Warde e Carvalho, 2000).

Portanto, para compreender a forma como os negros foram incorporados a este tipo de produção devemos ter como referência as obras produzidas a partir dos anos de 1970, pois, é neste período que aparece com maior frequência publicações que passaram a abordar o desenvolvimento histórico da educação no Brasil.

É exatamente dentro deste período que encontramos um dos manuais característico do ensino da disciplina de história da educação: História da educação brasileira, de José Antônio Tobias, publicado pela primeira vez em 1972.

Este livro tem todas as características dos manuais que foram construídos como suporte para o ensino de história da educação. Trata-se de uma obra construída com finalidades didáticas, onde encontramos os temas mais comuns da historia da educação brasileira - dos jesuítas, no século XVI, até as experiências educacionais do século XX.

Neste livro encontramos um tópico voltado exclusivamente para o tratamento da educação dos negros. Isso se constitui como uma característica singular desta obra, pois esse é um tema que com pouquíssima frequência aparecia de forma explícita nas publicações de história da educação. Contudo, o assunto ocupa apenas três da mais de quinhentas páginas que compõe o livro, nelas encontramos basicamente a seguinte afirmação:

“O negro era o escravo e, para tal fim, chegou ele no Brasil. O jesuíta foi contra a escravidão, mas não pôde vencer a sociedade da Colônia e da Metrópole que,

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na escravidão, baseavam sua lavoura e economia. Por isso, o negro jamais pôde ir a escola. Com dificuldade, conseguiam os missionários que, aos domingos, pudessem os escravos assistir à missa, rezada na capela dos engenhos ou em outro lugar (grifo adicionado).” (Tobias, 1972, p. 97)

Depois desta afirmação em que a escravidão não é minimamente problematizada, e é reduzida a um conjunto de práticas que não se diferenciam no tempo e nem tampouco no espaço, o autor avança em direção ao século XIX afirmando que: “mesmo depois da proclamação da independência e mesmo com negros libertos, não lhes será, muitas vezes em mais de uma província, permitido frequentar escolas” (Tobias, 1972, p. 97).

Esta obra foi reeditada em 1986 e, nesta nova edição, o autor acrescentou as províncias em que, segundo ele, era proibido aos negros frequentar escolas: Rio de Janeiro, Alagoas, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Acrescentou também a fonte de pesquisa de onde retirou estas informações: o livro A Instrução e as províncias: subsídios para a história da educação (1834-1889), de Primitivo Moacyr.

Ao consultar o livro utilizado como fonte de pesquisa por Tobias (1972/1986), constatamos que sua interpretação operou a partir de uma série de generalizações que são reveladoras da forma como a educação dos negros foi incorporada à história da educação brasileira.

No Rio Grande do Sul, encontramos indícios que sugerem que havia o algum tipo de impedimento para os negros frequentarem escolas. No livro de Primitivo Moacyr – que basicamente limita-se a descrever documentos oficiais relativos à instrução - encontramos a seguinte determinação em uma lei de 1837 da província de São Pedro do Rio Grande do Sul: “são proibidos de frequentar as escolas públicas: 1o. as pessoas que padecerem de moléstias contagiosas; 2º Os escravos e pretos ainda que sejam livres ou libertos.” (Moacyr, 1940, p. 431)

A primeira generalização que constatamos no livro de José Antônio Tobias foi estender para várias províncias do país uma determinação que se referia ao Rio Grande do Sul ignorando as diferença regionais que separavam as diversas provinciais do Império. Isto fica claro quando contrapomos a situação do Rio Grande do Sul com as outras províncias citadas pelo próprio Tobias (1986).

Em Minas Gerais, a lei proibia a frequência de escravos às escolas públicas e não de pretos livres, ou libertos. Isso fica claro na lei que, em 1835, estabeleceu a obrigatoriedade escolar em Minas: “somente as pessoas livres poderão frequentar as escolas públicas”. (Moacyr, 1940, p. 66)

A diferença entre o que determinou a província de Minas Gerais e a do Rio Grande do Sul está longe de ser desprezível. É a diferença que, no século XIX, correspondia aos modos de existência que são a chave para o entendimento da sociedade daquele período, ou seja, a condição de livre e a de escravo. No entanto, ao comparar as duas províncias a narrativa construída por Tobias (1972-1986) nivelou as duas condições, como se o que foi determinado para o Rio Grande do Sul fosse tido como válido em outras províncias.

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Em relação à província de Alagoas, não encontramos no livro de Moacyr (1940) qualquer referência em relação à impossibilidade dos negros frequentarem escolas. O que encontramos foi uma fala do Presidente da Província afirmando sobre a inconveniência de educar no mesmo espaço às crianças libertas pela Lei do Ventre Livre (1871) e as demais.

Em relação ao Rio de Janeiro, encontramos uma passagem em que o Presidente da Província, em 1836, fala sobre a criação de uma escola voltada para o atendimento de crianças órfãos vetando a possibilidade dos escravos serem admitidos como alunos: “a administração seria cometida a um pedagogo encarregado ao mesmo tempo de ensinar a ler, escrever e contar as quatro operações, os escravos não poderão ser admitidos ainda que seus senhores se queiram obrigar pela despesa.”

Logo em seguida, no ano de 1837, a reforma do ensino no Rio de Janeiro estabeleceu restrições que atingiram os escravos e os africanos, mas não os negros de modo geral: “eram proibidos de freqüentar a escola: os que sofressem de moléstias contagiosas e os escravos e os pretos africanos, ainda que livres e libertos.” (Moacyr, 1940, p. 194-195)

Portanto, em Minas Gerais, Alagoas e no Rio de Janeiro não encontramos nada que se compare à situação estabelecida no Rio Grande do Sul. Isto revela a improcedência de se universalizar a determinação desta província para as demais regiões do Império. Por outro lado, revela que Tobias (1972) tratou negros e escravos como uma só coisa, deixando de considerar inúmeras situações que distinguia os modos de existência para estas duas condições.

Apesar dos limites e equívocos que destacamos em Tobias (1972), é necessário reconhecer que ele é um dos poucos autores a fazer referências explícitas à educação dos negros. Em outras obras a questão não aparece de forma explícita. No entanto, uma análise cuidadosa revela que o padrão de abordagem não é muito diferenciado.

Este é o caso do livro A cultura brasileira: introdução ao estudo da cultura no Brasil, de Fernando Azevedo, que foi publicado pela primeira vez em 1943. Este livro não é, no sentido estrito do termo, um manual para ensino de história da educação, mas acabou transformando-se em uma obra de referência para área, na qual teve uma ampla divulgação através de variadas edições sendo, inclusive, utilizada para o ensino da disciplina.

Neste livro não encontramos uma abordagem direta das questões relativas à educação dos negros, mas quando o consideramos a partir de sua estrutura e de sua fundamentação conceitual constatamos que trata o problema de forma semelhante ao que detectamos em Tobias (1972).

Logo no início do livro de Azevedo (1963) encontramos a apresentação de dois conceitos que são estruturantes do padrão de abordagem seguido pela obra: civilização e cultura. Azevedo (1963) tem como objetivo produzir uma síntese da cultura brasileira, para isso fundamenta o seu conceito de cultura a partir de uma distinção com o de civilização. Neste processo de distinção dos conceitos, toma como referência Humboldt, para quem civilização refere-se à base material da sociedade, enquanto cultura refere-se ao universo simbólico. A partir desta perspectiva

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conceitual considera de forma relativamente separada estes dois níveis da sociedade. Através destes conceitos Azevedo (1963) constrói uma síntese da cultura brasileira apresentando um conjunto de considerações em relação à base material da sociedade, pois entende que esta influencia a elaboração do nível representado pela cultura.

Assim, encontramos na primeira parte do livro uma série de considerações sobre diversos aspectos do desenvolvimento social e político do país. Temas como raça, trabalho, evolução urbana e política são tratados como elementos primordiais do desenvolvimento da sociedade brasileira. Com isso, encontramos com frequência o tratamento da questão relativa à escravidão e sua influência no processo de constituição do país. Desta forma, os negros são tratados como um grupo que, como trabalhadores servis, foi fundamental na construção da sociedade brasileira. No entanto, estas influências estavam restritas ao do mundo do trabalho e a capacidade de se submeter ao comando e a ordem dos brancos:

“É, certamente, graças a capacidade colonizadora dos portugueses e de seus descendentes brasileiros, de um lado, e de outro, à capacidade de trabalho e de submissão desses 1 500 000 escravos importados para os canaviais e os engenhos, que se multiplicaram os núcleos de produção, atingindo a 238 fábricas um século depois de estabelecido o primeiro engenho no Brasil, e que coube ao Brasil, já no século XVII, a primazia da produção do açúcar no mundo...” (Azevedo, 1963, p. 90)

Ao tratar do processo de constituição da sociedade brasileira, Azevedo (1963) faz referências constantes aos negros como escravos e a sua capacidade de se submeter ao projeto de colonização dirigido pelos portugueses e seus descendentes brasileiros.

A primeira parte do livro é repleta de abordagens que apresentam os negros como seres tutelados. Mas, no restante da obra, cujo objetivo é tratar da cultura enquanto expressão das necessidades de um povo, os negros não são retratados.

A escola como instrumentos de transmissão da cultura é abordada como uma instituição da qual os negros estiveram à margem, pois estes foram seres ativos na dinâmica econômica, mas se encontravam fora do universo cultural que - para ficar nos dizeres do autor: tende a satisfazer às necessidades espirituais através de uma elite incessantemente renovada, de indivíduos, sábios, pensadores e artistas que constituem uma certa formação social, acima das classes e fora delas.

Apesar de não tratar explicitamente da questão relativa à educação dos negros, o tema está subentendido na narrativa e nas escolhas conceituais de Fernando de Azevedo (1963). Isso porque constatamos que ele reafirma a condição destes enquanto escravos e delimita lugares sociais bastante precisos para este grupo, entre estes é evidente que não considera a escola.

Este padrão de análise que não aborda a questão referente à educação dos negros de forma explícita é, em geral, o mais frequente nas obras relativas à história da educação. Porém, como na grande maioria das vezes trata-se de obras de caráter

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sintético que abordam todo o desenvolvimento da educação ao longo da história, sempre há alguma referência em relação aos negros - principalmente na condição de escravos.

De uma maneira geral, o que distingue as narrativas é a forma como este grupo é incorporado ao processo de escrita da história. No caso da chamada história da educação tradicional, como vimos a partir de Azevedo (1963) e Tobias (1972), os negros estão alocados em lugares vinculados ao trabalho e às margens do processo de escolarização.

A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO MARXISTA COMO PROLONGAMENTO DE UMA TRADIÇÃO

Nos anos de 1970, houve uma transformação na forma de construção da história da educação, que passou a ser fortemente influenciada pelas teorias marxistas. Estas teorias começaram a ser utilizadas como uma das referências conceituais para elaboração das narrativas históricas, fazendo com que a educação deixasse de ser considerada como algo em si mesmo para ser situada em relação a outras dimensões da sociedade.

Sob a influência das teorias marxistas houve uma modificação dos procedimentos de análise que passaram a valorizar novas fontes e novos objetos de pesquisa, estes por sua vez propiciaram uma reelaboração da escrita da história da educação. No entanto, esta transformação não alterou a dimensão utilitarista que marcava a corrente que a antecedeu (Lopes e Galvão 2001). Sob a inspiração das ideias marxistas história da educação passou a promover uma excessiva valorização da ideia de contexto histórico, conferindo grande destaque aos aspectos econômicos e políticos, sobretudo ao antagonismo entre as classes sociais que foi elevado à categoria de elemento explicativo das diversas dimensões do fenômeno educacional.

Sob o impacto das teorias marxistas a história da educação foi transformada em uma teoria da práxis. Esta tinha como objetivo fixar modelos de ação e conduta que deveriam permitir aos educadores identificar os avanços da educação em direção à própria proposta do marxismo de realização plena do gênero humano dentro do desenvolvimento da história da espécie humana.

A ênfase na noção de classe social deu origem a um padrão de narrativa que privilegiava as abordagens dos fenômenos estruturais diluindo em seu interior diferentes grupos sociais através da oposição entre dominantes e dominados. Neste tipo de narrativa encontramos uma dualidade conceitual semelhante àquela que registramos em Azevedo (1963), que opunha o mundo material (civilização) e o universo simbólico (cultura). Desta forma, as abordagens influenciadas pelo marxismo - centrada nos conceitos de infraestrutura e superestrutura - acionaram mecanismo que acabaram por reafirmar a condição da história da educação na sua versão tradicional (Warde e Carvalho, 2000).

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Portanto, não modificaram o padrão de abordagem dos negros na história da educação. Ao contrário, reafirmaram a perspectiva que tratava negros e escravos como sinônimos, mantendo sua exclusão de uma relação com os processos formais de educação.

É representativo deste padrão de abordagem o livro História da educação brasileira: a organização escolar, de Maria Luísa Ribeiro, publicado em 1977, e amplamente difundido por uma série de reedições. Nesta obra, a educação também é abordada desde o processo de colonização até o século XX, e é vista como um fenômeno da superestrutura social que se encontrava condicionada pela base material da sociedade. Os modelos explicativos foram construídos a partir de uma confrontação dialética entre infra-estrutura e super-estrutura e de uma tentativa de apreensão do movimento das classes sociais.

Não há uma abordagem específica sobre as questões relativas aos negros, pois estes se encontram subsumidos no tratamento dado às classes dominadas e, como em Azevedo (1963), somente foram registrados quando se fazia referências à escravidão, ou ao mundo do trabalho: “a educação profissional (trabalho manual), sempre muito elementar diante das técnicas rudimentares de trabalho, era conseguida através do convívio, no ambiente de trabalho, quer de índios, negros ou mestiços que formavam a maioria da população colonial.” (Ribeiro, 1984, p. 29)

Apenas em uma passagem aparecem questões que remetem às tensões raciais que se manifestaram na educação. Trata-se de um episódio que ocorreu em 1689 e foi denominado de Questão dos pardos: “esta questão surge da proibição, por parte dos jesuítas, da matrícula e freqüência de mestiços por serem muitos e provocarem arruaças. Como eram escolas públicas, pelos subsídios que recebiam foram obrigados a readmiti-los.” (Ribeiro, 1984, p. 29)

Mesmo tendo registrado conflitos raciais em estabelecimentos educacionais já nos primeiros estágios do processo de colonização, a temática racial não recebeu desdobramentos no desenvolvimento da obra. O fato dos chamados pardos serem, em 1689, numerosos e se mobilizarem para obter acesso à escolarização, não foi considerado como um indicativo do comportamento deste grupo em direção a uma tentativa de afirmação no espaço social. Dentro do padrão de narrativa construído a partir das categorias marxistas, questões como esta não foram problematizadas. Os negros foram diluídos em meio às classes dominadas e não foram considerados como um grupo que possuía demandas específicas em relação à educação, ou ao mundo social como um todo.

As mudanças que ocorreram na história da educação a partir de sua apropriação das teorias marxistas não permitiram uma modificação em relação ao tratamento da questão racial e não foram capazes de retirar os negros da invisibilidade que se encontravam nas narrativas oriundas de uma versão tradicional da historiografia educacional.

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RENOVAÇÃO E TRADIÇÃO NA HISTORIOGRAFIA EDUCACIONAL BRASILEIRA NO FINAL DO SÉCULO XX

No final do século XX, a história da educação passou por uma nova reconfiguração nos procedimentos de construção de suas narrativas. Este movimento foi impulsionado por uma relação cada vez mais estreita com movimentos que passaram a interferir no processo de construção das narrativas históricas como um todo, destacadamente a história cultural.

Os trabalhos produzidos a partir desta nova orientação passaram a concorrer diretamente com as outras correntes da historiografia educacional propiciando mudanças significativas na compreensão dos mais diferentes aspectos da educação. Estes avanços seguiram em diversas direções e se refletem na qualidade e quantidade das pesquisas produzidas. Manifesta-se também na presença cada vez mais efetiva da história da educação nos programas de pós-graduação e no processo de estruturação da área educacional.

No entanto, esta historiografia que possibilitou um aprofundamento em vários aspectos do processo educacional alterou pouco às interpretações tradicionalmente construídas em relação aos negros. Na verdade, encontramos uma relação dúbia com as suas formas de tratamento em relação aos negros, pois ao mesmo tempo em que cresce a produção que passou a reinterpretar a relação dos negros com os processos educacionais, encontramos também a reativação das ideias tradicionais sobre este segmento da população. Esta atitude mantém vivo um imaginário que pressupõe a escola como espaço ocupado apenas pela população branca.

Para realizar uma análise das interpretações oriundas desta nova historiografia educacional encontramos dificuldades em recortar uma obra que possa ser admitida como representativa desta corrente. Ao contrário daquelas que a antecederam, não há um livro, ou um autor que possa ser admitido como representante do padrão de escrita que orienta esta nova forma de narrativa.

Portanto, para viabilizar a análise que propomos escolhemos um trabalho que se diferencia do perfil daqueles que analisamos em relação à versão tradicional e marxista da história da educação. Escolhemos uma publicação que não é um livro, mas uma obra que foi lançada em três volumes e que, no seu conjunto, pode ser tomada como representativa do perfil que orienta a produção em relação a esta nova postura de escrita da história da educação.

Este trabalho tem como título Histórias e Memórias da Educação no Brasil, foi organizado em 2004, pelas historiadoras Maria Sthephanou e Maria Helena Câmara Bastos. Os três volumes da coleção reúnem artigos de cinquenta e três historiadores que tratam de diferentes assuntos relativos à educação brasileira, entre os séculos XVI e XX.

Dos cinquenta e um artigos que compõe os três volumes apenas um se refere aos negros, seu título é A pedagogia do medo: disciplina, aprendizado e trabalho na escravidão brasileira, seu autor é o historiador Mario Maestri.

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Neste artigo o que encontramos é basicamente uma narrativa sobre os processos responsáveis pela incorporação dos africanos à sociedade escravista. Nele, há um grande destaque para a violência responsável pela transformação dos africanos em escravos - o que é apresentado como uma “pedagogia da escravidão”. Dentro desta pedagogia, o escravo é tomado como uma matéria inerte que é moldada a partir de elementos como a violência, a disciplina e o trabalho.

O autor possui uma concepção muito próxima à que detectamos nas outras correntes da historiografia educacional, pois, segundo ele, “as poucas escolas urbanas estavam vedadas ao ingresso de negros livres, quem dirá aos cativos” (Maestri, 2004, p.205). A escola é apresentada como uma instituição que não era acessível aos cativos e em extensão aos negros, mesmo que livres. Este tipo de concepção justifica o fato da educação ser articulada com a escravidão apenas na perspectiva dos trabalhadores cativos.

A partir desta formulação podemos dizer que ideia de uma pedagogia do medo - que dá título ao artigo - é uma versão educacional de uma postura que marca a história da escravidão e foi responsável pelo processo de coisificação dos negros e escravos. Chalhoub (1989, p.38) define esta perspectiva como a teoria do escravo-coisa: “houve mesmo quem afirmasse que o homem formado dentro desse sistema social (a escravidão) apresentava um rudimentar desenvolvimento mental. Essas afirmações a respeito dos negros se fundamentavam naquilo que poderíamos chamar de teoria do escravo-coisa.”

A pedagogia do medo pode ser entendida como uma versão educacional da teoria do escravo-coisa porque o conjunto de práticas que são apontadas como responsáveis pela formação dos cativos podem ser reduzidas a uma única palavra: adestramento.

Na verdade, a visão de Mario Maestri (2004) é muito semelhante àquela que encontramos em José Antônio Tobias (1972). Ambos reafirmam a ideia de que os negros não podiam frequentar escolas. Além disso, colocaram no centro da análise a figura dos escravos concebendo a educação apenas do ponto de vista de um processo de subalternização que tinha como finalidade o adestramento dos cativos. Tobias (1972) compreendia que este processo estava vinculado às práticas religiosas, enquanto Maestri (2004) destaca a violência como seu elemento central.

Se tomarmos como referência os novos estudos sobre a escravidão, podemos dizer que a noção de adestramento está ligada a excessiva valorização que a violência adquiriu nos modelos explicativos relativos à sociedade escravista. É inegável a presença da violência física como mecanismo de coerção sobre os escravos, mas, no entanto, sua visão como elemento presente no cotidiano da sociedade escravista deve ser relativizada (Mattoso, 1982). É preciso abrir espaço para análises que possibilitem um entendimento maior dos processos sociais que envolviam a relação entre senhores e escravos, inclusive do ponto de vista educacional.

Os procedimentos que colocam a violência fora de uma relação direta entre senhores e escravos consistem em um conjunto de procedimentos manipulados pelos

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senhores que objetivavam a preparação do escravo para uma adequação às situações que permeariam sua existência na condição de trabalhador cativo (Chalhoub, 1990).

A partir do momento que a historiografia da escravidão começou a considerar possibilidades de entendimento em que a violência é relativizada na relação entre senhores e escravos, somos levados a construir uma visão bem mais complexa da sociedade escravista. Esta ressignificação implica em deixar de tratar os escravos como coisa para transformá-los em sujeitos.

Para dar conta dessa complexidade a educação não pode ser reduzida a ideia de um mero adestramento e a uma concepção de pedagogia exclusivamente centrada na violência, ou no medo. Não se trata de uma desconsideração de uma dimensão educativa em relação aos escravos, na verdade, o que é passível de questionamento é a forma de entendimento que, como fez Maestri (2004), se limita a compreender esta educação através da violência. Concepções como a que este autor exprime na sua versão da pedagogia do medo podem ser criticadas em relação à maneira como conceberam o processo de formação do trabalhador escravo e também, em relação à reafirmação de que os negros, mesmo que livres, não frequentaram escolas.

Estas duas ideias encontram na produção mais recente da historiografia brasileira abordagens que caminham em sentido diametralmente opostos.

As pesquisas sobre escravidão vêm demonstrando que os negros não podem ser reduzidos à figura do escravo. Ser negro e ser escravo sempre foram situações distintas. Por outro lado, as experiências dos negros livres eram amplas e não podem ser confundidas como uma simples extensão da escravidão. E ainda, independente de sua condição, os negros demonstravam uma capacidade de movimentação na sociedade. Isso vem sendo recuperado a partir de análises que revelam as especificidades destes sujeitos sociais que agiram a partir de condições específicas.

O fato de Mário Maestri (2004) ter reduzido a educação a uma dimensão que remete ao processo de adestramento do escravo é inadmissível e isso tem implicações no plano geral das abordagens contidas na obra História e memória da educação no Brasil, pois, a partir desta concepção, podemos inferir a maneira como os outros autores lidaram com seus respectivos temas no que se refere aos negros.

A primeira coisa a destacar em relação a isso é que a obra reafirma uma diversidade de sujeitos no processo de formação da sociedade brasileira. Estes sujeitos são reconhecidos a partir de uma ligação com a educação. A obra tenta contemplar esta diversidade à medida que trata de grupos como indígenas, imigrantes, mulheres, crianças, intelectuais, religiosos, anarquistas, os negros (escravos), etc.

Neste sentido, o fato da temática relativa aos negros ser abordada por um historiador da escravidão é um indicativo da permanência das representações tradicionais construídas sobre este grupo racial. Revelam a permanência de modelos tradicionais construídos a partir da ideia de que falar de negros implica necessariamente em falar de escravos. De outro lado, manifesta-se um padrão de entendimento que reconhece que o fim da escravidão representou o desaparecimento do negro da história do Brasil.

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Dessa forma, quando partimos para uma avaliação da obra Histórias e memórias da educação no Brasil a partir do padrão de tratamento conferido pela abordagem de Mario Maestri (2004), somos levados a crer que não há necessidade de incorporar os negros nas análises que se referem aos outros temas. Primeiro porque a escravidão seria o local apropriado para seu enquadramento na história e, segundo, porque o fato dos negros não terem frequentado escolas é um indicativo de que o processo de escolarização se deu sem relações com os membros deste grupo.

Considerando a obra em questão, podemos dizer que as análises elaboradas a partir da renovação da historiografia educacional reafirmaram o padrão de invisibilidade da população negra, pois continuaram a difundir este tipo de percepção no interior da disciplina e na produção de caráter didático que tem como objetivo formar educadores.

Neste sentido, pode-se atribuir à disciplina de história da educação a difusão das concepções que norteiam os debates atuais e que, de um lado, reafirmam permanentemente crença de que, no Brasil, os negros não frequentaram escolas e, de outro, que o processo de escolarização se fez sem relações com questões de natureza racial.

A representação dos negros que figura nos manuais de história da educação não é referendada pelas pesquisas que foram produzidas mais recentemente. A partir dos anos de 1990, encontramos um conjunto de trabalhos que revelam diferentes formas de relação entre a população negra e a educação em vários períodos históricos (Barros, 2015). No entanto, estes trabalhos ainda tem uma penetração muito baixa no ensino da disciplina de história da educação e nos materiais destinados à formação de professores.

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ID: 202

O USO DA HISTÓRIA DE VIDA, BIOGRAFIA EDUCATIVA E

(AUTO)BIOGRAFIA NA HISTORIOGRAFIA DA EDUCAÇÃO Autores: Lucirene Andréa Catini Lanzi Mirtes Mariani Leonardo Marques Tezza Filiação: Universidade Estadual Paulista <<Júlio de Mesquita Filho>> - UNESP/Marília

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RESUMO

Este texto é decorrente de um estudo desenvolvido com base em referencial teórico da História da Educação, para analisar a história de vida, o seu fazer-se, suas experiências e suas memórias numa determinada realidade social, assim como entender e apresentar as diferentes formas de classificar essa forma de relato, como a biografia educacional e a (auto)biografia. No Brasil, esse campo de estudos aproximou-se de uma nova forma de escrever a história, possibilitando uma nova leitura, principalmente da escola, e os estudos passaram a ser mais localizados e contextualizados, lidando com períodos de tempo mais curtos. Objetivamos, com esta pesquisa, apresentar aspectos das diferentes formas de classificar relatos e relacioná-los com a História da Educação e formação dos educadores, e, para isso, usamos a metodologia qualitativa de investigação-formação buscando relações entre o teórico e o metodológico, que permite apreender a realidade presente e o passado pela experiência dos atores que as vivenciam. Como considerações finais, é possível afirmarmos que ao descortinar contextos, histórias e memórias por meio das narrativas implicadas no sujeito em formação, é viável o caminhar, no sentido de apreender marcas e implicações do itinerário escolar, da vivência escolar e suas relações com a(s) escola(s) e o papel exercido por esses lugares/instituições na formação dos atores de pesquisa. PALAVRAS-CHAVE

História da Educação, História de Vida, Autobiografia.

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1. A HISTÓRIA DE VIDA, BIOGRAFIA EDUCATIVA E (AUTO)BIOGRAFIA, SUAS PARTICULARIDADES E IMPORTÂNCIA PARA A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO E FORMAÇÃO DOS EDUCADORES

Na tentativa de apresentar a importância de ouvir e resgatar a voz do professor e seus conhecimentos para os futuros e atuais educadores, esta pesquisa discorrerá sobre o mérito da História de Vida, Biografia e (Auto)biografia76 para a disciplina História da Educação.

A exibição e a utilização, cada vez mais crescente das histórias de vida, (auto)biografias e das biografias educativas77 em contextos de pesquisas na área educacional, têm permitido evidenciar e aprofundar análises sobre as experiências educativas e educacionais dos sujeitos, bem como potencializar e entender diferentes mecanismos e processos em temporalidades diversas, tornando mais fácil apreender e disseminar as histórias das relações educacionais que foram estabelecidas por vários sujeitos, torna-se fundamental o conhecimento das muitas práticas pedagógicas e processos formativos.

Conjecturamos com esse cenário, que o pedagogo necessita de familiaridade com o trato do histórico e com o conjunto de reflexões sobre a História, quer no terreno teórico quer na atividade prática, objetivamos, com esta pesquisa, apresentar aspectos das diferentes formas de classificar relatos e relacioná-los com a História da Educação e formação dos educadores.

Neste texto, discorreremos sobre a história de vida, o seu fazer-se, suas experiências e suas memórias numa determinada realidade social, como o saber professoral e suas vivências na cultura escolar que o representa, assim como entender e apresentar as diferentes maneiras de classificar essa forma de relato, como a biografia e a (auto)biografia. Gêneros estes distintos que em comum têm o fato de serem baseados na sequência de vida individual, ou não, e na sequência biográfica, como também de uma aparente uniformidade e especificidades em diferentes contextos e investigações.

Para abordar as possibilidades, procedimentos de investigação, natureza e fontes da história oral, esse método se constitui como metodologia qualitativa de investigação-formação, buscando relações entre o teórico e o metodológico que delineiam na experiência de pesquisa sobre os temas biografia, (auto)biografia e história de vida no campo educativo e, especialmente na formação de futuros educadores(as) dirigida para a melhor compreensão do presente, que permite apreender a realidade presente e o passado pela experiência dos atores que as vivenciam e/ou vivenciaram.

76 Nóvoa (1988) utiliza parênteses para simplificar o duplo sentido da expressão, como movimento de investigaçãoe formação, onde se evidencia a narrativa do professor, como ator social.

77 Termo utilizado por Bragança (2009) que define a biografia sob a ótica educacional.

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Apresentamos, todavia, distinções quanto à forma com que a trajetória de vida é elaborada e apresentada.

Encontramos nas Ciências Humanas, e especificamente na historiografia da educação, uma mudança paradigmática que reconduziu o olhar do geral ao particular, da totalidade ao fragmento, da quantidade à qualidade, do criado ao criadores, do instituído ao instituinte.

Nesta perspectiva, não podemos deixar de citar a obra de Nóvoa (1995), «Vida de Professores», livro este, que se tornou um clássico para os estudos de educadores, ele chama a atenção para uma questão muito importante que não pode ser desprezada pelos pesquisadores: «[...] ser professor obriga as opções constantes, que cruzam a nossa maneira de ser com a nossa maneira de ensinar, e que desvendam, na nossa maneira de ensinar, a nossa maneira de ser». (NÓVOA, 1995, p. 9)

A vida pessoal e profissional não são tão distintas como poderíamos imaginar, movidos por um afã científico, primeiramente, é importante considerar, como cita Mignot (2008, p.102): «[...] que não há uma escrita íntima que não tenha a dimensão da vida profissional, nem uma escrita profissional que não tenha a dimensão da vida pessoal.»

As biografias educativas propiciam adentrar, por meio do texto narrativo, nas representações de educadores sobre as relações de ensino e aprendizagem, sobre a identidade profissional, os ciclos de vida e, por fim, possibilitam entender os sujeitos e os sentidos e situações do contexto escolar. No Brasil, esse campo de estudos aproximou-se de uma nova forma de escrever a história, possibilitando uma nova leitura, principalmente da escola, e os estudos passaram a ser mais localizados e contextualizados, lidando com períodos de tempo mais curtos.

A História da Educação passou a se preocupar com a organização e o funcionamento interno das instituições escolares, com a expressão e/ou construção cultural no dia a dia escolar, com o estabelecimento do conhecimento, do currículo, das disciplinas escolares.

Além das fontes oficiais, que têm recebido um novo olhar e um novo tratamento, outras fontes também passaram a ser usadas, tais como a fotografia, os manuais escolares, diários de classes, os jornais e revistas da época, a história oral, etc.

Cada vez mais, existe uma preocupação com a melhoria da qualidade do ensino que requer bons professores para exercer a difícil tarefa de ensinar, nos diferentes contextos sociais e culturais.

Existe por parte dos pesquisadores de todas as áreas do conhecimento, a inquietação de como tornar a docência uma profissão interessante e que os professores continuem aprendendo ao longo da carreira. Torna-se importante salientar que esse campo de estudo muito contribui para a aproximação da disciplina História da Educação para com os educandos, pois futuramente, serão estes os educadores e nada mais elucidativo e intenso do que refletir de antemão o que deu certo ou não, na sua própria educação e/ou na educação daqueles que te precederam.

Destacamos em nossa pesquisa, a importância de uma reflexão de uma história que se escreve considerando as formas como nos educamos.

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Ressaltamos o valor de compreender o próprio processo educativo percorrido como educando(a) e educador(a).

No Brasil, o tema narrativas autobiográficas têm valorizado as experiências narrativas organizadas como memoriais de formação que, à margem de singularidades de cada uma das narrativas e da forma como são desenvolvidas pelos investigadores-formadores, valorizam a escrita reflexiva da história de vida, com uma temporalidade ampliada ou elaboradas de forma temática com ênfases oral e/ou escrita.

Mediante a essas explanações, trazemos alguns questionamentos que serviram de referência para a realização desta pesquisa:

• Qual o sentido da escrita de si e sobre si no processo de formação de educadores?

• Como a escrita poderá ou não possibilitar aprendizagens sobre a profissão?

• O que são histórias de vida e como emergem no campo da formação de educadores e da pesquisa em educação?

• O que é a educação senão a construção sócio-histórica e cotidiana das narrativas pessoal e profissional?

• Qual o papel da narrativa para a constituição do sujeito da experiência? Estas questões, que se entrecruzam, funcionam como fio condutor desta

pesquisa, que ora apresentamos, onde tentamos dialogar com questões relacionadas à memória e seu papel na constituição da escola, das práticas pedagógicas e do cotidiano escolar. Buscamos entender a escola como um lugar privilegiado de memórias, e chamar a atenção para o retorno ao biográfico educativo e aos relatos de vida, como nos atesta Demartini (2008, p. 40):

[...] o retorno ao biográfico e aos relatos de vida indicam uma mudança no campo geral da investigação e da reflexão contemporânea nas ciências humanas; na produção do conhecimento, pois os sujeitos ganham vida, suas experiências e memórias ganham força.

No campo educacional, educadores e educandos são pensados como sujeitos ativos que constroem conhecimento por meio de relações dialógicas que estabelecem. É na diversidade de situações e experiências por eles vivenciadas que a educação se concretiza.

A construção de conhecimento implica em analisar, isto é, em desfazer a experiência da vida para melhor entendê-la, em movimentos de decomposição e recomposição que permitam chegar a uma compreensão mais profunda de seu sentido.

Para que isso ocorra é necessário conhecermos melhor as formas de criar uma narrativa.

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2. A BIOGRAFIA EDUCATIVA, HISTÓRIA DE VIDA E (AUTO)BIOGRAFIA E SUAS ESPECIFICIDADES COMO NARRATIVAS

A biografia educativa se define como a história de um indivíduo redigida por outro. Existe, aqui, a dupla intermediação que aproxima da História de vida, consubstanciada na presença do pesquisador e no relato escrito que se segue.

Tão importante quanto criar condições para que os/as educadores(as) escrevam sobre a experiência docente, é dar visibilidade a estas escritas, onde o pessoal e o profissional se entrelaçam. Neste sentido, Mignot (2008, p. 100) salienta:

Ao remexer os papéis esquecidos no fundo de gavetas, em armários ou caixinhas acumulados ao longo do tempo, a professora da rede pública municipal de ensino descobriu que eles guardam história de vida e formação, assinalam experiências, testemunham acontecimentos, evocam pessoas e fatos, despertam sentimentos.

Certamente, como tantas outras colegas de profissão, ela desconhecia o valor desses velhos papéis para a compreensão das práticas pedagógicas, das trajetórias de vida, dos dilemas da sala de aula. Talvez seja por isso que muitas professoras destruam seus velhos papéis. É possível também que, por esta mesma razão, mantenham distante de olhares indiscretos, em seus arquivos pessoais, documentos produzidos por alunos, como cadernos de exercícios, cadernos de pontos, cadernos de cópia, cadernos de caligrafia, cadernos de anotações de aulas, cadernos de perguntas, cadernos de recordações, provas, colas, jornais escolares, bilhetinhos. Ainda da vida profissional, fichas de aulas, cadernos de planejamento, cadernos de atividades, relatórios, recados de pais, fichas de avaliação e álbuns diversos, também sobrevivem, conseguindo, assim, escapar ao trágico destino das escritas cotidianas ou ordinárias.

Nestes papéis velhos, quase sempre, destinados à invisibilidade, há um corpus documental de inestimável valor como fonte histórica que pode fornecer informações e indícios sobre práticas cotidianas relativas ao ato de ensinar/aprender expressas nas narrativas que descrevem hábitos, costumes, valores e representações de uma época estudantil e escolar.

Mignot (2008, p. 113), ainda salienta que:

Escrever, preservar, expor e publicar estes papéis pode contribuir também para que as gerações futuras compreendam e interpretem as atuais tensões e contradições que perpassam o permanente processo de construção de uma escola pedagógica e politicamente comprometida com os anseios de um mundo melhor, mais justo e solidário.

A importância de guardar estes documentos é ainda maior, pois com a escrita em novos suportes, como a tela do computador, corremos o risco de não deixar rastros escritos do que acreditamos, sentimos, fazemos.

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Do ponto de vista epistemológico, os trabalhos centrados nos educadores apontam, tomando como referência a categorização de Nóvoa (1995), a utilização de entrevistas biográficas, a maioria dos textos por nós analisados 78 focalizam narrativas temáticas centradas nos objetivos da investigação e algumas desenvolvem a análise considerando a universalidade da vida, com ênfase nos objetivos emancipatórios centrados na investigação-formação e, a seguir, trabalhos voltados para os objetivos teóricos, ligados à investigação. Quanto às dimensões mais focalizadas, os trabalhos centram-se de forma especial, nas temáticas ligadas à profissão educador.

A História de vida é o relato de um narrador sobre sua experiência por meio do tempo, com a intermediação de um pesquisador. É um trabalho coletivo de um narrador/sujeito e de um intérprete. Por meio desta abordagem, configura-se um processo de conhecimento. A perspectiva de trabalho com as Histórias de vida, no campo educativo, emerge no âmbito do retorno do sujeito, em sua singular complexidade social, que as pesquisas em educação busca recuperar a reflexividade humana dos processos de construção do conhecimento em educação.

As narrativas de educadores e educadoras apontam para o forte entrelaçamento entre o individual e o coletivo. A História de vida, no campo da formação docente, faz emergir a densidade da produção social de determinados significados apropriados pelo sujeito. Quem narra traz sempre os processos sociais de sua produção narrativa.

A pesquisadora portuguesa Inês Ferreira de Souza Bragança (2009) nos apresenta uma bela pesquisa sobre o tema em seu doutoramento intitulado « História de vida e formação de professores/as: diálogos Brasil e Portugal», onde ela descreve os campos disciplinares mais citados como referências de filiação dos trabalhos desenvolvidos sobre o tema, são a Sociologia, a História, a Antropologia, a Psicologia e a Filosofia, ou seja, as Ciências Humanas.

Autores como Catani, Bueno, Sousa, Souza (1997); Perez (2003); Baudouin, Turkal (2000); Dominicé, Josso, Monbaron, Muller (2000) reforçam a interdisciplinaridade como o caminho de trabalho com as Histórias de vida, pois é no encontro de diferentes aportes que o processo e as possibilidades de análise e interpretação colocam-se de forma mais abastada.

Do ponto de visto epistemológico, as Histórias de vida colocam-se como um movimento que lança um outro olhar sobre a vida e sua dinâmica e, consequentemente, institui uma outra forma de entender e trabalhar as Ciências Humanas, onde o particular e os frutos do cotidiano saem do lugar de sombra e assumem a cena como sujeitos da investigação.

E foi nesse contexto que os métodos (auto)biográfico, especialmente na formação de educadores (NÓVOA & FINGER, 1988), que percebemos sua crescente ampliação e aprofundamento teórico-metodológico.

78 Nos textos disponibilizados em Anais de Seminários e Encontros de Histórias de vidas.

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Com base nos estudos voltados para os educadores(as) e educandos(as) e sua formação, o aporte (auto)biográfico 79 reivindica uma nova epistemologia de investigação e de formação. Na pesquisa em formação de professores, de Souza e Mignot (2008) a «A emergência e a utilização, cada vez mais crescente, das autobiografias e das biografias em contextos de pesquisas na área educacional», capazes de trazer a voz dos educadores e educadoras sobre diversos aspectos ligados à profissionalidade, à prática, ao plano de carreira.

Buscamos, com esta pesquisa, um diálogo partilhado em que pesquisadores e sujeitos responsabilizam-se pelo processo de construção de saberes. Um conhecimento de si, das relações que se estabelece com o seu processo formativo e com as aprendizagens construídas ao longo da vida.

Ancorados no sentido histórico e sociológico deste aporte teórico-metodológico e, também, nos estudos sobre docência, a principal contribuição destacada é a possibilidade de escuta e de intercâmbio com sujeitos que, na ciência clássica, foram tomados como objetos.«Buscamos a valorização da vida, das vozes, das subjetividades, como alternativa de investigação para reconstruir a história e as políticas educativas e também as práticas de formação.» (MIGNOT, 2003, p. 38)

É um caminho possível e necessário para o autoconhecimento reflexivo e para a disseminação de um saber professoral e de uma cultura escolar singular.

A TÍTULO DE CONSIDERAÇÕES FINAIS Em cada um desses gêneros apresentados, um convite a pensar sobre os registros

de experiências vividas no cotidiano pessoal e/ou profissional que possibilitam ao sujeito, enquanto autor e ator de sua própria história, eleger aprendizagens significativas e ressignificá-las no trabalho escolar.

Tanto os recursos da biografia educativa quanto o conceito de história de vida, contribuíram para o desenvolvimento da abordagem (auto)biográfica que foi manifestando-se em uma multiplicidade teórico-metodológica de trabalhos no âmbito educativo.

Escrever sobre a própria vida, ou baseado na história de vida, exige paciência, introspecção, tomada de consciência e, por isto, deve ser visto como uma conquista, um convite, uma sugestão. É um exercício formador e como tal , deve ser estimulado, incentivado, sem se tornar uma camisa de força para os educadores que cotidianamente inventam a sala de aula.

Não podemos transformar esse tema em modismo, em solução para todos os problemas para a educação, ou em instrumento de controle e vigilância sobre o fazer docente.

Mas, tão importante quanto criar condições para escrever sobre a experiência docente, é dar visibilidade às escritas e vivências de professores.

79 (Auto) biografia consiste na narrativa da própria existência e, nela é o próprio narrador quem se dispõe a narrar sua vida, relatando o encaminhamento que melhor lhe parece e tendo controle sobre os meios de registro.

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Muitos são os exemplos que poderiam inspirar saberes e atuações, preservações e publicação das escritas de história de vida de professores, onde se partilham descobertas, dificuldades, desafios, dilemas, conquistas, erros e acertos.

Se o professor introduz mudanças por meio de sua atuação, ele também se transforma por meio de sua prática pedagógica, mas, é preciso pensar sobre essa transformação, pois ao invés de adquirir novos conhecimentos, o professor pode apenas reforçar preconceitos e práticas inadequadas.

Uma nova forma de encarar a História da Educação vem caracterizando as pesquisas do campo, que, nas palavras de Carvalho (2006), torna-se um «movimento de renovação teórica, temática e metodológica». Neste percurso, temas tradicionais estão sendo revistos e outros, como as memórias dos educadores ganham consideração.

Portanto, perante tantos desafios, é saudável ter cautela no produzir no campo da História da Educação. Acredita-se, entretanto, que, neste momento, entre os muitos desafios , o nosso como pesquisadores da História da Educação, ainda seja o de buscar a compreensão do fenômeno educativo no movimento histórico, priorizando o rigor científico-metodológico, sem, no entanto, abrir mão, como bem cita Nunes (1990, p. 36), «[...] da imaginação, da paixão e do desejo de sentir ou conversar com o passado».

Dessa forma, num campo em que a fonte escrita ainda prevalece, apresenta-se como mais uma possibilidade de conhecimento e enriquecimento conceitual, a história de vida e as memórias e escritas de professores, como uma fonte a mais para se analisar a História da Educação brasileira.

Acreditamos ter deixado claro a importância da História da Educação para a formação dos educadores, pois para o bom desempenho de sua função, nada mais eficaz do que ler, pesquisar e compreender sua própria história, e, a História da Educação é, em boa medida, a historiografia daqueles responsáveis pela transmissão, institucionalização ou não, dos saberes sociais, o educador.

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OS MAÇONS E A MODERNIZAÇÃO EDUCATIVA NO BRASIL:

ENCAMINHAMENTOS PRELIMINARES DE UM ESTUDO Autor: Giana Lange do Amaral Filiação: Faculdade de Educação/universidade Federal de Pelotas

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RESUMO

A atuação de maçons e da maçonaria no contexto educacional brasileiro ainda é uma temática pouco estudada no âmbito da História da Educação. Neste texto, destaco encaminhamentos preliminares sobre o estudo de sua influência no processo de modernização educacional que se consolida entre as últimas décadas do século XIX e primeiras do século XX. Tendo o referencial teórico-metodológico ancorado na História Cultural, são utilizados como fontes jornais, boletins, discursos e bibliografia referente à temática. A ação dos maçons inclui designadamente práticas políticas como intelectuais, gestores, legisladores, escritores, jornalistas, professores, bem como a fundação de lojas maçônicas, a criação de periódicos, a publicação de livros, a fundação de bibliotecas, de escolas, de faculdades e de obras de benemerência voltadas aos mais necessitados. Sua atuação de oposição ao discurso conservador do catolicismo romano representou uma importante e destacada referência no processo de modernização educativa na emergente república brasileira.

PALAVRAS-CHAVE

Maçons e educação, maçonaria luso-brasileira, modernização educativa.

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A atuação de maçons e da maçonaria no contexto educacional brasileiro ainda é uma temática pouco estudada no âmbito da História da Educação. Neste texto, destaco encaminhamentos preliminares sobre o estudo de sua influência no processo de modernização educacional que se consolida entre as últimas décadas do século XIX e primeiras do século XX. Será nessa periodização, que envolve a implantação e consolidação do regime republicano no Brasil, que ancoro minhas reflexões e análises. 80

No presente estudo, tendo como fundamento teórico-metodológico a História Cultural, uso como fontes jornais, boletins, discursos e bibliografia referente à temática. Algumas dessas fontes possibilitam uma leitura das manifestações contemporâneas aos acontecimentos e uma real aproximação dos discursos emitidos na época em relação ao projeto de sociedade, e suas instituições sociais. E mesmo que se caracterizem pelo seu caráter polêmico e por vezes passageiro, representam um produto cultural de sujeitos específicos em um determinado contexto histórico. Nesse sentido, Chartier (1990) enfatiza que os historiadores da cultura devem criar suas próprias estratégias na leitura dos textos com os quais trabalham, pois eles afetam o leitor de forma individual e variada. Deve-se ter claro que os documentos e os referenciais bibliográficos que descrevem ações do passado possuem uma intencionalidade e um engajamento nas relações de poder que se estabelecem. E, no caso da ação de intelectuais maçons no espaço educacional brasileiro, é particularmente intrigante constatar nos trabalhos acadêmicos a pouca visibilidade e identificação de suas práticas políticas como oriundas de um espaço que os identifica: a maçonaria.

Objetivo com este trabalho estabelecer interfaces no âmbito político-educacional e cultural da presença de maçons no processo de implantação da República no Brasil. Isso a partir da atuação de intelectuais maçons e dos espaços culturais e educacionais por eles ocupados. A Maçonaria é aqui considerada um locus potencial e agregador, como um espaço de sociabilidade, de intelectuais que fundamentam ideias que se consolidam no processo de implantação da República. Os maçons, que no seu espaço coletivo, as lojas maçônicas 81 , compartilhavam aspectos do ideário liberal e positivista, buscaram uma nova sociedade baseada na ordem e no progresso. Serão eles que, nas suas individualidades, com sua atuação político-cutural como indivíduos, mas que pertencem a um grupo (ou grupos) que os orienta e sinaliza caminhos, pensaram e organizaram a possibilidade de implantação de um novo regime. Um regime que se opunha ao escravismo e às práticas monárquicas e de

80 Este trabalho resulta de estudos apresentados em Amaral (2005) e encaminhados quando da realização do estágio pós doutoral no Instituto de Educação da Universidade de Lisboa (2014-2015), sob orientação de Justino Magalhães.

81 É o lugar ou a reunião em que se congregam os maçons para o trabalho seu específico.

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influências clericais e jesuíticas, consideradas retrógradas e ultrapassadas, defendendo o laicismo no campo educacional.

Como afirmado em AMARAL (2005), no Brasil, todo o processo de Proclamação da República resultou também do trabalho de políticos ligados à Maçonaria. Isto se torna evidente quando se constata que: o Manifesto Republicano de 1870 foi redigido pelo Grão-Mestre Saldanha Marinho, recebendo assinaturas de grande número de maçons; o “Clube Republicano” era presidido pelo maçom Quintino Bocaiúva; eram maçons os componentes do primeiro Governo Provisório.82 O emergente sistema republicano estava bastante ligado aos interesses da Maçonaria, que tratou de usar de sua influência junto à sociedade brasileira, para solidificar as determinações políticas da Constituição Republicana, especialmente no que se relacionasse à separação da Igreja e do Estado. Este foi mais um fato que contribuiu para que o conflito entre a Igreja e a Maçonaria se tornasse tão acentuado.

Realizar um estudo que envolva a Maçonaria requer que necessariamente estabeleçamos sua relação com o Catolicismo. A Igreja e a Maçonaria exerceram influência decisiva em muitos acontecimentos políticos e sociais de nosso país. Entraram no século XX num clima de conflito político-ideológico, movido por questões internas que diziam respeito à nossa política nacional (como o processo da implantação do sistema republicano), assim como por questões oriundas das determinações do Vaticano que acentuaram o processo de romanização da Igreja e de perseguição desta aos maçons.

Nesse quadro, há que se destacar, como será analisado a seguir, a dispersão organizativa da maçonaria brasileira que apresentou muitas cisões e disputas políticas pautadas por diferentes vínculos regionais, nacionais e internacionais. Tal fato dificulta a compreensão de seus aspectos organizacionais e de sua atuação como grupos que em alguns momentos rivalizavam entre si.

1. A MAÇONARIA COMO ESPAÇO DE SOCIABILIDADE

Conforme já afirmado, no Brasil, em função de as temáticas ligadas à maçonaria serem assuntos ainda pouco tratados pela historiografia brasileira, percebe-se, inclusive, posicionamentos muito divergentes entre os maçonólogos e historiadores, o que torna difícil traçar, de forma concisa, o perfil desta Instituição.

Em um artigo publicado em 1997, Célia Azevedo identifica a perda de visibilidade da maçonaria na história do Brasil. Para tanto, destaca modos de abordagem sobre o tema maçonaria por parte de três historiadores que imprimiram tendências

82 Os políticos maçons deste governo eram o Marechal Deodoro da Fonseca, primeiro presidente brasileiro, e seus ministros que ocupavam as seguintes pastas: Aristides Lobo, Interior; Campos Sales, Justiça; Rui Barbosa, Fazenda; Quintino bocaiúva, Relações Exteriores; Demétrio Ribeiro, Agricultura, comércio e Obras Públicas; Benjamim Constant, Guerra; Eduardo Wandelkolk, Marinha. Gomes, 1975, p. 139. Como curiosidade cabe ressaltar que Deodoro da Fonseca foi iniciado na Loja “Rocha Negra”, de São Gabriel, Rio Grande do Sul.

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duradouras na historiografia do Brasil monárquico: Francisco Adolfo de Vernhagen (1818-1878), Manuel de Oliveira Lima (1867-1928) e Caio Prado Jr. (1907-1990). Segundo a autora os dois primeiros autores convergem ao ressaltar o empenho dos maçons brasileiros na defesa da nação emergente e de um governo pautado prioritariamente pela Lei, sendo a identidade maçônica preenchida com dois atributos básicos: nacionalismo e constitucionalismo.

Azevedo (1997) ressalta que na abordagem de Prado Jr, aos maçons brasileiros interessava a solução das questões internas do país, o que os levava a agir mais como brasileiros do que como maçons. Utilizavam-se da maçonaria para atuarem de forma mais orientada e organizada. Havia mais uma troca de favores entre a maçonaria e os brasileiros do que uma simbiose entre eles:

A história da maçonaria não teria passado, portanto, na visão de Prado Jr, de uma relação instrumental, de importância momentânea e – por que não explicitar? – secundária. Nossos maçons não foram em sua essência maçons, mas sim brasileiros, e ao final de contas a importância de sua ação política parece residir precisamente nesse fato. (Azevedo, 1997, p.187)

Assim, como muitos historiadores ancoram seus referenciais em Prado Jr., a autora afirma que em muitos estudos se constata uma perda da identidade maçônica em relação a vários personagens de destaque no cenário político brasileiro do século XIX, cuja trajetória é destacada sem que seja mencionada sua filiação maçônica. (Azevedo, 1997, p. 185).83

Ressalto que o mesmo ocorre em relação aos personagens de destaque no âmbito educacional brasileiro. Suas práticas e trajetórias como intelectuais carecem de informações sobre o fato de terem sido maçons e terem participado desse importante espaço de sociabilidade que definia estratégias de distribuição e apropriação de capital cultural que foi a maçonaria, principalmente no largo século XIX. Sua atuação como políticos, jornalistas, escritores, professores e gestores aparece nos estudos acadêmicos descolada de seu pertencimento à maçonaria. Indubitavelmente essa é uma lacuna a ser preenchida a partir de estudos que retirem a maçonaria de sua invisibilidade no contexto político-educacional brasileiro. E assim, que sejam formuladas novas questões às fontes de pesquisa que levem em conta a compreensão das especificidades da instituição maçônica, as características sócio-econômicas e culturais dos maçons, sua influência sócio-cultural, os distintos posicionamentos da ordem em relação a questões regionais, nacionais e internacionais.

83 Azevedo (1997, p. 186) também afirma que “é interessante observar aqui que outro importante historiador contemporâneo, Sérgio Buarque de Holanda, limitou-se a registrar em algumas linhas o declínio da maçonaria numa suposta substituição desta pelo movimento positivista. Não oferece, no entanto, explicações e evidências para esta tese apenas acenada no início de um capítulo significativamente intitulado “Da Maçonaria ao Positivismo”. Haveria aqui implicitamente uma vontade de encerrar definitivamente o assunto maçonaria na história do Brasil? Ver: O Brasil Monárquico – Do Império à República, tomo 2, vol. 5, São Paulo, Difel, 1985, pp. 289-305.”

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Se era lugar comum ser intelectual e maçom no período aqui estudado, os historiadores da educação devem contextualizar esse fato. Estabelecer relações com o significado de pertença a este grupo.84 Conforme demonstra Barata (1999) o desejo de usufruir do auxílio mútuo praticado pela ordem, a percepção da maçonaria como um espaço de convívio e mobilidades sociais e o entendimento do espaço maçônico como escola de virtudes, de debate de ideias e de aprendizado do viver em coletividade, eram as principais razões que levavam os homens a ingressarem na maçonaria. Ser maçom, para certos setores da sociedade, significava uma forma de influir, de participar da estruturação do Estado Brasileiro.

Pelo que foi aqui expresso, é importante ressaltar que a história da educação brasileira carece de estudos que abordem sobre a atuação dos intelectuais brasileiros estabelecendo uma identificação de suas reflexões e práticas políticas de vanguarda com a maçonaria compreendida como um espaço de sociabilidade agregador de expectativas do pensamento da modernidade.

Azevedo (1997), Barata (1999) e Morel (2001), autores que nesse estudo são uma importante referência, destacam a potencialidade do conceito de sociabilidade para as análises históricas que envolvem a maçonaria e seu contexto de atuação. Sobre o resgate e utilização desse conceito, Morel (2001) destaca que

uma obra póstuma de Augustin Cochin (1925) valorizou o papel das associações para compreender a eclosão da Revolução Francesa. Tal trabalho não teve repercussão imediata, mas seria recuperado por François Furet (1978). As sociabilidades - como tema e instrumental teórico e metodológico - fariam entrada definitiva no campo da pesquisa histórica acadêmica com a obra de Maurice Agulhon (1968 e 1977), um dos reconhecidos herdeiros da Ecole des Annales, inicialmente com sua tese e, na década seguinte, com um balanço crítico das possibilidades e perspectivas de tal abordagem. (Morel, 2001, p.4)

Morel, afirma que Agulhon passa a propor o conhecimento das sociabilidades pela densidade da existência de associações constituídas e suas mutações num quadro geográfico e cronológico delimitado, ou seja,

uma história da vontade associativa com dados quantitativos e comparativos, com suas mudanças no tempo e no espaço. O referido autor chegava mesmo a tocar na questão das identidades culturais, discutindo a aptidão de determinados grupamentos humanos regionais para as formas estudadas, no caso, a passagem das confrarias para as maçonarias na Provence. (Morel, 2001, p.4)

84 Esse pode ser o caso de maçons que se destacaram no âmbito político-educacional brasileiro como o Padre Diogo Antônio Feijó, Rui Barbosa, Francisco Rangel Pestana, dentre outros.

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Segundo Azevedo (1997) a noção de sociabilidade introduzida por Agulhon no vocabulário dos historiadores dos Annales, adquiriu crescente relevo na história social e cultural, sendo fundamental para a compreensão da história da maçonaria. No entanto, a autora ressalta que esse autor não teve muitos seguidores na França no tocante à história da maçonaria propriamente dita.

2. OS MAÇONS NO CONTEXTO DA MODERNIDADE EDUCACIONAL

Para identificar e caracterizar o quadro de modernização educacional e a atuação dos maçons e da maçonaria torna-se fundamental reconhecê-lo no contexto da Modernidade. Modernidade compreendida aqui como uma designação abrangente de um largo século XIX, período de 1789 a 1914, e de um curto século XX, de 1914 a 1945 (Habermas, 2000), em que mudanças intelectuais, sociais, políticas e econômicas refletem-se na crescente racionalização em todos os aspectos da vida social e do pensamento humano. Os eventos ligados à Revolução Francesa, à constituição do Iluminismo e do industrialismo (capitalismo), representam a superação do pensamento e das tradicionais organizações do medievo. O rompimento com o pensamento escolástico, método de pensamento crítico intrínseco aos preceitos da Igreja Católica, e o uso da razão como forma autônoma de construção de conhecimento, desvinculado de preceitos teológicos, base do Iluminismo, foram fundamentais na construção do pensamento moderno no largo século XIX.

O empirismo iluminista que estabelece a razão e a ciência como a verdadeira forma de se conhecer o mundo e fortalece os ideais de laços sociais igualitários, abalou a estruturas do absolutismo real, cujos pilares sociais e políticos assentavam-se em bases teológicas. As ideias iluministas serão, também, o sustentáculo ideológico dos movimentos de independência das colônias americanas, bem como a implantação dos regimes republicanos na Europa e nas américas.

No contexto da Modernidade, a maçonaria, uma instituição filosófica e filantrópica de natureza discreta, privada e de caráter secreto, foi uma das mais expressivas formas de organização política oposicionista ao absolutismo real e ao poder clerical, especialmente do jesuitismo, representando um lugar de circulação de ideias e práticas modernas, destacadamente no largo século XIX. A atuação política de maçons e da maçonaria foi fundamental na constituição, divulgação e implantação do ideário da Ilustração, do Positivismo e Liberalismo.

Como afirma Morel (2008),

“guardada pelo segredo, a maçonaria constitui-se em “poder indireto”, uma vez que se torna um local de discussão de questões de cunho político, sem contudo, estar sob o controle e a vigência do Estado. O segredo permitia a esta instituição apresentar-se como apolítica, mesmo configurando-se como um importante agente político.

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Contudo a tentativa de escapar do controle do Estado não é a única explicação para uma postura revolucionária ou oposicionista da maçonaria. Ao contrário, o posicionamento dessa instituição frente aos regimes políticos variou de acordo com uma série de fatores (elementos históricos, religião, região, conjunturas) que ultrapassam o fato de constituir-se como um lugar protegido pelo segredo. Até por seu ideário de progresso, ainda que difuso, as maçonarias tendem a ser mais evolucionistas e pregar mudanças graduais.”(Morel, 2008, p. 44 e 45)

Esse autor utiliza muito a expressão “as maçonarias” e não “a maçonaria” levando em conta que não existiu apenas uma maçonaria como centro aglutinador e atemporal, mas sim, diversas organizações maçônicas ao longo do tempo. Ele ressalta que a importância de compreender a maçonaria não de maneira isolada da sociedade, mas como uma associação presente em diferentes situações históricas, atravessada por questões de cada momento e possuindo características próprias oriundas de divisões e contradições assim como de conquistas e inovações. (Morel, 2008, p.10)

No Brasil, por vezes, as contradições entre o discurso e a prática maçônica resultaram da manipulação por parte desta instituição, das demandas de alguns setores da sociedade e dos poderes locais e regionais como forma de ampliar suas fileiras e aumentar seu poder e influência, estando muito ligada à vida política do país e à parcela da elite intelectual. No entanto, nos documentos aqui analisados muito é dito sobre o fato de a maçonaria não ser considerada uma associação política, que se envolva com partidos políticos, como pode ser constatado na exposição seguir

Nos paizes regidos por instituições livres a Maçonaria não é, e nem deve ser uma associação política. Ahi os sacrosantos princípios por que sempre pugnou têm por defensores a imprensa, a tribuna, toda a organisação política e social. [...] Mas, si a Maçonaria deve em geral affastar-se dos pleitos dos partidos, não se segue que deve, que possa mesmo ficar indiferente quando, por uma aberração inqualificável, se tente n'esses paizes aniquilar os princípios que, mais do que ninguém, ella proclamou e defendeu, procurando tornal-os os guias seguros e invioláveis das sociedades modernas. (Boletim...,1891,p.2)

Não há como negar sua atuação e influência como um autêntico grupo de pressão que aglutinou expressiva parcela da elite imperial e republicana (Barata, 1999). Sua estrutura organizacional respaldou sua atuação política como grupo assim como as iniciativas de maçons que atuavam na política nacional. Os maçons debateram nas lojas, na imprensa, no Parlamento e nas instituições das quais faziam parte, temas

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relativos à defesa da liberdade de consciência, da educação e do progresso do país, do fim do escravismo85 e da implantação da República.

Ressalta-se que ainda durante o império brasileiro a atividade maçônica desenvolvia-se francamente com o apoio e participação da Igreja e do Estado. Dela faziam parte políticos monarquistas e republicanos. As relações entre o clero e a Maçonaria foram relativamente tranquilas até 1872, com a “Questão Religiosa” quando o governo de D. Pedro II decidiu não apoiar a política antimaçônica do Vaticano. A monarquia acabou perdendo o apoio de uma de suas bases de sustentação, a Igreja Católica, o que contribuiu para acelerar a Proclamação da República em 1889, fato que resultou em grande parte do trabalho de políticos ligados à Maçonaria. Salienta-se que a maçonaria, conforme já abordado anteriormente, se constituiu num terreno fértil para a propagação das ideias iluministas e liberais no século XVIII, difundindo o uso da razão na busca do progresso intelectual, social e moral e como forma de debelar toda a tirania, seja intelectual, moral ou religiosa. Ideias essas que foram o sustentáculo para a modernização presente no século XIX e primeiras décadas do século XX e que embasaram mudanças que visavam à construção do que consideravam uma nova sociedade.

No contexto da Modernidade, Magalhães (2010, p. 11) destaca que “na base da Modernidade está a educação”. Como afirma esse autor, a Modernidade

“caracterizou-se em linhas gerais, por uma tensão e progressiva harmonização entre os sujeitos e as instituições, por meio da educação. Pragmática e linguagem, a escola e a cultura escolar tornaram-se constitutivas e instituintes da Modernidade, reificando-se como experiência e processo, meio e substância, de aculturação e comunicação, disciplina e organização, intelecção e racionalidade.” (Magalhães, 2010, p.13)

Assim, como uma instituição que propugnava o ideal de modernização civilizatória nacional, viam na educação, benemerência e filantropia o sustentáculo de sua atuação. O posicionamento da Maçonaria em relação à instrução (educação) elementar pública, laica e gratuita destinada às classes menos abastadas e a qualificação e profissionalização do professor público é apresentado no primeiro número do Boletim do Grande Oriente do Brasil:

85 O movimento abolicionista tomou força em meados do século XIX. Em decorrência, principalmente, da pressão inglesa, em 1850 foi decretada a lei Euzébio de Queiroz, que extinguia o tráfico de escravos. O elaborador dessa lei, o maçom Euzébio de Queiroz, era então ministro da Justiça. Como a escravidão continuava sendo alimentada pelo comércio interno a campanha abolicionista teve nas lojas maçônica um importante espaço para sua articulação. Em 1871 foi aprovada a Lei Visconde Rio Branco, que ficou conhecida como a “lei do ventre-livre”. A partir dela, filhos de escravos eram considerados livres. (Castellani, 1989). No Boletim Maçônico do Grande Oriente do Brasil de março de 1872, há interessante descrição da solenidade comemorativa da Lei de 28 de setembro de 1871 ocorrida na loja desse Grande Oriente.

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O privilégio nos campos da inteligência parece ser o maior obstáculo que se oppõe ao desenvolvimento dos destinos da sociedade e uma causa poderosa da ignorância dos espíritos o da inferioridade moral das classes menos abastadas. A necessidade de conhecerse a fonte, onde foi bebida a instrucção e os meios empregados para obtê-lo, a chancelaria de um estabelecimento publico ou approvado pela administração, como um privilégio para a admissão nas universidades ou academias, a negligência dos juizes sobre as habilitações dos professores públicos, cuja unica direcção deve ser confiado o ensino, a imposição da acquisição dos conhecimentos acessórios em diversos ramos de estudo, todas estas distincções devem desapparecer para que a instrucção torne-se possível e fácil. A propagação da instrucção pelo povo é uma idéia que a Inst.’. Mac.’., que abraça a causa da humanidade, deve sempre sustentar e executar, com o intuito de auxiliar a administração da sociedade na realisação de medidas, de que depende o seu progresso.” (BOLETIM...,1871, p. 11)

O posicionamento da Maçonaria em relação à educação e sua luta pelo ensino público, contra o analfabetismo e em prol da obrigatoriedade do ensino primário, adentra as primeiras décadas do século XX. No jornal maçônico “O Templário”86, em 1920, essa temática é apresentada nos quatro primeiros números. Os artigos realizam uma crítica em relação ao descaso com que vinha sendo tratada a instrução pública por parte do governo federal. A educação elementar estendida a todos os brasileiros não era vista como um caminho para mudanças estruturais da sociedade. Seria, isto sim, um caminho que levaria a uma “boa ordem e tranqüilidade pública [...]com homens laboriosos que, com perfeito conhecimento dos seus mystéres, conheçam, também os seus deveres e direitos, e saibam alguma cousa do mundo, suas leis e seus sucessos”.87

O ensino elementar obrigatório seria, portanto, uma forma de produzir trabalhadores mais interados nos modernos processos de produção. A educação era considerada como “o factor mais importante e efficaz para estabelecer a fraternidade entre os homens”88. Estimulando as diferenças individuais, deveria habilitar a população para assumir os diferentes papéis exigidos pela “nova sociedade”, ou seja, a sociedade industrial emergente. Como se observa a seguir, a educação seria um meio de resguardar os interesses dos proprietários e contribuir na formação de uma sociedade industrial dócil e pacífica:

“ Dia a dia as machinas vão substituindo os braços, a força bruta cede logar aos engenhos. O que acontecerá aos seres lançados de um momento para o outro na dura contingência da lucta pela existência?!

86 “O Templário” foi um jornal maçônico da cidade de Pelotas, RS, que circulou nas décadas de 1920 e 1930. Algumas reflexões aqui apresentadas resultam de estudos apresentados em Amaral (2005).

87 Idem ibidem.

88 “O Templário” 15.02.1928, p. 1.

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Estancarão ante os complicados apparelhos que não saberão movimentar por lhes faltar a luz que se adquire nos bancos dos collegios [...] Na officina não se tramarão mais greves, porque todo o operário saberá e poderá acceitar o que lhe convém, porque para tal terá apparelhada a razão no valor equitativo do trabalho”.89

Sendo assim, a instrução elementar estendida a todos os brasileiros, resultaria na “ordem e progresso” tão propalada pelo nascente sistema democrático republicano brasileiro.

Também não há como deixar de mencionar aqui aspectos da caridade, benemerência e filantropia maçônica, características que moldam o processo de constituição comportamental do maçom e da própria atuação da maçonaria e que identificam e singularizam sua atuação na sociedade. Como é afirmado no Boletim do Grande Oriente do Brasil

A caridade, como a primeira virtude social, é a que mais aproxima o homem da divindade, e a que deve distinguir o caracter do maçon em todas as phases da vida humana. [...] A caridade é a base de todas as nossas accões relativamente aos nossos irmãos. É a norma que dirige o nosso zelo e afan pelo bem do gênero humano. Posto que as necessidades dos nossos irmãos nos interessem particularmente, o mérito e a virtude na indigencia, qualquer que seja a pessoa em que se encontre, deve merecer sempre os nossos benefícios e as nossas atenções (Boletim..., 1883, p. 67)

Analisando atas, correspondências e relatórios, constata-se o empenho dos maçons junto aos trabalhos sociais desenvolvidos pela Maçonaria. Não raros eram aqueles que, bem sucedidos economicamente, realizavam vultosas doações em dinheiro ou bens imobiliários, contribuindo no trabalho de auxílio a instituições de caridade e educacionais, assim como com maçons que atravessassem difícil situação financeira. No período estudado, as atitudes filantrópicas eram exaltadas pela imprensa maçônica e profana90.

Assim, a maçonaria, a partir do século XIX, reiterando sua incorporação e apropriação dos discursos de vanguarda e que sustentam a modernidade educativa, ocorre a identificação dos maçons com os princípios do Positivismo. Assumiram, então, a assertiva positivista de que a solução para os problemas nacionais estavam vinculados ao acesso à escolarização. No entanto, há que se ressaltar que para eles, a solução destes problemas não passava por mudanças estruturais na sociedade. O papel de cada indivíduo no grupo social, quando bem compreendido e aceito, efetivaria, o que consideravam uma nova sociedade que seria aquela onde imperasse

89 “O Templário” 02.03.1920, p. 1.

90 Cf. Marques (1986, p. 1165) o termo “profano” refere-se a todo indivíduo ou toda a coisa que não pertença à Maçonaria.

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a ordem através de um tutoramento da população por parte daqueles considerados capazes de conduzir os seus destinos. Assim, identificavam-se com os interesses das elites e dos grupos em ascensão social, contemplando também certos anseios das classes menos favorecidas. Nesta lógica, existindo a ordem social, o resultado seria o progresso do país. Situações almejadas desde meados do século XIX pelos maçons, liberais e republicanos e que aparecem na bandeira nacional brasileira onde estão estampadas as palavras ordem e progresso (AMARAL,2005).

Nesse contexto, segundo AMARAL(2005) a cooptação da mulher para a causa maçônica foi fundamental e alavancou discussões sobre sua inserção social, mormente nas escolas. O que parece a primeira vista uma contradição, uma vez que a instituição maçônica é essencialmente masculina, a preocupação com a educação das mulheres fundamenta-se no fato de ser ela considerada mãe e educadora das futuras gerações, devendo então estar preparada para desempenhar vem seu papel social. Destaca-se no presente trabalho a presença e participação da portuguesa Ana de Castro Osório no espaço maçônico luso-brasileiro nas primeiras décadas do século XX, através de sua atuação como escritora e defensora da Maçonaria feminina e dos ideais republicanos.91

Em janeiro de 1923 “O Templário” chegou a estampar em sua primeira página uma fotografia de Anna Osório, venerável de uma Loja feminina de Portugal,92 com as insígnias da Maçonaria. Junto à fotografia que ocupava a metade da página do jornal, lê-se o seguinte:

“Queremos prestar a nossa singela homenagem á brilhante intellectual D. Anna de Castro Osorio que veio pessoalmente espargir no Brasil os lampejos de seu prodigioso talento. Como escriptora, educacionista e propagandista das ideias avançadas, a notavel portugueza conquistou em sua querida Patria uma posição de destaque entre os contemporaneos”.93

Anna Osório visitou o Rio Grande do Sul com o objetivo de propagar a importância da Maçonaria Feminina e da união dos maçons frente ao avanço do clericalismo. Seus discursos proferidos em Lojas de Pelotas e Rio Grande foram transcritos neste jornal.94 Em seu conteúdo há dominância de um anticlericalismo e

91 Como afirma Gomes (2011) “Ana de Castro Osório (1872-1935) é uma intelectual razoavelmente reconhecida e estudada em Portugal, sobretudo no contexto das comemorações do Centenário da República, causa que ela ajudou a propagar e com a qual colaborou em projetos importantes, como o do divórcio. [...] Os trabalhos a ela dedicados, concentram-se mais no campo da literatura, no qual teve presença marcante, e, na história, privilegiam sua atuação como líder feminista.[...] [É] autora e editora de manuais escolares e livros infantis que circularam em Portugal e também no Brasil. Apesar desse fato, ela é praticamente uma desconhecida no Brasil, onde viveu entre 1911 e 1914, tendo alguns de seus livros participado da formação da infância de muitos brasileiros, em especial durante os anos 1910[...]”.

92 Este país era, na época, o único a possuir Lojas exclusivas de mulheres.

93 “O Templário”, 17.01

94 Seus discursos nas viagens que fez ao Brasil nesse período constituirão o livro “A Grande Aliança”.

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de um feminismo que buscava igualdade de direitos entre as mulheres e os homens na Maçonaria, ressaltando o papel da mulher como mãe e “modeladora” dos filhos.

A Maçonaria, contrapondo-se ao papel de desigualdade social da mulher perante o homem, reforçado, segundo os maçons, pelo catolicismo, utilizou-se do apoio à causa feminina na disputa pela primazia de suas ideias, desenvolvendo um discurso e até mesmo uma prática voltada aos interesses feministas. Nesta afronta ao clericalismo, a legalização do divórcio passa a ser amplamente debatida e defendida pelos maçons, assim como a participação feminina junto a esta instituição. Ao mesmo tempo, a presença da mulher na Maçonaria fazia parte de uma ideia de reconstrução social que servisse para auxiliar na solução dos problemas vividos no início do século XX. A colaboração da mulher foi vista como essencial na cruzada moralizadora em que se empenhou esta Instituição e que tinha como alvo principal o clericalismo vigente. Como a instituição maçônica vinculava as mudanças sociais à questão educacional e sendo a mulher o sustentáculo da Igreja Católica, a Maçonaria passou a propugnar a ideia de que era necessário tirar a mulher do domínio do catolicismo romano para que houvesse realmente uma reforma educacional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No período estudado, a maçonaria brasileira, como espaço de sociabilidade, tem nos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, a sustentação de seus discursos que buscam respaldar suas práticas sociais e políticas. O papel dos maçons foi essencialmente levar essas discussões para o campo político e social em que atuavam.

E é, nesse sentido, que o presente estudo busca ressaltar a importância de que se leve em conta a filiação maçônica de determinados indivíduos que se destacaram no espaço político-educacional brasileiro. Suas práticas, propostas e decisões, provavelmente foram discutidas e gestadas no espaço das lojas maçônicas, junto ao grupo do qual faziam parte. E essa era uma das importantes finalidades desse grupo: ser um espaço de sociabilidade, de discussão de ideias ancoradas nos pressupostos da modernidade.

No Brasil, o processo de laicização do ensino decorrente da Proclamação da República, resultou no acirramento das disputas entre a Maçonaria e a Igreja Católica pela primazia no campo educacional. Para os maçons, o clero através de sua ação pastoral e, especialmente da Companhia de Jesus, atuando junto à educação das elites, sedimentava conceitos e condutas que perpetuavam uma organização social arcaica que levava o país ao atraso. Os maçons, embora muito próximos das premissas do Positivismo, distanciavam-se delas ao defenderem a existência do ensino elementar obrigatório, público, laico e gratuito como forma de garantir o efetivo desempenho da função que delegava à educação formal: manutenção da coesão social e a diminuição da influência das escolas particulares confessionais. As ideias positivistas de separação entre a Igreja e o Estado, de liberdade espiritual, de valorização da tradição, da família, do dever, da hierarquia social, serviram de

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sustentáculo aos propósitos defendidos pelos maçons, sobretudo no campo educacional. A ação dos maçons na modernização educacional inclui designadamente práticas políticas como intelectuais, gestores, legisladores, escritores, jornalistas, professores, bem como a fundação de lojas maçônicas, a criação de periódicos, a publicação de livros, a fundação de bibliotecas, de escolas, de faculdades e de obras de benemerência voltadas aos mais necessitados. Sua atuação de oposição ao discurso conservador do catolicismo romano representou uma importante e destacada referência no processo de modernização educativa na emergente república brasileira.

BIBLIOGRAFIA

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O TEMPLÁRIO (1920-1935). Órgão da Lojas Unidas “Honra e humanidade, Rio Branco e Lealdade”. Pelotas, RS.

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ID: 488

PUXANDO FIOS, PRODUZINDO TEIAS:CONTRIBUIÇÕES DA

HISTÓRIA CULTURAL E HISTÓRIA SOCIAL PARA PESQUISA

Autor: Adir da Luz Almeida Filiação: Universidade do Estado do Rio de Janeiro

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RESUMO

O trabalho problematiza contribuições da História Social e História Cultural para pesquisa, destacando contribuições dos historiadores Michel De Certeau e Roger Chartier. A estrutura textual do artigo não pretende primeiramente teorizar e após discutir a pesquisa desenvolvida, e sim puxar fios teórico-metodológicos fazendo o movimento da escrita operatória com conceitos priorizados e outros que se apresentam. Produzindo, metaforicamente, o que chamo de teias. O que precisamos no momento do mapeamento das fontes, junto aos arquivos, é segundo FARGE (1991) deixar-nos surpreender por pistas, sinais. Meu objeto e objetivo de pesquisa é Arthur Ramos, o Serviço de Ortofrenia e Higiene Mental e seus efeitos na relação Escola-Comunidade no Rio de Janeiro de 1930. Sabendo que não há datas redondas no fazer historiográfico, 1930, todavia, não foi um ano comum. No rastilho do final do século XIX e das duas primeiras décadas do século XX, este ano anuncia-se como o momento de tornar concreto um projeto de “unidade nacional” em vários campos, com destaque para o campo educativo. Homem envolvido nas tramas e nas representações do seu tempo é como vemos Arthur Ramos.

PALAVRAS-CHAVE

Educação, intelectuais , teorias/metodologias

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1. PUXANDO FIOS

O ato da escrita esconde muitas armadilhas e teias. Considero impossível escapar de todas; mas... puxar fios, buscar trançá-los e constituir o ato de escrever como um bordado penso ser o trabalho do historiador.

O que o historiador fabrica quando se torna escritor? Seu próprio discurso deve revelá-lo.

Aqui a estrutura textual não pretende primeiramente teorizar e após discutir a pesquisa desenvolvida, e sim puxar fios teórico-metodológicos fazendo o movimento da escrita operatória com os conceitos. Persigo uma escrita que seja problematizadora, apresentando um estilo onde a ousadia esteja presente. Penso que só há uma maneira de alcançar este horizonte que ora parece se aproximar, ora se afastar: escrevendo.

Um primeiro fio que puxo é a importância de Michel De Certeau na configuração do campo de reflexão historiográfico da História Cultural. Reconhecido pelo vigor teórico-metodológico de suas reflexões, pela erudição, marcando o cenário intelectual pelo anticonformismo e a perspicácia; criticando os cânones da disciplina rígida, seguindo caminhos estranhos à lógica das instituições, estejam ligadas à Universidade, à Igreja, ao Estado. Torna-se conhecido como historiador pela produção sobre a mística e as correntes religiosas nos séculos XVI e XVII, avançando na sua produção para perceber e trazer para o centro das discussões a vida cotidiana dos sujeitos anônimos95, a problematização do conceito de cultura e a relação entre os intelectuais e a cultura popular96, entre outros temas.

Se por um lado o campo da História Cultural constitui-se num campo consolidado97 com forte produção teórico-metodológica, ampliação dos objetos de estudos, diálogo com outras áreas do conhecimento, o manuseio e utilização das fontes; por outro (esse é seu dilema) corre permanentemente o risco de fragmentar-se, devido aos diferentes ramos, subáreas, que fazem parte de seu cenário.

A palavra Cultura que acompanha a palavra História tem sido objeto de várias discussões devido à impregnação de inúmeras definições oriundas de outras áreas

95 Destacamos a obra A Invenção do Cotidiano- Volumes I e II, editada no Brasil pela Ed. Vozes

96 Temáticas discutidas, em especial, no livro A Cultura no Plural. Ed. Papirus

97Peter Burke em “Abertura: A Nova História, seu passado e seu futuro” nos ajuda a dialogar com a construção do campo da Nova História, ampliando o leque dessa construção e remetendo não só ao movimento de intelectuais americanos, mas recuando e afirmando que a argumentação recente de “substituição de uma história antiga por uma nova (mais objetiva e menos literária) é um tema recorrente na história da escrita da história. Tais afirmações foram feitas por Ranke no século XIX, pelo grande estudioso beneditino Jean Mabillon, que formulou novos métodos de escrita da fonte no século XVII, e pelo historiador grego Polibio, que denunciou seus companheiros como meros retóricos, cento e cinqüenta anos antes do nascimento de Cristo. No primeiro caso, pelo menos, a reivindicação da novidade foi consciente. Em 1867, o grande historiador holandês Robertt Fruin publicou um ensaio chamado” A Nova Historiografia”, uma defesa da história científica, rankeana”. (BURKER: p. 18).

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de conhecimento que há mais tempo sobre a mesma vêm se debruçando, destacando a Antropologia.

cabe então ao historiador não ignorar que o campo cultural não lhe pertence com exclusividade(...). Existe, ou pelo menos é possível, uma abordagem historiográfica desse campo, mas não é nem poderá ser jamais a única (FALCON, 2002, p.9).

Mariza Correa explicitando o movimento dos antropólogos: de uma tribo voltada para si mesma, caminha para a articulação com outras áreas de conhecimento, incluindo-se aí a Educação.

Ao trabalharmos com Cultura sem percebê-la como plural estamos tratando-a em seu sentido restrito. Tomando-a no seu sentido amplo, “compreende tanto a cultura intelectual quanto a material; a erudita e a popular; a cultura científica, filosófica e artística, mas, também, a alta cultura (ciências, filosofia, artes, literatura) e a cultura cotidiana, ou do senso-comum. A primeira chamada cultura dominante, ou das elites; a segunda é a cultura dominada, também dita popular.” (FALCON, 2002: p. 11)

Tais dicotomias passam por críticas e revisões, pois seus efeitos podem produzir um fazer historiográfico lidando com opostos binários, onde não só secundariza-se as relações entre esses pólos, como cada um deles é trabalhado a partir de um todo homogêneo e monolítico. Nesta maneira de teorizar, as limitações acabam ocorrendo, pois se trabalha com uma lógica basicamente formal e, além de pares opostos, corre-se o risco de não serem percebidas as diferenças que existem dentro de cada um deles na ação cotidiana daqueles que socialmente pertencem ou sentem-se pertencendo a um dos grupos.

Quais representações se produzem sobre o que é considerado ou não como popular? Michel De Certeau (2005), no livro A Cultura no Plural, recua do período contemporâneo até ao Antigo Regime buscando uma clareza maior do termo na literatura popular e, ainda que valorize os estudos de diversos intelectuais98, faz uma afirmação, no mínimo, instigadora: “Nesse fluxo de livros de eruditos, a literatura popular nem sempre diz seu nome” (p.66). Outra instigação de Certeau: “o “popular” deveria ser procurado entre os leitores” (p.66).

Certeau define seu livro “A Cultura no Plural” como um livro de “passos esboçados e paisagens de travessias” (op.cit, p.18). Terreno claramente pantanoso, mas, nesta afirmação de Certeau sobre cultura, fica uma instigação para posterior aprofundamento: A cultura está para além de suas representações?

No diálogo perspicaz com os autores que elege para discutir o “popular” Certeau não fecha suas reflexões nos mesmos e, ao contrário, interroga a utilização de repertório como dispositivo explicativo de si mesmo, alertando que tais chaves não são auto-explicativas, podendo “revelar incidentalmente o olhar lançado pelo outro

98 Cita Robert Mandaru, Genevière Bollème, Marc Soriano.

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para uma sociedade que se constrói sobre o silêncio e a exclusão do outro” (op.cit: p. 73). Nessa direção somos levados a reencontrar a raiz do problema ao investigarmos o popular na história social: “a cultura popular apreende-se apenas segundo o modo de desaparecimento porque nosso saber se impõe, qualquer que seja o caso, não mais ouvir e não mais saber falar disso” (op.cit: p. 73).

O trabalho do historiador na formalização de sua pesquisa produziria “erros”, insuficiências, cientificamente utilizáveis; mudando a pesquisa de sentido e direção, deslocando-se para os desvios que as combinações lógicas revelam, trabalhando nos limites para dar lugar aos “restos” e, portanto, de um passado que é produto de trabalho.

No caminhar de suas pesquisas, Certeau produz A Invenção do Cotidiano, não mais relacionando diretamente a formas acadêmicas/ populares ou marginais de produzir cultura, mas “a operacionalidade e à virtuosidade das práticas correntes, dinâmica infinita da cotidianidade. Trata-se, talvez, de uma passagem do “plural” ao múltiplo e de figurações sociais no solo móbil que elas articulam”. (1990: p.18)

Trabalho e lazer, cada vez mais, se reforçam um a outro, através de técnicas culturais: o happening, a informação, a comunicação, produzindo como efeito uma nova (não tão nova) gestão do trabalho: o mapeamento e a massificação. Fazeres distintos, qualificados segundo o lugar, homogeneizados no “fazer”.

Entre o uso ou o consumo, o autor, além de remeter a trabalhos sobre bens culturais, ressalta que parece possível considerar esses bens para além de quadros estatísticos, como o repertório com o qual os usuários procedem a operações próprias; enfim o léxico de suas práticas. O que absorvem, recebem, pagam? O que fazem?

Perguntas formuladas por Certeau, utilizando a “imagem do consumidor-esfinge”: decifra-me ou te devoro? Esse deciframento é a tarefa que o autor se impõe, com todas as invisibilidades que o processo impõe ao pesquisador, ocasionado pelas astúcias do consumo, que, entre outras, se coloca na clandestinidade, num murmúrio incansável.

Há, sempre, na argumentação de Certeau uma possibilidade de prática desviante, subversiva, que proporciona ao dominado utilizar para outros fins aquilo que lhe foi imposto, pela força ou sedução, pelo conquistador. Para isso um terreno importante refere-se ao uso da língua para buscar perceber as formalidades das práticas. As práticas cotidianas na região do uso da língua (um sistema) se apóiam numa problemática do enunciado e um alerta se apresenta e nos faz perceber que o “contexto do uso” remete aos traços que especificam o ato de falar e são efeitos dele. Para além de um sistema ou de uma ordem às relações de força definem uma rede, com combates ou jogos entre o forte e o fraco, e as ações que o fraco pode empreender: suas táticas e astúcias.

Estratégias e táticas entram em negociações ou combates, influência recíproca, o que não que dizer relação de causa e efeito e sim movimento dentro do “fazer com”. Nesse movimento, realizam-se as práticas e, ainda que ache insuficiente para contemplar a concepção de movimento, o autor recorre para dar conta dessas

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práticas à categoria de “trajetória”. O perigo para o pesquisador é que ao traçar pontos de uma trajetória formalizemos uma figura, um gráfico que tome o lugar de uma operação.

Reconhecendo a importância de Foucault em suas reflexões, considerando a teorização do mesmo para o que chama de despertar epistemológico, Certeau, em “Retóricas das práticas, astúcias milenares”, busca o método freudiano (cuja produção admirava) como procedimento de análise das manipulações da língua para seduzir, captar, inverter a posição lingüística do destinatário. As “maneiras de falar” fornecem à análise “maneiras de fazer” um repertório de modelos e hipóteses.

Mudanças no movimento das estratégias e táticas estariam já em circulação nas grandes cidades, da mesma maneira que estratégias e táticas utilizadas em outros registros sempre estiveram em circulação nas cidades, como espaço da multidão99.

O historiador também é um narrador, que narra utilizando o suporte teórico-metodológico que escolhe para construir sua narrativa e a matéria prima de seu trabalho: as fontes. O que precisamos no momento do mapeamento das fontes, junto aos arquivos, é segundo FARGE (1991) deixar-nos surpreender por pistas, sinais, porque o arquivo é “semejante a um bosque sin claros; al permanecer em él mucho tiempo, los ojos se acostubran a la penumbra, se entrevé la linde” (p. 56).

Buscando fios na História Cultural, encontramos o fio teórico-metodológico da micro-história, entre outras abordagens, apontada por Chartier como a “tradução mais viva desta abordagem”, pois é:

Radicalmente diferente da monografia tradicional, a micro-história pretende construir, a partir de uma situação particular, normal porque excepcional, a maneira como os indivíduos produzem o mundo social, por meio de suas alianças e seus confrontos, através das dependências que os ligam e dos conflitos que os opõem (CHARTIER, 1994, p.2).

Uma das saídas possíveis da teia do enredar-se nas fontes é colocar-se no lugar de quem pergunta, de quem problematiza suas fontes como, também, colocar-se no lugar de aprendiz que adentrando na oficina teórica dos autores busca nas teorias seus aportes epistemológicos e uma intimidade cada vez maior com as metodologias usadas pelos mesmos, aproximando-se ou afastando-se dessas ferramentas com cuidado, buscando apropriar-se daquelas que lhe fornecerão maior segurança na sua travessia de transformar o seu objeto de pesquisa numa escrita historiográfica que, ainda que seja parte de quem escreve, é apropriada e transformada por quem a lê.

O fim de um texto já representa sua própria morte, sua permanente leitura é tentar reviver aquilo que já não é mais: movimento do pensamento e de escrita do mesmo. O ato criativo só existe no momento fugidio de sua criação, depois é

99 O conceito de multidão desafia diversos autores. Cito alguns sem qualquer hierarquização: Walter Benjamin em O flâner, parte do texto A Paris do Segundo Império em Baudelaire; Michel de Certeau em A Cultura no Plural;

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representação (ou representações) daquele momento, e através de sua circulação possibilita aos sujeitos que com ele tomam contato sua apropriação, seja para uso ou para consumo.

Para Roger Chartier o trabalhar a escrita da história pressupõe “uma margem de incerteza irredutível e renunciando a própria noção de prova, que parecerá talvez decepcionante e um recuo relativamente ao propósito de verdade que constituiu a própria disciplina. Contudo, não existe outra via, a não ser postular – o que poucos se propõem fazer, segundo creio – quer o relativismo absoluto de uma história identificada com a ficção, quer as certezas ilusórias de uma história como ciência positiva”. (CHARTIER: 1990, p.88).

Chartier, pensador sobre práticas culturais, com pesquisas voltadas para a história de textos, impressos, leituras, cultura popular, opera com dois conceitos consideramos centrais na produção teórica do intelectual: práticas e representações. O texto impresso não é um simples espelho ou mero reflexo da sociedade onde foi produzido e por onde circula; já que modifica a realidade para educar as novas gerações, fornecendo uma imagem deformada, esquematizada, modelada, freqüentemente de forma favorável: as ações contrárias à moral são quase sempre exemplarmente punidas; os conflitos sociais, os atos delituosos ou a violência cotidiana são sistematicamente silenciados. O autor define seu conceito de práticas:

“Esse livro propõe-se, acima de tudo, traçar um projeto intelectual e um espaço de investigação. O fundamento comum a ambos decorre da aparente contradição em que se encontra envolvida toda a história, ou toda a sociologia da leitura: quer se considere o caráter todo–poderoso do texto, e seu poder de condicionamento sobre o leitor – o que significa fazer desaparecer a leitura enquanto prática autônoma -; quer se considere como primordial a liberdade do leitor, o produtor inventivo de sentidos não pretendidos e singulares. [ ] Transformar em tensão operatória aquilo que poderia surgir como aporia inultrapassável é o desígnio, a aposta, de uma sociologia histórica das práticas de leitura, que tem por objetivo identificar, para cada época e para cada meio, as modalidades partilhadas do ler – as quais dão formas e sentidos aos gestos individuais -, e que coloca no centro da sua interrogação os processos pelos quais, face a um texto, é historicamente produzido um sentido e diferenciadamente construída uma significação”. (CHARTIER: 1990, p. 121).

O conceito de representação é trabalhado por Chartier em “A construção do Estado Moderno e formas culturais: perspectivas e questões”. O Estado Moderno para consolidar-se precisa produzir representações para serem paulatinamente interiorizadas pela população, afastando o autor de construir o conceito como essência em si, como forma idealizada, e sim produzida historicamente.

O autor discute essa construção e consolidação a partir de um ponto de vista particular (indicativo do lugar que ocupa na argumentação): um historiador da

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época Moderna, mais familiarizado com as práticas culturais (particularmente as práticas de leitura) do que com as formas políticas (CHARTIER: p.215).

Dois mecanismos traduzem, para Chartier, a nova configuração de Estado Moderno: a) espaço pouco a pouco definido como nacional, estabelecendo a hegemonia de uma casa, uma dinastia, uma soberania; b) modificação nas formas de dominação na unidade hegemônica, que dá ao soberano poder sobre os instrumentos monopólios e fiscais ou militares, que são fortes mecanismos de controle social.

Chartier constrói a ponte mais larga sobre a “Construção do Estado Moderno” e seu objeto de discussão teórica: modos de escrita e leitura; quando afirma que “examinar as condições culturais do Estado Moderno é, para começar, interrogar, os laços existentes entre o seu desenvolvimento e os progressos da alfabetização das populações”. (CHARTIER, p. 217). Metodologicamente, para esta análise, sinaliza a necessidade de considerar as rupturas que “afetaram os suportes materiais ou os locais de produção da “ escrita de Estado”, essa escrita dos representantes das autoridades públicas ou a eles dirigida. (CHARTIER, p. 218).

As três grandes rupturas: a) a declaração oral pela fixação escrita b) substituição do recurso ao notário pelo de chancelarias c) por fim ao que faz recuar o manuscrito diante o texto impresso, alterando

a escala da circulação dos documentos oficiais e da literatura de justificação e também dos escritos críticos denunciadores do Estado moderno nos seus abusos ou nos seus fundamentos.

Na passagem das práticas da oralidade para as práticas da escrita ainda permanecem os gestos, as palavras de comando, o grito público que ainda ocupa o lugar do primeiro meio de publicação das vontades do príncipe. Mas, o quê conta para legitimar o texto impresso? A marca de uma dominação para todos que se torna, cada vez mais, visível e controladora das relações de sociabilidade pertinentes à nova ordem que se estabelece. Importante salientar, para fugirmos de uma historiografia linear e meramente descritiva que Chartier faz questão de reafirmar sua posição ao escrever: “se é legítimo associar o desenvolvimento do Estado moderno ao recurso crescente ao escrito (manuscritos e, depois, impresso) na administração dos homens e das coisas, é também necessário sublinhar vigorosamente que essa ligação se opera segundo modalidades específicas, que não são as dos Estados contemporâneos, encontrando resistências por parte das antigas maneiras de pensar e de mostrar o poder”. (CHARTIER, p. 219).

Nessa consolidação outra exigência se apresenta: a constituição de séries homogêneas de “signos do poder” (coroa, moedas, armas, selos, programas arquitetônicos, etc...), considerando que a leitura dessas séries adquire sempre um caráter plural. Neste mesmo movimento situa-se a relação de rituais públicos, tanto os sagrados como os profanos, que são sobredeterminados por uma questão política, ou seja, construir as relações “harmoniosas” entre os grupos sociais.

A consolidação da nova ordem – o Estado Moderno - se dá pelo movimento sutil e eficaz de passagem de um constrangimento imposto para um constrangimento

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interiorizado, do controle social ao autocontrole psíquico. Essa afirmação se contrapõe a considerar o psíquico como uma essência em si (forma de idealismo), como algo que se dá de maneira a-histórica.

Os textos políticos ou administrativos, sua circulação, seu uso e suas formas de apropriação, significam representações que pressupõem um destinatário, uma leitura que este fará (ou não), uma eficácia de convencimento. Apoiado na escrita, esse Estado precisa definir “políticas escolares”, lidando tanto com as ambições, as esperanças, as frustrações que o contingente estudantil trás para as crescentes formas escolares. Paralelamente é necessário produzir o conceito de individuo, responsável por seu êxito ou seu fracasso.

2- PRODUZINDO TEIA: ARTICULAÇÃO COM A PESQUISA.

Num saltito de Capitu 100 adentro no meu objeto/sujeito de pesquisa: Arthur Ramos, o Serviço de Ortofrenia e Higiene Mental e seus efeitos na relação escola, família, comunidade, no Rio de Janeiro de 1930.

Sabendo que não há datas redondas no fazer historiográfico, 1930, todavia, não foi um ano comum. No rastilho do final do século XIX e das duas primeiras décadas do século XX, este ano anuncia-se como o momento de tornar concreto um projeto de “unidade nacional” em vários campos, com destaque para o campo educativo. A chamada Revolução de 1930 acende “luzes” de esperança de que a partir daquele momento, finalmente, o Brasil ingressaria na tão sonhada “modernidade”.

Era no tempo da República101·...ainda jovem e que não se constituía para os brasileiros, que se consideravam “esclarecidos”, em uma “nação” moderna e civilizada.Visto ou vislumbrado de forma difusa, o “povo” passa a ser razão e objeto de ações que não só se pretendem salvadoras, mas formadoras de novas formas de pensar, sentir, viver a vida em sociedade.

O ideário educacional da época toma a forma de escolarização institucionalizada – a escola – em um sentido profundo, político, onde as lamentações de uns e as censuras de outros, não impedirão de tornar nacional projetos educacionais que já haviam se manifestado em formas regionalizadas102. Projeto que podemos chamar de unificador, como talvez só encontremos similaridade no próprio projeto jesuítico. Marta M. Chagas de Carvalho (2005), ressalta: “o processo de unificação não é,

100 A expressão “saltito de Capitu” é utilizada por Sidney Chaloub em seu livro Cidade Febril- Cortiços e Epidemias na Corte Imperial. Companhia das Letras. Capitu é uma das personagens centrais do livro Dom Casmurro de Machado de Assis.

101 Utilizo-me da expressão Era no tempo da República, na esteira de Manuel Antônio de Almeida que começa seu livro Memória de um Sargento de Milícias.a Cidade do Rio de Janeiro, na época joanina.

102 Reformas educacionais regionalizadas já vinham ocorrendo: em períodos anteriores, pelo Brasil: Sampaio Dória, em 1920, em São Paulo; Lourenço Filho, em Distrito 1922/1923, no Ceará; José Augusto, em 1925/28, no Rio Grande do Norte; Carneiro Leão, em 1922/26, no Federal e 1928, em Pernambuco; Lysímaco da Costa, em 1927/1928, no Paraná; Francisco Campos, em Minas Gerais, em 1927/28; Fernando Azevedo, em 1928, no Distrito Federal; Anísio Teixeira, em 1928, na Bahia.

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apenas, ação narrada; é o agente e o sentido da ação... Em bravura e capacidade de sintetizar o sentido do processo, a ele só se equipara um seu homólogo, os jesuítas” (p.334). Notamos a influência destes professores que lutaram por renovação: “quando o movimento de renovação educacional toma para si, na década de 20, tarefa jesuíta de unificação nacional” (CARVALHO, 2005: p.336).

Havia, porém, um claro descompasso entre as representações que os intelectuais tinham do “povo” e como ele se pensava. Se os primeiros, de certa forma, buscavam a homogeneização do diverso, este se mostrava na forma de uma multidão rebelde. Era necessário “civilizá-la”.

O projeto educacional, em 1930, teve a figura emblemática de Anísio Teixeira à frente. Dentre seus legados encontramos as propostas entre escola e comunidade e a binômia capacitação/participação presente nas ações de construção do sistema escolar público dentro do objetivo maior de construir, finalmente, a moderna “nação” brasileira. Arthur Ramos103 é nomeado chefe do Serviço de Ortofrenia e Higiene Mental, do Instituto de Pesquisas Educacionais, da Diretoria de Instrução Pública, desenvolvendo o projeto de trabalhar a relação escola e comunidade dentro da perspectiva de produzir novos valores sociais na população em geral, disciplinar e prevenir desajustes das crianças. Naquele espaço-tempo os educadores afirmavam que se para o ensino das elites não havia necessidade de canais de difusão da ação educativa, havendo "harmonia” entre a ação e a população a que se destinava, o mesmo não se podia dizer da educação das "massas”. Neste caso, a escola precisava ter seu alcance disciplinador104 e formador de mentalidades ampliado de modo a atingir as classes populares através da escolarização de seus filhos.

Anísio Teixeira agrega intelectuais, por vezes, com posições político-teóricas opostas, trazendo para frente da cena educacional do Distrito Federal um grupo que se lança no projeto de produzir a unidade nacional. Unidos por uma “vontade de mudar o país” lançavam projetos, construíam escolas, lutavam por melhor formação de professores, propondo nova relação da escola com a população. Ações, de certa forma, voluntaristas podem ter produzido aparente unidade do Movimento Escolanovista em meio às diferenças teóricas de seus participantes. Tenho, todavia, preocupação com a chamada “unidade do movimento”, já que pensar em “unidade” do movimento escolanovista é colocá-lo dentro de uma “camisa de força”. Um cuidado importante é não discutir à relação escola e comunidade centrada na figura meramente pessoal do chefe do Serviço de Higiene Mental: Arthur Ramos. Não cair na “armadilha” de falarmos do homem em si, e sim vê-lo como representante de uma época, analisando seus referenciais teóricos, as representações da população ainda

103 Médico alagoano, discípulo de Nina Rodrigues fica mais conhecido como Antropólogo e Etnólogo, tendo criado a Associação de Antropologia e Etnologia, em 1941, no Rio de Janeiro. É também homenageado, até hoje, como um membro “fundador” da Psicologia Social, no Brasil.

104 Michel Foucault discute a sociedade disciplinar e os mecanismos disciplinadores em diversas obras, como: Microfísica do Poder. RJ: Ed. Graal, 1990, As Palavras e as Coisas. SP, Martins Fontes por acordo com Portugália Editora Ltda, 1967; Microfísica do Poder. RJ, Graal, 1990.

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majoritariamente analfabeta, efeitos produzidos a partir de suas ações e daqueles que delas partilharam, a circulação e apropriação pelas professoras escolhidas como interlocutoras locais das orientações que vinham do Serviço de Higiene Mental.

A abertura da escola para mais intensa relação com a cidade, com o mundo urbano, trouxe à cena embates e conflitos, produzindo maneiras de olhar a escola, seus agentes, seu entorno, a cidade, gerando novos saberes e novas relações de poder. Estratégias e táticas de definiam e redefiniam na trama da sociedade de então, na disputa política de qual projeto de República seria vencedor, e mais do que nunca era necessário perceber o sentido oculto, daquilo que, mais profundo e ainda mais misterioso, se manifestava na profusão de falas proferidas em defesa da escola pública, laica, universal, e de qualidade para todos.

Entendidas em caráter provisório percebemos que as palavras não têm o mesmo sentido para todos, nós fazemos com que ganhem sentido nas nossas práticas cotidianas. Entender o sentido dado às mesmas, para quem se dirigem, o que produzem é a árdua tarefa do pesquisador que ousa caminhar no caminho das incertezas.

A escola - também pensada como a rede escolar – passa a ser vista como lugar estratégico privilegiado pela possibilidade de acesso ao conjunto da população, espaço potencializador das possibilidades de mudanças sociais e culturais mais amplas e, ao mesmo tempo, de manutenção e controle da ordem social. Estrategicamente, pensar a cidade e a rede escolar que por ela se espalha passa a ser fundamental para produzir a consolidar a dimensão redentora da escola.

Nesta luta de “educar as famílias”, tornam-se auxiliares fundamentais as professoras das escolas públicas que agindo dentro da “uma rede” escolar encaminham as crianças com problemas. Ramos elabora inquéritos e fichas sobre os “alunos problemas”, feitos por professoras, seguem a orientação de Arthur Ramos. Fichas organizadas a partir de dois eixos básicos: Aspectos Material das Habitações e Aspectos Psico-social. Para Rizzini (2000) todos os exemplos parecem resumir os novos paradigmas defendidos por Arthur Ramos para a explicação do péssimo desempenho de muitas crianças e adolescentes na escola: os desajustamentos no lar causavam problemas afetivos, emocionais e psicológicos nos comportamentos. A criança bem recebida na escola e no lar não teria vontade de fugir, a criança tratada com carinho e proteção não iria furtar. As causas, em última instância, seriam não mais raciais, “mas essencialmente familiares e sociais”. (p.124)

As fichas dos inquéritos seguem um padrão único, produzindo uma “certa” tipologia das crianças. Mas, interrogando-as um pouco mais, percebemos que nenhuma é assinada pela professora que conduziu o inquérito nas escolas e que se alguns são extensivos, outros são extremamente sucintos, o que nos faz retornar ao conceito de apropriação; pois se cada uma das envolvidas professoras no local dele se apropriou e o utilizou de uma maneira que transparece na escrita, como colocá-los sob a mesma égide unificadora?

O jogo de poder, no encontro\desencontrado, entra em cena no embate entre práticas: ausência de poder e postulado de poder. Como efeito produz, em muitos

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relatos contidos nas fichas\inquérito, o apagamento do outro, seu silenciamento. Silenciamento que somente outro relato contido em outro texto poderá ou não fazer falar. O pesquisador ao escrever, também exerce essa ação: faz o silencio falar.

Por que escrever as histórias dos anônimos? Para exumar os mortos me responde Certeau, para fazer presente um passado que assim se presentifica. Os “sujeitos ordinários”, os “anônimos” já fazem parte do passado no ato da escrita historiográfica. Os historiadores os fazem retornar a cena da história, uma história das coisas e da vida, para entendermos o mundo e quem somos nós no mundo. Pelo menos assim nos explicamos e ao nos explicarmos nós definimos.

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ID:515 IMAGENS DE MULHER EM REVISTAS ILUSTRADAS DO INÍCIO DO

SÉCULO XX: UMA LEITURA A PARTIR DAS REFLEXÕES DE SERGE

MOSCOVICI Autor: Ariane Franco Lopes da Silva Filiação: Universidade Federal da Fronteira Sul – UFFS Autor: Luiz Carlos Barreira Filiação: Universidade Católica de Santos – UniSantos

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RESUMO As imagens em fotografias tiveram um papel de destaque na mídia impressa

ilustrada no início do século XX, pois além de facilitarem a compreensão da mensagem, também ilustravam a posição de homens e mulheres em relação ao seu meio físico e social. A pesquisa discute uma forma não escolar de formação, que encontrou nos meios de comunicação impressos ilustrados, um instrumento de propagação de modos de ser e de se comportar femininos. Para tal, o estudo analisa as imagens de mulher veiculadas entre os anos de 1906 e 1910 nas capas do periódico Ilustração Portuguesa e se apoia na Teoria das Representações Sociais, idealizada por Moscovici (1978), para dar sentido a essas análises. As fotografias foram analisadas e classificadas em categorias. Como resultado, a pesquisa identificou a coexistência de tipos de mulher inscritas nas posturas, faces, vestimentas e na gestualidade. Nesse sentido é que compreendemos os retratos fotográficos em periódicos ilustrados como instrumentos de propagação de representações sociais de ser mulher no início do século XX. Foi possível observar que coexistiam diferentes representações de ser mulher. Elas correspondiam aos padrões existentes e desejáveis, e a um ideal de mulher em um Portugal republicano.

PALAVRAS-CHAVE Educação e Formação do Ser Social, Imprensa Periódica Ilustrada, Identidade

de Gênero.

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1. INTRODUÇÃO

A imprensa escrita, particularmente a imprensa de massa, é por muitos estudiosos considerada um dos ícones da modernidade. Essa imprensa teve um papel relevante na dinamização dos grandes debates públicos que circulavam nas sociedades a partir de meados do século XIX e na veiculação dos temas da vida privada e da vida privada dos personagens públicos, o que chegou a significar uma nova viragem da imprensa periódica no sentido da contemporaneidade. (Tengarrinha, 2013, p. 880). As histórias da vida privada e dos grandes movimentos sociais foram sendo narrados também pela imprensa ilustrada, que pretendia alcançar um público maior e mais diversificado, como os menos letrados e os analfabetos. É nesse contexto que a ilustração passa a fazer parte da imprensa periódica em Portugal, a partir de 1834, pois tornava o texto mais atrativo e facilitava a sua compreensão (Tengarrinha, 2013). O autor lembra ainda que um marco importante foi a introdução da fotografia na imprensa, que teve sua entrada definitiva nos fins do século XIX e início do século XX.

As imagens em fotografias tiveram um papel de destaque na mídia impressa ilustrada, pois além de facilitarem a compreensão da mensagem, também ilustravam a posição de homens e de mulheres em relação ao seu meio físico e social. A fotografia veio satisfazer a necessidade de uma nova clientela burguesa de se representar a si mesma (Freund, 2010). Imagina-se, então, o seu impacto na difusão de informações e representações sobre temas da vida pública e privada no início do século XX e o efeito dos retratos de corpo inteiro, do torso, ou mesmo da face na propagação de modos de vida, hábitos, atividades de lazer e laborais. Nesse sentido, a expressão da identidade social se beneficiou com o advento da fotografia, que não só associava o sujeito ao seu grupo de pertença, como também o auxiliava a narrar a sua história e seus valores por meio de sinais exteriores. Os estudos sobre processos de formação do ser social encontram nos retratos fotográficos, e na análise da aparência corporal, um material simbólico para a compreensão de momentos históricos, uma vez que, The body has a history 105 e se comporta de diferentes maneiras at particular historical moments.106 (Bynum, 1989, p. 171).

Dentre as publicações portuguesas editadas nos inícios do século XX, uma delas chama a atenção, notadamente pela riqueza das imagens que ilustram as matérias que veiculam. Trata-se do suplemento semanal do jornal O Século, intitulado Ilustração Portuguesa. 107 Um dos principais trunfos desse periódico está

105 O corpo tem uma história.

106 ... em determinados momentos históricos.

107 Publicado às segundas-feiras, com uma tiragem inicial, para Portugal, de 15 mil exemplares. Assinaturas trimestrais, semestrais e anuais eram oferecidas, inclusive para assinantes de Espanha, Brasil e colônias portuguesas. A primeira série estendeu-se de 3 de novembro de 1903 a 12 de fevereiro de 1906; a segunda, de 19 de fevereiro de 1906 a 29 de dezembro de 1923. A partir de 1931, sua publicação foi bastante irregular, e assim foi até 1993, quando deixou de circular. (Cf. Hemeroteca Digital, sítio da Hemeroteca Municipal de Lisboa.

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contemplado no próprio título: as imagens, destacadamente as imagens fotográficas. Elas serão o foco deste trabalho que tem como objeto de reflexão e debate as representações de identidade feminina, que encontram na modernidade um momento de reformulações. Ao examinar esse fenômeno, a pesquisa discute uma forma não escolar de formação, que encontrou nos meios de comunicação impressos ilustrados um instrumento de viabilização. Para tal, o estudo faz um recorte da história da sociedade portuguesa, retratada nesse periódico, ao focar mais precisamente as imagens de mulher veiculadas entre os anos de 1906 (início da publicação da segunda série da revista) e 1910 (proclamação da República portuguesa).

A escolha dessa mídia impressa deve-se, especificamente, ao fato de ela ter se constituído em um importante meio de comunicação em Portugal de acontecimentos políticos e econômicos locais e internacionais e de modos de ser típicos daquela população. A construção de gênero e o papel a ser desempenhado pelas mulheres na sociedade moderna eram um dos tópicos cobertos pelo periódico Ilustração Portuguesa (Vaquinhas, 2011a), o que justifica a sua escolha para a análise proposta nesse estudo.

2. REPRESENTAÇÕES SOCIAIS E IDENTIDADE DE GÊNERO

Para se desenvolver o estudo aqui referido, foi preciso buscar apoio nas diferentes áreas dos saberes, como a história, a psicologia social e a história da fotografia, que permitiram com que o tema da identidade feminina fosse trilhado por diferentes caminhos, visto por diferentes lentes, compreendido por diferentes linguagens e acessado por diferentes metodologias.

A perspectiva psicossocial deste estudo entende a identidade como sendo referendada pela cultura (Deschamps; Moliner 2008) e enquanto um lugar social (Duveen, 1998, p. 98), o que lhe confere um caráter de construção e de compartilhamento de valores, saberes e imagens pelos membros de um determinado grupo social. Essa perspectiva auxilia as análises históricas, ao considerar as imagens como representativas de processos de construção de identidades de gênero, enraizadas em contextos sociais e impactadas pelas relações entre os diferentes atores sociais num dado momento histórico.

O estudo encontra na Teoria das Representações Sociais, idealizada por Moscovici (1978), o seu principal referencial teórico e metodológico. Para o autor, a teoria tem como aspiração elucidar os elos que unem a psicologia humana com as questões sociais e culturais contemporâneas. (Moscovici, 2003, p. 206). Por essa razão, ela assume como seu foco os processos de comunicação que facilitam interações sociais. Ao depararmos com ideias novas que nos perturbam, algumas de suas estranhas características são transformadas em direção ao familiar, ao que já

Disponível em: <http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/FichasHistoricas/IlustracaoPortuguesa.pdf>. Acesso em: 26 jan. 2015).

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conhecemos. Essa procura pelo já conhecido, e que nos ajuda a entender o novo, é denominado por Moscovici (2003) como ancoragem. Nesse movimento de procura, categorizamos objetos e pessoas que nos são estranhos, classificando-os, nomeando-os e atribuindo-lhes um valor e um lugar em uma escala hierárquica. Sem o processo de ancoragem, o novo, com suas ambiguidades e diferentes sentidos tornaria a interação humana muito difícil. A objetivação é outro processo que gera a representação social. Para Moscivici (2003), objetivar significa reproduzir um conceito em uma imagem. (Moscovici, 2003, p. 72). Nesse sentido, parte-se do pressuposto que as imagens femininas estampadas nas capas do periódico podem nos indicar formas de objetivação dessas identidades de gênero, mostrando-as para um mundo exterior, e apontar sobre quais categorias e saberes elas estão ancoradas.

Como as representações sociais oferecem consensos e reduzem as margens da não-comunicação, possibilitando a criação de um repertório comum de interpretações e explicações, regras e procedimentos que podem ser aplicadas à vida cotidiana (Moscovici, 2003, p. 208), parte-se do pressuposto que as imagens fotográficas constituíram-se em um canal de produção e de expressão de um repertório de significados sobre ser mulher neste período histórico. Um repertório que oferecia aos membros de um mesmo grupo social uma certa coesão por meio de um modelo simbólico de imagens e de valores comuns sobre ser mulher.

As tecnologias de comunicação facilitam e dinamizam o diálogo entre o individual e o coletivo e a intensidade e a rapidez com que essas informações circulam possibilitam o encontro do diferente e o confronto com o novo. Quando as representações sociais sobre determinados temas sociais são veiculadas pela mídia, alcançam um grupo amplo de pessoas, difundem e propagam conhecimentos de senso comum. Em um período de reformulação de saberes sobre o público e o privado e sobre o sentido de família, assim como as posições das mulheres nesse núcleo familiar, a imprensa teve um papel fundamental, pois veiculava modelos e traços sociais por meio de imagens e textos. Possivelmente emergentes de um grupo específico de sujeitos, nos seus diálogos cotidianos, as representações podem sair desse círculo de pessoas e alcançar outros grupos, difundindo representações sobre distintos temas sociais. Embora as representações sociais sejam construções dos grupos sociais, alguns grupos fazem suas ideias circularem de forma mais sistematizada. São formas de comunicação diferenciadas que Moscovici (2001) nomeia como difusão, propagação e propaganda. Os meios de comunicação caracterizados como difusão procuram socializar um saber comum com um discurso não sistemático. Não têm como meta criar um comportamento unitário, mas apenas comentar e fazer falar sobre um determinado assunto. Para Moscovici (2001), a circulação de conhecimentos via difusão possui um caráter de contágio. Já na propagação, existe um preparo maior às mensagens. A circulação de mensagens, que se enquadram nesta forma de comunicação, tem a função de exercer pressão para a uniformidade. As comunicações não visam diretamente à instauração de uma conduta, mas a elaboração de uma norma, uma convergência em torno de uma ideia comum. Para o autor, a propagação se parece com a imitação de ideias. The

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dominating ideas of our time which are reproduced are those of dominating groups, instruments enabling them to retain power, and such ideas will be widespread. (Moscovici, 2001, p. 277).108 A propaganda, por outro lado, tem o poder de persuadir e, para Moscovici, ela está nas instituições. Nela, vemos a função reguladora que procura o estabelecimento da identidade do grupo e que visa à ação e à aderência de outros a uma ideia.

A circulação de idéias por meio das fotografias nas capas do periódico parece se enquadrar na função de propagação de representações, pois exigiu um preparo maior às mensagens, incentivou a uniformidade, motivou a convergência em torno de uma ideia comum, e valorizou a imitação de padrões, que poderiam corresponder aos desejos de ascendência social de um público consumidor cada vez maior e mais diversificado em termos de estrato social. A hipótese é de que as imagens satisfaziam, portanto, a necessidade de representação de um público burguês que, como afirma Vaquinhas (2011b, p. 16), via na fotografia um mecanismo de produção de memória que permitia a afirmação do eu, tanto individual como coletivo. Outra hipótese, é que as imagens fotográficas representavam os futuros e desejáveis “traços” femininos a serem propagados na sociedade, indicando um “tipo” de mulher portuguesa que se almejava desenvolver, imitar e propagar.

3. SELEÇÃO E CATEGORIZAÇÃO DE IMAGENS

As linguagens corporais e as imagens do corpo, da face e os ambientes, auxiliam a falar sobre nós mesmos e têm a importante função de comunicar emoções, sentimentos e traços da personalidade, apresentando assim, um valor metodológico no estudo das identidades de gênero no contexto dos estudos históricos (Mauss, 1968; Dittman, 1987; Argyle, 1988; Cosnier, 1996; Gibbs, 2008). Os retratos, por expressarem hábitos, atitudes e características físicas, podem refletir categorizações sociais e identidade de gênero. Orientado por tais considerações, este estudo oferece um instrumento para se tentar compreender as representações que possivelmente circulavam na época e que estavam sendo propagadas pela mídia impressa.

As fotografias selecionadas foram classificadas em categorias segundo a proposta de Bardin (1977). Essa classificação procurou responder aos seguintes questionamentos: Que elementos ocorrem com maior frequência em cada categoria? Como essas categorias se relacionam aos padrões culturais vigentes na sociedade da época e como elas se apresentavam como possibilidade histórica de superação/substituição desses padrões?

Em um primeiro momento, procedeu-se à contagem do número de capas com imagens e retratos de mulheres na Ilustração Portuguesa, entre os anos de 1906 e 1910. O objetivo foi identificar alterações na frequência de ocorrências dessas imagens ao longo desses cinco anos. Em um segundo momento, elaborou-se uma

108 As ideias que predominam e se reproduzem em nossos dias são as dos grupos dominantes, elas são instrumentos que mantêm esses grupos no poder, e serão disseminadas.

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classificação por grupo social. Essa classificação baseou-se no título dado à fotografia, que identificava e nomeava a pessoa retratada, e a atividade que exercia: mulheres comuns, artistas e pertencentes à aristocracia e à alta burguesia.

Na categoria “mulheres comuns”, foram agrupadas as fotografias de personagens do campo e da cidade. O título Tipo de beleza andaluza, por exemplo, foi atribuído a uma fotografia classificada nessa categoria, que mostra uma mulher com um lenço na cabeça, sorrindo. Não apenas fotografias foram agrupadas nessa categoria. Foram também consideradas imagens de mulher que se assemelham a pinturas ou a fotografias retocadas. Como retratavam um tipo de mulher da época, também foram consideradas na análise.

Na categoria “mulheres artistas”, foram agrupadas fotografias de atrizes de teatro e cantoras, portuguesas e estrangeiras. Nesses casos, as fotografias continham títulos e suas personagens eram nomeadas, assim como suas atividades artísticas, como por exemplo, a fotografia da atriz Maria Falcão, em turnê pelo país. Também nesta categoria foram consideradas algumas pinturas que representavam artistas.

A categoria “aristocracia/alta burguesia” reúne imagens fotografadas e algumas pinturas de condessas, rainhas e imperatrizes, portuguesas e estrangeiras, além de membros da alta burguesia. As imagens eram acompanhadas dos nomes das pessoas fotografadas. Exemplo: A senhora condessa de Penha Longa na sua escola com o senhor ministro da Justiça. Em alguns casos, as figuras eram anônimas, e retratavam um grupo de pessoas, como cenas de corridas de automóveis, por exemplo.

Em um terceiro momento, foi feita uma leitura flutuante das imagens classificadas em cada uma das três categorias sociais descritas acima, considerando-se apenas o ano de 1910. O objetivo era identificar elementos corporais que pudessem refletir categorizações sociais, de gênero e padrões culturais vigentes, que falassem sobre os “modos de ser” típicos daquela população e sobre um “tipo” de mulher portuguesa que se almejava desenvolver e propagar. Uma vez identificados esses elementos corporais mais salientes, foram computadas suas frequências.

Percebeu-se que alguns elementos como local, expressão facial, gestualidade e ornamentos/vestimentas/acessórios indicavam representações de gênero e cada um desses elementos foram localizados e sistematizados em tabelas. O espaço, ou local, é uma dimensão que impacta na comunicação entre as pessoas, e sua demarcação regula a interação social (Knapp & Hall, 1999). Foucault (2004) também discorre sobre a questão do espaço no gerenciamento de um grupo de pessoas. Articulando essas ideias com a questão das representações de ser mulher, percebe-se que a demarcação e o uso desse espaço, ou cenários, nas fotografias, podem estar associados às identidades de gênero em construção, pois eles revelam as relações de poder e o gerenciamento de funções e de atividades da mulheres no início do século XX.

Com relação à expressão facial, os estudos de Goffmann (2011) e de Fernandéz-Dols e Carrera (2011), além daqueles já citados neste tópico, revelam que a face está entre as partes do corpo que melhor comunicam emoções. O sorriso também é

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compreendido como a ação que se associa mais fortemente a esse sentimento (Rotenberg et al., 2003) e que nos remete às sensações de harmonia, proximidade e de interação entre as pessoas (Matsumoto & Hwang, 2013). Podem, assim, auxiliar nas análises das representações de gênero e de classe social no que se refere ao elemento cordialidade e proximidade entre diferentes grupos de pessoas.

Os ornamentos, vestimentas e acessórios também auxiliam nas análises das fotografias, pois como afirma Hall (2011), os objetos de uso pessoal são pertinentes aos estudos sobre categorizações sociais, pois vão além das funções utilitárias transformando-se em sinais e funcionando como linguagens. O autor aponta que as roupas funcionam como meios de comunicação de conceitos como formalidade e casualidade, justificando a escolha da vestimenta como uma categoria de análise que indicaria associações entre identidades sociais e seus diferentes graus de formalidade/informalidade nas interações sociais. Gibbs e Matlock (2008) revelam que o corpo traduz ideias abstratas e que por essa razão torna-se um veículo de significados. Com apoio nesses estudos, as análises dos gestos nas fotografias também podem revelar representações identitárias veiculadas pela mídia impressa.

As fotografias foram, então, agrupadas por semelhança, realizando-se uma contagem dos elementos obtidos. A mesma fotografia poderia conter elementos classificados em diferentes agrupamentos. Após essa tabulação algumas categorias foram identificadas e nomeadas, pois geraram núcleos de significação.

O primeiro elemento diz respeito ao contexto ou local onde a fotografia foi tirada. Ele foi denominado de “local”. Fazem parte desse elementos, duas sub-divisões: “espaço interno”, onde foram classificadas as fotografias tiradas dentro de um ambiente fechado, e “espaço externo”, onde foram classificadas as fotografias tiradas em locais abertos como jardins, ruas, praças e margens de rios. O segundo elemento foi denominado de “expressão facial”, e contou com duas sub-divisões: “sorriso”, onde foram classificadas as fotografias nas quais as mulheres apareciam sorrindo, e “séria”, onde foram classificadas as fotografias onde as pessoas não apareciam sorrindo. O terceiro elemento refere-se às tomadas de corpo e postura e teve duas sub-divisões: “torso”, onde apareciam imagens de mulheres tiradas do torso para cima, e a sub-categoria “corpo inteiro”, onde se encontravam as fotografias de corpo inteiro. Um quarto elemento diz respeito à gestualidade e à posição dos braços, e foi denominado de “braços”. Esse elemento contém três sub-divisões: “braços dobrados”, onde foram agrupadas as fotografias onde os braços das mulheres apareciam dobrados, às vezes com mãos dadas a outras pessoas, mãos unidas, mãos no rosto, ou segurando um objeto, e “braços retos”, onde foram reunidas as fotografias onde as pessoas apareceram com os braços ao longo do corpo e não pareciam estar executavam nenhuma atividade. Na terceira sub-divisão não foi possível observar os braços e as fotografias foram nomeadas como “não aparece”. O quinto elemento faz referência aos acessórios que as mulheres usavam, e foi denominado de “ornamentos/acessórios/vestimentas”. Fazem parte desse elemento três sub-divisões: “chapéu”, onde as figuras apareciam com chapeús, “sem chapéu”, quando as figuras não os portavam, e “lenço/manto/véu”, quando as figuras

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continham um desses acessórios. Após essa tabulação, os elementos foram agrupados conforme uma classificação temática, por permitirem a identificação de núcleos de significação: emoção, ação e posição.

4. RESULTADOS OBTIDOS

Na tabela 1, vê-se a contagem das fotografias de mulheres nas capas do periódico em relação ao número total de exemplares de cada ano.

No. total de capas No. de capas com imagens de mulheres

1906 45 22 (48,88%)

1907 52 12 (23,07%)

1908 52 16 (30,76%)

1909 52 33 (63,46%)

1910 52 35 (67,30%)

TABELA 1 | Ocorrência de fotografias femininas nas capas da Ilustração Portuguesa (número total e frequência) entre 1906 e 1910.

Foi possível perceber que, apesar da grande frequência de capas com imagens de mulheres no ano de 1906, e da sua redução em 1907, houve um progressivo aumento desse tipo de imagem até 1910. Essa maior visibilidade das mulheres pode indicar um aumento do interesse dos leitores por seu papel e função na sociedade, por suas atividades e tipo de envolvimento nos assuntos domésticos e públicos em geral. Pode indicar também, um desejo dessa mídia impressa de atrair um novo tipo de consumidor, o público feminino, desejo esse explicitado em um dos primeiros números da segunda série do suplemento. Se este foi o interesse, as imagens deveriam corresponder às diversas identidades existentes, aos diversos grupos de mulheres, às suas características, hábitos e costumes. Os resultados da próxima análise podem indicar que grupos foram considerados como representativos dessa sociedade.

A tabela 2 mostra as fotografias classificadas segundo os grupos que se sobressaíram nas tiragens de cada ano. Os três tipos de grupos femininos foram: mulheres artistas, mulheres da aristocracia/alta burguesia e mulheres comuns. Esses grupos podem ser representativos dos tipos mais facilmente identificáveis na época, ou os que se pretendiam atingir com as tiragens, o público alvo. Podem também revelar as possíveis “identidades femininas” que se desejava propagar. Elas poderiam estar representando uma nova estrutura social, produto de profundas

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transformações sociais, políticas e culturais dessa sociedade, ao valorizar cada uma dessas identidades no que elas têm de específico.

Mulheres Artistas

Mulheres da Aristocracia / Alta Burguesia

Mulheres Comuns

Total

1906 5 (22,72%) 7 (31,81%) 10 (45,45%) 22

1907 3 (25%) 4 (33,33%) 5 (41,66%) 12

1908 5 (31,25%) 5 (31,25%) 6 (37,50%) 16

1909 9 (28,12%) 11 (34,37%) 12 (37,50%) 32

1910 8 (22,85%) 16 (45,71%) 11 (31,42%) 35

TABELA 2 | Contagem de fotografias femininas nas capas da Ilustração Portuguesa por categoria de análise: “mulheres artistas”, “mulheres da aristocracia/alta burguesia”, “mulheres comuns (1906 a 1910).

Foi possível fazer duas leituras sobre os dados da tabela 2. Embora representem as múltiplas maneiras de ser mulher, as características de grupos e sub-grupos, as diversidades, e as frequências são bastante diferentes. As “mulheres comuns” aparecem cada vez menos ao longo dos cinco anos. Em 1910, as mulheres da alta burguesia e da aristocracia apareceram em maior número de vezes que as outras categorias de mulheres, embora elas não fossem a maioria da população. Como lembra Santana (2011), o conteúdo dessas matérias, e pode-se afirmar que o conteúdo das fotografias também, tinham um significado sociocultural, pois davam às leitoras a impressão de estarem próximas do mundo da aristocracia e da alta burguesia.

A tabela 3 mostra a frequência com que alguns elementos aparecem nas fotografias como “local”, “expressão facial” e “postura/corpo” e suas subdivisões, ou seja, se o local era interno ou externo, se a face aparecia sorrindo ou séria, e se o corpo inteiro, ou parte dele, aparecia na fotografia.

Local Expressão Facial Postura / Corpo

Interno Externo Sorrindo Séria Torso Inteiro

Artistas (8)

7 (87,5%)

1 (12,5%)

4 (50%)

4 (50%)

5 (62,5%)

3 (37,5%)

Aristocracia / Alta

7 (43,75%)

9 (56,25%)

3 (18,75%)

13 (81,25%)

2 (12,5%)

14 (87,5%)

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Burguesia (16)

Mulheres Comuns (11)

4

(36,36%)

7

(63,63%)

7

(63,63%)

4

(36,36%)

4

(36,36%)

7

(63,63%)

TABELA 3 | Classificação das fotografias em categorias e subcategorias (fotografias nas capas do suplemento Ilustração Portuguesa no ano de 1910).

Com relação à dimensão espacial, ou seja, o elemento “local”, observa-se que a maior parte das mulheres foram fotografadas em ambientes internos, ou com um fundo neutro, opaco, que inviabiliza identificar onde estavam. Mesmo quando fotografadas em espaços externos, a maior parte posava no jardim, no parque, ou mesmo na rua, próximo à residência. Embora externo, esses espaços eram restritos e não indicavam uma vida ou atuação em espaços públicos e em momentos públicos. Em outras fotografias o contexto era incerto, espaços imaginários como balanços de flores, carruagens sem ruas, bancos de jardim. Há uma ausência grande de mulheres fotografadas em espaços públicos e em eventos políticos. O cenário dos retratos era prioritariamente o do campo e o da esfera privada e familiar.

A tabela 4 mostra a contagem de dois outros elementos “gestualidade/braços” e “ornamentos/acessórios/vestimentas” e suas subdivisões, ou formas em que os braços apareciam nos retratos e o uso, ou não do chapéu e do lenço.

Gestualidade / Braços Ornamentos / Acessórios / Vestimentas

Dobrados Retos Não Aparece

Chapéu Sem Chapéu

Lenço / Manto / Véu

Artistas (8)

5

(62,5%)

0

3

(37,5%)

4

(50%)

3

(37,5%)

1

(12,5%)

Aristocracia / Alta Burguesia (16)

12

(75%)

2

(12,5%)

2

(12,5%)

8

(50%)

7

(43,75%)

1

(6,25%)

Mulheres Comuns (11)

10

(90,9%)

0

1

(9,09%)

0

8

(72.72%)

3

(27,27%)

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TABELA 4 | Classificação das fotografias em categorias e subcategorias (fotografias nas capas do suplemento Ilustração Portuguesa no ano de 1910).

Os resultados indicam que há diferenças grandes no uso dos braços e na sua posição o que muitas vezes indicava que a figura representava uma atividade, um trabalho, ou estava posando. Nesses casos, as fotografias de mulheres comuns quase sempre mostram o braço executando uma ação (90,9%). Nas poses, os braços aparecem segurando vestidos, leques e flores. Dar as mãos ao companheiro, rezar e cuidar de crianças, também eram situações que indicavam movimentos. Nesses casos, encontram-se as fotografias das mulheres do grupo da aristocracia e da alta burguesia (75%), e o das artistas (65,5%). Há também grandes diferenças no uso dos chapéus. Nenhuma das mulheres classificadas no grupo das mulheres comuns aparece de chapéu. Já 50% das aristocratas e das artistas fazem uso desse acessório.

Vê-se que a vestimenta funciona como uma linguagem, como diz Hall (2011), que veicula uma mensagem sobre o status das pessoas, seu papel em um grupo social. As leitoras observam essas fotografias e se identificam ou não com elas. Nesse sentido, funcionam como propagadoras de representações sociais de ser mulher.

Com relação aos núcleos de significação, observou-se a possibilidade de três agrupamentos ou categorizações: “emoções”, “posição social” e “visibilidade”. Na primeira, “emoções”, encontra-se o elemento “expressão facial”. Como a expressão da emoção se dá principalmente pela face, e o sorriso está mais associado ao sentimento de felicidade e cordialidade, pode-se afirmar que as mulheres comuns estavam mais associadas a esses sentimentos, pois apareceram com mais frequência nesse subagrupamento (63,63%).

Na categoria “posição social”, encontra-se o elemento “ornamentos/acessórios/ vestimentas”, por serem eles indicadores de status social. Neste caso, o agrupamento das mulheres comuns também se destaca dos outros por ter apresentado uma alta frequência no elemento “sem chapéu” (72,72%). Em Hall (2011) vemos a explicação para esse resultado. O autor afirma que os ornamentos, vestimentas e acessórios auxiliam nas categorizações sociais, pois funcionam como meios de comunicação de conceitos como formalidade, no caso do chapéu, por exemplo. Assim, a ausência desse acessório propaga identidades sociais por meio de um indicador de informalidade, no caso das mulheres comuns, e de formalidade no caso das artistas e da aristocracia.

Na categoria “visibilidade”, encontra-se o elemento “local”, por ser ele um possível indicador de diferentes funções e atividades laboriais e políticas das mulheres. As maiores disparidades foram encontradas entre as mulheres artistas, que tiveram a maior parte de seus retratos tirados em ambientes internos (87,5%), e as mulheres comuns, com a maior parte dos retratos em ambientes externos (63,63%).

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Um dos objetivos da pesquisa foi compreender como, na modernidade, a imprensa ilustrada veiculou modelos de mulher, que podiam ter sido múltiplos, complementares ou divergentes. Possivelmente, as afinidades e as formas de adesão a esses modelos dependeram de como os sujeitos, público alvo do periódico, se viam e se posicionaram em relação ao embate que se dava entre o público e o privado, entre o Estado e a sociedade civil.

Como nos mostra Moscovici (2003), uma minoria, e os fotógrafos e editores poderiam ter assumido esse papel, podem popularizar um conhecimento, espalhando uma ideia nova em um ambiente social. No caso das novas imagens de mulher contidas nas publicações, elas passam a fazer parte das conversações cotidianas e a serem reconhecidas como familiares. Mas, Moscovici (2003) também nos lembra que a minoria não está livre das pressões da maioria e nesse sentido, evitam expressar suas idéias ou as ajustam ao senso comum. Portanto, compreendemos os retratos fotográficos em periódicos ilustrados como instrumentos de veiculação de convenções sociais de ser mulher no início do século XX, propagando também tipos de sujeitos, traços aceitáveis e padrões de comportamentos. A coexistência da mulher mãe e do lar com a trabalhadora poderia estar indicando esse desejo de difundir um novo ideal, assim como a necessidade de refletir tipos já existentes e aceitáveis de ser mulher em um Portugal republicano. As diferentes classes sociais, as distintas qualificações, atividades e condições de trabalho que estavam sendo retratadas nas fotografias permitiam imaginar essa diversidade de papéis e a multiplicidade de imagens de mulher que circulavam na época. Essas fotografias possivelmente tiveram o efeito de propagar representações, instalar um tipo comum de ser mulher, com normas de como se comportar, se vestir e se portar socialmente, sem entrar em confronto com o que era considerado familiar. Os padrões apresentados poderiam ser imitados pelo público consumidor dessa mídia e giravam em torno das polaridades: rural-urbano, trabalho no lar-trabalho fora do lar, elegância-praticidade, séria-sorridente. Portanto, as fotografias encarregaram-se da tarefa de expressar novos modos de vida, subjetividades, traços humanos e identidades sociais e de confirmar outros modos de ser já conhecidos.

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ID:524

CAMINHOS PERCORRIDOS: A OBRA MOACYRNIANA E OS

POSSÍVEIS OLHARES PARA A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

BRASILEIRA Autor: Rosana Areal de Carvalho Raphael Ribeiro Machado Filiação: Universidade Federal de Ouro Preto

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RESUMO

Fonte e objeto, a obra de Primitivo Moacyr, publicada entre 1936 e 1942, coincide com o debate entre renovadores e tradicionalistas. Perscrutamos a contribuição de Moacyr para a historiografia da educação brasileira: qual foi o “subsídio para a história da educação”? Como relator dos debates parlamentares reuniu amplo conhecimento de práticas arquivistas; teve a oportunidade de estabelecer relações com políticos, intelectuais e educadores que, como ele, comungavam do princípio da instrução como responsabilidade do Estado. O processo pelo qual sua produção foi concebida e posta a circular, bem como as relações sociais, pessoais e intelectuais construídas ao longo de sua trajetória, e que o ajudaram a se inserir, utilizar e até mesmo construir um repertório educacional e histórico, ainda não foram suficientemente estudados. O debate metodológico se insere na interface da História Social, Política e da Educação Brasileira, tendo a história dos intelectuais proposta por autores como François Sirinelli e Ângela de Castro Gomes como centro analítico. Compreendemos que a produção bibliográfica de Moacyr acusa intencionalidade e corresponde ao interesse em divulgar uma coletânea de documentos sobre as ações estatais em prol da educação. Ao elaborar uma história documental oficial, reforçava o papel principalíssimo do Estado na educação nacional.

PALAVRAS-CHAVE

Historiografia, intelectuais, Primitivo Moacyr

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A obra de Primitivo Moacyr se insere no quadro de complexidade política, social e educacional presente nas décadas de 1930 e 1940. Seja como fonte ou como objeto, o conjunto de sua obra abrange mais de uma dezena de livros sobre a história da educação brasileira, publicados entre 1936 e 1942, coincidindo com um período de efervescência no campo educacional marcado pelo debate e querelas entre renovadores e tradicionalistas, mais exatamente os católicos. Em pesquisas anteriores buscamos investigar as condições de produção e a repercussão dos seus livros, bem como sua trajetória. A partir dos dados obtidos, perscrutamos, neste trabalho, a contribuição de Moacyr para a historiografia da educação brasileira, ou, parafraseando o autor: qual foi o “subsídio para a história da educação” herdado de Moacyr?

Nosso objeto se insere na interface da História Social, Política e da Educação Brasileira, tendo a história dos intelectuais como centro analítico, da maneira como era proposta, na França, por autores como Françoise Sirinelli e, no Brasil, por Ângela de Castro Gomes. Interessa-nos entender as condições sociais, políticas e culturais que autorizavam e legitimavam certos modos de pensar a educação e a História da Educação e de defender ou combater a escolarização.

As funções exercidas por largo tempo possibilitaram a Moacyr contatos e algum conhecimento de práticas arquivistas, quiçá o gosto pelo documento. Ao mesmo tempo, possibilitou um conhecimento qualificado das nuances do poder legislativo e sua produção especifica – as leis. A partir desse espaço público e de poder, principal em sua vida trabalhista, cultural e política, teve a oportunidade de aprofundar as relações com legisladores – deputados e senadores, profissionais liberais e servidores públicos, jornalistas e intelectuais. Dentre tantos, muitos educadores que, como ele, comungava do princípio indeclinável da instrução como formação do povo e responsabilidade do Estado.

O estudo da obra moacyrniana e do próprio sujeito perpassa o entendimento de como o Estado Varguista estabeleceu os critérios para a organização da educação nacional, bem como implantou os pilares de suas políticas estatais mais gerais. Ambos, Estado e indivíduo, agiam em conformidade com uma lógica de inserção no campo da modernidade educacional e nacional. Inscrita numa historiografia bem próxima da corrente valorizada pelo IHGB e apadrinhada por instituições como as referenciadas anteriormente, entendemos a produção moacyrniana inserida numa chave que estimula o conhecimento como requisito para o desenvolvimento, ou seja, a ciência a serviço do progresso.

Com esse viés, identificamos a aproximação de Moacyr com os renovadores da educação nacional, cujos princípios foram publicizados no Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, em 1932, muito especialmente o caráter científico. Para os Pioneiros, o campo educacional vinha apresentando uma riqueza e profusão de estudos científicos e experimentais suficientes para libertá-lo do empirismo tradicionalmente presente na área.

A defesa da educação como ciência, afastando-a do empirismo e conformando-a num arcabouço científico, estimulou a busca pelo conhecimento sobre o que já se

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havia feito, no Brasil, em prol da educação. Essa foi a missão perseguida por Moacyr que, já no seu primeiro livro, afirmava ser o Estado brasileiro bastante produtivo no tocante à educação.

Outros exemplos podem ser elencados para demarcar a intencionalidade da produção historiográfica moacyrniana na efetivação de um modus operandi de se fazer história da educação no Brasil. O eixo em torno do qual elaboramos nossa compreensão tem como premissa uma historiografia articulada à condição científica aplicada à educação pelos escolanovistas.

A PRODUÇÃO

No seu primeiro livro – O ensino público no Congresso Nacional – Breve Notícia, de 1916, inicia e finaliza com o tema da ‘desoficialização’ do ensino, tomando a posição de ‘homem de estado’, bem como daquele que compreende o ensino como responsabilidade governamental.

Como ‘homem de estado’, Primitivo Moacyr, em O ensino público no Congresso Nacional. Breves notícias (1916), exaltava as ações do regime republicano para “as cousas do ensino publico” afirmando que “a sua operosidade tem sido copiosa” (MOACYR, 1916, 5). Porém isso não o impede de expor os acalorados e, por vezes, inúteis debates e o arquivamento ou inexequibilidade de inúmeras legislações. Nos volumes sobre o período republicano cuida de dar visibilidade às iniciativas do Estado em prol da instrução pública e as tensões presentes no campo como subsídio para compreender o estágio educacional em que se encontrava a nação brasileira: pré-requisito fundamental para o avanço cultural, ou seja, o ‘movimento de renovação educacional’.

Movimento este que, no campo político, correspondeu ao Estado Novo. Não desconsideramos o discurso valorativo implícito na denominação ‘Estado Novo’. Tal denominação encerra um jogo de forças, “um ato de poder, como os historiadores sabem por dever de ofício”, afirmam Gomes e Abreu (2009,1). Porém, temos como hipótese que a publicação dos livros de Moacyr se inscreve nesse “ambicioso projeto político-cultural” que cercou as ações governamentais, conforme as mesmas autoras anunciam (GOMES; ABREU, 2009, 2).

O Estado Novo e seus ideólogos conseguiram trazer para si todos os méritos da criação de um país de todos, unificado política e culturalmente, através da construção de um povo mestiço, em termos festivos e musicais, tanto no samba e no carnaval, como em diversas manifestações folclóricas de todas as partes do país. O governo Vargas e a década de 1930 passaram a representar, na memória nacional, um momento de ruptura do passado cultural brasileiro. 109

109 GOMES; ABREU, 2009, 9.

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Consoante a esse projeto, é notório o movimento de âmbito nacional em defesa da escola pública a partir dos anos 30. E não se trata de mera coincidência a concomitância com o desenvolvimento capitalista, articulando urbanização e industrialização. A ampliação da estrutura produtiva implicava em demandas sociais variadas, dentre elas a correspondência no campo educacional. Enfim, de quem era a responsabilidade pela educação? Para Moacyr, esta responsabilidade compete ao Estado; e o governo Vargas não se negou a exercer essa função, pelo contrário, deu vigor a ações que vão desaguar na LDB de 1961 (SANFELICE, 2007, 543).

Nos primeiros anos da República não foram poucas as vozes clamando por uma solução de continuidade que só seria possível com a presença mais firme do Estado brasileiro. Moacyr apresenta muitas dessas vozes no trabalho de 1916, explicitando que o debate da ‘desoficialização’ do ensino foi encabeçado pelo Apostolado Positivista. Referindo-se ao discurso do deputado Anysio de Abreu (Piauí), manifesta-se:

E com este discurso, abundantemente documentado, encerrou-se um dos mais memoraveis debates da Camara. E o projeto foi approvado sem emendas. As idéas positivistas, corporificadas nas emendas do Sr. Erico Coelho, só mais tarde, 17 annos depois, graças a uma época de atordoamento nacional, tornaram-se realidades... por tres annos apenas. 110

Podemos observar a ideia de um órgão central numa outra dimensão – um centro de estudos –, implícita em muitos eventos como a Exposição Pedagógica, de 1883. Entre uma e outra, a propositura de Rui Barbosa. Antes mesmo de 1889, Rui Barbosa já apresentava tal propositura. Segundo Lourenço Filho (2005, 181), “Não desejava ele apenas um órgão colegiado, mas outro também que servisse à documentação e à difusão de novas idéias sobre o ensino, com investigação de seus problemas na vida nacional.” Respondia a essas mesmas necessidades, ou seja, ampliar o conhecimento e a compreensão do percurso educacional brasileiro, outras iniciativas como a criação da Diretoria Geral de Estatística (DGE) e o Pedagogium: “um órgão propulsor de reformas e melhoramentos de que carecesse a educação nacional” (LOURENÇO FILHO, 2005, 181).

Para Carvalho e Mesquita

[...] ao expor tal documentação, Primitivo Moacyr produziu elementos para uma crítica contundente à produção legislativa brasileira, cuja inoperância aparece em cada projeto, independente da qualidade e acerto deste. Assim, é possível justificar e cultivar uma descrença quanto ao futuro educacional se este dependesse, apenas, das ações legislativas.111

110 MOACYR, 1916, 40.

111 CARVALHO; MESQUITA, 2013, 52.

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O livro de 1916 antecipa uma trajetória de dimensão inigualável entre os anos de 1936 e 1942 quando, já desfrutando da aposentadoria, Moacyr dedicou-se à escrita educacional. Nesse curto espaço de seis anos – tendo falecido em outubro de 1942, publicou quinze livros tratando da educação brasileira no período imperial e republicano até os anos 30 e mais dois trabalhos apresentados em congressos organizados pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro - IHGB.

A produção moacyrniana sobre a instrução nos tempos do Império presente nas publicações da Coleção Brasiliana, sob a égide de Fernando de Azevedo, pela Companhia Editora Nacional é composta de seis volumes. A Instrução e Império compõem-se de três volumes; outros três volumes cobrem A Instrução e as Províncias. Todos foram organizados de forma temática, segundo a classificação do autor.

O primeiro volume de A Instrução e o Império foi publicado em 1936 e reúne a documentação mais relevante sobre a História da Educação no Brasil Imperial entre os anos de 1823 a 1853, embora retrocedendo para abordar as atividades jesuíticas e a administração joanina. Inicia sobre a Constituinte de 1823 e as reformas que se seguiram, apresentando programas escolares e estatísticas do setor, além dos diversos ramos do ensino então ministrados, como o jurídico, o médico, o profissional, o artístico, o científico e o militar. O segundo volume, publicado em 1937, cobre o período entre os anos de 1854 e 1889, onde o autor apresenta e analisa as principais reformas que atingiram o ensino naquele momento da história brasileira, promovidas por Paulino de Souza, João Alfredo, Leôncio de Carvalho, Rui Barbosa, Almeida de Oliveira e o Barão de Mamoré. Os três últimos capítulos tem como base documentação relativa aos planos, sugestões e informações de Manuel Dantas, Leão Veloso e Antunes Maciel para a instrução pública e um congresso realizado em 1883. O terceiro e último volume abrange o período de 1854 a 1889 e traz, novamente, uma documentação sobre os diferentes setores do ensino jurídico, médico, politécnico, profissional, normal, religioso e artístico; detêm-se, ainda, nos exames preparatórios, nos cursos livres superiores e nas instituições científicas e literárias.

O prefácio de Afrânio Peixoto, amigo particular e natural de Lençóis – Bahia, no 1º. Volume de A instrução e o Império (1823-1853), vindo a público em 1936, afirma que o autor, “modestamente”, pensa que os seus livros contribuirão para “a futura história da educação brasileira”, no que retruca o prefaciador dizendo:

Ela já está aqui, neste livro, novo, original, prestante, e, às vezes, melancólico, sobre iniciativas, a sequência de nossas ideias, a descontinuidade de nossas ações... O Brasil é principalmente Brasil, em educação... 112

112 PEIXOTO, 1936, 8.

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Sobre a operação historiográfica, Afrânio afirma que “no Brasil não se pesquisa. (...) A história nessas condições é repetição, é comentado, é fantasia interpretativa.” (PEIXOTO, 1936, 7). Diferentemente o fez Moacyr que,

[...] sobre educação nacional, investigou, nos arquivos, nas bibliotecas, nos livros, nos relatórios de governo e, de tudo, fez um livro objetivo, sem comentários, nem conclusões. Portanto, obra rara que vai produzir gerações de historiadores, que não o citarão... Que lhe importará? Que lhe importará mesmo o maldigam, depois de copiá-lo? 113

A carta de Anísio Teixeira que abre o 3º. Volume acusa recebimento do segundo volume, tece algumas considerações e também elogia o trabalho de Primitivo Moacyr. Teixeira faz uma leitura dos esforços inócuos no campo da educação brasileira, caracterizado por “grandes planos gerais, com grandes debates de princípios, chocando ideais educativos” ao invés de “estudar os problemas concretos”, de “analisar as necessidades reais e típicas”, de forma a “examinar as dificuldades e facilidades características de execução, de realização”. Afirma que o trabalho de Moacyr “é um primeiro passo para o estudo intelectual da educação nacional. Com os seus volumes, estamos a sentir ao vivo como nunca faltaram ideias...” (TEIXEIRA, 1938, 11-12). Muito ao contrário, à abundância de ideias contrapunha a inoperância generalizada. Conclui dizendo:

Se ao lado dos seus quatro volumes de história das ideias educacionais do Brasil, se fizer a história das realidades educativas do Brasil, talvez não se consiga senão um volumezinho mofino e franzino. Somos, assim esgalhados e frondosos em ideias, e pecos e estéreis, em frutos. O seu grande serviço está sendo o de nos mostrar isso e não apenas nos dizer isto. 114

Apesar de contar com ampla e farta documentação, as passagens apresentam introduções ou comentários posteriores, mostrando-se não como um mero acúmulo de fonte, mas como uma obra que utiliza da seleção documental metodologicamente disposta pelo autor. A própria organização temática de cada volume, bem como as diferenças entre estes, apresentam rigor na proposição e composição da obra.

O primeiro volume apresenta uma página com referências bibliográficas – dez ao todo – que vão desde a coleção de Leis do Reino de Portugal (1759-1808) e do Reino do Brasil (1808-1850), aos Relatórios do Ministério do Império (1830-1850), aos Anais da Assembleia Geral Legislativa (1823-1850). Traz à tona uma conferência ministrada por Serafim Leite, no Instituto de Educação, em 1934, além de duas obras em francês: Essais Statisiques sur le Royaume de Portugal et D'Algarve, de Adrien

113 PEIXOTO, 1936, 7.

114 TEIXEIRA, 1938, 12.

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Balbi, de 1822, e Instruction Publique au Brésil, de Pires de Almeida, de 1882. Cita o livro de Afrânio Peixoto – Cem anos de Ensino Primário (1826-1926), destacando o capítulo Centenário do Poder Legislativo e o artigo de Moreira de Azevedo – A Instrução nos Tempos Coloniais, publicado na Revista do IHGB. Menciona a Revista da Universidade do Rio de Janeiro (n.2 - Dezembro de 1932). Os demais volumes não apresentam referências bibliográficas, tendo em vista que a bibliografia presente no primeiro livro serviu de base para todos e pelo próprio caráter introdutório deste.

As citações ao fim do primeiro volume apontam a diversidade da leitura bibliográfica do autor, mesclando o uso das fontes documentais oficiais, como estatísticas, pronunciamentos, reformas escolares, discursos políticos com a produção literária de intelectuais brasileiros e estrangeiros de seu tempo e de tempos anteriores. As indicações bibliográficas nos incitam a pensar no cuidado de Primitivo Moacyr em apreciar e considerar a produção existente sobre a instrução pública no Brasil.

Para cada volume, Moacyr apresentou um conjunto de notas que refletem modalidades distintas no ofício historiográfico. No primeiro, as notas se concentram em explicações sobre os diversos capítulos. Cada nota é composta por trechos dos documentos e obras citados anteriormente, em comunhão com comentários expositivos do autor. No segundo e terceiro volumes Moacyr apresenta notas referenciando passagens do livro do conhecido viajante Louis Agassiz sobre a instrução no Brasil, comentando cada uma delas. Ainda no terceiro volume cita trechos das Falas do Trono (mensagens do Imperador ao Parlamento), também referentes à instrução pública entre os anos de 1854 a 1889, além de outros verbetes.

Nos três volumes de A Instrução e as Províncias o trabalho metodológico segue a mesma linha da coletânea sobre o Império. Sob o tema regional e se utilizando de farta documentação sobre a história do ensino nas províncias do Brasil Imperial, Primitivo Moacyr cobre os diferentes setores do ensino, os exames e as instituições culturais, científicas e literárias entre os anos de 1834 e 1889. O primeiro volume abrange as províncias de Amazonas, Pará, Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas. No segundo volume discorre sobre as províncias de Sergipe, Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo e Mato Grosso. As informações sobre as províncias de Espírito Santo, Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Goiás compõem o terceiro volume. Desconhecemos os motivos das divisões provinciais para cada volume; mas é possível afirmar que a apresentação cronológica responde à forma de organização das diversas fontes oficiais pesquisadas, expondo as propostas educacionais, reformas escolares, leis do ensino dentre outros no período de 1834 a 1889. São fontes provinciais, produzidas em cada canto do país imperial e outras, de origem nacional, se entrelaçando na trama que Moacyr constrói em cada capítulo.

Assim como nos volumes sobre o Império, a bibliografia só é encontrada no primeiro volume de A Instrução e as Províncias: relatórios dos presidentes de províncias, a Coleção das leis provinciais, os relatórios dos diretores gerais de instrução pública; acrescido de um texto jornalístico de Tavares Bastos publicado em

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‘A Província’, de 1870; Viagens ao Brasil (1866/1867) de Louis Agassiz, cujos trechos estiveram presentes nas notas na coletânea sobre a instrução pública no Império; e, por fim, Um inventor brasileiro, de Ataliba Nogueira (1934). Tais obras e o modo como foram utilizadas denunciam um rigor metodológico ao utilizar variada documentação oficial em conjunto com produções nacionais sobre a educação.

Também nestes volumes Moacyr lança mão das notas. No primeiro volume, as notas se concentram em explicações sobre o que fora exposto em cada capítulo, utilizando-se das bibliografias contidas no mesmo volume. Já no segundo temos uma diversidade de fontes como a Estatística da instrução nas províncias, do Ministro do Império Paulino José Soares Ferreira, de 1869, transcrita na íntegra, com comentários de Moacyr; as leis matrizes da nossa instrução, tomando a Lei Francesa de 28 de junho de 1833 promulgada pelo ministro Guizot, como referência para toda a legislação provincial até 1854; dados estatísticos sobre a instrução na Europa e nos Estados Unidos e breves textos sobre o Magistério, Prédios escolares, Livros Escolares, produzidos a partir de notas tomadas aos Ensaios administrativos, de Francisco Octaviano, publicados no Jornal do Comércio, em 1851. No terceiro volume as notas se concentram no Plano de educação ou ensino público (1826) que teve como base a Carta XII de Americus, citada por Miguel Calmon du Pin e Almeida. Cada passagem desse plano foi comentada com longos parágrafos de Primitivo Moacyr. Assim, tanto nos volumes sobre o Império quanto sobre as Províncias podemos perceber uma preocupação com os usos das fontes e a apresentação destas, bem como a voz do autor sempre presente.

As fontes utilizadas por Moacyr e que permitiram tamanha produtividade foram os documentos do Estado, tanto da esfera legislativa quanto executiva, no nível federal e provincial/estadual. Lançou mão de copiosa documentação oficial dentre documentos parlamentares, legislações, relatórios de presidentes de províncias, de diretores da instrução pública e outros sujeitos envolvidos no cenário educacional, particularmente no campo da administração escolar em seus diversos níveis. Para Saviani (2004, 5) as fontes são o ponto de partido, é “ponto de apoio da construção historiográfica que é a reconstrução, no plano do conhecimento, do objeto histórico estudado.” Observa ainda o autor que os documentos, os vestígios, indícios e toda a miríade de objetos produzidos pelo homem não são fontes em si mesmo, mas se constituem enquanto tal pela operação historiográfica, movida por uma questão, um problema.

Sendo assim, os documentos selecionados por Moacyr tornam-se fontes, subsídios para a história da educação. Mobilizados pelo autor que, indubitavelmente, tinha em mente um objetivo, um problema, uma questão a ser elucidada. Mesmo não explicitado, o propósito que o moveu a recolher vasta documentação configurou critérios, estabeleceu limites e delineou posições políticas quanto à educação brasileira, particularmente no quesito ação do Estado.

À primeira vista, a concepção de história de Primitivo Moacyr se aproxima muito de um historicismo atrelado a uma concepção de verdade, ou a uma história oficial, perfilada nos artigos que compõem a legislação educacional e nos resultados,

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justificativas e propósitos componentes dos relatórios produzidos pela esfera executiva. Desta forma, afasta-se do modelo preconizado pelos ensaístas a ele contemporâneos. Porém, está afinado com a corrente historiográfica ainda presente no Brasil, a qual valoriza em último grau o documento oficial, portador de um discurso de verdade. Mas, podemos considerar que esta era a ‘verdade’ buscada por Moacyr: as ações do Estado em prol da educação brasileira. E onde mais encontraria essa ‘verdade’ se não nos documentos oficiais.

Em meados dos anos 30, a tom com a criação do Ministério de Educação e Saúde, o Ministro Gustavo Capanema preparou um projeto dando origem à Lei 378, de 13 de Janeiro de 1937, criando o Instituto Nacional de Pedagogia, com a missão de realizar pesquisas sobre os problemas do ensino nos seus diferentes aspectos. Em 1938, o Decreto Lei n. 580, de 30 de Julho, alterou o nome do órgão para Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos - INEP. Dentre os motivos expostos por Lourenço Filho para o INEP estava a necessidade de organizar a documentação. Entretanto, não havendo técnicos suficientes para cuidar dos assuntos propriamente pedagógicos, foi necessário ocupar pesquisadores externos. A documentação recolhida pelo INEP abrangia dados estatísticos, e um ementário geral da legislação sobre o ensino e educação, a partir dos primeiros atos do Reino Unido. Segundo Lourenço Filho

O aspecto propriamente histórico encontrou um colaborador espontâneo na figura do inesquecível pesquisador Primitivo Moacyr, auxiliado, com rara dedicação, pelo Dr. Rui Guimarães de Almeida, também infelizmente já desaparecido. A ambos se deve a publicação da obra A Instrução e a República, em sete volumes, que o Inep editou nos anos de 1941 e 1942. 115

Para Lourenço Filho, Moacyr foi um prestimoso colaborador do INEP, o que lhe teria valido, então, a publicação dos sete volumes de A instrução e a República pela Imprensa Oficial. Quanto à coautoria, não dispomos de outra fonte que confirme esta informação. Por outro lado, é importante mencionar que, simultaneamente à publicação pela Imprensa Oficial, outros livros de Moacyr continuavam sendo publicados pela Companhia Editora Nacional.

Os volumes sobre o período republicano começam pelas reformas de Benjamin Constant (1890) até a reforma Rocha Vaz (1930). Organizado de forma temática, os sete volumes foram publicados entre 1941 e 1944. O 5º. Volume – Reformas João Luiz Alves e Rocha Vaz (1925-1930) foi publicado após sua morte. Tais reformas tratavam do ensino secundário e neste volume constam inúmeras apreciações dos educadores acerca desse nível escolar bem como as respostas de outros tantos a um questionário encaminhado pela ABE. Fazia parte do plano dessa coleção um volume sobre as universidades, que não veio a público.

Além do aspecto temático, essa coleção apresenta outras particularidades como, por exemplo, referências bibliográficas. Para o volume 1, essas referências se limitam

115 LOURENÇO FILHO, 2005, 183.

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às fontes documentais pesquisadas; porém, para o volume 4 – Reformas Rivadávia e C. Maximiliano (1911-1924), Moacyr informa vinte e cinco títulos da bibliografia educacional. Trata-se de outro indício acerca da importância do tema da ‘desoficialização’ do ensino. Apenas para os volumes sobre o ensino secundário e o ensino agronômico não constam referências ou fontes.

Nos dois volumes dedicados à instrução pública em São Paulo, na primeira década republicana, publicados pela Companhia Editora Nacional e disponíveis no portal da Brasiliana (www.brasiliana.com.br), Moacyr trata dos vários níveis de ensino – primário, secundário e superior, incluindo as especificidades dos cursos normal, agrícola e artístico. Para o nível superior, aborda a escola politécnica, o ensino médico e o jurídico. Nas referências bibliográficas ao final de cada volume indica as fontes pesquisadas – os Anais do Congresso Legislativo do Estado de São Paulo, a Coleção de Leis do Estado de São Paulo e relatórios dos Secretários do Interior e do diretor geral da geral da instrução. Dentre as obras de ordem mais geral cita História da Companhia de Jesus no Brasil, de Serafim Leite. Para a província de São Paulo faz referência a três títulos: Um Retrospecto (subsídios para a história pragmática do ensino público em São Paulo), do Professor João Lourenço Rodrigues, de 1930; O ensino em São Paulo, de José Feliciano de Oliveira, artigo publicado na Revista Educação, em 1932 e Cronologia Paulista, de Jacinto Ribeiro.

Dantas (2001, 131), ao tratar do projeto editorial do INEP, discorre sobre o formato e o conteúdo do boletim mensal, publicado com o título de Subsídios para a história da educação brasileira. O boletim mensal divulgava a legislação federal da educação e informações gerais sobre o desenvolvimento da educação no país e no estrangeiro, ampliada com a inclusão das legislações estaduais. Esse periódico foi publicado de 1940 a 1944, sendo substituído pela Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Para essa pesquisadora, a justificativa para a criação dos Subsídios, ou seja, dos boletins, apoiava-se “na intenção de criar uma memória educacional do país centrada no arrolamento de atos legais.”

Quando Moacyr passa a integrar o quadro do INEP como pesquisador, já havia publicado os seis volumes sobre a instrução no período imperial, utilizando o termo “subsídio” no subtítulo desses volumes. Pelas descrições que Dantas faz sobre o boletim do INEP, outras semelhanças e coincidências com os livros de Moacyr podem ser identificadas. Ou seja, a forma como a evolução da educação brasileira aparece nos boletins é semelhante à organização dada por Primitivo Moacyr nos volumes já então publicados na Coleção Brasiliana da Companhia Editora Nacional. No Boletim nº 17, de 1942, Lourenço Filho relata “o esforço para coligir toda a documentação referente à educação nos períodos anteriores à República, além do preparo para a utilização destas informações.” E continua dizendo da participação de Moacyr no INEP:

com a desinteressada colaboração do Dr. Primitivo Moacyr, a quem já se deviam excelentes estudos sobre o ensino no império, vêm este Instituto ultimamente publicando a obra “a Instrução e a República”, de que já se

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tiraram quatro volumes, e que se tirarão mais três (INEP, “Subsídios para a história da educação brasileira (ano de 1940)”. 116

Dantas defende a hipótese de que Moacyr não foi chamado para publicar uma obra que já estava finalizada e que era de interesse do Instituto divulgar. O convite adveio de sua excelência na sistematização de dados, pois o INEP possuía esses dados e era necessária sua organização e ordenação. Reconhece que a forma como os registros presentes no boletim mensal ‘Subsídios para a História da Educação Brasileira’ do INEP guarda muito do modo como Primitivo Moacyr organiza os dados referentes às províncias. Acrescenta, então, que tais ocorrências educacionais remetem à hipótese de que ao dispor no boletim mensal do Instituto as informações oriundas dos estados do mesmo modo como estas são apontadas nas publicações organizadas por Primitivo Moacyr, Lourenço Filho estaria referendando este formato para a história da educação.

CENA FINAL É inegável a elevada contribuição de Primitivo Moacyr para a consolidação do

ideal pretendido com criação do INEP, subliminarmente presente na defesa da educação como ciência: era preciso conhecer o que já se havia feito para lançar as bases do futuro. Considerando que a educação brasileira sempre foi pensada no campo estatal, ao ter seus livros publicados pela Imprensa Nacional, Primitivo Moacyr se colocou ao amparo do Estado, dando continuidade ao trabalho que já vinha desenvolvendo no INEP.

Inscrita numa historiografia bem próxima da corrente valorizada pelo IHGB e apadrinhada por instituições como a Companhia Editora Nacional e o INEP, entendemos a produção moacyrniana inserida numa chave que estimula o conhecimento como requisito para o desenvolvimento, ou seja, a ciência a serviço do progresso. Nesse sentido, considerando os contatos de diferentes intensidades com os componentes da ‘trindade cardinalícia’117 da Escola Nova no Brasil, não é demais entender Moacyr como porta-voz dos escolanovistas, signatários do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932), os quais, dentre outros pleitos, defenderam no manifesto o ‘preparo intensivo das forças culturais e o desenvolvimento das aptidões à invenção e à iniciativa’ como ‘fatores fundamentais do acréscimo de riqueza de uma sociedade’. Criticavam o “empirismo grosseiro” característico das ações educativas do estado brasileiro até então, enaltecendo ‘o tratamento científico dos problemas da administração escolar’.

116 Boletim nº 17, 1942. Apud: DANTAS, 2001, 132.

117 Termo utilizado por Saviani para designar os educadores Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira e Lourenço Filho.

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Empirismo este que Moacyr não se cansou de exemplificar em suas obras e que Anísio Teixeira (1938) tão bem resumiu - fartos em ideias e pecos em realização – e o próprio Afrânio Peixoto (1936) também se expressou: “O Brasil é principalmente Brasil, em educação.”

Moacyr inaugurou uma escrita da história da educação brasileira com as pesquisas arquivistas. O processo pelo qual tal produção historiográfica fora concebida e posta a circular, bem como as relações sociais, pessoais e intelectuais construídas ao longo da trajetória de Moacyr, e que o ajudaram a se inserir, utilizar e até mesmo construir um repertório educacional e histórico, ainda não foram estudados de maneira a canonizar interpretações. Nossas pesquisas se inserem nestas lacunas, trazendo à tona a necessidade de tratar a obra como fonte e objeto.

Compreendemos que a produção bibliográfica de Moacyr não foi fortuita, ao contrário, acusa intencionalidade. Respondeu a um propósito, a um convite mesmo que não formulado oficialmente, mas estimulado por aqueles com os quais convivia, pelo ambiente que frequentava, pela percepção do interesse que poderia promover a divulgação de uma coletânea de documentos organizados, sistematizados, sobre as ações estatais em prol da educação brasileira. Para tanto, contribuíram as sociabilidades possibilitadas pelo trabalho desenvolvido na Câmara dos Deputados e a familiarização com a documentação parlamentar e do Estado. O interesse pelos assuntos educacionais levado a público com o livro de 1916 – O ensino público no Congresso Nacional o aproximou, dentre outros motivos, a intelectuais e educadores do calibre de Afrânio Peixoto, Lourenço Filho e Anísio Teixeira.

Daí a confiança expressada no subtítulo dos livros – “subsídios para a história da educação no Brasil”, ou mesmo pela saudação de Afrânio Peixoto no 1o. volume publicado. Não por acaso, a matriz moacyrniana de apresentar a legislação brasileira como subsídio para a história da educação no Brasil foi tomada por Lourenço Filho como modelo para a memória educacional. Primitivo Moacyr não pretendeu fazer uma “interpretação” do Brasil. Não foi um ensaísta, mas sim um historiador. Não só estava atualizado com a concepção historiográfica predominante em sua época – a história documental –, como também foi um precursor no campo da história da educação brasileira ao dar visibilidade à profusa e inoperante legislação educacional.

De outra forma, concluímos que ao elaborar uma história documental oficial, ou seja, ao lançar mão de documentos produzidos na esfera do Estado, buscava reforçar o papel principalíssimo que este deveria ocupar na educação nacional. Esta posição é claramente visível desde o seu primeiro livro, ainda de 1916, ao eleger a defesa da responsabilidade do Estado no campo educacional frente às propostas de desoficialização do ensino, até o destaque para as reformas de ensino implantadas nas primeiras décadas do século XX.

BIBLIOGRAFIA

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O CONTRIBUTO DA BIOGRAFIA NA INVESTIGAÇÃO HISTÓRICA:

JOSÉ SEBASTIÃO E SILVA (1914-1972), CIENTISTA E

PROFESSOR Autor: Anabela Teixeira Filiação: Associação Ludus - MUHNAC/ULisboa Autor: Joaquim Pintassilgo Filiação: Instituto da Educação da Universidade de Lisboa

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RESUMO

Esta comunicação pretende, por um lado, sistematizar alguns dos principais aspetos da reflexão teórica recente sobre as possibilidades e os limites do uso da biografia ao nível da investigação histórica e, por outro, refletir sobre alguns momentos do percurso biográfico de um matemático português do século XX, José Sebastião e Silva (1914-1972), na sua relação com algumas dimensões dos contextos em que viveu e de que foi participante ativo, em particular no campo da educação.

Utilizaremos como fonte principal os relatórios elaborados e enviados por Sebastião e Silva ao Instituto de Alta Cultura, sobre a sua atividade no Centro de Estudos Matemáticos de Lisboa, que acompanha o seu percurso académico, profissional e científico nas diversas vertentes. Este centro de investigação, anexo à Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, sob a égide do Instituto para a Alta Cultura, foi criado em 1940 e funcionava na dependência do Ministério da Educação Nacional, cuja estrutura integrava. Complementarmente são utilizados artigos de jornais, de revistas científicas e de divulgação matemática, bem como correspondência e outros escritos, constantes do seu arquivo pessoal e de outros arquivos pessoais e institucionais.

PALAVRAS-CHAVE

Biografia, História da Matemática, José Sebastião e Silva

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1. A BIOGRAFIA NA INVESTIGAÇÃO HISTÓRICA

Marcada por períodos de alguma suspeição, a biografia tem sido nos últimos tempos alvo de um intenso movimento de renovação ganhando uma outra legitimidade como fonte da história e como género historiográfico. No seu percurso, segundo F. Dosse (2005), os estudos biográficos passaram por três fases: 1) Idade heroica; 2) Biografia modal; e 3) Idade hermenêutica. Na opinião de G. Levi (1996) podemos organizar os estudos biográficos com base numa tipologia de quatro categorias: 1) Prosopografia e biografia modal; 2) Biografia e contexto; 3) Biografia e casos extremos; 4) Biografia e hermenêutica. A historiadora brasileira V. Borges (2005) sugere que o tipo mais completo de biografia seria aquele em que o biógrafo realiza um “mergulho na alma” de seu biografado, conseguindo penetrar no que veríamos como a intimidade da pessoa já desaparecida, através dos documentos da “escrita de si” ou de “produção de si”: memórias, autobiografias, correspondência, diários, fotografias, objetos pessoais, a sua biblioteca, etc., e a partir destes, outras fontes surgirão, nomeadamente as relacionadas com o seu campo de produção. Como em qualquer trabalho de investigação histórica, não há regras ou métodos indiscutíveis para se atentar à escrita de uma biografia. A consciência recente da inevitável relatividade e subjetividade do conhecimento científico, permite-nos olhar de uma outra maneira para o problema da verosimilhança dos dados biográficos, no pressuposto de que as representações dos atores não só fazem parte da história como ajudam a construí-la. O reconhecimento deste facto não desobriga os historiadores de procurarem atingir o maior grau possível de rigor e de objetividade recorrendo aos instrumentos e ao percurso metodológico típicos da história. O biógrafo tem de reunir o maior número possível de conhecimentos sobre o seu personagem pela “floresta” dos arquivos, a fim de se aproximar, tanto quanto possível, da sua verdade com o máximo de “precisão, autenticidade e probidade” (Orieux, 1986, p.33).

Os estudos biográficos podem ser inseridos nas abordagens micro-históricas pela forma como é delimitado o objeto de estudo, submetendo-o a uma análise micro e convocando potencialmente vários olhares na tentativa de alcançar um conhecimento aprofundado sobre esse objeto. Através de vários “indícios, sinais e sintomas”, propõe-se “o particular como seu ponto de partida”, muitas vezes a partir de um individuo, e a investigação prossegue, “identificando seu significado à luz de seu próprio contexto específico” (Levi, 1992, p.154). Um contributo importante para a compreensão e a prática desta metodologia foi dado pela ampla circulação do livro organizado por Jacques Revel, Jogos de escalas: a experiência da microanálise (1998). No seu artigo, Revel evidencia que a originalidade da abordagem micro-histórica está na noção de contexto, que recusa “o unificado, homogéneo” dentro do qual e em função do qual os atores delimitariam suas escolhas; a proposta é, pelo contrário, a de constituir “a pluralidade dos contextos” que são necessários à compreensão dos comportamentos observados.

Um dos problemas centrais da biografia é o da relação entre o particular e o geral, ou seja, entre os indivíduos e o contexto, necessariamente plural e

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pluridimensional, em que eles se inserem e com o qual interagem. São várias as questões mais específicas que lhe estão subjacentes como, por exemplo, o problema da liberdade de escolha dos atores em face dos condicionalismos sociais com que se confrontam, o qual é analisado, entre outros, por G. Levi:

Parece-me, ao contrário, que deveríamos indagar mais sobre a verdadeira amplitude da liberdade de escolha. Decerto essa liberdade não é absoluta: culturalmente e socialmente determinada, limitada, pacientemente conquistada, ela continua sendo no entanto uma liberdade consciente, que os interstícios inerentes aos sistemas gerais de normas deixam aos atores. Na verdade nenhum sistema normativo é suficientemente estruturado para eliminar qualquer possibilidade de escolha consciente, de manipulação ou de interpretação das regras, de negociação. A meu ver a biografia é por isso mesmo o campo ideal para verificar o carácter intersticial – e todavia importante – da liberdade de que dispõem os agentes e para observar como funcionam concretamente os sistemas normativos, que jamais estão isentos de contradições (Levi, 1996, p.179-180).

Mesmo que recusemos o império do contexto, o estabelecimento do encadeado fino das relações entre biografado e contexto(s) é algo absolutamente incontornável na elaboração de uma biografia. Qualquer indivíduo é o resultado de um processo complexo de construção social. O condicionamento social é um dado à partida. O que é variável é a sua natureza e o seu grau. O biógrafo tem, por isso, de estar atento às margens de liberdade que os indivíduos conseguem conquistar ao longo do percurso sinuoso das suas vidas, colocando uma “dose de indeterminação” num processo também ele marcado por algum “determinismo”. O problema da relação entre o indivíduo e o(s) contexto(s) não tem uma solução de natureza geral, sendo necessário verificar, de forma subtil e precisa, para cada caso concreto, como se estrutura esse emaranhado de fios que ligam os dois planos. Como nos diz V. Borges, “o grave problema da necessidade ou do determinismo versus o fluxo caótico e aleatório da vida nunca está claro em cada vida”, sendo, por isso, necessária “uma procura lenta e cuidadosa de afirmações sobre cada vida” (Borges, 2010, p.222).

Por outro lado, nenhuma biografia é linear. O alerta de P. Bourdieu, ao referir-se à “ilusão biográfica”, mantém-se atual. Não há um sentido único para uma vida. Esta é sempre fragmentária e compósita. É, por isso, necessário tentar captar os diversos planos que a compõem, para além das continuidades e descontinuidades que caracterizam a sua trajetória. É ainda importante ter em conta que nenhum indivíduo é separável daqueles com que interage no desempenho da diversidade de papéis sociais que lhe são cometidos. É nessa interação que ele se constrói como ator social. Daí que os olhares de hoje procurem valorizar as redes, também elas plurais, de relações sociais e as sociabilidades com elas articuladas.

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2. PERCURSO BIOGRÁFICO DE JOSÉ SEBASTIÃO E SILVA

José Sebastião e Silva nasceu a 12 de dezembro em Mértola, pequena vila do interior do Alentejo (Portugal). Há escassos dados sobre a sua infância e juventude e o que se sabe deve-se a relatos posteriores.

Muito cedo a morte lhe arrebatara o Pai, ficando a educação e o sustento da família – que o compreendia a ele, e a mais três irmãos, – a cargo exclusivo da Mãe, professora primária que exercia o ensino com exemplar dedicação […] Depois, as crescentes dificuldades económicas da família ocasionaram um facto raro, e de talvez decisivas consequências para a configuração de um destino: aos 13 anos de idade, o jovem José Sebastião e Silva começou a dar lições a colegas do liceu, para aumentar os escassos réditos familiares […] ensinara Latim a colegas seus durante o 2ºciclo […] seguindo as aulas do 6º ano de Ciências, estudou como autodidacta o Latim do 6º ano de Letras, para poder continuar a leccionar os explicandos que não queriam perder o bom mestre que até ali tinham tido (Guimarães, 1972, 5-6).118

Na sua juventude adoeceu por duas vezes, “uma no período liceal e outra no decurso dos estudos universitários […] com uma doença para a qual, na época, os recursos da Medicina eram muito limitados: a tuberculose” (Ferreira, 1997, p.22).

Em 1933 matriculou-se no curso de Ciências Matemáticas da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, que concluiu com alta classificação em 1937. Não tendo sido chamado para assistente da Faculdade começou a lecionar em colégios particulares e a dar aulas individuais e decidiu frequentar o Curso de Ciências Pedagógicas, de forma a obter a habilitação necessária para o exercício oficial do magistério liceal, que não chegou a concluir. Em 1939 integrou-se no Movimento Matemático119 que então surgia em Portugal e solicitou uma bolsa de estudo ao Instituto de Alta Cultura. Em 1940 é criado o Centro de Estudos Matemáticos de Lisboa e foi-lhe concedida a bolsa, fazendo assim parte do primeiro grupo de investigadores deste centro. Este facto marcou uma viragem na sua vida; passou a dispor de tempo e ambiente para se dedicar ao que mais desejava fazer: estudos e investigações de Matemática. Os seus primeiros trabalhos, alguns iniciados no seu tempo de estudante de licenciatura, foram publicados na Portugaliae

118 Guimarães, A. A. (1972). Vida e obra de José Sebastião e Silva. Texto não publicado, acessível online na página da Escola Secundária Sebastião e Silva em http://www.esss.edu.pt.

119 Movimento informal de matemáticos portugueses que teve um papel muito importante no desenvolvimento da investigação e divulgação da ciência em Portugal, fundando um conjunto de iniciativas: a revista científica Portugaliæ Mathematica (1937); o Seminário Matemático de Lisboa (1938) que tomou em novembro de 1939 o nome de Seminário de Análise Geral; o Centro de Estudos de Matemáticas Aplicadas à Economia (1938); a revista Gazeta de Matemática (1940); o Centro de Estudos Matemáticos de Lisboa (1940); a Sociedade Portuguesa de Matemática (1940); o Centro de Estudos Matemáticos do Porto (1942); a Junta de Investigação Matemática (1943).

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Mathematica (revista científica criada pelo Movimento Matemático, ainda em publicação sob a responsabilidade da Sociedade Portuguesa de Matemática). Participou de forma ativa nas atividades que se desenvolviam: no âmbito da atividade do centro, os resultados dos estudos coletivos iam sendo apresentados e discutidos em seminários internos, divulgados em cursos públicos e em séries de conferências organizadas pelo Centro; apresentou comunicações em congressos luso-espanhóis120; colaborou na revista Gazeta de Matemática; foi sócio fundador da Sociedade Portuguesa de Matemática.

Em 1942 é contratado como 2º assistente da sua Faculdade e em 1943 parte para Roma, com vista a preparação da sua tese de doutoramento, como bolseiro do Instituto da Alta Cultura junto do Istituto di Alta Matemática.

O período da ocupação alemã, em Roma, foi trágico para os italianos, duro para nós. A nossa actividade científica teve de ser muitas vezes interrompida, para resolver problemas vitais de alimentação ou de vestuário, através de vias longas e tortuosas. Tivémos de nos resignar a géneros de trabalho que podem parecer incompatíveis com a posição dum bolseiro mas que eram indispensáveis se o bolseiro queria viver ou ter forças para trabalhar […] Por outro lado, a acumulação de reservas alimentares, para fazer face às incertezas do futuro – sobretudo, a um hipotético estado de emergência que a todos trazia preocupação – era um problema difícil que exigia tempo e energia. Tudo isto agravado, no meu caso, pela falta de saúde, que me obrigava a seguir um tratamento intenso e assíduo […] Mas não era só deste modo indirecto que se manifestava a Guerra em Roma. Os bombardeamentos, os atentados, as escaramuças – eram também aqui uma realidade. E a zona em que nós habitávamos, na vizinhança imediata do comando alemão, não era dos menos expostos. E é curioso este pormenor: muitas das nossas cartas, artigos, etc. enviados para Portugal, foram escritos a som de explosões ou de forte fuzilaria, por baixo das nossas janelas (J. Sebastião e Silva, 1944).121

Apesar destes condicionalismos, a sua estada em Roma foi muito produtiva, uma vez que publica mais trabalhos e produz investigações de grande alcance e originalidade, incluindo a sua tese de doutoramento. Regressou a Portugal em fins de 1946, concluiu provas de Doutoramento em 1949 e foi nomeado 1º Assistente da Faculdade de Ciências. Em 1951 casou com Virgínia Tavares Peres, licenciada em Filologia Germânica e professora do ensino liceal, desta união nasceram três filhos.

120 O Congresso Luso-Espanhol para o Progresso das Ciências, encontro científico promovido pelas Associações Portuguesa e Espanhola para o Progresso das Ciências, realizava-se com regularidade em várias cidades, entre os dois países, desde 1921.

121 Arquivo Histórico do Instituto Camões, Processo de José Sebastião e Silva: Carta de 4 de Agosto de 1944 de José Sebastião e Silva para o Secretário do Instituto de Alta Cultura.

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A procura de alguma estabilidade profissional ligou-o ao Instituto Superior de Agronomia, entre 1951 e 1960. São desse decénio a maioria dos seus trabalhos publicados no domínio em que seria considerado um dos grandes especialistas do seu tempo: a Análise Funcional. Sob a sua direção, o Centro de Estudos Matemáticos de Lisboa é restabelecido em 1952 e aí, durante vinte anos, orientou muitos investigadores portugueses e estrangeiros. Desde 1952 foi colaborador da revista americana Mathematical Reviews e desde 1958 da revista alemã Zentralblatt für Mathematik 122; também foi reviewer do Journal of Symbolic Logic. Em 1956, ganhou o prémio Artur Malheiros, atribuído pela Academia das Ciências de Lisboa, que três anos depois elegê-lo-ia académico correspondente e, em 1966, membro efetivo.

Este curriculum, com incontestável prestígio internacional, determinou a sua nomeação, por convite, para Professor Catedrático da Faculdade de Ciências de Lisboa em 1960, função que desempenharia até ao final da sua vida. Para além de ter sido o responsável pela renovação do ensino da matemática no nosso país, questão que desenvolveremos mais à frente, é ainda de destacar que foi consultor do Laboratório de Física e Energia Nucleares, membro da Comissão Portuguesa da União Matemática Internacional e do Comité Executivo do Groupement des Mathématiciens d’Expression Latine.

É nesta pluralidade de sentidos que a biografia de Sebastião e Silva se desenvolve. As ideias matemáticas mais avançadas circulavam entre os diversos países, os investigadores faziam parte da sua formação académica no estrangeiro ou para lá iam trabalhar, correspondiam-se entre si, participavam em congressos internacionais, contribuíam para as revistas da especialidade e partilhavam a sua leitura. Sebastião e Silva integrou essas redes de sociabilidade e contribuiu para a produção e circulação internacional do saber matemático bem como para a sua apropriação local. Não podemos esquecer que o contexto político em que ele viveu foi, no caso português, excetuando a infância e juventude, marcado pela longa duração do regime autoritário português liderado por Salazar, o autonomeado Estado Novo. Importa, assim, ter em conta também a complexidade (e ambiguidade) das relações entre o percurso do cientista e o próprio itinerário do regime.

3. PROJETO DE MODERNIZAÇÃO DO ENSINO DA MATEMÁTICA NOS LICEUS

Nos vários textos que redigiu para o ensino universitário, como professor de Matemática do Instituto Superior de Agronomia e da Faculdade de Ciências de Lisboa, introduzui novas abordagens nos temas que lecionava, procurando acompanhar a evolução e a modernização da própria ciência e tendo em conta a

122 As mais importantes revistas internacionais de crítica à produção matemática original de todos os países.

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especificidade do ensino; entre as cadeiras com análogas designações “há diferenças de finalidade que se refletem necessariamente em diferenças de programas e mais ainda numa divergência das orientações pedagógicas a imprimir nos cursos” (J. Sebastião e Silva, 1957)123. As suas propostas de reforma, pareceres e reflexões abrangiam desde linhas gerais até aos pormenores do programa e da forma de ensino.

As suas críticas e ideias sobre a Matemática que se ensinava nas escolas não superiores surgiram nos anos 1940, em artigos publicados na Gazeta de Matemática (uma das revistas criada pelo Movimento Matemático, ainda em publicação sob a responsabilidade da Sociedade Portuguesa de Matemática). Nos anos 1950 redigiu manuais escolares para o ensino secundário, de Geometria Analítica Plana e de Álgebra (em coautoria), que foram adotados em todas as escolas do País por orientação do Ministério da Educação Nacional. Foi também nesta década que teve origem um movimento de dimensão internacional que tinha como objetivo a renovação do ensino da Matemática, de modo a adaptá-lo às exigências da revolução científica e tecnológica que ocorria na época. Sebastião e Silva representou Portugal junto da Comissão Internacional de Instrução Matemática (CIEM ou ICMI) e da Comissão Internacional para o Estudo e Melhoramento do Ensino da Matemática (CIEAEM). Para atualizar o ensino da Matemática admitiu-se ser preciso começar por atualizar os conhecimentos do corpo docente e, a pedido de professores do ensino liceal, Sebastião e Silva realizou em 1959 uma série de palestras no Liceu Normal de Pedro Nunes, sobre o tema “Introdução à Lógica Simbólica e aos Fundamentos de Matemática”, e durante o ano letivo de 1962/63, na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, um curso sob a forma de palestras seguidas de discussão sobre vários temas de matemática moderna (lógica matemática, teoria dos conjuntos, álgebra abstrata, elementos de topologia, fundamentos axiomáticos de aritmética e geometria de Euclides).

No relatório 124 que redigiu, na qualidade de secretário da subcomissão portuguesa do ICMI, em 1962, expressava o seu acordo com a necessidade de se modernizar o ensino da Matemática mas manifestava algumas preocupações:

Nous pensons que ces innovations doivent être éxécutes avec une extrême prudence et le plus fin tact pédagogique, si l’on ne veut pas créer chez les élèves une répulsion invincible pour les mathématiques ou les conduire à l’acquisition d’un formalisme vide, tout à fait stérilisant. En effet, la moderne orientation abstraite des mathématiques est une épée à deux tranchants, d’aprés l’usage que l’on en fait: elle peut rendre l’enseignement beaucoup plus attirant et beaucoup

123 Arquivo pessoal de José Sebastião e Silva, Manuscrito: “Sobre a natureza das cadeiras de Matemática do Instituto Superior de Agronomia”, de 3 de Agosto de 1957.

124 Publicado na Gazeta da Matemática nº 88-89 de Julho-Dezembro 1962, com o título “Sur l’introduction des mathématiques modernes dans l’enseignement secondaire”.

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plus efficace; mais, mal appliqué, elle peut aussi conduire à des résultats à peu près opposés (Silva, 1962, p.25).

Em 1963 foi nomeado, pelo Ministro da Educação Nacional, para Presidente da Comissão de Estudos para a Modernização do Ensino da Matemática nas escolas portuguesas, no 3º ciclo do ensino liceal (denominação da época correspondente ao atual ensino secundário), cuja atividade era regulada por acordo celebrado entre o Ministério da Educação Nacional e a Organização Europeia de Cooperação Económica (OECE, agora OCDE). O objetivo era elaborar um projeto de reforma, inserida na proposta internacional, que se considerava necessária e urgente de modo a acompanhar a evolução da Ciência e da Técnica. O ensino da Matemática devia refletir essa evolução, o que implicava modificar os programas e não só, dizia Sebastião e Silva:

A modernização do ensino da Matemática terá de ser feita não só quanto a programas, mas também quanto a métodos de ensino. O professor deve abandonar, tanto quanto possível, o método expositivo tradicional, em que o papel dos alunos é quase cem por cento passivo, e procurar, pelo contrário, seguir um método ativo, estabelecendo diálogo com os alunos e estimulando a imaginação destes, de modo a conduzi-los, sempre que possível, à redescoberta (Silva, 1964, p.1)

A experiência da Matemática Moderna, nome por que ficou conhecido o projeto desenvolvido por esta comissão de estudos, iniciou no ano letivo 1963-64 em três turmas, lecionadas por professores que orientavam estágios nas três escolas do País (em Lisboa, Porto e Coimbra) e que faziam parte dessa comissão. Nos anos seguintes, o projeto foi sendo alargado progressivamente a outras escolas, foram formados novos professores e elaborados textos de apoio para os alunos e professores das turmas experimentais. Estes textos, Compêndio de Matemática e Guia para a utilização do Compêndio de Matemática, foram redigidos por Sebastião e Silva e são ainda hoje uma referência para quem estuda e ensina Matemática. Pretendia reelaborá-los e fazer uma nova edição dedicada a todos, não só às turmas experimentais, desejo que foi interrompido pela sua doença e morte prematura. No entanto, foi um projeto bastante inovador e que marcou gerações de portugueses.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A sua vasta obra, produzida a par da intensa carreira como investigador e professor universitário, abarca muito mais do que os progressos científicos e tecnológicos e nos vários textos que redige sobre a ciência, a universidade, o ensino, desde o nível mais elementar ao superior, é clara a sua preocupação sobre toda a problemática que os envolve. Por detrás da obra está o homem: um membro de uma

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família, com uma certa cultura, com determinados vínculos de amizade, com a sua experiência de vida. Estas duas dimensões - vida e obra - devem ser pensadas juntas pelo biógrafo, sem reducionismo, articulando-as, pondo-as em tensão (Dosse, 2005).

O matemático deve sempre evitar o perigo da deformação profissional, que pode ser nociva para a própria atividade científica […] Nas horas vagas, o seu espírito deve orientar-se para outros domínios: procurar na arte, na literatura, na filosofia, um equilíbrio que foi perturbado (sem cair num diletantismo dispersivo, outro perigo a evitar!). E ter presente o conselho de David Hume no seu Ensaio sobre o Intelecto Humano: “Sê um filósofo, mas, no meio de toda a tua filosofia, sê ainda e sempre um homem” (J. Sebastião e Silva, 1950, p.6).

Para além de membro destacado do seu campo científico, Sebastião e Silva foi, como já notámos, um ativo divulgador científico, tendo ainda uma presença assinalável no campo pedagógico, não só como autor de manuais de apoio ao ensino universitário e pré-universitário, mas, também, como protagonista central de um projeto educativo inovador, o esforço de modernização do ensino da matemática em Portugal em sintonia com o amplo movimento internacional que prosseguia exatamente esse desiderato.

BIBLIOGRAFIA

Borges, V. (2010). Grandezas e misérias da biografia. In PINSKY, Carla B. (org.), Fontes históricas, 2.ed. 2ª reimpressão (pp.203-233). São Paulo: Contexto.

Dosse, F. (2005). Le pari biographique. Écrire une vie. Paris: Éditions La Découverte.

Ferreira, J.C. (1997). José Sebastião e Silva – testemunho de um discípulo. In Departamento de Matemática da FCUL (org.), Homenagem a José Sebastião e Silva. Actas do Colóquio de Homenagem realizado em 12 de Dezembro de 1997 na Torre do Tombo (pp.19-32). Lisboa: Departamento de Matemática da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.

Levi, G. (1992). Sobre a micro-história. In Burke, P. (org.), A escrita da História: novas perpetivas, 7ª reimpressão (pp.133-161). São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista.

Levi, G. (1996). Usos da biografia. In Amado, J. ; Ferreira, M. M. (coords.), Usos e abusos da história oral (pp.167-182). Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getulio Vargas.

Orieux, J. (1986). A arte do biógrafo. In Duby, G.; Ariès, P.; Le Roy Ladurie, E.; Le Goff, J. – História e Nova História (pp.33-42). Lisboa: Editorial Teorema.

Revel, J. (org.) (1998). Jogos de escalas. A experiência da microanálise. Paris: Seuil/Gallimard.

Silva, J. S. e (1950). “Filósofos e Matemáticos”. Gazeta de Matemática, 46, 4-6.

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Silva, J. S. e (1964). Guia para a utilização do Compêndio de Matemática (1º volume – 6º ano). Lisboa: Ministério da Educação Nacional.

Teixeira, A. (2015). José Sebastião e Silva (1914-1972): O Homem, O Cientista e o Professor. Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.

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DESAFIOS DA MATERIALIDADE ESCOLAR AO OFÍCIO DE

HISTORIADOR: UMA PERSPECTIVA A PARTIR DAS NARRATIVAS

DE UMA EXCURSÃO Autor: Inês Félix Filiação: Umeå universitet

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RESUMO

A emergência de um novo modo de pensar a materialidade – que reclama para si aspetos subjetivos e imateriais – permite problematizar o quotidiano escolar a partir de perspetivas diferentes daquelas que tradicionalmente têm sido adotadas pelos historiadores. Isto é, permite desafiar os binómios no interior dos quais estes constroem os seus objetos, os analisam, problematizam e compreendem. A presente comunicação explora esta possibilidade a partir da análise de um artigo publicado em 1937 por um grupo de alunos no seu jornal escolar. O objetivo é perceber o modo como nele se articulam diversos aspetos da materialidade e como o historiador os pode considerar no estudo das narrativas dos estudantes em geral e das excursões escolares em particular. A ideia é abraçar a hibridez da publicação numa análise capaz de tomar a narrativa como um todo plural. No interior deste exercício torna-se possível pensar o ofício do historiador na medida em que este é convidado não apenas focar-se naquilo que lhe é dado a ver e a perceber, mas também admitir a possibilidade de que o que o impacta enquanto leitor faz igualmente parte da compreensão do seu material empírico.

PALAVRAS-CHAVE

Ofício do historiador, materialidade, excursão escolar.

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1. INTRODUÇÃO

Na última década o estudo da materialidade escolar tem contribuído para o aparecimento de novos objetos de investigação e de novas perspetivas e, assim, para a possibilidade de um alargamento das problematizações geradas no interior da História da Educação. Desde aspetos ligados aos espaços e objetos do quotidiano e da cultura da escola até às questões da comunicabilidade e preservação da sua herança e memória, a materialidade escolar começou também a incluir aspetos subjetivos da narrativa e as dimensões afetivas e sensoriais de testemunhos tanto orais como escritos.

Nas palavras de Jane Bennett, este novo modo de ‘ver’ a materialidade é um projeto filosófico que consiste em “pensar devagar uma ideia que corre depressa nas nossas cabeças modernas: a ideia de que a matéria é passiva, crua, bruta e inerte” (2010, p. vii). É neste sentido ainda que a ideia de que a “matéria importa” – no original, matter matters – se apresenta em várias correntes teóricas contemporâneas. Na esteira de Karen Barad (2003), também Lisa Rosén Rasmussen (2012, 2014) propõe um deslocamento teórico que passa por interiorizar que “as práticas discursivas não precedem os fenómenos materiais nem vice-versa. Em vez disso, é uma questão de simultaneidade – processos discursivo-materiais em transformação” (2014, p. 188).

Ao abraçar esta ideia de materialidade, a materialidade escolar insere-se no eixo de problematização que Lynn Fendler designa por “teoria não-representacional” (2014). Isto é, uma abordagem cuja experimentalidade visa diluir fronteiras e distinções (entre imagens, textos, representação e realidade), colocando tudo no mesmo plano epistemológico onde “nem a subjetividade nem a objetividade são essenciais ou predeterminadas” (2014, p. 119). Segundo Fendler, esta perspetiva permite imaginar novas formas de materialidade uma vez que se apresenta como uma “alternativa crítica às duas principais correntes epistemológicas, nomeadamente o construtivismo social e o empirismo lógico” (Ibidem, p. 119).

Se, por um lado, a linguistic turn trouxe a possibilidade de uma análise crítica do discurso entendido como "um sistema que é essencialmente processual, metodológico e que molda o modo de questionar ao invés de seu conteúdo" (Bridges 2006, p. 269), por outro uma ética da materialidade (Fendler 2014), uma material turn, pode abrir os horizontes dos historiadores da educação tanto metodológica como teoricamente. De facto, o estudo da materialidade escolar alargou-se sobremaneira e compreende agora simultaneamente os elementos objetivos e subjetivos, materiais e imateriais que permitam problematizar o quotidiano escolar a partir de perspetivas radicalmente diferentes daquelas que tradicionalmente têm sido exploradas pelos historiadores. Isto é, permite desafiar os próprios binómios no interior dos quais o historiador constrói os seus objetos, os analisa, problematiza e compreende. No contexto dos desafios lançados por estes contributos teóricos, a presente comunicação explora esta possibilidade de análise e de problematização historiográficas da materialidade escolar a partir de um exemplo particular.

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Para tal, será analisado um artigo sobre uma excursão de estudo produzido por um grupo de alunos do Externato Academia Figueirense e publicado em 1937 em dois números do seu jornal – O Académico Figueirense (Fig.1)125.

FIG. 1 | Cabeçalho do jornal O ACADÉMICO FIGUEIRENSE. Órgão da Associação Escolar do Colégio Academia Figueirense: Mensário educativo, instrutivo e recreativo, Figueira da Foz, III (5), p.1, publicado em 16/02/1936.

O objetivo é perceber o modo como num único artigo se articulam diversos aspetos da materialidade e o modo o historiador os pode considerar na análise das narrativas dos estudantes em geral e no estudo de atividades extracurriculares, como as visitas e excursões de estudo, em particular. Nomeadamente o modo como, naquilo que é simultaneamente a história e o relatório de uma viagem, a alternância entre textos objetivos e subjetivos, o entrelaçamento de aspetos visuais e discursivos, a sucessão de espaços e ideias, etc. se traduz numa coletânea articulada e coesa de perspetivas singulares à qual o leitor não fica indiferente. A ideia é tomar a própria hibridez da publicação numa análise sistemática e inclusiva, capaz de tomar a narrativa como um todo compósito onde forma e conteúdo são parte fundamental e integrante da comunicação das perceções dos estudantes.

No interior deste exercício de tentar diluir binómios, torna-se possível problematizar o ofício do historiador. No limite, o meu argumento é o de que, no estudo da materialidade escolar, o investigador deve não apenas focar-se no aquilo que lhe é dado a ver e a perceber, mas também admitir a possibilidade de que o que o

125 O ACADÉMICO FIGUEIRENSE. Órgão da Associação Escolar do Colégio Academia Figueirense: Mensário educativo, instrutivo e recreativo, propriedade do Colégio Academia Figueirense, Figueira da Foz: C.A.F., 1933-1959. “O Académico Figueirense é o jornal escolar de uma instituição particular de ensino. Nele colaboram professores, figuras da vida cultural portuguesa e, sobretudo, alunos, expressando as preocupações, anseios e opiniões relacionados com o Colégio e com questões sociais e educativas da época. O diferente estatuto dos participantes reflete-se no estilo, profundidade de análise e dimensão dos artigos. As intenções do jornal são de ordem formativa e informativa, veiculando ideias patrióticas, enaltecendo figuras históricas e registando trabalhos e opiniões de alunos.” Cf. (Nóvoa 1993, pp. 11-12). Uma das razões pelas quais escolhi esta publicação prende-se com o facto de nela serem enfatizadas atividades extracurriculares tanto quanto aspetos da vida quotidiana da escola, muitas vezes recorrendo a textos e imagens. De facto, não só estão frequentemente presentes aspetos menos formais da escolarização como a imagética é usada extensivamente. Como se as imagens – sobretudo fotografias – fossem por um lado inseparáveis da escrita e por outro um meio para cativar o leitor.

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impacta enquanto leitor faz igualmente parte da compreensão do seu material empírico.

2. “EXCURSÃO DE ESTUDO PELO ALENTEJO E ALGARVE” – MATERIALIDADES ENTRELAÇADAS 2.1. Um artigo singular

O artigo “Excursão de Estudo pelo Alentejo e Algarve”, como tantos outros da mesma publicação, combina textos com fotografias e desenhos126. Contudo, este artigo destaca-se dos restantes por diversas razões.

A primeira, e talvez a mais evidente, é o facto de ser o único cujo cabeçalho que, ocupando toda a largura da página em ambos os números em que foi publicado, articula texto com elementos pictóricos (Fig.2). O aspeto mais proeminente é o título, escrito em letras maiúsculas com diferentes fontes tipográficas, em cujo local da excursão surge enfatizado a negrito. Uma vez que tanto visitas de estudo como excursões escolares eram realizadas frequentemente, tendo em conta o conjunto de artigos publicados neste jornal127, é como se o destaque fosse não tanto a atividade em si, mas o local onde ela decorreu. A acompanhar o título estão dois emblemas heráldicos, ladeados por elementos naturais, que fazem a referência aos brasões de armas de duas das cidades visitadas, Beja e Faro128.

FIG. 2 | Cabeçalho do artigo “Excursão de Estudo pelo Alentejo e Algarve” (AA.VV., 1937b, p.7, AA.VV., 1937c, p.3).

Embora fosse comum a publicação de alguns artigos ser repartida por dois números do jornal – muitas vezes por uma questão de gestão de espaço –, outro

126 Com exceção do cabeçalho e do itinerário da excursão, todos os desenhos publicados neste artigo estão assinados por Moreira Júnior, um artista figueirense, e foram muito provavelmente retirados de outras publicações. Infelizmente, no que respeita às fotografias, não há qualquer indicação do autor tanto nas legendas como no corpo do texto.

127 Cf., por exemplo, Anon. (1934), Silva, J. A. S. (1935), Oliveira, M. M. (1935), Cardoso, J. F. (1935), Pinto, J. F. (1935), Dias, L. O. (1936), Freitas, O. J. (1936), Mendes, J. F. (1936), AA.VV. (1937a), Correia, R. (1937), Gonçalves, M, F. (1938), Caldas, L. M. (1938), Sousa, M. J. P. P. (1941), Pais, A. J. T. (1941), Biscaia, A. M. (1941), Mello, N. (1947), Baltar, C. A. F. (1950), Lopes, J. A. P. (1950), Alves, M. A. (1950), Nogueira, R. (1952), e Anon. (1954).

128 Respetivamente, à esquerda e à direita do título.

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aspeto que contribui para a singularidade deste artigo é o facto de este ocupar quase oito páginas. A começar pela ênfase dada à apresentação da excursão logo na primeira página, com o itinerário marcado no mapa de Portugal colocado ao centro a ocupar pelo menos um terço da página (Fig. 3), também a riqueza visual e textual129 o caracterizam. No total são catorze pequenos relatórios de estudantes e dezoito imagens, das quais onze são desenhos e sete são fotografias. O seu hibridismo, pelo uso de diferentes tipos de imagens, de diferentes textos e, mesmo dentro do mesmo texto, de diferentes tipos de narrativas, convida o leitor a ver e imaginar, pelos olhos e mãos dos alunos, os locais que eles visitaram (Fig. 4). Por fim, a narrativa surpreende pela articulação entre pequenos textos assinados pelos alunos que os escreveram e um narrador anónimo que vai fazendo as pontes entre textos.

FIGS. 3 E 4 | Primeira à terceira páginas da “Excursão de Estudo pelo Alentejo e Algarve”. (AA.VV., 1937b, pp.7-9).

2.2. AA.VV. – Amálgama de perceções, uma única narrativa

A narrativa sobre a excursão destes estudantes começa pela mão de um autor anónimo. Ele/a(s) começa(m) por informar o leitor de que a ideia de rumarem ao sul do país nasceu numa reunião da Direção da Associação Escolar dos Alunos, fruto da iniciativa do “vogal da Secção de Excursões e Festas, o aluno da 6ª classe, António de Figueiredo Dias” (AA.VV. 1937b, p. 7). O autor explica ainda que, por forma a serem “devidamente ponderadas as suas probabilidades”, “auscultou-se a opinião dos alunos através de uma inscrição em que se obrigavam ao pagamento de 5$00130 durante vinte semanas” (Ibidem., p. 7). Em breves dias, escreveu, estavam vinte e três sócios inscritos: dez alunos da 6ª classe, seis da 5ª, dois da 4ª, quatro da 3ª e um

129 É interessante notar, contudo, que esta articulação entre imagens e textos é mais cuidada na primeira parte do artigo. À medida que o leitor avança na peça, o uso de imagens torna-se mais esparso.

130 Cinco escudos.

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da 2ª, num total de vinte rapazes e três raparigas, cujos nomes completos são listados na primeira página. A eles juntaram-se quatro adultos: o diretor de excursão, dois professores e um auxiliar. Feito o balanço das receitas, ficou a Associação encarregue das despesas com a alimentação dos excursionistas. Da informação introdutória consta ainda a menção de que, numa reunião preparatória, “os alunos foram divididos em grupos e determinada a cada um deles a sua missão” (Ibidem. p. 7) e que a partida ficou agendada para a manhã de dia 4 às 5 horas e 30 minutos. Nada, contudo, informa o leitor sobre os ditos grupos ou respetivas tarefas. Mais ainda, na primeira página nada esclarece o mês exato em que ocorreu a excursão131, a sua duração ou tão pouco os detalhes do planeamento desta atividade.

Posto estes dados iniciais, o autor apressa-se a começar a história da viagem, onde narra aspetos da paisagem e dos locais pelos quais vão passando, mas também o ambiente entre os excursionistas:

Á [sic] esquerda, o Liz serpentea [sic] por entre os choupos as suas águas ainda adormecidas. Depois de Leiria, a Batalha (…), Alcobaça, ridente na sua moldura verde, pequena povoação a uns quilómetros à frente, vê-se de relance, num golpe de vista em que a retina mal fixa a fachada do convento (…). De uma das curvas, espraia-se a vista à direita em extensa planura até ao mar–na Concha de São Martinho, de água muito quieta, envolvida por sua casaria muito branca. (…) As povoações rareiam mais. (…) Seguimos agora, sem precipícios nem barrancos, o Tejo barrento onde se destacam velas avermelhadas que se deslocam velozes. Aqui e ali, manadas de touros olham espantados a camionete vermelha, atraídos pelas canções dos viajantes… (AA.VV. 1937b, p.8).

Com a descrição detalhada da jornada, o leitor viaja no espaço e no tempo, oscilando naturalmente entre relances da paisagem e apontamentos pessoais, à medida que este autor anónimo vai contando a história da viagem. História essa que, aliás, serve de narrativa maior do artigo. Através dela, é nos dado a saber, por exemplo, a rota da excursão e o seu o horário, nomeadamente a que horas chegaram ou partiram de determinados locais. De igual modo, este autor anónimo vai assinalando a passagem dos dias:

Cerca das 18h abandonámos Montemor, em direção a Évora. As azinheiras são agora em grande número, imprimindo à paisagem um tom escuro, de tristeza… Começa a anoitecer e as meias tintas do céu adensam mais a nota de

131 A única informação de que o leitor dispõe no início deste artigo é que a excursão terá ocorrido depois de Janeiro: “ficou assente que a partida se faria na madrugada de dia 4, uma vez que se encontravam removidas certas dificuldades sobre a travessia do Tejo, motivadas pelo temporal desencadeado com desusada violência, em todo o Pais [sic], nos fins de Janeiro” (AA.VV. 1937a, p. 7). Contudo, mais à frente, no decorrer da história é referido “No dia seguinte, 10 de Fevereiro, fizeram-se as visitas ao Aquário de Algés, Jerónimos, Museu dos Choches e Jardim zoológico (AA.VV., 1937b, p.5)

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melancolia que nos vem do arvoredo. A-pesar [sic] de tudo, na camionete, os capazes cantam, desafinadamente é certo, mas cantam, talvez no desejo de reagirem contra essa influência da natureza. Três quartos de hora depois, fazemos a nossa entrada na cidade de Évora (…) Tínhamos percorrido 368 longos quilómetros e não é preciso dizer mais nada para bem se compreender a alegria experimentada ao tomarmos posse dos quartos que nos estavam destinados na Pensão Eborense. (…) Dia 5 – segundo dia da excursão (AA.VV. 1937b, p.8).

É justamente a partir do segundo dia da excursão que o que, no decorrer desta narrativa maior, outras mais pequenas vão sendo incluídas. Estas consistem em relatórios sobre alguns dos sítios visitados e foram escritos por rapazes e raparigas entre o 3º e o 6º ano do ensino liceal132. Estes textos são, na sua maioria, narrativas ‘objetivadas’ uma vez que, usando uma linguagem elaborada – como se retirada de um livro ou da lição in situ –, recaem principalmente sobre aspetos factuais (históricos, arquitetónicos, científicos, etc.). Ainda assim, muitos destes textos entrelaçam aquelas descrições com observações pessoais, como se ambas fossem fundamentais para se compreender tanto a aprendizagem sobre os locais visitados como a experiência de cada aluno:

Ao começar a minha descrição não posso deixar de falar de Évora, a cidade museu de Portugal, riquíssima de monumentos e antiqüíssima [sic]. A sua antiguidade é assinalada pelos vestígios da época pré-histórica nas imediações, Ruínas de Cetobriga [sic], pelo templo de Diana dentro da própria cidade e que atesta a passagem dos romanos pela Península, a Idade-Média [sic] pelas suas muralhas e algumas igrejas e Sé Catedral. Numa dessas igrejas, datando do séc. XV, há a notar um monumento, curiosidade raríssima talvez na península e até na Europa; é a capela dos Ossos da Igreja de S. Francisco, destinada à meditação. Encimando a porta cujos humbrais [sic] são constituídos de ossos humanos, nota-se a seguinte inscrição: ‘Nós ossos que aqui estamos/ Pelos vossos esperamos’. Atravessando a porta, a impressão que nos causa a entrada não se desfaz, antes se acentua ainda mais devido ao ambiente lúgubre que ali reina. (…) A meia luz [sic] reinante imprime-lhe ainda mais o aspeto tétrico e aumenta o nosso mal estar [sic]. (AA.VV. 1937b, p.10).

132 Entre os onze e os quinze anos.

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A introdução destas pequenas narrativas individuais é assinalada com um título a negrito, geralmente referindo-se ao local visitado, seguido no nome do autor e respetivo ano de escolaridade. Estas constituem notas simultaneamente objetivas e pessoais que complementam a narrativa maior na medida em que elas são estrategicamente colocadas sempre que os excursionistas chegam a determinados locais. Ainda assim, é pelos pormenores que se percebe que a sequência escolhida não segue a ordem cronológica dos eventos. Por exemplo, embora o relato da visita à capela dos ossos (Figs., 5 e 6), redigida pelo aluno da 6ª classe Jorge Nogueira e Silva, esteja publicada na página 10, já na página anterior e a propósito de uma outra visita tinha escrito o aluno Manuel Carvalheiro: “Depois da impressionante Capela dos Ossos, fomos visitar a Casa Pia.” (AA.VV. 1937b, p.9).

FIG. 5 | Arranjo entre imagens e texto onde, no interior da narrativa maior se insere o relato da visita à Capela dos Ossos. FIG. 6 | Fotografia que acompanha o relato, intitulada “Évora – Capela dos Ossos na Igreja de S. Francisco”. (AA.VV., 1937b, p.10).

Uma vez terminado cada um destes apostos, a narrativa maior é retomada e, com

ela, a jornada dos alunos e do leitor. A transição entre narrativas é feita de diferentes formas, umas mais óbvias que outras, sendo que uma constante é a diferença entre o tamanho de letra utilizado. Assim, embora algumas passagens sejam assinaladas com um espaçamento maior ou com a introdução de um elemento gráfico, os pequenos relatos têm um tamanho de letra inferior ao da narrativa maior (ver Figs. 7 a 9).

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FIG. 7 | Transição entre relato sobre a Capela dos Ossos e narrativa maior (AA.VV., 1937b, p.10). FIG. 8 | Transição entre relatos sobre o Museu Marítimo e o Museu e Capela de Santo António (ambos em Faro), intercalado pela narrativa maior (AA.VV., 1937c, p.3). FIG. 9 | Transição entre relato sobre a Praia da Rocha e narrativa maior (AA.VV., 1937c, p.4).

Estes exemplos mostram como esta transição é feita da forma mais articulada

possível, como se – perante a diversidade de autores, relatos e temas abordados – o narrador anónimo o tivesse feito a posteriori. Na transição entre texto sobre a praia da rocha e narrativa maior, por exemplo, esta articulação é feita de tal modo que, não fosse a diferença do tamanho de letra, ela passaria completamente despercebida ao leitor mais desatento.

Outro aspeto importante desta narrativa plural prende-se com os temas abordados nos pequenos relatos dos alunos e a sua distribuição em número ao longo do artigo. Embora a articulação entre diferentes narrativas seja cuidadosamente feita, não é claro o critério para a escolha dos temas dos pequenos relatos. Enquanto ao narrador anónimo cabe a sucessão cronológica dos eventos, a descrição da paisagem a par da deslocação entre terras e pequenos apontamentos sobre algumas localidades por onde passaram ou onde fizeram curtas paragens133, as pequenas narrativas dos alunos focam um a dois dos locais visitados sem que seja dada qual razão que justifique a sua escolha. Nas visitas no Alentejo, destacam-se maioritariamente monumentos e museus, ao passo que no Algarve – embora havendo referências a museus e monumentos – o destaque vá para a atividade piscatória e para a indústria de conserva de sardinha, quer na visita a Vila Real de Santo António quer já em Sines. Em Lisboa, por sua vez, destacam-se as visitas ao Museu dos Coches, ao Jardim Zoológico e ao Aquário de Algés.

133 É curioso notar que o quarto dia da excursão é exclusivamente narrado pelo autor anónimo e que, mesmo assim, este não se estendeu além daquilo que, no conjunto do artigo, foi sua responsabilidade. Assim, em uma dúzia de curtos parágrafos, aquele enumerou os locais de passagem entre Faro e Caldas de Monchique.

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Tal como o título do artigo não deixa dúvidas sobre aquele que é o foco geográfico da excursão, também o número de relatos publicados incide maioritariamente sobre o Alentejo e Algarve. Ainda assim, nada na narrativa maior dá a perceber que depois da visita a Sagres, já rumo a norte, os alunos entendam esta parte da viagem como o seu regresso. De facto, é como se este só se assinalasse na última etapa, entre Lisboa e a Figueira da Foz.

À medida que a excursão se aproxima do seu fim, e com ela a sua narrativa, também as transições se tornam mais escassas na medida em que as pequenas narrativas se sucedem apressadamente, quebrando o que até aqui aquele que tinha sido o seu padrão de inclusão. Assim, e para grande surpresa do leitor, o artigo não termina com o narrador anónimo. Em vez disso, o artigo termina com um texto, consideravelmente longo, sobre o Aquário de Algés escrito por um aluno da 4ª classe. Isto poderá ser justificado pela falta de espaço no âmbito daquele número do jornal, seja pela dimensão deste relato final, seja pela extensão total do artigo. Finalmente, é interessante notar que a ‘pressa’ em terminá-lo é também expressa na ‘corrida contra o tempo’ do próprio horário da excursão, já que no penúltimo relato, sobre o Jardim Zoológico, o estudante informa o leitor que aquando daquela visita “faltavam ainda visitar outros animas, mas a hora ia-se adiantando” (AA.VV. 1937b, p. 8).

3. PENSAR O OFÍCIO DO HISTORIADOR

A análise deste artigo, ainda que a sua apresentação seja aqui sumária por força tanto da sua riqueza textual e imagética como da complexidade de articulações nele presentes, permite pensar o ofício do historiador e, nomeadamente, o do historiador da educação na medida em que, naquilo que é simultaneamente a história e o relatório de uma viagem de um grupo de alunos, aquele é convidado não apenas a compreender a narrativa como um todo, mas também envolver-se nela. De facto, a alternância entre textos descrevem a realidade por eles observada e que dão conta da experiência vivida, o entrelaçamento de aspetos visuais e discursivos, a sucessão de espaços e ideias num tempo que é o da narrativa de uma excursão, traduz-se, neste exemplo particular, numa coletânea articulada e coesa de perspetivas singulares à qual o leitor não fica indiferente.

Ao focar-se nas questões da comunicação da experiência de alunos mais do que na procura de respostas objetivas sobre o modo como as visitas e excursões escolares foram conduzidas num contexto e tempo determinados, torna-se possível considerar, simultaneamente, os aspetos visuais e textuais como elementos igualmente fundamentais para compreensão do objeto de estudo. Ou seja, o historiador é impelido a deixar de tomar a análise do discurso como único método escrutínio objetivo do passado. Ao fazê-lo, é como se – por colocar textos e imagens no mesmo plano epistemológico (Fendler 2014) – se tornasse possível uma aproximação afetiva ao seu objeto de escrutínio sem que, por isso, perca a objetividade, mas antes ampliando o seu horizonte analítico. Na verdade, não se trata apenas de tomar as

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imagens como elementos que permitem ‘mostrar’ o que o grupo viu e onde, mas como viu e como o experienciou.

É no interior deste discurso – agora entendido num sentido mais amplo como os “processos discursivo-materiais em transformação” (Rosén Rasmussen 2014, p. 188) – que uma incursão pelos aspetos da paisagem e pelos locais visitados se torna também uma história das sensações, das emoções (Matt 2011) de quem por eles passou. Tomado como um todo, este discurso funciona como um convite ao leitor a viajar no interior das perceções dos alunos, tanto no tempo como no espaço, entre materialidade e imaterialidade. Além disso, centrando-se tanto na forma como no conteúdo, esta abordagem permite-lhe ainda explorar uma prática de escrita coletiva em potência que, no limite, o afeta e impacta enquanto leitor.

Seja através de uma teoria não-representacional ou um pós- moderna/estruturalista/humanista134, a atenção às “matérias da materialidade”135 (Rosén Rasmussen 2012, p.117) permite ao historiador uma consciencialização, no decorrer do trabalho de pesquisa, do modo como ele opera sempre no interior de binómios e, assim, questionar o modo como tensões, dicotomias e divisões entre objetivo/subjetivo, sujeito/objeto, material/imaterial, história/estória têm influenciado o modo como pensamos sobre o mundo. Por fim, importa abraçar os diferentes fragmentos de cada objeto como suscetíveis de articulação entre si, na construção de um ponto de vista particular, mas também como catalisadores de uma prática historiográfica refletida que se problematiza a si própria, pensando o presente:

A ontologia crítica de nós mesmos tem de ser considerada não, certamente, como uma teoria, uma doutrina, nem mesmo como um permanente corpo de conhecimento que se vai acumulando; ela tem que ser concebida como uma atitude, um etos, uma vida filosófica em que a crítica do que somos é, ao mesmo tempo, a análise histórica dos limites que nos são impostas e uma experimentação da possibilidade de ir além eles. (Foucault 1984, 13-14)136

134 Na verdade, ao utilizar-se o prefixo "não" ou "pós", embora estejamos a tentar demarcar-nos de perspetivas binárias, estamos simultaneamente a reproduzi-las, pelo menos a nível linguístico. Vd. Giorgio Agamben sobre a natureza contingente e redutora deste tipo de denominações: “Conceitos como pós-moderno, de novo renascimento, de humanidade ultra-metafísica, revelam o grão de progressismo escondido em todo o pensamento da decadência e no próprio niilismo: o que importa é, em todos os casos, não perder a nova época que já chegou ou chegará, ou, pelo menos, poderá chegar, e cujos sinais já podem ser decifrados à nossa volta.” (1999, p. 82). Do mesmo modo, a propósito da designação do tempo histórico, vd. Sérgio Niza: “Chamar a um tempo histórico pós já é um caso inquietante. Dizer pós-moderno significa também que a modernidade foi tão determinante que o que vem a seguir é apenas o que aconteceu depois de então.” (2012, p. 498)

135 No original “matters of materiality”.

136 No original: “The critical ontology of ourselves has to be considered not, certainly, as a theory, a doctrine, nor even as a permanent body of knowledge that is accumulating; it has to be conceived as an attitude, an ethos, a philosophical life in which the critique of what we are is at one and the same time the historical analysis of the limits that are imposed on us and an experiment with the possibility of going beyond them.”

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ID: 601

CONFERÊNCIAS EDUCACIONAIS, MODERNIDADE PARA A NAÇÃO

E MODERNIDADE PEDAGÓGICA: EXPANSÃO, GRATUIDADE E

OBRIGATORIEDADE DO ENSINO PRIMÁRIO (BRASIL, ANOS DE

1920) Autor: Solange Aparecida de Oliveira Hoeller Filiação: Instituto Federal Catarinense – campus Rio do Sul – SC Autor: Maria das Dores Daros Filiação: Unibersidade Federal de Santa Catarina

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RESUMO

Trata-se de uma investigação acerca de cinco conferências educacionais ocorridas no Brasil nos anos de 1920: Conferência Interestadual do Ensino Primário (RJ, 1921); Congresso de Ensino Primário e Normal (PR, 1926); Primeiro Congresso de Instrução Primária (MG, 1927); Primeira Conferência Estadual do Ensino Primário (SC, 1927); Primeira Conferência Nacional de Educação, promovida por intermédio da ABE (Curitiba, 1927). Destes eventos, foram destacados seis intelectuais: Orestes Guimarães, Sampaio Dória, Lysimaco Ferreira da Costa, Carneiro Leão, Francisco Campos e Lourenço Filho. O objetivo foi perceber como os reclames da expansão, gratuidade e obrigatoriedade do ensino primário comparecem no debate do período, podendo ser tomados como investimento para a modernidade pedagógica. O percurso teórico metodológico situou as conferências, a priori, no repertório dos anos de 1920 – conferências, reformas educacionais e a difusão de ideias. Os intelectuais foram compreendidos como atores do repertório analisado e que, pela ressonância de suas ações, pode-se propor que reivindicavam a modernidade pedagógica, propondo projetos em consonância com os ideais pretendidos para o progresso e modernidade da nação.

PALAVRAS-CHAVE

Conferências educacionais; intelectuais; modernidade pedagógica.

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1. INTRODUÇÃO

Apresenta-se uma investigação, na perspectiva da história da educação, que discute a compreensão de projetos para da nação e modernidade pedagógica, com centralidade em cinco conferências educacionais137 ocorridas no Brasil nos anos de 1920: CIEP-RJ – Conferência Interestadual do Ensino Primário (Rio de Janeiro, 1921); CEPN-PR – Congresso de Ensino Primário e Normal (Paraná, 1926); ICIP-MG – Primeiro Congresso de Instrução Primária (Minas Gerais, 1927); ICEEP-SC – Primeira Conferência Estadual do Ensino Primário (Santa Catarina, 1927); ICNE-ABE – Primeira Conferência Nacional de Educação, promovida por intermédio da ABE (Curitiba, 1927). Destes eventos foram destacados seis intelectuais: Orestes de Oliveira Guimarães, Antonio de Sampaio Dória, Lysimaco Ferreira da Costa, Antonio de Arruda Carneiro Leão, Francisco Luís da Silva Campos, Manoel Bergström Lourenço Filho.

No sentido de pensar as conferências educacionais como possibilidade de investigar os projetos para o Brasil, que assinalavam a requerida modernidade para nação, os conceitos de moderno/modernidade, repertório, intelectuais, deram sentido ao percurso teórico-metodológico trilhado.

Sobre o que pode ser correspondente ao moderno Le Goff informa que este par antigo/moderno se desenvolveu em um contexto equívoco e complexo. Afirma que “(...) cada um dos termos e correspondentes conceitos nem sempre se opuseram um ao outro: ‘antigo’ pode ser substituído por ‘tradicional’ e ‘moderno’, por ‘recente’ ou ‘novo’ (...)” e também “(...) porque qualquer um dos dois pode ser acompanhado de conotações laudatórias, pejorativas ou neutras”. Este par – antigo/moderno – e o seu jogo histórico e dialético são gerados entre aquilo que é moderno, onde a consciência da modernidade nasce do sentido de ruptura com o passado. Antigo ainda se desloca para outros comparativos: modernidade, modernização, modernismo (LE GOFF, 1990; 1997, p. 02).

No Brasil dos anos de 1920, argumentava-se sobre os ideais do moderno/modernidade ao mesmo tempo em que o país procurava equiparar-se com novas técnicas de modernização em diversos setores da sociedade e também discutia em outras áreas um movimento modernista. É possível presumir que o que constitui o par antigo/moderno – no Brasil dos anos de 1920 – implica a este último abarcar os sentidos do que ele próprio representava (o moderno como consciência da modernidade), a modernização (como modernas técnicas que respondessem às necessidades do momento histórico), o modernismo (as transformações sugeridas e efetivadas no campo cultural, sobretudo no campo das artes).

137 Será utilizada a expressão conferências educacionais para designar tanto estas quanto o que se intitula congresso. Os eventos já foram tratados: Nagle (2001) faz referência a CIEP-RJ; Hoeller (2009; 2012); Hoeller e Daros (2012) e Azevedo (2012) trazem aspectos da ICEEP-SC. Melo (2010) investigou o ICIP-MG. A ICNE-ABE foi objeto de discussão em ordem cronológica: Carvalho (1987/1998), Schmidt (1997); Galter (2002); Vieira (2007); Bona Junior (2005); Bona Junior e Vieira (2007). O CEPN-PR por Bona Junior (2005); Bona Junior e Vieira (2007).

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Pode-se propor as conferências – composição e proposição – como elementos que compunha o moderno/modernidade nos anos de 1920, uma vez que também com elas e por meio delas se pretendia atingir a renovação educacional. Tais espaços se concretizavam também pelas discussões, debates, embates entre sujeitos – aqui intelectuais – que explicitavam suas ideias, concepções e projetos que tinham como alvo o novo, o progresso, enfim a modernidade educacional.

2. REPERTÓRIO, CONFERÊNCIAS EDUCACIONAIS E INTELECTUAIS

Propõe-se, que as conferências educacionais tomadas podem ser analisadas por sua intersecção no contexto dos anos de 1920, situando-as, a priori, em um repertório que se articula na tentativa de consolidar propostas ou projetos para a nação que buscavam também a modernidade educacional.

Tilly (1993, p. 265) significou a expressão como repertório de confronto, ao mesmo tempo em que procurou responder os questionamentos citados anteriormente: “Como suas contrapartes teatrais, repertório de ação coletiva não significa performances individuais, mas meios de interação entre os pares ou conjuntos maiores de atores. A companhia, e não um indivíduo, mantém um repertório138”.

O repertório dos anos de 1920, no Brasil, foi compreendido por alguns elementos – conferências educacionais; reformas educacionais e difusão de ideias – e pelo destaque a alguns sujeitos - intelectuais.

Os intelectuais foram tomados como atores do repertório analisado e que, pela ressonância de suas ações, pode-se propor que reivindicavam a modernidade pedagógica, propondo projetos em consonância com os ideais pretendidos pela nação. Todavia, ao se identificar estes sujeitos como intelectuais, implica em pensar que este termo – intelectual – nem sempre é de fácil definição.

Sirinelli propõe o intelectual numa concepção ampla e sociocultural que “(...) engloba os ‘criadores’ e os ‘mediadores’ culturais” e “(...) estão abrangidos tanto o jornalista como o escritor, o professor secundário quanto o erudito” e ainda “(...) postam-se uma parte dos estudantes, criadores ou ‘mediadores’ em potencial, e ainda outras categorias de ‘receptores’ da cultura”. A segunda definição, de natureza política, mais estreita, baseada na noção de engajamento do intelectual na vida da cidade (SIRINELLI, 2003, p. 242; 1986). O autor também propôs e operou com uma metodologia envolvendo como ferramentas de investigação as noções de itinerários, sociabilidades e geração.

Os aspectos compartilhados – reservadas as proporções e especificidades – pelos intelectuais destacados apresentam itinerários que em alguns aspectos se

138 Tradução livre: “Like their theatrical counterparts, repertoires of collective action designate not individual performances, but means of interaction among pairs or larger sets of actors. A company, not an individual, maintains a repertoire” (TILLY, 1993, p. 265).

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aproximam. Não se tratam de perfis idênticos ou homogêneos e nem mesmo de posição social comum, pois os fatores econômicos, da formação escolar, cultural, políticos nem sempre se mostraram semelhantes ou aproximaram o percurso dos intelectuais destacados.

Desses intelectuais, nem todos gozavam de recursos econômicos favoráveis, porém o que os aproxima pode ser reconhecido pelo valor cultural, preservado pelo meio familiar (de origem) que, com maior ou menor condição econômica permitiu que a educação tivesse lugar privilegiado.

Todos fazem parte da chamada “geração nascida com a República139”, não no sentido de terem nascido após o ano de 1889, entretanto, a proximidade entre eles pode ser assinalada pela identificação de que todos tiveram parte ou todo o seu percurso de formação e, principalmente, de atuação profissional no contexto do Brasil republicano.

Destaca-se a aproximação dos mesmos pelas experiências comuns, delineadas pela ambiência social, cultura e política dos anos de 1920, que os colocavam em condição de participarem e de proporem nos espaços das conferências educacionais, percebendo ainda outros elementos que compunham o repertório do qual eles faziam parte. Suas biográficas levam a considerar que perpassaram as décadas de 1910, 1920 e 1930 – alguns para além desses períodos –, atuando no campo educacional em nível regional nos seus Estados ou nível nacional e que possuíam articulações com a área política, educacional e cultural, dentro e fora do país.

Ainda como traços comuns de seus itinerários, percebe-se, reservadas às particularidades de cada caso, que esses sujeitos que estavam à frente ou participavam das conferências eram os mesmos que, junto a outros, ocupavam cargos140 na esfera da administração pública federal ou dos Estados; participavam na imprensa jornalística ou como autores: redigiam pareceres acerca de temáticas

139 Cardoso (1924/1978).

140 Orestes Guimarães: 1911-1918: Inspetor Geral do Ensino do Estado de Santa Catarina (1911-1918); Inspetor Federal das Escolas Subvencionadas pela União, no Estado de Santa Catarina (1918-1931). Sampaio Dória: Diretor da Instrução Pública de São Paulo (1920-1921); 1º Procurador Geral do Superior Tribunal Eleitoral e Consultor Jurídico da Secretaria de Educação de São Paulo (1934); Juiz do Supremo Tribunal Eleitoral e após a queda do Estado Novo (1945), ministro da justiça dos negócios do interior. Lysimaco Ferreira da Costa: 1925-1928: Inspetor Geral do Ensino do Estado do Paraná; Secretário da Fazenda do Estado do Paraná (1928-1930). Carneiro Leão: Diretor geral da instrução pública do Distrito Federal – RJ (1922-1926); Secretário da justiça e negócios interiores de Pernambuco (1928-1930); Diretor do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio (1931-1933); Diretor do Instituto de Pesquisas Educacionais do Distrito Federal (1934); Criou e dirigiu do Centro de Pesquisas Pedagógicas da Universidade do Brasil. Francisco Campos: Secretário de Estado do Interior Justiça e Educação de Minas Gerais (1926-1930; Assumiu o Ministério de Educação e Saúde Pública (1930); Consultor-geral da República, em caráter interino (1933); 1935-1937: Secretário da Educação do Distrito Federal – RJ (1935-1937); Assumiu o Ministério da Justiça (1937-1942). Lourenço Filho: Diretor geral da instrução pública do Ceará (1922-1923); diretor-geral da instrução pública do Estado de São Paulo (1930-1931); Chefe de Gabinete do Ministro da Educação e Saúde – Francisco Campos – e organizador dos planos da Faculdade de Educação Ciências e Letras (1931); 1935: direção do Instituto de Pesquisas Educacionais do Distrito Federal (1935); organização e direção do INEP (1938-1946); direção do Departamento Nacional de Educação (1947-1951).

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políticas ou relacionadas à educação; organizavam coleções de obras didáticas ou compareciam no circuito literário e cultural do país, publicando suas ideias, proferindo discursos e conferências; mantinham articulação com o governo dos seus Estados ou com o governo federal ou com entidades civis ou organizações – associações, ligas, academias, etc – de atuação ou projeção nacional. Acumularam ou perpassaram atividades em instâncias distintas: alguns foram políticos (com filiação partidária), juristas, poetas, escritores, exerceram atividades em jornais.

Todos foram professores e exerceram funções públicas e administrativas ligadas à educação141 – foram inspetores ou diretores da instrução pública em Estados brasileiros ou na capital federal –, estiveram envolvidos em movimentos reformistas142 ou que pretendiam a renovação educacional, em âmbito estadual ou federal; e participaram de conferências educacionais, compondo o que aqui se assinala como integrantes de um repertório. Suas propostas, no interior das conferências não partiam de posicionamento isolado, mas estavam marcadas por suas vinculações, conexões e seus deslocamentos construídos no interior de um repertório que abarcava diversas ações, elementos e sujeitos.

Tais fatores imprimiram legitimidade àquilo que representavam ou mediavam. Intelectuais com características individuais, modos, propostas e itinerários distintos, mas que permitem ser pensados nas suas variantes, numa geografia invariável, que os coloca em defesa das causas nacionais/educacionais. Destacados no interior das conferências estiveram, em articulação com um projeto mais amplo: um projeto político de nação, por via da cultura e da escola ou ainda um projeto cultural e político para a nação.

Quanto às conferências educacionais investigadas e dos intelectuais destacados, Orestes Guimarães teve maior participação (CIEP-RJ; ICEEP-SC; ICNE-ABE. Sampaio Dória compareceu na CIEP-RJ como representante da Liga Nacionalista de São Paulo, sendo o participante que mais discursos proferiu (quatro) como também representou Lourenço Filho por meio do Plano Geral de Pratica Pedagogica, como

141 Exerceram o magistério: Orestes Guimarães: escola isolada; diretor de grupos escolares em São Paulo e Colégio Municipal de Joinville – SC. Sampaio Dória: Ginásio, Curso Normal, Escola de Comércio Álvares Penteado, Faculdade de Direito de São Paulo (Emérito), participou da fundação, dirigiu e foi proprietário do Lyceu Nacional Rio Branco. Lysimaco Ferreira da Costa: Ginásio Paranaense, Escola Agronômica do Paraná, Escola Normal de Curitiba, Faculdade de Engenharia do Paraná diretor da Escola Agronômica do Paraná, Ginásio Paranaense e Escola Normal de Curitiba. Carneiro Leão: Universidade do Recife, Colégio Pedro II (RJ), Universidade do Rio de Janeiro, Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (Emérito), diretor desta Universidade. Francisco Campos: Faculdade de Direito de Belo Horizonte, Faculdade Nacional de Direito do Rio de Janeiro. Lourenço Filho: Grupo Escolar, Escola Normal Primária (anexa à Escola Normal Secundária de São Paulo), Escola Normal de Piracicaba (SP), Escola Normal de São Paulo, Instituto Pedagógico de São Paulo, Universidade do Distrito Federal e foi Reitor da mesma, Universidade do Brasil (Emérito), participou da fundação, organização e direção do curso primário do Lyceu Rio Branco e da organização e direção do Instituto de Educação do Distrito Federal.

142 Orestes Guimarães: 1910/1913: Santa Catarina. Sampaio Dória: 1920: São Paulo. Lysimaco Ferreira da Costa: 1920-1924: Paraná. Carneiro Leão: 1922: Distrito Federal/RJ; 1928: Pernambuco. Francisco Campos: 1927: Minas Gerais. Lourenço Filho: 1922: Ceará.

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está sendo realizado na Escola Normal de Piracicaba143. Carneiro Leão fez parte, com Orestes Guimarães, da comissão organizadora da CIEP-RJ. O envolvimento de Francisco Campos deu-se somente com o ICIP-MG, quando esteve à frente da comissão preparatória e de organização, foi o presidente do evento. Lysimaco Ferreira da Costa tem seu nome ligado a três conferências: organizador do CEPN-PR, da ICNE-ABE e figurava como o primeiro da lista de pessoas, especialmente convidadas para a ICEEP-SC, porém não compareceu, mas enviou mensagens de congratulações e designou representante. Considera-se a participação de Lourenço Filho em duas conferências: na CIEP-RJ não compareceu, mas suas ideias circularam por meio da memória apresentada por Sampaio Dória e compartilhou do espaço da ICNE-ABE com Lysimaco Ferreira da Costa e Orestes Guimarães.

3. GARANTIR O ESPÍRITO DA NACIONALIDADE E A MODERNIDADE PEDAGÓGICA: EXPANSÃO144, GRATUIDADE E OBRIGATORIEDADE ESCOLAR

Como se pautar como nação moderna sem escolas suficientes, com o alto índice de analfabetismo indicado no período, sem a gratuidade e obrigatoriedade escolar? Expansão, gratuidade e obrigatoriedade do ensino primário deveriam estar em primeiro ponto da pauta para superar os atrasos que eram assinalados no contexto educacional brasileiro à época. Sem escolas suficientes, sem a gratuidade das mesmas e sem a obrigatoriedade de frequentá-las como pôr em execução projetos para a nação? De nada valeria propor para a área educacional se não tivessem escolas gratuitas em proporção suficiente ou se tendo-as, as crianças não as frequentassem.

A aparteada tese Diffusão do ensino primário. Fórmula para a União auxiliar a diffusão desse ensino; Obrigatoriedade relativa do ensino primário; suas condições, foi analisada pela 1ª comissão da CIEP-RJ.

As críticas mais contundentes foram as de Sampaio Dória que iniciou reclamando a não apreciação da sua memória145 e, após isto, procedeu na crítica, ponto a ponto, das conclusões apresentadas. Indagou porque deveria a União ficar encarregada somente da subvenção e argumentava: “acaso a installação directa de escolas

143 Ruy Lourenço Filho (apud LOURENÇO FILHO, 2001b, p. 5) registra que seu pai (Manoel B. Lourenço Filho) levou “o documento a seu mestre e professor Antonio de Sampaio Dória, que iria representar a Liga Nacionalista de São Paulo, na CIEP-RJ. Sampaio Dória apresentou sua memória sobre a educação nacional e, em anexo, o plano elaborado por Lourenço Filho. “No dia seguinte ao da conferência, o professor Lourenço Filho tornou-se um nome nacional”. Esta tese voltará a tratar sobre este Plano.

144 Expansão: a compreensão deste termo também comparece nas fontes indicado como sinônimo de difusão ou ampliação do ensino primário.

145 Memória era o termo utilizado para expressar as proposições dos participantes da CIEP-RJ e que eram originárias das seis teses

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federaes, dentro das condições por nós indicadas na ‘Memória’ que apresentamos, attenta contra á grandeza da Patria?” (BRASIL, 1922, p. 99-100).

Outros também se pronunciaram, dentre eles Carneiro Leão, Orestes Guimarães, sobre as conclusões emitidas, todavia o fizeram de modo mais brando e alguns até com elogios aos trabalhos realizados, ainda assim houveram diversas emendas que, por vezes, localizavam os participantes consonantes em alguns pontos e discordantes em outros.

A emenda146 n. 4 de Sampaio Dória foi posta em votação e foi rejeitada, “contra os votos dos Srs. Sampaio Dória, Orestes Guimarães, Americo Motta, D. Esther de Mello e D. Maria Reis Santos” (BRASIL, 1922, p. 120).

Se no caso acima Sampaio Dória e Orestes Guimarães estavam em acordo, na votação da emenda do representante do Estado de São Paulo, Freitas Valle147 – acerca do percentual de subvenção da União para a expansão do ensino primário – estiveram em lados opostos: Sampaio Dória no grupo a favor; Orestes Guimarães, juntamente com Carneiro Leão e outros, votaram contra. A emenda foi aprovada por doze votos a dez (BRASIL, 1922, p. 121).

O parecer aprovado da primeira tese da CIEP-RJ manteve, em grande proporção, o que a 1ª comissão havia exposto em sua primeira versão. Também se percebe o tom conciliador mantido que não estabeleceu a obrigatoriedade do ensino primário de modo absoluto, permitindo que se considerassem as observações feitas acerca das dificuldades orçamentárias ou das condições geográficas do país; também não se definiu a faixa etária circunscrita pela obrigatoriedade e nem a duração do curso primário.

Todavia, o parecer final aprovado não foi suficiente para acalmar os ânimos dos presentes na ICEEP-RJ. Sampaio Dória, novamente tomou a palavra, alegando que, a tão a sua “tão caluniada reforma” (1920), não só não mutilou, mas havia integrado o aparelho escolar paulista, porém, as críticas tem se fixado no seu

único ponto vulnerável, o seu pobre calcanhar de Achilles é esta a reducção de gratuidade do ensino primario e da obrigatoriedade de frequencia a dous annos apenas. Não se confunda, porém, reducção do ensino primário com reducção da gratuidade. Pela reforma da instrucção paulista, o ensino primário, ali foi elevado de 6 para 7 annos em 10 escolas; a gratuidade é que foi reduzida a dous annos. No mais, que é quasi tudo, aquella reforma, de que sou o principal autor,

146 A emenda: “É gratuita e obrigatoria a frequência escolar ás crianças de sete a 14 annos” e ficavam exonerados desta obrigação: a) “as crianças que residirem além de dous kilometros da escola, ou si não houver vaga nas escolas existentes até esta distancia; b) as incapazes ou atacadas de molestia contagiosas ou repulsivas; c) os indigentes, emquanto o Governo não lhes fornecer e vestuario indispensavel á decencia e á hygiene; d) os que receberem, em casa, ou em escolas particulares, instrucção identica a dada nas escolas publicas primarias (BRASIL, 1922, p. 107).

147 Freitas Valle argumentou dada a amplitude dos problemas brasileiros: “fazer-se depender a obrigatoriedade da existência de caixas escolares é arriscado, pois estas podem ser insufficientes, e isso retardará a execução da medida” (BRASIL, 1922, p. 121).

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realizou uma avançada vertiginosa para o ideal. Si, pois S. Paulo era o modelo da instrução pública entre nós, agora mais que nunca, exceptuada a reducção da gratuidade, é lá que o Brasil terá de buscar o melhor padrão de ensino primario e normal. Si se aventurar por caminhos differentes, fará obra de fancaria (BRASIL, 1922, p. 146).

Situadas no mesmo repertório, as reformas educacionais eram evocadas no interior das conferências e entrecruzam argumentações relacionadas aos aspectos da expansão, gratuidade e obrigatoriedade escolar, gerando também tensões e debates.

Henrique da Silva Fontes – representante de Santa Catarina na CIEP-RJ – espelhou a reforma paulista com o contexto catarinense, rebatendo as afirmações de Sampaio Dória sobre o que dizia ser uma inovação na reforma paulista. No tocante ao curso primário com duração de sete anos, afirmou que em Santa Catarina isto já estava proposto desde 1911, pela reforma inspirada e executada por Orestes Guimarães e seguia exaltando a atuação de Orestes e do seu Estado, enquanto Sampaio Dória intercortava o discurso, refutando que não havia mencionado “inovação”, mas sim que havia elevado o ensino primário a sete anos; também não havia se referido a Santa Catarina e, tampouco, a Henrique da Silva Fontes, questionando: “Quando e onde me referi a V. Ex.? Não fiz referencias pessoaes” (BRASIL, 1922, p. 155).

Os apartes exigiram que Henrique da Silva Fontes se dirigisse à autoridade máxima da CIEP-RJ, observando: “Sr. Presidente, quando na última sessão, eu e outros desejavamos dar apartes ao orador, V. Ex. pediu que não o perturbassemos. Não creio que haja aqui dous pesos e duas medidas. Solicito para mim a applicação da mesma medida”. Pedido deferido, procedeu citando que Sampaio Dória havia mencionado que ele era defensor de escolas de três ou quatro anos regidas por um só professor, o que não representava suas ideias e nem a realidade catarinense. Novamente, intercalou Sampaio Dória: “Mais uma vez, não fiz referencias pessoaes” (BRASIL, 1922, p. 156).

Mesmo diante do clima, por vezes acalorado, Sampaio Dória prosseguia intervindo, opinando e impondo sua presença. “Corre nesta Conferência, que eu sou partidário do ensino primário reduzido de dous annos, sem mais nada. Nunca preguei tamanho absurdo e heresia tamanha. Pelo contrário, sempre que tenho tido ensejo, me tenho manifestado em sentido opposto” (BRASIL, 1922, p. 182). Sustentou que estava em acordo com os outros participantes, de que a escola primária deveria ser destinada às crianças de sete a quatorze anos de idade, entretanto, esta questão ainda foi alvo de críticas posteriores por Carneiro Leão e Orestes Guimarães, o que pode dar indícios de que a questão não tenha encerrado em clima amistoso.

A atuação de Sampaio Dória na referida reforma foi criticada por Carneiro Leão, quando o mesmo estava à frente da instrução pública do Distrito Federal (1922-1926). As ações reformistas de Carneiro Leão, no Rio de Janeiro, foram compiladas

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por ele em 1926, sob o título O ensino na capital do país e estão registradas as críticas:

É, pois, improcedente e até perigosa toda campanha que busque fixar em 2, 3 ou 4 anos o curso primário, no Brasil. O próprio São Paulo que, por motivos financeiros, julgou solucionar o problema com a redução do estágio gratuito, voltou atrás, estabelecendo o ensino primário em 6 anos, compreendendo os 2 do curso complementar. (LEÃO apud SILVA, 2006, p. 75).

Carneiro Leão explicitava no Projeto (n. 238) da sua reforma no Distrito Federal, que o ensino primário seria obrigatório e teria a duração de quatro anos na etapa fundamental e dois anos na etapa complementar, desde que houvesse escola pública ou particular subvencionadas e em condições de receber toda a população escolar de sete a catorze anos, dentro de cada perímetro escolar.

Se Carneiro Leão criticou a Reforma de Sampaio Dória em São Paulo, Silva (2006) observa que a realidade catarinense foi fator que mereceu comentários elogiosos do mesmo, que observou que a organização do ensino em Santa Catarina, dentre outros pontos favoráveis, era composta de “[...] jardim de infância, escola primária e curso complementar de três anos, dando ao ensino popular o prazo de nove anos completos” (LEÃO apud SILVA, 2006, p. 76).

Problematizando a realidade brasileira, Raul Gomes148, em tese na ICNE-ABE, questionou a respeito das atribuições do governo federal e das responsabilidades dos Estados acerca da expansão e obrigatoriedade do ensino primário. O proponente apresentou um amplo relatório estatístico, tanto numa perspectiva geográfica – dos diversos estados brasileiros – quanto histórica, para demonstrar que a obrigatoriedade escolar figurava como “letra morta” na legislação pertinente, pois apesar de prevista há anos, não havia, até aquele momento, encontrado uma “execução sistemática e perdurável em nenhum estado do Brasil” e questionou:

se o minúsculo Estado de Santa Catarina, numa prova admirável da compreensão e do alcance dos sacrifícios empregados na educação popular, aplicava em 1921 20% de sua renda na instrução, porque esse Brasil de 1934149, cujo grau de evolução e progresso conquistado (...) não reservará, para a estupenda e redentora tarefa de incorporação da totalidade da classe de seis anos, a ínfima, a simples porcentagem de 8% sobre a soma da receita geral? (ASSOCIAÇÃO..., 1927a, p. 572; 583).

Entretanto, pelo reconhecimento dado por alguns – dentre eles Carneiro Leão e Raul Gomes – ao contexto catarinense, no sentido que continha em sua legislação a

148 Foi professor, redator do jornal O Estado do Paraná e signatário do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932).

149 O projeto apresentado por Raul Gomes, em 1927 na ICNE-ABE, deveria consumar seus objetivos no ano de 1934. (ASSOCIAÇÃO..., 1927a).

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previsão da obrigatoriedade escolar e até menção de modo elevado pelos investimentos na área educacional, isto não pode ser interpretado como se Santa Catarina tivesse equacionado tais questões. A realidade deixava a desejar em diversos aspectos, incluindo a falta de frequência regular dos alunos às aulas, que minava a questão da obrigatoriedade (HOELLER, 2009).

Razões essas que podem ser interpretadas como motivadoras para que Cid Campos – Secretário do Interior e Justiça de Santa Catarina – manifestasse a necessidade de realização da ICEEP-SC e, a partir dela, se pretendesse, “uma quase completa reforma” que não colocou em xeque muitas das determinações das reformas anteriores de 1910/1913, promovidas por Orestes Guimarães, sobretudo, ao tocante ao ensino primário (HOELLER, 2009).

Participantes da ICEEP-SC, dentre eles Orestes Guimarães, assinaram uma petição, destacando o Decreto de 04 de dezembro de 1926, frente à necessidade de o Estado fazer “cumprir rigorosamente os preceitos do alludido decreto em relação á frequencia nas escolas de menores de até 14 annos”. Na sequência da petição feita, Orestes Guimarães pronunciou que aprovava a medida da obrigatoriedade e lamentava quanto à “diminuição da matrícula nos 3º e 4º annos dos estabelecimentos públicos é (que era) reduzida pelo motivo de approveitamento do trabalho dos menores”, estendeu seus comentários, condenando a reforma paulista, promovida por Sampaio Dória, em 1920, que reduziu o ensino primário para dois anos, naquele Estado, em 1920 (SANTA CATHARINA, 1927b, p. 105-106).

O Regulamento da Instrução Pública derivado das ações empreendidas por Lourenço Filho na reforma educacional no Ceará acerca do ensino público difere da de São Paulo, proposta por Sampaio Dória, e se aproxima das defesas de Carneiro Leão e Orestes Guimarães. Sobre a gratuidade e obrigatoriedade do ensino primário previa-se no “Art. 36 - São obrigadas a frequência escolar gratuita as crianças analfabetas de 7 a 12 anos de idade” (CEARÁ, 1922b).

Tensões se revelaram também no CEPN-PR em torno das (im)possibilidades de ver contemplada a obrigatoriedade escolar no Paraná. A tese de Segismundo Antunes Netto – lente da Escola Normal e Inspetor Escolar de Ponta Grossa – que defendeu a obrigatoriedade do ensino, teve no parecer da comissão de análise que se reconhecia a necessidade de difundir “a luz do alfabeto, tornando obrigatório” no Paraná (PARANÁ, 1926b). Entretanto, a tese provocou entre os presentes debates acalorados: a “these foi relatada pelo professor N. Meira de Angelis. Encetada a discussão proferiu brilhante discurso contra a obrigatoriedade o professor José Cardoso, director do grupo escolar de Jacarezinho” (ESTADO..., 1926d, s. p.).

Apesar dos apartes, essa tese e outras duas que tratavam da mesma temática foram aprovadas, pois se defendeu que “o ensino obrigatório deve necessariamente formar parte na legislação, e encarnar-se nos costumes dos países que querem viver em toda a plenitude da vida da civilização, do progresso e da grandeza da humanidade”. Entretanto, se argumentava que era necessário que “firmemos primeiro as paredes e depois ponhamos o telhado ao gigantesco edifício, para que não passemos mais tarde pelo vexame de vermos ruída por terra a sabia lei da

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obrigatoriedade do ensino”, pois ainda era necessário investir em ampliação de número de escolas, em especial, nas zonas rurais e no aparelhamento técnico das mesmas (PARANÁ, 1926b).

Moreno (2003, p. 56) demarca que a obrigatoriedade do ensino primário esteve na pauta de discussão do cenário paranaense ao longo de toda a década de 1920 e, dentre os reformadores, Lysimaco Ferreira Costa foi o único que oscilou, favoravelmente, quanto à discussão sobre a obrigatoriedade, tanto que uma das teses oficiais do CEPN-PR se estabeleceu nos termos que questionavam: Há necessidade de se tornar rigorosamente obrigatório o ensino elementar no território paranaense?

A ocorrência de Minas Gerais – ICIP-MG –foi pensado em articulação com a reforma da instrução pública no Estado de Minas Gerais, autorizada pelo governo mineiro, em 1926, cuja responsabilidade, como já destacado, esteve sob Francisco Campos que convocou o certame para pensar a reforma que implementou, em 1927.

Das ações derivadas da reforma educacional de 1927, fomentada por Francisco Campos no interior do ICIP-MG, propôs-se à expansão de escolas para o Estado e definiu ao ensino primário a obrigatoriedade de frequência, em acordo com a faixa etária de sete a quatorze anos de idade, estendendo-se até os dezesseis anos em relação aos indivíduos que, aos quatorze não estivessem habilitados nas matérias do curso primário, facultando tal medida em casos semelhantes aos apresentados pelas reformas de Orestes Guimarães (SC); Lourenço Filho (CE), e Carneiro Leão (PE), atribuindo penalidades também aproximadas (MINAS GERAIS, 1926; 1927a; 1927b; 1927c).

No repertório analisado e dos intelectuais destacados, tanto as conferências educacionais quanto as reformas educativas, como também as defesas e argumentações dos intelectuais destacados em outras circunstâncias, levam a considerar que propor projetos educacionais que colaborassem com o desejo de progresso e modernidade da nação brasileira, deveriam ser contemplados aspectos que pudessem garantir educação que contribuísse para a formação de cidadãos que estivessem em sintonia com o desejado. A modernidade consistia em ultrapassar a condição indesejada, rumo ao futuro, ao progresso, sendo necessário garantir a formação de cidadãos saudáveis, bons e uteis à nação. Os intelectuais como atores do repertório demarcado nos anos de 1920, não fugiam a discussões e debates que envolviam tais questões, uma vez que o progresso e modernidade da nação sem o alcance na melhoria educacional, não seria possível.

4. CONCLUSÕES

Em relação às conferências analisada, observa-se que o clima entre afirmação de propostas, confirmação de posicionamentos e exigência da compreensão das pertinências ou não das ideias dos participantes e da busca por demarcação de lugares, pode ser atribuído a todas as ocorrências.

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As reformas educacionais, rememoradas, demonstram articulação das ações dos intelectuais com os espaços das conferências educacionais, fazendo perceber que ambas – reformas e conferências – participavam do repertório dos anos de 1920, do qual os intelectuais faziam parte, e auxiliaram no delineamento dos projetos educacionais para o país.

Percebe-se que os princípios da expansão, gratuidade e obrigatoriedade do ensino primário não poderiam ficar fora das propostas dos anos de 1920, pois eram esses princípios que, em tese, garantiriam a efetivação dos projetos pautados para a nação. A escola primária obrigatória era tomada como lócus privilegiado para o cultivo dos sentimentos, consciência e identidade nacionais, ao mesmo tempo em que deveria contemplar ideais de uma educação renovada pelos novos meios e novos fins da educação para a formação do cidadão brasileiro e republicano que a sociedade brasileira exigia para aquele momento, segundo a retórica do período.

O movimento reformista dos anos de 1920, do qual os intelectuais – Orestes Guimarães, Sampaio Dória, Lourenço Filho, Carneiro Leão, Lysimaco Ferreira da Costa e Francisco Campos – fizeram parte, é representativo dos assuntos relativos à expansão, gratuidade e obrigatoriedade do ensino primário, assim como as conferências educacionais foram lugares de circulação destas ideias e fazem perceber que o proposto por eles, somam-se às vozes de outros sujeitos naquele momento e se articulavam com o desejo de estabelecer o Brasil como nação moderna.

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ID: 635

OS TESTES ARITMÉTICOS NOS MANUAIS PEDAGÓGICOS

PORTUGUESES: O USO DA MATEMÁTICA NA LEGITIMAÇÃO DA

PEDAGOGIA CIENTÍFICA NAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO

XX ENTENDIDAS COMO BALIZAS NAS PRÁTICAS ATUAIS Autor: Josiane Acácia de Oliveira Marques Filiação: USP – Universidade de São Paulo

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RESUMO

Este trabalho apresenta o resultado da investigação a manuais pedagógicos com o objetivo de estudar a orientação para a aplicação de testes aritméticos no curso primário brasileiro nas primeiras décadas do século XX e também, verificar suas premissas na atualidade. Os manuais de autoria do português Faria de Vasconcelos Lições de pedologia e pedagogia experimental, publicado em 1909 e Como se ensina à aritmética: didáctica, em 1933 circularam no Brasil. Considerando a orientação a professores para a aplicação de testes aritméticos no curso primário, interroga-se: Que discurso é apresentado em tais manuais pedagógicos? Quais as intenções do autor português ao propor essa prática? Para essa análise foram considerados os estudos da História Cultural. Concluiu-se que, por meio de aplicação de testes aritméticos mensurava-se a aprendizagem do aluno, com a intenção de evidenciar os erros resultantes de metodologias de ensino que não consideravam os estudos psicológicos da criança. A orientação docente para aplicação de testes apresentados no manual português de 1933 tiveram origem nos estudos contidos no manual de 1909. Em suma, os testes aritméticos tinham a finalidade de legitimar a prática da Pedagogia Científica, sendo incorporados às práticas pedagógicas brasileiras, que possuem traços dessa proposta ainda hoje.

PALAVRAS-CHAVE

Manuais pedagógicos, testes aritméticos, Faria de Vasconcelos.

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1. A PROLIFERAÇÃO DOS TESTES NO INÍCIO DO SÉCULO XX, OS MANUAIS PEDAGÓGICOS COMO FONTES DE PESQUISA E O MOVIMENTO DA ESCOLA NOVA

Nas primeiras décadas do século XX, tempo marcado por reformas educacionais no Brasil, fervilhavam novas propostas de ensino com a finalidade de mudança do método pedagógico tradicional, à época considerado pelos reformadores ultrapassado. A Nova Pedagogia busca se apoiar nos estudos da Psicologia para alcançar cunho científico. Assim, almeja consolidar-se pela aplicação de testes, e pela criação de laboratórios de experimentação, que desenvolveram a análise de padrões e a classificação do desenvolvimento das crianças. Tais representações construídas nesse período perduram até hoje nas escolas brasileiras.

Para Roger Chartier (1990), as representações se referem ao modo como em diferentes lugares e tempos a realidade social é construída por intermédio de classificações, divisões e delimitações, tornando-se uma “história cultural do social que tome por objeto as representações do mundo social”, e essas representações são proferidas em discursos.

Nas representações presentes no contexto escolar brasileiro da atualidade é comum vermos muitos professores defenderem a ideia de que melhor se realiza um trabalho pedagógico quando se consegue ministrar aulas para salas homogêneas. Isso ocorre desde quando surgiu a necessidade de classificar os alunos de acordo com o nível de aprendizagem: em uma sala separam-se os alunos que aprendem dos que não aprendem o conteúdo do currículo escolar. As avaliações classificadoras, em forma de teste, têm a função de fornecer o diagnóstico do aluno referente ao nível de sua aprendizagem. E também se pode diagnosticar a aprendizagem de uma escola com relação às demais escolas de uma rede educacional, como, por exemplo, as avaliações feitas para mensurar e comparar os níveis de ensino. Nesses casos, muitas vezes a finalidade é atingir uma meta imposta pelos seus dirigentes e/ou legislação em vigor e classificar a “melhor” e a “pior” escola entre as avaliadas. Corroborando essa explicação, as palavras do pesquisador em história da educação matemática, Wagner Rodrigues Valente, descrevem as marcas deixadas na cultura escolar:

Houve um tempo em que se buscou substituir a arte de ensinar por um modo científico de tratar a educação. E esse tempo conformou muitos dos elementos presentes atualmente no cotidiano das escolas. Dizendo de outro modo, trata-se de uma época em que foram introduzidas normativas e práticas que fazem parte até hoje da cultura escolar e esse período poderá ser estudado por meio da História Cultural.(Valente 2014, p. 1).

O presente estudo norteou-se por indagações que surgiram após a consulta de documentos/fontes que revelaram vestígios possíveis de análise e escrita de uma narrativa histórica. Assim, delimitando o objeto da pesquisa, tomando como recorte a orientação para a aplicação de testes aritméticos no curso primário, este trabalho

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tem por finalidade contribuir com a história da educação matemática com pesquisas de base a manuais pedagógicos portugueses.

Lançando mão de manuais pedagógicos do autor português Faria de Vasconcelos como principais fontes de pesquisa, interroga-se: Que discurso pode ser lido nos manuais pedagógicos portugueses referentes à aplicação de testes aritméticos no curso primário? Quais as intenções do autor português ao propor essa prática?

Ao consultarmos arquivos/repositórios deparamos com um repertório de manuais pedagógicos pertencentes ao cenário escolar brasileiro das primeiras décadas do século XX. Ao situá-los no contexto em que foram escritos, considerando a individualidade de cada um, evidencia-se a ambição de determinados grupos intencionados em recomendar aos seus leitores novas propostas de ensino forjadas por seus interesses. Foram produzidos com o objetivo de guiar o trabalho docente, sendo utilizados como estratégia pelos seus autores para ensinar novas metodologias, considerando aspectos políticos, filosóficos e/ou pedagógicos.

Entendemos como estratégia, de acordo com a definição de Michael De Certeau, uma ação que supõe a existência de um lugar próprio, “ser a base de onde se podem gerir as relações com uma exterioridade”. (Certeau 2011 p. 95). Essa ação ajustada à realidade deste estudo, pode ser interpretada como a imposição do uso de determinados manuais pedagógicos para consolidar certas práticas de ensino, de interesse de quem as impõe. As estratégias, ainda de acordo com Certeau (2011 p. 95) “são capazes de produzir e impor”. Elas são impostas por quem detêm o poder, isto é, governantes e legisladores que determinam o currículo, a metodologia e os programas de ensino escolar a serem executados.

Em continuidade à pesquisa intitulada Manuais pedagógicos e a orientação matemática aos professores do curso primário em tempos de Escola Nova, (Marques 2013), em que foram estudados os manuais para o ensino de matemática com o intuito de analisar o discurso para o ensino dessa disciplina na década de 1930, foi eleito, entre aqueles analisados, o manual de Faria de Vasconcelos, Como se ensina à aritmética: didáctica, por se destacar pela proposta de aplicação de testes denominados aritméticos no curso primário. Neste estudo incorporamos, como novidade, o manual Lições de pedologia e pedagogia experimental com o propósito de compor o corpus desta pesquisa. Tais escolhas fundamentam-se pela chegada desses manuais no Brasil nas primeiras décadas do século XX, orientando a prática docente. O manual Como se ensina à aritmética: didáctica, publicado em 1933, por exemplo, fez parte do Programa de Ensino do Instituto de Educação de São Paulo “Caetano de Campos” no ano de 1936. Tudo indica que tal adoção tinha a finalidade de propor mudanças na prática de ensino tradicional em matemática já legitimada pela cultura escolar naquele tempo. Elege-se como conceito de cultura escolar a definição do autor Dominique Julia (2001 p.10): “um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos”. Essa definição alcança a intenção do presente estudo, que

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objetiva compreender as intenções dos autores, considerando a época e o local em que foram produzidos.

Na descrição das autoras Silva e Vicentini (2006), comparando Brasil e Portugal, a história dos manuais pedagógicos foi semelhante em ambos os países. Consideram que o início do século XX foi o momento crucial para a legitimação da pedagogia e do magistério como profissão, por vincular-se ao movimento da Escola Nova. Afirmam que as disciplinas ditas pedagógicas ganharam mais espaço no currículo escolar e tenderam a se articular com as ciências da educação. Tal fato culminou não só na proliferação de manuais pedagógicos escritos no período como também “um certo aprimoramento das temáticas já expressas nos títulos, que denotaram um tom ‘cientificizado’, inédito até então”. (Silva; Vicentini 2006, p. 2.857).

Por volta de 1909, em Portugal, no mesmo período citado pelas autoras Silva e Vicentini (2006), foi publicado o manual Lições de pedologia e pedagogia experimental com a finalidade de oferecer uma dimensão científica para a atividade pedagógica. Após fazer uma revisão bibliográfica, na tentativa de elucidar o contexto em que tal manual foi escrito, destaca a pesquisa da autora Ana Clara Bortoleto Nery, que ao fazer uma busca à biblioteca da Escola Normal Primária de Piracicaba, deparou com essa obra em seu acervo. Na narrativa de Nery (2013) esse é o livro mais antigo da categoria encontrado no acervo da biblioteca, tendo sido adquirido enquanto ainda era Escola Complementar, com data provável de chegada à biblioteca em 1911, ou seja, com pouquíssimo intervalo entre a publicação e sua aquisição.

O autor Diniz (2002) também apresenta o mesmo manual em seu artigo denominado Faria de Vasconcelos nas sete partidas 150 do mundo. Para ele, o manual constitui uma síntese do trabalho desenvolvido pelo autor luso na Bélgica, que a princípio iniciou sua pesquisa na área das Ciências Sociais e posteriormente migrou para a área da Psicologia, com o intuito de obter um melhor suporte para a pesquisa no campo da Pedagogia. Diniz (2002) afirma que o autor tinha a preocupação de registrar as experiências de estudos sobre a criança e a psicologia experimental que vivenciava. Descreve que, enquanto prosseguia sua atividade docente na Universidade Nova de Bruxelas, Faria de Vasconcelos manteve vínculo com Portugal, ao menos ocasional, para os portugueses atestarem seu manual. Afirma que, Lições de pedologia e pedagogia experimental foi o livro mais citado do autor português, cuja segunda edição foi publicada em 1925 pelas Livrarias Aillaud, com filiais na Livraria Chardon, do Porto, e na Livraria Francisco Alves, do Rio de Janeiro. Teve tradução para o idioma espanhol, em 1931, sendo amplamente divulgado na América Latina com três edições, impresso na Antiga Casa Bertrand, em Lisboa. Paralelamente às suas funções universitárias na Bélgica, Faria de Vasconcelos cria, em 1912, três anos após a publicação do manual em questão, a escola Bièrges-Lez-Wavre151 um dos maiores feitos em sua trajetória intelectual.

150 O termo “partidas” utilizado no título do artigo do autor português Diniz (2002) tem o mesmo significado que “partes”, ou seja, Faria de Vasconcelos nas sete partes do mundo.

151 Escola com característica escolanovista.

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O movimento da Escola Nova no Brasil, diferentemente dos outros países, assumiu uma dimensão política ao propor a renovação do sistema público, constituindo-se em elemento aglutinador de reformas do aparelho escolar municipal ou estadual nas várias regiões do país, reformas essas implementadas pelas Diretorias de Instrução Pública antes mesmo do surgimento das Secretarias de Educação. (Vidal 2013).

É importante ressaltar que muitas das propostas de renovação do ensino, ditas da pedagógica escolanovista, eram reproduzidas nos relatórios de inspetores de ensino e na legislação vigente. As principais propostas eram: assegurar que a criança estivesse no centro do processo de aprendizagem; a prática do higienismo como disciplinarização do corpo e comportamento do aluno; a cientificidade da escolarização e o destaque em relação à construção do conhecimento do aluno no ato de observar e intuir. Para dar suporte à cientificidade da pedagogia eram utilizados os estudos da psicologia experimental. Desse modo, eram produzidos discursos para escolarização das grandes massas por meio dos testes com a intenção de constituir classes homogêneas para garantir a centralidade da criança no processo educativo. (Vidal 2013, p. 498).

Em Portugal, do mesmo modo, formava-se no início do século XX um novo paradigma pedagógico com o objetivo de articular e tornar coerentes a psicologia e a pedagogia. Nesse período, Faria de Vasconcelos apresenta em seus escritos o conhecimento da pesquisa de Decroly. Analisa e compara os diversos tipos de anormalidades e as suas classificações. Apresenta soluções sociais adaptadas em diversos países. Propõe a criação de vários tipos de escolas, os asilos-escolas para idiotas e imbecis profundos, denominações utilizadas nesse período para a classificação dos alunos avaliados por testes específicos. Recomenda também escolas especiais para atrasados mentais e pedagógicos, munidas da colaboração médica e pedagógica. (Diniz, 2002).

Devido a suas inúmeras viagens, Faria de Vasconcelos conhece a ciência pedagógica nos vários países e reconhece o avanço das novas teorias na América Latina. Acredita que a criação de laboratórios de pedologia nas escolas tornar-se-ia o quinto pilar no desenvolvimento da pedagogia.

2. OS TESTES ARITMÉTICOS NOS MANUAIS PORTUGUESES: ALIADOS DA PSICOLOGIA EXPERIMENTAL

O manual Lições de pedologia e pedagogia experimental anuncia a necessidade do professor de estudar e compreender a criança. É considerado, de acordo com Catani e Silva (2009) um dos manuais pedagógicos mais empenhados em apresentar estudos sobre a infância em Portugal, com o propósito de contribuir para que o professor primário conhecesse “o tipo médio da criança portuguesa”. O autor tinha a intenção de regular melhor a atividade escolar, e explica:

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Hoje, porém, estamos em presença de uma pedagogia nova, cujas características principais podemos reduzir a estes três fatos fundamentais: a) Estudo científico da criança; b) Associação eficaz do médico e do educador; c) Colaboração sincera da família e da escola na obra educativa. São estes três fatos que dão à pedagogia nova uma base científica, a única sobre que deve assentar o desenvolvimento regular da criança sob os diferentes aspectos por que tenhamos de encará-lo. (Vasconcelos 1909, p. 9-10).

Esse manual foi objeto de grande interesse entre os estudiosos da época, que o consideraram uma grande novidade no meio educacional. Ao longo dos capítulos o intelectual português apresenta críticas à prática pedagógica dos professores naquele período, em consequência de alguns professores acreditarem que a criança aprenderia do mesmo modo que o adulto. Para Faria de Vasconcelos, o ensino deve adaptar-se ao desenvolvimento físico e psíquico da criança. Afirma que “o educador deve descer até ela, respeitá-la nas suas pretensas frivolidades e ridicularias que, sem dúvida, representam a forma que reveste a satisfação das necessidades imprescindíveis do seu organismo”. (Vasconcelos, 1909, p. 8).

O autor luso afirma que o professorado deve receber orientações para uma nova formação, com o objetivo de educar de maneira psicológica e pedológica. Define a pedologia como “ciência experimental da criança sob os diferentes aspectos” com a finalidade de,

[...] conhecer o corpo da criança (estatura, peso, etc.) normal e anormal, a sua evolução, os órgãos dos sentidos, o seu espírito, as qualidades e defeitos físicos e mental, tanto sob o ponto de vista geral aplicável a todas as crianças, como sob o ponto de vista das diferenças e variedades individuais. (Vasconcelos 1909, p. 10).

O que salta os olhos ao ler o manual Lições de pedologia e pedagogia experimental, no subitem “Estudo científico da criança”, é o propósito do autor de diferenciar as crianças umas das outras antes de submetê-las a métodos de ensino para que se atendam às necessidades individuais de cada uma. Assim se fundamenta a ideia de que os professores têm de ter conhecimento do estudo científico da criança para poder dar atenção às particularidades fisiológicas e psicológicas de cada uma. Destaca que primeiro se deve saber o que a criança está apta a saber, antes de saber o que se deve ensinar-lhe, considerando psicologicamente e fisicamente quem se pretende ensinar e educar. Faria de Vasconcelos garante que, na época, fazia pouco tempo que ele próprio havia compreendido o problema educativo sob um ponto de vista científico e que todos os países já estavam à procura de subordinar os métodos, os programas de ensino e a formação de professores às necessidades individuais físico-psíquicas da criança. (Vasconcelos 1909, p. 10-11).

Na sequência da análise elegemos o primeiro volume de matemática da Biblioteca de Cultura Pedagógica, o manual intitulado Como se ensina à aritmética:

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didáctica, publicado em 1933. Tal biblioteca foi criada em 1926 por Faria de Vasconcelos em Lisboa. Esse manual se propõe a anunciar as novas doutrinas, iniciativas e técnicas pedagógicas consideradas modernas e que outros livros de didática ainda não haviam tratado. Faria de Vasconcelos defende que a aritmética é uma disciplina do mais alto valor e, também, motivo do maior número de fracassos por parte dos alunos, indicando ser este um dos motivos que o levou a escrever manuais para o ensino de matemática. Tal afirmação confirma-se quando propõe, em seu manual, apresentar propostas para colocar em evidência alguns dos fatores que concorrem para o insucesso dos alunos e indicar novos meios para obter melhores resultados na prática escolar. (Vasconcelos 1933).

As recomendações feitas no manual Como se ensina à aritmética: didáctica estavam apoiadas, de acordo com o autor, nos resultados das investigações mais recentes [em 1933] feitas no domínio da didática, renovada pela psicologia e pela experimentação científica. É importante retomar a informação já dita anteriormente sobre a adoção deste manual no programa de ensino do Instituto de Educação “Caetano de Campos”, em São Paulo, considerado modelo de educação para as demais escolas normais do Brasil. Buscavam-se autores com reconhecimento internacional para disseminar as ideias do movimento da Escola Nova no país. Os governantes traziam de fora o que havia de mais atualizado sobre o assunto.

A orientação para a prática pedagógica contida nos manuais revela o expediente escolanovista com a intenção de combater as práticas tradicionais de ensino.152 Propõe um ensino ativo, que faça a criança raciocinar e que tenha a ver com a vida infantil. Evidencia a menção feita por Faria de Vasconcelos ao “movimento das medidas educativas” no manual de 1933. Afirma que um dos fatores que contribuiu para a renovação do ensino de aritmética foi a aplicação das medidas educativas a essa disciplina. Tal movimento iniciou-se nos Estados Unidos com os autores Stone, sobre problemas de raciocínio, e Courtis, no que se refere à mecânica da aritmética. Faria de Vasconcelos afirma que a origem dos testes denominados de de aritmética deve-se principalmente a Courtis, devido a sua iniciativa e empenho. Desse modo, o surgimento da nomenclatura testes aritméticos deve-se a esses dois autores, pioneiros na sua criação e aplicação. (Vasconcelos 1933).

O intelectual português reforça a afirmação sobre a necessidade de o professor ter conhecimento da psicologia para melhor desempenho docente. Garante que o professor se beneficiará do conhecimento psicológico, aplicando-o como metodologia para o ensino de aritmética. Ressalta a importância do conhecimento de estudos psicológicos por usufruir dos benefícios trazidos para a educação matemática, e explica:

[...] a psicologia infantil tem contribuído para o progresso do ensino da aritmética, mas para atingir o objetivo esperado é necessário, além do 152 Entende-se como práticas tradicionais de ensino no contexto escolar brasileiro a memorização de

conteúdos matemáticos como método de aprendizagem.

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conhecimento psicológico do aluno, o conhecimento psicológico da disciplina e dos métodos e processos a ensinar. (Vasconcelos 1933, p. 18).

Considerando a afirmação do autor luso, indaga-se: qual o discurso lido nos manuais portugueses para a aplicação de testes aritméticos em alunos do curso primário?

Segue uma breve descrição dos testes aritméticos contidos nos manuais pedagógicos portugueses. Subdividem-se em três categorias, conforme explicação do pesquisador português: testes de inquirição, testes de diagnóstico e testes de prática.

2.1. Testes de inquirição

Faria de Vasconcelos cita exemplos de testes que se encaixam na finalidade da categoria denominada de testes de inquirição, os denominados: testes de seleção, de acasalamento, série de lacuna, de diferença e identidade e testes de verdade e falsidade. Segue tabela explicativa:

Categoria Objetivo Subdivisões Aplicação

Testes de

inquirição

São aplicados

coletivamente. Têm a

finalidade de avaliar

conhecimentos e

capacidades dos alunos

em aritmética. Revelam

aos professores se o

aproveitamento está acima

ou abaixo da média

estimada. Permitem medir

os resultados obtidos em

uma escola ou num

sistema escolar,

proporcionando a

comparação entre escolas.

(Vasconcelos 1933).

Testes de

seleção

São compostos de exercícios e

problemas, cada um com cinco

ou mais respostas. O aluno

deve escolher a resposta

correta entre as cinco

apresentadas.

Testes de

acasalamento

São constituídos por duas séries

de oito ou mais tópicos que o

aluno associa a colunas. O

aluno indica quais os conteúdos

da série B, por exemplo,

correspondem aos tópicos da

série A.

Série de

lacunas

São exercícios com o objetivo

de preenchimento de lacunas

com palavras, números ou

sinais. Os alunos devem

preencher a informação faltante

na lacuna apresentada no teste.

Teste de

diferença e

Neste teste são usadas séries

de pares de números,

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identidade quantidades e expressões

numéricas. O aluno indica se

cada par tem o mesmo valor ou

valor diferente, marcando o par

com uma letra convencional.

Teste de

verdade e

falsidade

Este teste é composto de uma

série de fórmulas, regras,

definições, operações. O aluno

deverá indicar por um sinal

convencional se o tópico dado

de cada vez é falso ou

verdadeiro.

TABELA 1 | Categoria de Testes de Aritméticos: Testes de inquirição

Alguns desses testes podem ser agrupados sob a categoria de testes de capacidade, poder ou habilidade, quando têm por fim medir até que ponto o aluno é capaz de resolver problemas ou fazer exercícios cada vez mais difíceis, dependendo da finalidade. Assim, compreendemos que os testes citados por Faria de Vasconcelos (1933) fazem parte do grupo maior de testes denominados de inquirição e têm a finalidade de avaliar os conhecimentos e as capacidades dos alunos em aritmética. Os resultados desses testes podem apresentar aos seus aplicadores informações sobre o aproveitamento individual de cada aluno avaliado, mesmo que seja aplicado de maneira coletiva, e também avaliar o grupo.

2.2. Testes de diagnóstico

No manual pedagógico de 1933, Como se ensina à aritmética: didáctica, Faria de Vasconcelos relata que iniciou um período de crescente atenção à construção de testes de diagnóstico. Esses testes têm duas funções principais: a primeira consiste em descobrir os erros que os alunos cometem nas operações, processos e problemas aritméticos; a segunda, em descobrir as causas desses erros. São aplicados no início e no fim do ensino de um conteúdo predeterminado em aritmética. Esses testes podem ser aplicados coletivamente ou de maneira individual. A aplicação coletiva revela os tipos de erros, e a aplicação individual, além de identificar os tipos de erros, aponta as causas de ineficiência da metodologia de ensino para que sejam corrigidas.

Como exemplo de testes de diagnóstico selecionamos os testes aritméticos dos autores Buckingham e Maclatchy,153 que tinham a finalidade de entender a extensão

153Não foram encontrados na literatura brasileira estudos que apresentem tais autores.

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do conhecimento dos números que têm as crianças de seis anos de idade ao entrar para a escola primária.

Os testes eram aplicados individualmente à criança. Para essa investigação foram aplicados seis testes em 1.356 crianças, pertencentes a 17 cidades, não reveladas, aldeias e distritos rurais da época. (Vasconcelos 1933).

Segue tabela com testes de diagnóstico: Categoria Ordem Objetivo

específico

Aplicação

Testes de

diagnóstico

1º Contar de

memória

Aplica-se individualmente. Pede-se que a criança

conte até onde tem conhecimento dos números, um

a um. Posteriormente sugere a contagem dos

numerais de dez em dez.

2º Contar objetos De maneira individual. Propõe a contagem de

objetos. O autor não esclarece quais objetos foram

utilizados e de que maneira foram apresentados aos

alunos.

3º Reproduzir

números

As crianças escolhem um determinado número de

objetos pertencentes a um conjunto maior e

respondem à pergunta: “Dá-me... (números e

espécie de objetos) ”.

A proposta de aplicação consistia na reprodução de

números individualmente com a intenção de que o

aluno representasse os números com os objetos. O

autor não cita quais eram os objetos utilizados para a

aplicação deste teste.

4º Nomear números Também conhecido como “testes de conceitos

numéricos”. Atribuir o nome correto aos símbolos

numéricos.

5º Conhecimento de

combinações de

soma

Examinavam-se as crianças a partir de dez

problemas verbais para verificar se conheciam

algumas combinações de soma. Faria de

Vasconcelos apresenta as combinações que foram

empregadas neste teste “5+1, 7+1, 1+9, 4+4, 4+6,

5+2, 8+2, 4+5, 5+3 e 3+5”.

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6º Combinações de

soma com

objetos

O objetivo dos testes era averiguar se a criança tinha

o conhecimento de um determinado número de

combinações de soma representados por objetos.

A primeira combinação era 2+2, o examinador

mostra dois botões e questiona “quantos botões há

aqui”? Após a resposta do aluno, o examinador

cobre os botões e mostra outros dois botões

seguidos da mesma pergunta feita anteriormente. Na

sequência, o examinador “dissimula” o 2º grupo, ao

mesmo tempo em que o 1º, e pergunta “quantos são

dois botões e dois botões” (Vasconcelos 1933, p.

45).

Quando o aluno respondia corretamente, significava

que era capaz de identificar nos seus componentes

um 4 invisível; e a resposta era marcada na coluna

de uma tabela denominada ‘invisível’.

Quando o aluno conseguia chegar a esse resultado

somente olhando os objetos apresentados, a

resposta dada pelo aluno era anotada em uma

tabela na coluna denominada “visível”.

TABELA 2 | Categoria de testes aritméticos: Testes de diagnóstico

Para a aplicação dos testes mencionados anteriormente foram utilizadas questões aritméticas de maneira diferente dos testes de inquirição, que tinham a função de mensurar o desempenho individual e também perante a sala. Para este caso a intenção era diagnosticar os principais erros cometidos e assim os professores poderem adequar a melhor metodologia de ensino de acordo com a dificuldade que a partir dos testes persistem em ser o alvo dos principais erros, indicando qual o conteúdo que o aluno ainda não aprendeu.

2.3. Testes de prática

Os testes de prática, de acordo com Faria de Vasconcelos, vêm seguidos da aplicação dos testes de diagnóstico com a ideia de sanar os problemas encontrados por meio da prática de ensino ideal ao avaliado. Entre estes testes está a coleção de testes de prática de Courtis.

Segue exemplo de teste de prática empregado para o método de adição: “a) Deve-se somar de cima para baixo ou de baixo para cima? ”. De acordo com Faria de Vasconcelos, o problema foi estudado experimentalmente. Os testes de prática

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revelaram que os grupos de crianças de sete escolas que somaram de cima para baixo obtiveram resultados superiores. Descreve os testes embasado na teoria de Buckingham, que garante que a partir dos resultados obtidos nessa pesquisa deve-se ensinar a somar de cima para baixo. Diante de tal afirmação, o autor português apresenta o seguinte questionamento em seu manual: “Haverá algumas razões que justifiquem a superioridade do método? ”. Na sequência, explica: “uma delas reside no fato de ser a soma de cima para baixo que traz a mão e os olhos até o ponto onde a resposta deve ser escrita, reduzindo a probabilidade de erro”. (Vasconcelos 1933, p. 82).

A segunda explicação para essa justificativa de adição, de acordo com o autor luso, é que, em caso de haver em uma coluna de cinco ou seis números de dois dígitos que exija o “transporte”, durante a soma, se for realizada ao contrário, de baixo para cima, os olhos e as mãos da criança se movimentam mais vezes do que de cima para baixo.

O pesquisador português apresenta outro exemplo que partiu da seguinte questão: “A soma e a subtração devem ser ensinadas conjuntamente ou separadamente? ” Citando outro teste de prática aplicado por Buckingham em sete escolas diferentes, a conclusão a que chegou foi de que sejam ensinadas separadamente.

Faria de Vasconcelos concluiu e recomendou aos professores que a prática deve destacar:

1) Aprendizagem separada dos diferentes casos de combinações dos números, tanto as fundamentais, como as derivadas. 2) Trabalhar mais com números pequenos do que com grandes”. 3) Trabalhar mais com colunas curtas do que com colunas compridas. 4) Emprego de métodos diretos para vencer as dificuldades da técnica e supressão, por conseguinte das chamadas “muletas” do ensino que constituem maus hábitos de trabalho. 5) Individualizar o ensino e a prática da técnica das operações mediante os seguintes meios, entre outros: a) emprego de “tests” de diagnóstico dos defeitos e erros dos alunos; b) emprego de “tests” de prática corretiva. (Vasconcelos 1933, p. 138).

Os indícios apontam discurso semelhante ao lido no manual de 1909 do autor luso. Levam-nos a crer que Faria de Vasconcelos, ao escrever o manual de matemática, tinha a intenção de utilizar-se dos testes aritméticos para comprovação da eficácia da metodologia de ensino que anunciava há décadas. Embora afirmasse em citação no manual de 1933 que sua intenção era sanar os problemas de ensino da matemática, as evidências indicam a intenção do uso dos recursos da matemática para fortalecer seus estudos de psicologia que perduraram por praticamente toda a sua trajetória intelectual. Sua pesquisa e escritos reforçam seu interesse pelo estudo psicológico da criança. Assim, como estratégia, escreve manuais para o ensino de aritmética com o objetivo de legitimar tal método defendido.

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3. Considerações Finais

Concluiu-se que a proposta adotada por Faria de Vasconcelos tinha o propósito de ampliar o conhecimento dos professores a respeito dos estudos na área da psicologia experimental, propondo uma nova metodologia com a finalidade de sanar os problemas encontrados no ensino da matemática.

Tudo leva a crer que, além desse propósito, Faria de Vasconcelos, por meio da orientação para a aplicação dos testes aritméticos, buscou comprovar a eficácia de seu método de ensino, desenvolvido ao longo da sua trajetória intelectual, utilizando-se das vantagens que a matemática lhe ofertava: a possibilidade de mensurar a aprendizagem do aluno e evidenciar os erros resultantes de metodologias de ensino malsucedidas, utilizando-se de percentuais, tabelas e dados estatísticos. Os testes aritméticos contidos nos manuais portugueses tinham a finalidade de legitimar a prática da pedagogia científica defendida pelo autor luso.

Boa parte desses métodos está presente ainda hoje em muitas práticas utilizadas nas escolas brasileiras. Os testes ainda são utilizados de maneira a comparar o desempenho do aluno perante seu grupo, em busca de um padrão homogêneo de desenvolvimento, desconsiderando o desenvolvimento a partir das peculiaridades de cada indivíduo. Os testes apresentados assemelham-se aos utilizados na atualidade. Alguns são conhecidos com outras nomenclaturas, como, por exemplo, os testes de seleção, testes de múltipla-escolha e testes de verdadeiro ou falso, geralmente aplicados em concurso público, vestibular etc.

Este estudo revela sobretudo que muitas teorias que desembarcaram no Brasil foram apropriadas, perdendo a relação com o todo que a teoria abarcava e afastando-se da essência de sua diretriz original.

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ID: 671

PESQUISA EM EDUCAÇÃO,HISTÓRIAS DE VIDA E ENSINO Autor: Lucia de Fatima Oliveira de Jesus Filiação: UNEB-Campus X e FPCEUP

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RESUMO

As condições de produção da pesquisa em educação são aqui discutidas, por meio da análise dos relatos de histórias de vida de dez pesquisadores realizados em São Paulo. Para compreender como estes pesquisadores desenvolveram suas teses ou dissertações; quais os impasses enfrentados na coleta de dados no âmbito das abordagens qualitativa, partimos de questionamentos acerca das concepções de pesquisas que subjaz ao trabalho de investigação. As ideias de autores como Thompson, (1978) Berger (1992), Bourdieu (2003) & Zanten (2004)) entre outros, serviram de suporte para nossas análises. Por conclusões admite-se a importância de uma concepção de pesquisa coerente com as abordagens qualitativa, como forma de estabelecer referências metodológicas e conceituais. Assim como a necessidade de investimentos nestes estudos, não apenas para delinear as melhores estratégias de ação na sala de aula, mas também para inspirar políticas eficazes em educação.

PALAVRAS-CHAVE

Pesquisa em educação, histórias de vida, sala de aula

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1. INTRODUÇÃO

Procurou-se então instaurar uma relação de escuta ativa e metódica, tão afastada da pura não-intervenção da entrevista não dirigida, quanto do dirigismo do questionário. (Bourdieu, 2003, p.695)

No presente texto, pretende-se analisar itinerários de pesquisa para compreender algumas das condições de produção da pesquisa em educação e suas relações com o ensino. Para tanto, tomou-se como lócus de investigação, entrevistas com histórias de vida de dez pesquisadores realizadas por ocasião de nossa pesquisa de doutorado defendido em 2009. A escolha desses pesquisadores se deve ao fato de suas teses ou dissertações, terem sido analisadas por nós no âmbito de nossas pesquisas de mestrado, cujo objetivo foi efetivar um balanço da produção em educação que tomou a sala de aula como objeto de estudo nos anos de 1989-99. O que resultou em uma série de indagações a respeito das condições de produção daqueles trabalhos, originando-se aí o nosso trabalho de doutorado, do qual parte das análises se constituem neste artigo.

As condições de produção da pesquisa em educação são aqui discutidas, por meio da análise dos relatos de histórias de vida. Para compreender em que condições estes pesquisadores desenvolveram suas teses ou dissertações, quais os impasses enfrentados na coleta de dados no âmbito das metodologias qualitativas em educação, partimos de questionamentos do tipo; em que lugar se coloca o pesquisador em educação? Quais as concepções de pesquisas que levam a campo e o que defendem em termos de pesquisa. O autor Berger (2009), ao discutir tal questão, aponta dois lados em que o pesquisador pode assumir. De um lado aquele que ao observar uma determinada situação ou determinados atores sociais e suas relações, apresentam-lhes uma verdade a qual eles desconhecem, desconsiderando sua realidade e colocando-os em situação de quem nada sabe sobre sua própria prática? De outro, um pesquisador que trabalha a partir e com um conhecimento já existente, evidenciando-se assim o que há de fundamental nestes saberes, nestas práticas. Em outras palavras quais são as concepções de pesquisa que subjaz ao trabalho efetuado pelos pesquisadores em educação ao enveredar pelos caminhos da investigação qualitativa.

Em um contexto, até então marcado pela orientação tecnicista, em finais dos anos de 1960 e início dos anos de 1970 é que surgiram os primeiros programas de pós-graduação em educação do país, nomeadamente, na PUC do Rio de Janeiro em 1965, na PUC de São Paulo em 1969, seguido do programa da Faculdade de Educação da USP, em 1971. Entretanto nas revisões e balanços efetuados, registra-se que somente a partir da década de 1980, começam a surgir os primeiros estudos que se autodenominavam qualitativos, tendo se expandido de fato nos anos de 1990, com um conjunto de estudos que se autodenominavam etnográficos, autobiográficos,

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observação participante, pesquisa-ação, ou ainda pesquisas que operavam uma mescla entre as várias abordagens.

Assim, o recurso metodológico mais recorrido pelos pesquisadores em educação no Brasil, atualmente, são os da pesquisa qualitativa, sob a influência de questionamentos levantados pelos movimentos sociais populares, aos métodos mais tradicionais de pesquisa e suas reivindicações por maior intencionalidade política e maior integração entre a investigação e a sociedade brasileira. Contudo, tais estudos, nem sempre apresentaram o cuidado e o rigor suficientes para descrever os acontecimentos cotidianos ou para identificar os significados das ações dos agentes sociais do ponto de vista do próprio ator social, revelam as pesquisadoras, Bueno, Chamilian, Sousa & Catani (2006). Embora as abordagens qualitativas se mostrem metodologias férteis ao exame das questões de ensino, uma vez que aí as interações entre investigador e investigado pressupõem uma aproximação ou mesmo uma espécie de parceria como defende alguns estudiosos da área, exige-se uma reflexão aprofundada à realização de tais estudos, diante das implicações que as questões teórico-metodológicas apresentam para se estudar fenômenos multifacetados, como os da educação e da história da educação.

Em história da educação, os autores Vidal & Faria (2012) atestam que ao longo dos anos de 1990, assiste-se a uma mudança substantiva na forma própria de organizar e realizar tais pesquisas. Além da continuidade da tradição das investigações efetuadas individualmente, emergiu “uma multiplicidade de grupos de pesquisa que se impuseram o desafio de investigações de escopo alargado, de longo prazo e com grande preocupação com o mapeamento, organização e disponibilização de acervos documentais” (p. 59). A demarcar definitivamente a compreensão de uma história da educação ao mesmo tempo, como uma subárea da educação e uma especialização da história.

Em Portugal, um balanço da produção historiográfica portuguesa, efetuado por Pintassilgo & Mogarro (2012) cujo corpus analisado representou uma espécie de amostra da produção portuguesa ao modo de um “estado da arte”, atesta que a “História da Formação de Professores, em articulação com a História da Profissão docente, tem sido uma das áreas a manifestar algum dinamismo na investigação portuguesa recente” (p.29). Para os autores, os estudos de António Nóvoa e seus colaboradores, em 1987, apresentaram um diálogo profícuo ao evidenciarem potencialidades, entre a História e a Sociologia, além de nos dar a conhecer o quadro institucional de Portugal. Este dinamismo “decorre tanto do reconhecimento do papel desempenhado historicamente pela formação de professores e respectivas instituições, no âmbito do processo de profissionalização da atividade docente, como da consciência da importância assumida pela memória histórica na construção de uma identidade profissional”. Pintassilgo e Mogarro (2012, p. 39, itálico conforme os autores). Segundo os autores este processo conduziu os olhares para o conhecimento e reconhecimento dos professores, colocando-os no centro da agenda das investigações em educação em Portugal, e também no Brasil, acrescentamos.

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Conforme a autora Zanten (2003) a tradição dos métodos qualitativos de pesquisa, vem do final do século XIX e princípio do século XX, “desenvolvidos para trabalhar com grupos sem cultura escrita, com sociedades alijadas do mundo desenvolvido ou com grupos marginalizados na sociedade”. (p. 26). Muito diferente do contexto atual, no qual, os atores, sujeitos em formação, também por influência da escola, tendem a ser mais reflexivos e a adotarem posturas mais críticas. Outro ponto importante que a autora toca é o caráter de denúncia que estes estudos assumem, muitas vezes servindo ao controle social, ainda que contrários aos objetivos dos pesquisadores.

Ao refletirmos sobre os métodos qualitativos, em uma situação de pesquisa na qual, os atores sociais focalizados, se encontravam em posições de destaques no campo educacional, muitos com suas carreiras já estruturadas, ou até mesmo o caso de uma das entrevistadas que se encontrava aposentada, foi tarefa difícil. Primeiro, porque vai na contramão da tradição destes estudos conforme observou Zanten (2003), depois porque muitas dessas reflexões não aparecem em manuais de metodologia e por último, porque os estudos sobre a vida e o ofício de pesquisadores na área da educação são praticamente zero. Nestas circunstâncias, a preparação do entrevistador teve de ser muito cuidadosa, para tanto foi efetuado um levantamento de informações básicas sobre os entrevistados, conforme recomenda Thompson (1978)

O primeiro ponto é a preparação de informações básicas, por meio da leitura ou de outras maneiras. A importância disso varia muito. A melhor maneira de dar início ao trabalho pode ser mediante entrevistas exploratórias, mapeando o campo e colhendo ideias e informações. Com a ajuda destas, pode-se definir o problema e localizar algumas das fontes para resolvê-lo. Do mesmo modo que a “entrevista piloto” de um grande levantamento, uma entrevista de coleta de informações genéricas no início de um projeto local pode ser uma etapa muito útil. E naturalmente não há razão alguma para fazer uma entrevista, a menos que o informante seja de algum modo, mais bem informado do que o entrevistador. Este vem para aprender e, de fato, muitas vezes consegue que as pessoas falem exatamente dentro desse espírito. (1978, pp.254, 255)

Para o autor, perguntas ingênuas, porém perspicazes, podem até deixar o informante mais à vontade e desafiado a dar maiores detalhes a respeito. Mas, em geral, o que ocorre é que quanto mais se sabe, maior o número de informações se pode obter, principalmente, no caso de entrevistas com intelectuais,

Um controle semelhante de detalhe pode ser estabelecido para uma entrevista de história de vida, no caso de o sujeito ser uma personalidade pública, ou um escritor, ou possuir documentos pessoais em quantidade suficientes. Muito embora parte desse material – como os próprios textos do sujeito – seja acessível antes do início da entrevista, pode-se conseguir mais resultados com

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as primeiras entrevistas, que levem à correspondência, à descoberta de novos documentos e, finalmente, a mais entrevistas em outro nível de indagações. Claro que nem todo informante proeminente se dispõe a submeter-se a um processo de pesquisa passo a passo. Thomas Reeves descobriu que entrevistar intelectuais liberais norte-americanos exigia uma preparação trabalhosa e completa. Frequentemente, eram ocupados demais para conceder mais do que breves entrevistas, de modo que era essencial que se fizessem “perguntas específicas, muito bem fundamentadas”. Ainda pior, se se parece demonstrar hesitação, ou estar procurando obter informações às cegas, o relacionamento entre os participantes de uma entrevista pode destruir-se rapidamente. Os intelectuais liberais parecem especialmente interessados em testar suas credenciais para ser um historiador oral, mediante o exame do seu conhecimento do assunto em discussão (Thompson, 1987, pp.255, 256).

Optou-se por um tipo de entrevista (semiestruturada) com história de vida, nem totalmente livre e tão pouco inteiramente dirigida por um roteiro fixo. Em verdade o autor de A voz do passado: história oral classifica as entrevistas como estruturada, não estruturada e mista, sendo que essa última coincide com a forma que utilizamos. Uma conversa mais livre, em que a testemunha é convidada a falar sobre um determinado assunto, com o tempo que precisar, pode obter informações pertinentes e ainda captar alguma dimensão “subjetiva”. Distanciando-nos de uma entrevista completamente estruturada, em que o entrevistador mantém o controle, explica Thompson (1978)

O objetivo de uma entrevista deve ser revelar as fontes do viés, fundamentais para a compreensão social, mais do que pretender que elas possam ser aniquiladas por um entrevistador desumanizado “sem um rosto que exprima sentimentos”. Na verdade, nenhum historiador oral, que eu saiba, tem defendido o estilo de entrevista com questionário rigidamente inflexível (p.258).

O autor adverte que o êxito de uma entrevista depende ainda da simpatia e compreensão do entrevistador em relação à opinião dos informantes e, principalmente, da disposição não apenas para calar-se, como também para escutar, resistindo à tentação de interromper ou discordar dos informantes (Thompson, 1978). Alerta a estas e outras implicações da pesquisa qualitativa, focalizamos relatos de dez pesquisadores, entre eles um homem e nove mulheres, nascidos em sua maioria em São Paulo, uma pesquisadora que nasceu em Minas Gerais e uma outra nos Estados Unidos, em viagem dos pais, mas que voltou para São Paulo, ainda recém-nascida. Todos, ao tempo da entrevista, viviam e trabalhavam na capital e Grande São Paulo. Filhos de profissionais liberais: médicos, professores, comerciantes, relataram suas histórias de vida e contaram como tornaram-se pesquisadores e desenvolveram suas pesquisas de mestrado e doutorado.

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1. AS ENTREVISTAS154

Aos entrevistados foi enviado um roteiro síntese das principais questões a serem abordadas na entrevista, assim como os acordos a respeito dos procedimentos a serem seguidos durante as entrevistas e, posteriormente, em relação às devoluções, aos nomes, às autorias, etc. A seguir, um quadro elaborado para melhor compreensão de nossas análises.

2.2 Quadro dos entrevistados155

Nome fictício do informante

Local e data da entrevista Pág.Entre vista

a) Rosa Pinheiros. SP. 15-02-07 45fls b) Mara Cid. Universitária. SP. 06-02-07 19fls c) Joana Cid. Universitária. SP. 02-04-07 25fls d) Laura Perdizes. SP. 4 e 11-04-07 62fls e) Célio Perdizes. SP. 27-04 e 02-07-07 59fls f) Selma Itaim-bibi. SP. 20-07-07 35fls

g) Rosana Sorocaba-SP. 25-08-07 30fls. h) Edna Mooca. SP. 18-12-07 2fls. i) Nina Taubaté. SP. 19-12-07 30fls j) Rita Taubaté. SP. 19-12-07 38fls

A sala de aula como parte da vida e do ofício desses pesquisadores foi abordada,

incluindo informações sobre a infância, a entrada no ensino fundamental e a escolha da profissão docente. Posteriormente, a conversa versou sobre a entrada na universidade e a feitura da pesquisa propriamente dita. Esses tópicos possibilitarem estabelecer uma cronologia da vida do entrevistado e acabaram por se constituir em eixos estruturadores das entrevistas, que em conjunto com as ideias colhidas nas vozes dos pesquisadores possibilitaram estabelecer algumas categorias de análises. Sem deixar de atentar para os riscos da transcrição, de jogar "deliberadamente com a pragmática da escrita (principalmente pela introdução de títulos e subtítulos feitos de frase tomadas da entrevista) para orientar a atenção do leitor para os traços sociologicamente pertinentes que a percepção desarmada ou distraída deixa escapar” (Bourdieu, 2003, p. 709, itálico conforme o autor).

154Foram gravadas em fita K7, aparelho analógico e depois transcritas, compondo um volume de 345 páginas, assim como um acervo de aproximadamente 18 fitas.

155 O quadro explicita o nome atribuído a cada um dos entrevistados, (para preservar suas identidades), local e data da entrevista, assim como o total de páginas de cada entrevista transcritas. Como se pode observar, as entrevistas realizadas com os pesquisadores Laura e Célio ocorreram em duas sessões.

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A sala de aula como parte da vida e do ofício desses pesquisadores foi abordada, incluindo informações sobre a infância, a entrada no ensino fundamental e a escolha da profissão docente. Posteriormente, a conversa versou sobre a entrada na universidade e a feitura da pesquisa propriamente dita. Esses tópicos possibilitarem estabelecer uma cronologia da vida do entrevistado e acabaram por se constituir em eixos estruturadores das entrevistas, que em conjunto com as ideias colhidas nas vozes dos pesquisadores possibilitaram estabelecer algumas categorias de análises. Sem deixar de atentar para os riscos da transcrição, de jogar "deliberadamente com a pragmática da escrita (principalmente pela introdução de títulos e subtítulos feitos de frase tomadas da entrevista) para orientar a atenção do leitor para os traços sociologicamente pertinentes que a percepção desarmada ou distraída deixa escapar” (Bourdieu, 2003, p. 709, itálico conforme o autor).

2.3 Pesquisa qualitativa. Primeira coisa, não há verdades absolutas

Ao discorrer sobre as concepções de pesquisa que levou a campo, a informante Rosa declara,

(...) se você descobrir que não há verdades absolutas, você já andou 50%, então você não é o portador da verdade absoluta, elas são relativas, são temporais e elas podem ser revistas né? Então quando você tem isso claro, você já se coloca diferentemente (...) o que eu quero com o meu fazer, e quais são os fins, (...) quem é o homem do século XXI que eu quero formar no Brasil em relação ao resto do mundo né? Ou seja, particular e universal, é isto que eu tenho que ter claro na minha cabeça (...) (Entrevista realizada em 15-02-2007, p.21)

Sobre a pesquisa qualitativa, a entrevistada Nina diz:

Eu acho que ás vezes ela é feita, no sentido assim de achar que é mais fácil, mas pelo contrário acho que é muito mais difícil, ela exige uma fundamentação epstemológica mesmo e metodológica muito mais, (...) E que você vai ser neutra, isso não existe, (...) você entender que não existe uma única forma de ver a verdade e que sua forma de ver não é necessariamente a melhor né? e ter essa abertura esse olhar mais amplo, mais aberto pra tentar entender o ponto de vista e as formas de trabalho do outro. (...) (entrevista realizada em 19-12-2007, p.13)

Para Selma a ideia era contribuir,

Já era com a ideia de contribuir com a prática, eu parti da prática e a minha ideia era contribuir com a prática. Então eu fui descobrir qual era a teoria pra isso eu precisava de teoria né? E inicialmente eu brigava com a teoria por isso que eu passei pela contagem regressiva na universidade, não via sentido, ao

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mesmo tempo sempre estudei muito (...). (Entrevista realizada em 20-07-2007, p.31)

As três informantes acima citadas tocaram em pontos cruciais acerca da pesquisa qualitativa. Desde o rompimento com as concepções de um conhecimento absoluto, ao rigor metodológico, até a intensão de intervir na realidade investigada. Enquanto outra entrevistada discorre sobre a preferência quase que exclusiva dos pesquisadores em educação pelos métodos qualitativos e o abandono de abordagens quantitativas, Para Mara,

(...) na verdade a educação abandonou, deixou nas mãos dos economistas, e hoje quem fica falando sobre educação é a imprensa, por que o que a imprensa valoriza são os dados, (...) você vai ver quem está falando lá na mesa é no máximo demógrafo né, e os educadores? Eu acho que é um furo nosso é uma área que agente precisaria investir. Eu cheguei na pesquisa qualitativa quase que fluindo né, nem vi que existia outra coisa, (...) a gente lia nosso cenário, a gente lia os resultados de pesquisa, ainda não havia essa avalanche numérica e estatística que tem hoje, também sou contra, não precisa trabalhar dado de ontem porque já não vale o dado de antes de ontem, educação é cada dez anos para mudar uma coisa, não é essa coisa de ficar produzindo, produzindo dados, mas é preciso também, construir essa análise. A outra coisa (...) você vai fazer mestrado, doutorado, você vai fazer isso sozinho com um gravador na mão entrevistando alguém, todo mundo acaba fazendo isso que você está fazendo né, você vai entrar numa escola e vai pesquisar, um pouco a escolha acaba sendo o que é possível fazer. (Entrevista realizada em 06-02-2007, p.12)

Nesta passagem, a informante além de comentar as implicações do predomínio dos estudos qualitativos na educação, avalia a nossa posição do entrevistadora.

2.4 A entrada em campo: só a palavra pesquisadora, já criava uma celeuma incrível

Sobre a entrada em campo no momento da coleta de dados a entrevistada Joana revela as dificuldades para ser aceita como observadora na escola pesquisada, assim como a diferenças existentes entre um momento de pesquisa e um momento de ensino.

Então, eu precisava dizer, que eu era uma pesquisadora, só a palavra pesquisadora, já criava uma celeuma incrível. Precisava dizer que eu estava fazendo uma pesquisa, que gostaria de visitar a escola e, que gostaria de falar primeiro com a coordenadora, depois tem a anuência do professor, depois conversar com os alunos, que os dados seriam coletados, que haveria sigilo. Bom, aí a duras penas disseram que estava tudo (...) eu dava aula de Educação

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Física e saí, como professora (...) mais ou menos arrumada, uma calça, uma sandália, o cabelo em ordem, quando eu fui coletar dados, a professora estava dando aula, na quadra, muito suada, com os cabelos em pé, como a gente fica na prática. Então eu olhei pra mim, eu olhei pra ela e falei, eu tenho que mudar a minha roupa, porque isso pode criar um distanciamento (...) no modo de falar (...) negar informação porque eu não me identifico com ela”. (...) (Entrevista realizada em 02-04-2007, pp. 6,7)

A informante Mara revelou outras estratégias para entrada em sala de aula, de modo a escapar das armadilhas de obter dados meramente reproduzidos pela própria realidade criada para a pesquisa, ao descrever, (...) “eu chegava meio de surpresa, falava posso assistir sua aula hoje embora eu já tivesse combinado que ia fazer, tudo, mas... tem muita resistência a isso (...) um deles acabou colocando entrelinhas (...) que eu incomodava (...)”. (p.47). E continua,

(...) Eu senti uma rejeição muito grande dos professores no início da minha pesquisa tá, depois eu fui perceber que isso tinha haver com o fato de eu ter sido apresentada pela diretora da escola que acabou se afastando, então isso deu uma aliviada porque eu não tava mais identificada com a figura dela, algumas pessoas não gostavam, se você entra por aquele caminho, você fica identificada com aquilo né? (...) Qual é a imagem que elas tinham de mim, aparece muito mais a imagem que elas faziam de mim e da minha (pp. 54, 55)

(...) eu fiz duas entrevistas longas e uma terceira que foi quase uma conversa informal (...). Quando eu fui fazer a segunda eu já tinha deixado nas mãos de cada um dos entrevistados uma cópia da transcrição e a primeira pergunta que eu fiz foi você gostaria de mudar alguma coisa...não foi assim, você leu? Você gostaria de mudar alguma coisa, você ficou satisfeito¿ (Entrevista realizada em 06-02-2007 p. 58)

A mesma informante parece ter consciência da dificuldade que o ator social apresenta ao se colocar para uma investigação e das expectativas que se criam sobre as pesquisas, quando observa que as pessoas podem fazer o favor de aceitar o pesquisador, abrir esse espaço de conversa e até contribuir com a sua pesquisa, mas não são obrigadas. E continua mostrando como os resultados da pesquisa depende do equacionamento destas questões, no momento da coleta dados,

A primeira sensação das pessoas é de que elas são avaliadas, elas me pediram muito retorno nesse sentido “o que você achou, como você avalia como é que você percebeu” ta? e eu sempre dizia, dizia com toda a sinceridade, olha, eu nunca fui professora primária (...) Você vê aquela pesquisa que trata de tudo e não trata de nada e a busca de soluções muito a curto prazo que reduz a capacidade crítica do pesquisador, aquilo que poderia ser a sua contribuição, você deixa de dar pra tentar fazer papel do educador que é dar solução prática, acaba nem fazendo o

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que poderia ser o seu papel que é a longo prazo, criar novas maneiras de pensar, questionar o processo nas coisas mais básicas, mais estruturais, colocar perguntas (...) é aquela pesquisa que você lê assim “a professora não interage com alunos dessa, daquela forma, a professora não, não”.(...) (Entrevista realizada em 06-02-2007,pp. 59, 60)

Segundo a informante Laura relatou, com a recorrência dos pesquisadores aos métodos qualitativos de pesquisa, dos anos noventa para cá, garantiu-se uma maior aproximação da Escola com a Universidade, e com isso a saída dos pesquisadores dos corredores e salas das universidades, enquanto os professores vieram às universidades, observa a entrevistada em entrevista realizada em 04/04/2007 (p. 14).

O entrevistado Célio relatou como conseguiu entrar na escola para coletar os dados. “(...) uma coisa que facilitou, sem dúvida, foi o fato de que eu era professor da escola, né? Na época, eu era professor naquela escola, então isso facilitou a escolha das professoras também, nós conversamos com elas e escolhemos duas que toparam trabalhar (...)”, (Entrevista realizada em 27-04-2007, p.9)

As dificuldades de uma professora, em falar de sua prática em sala de aula foi revelada pela pesquisadora Nina que ao retornar para uma próxima conversa, mudou um pouco a sua forma de perguntar, utilizando-se dos dados da observação,

Então eu comecei, em vez de perguntar sobre a pratica eu falava, olha observei tal coisa assim, que você faz me parecendo interessante queria que você contasse um pouco como é que você chegou a isso tal, então favoreceu muito porque ai na verdade eu trouxe a pratica pra discussão (...) eu acho que isso me deu uma riqueza de informações muito maior com certeza, então eu tive entrevistas muito longas né, por isso que eu acabei parando na terceira. (...)A prática foi se tornando mais consciente pra elas, a propria prática foi se tornando mais clara. Na medida que isso ia acontecendo foi se tornando também mais facil pra elas falarem, não que elas não quisessem falar, más também por uma defesa, as vezes porque a gente não tem clareza daquilo que a gente faz e do porque que a gente faz.(Entrevista realizada em19-12-2007, p 06)

A mesma entrevistada observou que muitos pesquisadores vão a escola, coletar os dados para sua pesquisa com a idéia somente de discutiir a questão política, enquanto o professor se encontra desesperado com a aprendizagem do aluno e quer saber como ensinar e atenta para situações específicas da sala de aula, no momento dacolleta de dados,

Então, eu acho que o desafio maior realmente é você hã... digamos assim, se mover nesse ambiante, que ao mesmo tempo é muito familiar pra você, mais... e você naquele momento está olhando com os olhos do pesquisador né? então pra você não ficar no óbvil, no senso comum né? não é uma coisa descritiva, eu

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também não fui lá pra... fazer um trabalho laudatório, do trabalho da professora, eu tinha realmente que tentar compreender aquilo não é? (p. 23)

(...) a primeira vez que eu entrei na sala de aula dela, ela gritava, não é gritar, ela falava alto, pra qualquer teoria que você for (...) aí eu comecei a entender, eu comecei a perceber, eu comecei a entender que ela falava meio assim, ela ocilava, tinha uma coisa meio ocilante “ Hum não pense que eu não estou vendo, você já fez o seu serviço?” não era grito mas era uma coisa enfática, (Entrevista realizada em 19-12-2007, p. 27)

A informante conclui que do teórico pesquisador que chega apontando o dedo, o professor não suporta, pois ele entende a crítica a escola, diretamente ao trabalho dele. Mas defende que o professor da universidade se aproxime da escola fundamental porque isso oxigena a universidade.

2.5 As condições de realização da pesquisa: Tinha um marido quando começei depois acabei separando

Não se tem dados precisos de quantos pesquisadores casados se separam em meio ao desenvolvimento de um mestrado ou doutorado e as implicações disto para a pesquisa, sabe-se que não é pouco, informalmente são muitas brincadeiras que se ouve, muitas advertências de pesquisadores mais experientes em sala, já é quase um clichê entre nós esse fato. Inclusive a própria autora deste trabalho, enfrentou uma separação com duas crianças ainda pequena. O que será que isto quer dizer. Embora esta não tenha sido uma questão para o nosso trabalho, não podemos deixar de evidenciar que muito pouco se conhece sobre a vida e o ofício de professores universitários e pesquisadores.

A entrevistada Mara revela as dificuldades enfrentadas por ela, primeiro no início da pesquisa, 1989, quando ainda trabalhava como professora em uma escola básica da rede pública, a equacionar 30 horas de trabalho em sala de aula, mais as matérias do mestrado, e depois já como professora na universidade tinha que dá aula, viver com o salário e fazer as disciplinas, sem nenhuma possibilidade de afastamento, tendo contado com o apoio informal dos colegas. Conta,

No doutorado o que eu acho que foi mais difícil foi conciliar esse três papeis né? continuar dando aula (...), o papel de pesquisadora e mãe né... quer dizer apesar de que o pai sempre esteve lá presente, ajudando mais na época ele tinha um trabalho que exigia muitas horas fora de casa também, então não é uma presença que eu pudesse contar ali (...) essas coisas, criança pequena você sabe, não tem jeito que as exigências não dá pra ultrapassar. (Entrevista realizada em 06-02-2007 p.8)

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Para outra entrevistada a questão financeira foi muito difícil, e como se não bastasse ainda teve de enfrentar uma separação de seu casamento, Revela Rita,

(...) tinha o marido quando começei depois acabei separando a orientadora falou que era muito comum acontecer isso, a minha orientadora foi uma psicologa ela também não só foi a orientadora foi terapeuta também sabe na época foi tudo então talvez encheu a minha vida quer dizer desafios, eu sou uma pessoa que gosta de desafios você esta entendendo, eu gosto de enfrentar coisas e enfrento. (...) (Entrevista realizada 19-12/2007, p.34)

2.6 Relação com o orientador: eu me responsabilizei, leio, releio, discuto

Sobre as questões das relações pesquisador-orientador da pesquisa, a entrevistada Rosa revelou que para ela orientação é troca de experiência e orientação se faz a todo momento. Como professora universitária aposentada, a entrevistada declara que a orientação para ela é sagrada, absolutamente pessoal. Sem procurar generalizar, observa: “Quando um orientando precisa eu tenho que arrumar um lugar para ele, sábado domingo vem em casa, sem hora para acabar (...) é como eu falei, eu me responsabilizei, leio, releio discuto” (p. 14). E continua,

(...) muitos são de fora, não dá pra um orientando vim lá de Belo Horizonte e chegar aqui e falar: eu não vou te atender, eu já vi gente fazer isso, orientando telefonar e falar manda dizer que eu não vou atender. Ninguém, ninguém te obriga a fazer esse trabalho, você não é obrigado, sua responsabilidade é sua obrigação social, (...) você tem que passar a diante isto, se você acredita na educação. Muitas vezes o orientando não quer nem orientação, muitas vezes eles precisam falar com você porque eles estão numa sinuca de bico na vida deles, particular. Então você tem que escutá-lo ajudá-lo (...) (Entrevista realizada em 15-02-2007, p.14)

2. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para colocar um ponto, em uma reflexão ainda bastante longe de ser esgotada, faz-se necessário revelar o comprometimento de cada pesquisador professor entrevistado, com a sua área de trabalho. Esse encantamento mesmo com a educação, a sala de aula e a pesquisa conforme comenta a entrevistada Rosana,

Eu falava que as crianças não gostam da escola, mas isso é uma afirmação, não é uma constatação, mas algumas gostam outras não gostam, por que? A maior parte das crianças com as quais eu trabalhei eram de uma população desprivilegiadas, então elas gostavam da escola, tinha merenda (risos), tinha o

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contato com outras crianças, proteção, os pais vêm na escola essa proteção da rua, mas estudar mesmo, qual a criança que gostava de estudar? Então era muito difícil eu aceitar essa ideia de que estudar não fosse interessante e não fosse prazeroso. (Entrevista realizada em 25-08-2007, p. 3)

A entrevistada Edna relata seu envolvimento com a sala de aula,

(...) quando me formei em Pedagogia, eu fui ser professora das primeiras series do Ensino Fundamental, mais especificamente, trabalhei com terceira série e, mais uma vez a sala de aula me angustiou, eu sai da Faculdade com muitos sonhos, muitas teorias, muitos ideais e quando eu entrei na sala de aula eu me deparei com trinta moleques cheios de vida completamente distante de tudo que eu (...) conhecia, que eu sabia, que eu tinha me preparado e, estas crianças me arrancaram deste lugar teórico que eu vivia e me obrigaram a me construir como professora de um jeito diferente, que eu nem imaginava que construiria, muito engraçado nesta época eu tive um sonho que eu estava, numa praia e todos os meus alunos na beira do mar e que eles entravam na arrebentação das ondas e se embolavam e eu ia junto tentava segurá-los e me afogava junto com os grandes e era essa a sensação que eu tive, estar resgatando de dentro do mar com ondas e uma rebentação, tendo que lidar comigo nesta situação e com as crianças. (Entrevista realizada em 18-12-2007, p. 01)

As expectativas dos pesquisadores entrevistados, se revelaram também no dizer da informante Laura sobre o desejo que tem de ver chegar os estudos dos professores, na escola e na sala de aula, mas também nas políticas públicas de educação e que tais políticas tem de levar em conta aquilo que se tem pesquisado. Os entrevistados revelaram um comprometimento com o campo profissional, capazes de levar a cabo a tarefa de lecionar, pesquisar, orientar e produzir conhecimento, a despeito dos poucos investimentos que temos. Compreendemos que os investimentos na pessoa do professor e do pesquisador são urgentes para estabelecer referências metodológicas e conceituais. Assim como, a criação de espaços de formação/investigação a respeito da vida e do trabalho de professores e pesquisadores, cujos estudos sirvam não apenas para delinear as melhores estratégias de ação na sala de aula, mas também e, principalmente, para inspirar políticas em educação.

3. BIBLIOGRAFIA

Berger, G. (2009) A Investigação em Educação: Modelos sócio epistemológicos e inserção institucional. [versão eletrônica] Educação, Sociedade e Culturas. 28, 175-192.

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ID: 687

CAMINHOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA EM EDUCAÇÃO NO

BRASIL: UM ENSAIO BIBLIOGRÁFICO Autores: Wellington Machado Lucena Elda Alvarenga Lílian Cristiane Moreira Filiação: Faculdade Estácio de Vila Velha – PPGE/UFES Faculdade Estácio de Vitória – PPGE/UFES Faculdade Estácio de Vitória

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RESUMO

O presente texto resulta da realização de uma pesquisa bibliográfica, localizada no campo da História da Educação. Busca compreender as continuidades e descontinuidades na prática de pesquisa em educação no Brasil nos últimos anos. Considerando a complexidade da tarefa proposta, salientamos o caráter primário do estudo e o classificamos, assim, como um ensaio. Questiona-se: quais pressupostos teóricos, epistemológicos, metodológicos estão sendo utilizados nas pesquisas em educação no Brasil entre os anos de 1960 a início do século XXI? Quais opções teóricas, epistemológicas e metodológicas problematizam a educação a partir dos cotidianos escolares? Justifica-se a opção pelo período devido ao fato de 1966ser o ano em que se registra o primeiro programa de pós-graduação stricto sensu em educação no Brasil. As fontes utilizadas foram artigos acadêmicos focalizados no período histórico estudado. Conclui-se que a discussão a respeito da diversidade de possibilidades metodológicas na realização de pesquisas no campo da educação é muito relevante e necessária, dada a diversidade de temáticas e problematizações que podem ser produzidas no campo.

PALAVRAS-CHAVE

Pesquisa, metodologia, educação brasileira.

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1. INTRODUÇÃO

O presente texto resulta da realização de uma pesquisa bibliográfica, localizada no campo da História da Educação. Busca compreender as continuidades e descontinuidades na prática de pesquisa em educação no Brasil nos últimos anos, identificar as abordagens teóricas, metodológicas e filosóficas que têm caracterizado a produção de pesquisas no campo educacional e problematizar os impactos desses processos na educação brasileira. Considerando a complexidade da tarefa proposta, salientamos o caráter primário do estudo e o classificamos, assim, como um ensaio.

O estudo foi realizado a partir dos seguintes questionamentos: que pressupostos teóricos, epistemológicos, metodológicos e filosóficos estão sendo utilizados nas pesquisas em educação no Brasil entre os anos de 1960 a início do século XXI? Que opções teóricas, epistemológicas, metodológicas estão sendo utilizadas a fim de se problematizar a educação a partir dos cotidianos escolares? O objetivo principal do estudo foi evidenciar as principais tendências dos modos de pesquisas no campo educacional através do recorte histórico da pesquisa compreendendo os anos de 1960 a início do século XXI. Justifica-se a opção pelo período devido ao fato de 196156 ser o ano em que se registra o primeiro programa de pós-graduação stricto sensu em educação no Brasil. Vale destacar que, antes desse período, as pesquisas em educação eram realizadas sistematicamente em centros de pesquisa ligados ao Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (Inep), vinculados ao Ministério da Educação (MEC). As fontes utilizadas foram de caráter bibliográfico. Debruçamos-nos sobre artigos acadêmicos que versam sobre a temática, focalizados no período histórico estudado. A opção de apresentar o texto a partir de obras de autores na ordem cronológica deu-se com o intuito de ajudar o leitor a relacionar a produção das pesquisas educacionais ao contexto histórico e social do Brasil. Já que compreendemos a história como a [...] ciência do tempo e da mudança [e que] coloca a cada instante delicados problemas para o historiador [...] (Bloch 2001, p. 25), essa opção não deve ser confundida com o caráter linear que muitos atribuem à historiografia.

O levantamento bibliográfico realizado mostrou o quanto é importante a discussão a respeito da diversidade de possibilidades metodológicas na realização de pesquisas no campo da educação, dada a diversidade de temáticas e problematizações que podem ser produzidas no campo.

2. A PESQUISA: DILEMAS NA TRAJETÓRIA DA EDUCAÇÃO

BRASILEIRA

Dos anos 70 até os dias atuais, pudemos observar a criação de diversos programas de pós-graduação e centros de pesquisa em Educação no Brasil, assim

156 Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ) - 27 alunos matriculados.

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como uma grande diversidade de metodologias de pesquisa utilizadas por esses núcleos. É nesses programas e centros que se concentram os maiores grupos de pesquisa em investigações individuais e/ou coletivas, realizadas no campo da educação como forma de pensar e refletir a partir dos cotidianos, em diferentes níveis e práticas educacionais.

Nos anos 70, a pesquisadora Gouveia (1976) realizou dois estudos (1971 e 1976) acerca da produção de pesquisa no Brasil. Ela fez um levantamento nas comunicações apresentadas em reuniões da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)157 e na Revista Caderno de Pesquisa158. De modo geral, apesar do visível crescimento do número de pesquisas educacionais realizadas no intervalo dos dois estudos, ainda apresentavam um baixo número de investigações e um viés teórico ou metodológico pouco diversificado e definido.

A análise de Gouveia (1976) apresenta constatações que caracterizam a produção científica no Brasil, tendo como pano de fundo as pesquisas no campo educacional. Em relação às informações oriundas do levantamento realizado a partir da SBPC, aponta a autora que, entre 1970 e 1976, não ocorreram alterações significativas na produção de pesquisas educacionais. Já naquela época registrava-se a dificuldade de se obter financiamento de pesquisa, com destaque para os estudos relacionados à elaboração de currículos e à avaliação de programas, os quais foram os mais impulsionados no levantamento realizado159. Ao que parece, [...] o potencial de crescimento da pesquisa no período analisado centrava-se mais na orientação teórica dos/as pesquisadores/as e no equipamento metodológico de que dispõem do que no tipo específico de produtos que investigam [...] (Gouveia 1976, p.77).

No que se refere às informações da Revista Caderno de Pesquisa, Gouveia (1976) chama a atenção para o fato de que, semelhante ao que se percebeu na SBPC, a maior parte das pesquisas se relacionava à ‘avaliação de currículos ou programas’. A pesquisadora observa que estudos interessados em investigar fenômenos como a evasão, a repetência e o rendimento escolar avançaram nesse período inicial dos anos 70. A preocupação não era mais apenas em [...] caracterizar psicológica ou sociologicamente os sujeitos e o meio ambiente de que se origina [...] mas também em compreender a influência dessas características, como vieses independentes sobre a aprendizagem [...]. (Gouveia 1976, p. 78).

A despeito do avanço teórico-metodológico ressaltado por Gouveia (1976), devemos considerar as reflexões que a autora empreendeu a partir dos estudos supracitados sobre a relevência das pesquisas educacionais realizadas no Brasil na década de 70. Gouveia (1976) defende que a relevância é um aspecto delicado a ser considerado numa análise dessa natureza. A autora identifica duas ordens de

157 22ª e 28ª reuniões anuais realizadas respectivamente em 1970 e 1976.

158 Publicada pela Fundação Carlos Chagas (São Paulo). Foram analisados todos os artigos que apresentavam relatos de pesquisa dos números da revista de 1970 a 1974, totalizando 74 artigos

159 29,4% dos projetos financiados pelo Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, atualmente Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).

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relevância – a científica ou teórica e a prática ou social. Nesse contexto, assinala que embora as duas esferas incorporem juízo de valor, a relevância teórica pode ser mais objetivamente estabelecida, uma vez que os próprios programas de pesquisa podem orientar os/as pesquisadores/as a eles vinculados a se aproximarem da literatura relacionada ao seu campo de pesquisa. Por outro lado, a relevância social da pesquisa exige não somente aproximação teórica e de metodologia de pesquisa, mas também a produção de investigações [...] que contribuam para o diagnóstico ou a solução de um problema social [...] (Gouveia 1976, p.78). Isso porque

[...] o que se considera problema depende não só de fatos e de condições objetivas, mas principalmente, da maneira pela qual se ‘define’ a situação. Uma mesma taxa de analfabetismo pode não constituir problema em uma sociedade ou em determinado momento histórico e causar grande preocupação em outro. Por outro lado, num mesmo momento, certos fatos podem preocupar seriamente alguns indivíduos ou grupos sem que sequer sejam percebidos por outros. (Gouveia 1976, p.78).

Outra importante constatação de Gouveia (1976) diz respeito aos estudos sobre a organização escolar e aos sistemas administrativos em que as escolas estão inseridas. Para a autora, este locus de pesquisa ficou muito desguarnecido na década de 70 no Brasil, uma vez que sobre esse tema foram encontradas [...] apenas duas das cento e noventa e seis comunicações apresentadas na reunião da SBPC em 1976 e um dentre os cento e quarenta e três projetos financiados pelo Inep no período de 1972-76 (Gouveia 1976, p. 78).

Ainda em relação à década de 70, Cunha (1979) evidenciou a adoção de métodos ou técnicas de pesquisa herdadas de centros de pesquisa internacionais mais avançados nesta área, além do estrangeirismo. O autor destaca que predominavam também nos estudos brasileiros o tecnicismo, o sistemismo e o idealismo. Os principais questionamentos feitos por Cunha (1979) diziam respeito à falta de abordagens políticas e filosóficas próprias no trabalho dos/as pesquisadores/as brasileiros/as da época e às pesquisas não refletirem os cotidianos escolares. Em suma, as pesquisas em educação desenvolvidas no Brasil nas décadas de 40 e 50 estavam mais voltadas para os contextos psicológicos da educação, tendo a relação professor-aluno como principal foco de análise.

Mello (1983) reforça essa tese ao afirmar que a pesquisa educacional no Brasil nesse período foi fortemente marcada pela psicometria. A autora sinaliza ainda que:

Com a criação do CBPE [Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais] e dos CRPE [Centro Regional de Pesquisas Educacionais] que funcionavam em algumas capitais, e que se organizaram por iniciativa de educadores como Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira, a ênfase nos estudos psicológicos foi substituída pela preocupação com estudos sociológicos (Mello 1983, p. 68).

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Gatti (1983), em estudo a respeito da pós-graduação e da pesquisa em educação no Brasil, de 1978 a 1981, afirma que, somente a partir da criação do Inep, em 1938, do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais e dos Centros Regionais de Pesquisas Educacionais, os estudos científicos a respeito do pensamento educacional brasileiro ganharam espaço e força para sua produção. Até então, as pesquisas nessa área eram escassas e isoladas. Nesse contexto, ainda na década de 30, surgiram as tentativas iniciais de publicação sistemática de estudos direcionados para a área educacional, resultando, durante os anos 40 e 50, nas primeiras revistas especializadas em estudos educacionais160 (Gatti 1983).

A mesma pesquisadora aponta as décadas de 60 e 70 como significativas no âmbito da pesquisa educacional brasileira, pois cursos de pós-graduação começam a ser implantados e rapidamente expandidos. Segundo Gatti (1983, p. 4): Entre 1971/72, criaram-se dez cursos de pós-graduação em educação no sentido estrito, e até 1975 dezesseis estavam instalados. Essa expansão leva ao surgimento de grupos de pesquisa, à formação de professores no exterior (que posteriormente serão integrados aos Programas de Pós-Graduação de univerdiades brasileiras), à concentração de recursos humanos de alta formação, etc. Tudo isso vai compor o ambiente propício para o desenvolvimento das pesquisas em educação.

Entretanto, Gatti (1983) chama a atenção para o fato de que, mesmo com essa mudança positiva no que diz respeito à ampliação do número de programas de pós-graduação, muitas pesquisas careciam de melhor fundamentação teórica e metodológica. Ou seja, ao avanço quantitativo não equivaleu um avanço qualitativo. Gatti cita Mello (1981) afirmando que, também, buscava-se muito respaldo em métodos de outras ciências, como a psicologia e a sociologia, por exemplo, geralmente vindos de outras culturas, e essa importação acabava comprometendo as análises.

Não se pode esquecer, porém, que o a reflexão de Gatti (1983) recai sobre a primeira década dos cursos de pós-graduação em Educação no Brasil. A própria autora reflete sobre a necessidade de se esperar o amadurecimento desses cursos e, consequentemente, das pesquisas realizadas por seus alunos. Para tanto, estabilidade e continuidade eram necessárias.

A fim de verificar a produção científica na área de Educação de 1978 a 1981, Gatti (1983) realizou uma pesquisa analisando o tema e o conteúdo de dissertações, teses, artigos e livros publicados por alunos desses cursos de pós-graduação em tal período161. Nessa pesquisa, a autora analisou: a relação dos trabalhos desenvolvidos com as áreas de concentração a que estão vinculados, a distribuição regional dos programas de pós-graduação, os docentes e a formação no exterior, a produção dos

160 Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos e as séries Monografias, Estudos e Documentos, Pesquisa e Planejamento, ligadas ao CBPE e aos CRPEs; revistas Atualidades Pedagógicas, da Editora Civilização Brasileira, e Revista de Pedagogia, da USP (Gatti 1983). 161 A amostra foi definida com dados de diferentes órgãos: CAPES, CNPq, FINEP, SEPS-MEC e FAPESP, além de entrevistas com professores e alunos de seis pós-graduações e de seminários sobre pesquisa educacional.

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programas e suas condições, o corpo docente dos programas, a implantação do doutoramento em educação, a produção científica dos programas. Os resultados apontaram a necessidade de melhoria em muitos aspectos, como: romper com o modismo que faz com que determinados temas sejam os mais abordados nas pesquisas, ou que sejam escolhidos apenas por se relacionarem a linhas preferenciais das agências de financimaneto; a dispersão das linhas de pesquisa, resultante de fatores múltiplos como, por exemplo, a rápida expansão da implantação dos programas de pós-graduação; a dissociação entre pesquisa educacional e meio ambiente; a manutenção de equipes de pesquisa duradouras; a variação temática de orientações por parte de uma mesma equipe, dificultando aprofundamento e tradição em determinada questão educacional; o isolamento das pesquisas em educação dentro das pesquisas em ciências humanas e sociais; o problema de veiculação e troca de informações entre programas, ou mesmo dentro do próprio programa; o problema de circulação de informações pela baixa distribuição de publicações e revistas e de fluxo de bibliotecas; a falta de costume de produção para publicação por parte dos pesquisadores; os problemas de financiamento; os desafios que os problemas sociais são para os órgãos públicos; o pouco tempo que os docentes possuem para se dedicarem à pesquisa, dada a carga horária excessiva de aula e atividades administrativas; a pouca autonomia que os pesquisadores possuem em relação a políticas específicas e às metas das agências de fomento; o imediatismo nos resultados; a necessidade de participação maior/efetiva dos pesquisadores na elaboração da política em educação.

Assim, Gatti (1983) aponta que naqueles anos iniciais dos cursos de pós-graduação, muito ainda havia a mudar para que a pesquisa em Educação se fortalecesse e se firmasse de modo consistente.

Brandão (1986) ressalta que nos dez anos após a criação do primeiro programa de pós-graduação no Brasil, ocorreu uma taxa de crescimento significativa – uma média de dois cursos por ano. As pesquisas realizadas nessa época focam uma abordagem mais política, desenvolvendo estudos tipicamente econômicos, talvez pelos movimentos que ocorriam no cenário político brasileiro (Gatti 2001). As décadas de 60 e 70 enfatizam, principalmente, as investigações relacionadas aos investimentos necessários para o avanço da educação no país, ao retornarem a atenção para os currículos e os programas de ensino, novamente os estudos psicopedagógicos ganharam força nos centros de estudo. Brandão (1986) afirma que, de 1979 a 1984, foi observado um período de estabilidade no crescimento dos programas. No entando, o número de alunos continuou a crescer e [...] expandiu-se de forma impressionante (mesmo levando-se em conta a taxa cumulativa dos que estão no segundo e terceiro anos) de 27 (em 1966) para 2.235 (em 1976) [...] (Brandão 1986, p. 28).

Na década de 80, os estudos de cunho psicopedagógicos se ampliaram, trazendo discussões a respeito da formação do professor, alfabetização e ensino de disciplinas específicas nos diversos níveis escolares. Capitaneada pelos movimentos sociais emergentes nesta década, a pesquisa etnográfica ganha espaço na educação ao ser

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utilizada para investigar os pormenores da escola. Da mesma forma, a pesquisa qualitativa ganhou força neste período e foram sendo incorporadas outras metodologias de investigação, como os estudos de caso, a pesquisa participante, a pesquisa-ação, análises de discurso e de narrativas, estudos de memória, histórias de vida e história oral. Esses métodos buscavam discutir muito mais o aspecto social e menos o econômico da educação. Ainda sobre os anos 80, Mello (1983) afirma que, impulsionados especialmente pelos órgãos de fomento à pesquisa educacional, foram realizados encontros e elaborados documentos com vistas à análise e ao debate sobre essa área. Nesse movimento, destaca como principais preocupações da comunidade de educadores: [...] a pobreza dos recursos destinados à pesquisa; [a] falta de maior autonomia na definição de temas e métodos [e a] desvinculação da pesquisa da realidade sócio-educacional do país [...] (Mello 1983, p. 67).

Tendo como problematizações fundamentais as contribuições da educação para a transformação da sociedade e o papel da pesquisa para essa transformação, Mello (1983, p. 68) salienta:

Parace-me que os modismos e a facilidade de cooptação que caracterizam as escolhas dos temas e os enfoques da nossa pesquisa em educação e que, em última instância, são determinadas pelas condições históricas e estruturais da sociedade brasileira, realizam-se pela mediação de dois movimentos que são mutuamente associados e que só didaticamente poderiam ser separados [...] POBREZA TEÓRICA e INCONSEQUÊNCIA METODOLÓGICA.

Para Mello (1983), a pobreza teórica se dá devido ao fato de os/as pesquisadores/as não terem, à época, um modelo interpretativo que desse conta de compreender os fenômenos próprios da educação. Utilizavam-se, via de regra, os modelos baseados na Psicologia, na Sociologia e na Economia, o que acarretava a redução da educação apenas a uma das dimensões que a compõem, ferindo o caráter complexo dos contextos educacionais. Mello (1983, p. 69) propunha:

[...] não é possível chegar à análise e ao questionamento da política educacional estudando questões psicopedagógicas. Ao contrário, supô-las separadas indica sérias dificuldades em se abordar a educação em sua totalidade. [...] a dificuldade em elaborar modelos teóricos que articulem as muitas dimensões constituintes da totalidade da educação determinou que ela se reduzisse, ou ao atacado com o sociologismo e o economicismo, ou ao varejo, com o psicologismo, o tecnicismo e o psicopedagogismo [...] a superação das falhas da pesquisa educacional depende de conseguirmos entender claramente a natureza da própria educação, e seu papel, potencial e limites na transformação social da sociedade brasileira hoje. [...] Para superar essa inconsequência metodológica, não podemos escapar de um questionamento sério a respeito de quais concepções de educação inspiram nossa prática de pesquisa, o que

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implica em entender um pouco os modelos metodológicos dominantes nas ciências humanas.

Para Brandão (1986), avaliar o conhecimento produzido na área da educação pressupõe a análise das teses e dissertações apresentadas nos programas de pós- graduação no país. Reconhece, no entanto, que muitos desses trabalhos não se constituem como pesquisas. Ele caracteriza essas produções como trabalhos acadêmicos mais extensos, exercícios de estudo realizados no seio dos programas. Mas não se constituiam como prática de pesquisa. O autor destaca os impactos que o reduzidos prazos para a entrega final dos trabalhos têm sobre os textos finais apresentados como relatórios de pesquisa. Salienta que, ao qualificar a maior parte desses trabalhos como pesquisa, corremos o risco de [...] desqualificar a pesquisa e contribuir para reforçar o estigma de que as ciências humanas constituem “área menos exigente” [...] (Brandão 1986, p.25). Observa, também, que existia um incentivo por parte do governo para que a produção de pesquisas na área educacional ocorresse no mesmo ritmo em que ocorre no campo tecnológico. Todo esse processo acarreta sérios prejuízos para a pesquisa em educação nos anos 80.

Gatti (2001) também faz uma reflexão a respeito dos métodos de pesquisa aplicados na área da educação no decorrer do século XX. Segundo a autora, foi somente no fim da década de 60, quando foram implantados os cursos de pós-graduação, mestrados e doutorados nas universidades, que as pesquisas amadureceram. Gatti (2001) cita Gouveia (1971, 1976) ao falar dos métodos de pesquisa que predominaram: primeiramente um enfoque metodológico; em seguida (anos 50), voltado para as condições culturais e tendências de desenvolvimento da sociedade brasileira; nos anos 60, foram produzidas pesquisas de natureza econômica. Na década de 70, houve um avanço em relação à ampliação do leque de temas abordados e em relação à metodologia.

[...] os estudos começam a focalizar mais equitativamente diferentes problemáticas: currículos, caracterizações de redes e recursos educativos, avaliação de programas, relações entre educação e profissionalização, características de alunos, famílias e ambiente de que provêm, nutrição e aprendizagem, validação e crítica de instrumentos de diagnóstico e avaliação, estratégias de ensino, entre outros. [...] Passou-se a utilizar tanto métodos quantitativos mais sofisticados de análise, quanto qualitativos e, no final da década, um referencial teórico mais crítico, cuja utilização se estende a muitos estudos. (Gatti 2001, p. 67).

É nítido o avanço que ocorreu na década de 70, mas Gatti (2001) ressalta que o contexto político e social da época, abarcando também o início dos anos 80, era de cerceamento de liberdade de expressão. Assim, por mais que se expandisse o leque de temas/tipos de pesquisas, predominaram, nessa época, os estudos que priorizavam a técnica em detrimento das questões sociais. Em um segundo momento

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dos anos 80, com o surgimento e o fortalecimento de movimentos sociais, há uma mudança de tendência que encaminhou as pesquisas para temáticas sociais, reflexivas, com influência de teorias marxistas.

Seguindo a cronologia, a mesma pesquisadora apresenta a década de 90 (e fins dos anos 80) como um período que recebe um número expressivo de pesquisadores que se formaram no exterior, atendendo à demanda da expansão do ensino superior e da pós-graduação no Brasil. A inserção desses/as pesquisadores/as no quadro brasileiro de pesquisas fez com que se diversificassem os trabalhos tanto temática quanto metodologicamente. Além disso, começam a aparecer estudos voltados para a análise das pesquisas educacionais realizadas até então, no que diz respeito à sua consistência e significado. Ainda nesta década, firmaram-se grupos de pesquisas com temáticas variadas:

[...] alfabetização e linguagem, aprendizagem escolar, formação de professores, ensino e currículos, educação infantil, fundamental e média, educação de jovens e adultos, ensino superior, gestão escolar, avaliação educacional, história da educação, políticas educacionais, trabalho e educação. (GATTI 2001, p. 68-69).

Segundo a autora, a expansão ocorrida acabou gerando alguns problemas teóricos e metodológicos, em decorrência de serem buscadas categorias em outras áreas de estudo (sociologia, economia, psicologia, psicopedagogia), sem conseguir dar consistência a questões especificamente educacionais. Também houve a influência de modelos de pesquisas exteriores (Estados Unidos, Inglatera, França), que chegavam ao Brasil com certo atraso e sofrendo interpretações superficiais de seus fundamentos. Outra fragilidade apontada é a escolha de problemas de pesquisa de caráter superficial e/ou imediatista, com perguntas que buscavam solucionar pequenos impasses cotidianos que não são, segundo Gatti (2001), próprios da investigação científica.

Citando Luna (1988) e Franco (1988), Gatti (2001) reflete sobre a existência ou não de conflitos teórico-metodológicos nas pesquisas dos anos 80. Para Luna (1988 apud Gatti 2001, p. 72), [...] se o pesquisador explicita sua pergunta, ou problema, com clareza, elabora os passos que o levam a obter a informação necessária para respondê-la e indica o grau de confiabilidae na resposta obtida [...] os conflitos metodológicos serão falsos, pois possivelmente apresentarão um referencial adequado para a proposta. Já Franco (1988) não entende que a adequada formulação desses requisistos apresentados por Luna seja suficiente para garantir a consistência da pesquisa, pois metodologia não define teoria, vice-versa.

Gatti (2001) argumenta que parte desses conflitos teórico-metodológicos resulta da expansão dos métodos qualitativos (análise de conteúdo, estudo de caso, pesquisa participante, estudos etnográficos, antropológicos, etc.), tomando espaço dos métodos experimentais e empiristas que, com seus conceitos de neutralidade e objetividade, sofriam críticas sobre a capacidade explicativa que possuíam para pensar os fenômenos educacionais.

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Houve, então, um embate entre métodos quantitativos, com suas medidas bem definidas, suas estatísticas avançadas, e métodos qualitativos que combatiam as pesquisas traduzidas em números. As críticas foram tantas que as pesquisas quantitativas tiveram uma redução significativa em sua produção (Gatti 2001). Entretanto, a autora aponta que a expansão das pesquisas qualitativas não garantiu a qualidade das produções, chamando a atenção para que os estudos de caráter qualitativo não [signifiquem] uma banalização (Gatti 2001, p. 75).

A autora ainda ressalta que o importante, independente do método adotado, é que haja domínio de técnicas e abordagens, o que não ocorre, segundo pôde ser constatado por ela em pesquisa realizada. Alguns trabalhos examinados por Gatti (2001) apresentaram fragilidades em vários aspectos: hipóteses, variáveis, uso inadequado de modelos estatísticos, problemas de interpretação, falta de embasamento teórico, metodologia confusa, entre outros aspectos mais.

Assim, segundo Gatti (2001, p. 76), [...] nem tudo o que se faz sob o rótulo de pesquisa educacional pode ser realmente considerado como fundado em princípios da investigação científica.

Dentre as pesquisas qualitativas que tiveram sua ascenção nas últimas décadas do século XX está a pesquisa com os cotidianos, que ganha força em Programas de Pós-Graduação stricto sensu de algumas universidades brasileiras. De acordo com Alves (2008, p. 20), [...] só é possível analisar e começar a entender o cotidiano escolar em suas lógicas, através de um grande mergulho na realidade cotidiana da escola. Mais tarde, foi incorporada à pesquisa com os cotidianos a ideia das redes de conhecimento e de tessitura de conhecimento em redes.

Para Alves (2008), essas pesquisas promovem no pesquisador o sentimento de se fazer parte do cotidiano que está sendo pesquisado, era preciso se desprender do arcabouço teórico-metodológico aprendido e trabalhado, indo além da pesquisa com objetos, passando, então, a trabalhar com processos e movimentos que estavam operando no cotidiano em que se encontrava o pesquisador. Alves (2008), como uma das precursoras das pesquisas com os cotidianos no Brasil, deixa explícito que compreender esse método de pesquisas só é possível a partir do momento em que o pesquisador o experimenta.

Segundo Alves (2008, p. 21), [...] como a vida, os cotidianos formam um ‘objeto’ complexo, o que exige também métodos complexos para conhecê-lo. Dessa forma, a autora sugere quatro aspectos que, em sua opinião, são necessários discutir a fim de entender essa complexidade. O primeiro é o movimento por ela denominado de ‘o sentimento do mundo’, fazendo referência ao poeta Carlos Drummond de Andrade. Nesse movimento, é preciso mergulhar com todos os sentidos no que se deseja atuar. Mergulhar no cotidiano é a proposta inicial. Para o segundo movimento, a autora dá o nome de ‘virar de ponta cabeça’, nesse sentido cabe ao pesquisador pensar de outra forma, com outras possibilidades os métodos de pesquisa tradicionalmente utilizados. O terceiro movimento, a autora chama de ‘beber em todas as fontes’, pois é necessário ampliar as discussões, incorporando a ideia de complexidade, sabendo lidar com a diversidade, o diferente e o heterogêneo. E, por fim, o movimento

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denominado ‘narrar a vida e literaturizar a ciência’, ou seja, para a autora é imprescindível uma nova maneira de escrita, para além do discurso teórico e conclusivo (Alves 2008).

Trazendo a discussão para os dias atuais, as narrativas surgem como forma de apresentar a produção dos dados da pesquisa, e os relatos dos sujeitos praticantes dos cotidianos são tidos como expressões das práticas cotidianas. Conclui-se que as expressões em forma de narrativa rompem com a dureza científica da academia e com os tradicionais métodos de pesquisa. Usando a narrativa como método de pesquisa, incluímos também a conversa oral e as rodas de conversa. Nesse sentido, cada palavra, cada expressão faz parte da produção de dados e cabe ao pesquisador não selecionar as melhores ou mais válidas falas, pois todas as que são produzidas no cotidiano da pesquisa são potentes e possíveis de serem utilizadas para futuras problematizações.

As teses e dissertações produzidas nos Programas de Pós-Graduação em Educação no Brasil têm sido produzidas adotando, dentre outros métodos, as narrativas. Em suma, as diversas opções teóricas, epistemológicas e metodológicas, cada uma com a sua dimensão e aposta política, fazem partem de uma vasta produção acadêmica no campo da educação brasileira e têm contribuído muito para o campo.

Ferreira (2009) também reflete sobre os métodos de pesquisa em educação no Brasil. Segundo ela, a partir das principais publicações de autores que se dedicam ao assunto, as pesquisas em geral atuam em duas linhas metodológicas, a pesquisa positivista e a pesquisa com base nas teorias críticas. No entanto, alguns grupos de pesquisadores com grande atuação no cenário de educação no Brasil têm sem debruçado sobre as pesquisas com uma abordagem pós-crítica e pós-moderna da educação.

A autora reconhece os avanços dados na área de pesquisa em educação, mas destaca alguns pontos que ainda carecem de melhoria:

a) uma concepção de ciência que alie os fenômenos educacionais e a pesquisa, sustentada teoricamente e divulgada nos meios educacionais, evitando a confusão teórica e apoliticidade com que se revestem muitas pesquisas nos dias atuais;

b) uma opção teórico-metodológica efetivamente embasada nos referenciais teóricos dos professores-pesquisadores, sustentável e evidenciada a partir dos caminhos da pesquisa;

c) uma avaliação e divulgação de resultados das pesquisas, com periodicidade, com permissão de acesso à comunidade acadêmica à base de dados atualizados e a periódicos que efetivamente sejam publicados em tempos regulares. (Gati 2009, p. 52-53).

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Compreendeu-se, a partir do levantamento realizado, a ampla discussão que tem sido produzida no campo da metodologia de pesquisa ao longo do século XX e início

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do século XXI no que diz respeito às conceptualizações teóricas que embasaram as pesquisas realizadas nos programas de pós-graduação, particularmente em Educação, das universidades brasileiras entre o período de 1960 a início do século XXI. Ao longo do estudo, observou-se uma grande diversidade de metodologias de pesquisa utilizadas por esses programas de educação. É nesses programas e centros de pesquisa que se concentram os maiores grupos de pesquisa em investigações individuais e/ou coletivas, realizadas no campo da educação como forma de pensar e refletir a partir dos cotidianos em diferentes níveis e práticas educacionais.

Inicialmente, em meados da década de 70 do último século, os programas de pesquisa se dedicavam a avaliar os currículos e os programas escolares das escolas brasileiras. Os estudos estavam interessados em investigar fenômenos como a evasão, a repetência e o rendimento escolar. Além disso, emergiu a adoção de métodos ou técnicas de pesquisa herdadas de centros de pesquisa internacionais mais avançados nesta área. Além do estrangeirismo, predominavam nos estudos brasileiros o tecnicismo, o sistemismo e o idealismo. Posteriormente, somente a partir da criação do Inep, em 1938, e de outros órgãos de fomento à pesquisa, os estudos científicos a respeito do pensamento educacional brasileiro ganharam espaço e força.

Na década de 80, os estudos de cunho psicopedagógicos se ampliaram, trazendo discussões a respeito da formação do professor, alfabetização e ensino de disciplinas específicas nos diversos níveis escolares. O principal orientador dessas pesquisas foram os movimentos sociais emergentes nesta década. Ganha espaço na educação a pesquisa etnográfica, ao ser utilizada para investigar os pormenores da escola. Da mesma forma ocorreu com a pesquisa qualitativa e outras metodologias de investigação, como os estudos de caso, a pesquisa participante, a pesquisa-ação, análises de discurso e de narrativas, estudos de memória, histórias de vida e história oral.

Posteriormente, na década de 90, houve um número expressivo de pesquisadores que se formaram no exterior, atendendo à demanda da expansão do ensino superior e da pós-graduação no Brasil. Esses pesquisadores fizeram com que se diversificassem os trabalhos tanto temática quanto metodologicamente. Ainda nesta década, firmam-se grupos de pesquisas com temáticas variadas: alfabetização e linguagem, aprendizagem escolar, formação de professores, ensino e currículos, educação infantil, fundamental e média, educação de jovens e adultos, ensino superior, dentre outros. Ao final do século XX e nos primeiros anos do século XXI, destaca-se a pesquisa com os cotidianos, que ganha força em Programas de Pós-Graduação stricto sensu de algumas universidades brasileiras.

Sabemos da importância deste estudo a fim de se discutir a respeito da diversidade de pesquisa realizada no Brasil e seus desdobramentos nas políticas educacionais, assim como nos cursos de formação de professores, nas práticas escolares e em outros contextos de produção científica. Assim, consideramos a necessidade de outros e permanentes estudos sobre o fazer pesquisa no campo da educação nos programas de pós-graduação das universidades brasileiras.

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BIBLIOGRAFIA

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ID: 754

Um novo caminho metodológico para compreender infância e

escrita de mulheres latino-americanas: um estudo de gênero a

partir de Norbert Elias Autor: Nubea Rodrigues Xavier Filiação: Grupo de Pesquisa Educação e Processo Civilizador/ GPEPC/Universidade Federal da Grande Dourados/UFGD

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RESUMO

O trabalho tem como objetivo analisar as memórias literárias de autoras latino-americanas buscando compreender a formação de comportamentos infantis a partir da perspectiva de gênero. Buscaremos nos pautar em uma nova categoria de análise, utilizando a sociologia, a partir dos estudos de Elias (1994) sobre a modelação dos comportamentos, a individualização da criança e as relações de poder, surgidas nas relações familiares e de formação educacional. A literatura será a possibilidade de enxergarmos a produção de identidades pelos discursos advindos da escrita das autoras. A proposta visa averiguar as proximidades e distanciamentos entre as infância(s) brasileiras, argentinas e uruguaias, descritas sobre as memórias de autoras mulheres entre o início do século XX, delimitando alguns elementos ou configurações que permeiam a convivência entre meninos e meninas. Como resultados, consideramos que a poética, a imaginação, a criatividade das autoras aparecem sob as reminiscências de suas infâncias, sobretudo, pelos sentimentos, atitudes e posturas das crianças em relação ao adulto e a maneira como vamos constituindo e construindo nosso saber a respeito da vida e das nossas relações sociais, assim, as obras literárias nos permitem indicar caminhos para se pensar as infâncias existentes na América Latina e, consequentemente, as relações de poder.

PALAVRAS-CHAVE

Relações de poder, escrita de mulheres, criança latino-americana.

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1. INTRODUÇÃO

O artigo tem como objetivo discutir as relações de gênero, a partir das memórias de infância das autoras da América Latina como Brasil, Argentina e Uruguai, em que buscamos compreender como a formação dos comportamentos de meninos e meninas.

Tomaremos, primeiramente, como objeto de estudo a categoria infância, analisando a criança a partir da concepção disposta por Farias Filho (2004); Sarmento (2008); Gouvea (2009), de que há várias infâncias, independentemente de classe social, econômica, política ou religiosa, há de se levar em conta, as inúmeras maneiras de se compreender a criança elaborando, assim, as infâncias existentes em determinado período histórico-social, visando-a, não somente, dentro de uma perspectiva social ou cultural, mas a partir de várias concepções do ser criança. Tentaremos colocá-la num lugar de destaque, sem desmerecê-la como um simples objeto de estudo e nem como aquela que não sabe menos, destarte, como aquela que sabe outra coisa. (Cohn, 2006).

As crianças, desde muito pequenas, produzem cultura, participam de uma maneira ativa de seus grupos sociais, tanto aprendem, como também, elaboram conhecimento, seja pela observação cotidiana das atividades dos adultos, seja no seu próprio aprendizado.

A escrita das autoras será instrumento de percepção sobre as diferenciações entre meninos e meninas, que aparecem como marcas, indícios nos discursos dessas autoras que determinam que o masculino se sobreponha sobre o feminino, entretanto, em dadas configurações têm uma luta que se determina de acordo com as relações sociais dos quais essas crianças estão inseridas. Elas não são totalmente passíveis de modelação ou normatização, elas também, interagem, participam, opõem-se às normas ou regras.

Para uma análise sociológica da criança, nos pautaremos nos estudos de Elias (1994) sobre a modelação dos comportamentos, a individualização da criança e as relações de poder, surgidas nas relações familiares e de formação educacional.

A literatura será a possibilidade de enxergarmos a produção de identidades pelos discursos advindos da escrita das autoras, visualizando que produção é elaborada sobre os sujeitos e como se organiza as práticas de construção da mulher.

Tentaremos buscar nas memórias das autoras, elementos, indícios e vestígios que nos possibilitem verificar as aproximações e distanciamentos das infâncias latino-americanas acerca da formação dos comportamentos infantis, mediados pelas relações de poder como desvelamento de uma construção social sobre a mulher, já que:

Na oposição entre feminino e masculino, o homem quem detém a hegemonia, e a corporidade feminina será utilizada para justificar as desigualdades sociais, uma vez que é vinculada a feminilidade ao corpo, e a masculinidade, à mente, o que acaba por restringir as ações das mulheres, confinadas às exigências

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biológicas de reprodução, deixando assim aos homens o campo do conhecimento e do saber. (Abeu 2010, p. 69)

A partir desse pressuposto, queremos compreender como as meninas e meninos vinculados em início do século XX foram elaborados conforme suas formações familiares e sociais, em relação à questão de gênero, além de saber como as normas e regras foram instituídas e adequadas aos comportamentos.

1.1. As infâncias na literatura

As memórias escolhidas tratam-se de autoras de diferentes países, com particularidades e peculiaridades voltadas ao seu contexto social e histórico acerca de seu período de infância.

A escolha se fez, por elas terem em comum o período histórico vinculado às suas memórias e por se tratar de rememorações que perpassam sobre construções sociais sobre meninos e meninas em fase de formação.

Buscamos compreender quais as características próximas ou mesmo díspares referentes aos países como Brasil, Argentina e Uruguai que podem elucidar modelos de infâncias que permeiam um ideário acerca das crianças da América Latina, bem como, delimitar alguns elementos ou configurações que permeiam a convivência entre meninos e meninas.

A obra brasileira, Olhinhos de gato de Cecília Meireles permeia o cotidiano de uma família de classe média alta que vive entre as décadas de 1939 e 1940 num bairro tradicional do Rio de Janeiro de uma menina atenta, sensível e curiosa que retrata os afazeres, o trabalho e ensinamentos de pessoas de sua família, empregados, amigos, vendedores, amas e negros.

A menina vai relatando sua descoberta do mundo, suas angústias, alegrias e curiosidades em meio à pequenez do qual se enxerga. A rotina da cozinha, o farfalhar das roupas enfeitadas, o cantar do passarinho, o silêncio dos pequenos bichos e o cheiro que vem do quintal da fazenda, repleto de frutas e flores, vão dando vida à autobiografia da autora Cecília Meireles.

A autora dispõe seus personagens através de denominações carinhosas e sob a ótica infantil, Olhinhos de Gato é a própria menina narradora, a avó, Boquinha de doce; a ama, Dentinho de arroz. Toda narrativa poética vai desenrolando-se a partir do cotidiano simples e enigmático da menina Cecília, em que tantos humanos como os bichos fazem parte de um mesmo cenário, de curiosidade e imaginação.

Seus medos, dúvida e apreensão sobre a perda de seus entes queridos e a morte aparecem de maneira enfática durante toda sua memória, como flashes que oram são mais nítidos ou mais obscuros, em meio às inúmeras histórias, rituais antigos e diversas superstições. E, é nesse cenário que as mulheres vão sendo descritas pela menina narradora, são elas que compõem o mundo imaginário da menina, contam, apresentam, dispõem a vida a partir da fantasia e irrealidade.

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A avó, a ama, a cozinheira, as vizinhas, as amigas da avó aparecem realizando os afazeres domésticos, as tarefas rotineiras, usando roupas luxuosas ou nada confortáveis, fazendo as fofocas, cuidando e instruindo as crianças. São elas que apresentam os ditos populares, o folclore, as lendas, as crendices e a imaginação.

A menina vai sendo formatada, educada, instruída pelas mulheres que compõem os espaços das brincadeiras, do alimento, do momento de aprender a se comportar, de moldar-se aos padrões sociais.

A concepção da menina que tudo é finito é o que a deixa triste e preocupada com a vida, ela busca refúgio nos guarda-vestidos, nas caixas esquecidas, no cheiro de mofo que podem deixá-la refugiar-se do seu medo da morte e na sua decepção sobre a velhice.

O masculino apresenta-se como a força, o trabalho, a certeza e a realidade, os homens são os trabalhadores, os vendedores, os moleques que possuem a liberdade de ir e vir, de fazer e desfazer o que as meninas compuseram como organização e estrutura da vida.

Para a menina-personagem, os meninos, aparecem como aqueles que não precisam se encaixar em normas, em roupas desconfortáveis, em brincadeiras solitárias e de reprodução do cotidiano feminino.

Eles têm ousadia, robustez, fibra, as mulheres, por sua vez, são aquelas que se dispõe de certa sutileza, fragilidade, subjetividade.

A relação masculina e feminina vai se compondo como opostos em que, o primeiro, se impõe sobre o segundo, formalizado por qualificações e conceitos que perfazem um ideário da mulher como aquele que é menor, inferior e imperceptivelmente diminuto em relação ao homem.

A obra da autora argentina Norah Lange, Cuadernos de infância, publicada em 1939, retrata um cotidiano de uma família de classe média alta que viveu em Mendoza, Argentina em meio sua ascensão e dificuldades financeiras, permeados por mudanças de casas e adequações sociais da família.

As memórias da menina narradora enfatizam a formação de cinco irmãs e um irmão, através da instrução de sua mãe, empregadas e preceptora. Suas memórias são descritas em meio aos grandes cômodos da casa, a magnitude dos móveis, do casarão. Suas percepções, dúvidas, curiosidades estão acerca dos lindos jardins, às regras e determinações de sua preceptora e mulheres mais velhas.

Havia uma distinção quanto ao tratamento e cuidados com o irmão e as demais irmãs, além disso, a menina personagem era vista de maneira diferente em relação às outras, já que seu estereótipo de beleza não se encaixava no que a família, amigos, visitantes e empregados definia como belo.

A menina vai mostrando sua família a partir da perda de seu pai tem um antes e depois da morte dele, de forma que a mãe e as irmãs sofrem com as mudanças advindas pelo ocorrido, num primeiro momento, a família estruturada, amparada; após a morte, a ausência, as dificuldades financeiras e de estruturação para a mãe que se vê perdida perante o ocorrido e, não sabe como tomar as rédeas da situação.

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As mulheres são descritas pelas roupas, pelos quartos de costuras, pela cozinha, pelos jardins, pelos cuidados e educação das crianças, aparecem de maneira sorrateira nos quintais, nos quartos e cozinha da casa. São elas responsáveis pelas brincadeiras, lazer das meninas e ludicidade das meninas; os homens aparecem no curral e lidas com animais, com as reuniões às portas fechadas no escritório e com o trabalho intelectual.

A diversão nas brincadeiras de roda, os momentos de silêncio e solidão da menina, a adequação às roupas pesadas e repletas de laçarotes e a preocupação com aparentar-se bonita eram elementos que perfazem toda a narrativa de Norah Lange. Suas inquietudes e ansiedade por compreender as diferenças entre as irmãs e ao irmão pequeno são persistentes durante suas memórias.

A menina Norah vai dispondo suas angústias e suas dúvidas a partir das posturas e comportamentos das mulheres de seu convívio se questionam sobre a forma como tudo é realizado a partir de um modelo, por exemplo, as brincadeiras em grupo, em que todas tinham que fazer sempre de maneira igualitária, e ela, se opunha porque queria fazer algo sozinha ou diferente. Por não seguir um padrão de beleza e estereótipo de menina, sentia certo menosprezo pelos visitantes ou empregados.

Havia uma formação muito rígida de comportamentos, como se portar, como adequarem-se perante as visitas, aos estudos e até mesmo às brincadeiras, as mulheres descritas na obra eram aquelas que mostravam a realidade de maneira mais subjetiva às meninas; os homens perpassam a ideia de vitalidade, violência, fortaleza e realidade.

Para a uruguaia Juana Ibarbourou, em sua obra Chico Carlo, publicada em 1944, sua autobiografia acerca de seu primeiro amor, em que ela, a personagem principal se passa como Suzana, uma menina muito inquieta e curiosa que retrata um pequeno lugarejo, a partir de seus espaços públicos e privados, descritos por insignificância e desimportância, como as paredes, os muros, as estátuas, o cemitério, o cachorro.

A menina vai elaborando suas memórias a partir da pequenez que se faz a infância, seus sonhos, suas indagações, seus desejos, sua religiosidade e crendices são elementos que definem a menina que congregam realidade e imaginário. Ela vai nos apresentando a menina e as mulheres, mãe, tia, amas, escravas, professoras, vizinhas, de sua narrativa como aquelas que a ensinam como ser comportada, como agir mediante determinadas situações, como a fragilidade feminina se elabora perante a força e determinação masculina.

Aprende que as mulheres é que são as guardiãs das tradições que trazem a religiosidade e fluidez das tarefas que competem, somente, a elas, a ser concretizadas, como o preparo dos alimentos, o cuidado com a casa, com as visitas à igreja ou ao cemitério, com a ‘contação’ de histórias, com a educação das crianças, com a responsabilidade de colocar-se no lugar do homem que sairia para a guerra.

Ademais, pelo contexto histórico da guerra, os homens são descritos como heróis, como domínio, valentia e poder. Ao seu primeiro amor, Chico Carlo, a menina se contrapõe como aquela que seria a sonhadora, a fútil, volúvel, delicado e superficial, e ele, destarte, o idealizador, o consciente, o selvagem e intenso.

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Nas três obras analisadas, há uma elaboração binômia entre o masculino e feminino, as reminiscências das autoras não as deixam distanciar do que foi a cultura social e histórica, em início do século XX, sobre o estereótipo formalizado para determinar o lugar social da mulher, como aquela que se restringia aos cuidados do lar e da família.

Conforme dispõe Bourdieu (1996), as autoras não podem ser destituídas de seu campus social, em que o artista e sua arte são formulados conforme uma autonomia relativa, vinculado a um campo que impõe suas condições de relações objetivas e dentro de um campo social, como um reflexo daquilo que o autor vive, já que este é elaborado por lutas e manutenção de poder, o que determina reflexos em todos os envolvidos no campo literário, neste caso, temos que avaliar não o artista, mas sim, o campo da produção artística.

O campo literário, do qual estão vinculadas as autoras, atua como um espaço de forças que interfere sobre as pessoas que estão em seu interior, sendo de uma maneira diferenciada conforme a posição que este ocupa em seu meio social, o que poderia implicar em certa concorrência.

Analisar, dessa maneira, a escrita dessas autoras mediante suas memórias de infâncias, é tentar compreender como se compôs a formação da criança através de suas relações familiares e de instrução informal acerca de comportamentos, imposição de regras e normas que foram legitimadas pelos sujeitos e suas subjetividades.

Depreendemos que as infâncias existentes nos três países de referência, não se distanciam das maneiras e hábitos instituídos aos comportamentos ao que tange a elucidação da menina em diferenciação ao menino.

1.2. As relações de gênero e de poder nas configurações sociais

Quando nos propusemos a analisar as memórias de autoras sob uma perspectiva da infância, queríamos averiguar se a escrita de mulheres nos apresentaria algumas diferenças em relação à produção do ser menina como algo relevante ou com distinção valorativa.

Pudemos observar que as autoras não conseguiram fugir ao habitus social sobre a função da mulher e na elaboração da menina enquanto ser social.

As memórias das autoras constituíram meninas que se concretizam através de metáforas de intangibilidade, fragilidade, efemeridade, devaneio e imaginação. Os adjetivos descritos às meninas se elaboram por componentes que as colocam como suscetíveis a aceitação, à compreensão e adequação aos preceitos masculinos.

Percebemos que as memórias e autobiografias se fazem de várias figurações em que as mulheres se efetivam, se impõem ou destacam. Como foi o caso das composições femininas, das amas, negras ou preceptoras que se apresentam em posição autoridade em relação à educação e aos cuidados com as crianças, ou seja,

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mesmo estando socialmente inferiores às demais funções sociais, quando em suas atuações de cuidados, elas se posicionavam como autoridades naquelas tarefas.

Eram elas que educavam a partir das histórias, dos costumes, religião e crendices. Determinavam normas, regras de conduta e comportamentos. Nesse contexto, se figuravam como superiores às crianças.

Nessa relação, as crianças, também, participavam de maneira ativa, já que as regras nem sempre eram aceitas passivamente, as maneiras de se portarem mediante as visitas, os alimentos que deveriam comer para beneficiar a saúde delas, as roupas, as brincadeiras, os hábitos e bons costumes, eram componentes que insistentemente foram relatados nas memórias das meninas.

Nas figurações entre mulheres e homens, há um peso menor da mulher em relação às suas qualidades ou atuação social. Elas aparecem como responsáveis pelos espaços privados: cozinha, o quarto, as salas de costuras, sala de jantar, quando aparecem nos espaços públicos está localizadas nos jardins, quintais, às visitas à igreja, ao cemitério, às casas das vizinhas, às reuniões com chás e conversas fúteis ou na substituição do homem quando estava ausente ou quando vem a falecer.

A distinção e condição da mulher em relação ao homem se fazem na ênfase de sua subjetividade, frivolidade, inventividade e vulnerabilidade.

Explicita-se de maneira contumaz, também, a adequação dos comportamentos e atitudes das meninas em diferenciação ao do menino. As brincadeiras, as aprendizagens, a rotina eram dispostas de maneira mais rígida às meninas, do que aos meninos.

Para a menina caberia a ordem, organização, severidade; para o menino, a desordem, a flexibilidade e permissividade.

Em Olhinhos de Gato de Cecília Meireles, há vários personagens meninos que aparecem em sua narrativa, conquanto, um menino que sempre aparecia na casa da avó da menina-personagem, era aquele que a incomodava demasiadamente.

Para ela, o garoto era sinônimo de bagunça, estripulia, desordem, já que ela tinha tudo organizado, e ele, quando aparecia, desestabilizava sua rotina, seus brinquedos sua vida, já que este, não seguia uma norma ou regra, tinha liberdade, não seguia normas. O ser masculino apresenta-se como brutalidade, força, perturbação, não uniformidade.

As três obras apresentam itens muito próximos sobre a composição das infâncias das meninas, principalmente, sobre os comportamentos diferenciados para o menino e a menina, além disso, podemos destacar outro elemento em comum da escrita das autoras: a morte que aparece como elemento condutor das inquietações, questionamentos, angústias delas.

Definimos que as autoras em suas memórias demonstram o quanto são relutantes acerca as roupas luxuosas e desconfortáveis, dos padrões comportamentais que devem assumir ou fazer, da individualidade e diferença para a transformação do comum e naturalizado pelos seus grupos de convívio.

Elas aderem aos arquétipos sociais, mas demonstra sua inquietude, sua incompreensão acerca do que ocorre a sua volta.

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A escrita das autoras as coloca num entre-lugar do que gostariam de ter feito enquanto meninas, com o que puderam fazer e que gostariam de ter realizado em suas infâncias.

Todos os desejos, vontades, ideais foram colocados numa perspectiva de sonhos, imaginação, possibilidades, de forma que tais aspirações não são descritas claramente por elas, são os entre-ditos, sinais e vestígios do que seu eu-menina queria ser ou fazer.

Elas adequavam-se aos modelos comportamentais e de formação, contudo, percebemos suas inquietações, relutâncias sobre seus modos de ver e viver seus cotidianos.

Em todas as obras as mulheres são aquelas que ensinam por meio das brincadeiras, cantigas, histórias, lendas, contos e faz-de-conta; os homens são aqueles que estão atrelados ao trabalho, a força, ao concreto.

Ao elaborar esse binômio: força versus fragilidade, descritos pelo homem e mulher nas obras literárias, observamos que a atuação da mulher se compõe de maneira estratégica na formação das meninas.

São elas quem organiza a vida doméstica em meio à ludicidade, criatividade e equilíbrio, conduzem seus cotidianos de maneira harmoniosa, em meio à imposição e força masculina.

Nesse contexto, as infâncias das autoras nos deixam perceber o embate velado das mulheres em meio ao mundo social masculino em que elas não podem ser definidas como frágeis ou submissas, mas que possuem estratégias de disputa que é produzido nas relações sociais de cada grupo do qual estão inseridas.

Se avançarmos numa análise sociológica, Hargreaves ancorado nos estudos de Norbert Elias, podemos inferir que “a civilização é um processo no decorrer do qual os indivíduos aprendem a controlar suas pulsões animais, a regular e a refrear os instintos e afetos a fim de dar-lhes formas mais pacificadas”. (Hargreaves 2014, p.457).

O que nos demonstram que posturas, comportamentos femininos podem ser descritos como normatizados pelo imaginário, o subjetivo, abstrato como as inúmeras descrições das meninas sendo ensinadas pelas inúmeras histórias, brincadeiras, cantigas. Diferentemente da descrição do masculino como aquele que forma o menino através do trabalho, luta, guerra, esforço, violência e liberdade. Uma evocação de poder, agressividade e força.

Norbert Elias dispõe que é através da competição que temos uma distinção entre o masculino e o feminino, o poder simbólico investe-se no corpo masculino através de imagens de uma masculinidade agressiva, associada a noções mais gerais de poder social.

A composição dos personagens femininos como frágeis, sonhadoras, sensíveis são construídas pela oposição dos meninos descritos nas obras: os meninos de rua, o menino visitante de Cecília Meireles; o namorado Chico Carlo da menina Ibarbourou e o irmão da menina Norah Lange são aqueles que se impõe a partir da construção de adjetivos como força, agressividade, desordem, liderança, liberdade e violência, em

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oposição, as meninas que são vulneráveis, sonhadoras, organizadas, oclusas e afáveis.

Além dessa análise sobre violência masculina, podemos também, inferir a partir dos estudos elisianos sobre relações de poder, consideramos que as meninas tinham seus espaços de poder, assim, como as mulheres que aparecem de maneira secundária às narrativas, como as amas, as preceptoras, as cozinheiras, as esposas que interagem, participam. As subjetividades aparecem nas estratégias de cada uma delas: meninas ou mulheres de acordo com o grupo que participam.

Percebemos que as infâncias vão sendo dispostas como momentos de diferenciações entre crianças e adultos, as crianças aparecem sempre juntas dos adultos num cotidiano doméstico, contudo, são nas brincadeiras e atividades de instrução que há uma separação maior das crianças, elas participam de um momento específico, o de aprendizagem e de formação.

Em relação aos comportamentos, as meninas das três obras, demonstram relutância ao ter que se adequar às regras e normas sociais, como vestimentas, modo de falar, dirigir-se ao adulto, enfim, há uma relação de poder, entre as meninas, suas amas, parentes e cuidadoras, de forma que, em dados contextos, as meninas estão em situação privilegiada à essas mulheres; em outros, elas é quem se impõem perante as meninas, quando estão ensinando, por meio da imposição de regras, normas a serem cumpridas.

A partir do exposto, consideramos que as meninas e seus comportamentos descritos nas obras, podem nos conduzir a uma compreensão das infâncias com conformidades e entrelaçamentos que nos permitem distinguir a formação da mulher latino-americana inserida num caráter relacional de poder.

2. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Analisar as obras literárias, a partir de uma perspectiva sobre a infância, nos possibilita pensar a criança como ser social que participa e interage culturalmente com seu grupo.

As meninas-narradoras vão tecendo suas escritas e nos deixando vestígios, marcas, indícios que a relação de poder é construída, não somente, na dominação masculina, como também, nas relações de grupo que se faz de espaços de poder.

As obras apresentam uma mostra de meninas sendo educadas, ensinadas, formatadas em um ambiente descrito entre: familiares e meninas; meninas e meninas; meninas e empregadas; meninas e preceptoras além de meninas e meninos, de forma que nesses vínculos podemos observar as relações de disputas de poder, em que as crianças, também, detinham sua imposição, autoridade sobre o adulto e vice-versa.

Há várias mostras de que nos momentos específicos de aprendizagem das crianças, estas não aceitavam passivamente a imposição de regras, valores ou normas, ocorria um embate recíproco entre adultos e crianças. As crianças

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dispunham-se como participantes, interagindo e impondo-se como seres sociais definidos por subjetividades e espontaneidade.

A produção da imagem da menina em oposição ao menino aparece sob uma perspectiva de habitus social, em que o masculino apresenta-se como superior e sobreposto ao feminino, reforçado pela força, objetividade e valentia.

Por outro lado, as escritas das autoras nos dão vestígios de que elaboração hierárquica do masculino sobre o feminino, também continha outras maneiras da mulher se colocar em oposição, através de estratégias de hostilidade, instituídas nas diversas formas de relação social dos grupos, em que elas reagiam, contrapunham através de sua convivência privada, especificamente, na familiar.

Contudo, tais estratégias de tentativa de colocar-se socialmente aparecem de maneira muito incipiente e pouco substanciosa, já que as mulheres restringiam-se aos ambientes privados.

Sobre a esfera pública, observamos que as mulheres descritas nas obras possuem pouca possibilidade de atuação feminina, visto que a elas cabiam os afazeres domésticos, os cuidados com as crianças e atividades rotineiras.

São apresentadas como aquelas que são responsáveis pela rotina, pela formação da criança, para os cuidados com tarefas relacionadas à cozinha, ao cozer, aos espaços insignificantes e privados, como os quartos da casa, os jardins e os ambientes de costuras, cabiam a elas, as histórias, as lendas, as brincadeiras, o imaginário.

Aos homens temos os trabalhos intelectuais, os negócios, as atividades comerciais, as reuniões, os saraus, atividades que denotassem força, vitalidade como o trabalho braçal, a guerra e o tino comercial.

Toda a subjetividade, o abstrato, o irreal aparecem vinculados ao gênero feminino, as meninas, apresentam-se em meio à formação com ditames masculinos, mas com possibilidades de elucidação do feminino.

As autoras conseguem ultrapassar os aspectos negativos relacionados ao gênero feminino e evidenciam sinais de que a mulher, elaborada como o ‘outro’, também, consegue apresentar-se como ser social que mesmo forjado pelo modelo hegemônico masculino, possui, porém, suas vontades e interesses.

O menino é produzido sob a égide da brutalidade, violência, força, rigidez, há várias mostras nas obras literárias que o masculino se ampara nessas características como o menino que mata os gatos, que trabalha desde sua infância, enquanto a menina permanece em casa, na obra de Cecília Meireles, como na de Ibarbourou em que o personagem principal Chico Carlo quer comprar um rifle para matar seus inimigos, enquanto a menina quer brincar com sua boneca ou na obra Cuaderno de infância em que a violência simbólica sob a personagem que não tem aparência feminina e se opõe às normas de formação é vestida de menino para se moldar aos padrões de beleza social.

Observamos que as meninas não se colocam passivamente nas obras, elas relutam, infligem, opõem as várias imposições seja dos adultos ou mesmo entre as

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próprias crianças, o que nos mostra que a criança também participa culturalmente de seus grupos e se estabelece como sujeitos sociais.

Consideramos que as obras dos três países analisados possuem muitas aproximações quanto à compreensão de que em cada período histórico e social, são constituídas infâncias e que estas, compõem dentro de suas particularidades, algo muito comum entre elas, a concretização de que o ser menino se elabora diferentemente da menina, em que o feminino é compreendido como subjugado, inferiorizado ao masculino.

Quanto à análise sociológica, inferimos que as escritas das autoras perfazem um habitus social, as três autoras, descrevem a mulher como aquela que é dependente do homem, que deve manter-se submissa, desempenhar tarefas sem muito valor, tendo relevância nas tarefas relacionadas ao cotidiano familiar e doméstico.

De acordo com as relações estabelecidas entre seus grupos, elas quem formalizam as regras de formação familiar, organizam a vida privada, definem valores sociais aos comportamentos infantis, produzem conhecimento, princípios e legitimam alguns princípios sociais entre as próprias mulheres e com as crianças.

Sobre as infâncias existentes nas obras literárias, cogitamos que há várias infâncias em cada uma das obras apresentadas, pois além das crianças personagens que compõem uma elite social havia, também, as crianças-escravas, as crianças filhas das empregadas, as crianças de rua, as crianças-trabalhadoras, as crianças-pobres, as crianças-órfãs que aparecem secundariamente nas escritas das meninas-autoras, mas mostrando um fundo social-histórico do lugar de cada menino ou menina.

De acordo Kuhlmann Jr. a categoria infância não pode ser descrita como um conceito estático e singular, já que a criança é descrita pela narrativa de um adulto e não aparece de acordo com como o sujeito dessa história, sem denominar apenas a infância, porém, “as infâncias, já que no plural o termo ultrapassa o significado de apenas um conceito, uma representação, e passa a dar significado tanto ao contexto como as variáveis desse contexto”. (Kuhlmann jr.; Fernandes 2004, p.29).

Ainda, sobre uma análise sociológica, ao explorar a participação da criança no cotidiano familiar e social, consideramos que a criança participava constantemente do convívio de adultos, porém percebemos uma maior individualização da criança, nas situações de aprendizado ou formação escolar informal, em que estas, relacionavam-se, exclusivamente, com outras crianças.

Tal situação é denominada por Elias (1994) como um processo de individualização do sujeito:

A remodelação do indivíduo durante o crescimento, o processo civilizador individual em cujo decurso ele se desloca do ponto de partida do comportamento infantil, que é o mesmo em toda parte, para se aproximar mais ou menos do padrão de civilização atingido por sua sociedade, torna-se mais difícil e demorado. Prolonga-se o lapso de tempo necessário para preparar os jovens para os papéis e funções mais complexos dos adultos. À medida que aumenta o hiato entre comportamento espontâneo das crianças e a atitude

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exigida dos adultos, torna-se cada vez menos possível colocar a criança, em idade precoce, como se faz nas sociedades mais simples, no degrau inferior da escola funcional cujo topo se pretende que ela alcance. [...] Durante um período extenso e que ainda continua a se alongar, as crianças e os jovens são isolados dos círculos adultos: frequentam a escola e estudam em universidades, agremiações técnicas e outras instituições especialmente organizadas para o preparo dos moços. (Elias 1994, p. 104)

A criança apresenta-se de maneira misturada aos adultos, todavia, nas situações de aprendizagens familiares ou mesmo com as preceptoras, há uma distinção, separação, individualização dessas crianças, em relação ao ambiente adulto. Compreende-se como um momento de maior separação entre meninas/meninos; crianças e adultos.

Discorremos que a escrita das mulheres analisadas retrata a primazia masculina sob o feminino, definindo o ser mulher como aquele relacionado à fragilidade, futilidade, emotividade, debilidade e etéreo. Ao masculino, elementos que compõem a força, violência, labor, ao substancial e concreto.

Por outro lado, as autoras também, nos deixam mostras de que tal composição do ser feminino perpassa por outros elementos que permitem compreender o papel da mulher nos espaços privados, em que esta consegue manter relação de poder e de atuação entre seus próprios grupos, por meio da sua inventividade, maleabilidade, devaneio e docilidade como utensílios ou armamentos de participação social, mesmo que restrito aos seus ambientes privados de atuação.

Ponderamos que as infâncias construídas pelas autoras meninas nos possibilitam compreender as diversas crianças existentes no Brasil, Argentina e Uruguai tendo condições de denotar as proximidades e peculiaridades de cada uma delas, assim como a formação de comportamentos a partir de uma relação de gênero entre meninos e meninas, dos quais, apreendemos que a menina é elaborada e legitimada a partir de uma construção do ser masculino, mas que mesmo sob um parâmetro social hierarquizado pelo homem, ela participa e interage culturalmente de seus grupos sociais, nos quais, deste, pode ter a possibilidade de disputar seu espaço como sujeito social.

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ID:847

Sinais da Ditadura Militar na escola pública carioca

“o grito da voz silenciada”

Autor: Lucia Teresa Romanholli Filiação: SME- Rio de Janeiro

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RESUMO

A presente pesquisa busca sinais, pistas, indícios (GINZBURG, 1989) que identifiquem o que a princípio chamei de marcas da ditadura militar. Não lanço um olhar neutro, descompromissado ou não ideológico, procuro por sinais, indícios, pistas de um modo de fazer e estar no mundo, evidenciado pelo pensamento hegemônico à época do Estado de Exceção, durante a ditadura militar nos anos de 1960 /1970. Tal opção metodológica se faz a partir do processo de leituras, experiências e observações, ou seja, no processo de construção teórica desta dissertação.

Portanto, o caminho que norteia o presente estudo enuncia-se no sentido de “quebrar” com o aspecto de definitivo, acabado, parado, dado num tempo e num espaço. Trata-se de um exercício teórico, que visa deslocar desse sentido estático do que já está sacramentado, entendimento de algo como definitivo, pronto, acabado.

PALAVRAS-CHAVE

Escola Pública.

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1. Iniciando as conversas

A experiência e não a verdade é o que dá sentido à escritura, memória, não é e pelo menos não é apenas algo da ordem da recuperação, da cronologia, de trazer o passado para o presente ou de levar o presente para o passado. A memória passa a ser algo da ruptura com o passado, e da invenção do presente que o passado não pode antecipar. (KOHAN, 2013, p.63)

A presente pesquisa busca sinais, pistas, indícios (GINZBURG, 1989) que identifiquem o que a principio chamei de marcas da ditadura militar. Não lanço um olhar neutro, descompromissado ou não ideológico, procuro por sinais, indícios, pistas de um modo de fazer e estar no mundo, evidenciado pelo pensamento hegemônico à época do Estado de Exceção, durante a ditadura militar nos anos de 1960 /1970. Tal opção metodológica se faz a partir do processo de leituras, experiências e observações, ou seja, no processo de construção teórica desta dissertação.

Portanto, o caminho que norteia o presente estudo enuncia-se no sentido de “quebrar” com o aspecto de definitivo, acabado, parado, dado num tempo e num espaço. Trata-se de um exercício teórico, que visa deslocar desse sentido estático do que já está sacramentado, entendimento de algo como definitivo, pronto, acabado.

Neste sentido, num olhar atento e numa escuta sensível, tento identificar estes sinais que por vezes, não são percebidos e muitas vezes, são naturalizados. Atenção esta que se potencializa no processo de imersão teórico-metodológico que o mestrado me propicia. Através da participação no grupo de pesquisa do Laboratório Educação e República – LER 162 , que integra a linha de pesquisa “Instituições, Práticas Educativas e História”, do Programa de Pós-Graduação em Educação – PROPED da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, em um percurso que abarca diferentes caminhos um espaço / lugar de trocas, de conversas, leituras. Entre tantas outras experiências vividas e narradas por pesquisadores do mestrado, doutorado, pós doutorado e graduação, que fazem do cotidiano do LER, um espaço de contribuição para uma educação da Res-publica. No grupo de pesquisa, relato de colegas, que assim como eu, viveram os tempos mais obscuros da ditadura. Nos emocionando e compartilhando os efeitos da tortura, do aprender ou desaprender

162 O LER /PROPED/UERJ é formado por pesquisadores, estudantes de graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado, professores da UERJ, UENF, UNIRIO, UFRRJ, UFES e UFRJ, professores do ensino básico e ativistas culturais que se dedicam ao tema da Escola Republicana, seja no levantamento dos processos históricos que inauguram a República, seja na abordagem da atual conjuntura educacional do país. Com recorte geográfico no Estado do Rio de Janeiro, as pesquisas realizadas até o presente momento, se dedicam à compreensão dos processos históricos pós-fusão (1975) e os desdobramentos político-culturais observados a partir de então. Através da metodologia da História Oral viemos constituindo um relevante acervo de entrevistas, fotografias, depoimentos, biografias e outras narrativas que, auxiliam a rememorar a trajetória da Escola Republicana em solo fluminense.

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sob os desmandos, a autocracia, o autoritarismos, as palavras de ordem e as linhas de fuga encontradas por cada um e pelos coletivos, que se formaram e se formam nesta troca viva. Assim, assinalo que os indícios da ditadura militar se revelam, reverberam e produzem ressonâncias muito além dos registros, regimentos e organizações relacionadas ao cotidiano da escola pública da cidade do Rio de Janeiro.

Entre tantas questões, uma se destaca: como encontrar um método de investigação que aponte um sentido para o próprio processo de pesquisa em seu movimento? A complexidade se dá nas marcas históricas, fazendo-se necessário ampliar o campo, incluindo no método o estudo das subjetividades. Portanto, para pensar estes sinais, marcas, vestígios, numa possibilidade de compreender como a história ultrapassa as fronteiras do tempo linear.

Uma das questões que requer aprofundamento de análise é a que se refere à categoria de professores públicos. A razão é tradicionalmente oposta à emoção, confirmadas culturalmente e submetidas a um forte recorte de gênero. Assim, homens detêm a razão, mulheres a emoção, sendo mais pertinente a eles o mundo das Ciências Exatas e às mulheres as Ciências Humanas. Mas os fluxos históricos e suas intensidades políticas que atravessaram o mundo feminino no século XX, nos trouxeram o tardio direito ao voto, tão longe e tão perto que,

...o fato é que a escola só se transformará se os agentes do processo educacional, especialmente a professora, se assumirem enquanto sujeitos históricos Assim as professoras teriam que compreender as condições simbólicas e imaginárias que a produzem em cada sociedade... Alienação feminina contribui, muitas vezes para o papel reprodutor da educação, pois, sendo o magistério prioritariamente feminino, a professora leva sua própria submissão histórica para a sala de aula. (FARIA,1997, p.18)

Logo, a identidade desta professora está presente nessa investigação, que se insere em um recorte de Gênero e Educação. Razão e emoção assim recortadas e estanques, na incompletude das análises tendenciosas, atravessadas por preconceitos culturais, fazem parte de toda uma tradição do pensamento, que vem caindo em desuso, após os cortes epistemológicos especialmente com Einstein, na teoria da Relatividade e da Física Quântica, com a quebra da concepção do átomo, seus elétrons, prótons e nêutrons, como a menor partícula molecular, explodindo em quantas e fótons e manifestando sua dualidade, sua complexidade expressiva ora como onda, ora como partícula.

Neste sentido, razão e emoção representaram uma dualidade cultural para pensar e dividir a vida, mas mesmo as pesquisas reconhecem que os comportamentos observados, mesmo com o maior rigor científico, tendem a expressar profundas contradições culturais. Para tanto, lembramos Maturana:

Frequentemente falamos como se o curso que a história humana está seguindo fosse independente de nós como seres humanos individuais, e como se nós

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estivéssemos sendo arrastados por forças poderosas além de nosso controle. Mas em que medida esse modo de pensar é válido? Nossa vida é guiada por nossas emoções, porque nossas emoções definem o domínio relacional no qual agimos e, portanto, o que fazemos. Cada cultura é definida por uma configuração particular de emocionar, que guia as ações de seus membros, e é conservada por essas ações e pelo aprendizado, da configuração do emocionar que a define, por parte das crianças. Se a dinâmica sistêmica de constituição e conservação de uma cultura é quebrada, a cultura se acaba. Assim, nós não estamos aprisionados, não é o que fazemos, mas a emoção sob a qual fazemos o que fazemos. Não é a tecnologia que guia a vida moderna, mas as emoções, ou seja, os desejos de poder. (Maturana, 2001, p. 196)

Quanto à metodologia, optamos pelas narrativas. Narrativas trazem histórias de vida, conflitos e negociações que acontecem nas escolas, nas manifestações, nas greves. A narrativa como principio metodológico através de rodas de conversas me faz pensar, com Certeau (2009), que “a narrativização das práticas seria uma maneira de fazer163 , com seus procedimentos e táticas próprios (p. 143)”.

Por outro lado, o estudo assinala que as narrativas e conversas, por terem seus procedimentos e táticas próprias, subvertem de algum modo o planejado. Até porque uma das características da narrativa é escapar da maneira aprisionada na monocultura da ciência (SANTOS, 2010), na qual se define o saber formal, científico, como única forma legítima de registro, invisibilizando experiências, vivências e práticas cotidianas. Na contramão da monocultura da ciência, (CERTEAU, 2009) optamos pelas conversas, narrativas orais e escritas, para narrar experiências formativas, refletindo e investigando os caminhos e contradições da formação docente na cidade do Rio de Janeiro, em particular, no Instituto de Educação, localizado à rua Mariz e Barros, no bairro da Tijuca, naquela década de 70.

Ao longo desta dissertação, pretendo desenvolver a seguinte estrutura: no 1º capitulo Memórias de si – contradições e militância, rememoro minha própria trajetória pessoal, familiar e estudantil antes do ingresso como aluna no Instituto de Educação do Rio de Janeiro – 1974 visando me tornar professora.

Portanto, considerarei três marcos, referências históricas, que imprimiram sinais na minha formação enquanto sujeito histórico, mas que simultaneamente, apontam para fluxos identitários daquela geração de normalistas, que ingressaram em 1974, em pleno processo da Fusão dos então dois estados, Guanabara e Rio de Janeiro, ano da inauguração da ponte Rio-Niterói, que ligava as duas cidades, empreendimento necessário a promoção da Fusão no dia 15 de março de 1975. Esse é um primeiro indício, que ancora a pesquisa como um dos fios

163 Grifos do autor.

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desta investigação, pois a Fusão fazia parte do projeto Brasil Grande, idealizado pelos militares desde o golpe de 1964164.

Quanto ao segundo marco histórico, trata-se do ano do início da minha experiência profissional, em 1977, em uma escola municipal, a Classe em Cooperação Morro do Catumbi, no bairro do Catumbi. Também conhecido como Morro da Mineira, quando as comunidades ainda eram denominadas pelo termo “favela”. Naquele momento, se revelou para a “professoranda” recém chegada ao campo, a real lida com o ensino, da escola do Rio de Janeiro. Portanto, o quanto eram desconhecidas aquelas vidas em seus cotidianos e nas formas de luta por aprendizagem, subsistência, persistência e sobrevivência. Ensinar aprender era o mote do dia a dia da ex normalista, ora professora de turmas de alfabetização.

Por fim, trago no terceiro capítulo o último vestígio, sinal, a grande greve histórica dos professores públicos do estado do Rio de Janeiro, liderada pelo Sociedade Estadual dos professores – SEP165, em 1979. Neste último capítulo, abordo a questão do associativismo e da participação política dos professores em nosso estado, nos anos do processo da redemocratização política brasileira. Enquanto Por outro lado, no segundo e terceiro capítulos, faço reflexões relacionando o cenário político de então e as práticas desenvolvidas nas Escolas Municipais do Rio de Janeiro.

Portanto, este estudo, busca o desvelamento de possíveis rupturas e permanências durante os tempos da ditadura militar na formação das professoras primárias, da turma de 1974, do Instituto de Educação do Rio de Janeiro, assim como, assinalar que escola primaria era aquela em que iniciaríamos a nova profissão.

2. Memorias de si ... refazendo meus passos

Neste estudo, reconhecendo que a memória é social, um processo de elaboração que precisa ser organizado a partir das redes de vivências e conhecimento dos sujeitos e não um lugar de arquivamento de dados, podemos afirmar que as memórias são singulares. Portanto, se constroem socialmente, a partir das subjetividades dos sujeitos. Dessa forma, torna-se importante ressaltar que um mesmo acontecimento provoca nos diferentes sujeitos, diferentes memórias. Ainda considerando que acontecimentos dão a marca da passagem do tempo, acontecimentos são o que sempre se espera e o que sempre tememos (Augé, 2012).

Assim, remetida a este tempo, o tempo do acontecimento, narro alguns deles no emaranhado da minha própria história. Em um exercício de redimensionar o mundo

164 O Rio era um dos pólos estratégicos do então presidente da republica, general Geisel, para a concretização do programa. Nos planos da ditadura estavam a construção de obras monumentais, como a Transamazônica, a Usina Nuclear de Angra dos Reis, a Usina de Itaupu e a Ponte Rio-Niterói. Com a inauguração da via, que ligava as duas cidades, em 1974, o processo de Fusão foi acelerado. A antiga Guanabara mudou o nome para Rio de Janeiro e passou a ser a capital do novo estado, em março de 1975. 165 Em 1977 era criada a Sociedade Estadual dos Professores (Sep), que, em 24/07/79. se fundiu com a União dos Professores do Rio de Janeiro (Uperj) e com a Associação dos Professores do Estado do Rio de Janeiro (Aperj), criando o Cep - Centro de Professores do Rio de Janeiro, uma entidade que se tornou referencial de luta e organização dos educadores fluminenses.

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e me reinventar nele. Logo, rememoro acontecimentos de meu percurso, exercício de fazer brotar as memórias. Pistas dos atravessamentos que me constituem.

Em – Um Discurso Sobre as Ciências, conferência proferida em 1985/1986, por Boaventura Souza Santos na Universidade de Coimbra, ele afirma:

No paradigma emergente, o caráter auto-biográfico e auto-referencial da ciência é plenamente assumido. A ciência moderna legou-nos um conhecimento funcional do mundo que alargou extraordinariamente as nossas perspectivas de sobrevivência. Hoje não se trata tanto de sobreviver como de saber viver. Para isso é necessário uma outra forma de conhecimento, um conhecimento compreensivo e íntimo que não nos separe e antes nos una pessoalmente ao que estudamos (SANTOS, 1995, p.53).

Neste sentido inicio então este capítulo, Memórias de si – refazendo meus passos, com um acontecimento que registro a seguir.

E minha mãe chorou na varanda do nº. 150 da Rua Itajubá, bairro operário de Santo André, onde ela se gabava de receber “O Globo”. Dia 21 de dezembro de 1968, estávamos todos na casa do “nono” 166, para passar a festa de virada do ano. Naquela época, viajávamos todo final de ano para dar as boas entradas, como falavam os paulistas. Ela chorou e falou com força: - “Cassaram Lacerda”.

Na mesma varanda, com porta e basculante de ferro e vidro, especialidade da perícia técnica da família italiana de torneiros mecânicos e artesãos no trato com o ferro fundido. Assim sentada no mesmo banco de madeira, palco da intimidade do recital familiar de fim de ano, aonde nós três, os primos cariocas declamávamos e cantávamos para o nono, a nona, tios e tias e muitos primos paulistas. A figura de Carlos Lacerda167, político bastante controverso com postura e fala incisiva, por vezes agressiva, porta voz da verdade, orador adorado pelas mulheres e temido pelos

166 Avô em italiano

167 Carlos Lacerda nasceu na cidade do Rio de Janeiro, então Distrito Federal, em 30 de abril de 1914. Foi vereador , deputado federal e governador do antigo estado da Guanabara 167 Lacerda começa sua carreira a partir de 1929 escrevendo artigos para o Diário de Notícias. Em 1932 ingressa na Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro, abandonando o curso em 1934. Participou do grupo articulador da Aliança Nacional Libertadora (ANL), organização fundada em 1935 com o caráter de "frente popular", cujo programa, baseado na mobilização das massas, propunha a luta contra o integralismo, o imperialismo e o latifúndio. Em 1937 na movimentação do golpe que determinou o fechamento do Congresso Nacional e a abolição de todos os partidos políticos no país, instaurando o Estado Novo, encontrava-se preso na Polícia Central, sendo posto em liberdade poucos dias depois por insuficiência de provas. A partir de 1938 dedicou-se às atividades jornalísticas. Em 1939 rompeu com os comunistas. Em janeiro de 1947 foi eleito vereador pelo Distrito Federal na legenda da União Democrática Nacional (UDN) Fundou em 1949 o jornal Tribuna da Imprensa e criou, em 1965, a editora Nova Fronteira.

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políticos, arauto de uma ordem única, mestre da verdade e dono da Tribuna da Imprensa, povoa minhas memórias.

A lembrança de minha mãe lendo aquele jornal me instigou a buscar aquela notícia. Dos arquivos da minha memória, se instiga a pesquisa, como movimento de descoberta e entendimento. Deste modo, investigo este jornal, não só pela lembrança dos olhos surpresos de minha mãe, mas pelas janelas da Internet, abrindo as notícias de final de dezembro de 1968, passagem de ano, no jornal “O Globo”. Portanto tornava-se importante dar sentido ao que trazia minha memória e o que se ocultava naquele afetamento, no conhecimento compreensivo e íntimo, que estava somente agora, podendo se revelar. O que me move vem do passado do tempo, se refaz, cria interrogações e impõe a pesquisa. Escrever é preencher os intervalos.

Abaixo, o periódico citado:

FIG. 1| Jornal “0 Globo” de 21 de dezembro - acervo digital

Já menina gostava daquele mundo dos adultos, das conversas que em meu imaginário, revelavam mistérios. Os adultos diziam: “Vai brincar, isso não é assunto de criança”. A curiosidade me perseguia e eu a perseguia, colocando-me num lugar: o do ouvir atrás da porta, o que permitia saber mais do "mundo interditado”, o mundo dos adultos. Logo cedo aprendi com as histórias dos adultos, que o proibido tinha um por quê. Em minha rememoração, encontro uma criança curiosa em plena ditadura militar.

Naquela família, fomos três filhos por um curto período: eu, meu irmão gêmeo e minha irmã mais velha, quando próximo aos meus seis anos, chegou mais um menino.

Ao me permitir fluir essas histórias, o olhar transborda e por vezes me diz mais, do mais. Como se olhar para o passado tivesse cheiro, tato e escuta. Naquela ocasião morávamos no Méier, num apartamento térreo, com quintal. Goiabas e mangas

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brotavam da terra em abundância. Na rua Engenheiro Julião Castelo, de lá se ouvia os gritos dos estudantes e o barulho de bombas e cavalos, vindos do Colégio Estadual Visconde de Cairu.

A seguir, rememoro meu ingresso na escola primaria:

FIG. 2 | Tempos de Escola – Arquivo Pessoal

Com quatro anos já havia entrado para a escola e aos cinco anos ingressei no pré-primário, onde encontrei Dona Brandelina. Ela não havia sido professora de nenhum dos meus irmãos. Adorava minha professora. Ela era a mais bonita da escola!

Não sentia dificuldade em ler e escrever, apesar de mamãe e D. Brandelina, por vezes, conversarem reservadamente na hora da saída. Estas conversas nunca ouvi: brincava pelo pátio da escola, feliz por ver as duas se falarem... Tinha certeza de que era sobre mim.

A avaliação na escola se baseava em notas, os décimos nos classificava em medalhas de ouro, de prata e de bronze, entregues em solenidade no auditório da escola lotado por pais, mães, avós, padrinhos. Ah! Havia também o diploma de Honra ao Mérito para as alunas que quase conseguiam uma medalha, o que já me fazia sentir cumprido com essa exigência de casa e da escola.

O que nos era cobrado, pela família e pela escola, ser muito estudiosas, esse era o comportamento exigido das meninas. O feminino tinha um lugar nos diferentes trabalhos manuais, na música, nas artes e nos livros. A cultura era entendida como saber bordar, costurar, confeitar bolos e doces, tocar piano, ler e recitar poesias. Também brincar com as bonequinhas de papel para recortar, panelinhas, velocípede, livros das fábulas de La Fontaine, goiabas brancas e vermelhas no quintal. Esse cenário compunha meu mundo infantil.

É... mas as conversas entre D.Brandelina e mamãe falavam de dificuldades. Eu falava errado e como falava, escrevia, trocava as letras. Aprender a ler e escrever, não para mim, mas para elas, não foi tarefa fácil, tinha a fala “tatibitate”.

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Quando passei para a 1ª série, D. Brandelina continuou com a nossa turma, pratica pedagógica da escola em relação à alfabetização como processo, tal como o feijãozinho no algodão168.

FIG. 3 | Na 1ª série com Laura e Dayse – Arquivo Pessoal

A minha felicidade continuava, agora sentava na primeira fila em carteira dupla ora com a Laura , ora com a Dayse. Os problemas diagnosticados na Terapia da Palavra 169 , que provocavam os erros na escrita, não faziam parte das minhas preocupações. Nessa altura, uma vez por semana, mamãe me levava à Terapia da Palavra. Tudo muito corrido, pela manhã íamos até o Maracanã. Não tenho lembranças do que fazia lá, mas o percurso de ônibus até hoje me traz um estado de euforia.

Ao final da 1ª série, aproximação das provas finais, D. Brandelina me convidou para ir à casa dela, estudar. Não me lembro nem se fizemos algum trabalho ou exercício. Neste dia, o meu aprender a ler e escrever teve gosto de gelatina de morango, com morangos de verdade e creme chantilly. Assim, passei de ano para a 2ª série, com minha única medalha de prata.

Em minhas memórias, subi as escadas do palco da escola, auditório lotado, segundo lugar da turma de 1ª série. O primeiro lugar era dela, de D. Brandelina que nunca me disse que eu escrevia errado. Sabor de gelatina de morango, com morangos de verdade e creme chantilly! Sabor de gostar de verdade!

Nesse encontro com a escola, décadas depois, penso que aprendi a ser professora brincando! Brincar de escola era uma brincadeira das meninas. Quadro de giz, de preferência com giz colorido, era presente certo de natal ou aniversário. Presente para estimular o gosto com os estudos. No quintal, as cadeiras, arrumadas em fileira,

168 Clássica experiência realizada na escola da germinação do feijãozinho no algodão 169 Situado no Maracanã, serviço público de atendimento.

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já davam o sentido do ensinar. Cadeiras vazias ou cheias, pouco importava. As conversas com o imaginário já me faziam sentir, sonhar e dizer: quando crescer, quero ser professora.

Desta forma, assisti Tia Isis ensinar meu irmão mais novo a ler e escrever, a juntar pedaços de palavras, num caderno que tinha na capa a estampa de uma menina e de um menino bem lourinhos, e na contracapa, um dos hinos que devíamos decorar. Sem esquecer o caderno de caligrafia, como também muitas histórias e fábulas.

A seguir, o Curso Normal no Instituto de Educação170, que iniciei em 1974. Em tempos de Ditadura Militar, se deu em meio a várias campanhas e ao surgimento do Mobral - Movimento Brasileiro de Alfabetização. Historicamente, o que a pesquisa assinala é que a escola não era direito de todos, não havia escolas suficientes.

Nos dois últimos anos do Curso Normal, no IERJ, a alfabetização enquanto disciplina curricular se fez presente. A questão técnica parecia o caminho: a aplicação de exercícios preparatórios nos daria a garantia de sucesso na alfabetização. Nesse sentido, ouvíamos nessas aulas que as crianças deveriam ter um período preparatório, com exercícios de desenvolvimento motor, percepção auditiva, percepção tátil, percepção visual, coordenação viso-motor, figura-fundo, constância de forma, posição e relação espacial... Estas eram etapas a serem galgadas, da suposta menor, até ao que era compreendido como maiores dificuldades. O mundo tinha uma ordem! E a nós normalistas, eram passadas um conjunto de regras, uma espécie de “manual” de como ensinar.

O que nos era ensinado é que as crianças, para as quais estávamos sendo preparadas para alfabetizar, seriam pobres e teriam dificuldades cognitivas, por falta de alimentação na primeira infância. Dessa forma, mais um ensinamento do “manual”, alfabetizar só seria possível após a merenda - uma orientação repetida diversas vezes para as futuras professoras171.

No ano de 1977, com 17 anos de idade, normalista, recém formada, passei no concurso da prefeitura do Rio para o magistério o que me permitiria lecionar do Jardim de Infância à então 4ª série. Assim, fui lotada na escola Classe em

170 Pelo Decreto 6.379 de 30/11/1876 foi criada a Escola Normal do Município da Corte, compreendendo dois estabelecimentos: um para rapazes e outro para moças, este em regime de internato. O curso era de três anos, porém a conclusão de dois anos habilitava para o exercício do magistério primário, e a conclusão de três anos para o magistério do ensino secundário. O Instituto passa pelas seguintes fases: Instituto de Educação, de 1932, quando foi criado, até 1960, quando passa a designar-se oficialmente Instituto de Educação do Estado da Guanabara, até 1975, quando passa a denominar-se Instituto de Educação do Estado do Rio de Janeiro. Essas mudanças de designação têm a ver com quem era o responsável, na estrutura organizacional do Estado. Em 1932, era a Instrução Pública do Distrito Federal; em 1960, a Secretaria de Educação do Estado da Guanabara; em 1975, a Secretaria de Educação e Cultura do Estado do Rio de Janeiro 171 A referencia no feminino se dá pela imensa maioria da presença de meninas no Curso Normal.

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Cooperação Morro do Catumbi172. A escola ficava no alto do Morro da Mineira e, na prática, funcionava em salas improvisadas, cedidas pela Igreja Católica. Através de convênio de cooperação, cabia à prefeitura a manutenção de pessoal, merenda e material didático.

Logo no pequeno corredor, nas portas das salas, as trocas se davam. Depois de um ano letivo com Sonhos de Talita e entre zumbidos de Abelhinhas173, duas colegas, as professoras Sandra e Penha, propuseram a construção de um livro feito pelas crianças, cujo tema seria “as brincadeiras no Morro”. Texto mais contextualizado, pois sabíamos que a leitura e escrita tinham de ter um sentido. Aos 17 anos, minha tensão e dúvida eram sobre a escolha de uma palavra para dissecá-la e chegar à silaba, como diziam os manuais de como alfabetizar. A sílaba trazia inúmeras possibilidades de trabalhos e descobertas e, aliás, havia sido desta forma que eu havia aprendido a ler e escrever.

No final da década de 1980, início dos anos 1990: Eureka! Tudo muda. Os estudos de Emilia Ferreiro e Ana Teberosky no livro Psicogênese da Língua Escrita; o outro livro de Emília Ferreiro, Reflexões sobre Alfabetização, além do livro A Criança na Fase Inicial da Escrita, de Ana Luiza Bustamante Smolka, desencadearam outras discussões. Inclusive, no reconhecimento do erro, do tentar como constitutivo do processo do aprender. Este período, já no Morro do Borel, após dois anos na Cidade de Deus, foi um tempo de desconstrução e de reconhecimento, da profunda injustiça social do meu país e da minha cidade. Neste momento, comecei a vivenciar mais fortemente as minhas próprias contradições.

Desde aquela época, vivencio criticamente, como professora pública um processo de desvinculação das certezas e dos métodos e manuais, aprendendo a ter outros olhares para as crianças com as quais trabalhei e trabalho. Essa nova maneira de pensar e refletir na minha prática profissional impactou toda a minha vida: militância política, casamentos, descasamentos, entradas e saídas de faculdades, labirintos...

O caminho não era reto. O mergulho na diversidade social, política e cultural trouxe outros atores, outras leituras, outras redes.

Em 2009, na suposta maturidade profissional, filhos adultos já cursando a universidade, em meus silêncios e nas reflexões sobre o mundo da vida, suas mudanças e transformações e buscando agregar novas formas de estar e ser, diante das diferentes interrogações que me perpassavam, presto vestibular em segredo. Esta

172 Fundada na Favela da Mineira, localizada no Morro do Catumbi, em 08 de março de 1976, funcionando por duas décadas em regime de cooperação com a Igreja Nossa Senhora de Salete. A antiga casa havia sido doada pela família da Sra. Maria Neves Tardin que, em vida, dava aulas em casa para a comunidade. O local era povoado, principalmente, por pessoas vindas de Minas Gerais, pobres, que construíram seus barracos em busca de melhores oportunidades na cidade do Rio de Janeiro. A Classe em Cooperação atendia alunos da classe de alfabetização, do 1º, 2ºe 3ºanos do Ensino Fundamental em dois turnos. Escola Municipal Classe de Cooperação Morro do Catumbi, permaneceu com este nome até o ano de 1995. De 1996 a 1998, a Escola funcionou, provisoriamente, no Sambódromo, enquanto a nova sede estava sendo construída no bairro do Catumbi. A atual sede na R. D. Pedro Mascarenhas, 23/25 no Bairro do Catumbi ficou pronta em 1999. 173 Refiro-me ao nome das cartilhas e métodos então utilizados como manuais para a alfabetização das crianças.

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etapa foi tão conflitante, após cinco iniciações à vida universitária desconclusivas, que a notícia da aprovação foi rechaço e surpresa ao mesmo tempo agora. Em um dia, nos resultados do vestibular prestado, não consegui sequer enxergar meu nome como aprovada, e me decepcionei muito. No dia seguinte, consegui finalmente ver o resultado, a que meus olhos estiveram cegos, naquele primeiro olhar. Ali, num segundo olhar, encontro meu nome listado entre os aprovados, ingresso no curso de Pedagogia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO. Esse processo me reporta ao texto de Deleuze e Guattari (1992)

Não se escreve com lembranças de infância, mas por blocos de infância, que são devires-criança do presente. A música está cheia disso. Para tanto é preciso não memória, mas um material complexo que não se encontra na memória, mas nas palavras, nos sons: "Memória, eu te odeio” (p.218).

Ao finalizar esse breve capítulo chegamos ao ano de 1983, caminhávamos após mais de duas décadas, para a finalização da Ditadura Militar. Ano das campanhas pela Direta Já!

Após eleições diretas de governadores em todo o país, tomam posse no Rio de Janeiro, Leonel Brizola como governador e Darcy Ribeiro como vice, ambos do Partido Democrático Trabalhista ( PDT ). Na Cidade de Mendes, no interior do Estado do Rio de Janeiro professores se reuniram para discutir políticas educacionais, frente às mudanças que se anunciavam no País. O “Encontro de Mendes”, como ficou conhecido, foi organizado pela professora Rosiska Darcy de Oliveira, juntamente com o vice-governador à época, o educador Darcy Ribeiro. Naquele momento, foram debatidos um conjunto de teses sobre educação. As discussões ocorreram inicialmente nas escolas, que deliberaram sobre a eleição de delegados para o Encontro, foi uma semana de amplos debates e reflexões acerca da escola pública de qualidade para todos. O que se observa, são muitas vozes e a significativa representação de sessenta mil professores lutando para expressar suas reivindicações e demandas, após duas décadas de silenciamento devido ao golpe militar.

No “Encontro de Mendes”, a fala da delegada da região Serrana, professora Lia Faria, intitulada – A explosão da voz silenciada foi a manchete do Jornal Oficial do Encontro “Escola Viva”. Aquele se revelou um momento significativo do pensamento da e na Educação do Estado do Rio de Janeiro. A professora Lia, à época, líder sindical e diretora do SEP 174, contextualizava as brisas libertárias que sopravam naqueles anos de oitenta do século passado. Após termos ficado emudecidos, silenciados por um Estado de exceção, que caracterizava-se pela suspensão de direitos civis e garantias democráticas. Inclusive com cassação de direitos para votar e ser votado, assim como as torturas e as prisões para averiguações, ainda muito próximos, na memória e nos cadeados simbólicos das

174 Sociedade Estadual dos Professores do Rio de Janeiro

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disciplinas de Moral e Cívica,que marcaram toda uma geração, que passou pela escola entre as décadas de 1960 até 1980.

BIBLIOGRAFIA

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ID: 873

POR UMA SENSIBILIDADE OBJETIVA: TAVARES BASTOS E A

EDUCAÇÃO NO IMPÉRIO

Autor: Juliana Cesário Hamdan Filiação: Universidade Federal de Minas Gerais – UFOP - DEEDU - PPGE

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RESUMO

O texto a seguir foi escrito com Aureliano Candido Tavares Bastos, a quatro mãos: quanto ele escreveu, em 1866, a lista de apontamentos que expressariam suas ideias sobre a instrução no Império. Na condição de historiadora, por meio de uma determinada forma de operação historiográfica, aqui em 2016, reescrevi suas notas procurando recuperar que tipo de lógica, de pensamentos e de ideias poderiam estar sustentando seus apontamentos. Para esse objetivo, o texto foi escrito na primeira pessoa do singular, da mesma forma como foi escrito pelo autor, na maioria das vezes, quando faz refere a si próprio. Para além de um atualização do discurso e da língua, trata-se de uma narrativa que pretende fazer emergir com maior força a presença do sujeito e colocar no nível mais imperceptível possível a presença do historiador ou ainda de das categorias interpretativas. Apoiados nestas, muitas vezes, se reconstrói um objeto mais afeito às categorias adotadas em si, do que propriamente a uma plena experiência historiográfica. Em outras palavras, inverte-se o sentido e a importância das outras em detrimento desta. A ideia é trazer, para o presente, por meio desta narrativa, o stimmung, ou a atmosfera intelectual e política, na qual Tavares Bastos viveu, compartilhou e ajudou a constituir na cena pública imperial, a partir do debate sobre a educação.

PALAVRAS-CHAVE

Tavares Bastos; manuscritos sobre educação; produção de presença

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INTRODUÇÃO

Sabemos que os cadernos recebiam os registros dos assuntos que seriam tratados posteriormente em artigos publicados em jornais, livros e discursos parlamentares. Assim, o presente trabalho toma como fontes principais os manuscritos sobre a educação, escritos pelo político alagoano, como subsídio para a sua inserção política, no Império, e as publicações em alguns dos maiores jornais de circulação no período, tal como o Correio Mercantil, além dos livros de sua autoria. Tais documentos estão ainda inéditos no suporte impresso e estão disponíveis em meio magnético no acervo da Biblioteca Nacional. Para o fim de atribuir maior organicidade ao texto, foram propostos subtítulos que emergiram a partir da incidência que os temas, a estes subjacentes, aparecem nos tópicos tratados pelo autor.

Considerando as passibilidades deste trabalho, elaborado com foco neste evento, nos limitaremos às vinte e quatro páginas iniciais do primeiro caderno, intitulado Instrucção – Volume I - Agosto de 1866.

“KNOWLEDGE IS POWER”- BACON

Para se compreender em profundidade qualquer processo de instrução é preciso que se estude e pesquise em documentos oficiais e em publicações confiáveis dados que possibilitem apreender a questão e formular proposições que possam, de fato, serem realizadas. Assim, começo registrando neste caderno de notas, alguns livros e relatórios que podem ajudar a compreender a questão da instrução pública no Brasil e em alguns países mais adiantados. Por meio destas notas, pretendo sustentar os argumentos que serão apresentados nas sessões da câmara e também publicações em artigos de jornais. Alguns dos dados aqui apresentados foram ou serão retirados das seguintes impressos:

1º - O protocolo de 1862, em diversas (lugares)

2º - O segundo volume do mesmo (1865)

3º - Pastas dos negócios do Império

Livros sobre instrução pública: vide os relatórios do Superintendente de Nova York, e dos seus ajudantes, sobre métodos, processos, exemplos, etc.

Relatórios do Ministro da Instrução Pública de Buenos Aires, e do “Departamento de Las Escuelas” (Cad. 1, 1866, p. 01).

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Organização da Instrução Popular nos Estados Unidos: artigo de Laveleye, na Revista dos Dois Mundos, de 15 de Novembro de 1865. (Já foi resumido adiante).

Idem, na Inglaterra, Canadá e Austrália. O mesmo, na mesma Revista de 1 de jan. 1866. O Ensino obrigatório e meios práticos, exposição da organização existente em França. O mesmo na Revista de 15 de abril de 1866. (idem).

Livros pedidos ao Garnier, em agosto de 1866:

1- Instrução nos Estados Unidos, obra publicada em Sueco, por P.A. Silvestrom, traduzido em inglês por Frederico Rovan.

2- Historie d’uma bouchée de pain, por M. Jean Macé, mostrando como as noções de Química Agrícola e Industrial, de Astronomia e Pisicologia podem ser postas ao alcance das moças.

3- M. Rendu e Os escritos sobre a instrução primária na Inglaterra. Sobre o mesmo assunto, o livro de M. Beyntiens (1864) (Cad. 1, 1866, p. 02).

4- U. W. Senion, Suggestions on popular education.

5- Rapport sur létas actual de 1º enseignenment em Belgigua, em Allemagne el em Suissa, por M. Baudowin, inspector general del’ instruction (memória) en France.

6 - Rapport de M.Matthess Arnald, publié, sobre a forma de Blue Book [...] de parlament Anglais (pedidos ao Garnier, em Agosto de 1866.)

7 - Mr. Cousin: Instrução pública na Alemanha. Mr. Cousin discute o ensino obrigatório, e lhe é favorável. Desenvolve também a organização da instrução Secundária na Alemanha (Cad. 1, 1866, p. 03)175.

A REALIDADE BRASILEIRA E POLÍTICAS PARA A INSTRUÇÃO PÚBLICA

Se se quer uma nação como as mais desenvolvidas do mundo, é preciso que o ensino primário seja obrigatório, como já se vê em muitas destas. No Brasil essa realidade ainda está longe de ser verificada. Entretanto, parece que o presidente da província do Maranhão, Lafayette (1834-1917), já entendeu esse fato, posto que em um novo regulamento estabelece alguns elementos para a instrução primária

175 Para facilitar a identificação dos textos com o caderno do qual foram extraídos, utilizo a seguinte forma de referência: Cad. 1, 1866 e a respectiva página.

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obrigatória. Para isso, é necessário que se considere alguns aspectos, tais como a responsabilidade de oferecer a instrução pública incluindo escravos e pessoas que vivem nas lavouras, e a de subsidiar estas iniciativas. É preciso também definir como estes subsídios podem ser distribuídos pelo governo geral, entre as províncias.

Como um primeiro deles está que cada proprietário rural de no mínimo cem escravos deve ter a obrigação de fundar e manter uma escola de primeiras letras para seus filhos, seus familiares e seus escravos. Da mesma forma, um conjunto de proprietários com menos escravos, dentro de determinado distrito ou localidade, deve ser obrigado a manter uma escola cotizando-a com a província. E o governo deve recomendá-la.

Como um segundo aspecto, no que se refere aos subsídios, o governo poderá prover a manutenção destas escolas primárias constituindo um fundo especial a partir da cobrança de 1% sobre o valor das exportações dos gêneros mais cultivados em cada região ou província, como por exemplo, o café no Rio de Janeiro, o algodão em Alagoas, o açúcar na Bahia, etc. O produto de vendas das terras públicas terá igual aplicação (Cad. 1, 1866, p. 4).

Como o terceiro deles, está que a subvenção vinda do governo geral, no valor de, por exemplo, mil contos, poderia ser distribuída de forma proporcional entre as províncias. Todavia, a subvenção deverá ter para uma destinação determinada para a construção de casas de escola primária, aquisição de mobília, utensílios, livros, modelos e engajamento de professores-modelos. E a subvenção só será dada às províncias que reformarem a sua instrução sobre estas bases comuns, e principalmente sobre estas: elevação dos ordenados dos professores; ensino misto dos seres em geral, nas cidades, definir o número de escolas, considerando o de habitantes. Seria oferecido a instrução primária e elementar, ou a profissional, das ciências físicas, do direito constitucional brasileiro, da sua historia e geografia, agronomia, etc. Mais além, será necessário definir melhor os meios repressivos para que o ensino seja obrigatório. Da mesma forma, quais poderiam ser as contribuições locais ou municipais (Cad. 1, 1866, p. 5).

A plena liberdade no estabelecimento de escolas particulares, ou sejam de, indivíduos ou associações, deverá ser defendia, tanto para instituições religiosas como civis. Uma forma de se estimular a instrução será por meio da exigência dos certificados do exame primário para todos os cargos públicos, de qualquer natureza.

O quarto e último ponto a ser considerado se refere às escolas normais, que deverão funcionar em casas especialmente construídas para isso, em 5 pontos (ou mais) do Império, e sustentadas pelo Estado. Os professores dessas escolas serão engajados nos Estados Unidos, no Canadá, na Escócia ou em lugares Especiais da Europa, Holanda, Vancouver. As escolas normais formarão os professores-modelos, que deverão ir, em cada uma das províncias da sua circunscrição, ensaiar os novos professores em novas casas de escola (Cad. 1, 1866, p. 6).

A insuficiência das escolas primárias atuais e a criação em cada município de internatos está demonstrada em publicação do Correio Mercantil, de 21 de agosto de

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1866, sob o título A lavoura no Parlamento, assignada por M. da R. Miranda e Silva. Eis o trecho:

No Brasil, como passamos a demonstrar nem da Instrução primária fornecida pelo estado a agricultura participa, posto que as escolas de primeiras letras estejam disseminadas por toda a parte.

Com a criação das cadeiras de primeiras letras em todas as cidades, vilas e freguesias o estado tem em vista, é verdade, derramar a instrução por todas as classes da sociedade; mas é fora de dúvida que por esse meio, mau grado seu, ele não preenche seu fim, porquanto essas escolas são mais que exclusivamente frequentadas por algumas cujos pais residem em seus circunvizinhanças. Os que ficam retirados uma e mais léguas, os agricultores propriamente ditos, por conseguinte, não utilizam destas escolas, porquanto para frequentá-las faz-se mister o aluno morar na cidade, vila ou freguesia, onde estiver a cadeira do ensino primário, e isso requer que o pai tenha ali casa própria ou de algum amigo, cujo os cuidados confiam seus filhos, com o que nem todos os lavradores podem contar.

Portanto, os agricultores não se aproveitam ou antes não podem se aproveitar de tais escolas, e eis porque dizemos que nosso país nem da instrução primária fornecida pelo estado a agricultura participa.

Já, que tratamos de tal assunto, e que o meio adaptado não preenche o seu fim, seja-nos permitido anunciar uma ideia que temos a respeito, com a qual, pondo-a em prática, o estado conseguirá a difusão da instrução, não só pela agricultura, que merece, mas ainda por todas as outras classes da sociedade. Animamo-nos a apresenta-la porque é dever de todo cidadão contribuir com o seu contingente, grande ou pequeno, para o bem de seu país e, pois, boa ou má ideia, apresentamo-la na boa intenção de concorrer com o nosso pequeno óbolo para a prosperidade da infeliz agricultura e a bem do país. Eis em duas palavras a ideia:

Suprimirem-se as cadeiras de primeiras letras de todas as freguesias, com as quais o estado gasta não pequena soma, criar-se em cada município ou cabeça de comarca num estabelecimento onde os alunos encontrem ensino, cama e mesa mediante uma mensalidade daqueles que dispuseram de alguns recursos, e grátis aqueles que forem reconhecidamente indigentes. Em tais estabelecimentos só se admitirão como internos os alunos que residirem distantes das cidades que foram criados ou estabelecimentos.

Com a criação de tais estabelecimentos, não obstante a mensalidade e a distancia que existirá para alguns, fornecendo aos alunos ensino, cama e mesa,

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o estado prestará melhor serviço do que o que faz com as atuais escolas, portanto remove o obstáculo que impede os agricultores de se utilizarem ao ensino fornecido pelo governo. E com tais estabelecimentos, [...] o estado podem impor instrução primária como uma obrigação, em outros termos, instrução primaria compulsória (Cad. 1, 1866, p. 9).

Dessa forma, para o autor do artigo, o ensino obrigatório no Brasil seria aplicável às cidades e vilas e a seus arredores, compreendidos em sua área. Quanto ao resto, é inadmissível. Mas, nestes termos, já não seria um pequeno serviço. Seja como for, para isso, é necessário primeiramente obter um conjunto de informações necessárias para se ter ciência da realidade no país. Para isso, seria importante enviar uma circular a cada um dos presidentes, pedindo-lhes, ou ao seus secretários:

1º Exemplares da última lei do orçamento; idem das tabelas distributivas das diferentes verbas; idem do balanço do último exercício encerrado ou publicado; idem do orçamento municipal último; sua receita e despeja.

2º Do regulamento em vigor, de instrução pública; e dos anteriores e revogados. 3º Do relatório último da presidência, ou do último do inspetor da instrução

publica na província, se existe. 4º Nota dos vencimentos dos professores e professoras, primários e secundários;

com indicação do que é ordem e do que é gratificação. 5º Número de escolas; numero de paróquias; numero de municipalidades. 6º Fonte de imposto para melhoramento da instrução pública (Cad. 1, 1866, p.

10). Além dessas informações será preciso obter as seguintes: 1. Quanto gastam as províncias com utensílios de escolas quais, e se as pagam as

câmaras. Exemplares de cada um. 2. Quanto gastam com aluguel de casas; quantas são de propriedade pública; condição em que se acham; espaço ocupado pela escola ou

pelas salas das classes. 3. Meninas matriculadas e frequentes em cada escola no período dos últimos

cinco anos, com os algarismos de cada ano. 4. Vencimentos dos professores e professoras , distinguindo-se ordenado da

gratificação. V.B [note bem]. Estas informações devem ser pedidas em requerimento à câmara

(Cad. 1, 1866, p. 11). Ainda se referindo às despesas com a instrução pública, pelos orçamentos das

províncias e do Império, é preciso levantar a conta, comparando o que gastamos com o que gastam outros países, com o que gasta a França, por exemplo. Esta, pelo orçamento geral, pouco gasta: as municipalidades fazem a maior parte da despesa. Conhecida a nossa despesa, podemos distribuí-la pelo número de alunos. Da mesma forma, a despesa com os vencimentos dos diversos professores em diversos países (Jules Simon, L’École, pag. 101, 108 e nota). Seria produtivo acrescentar um paralelo

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com a nossa despesa geral e provincial. Para isso é necessário exigir as informações das províncias (Cad. 1, 1866, p. 12).

É preciso definir quais as instâncias do estado serão responsáveis pela Nomeação do professor. Quem o deve nomear? O presidente? Seria esta uma boa forma de usar o poder dessa instância? Não intervirá nisto mal a política? Não intervém atualmente? Eu prefiro que, como na América do Norte, o superintendente, o diretor da instrução pública, escolha, nomeie e demita. Concentram-se nele todas as faculdades precisas, conforme nota de Jules Simon, L’Écoles (pag. 96.). O argumento que sustenta essa ideia é a da compensação, isto é, o diretor de instrução pública é incompatível para o exercício de qualquer outro cargo público e eletivo. Não pode ser eleito se não tiver anos depois de haver sido recomendado das funções. Assim, ele é a pessoa mais apropriada para esta atividade (Cad. 1, 1866, p. 14).

A esta altura, alguns pontos já podem ser constituintes para uma base de reforma geral: nas localidades, em que, ou por economia, ou por falta de professor idôneos, ou pelo diminuto numero de discípulos de ambas os sexos, não convier estabelecer escolas para cada um destes, se estabeleça uma escola mista para ambos. Dê preferência a mestre, sejam tais escolas regidas por mestras, competindo a estas em tal caso, vencimento maior para se encontrarem mais idôneas (Cad. 1, 1866, p. 14).

As escolas mistas em todo o Império serão reconhecidas e admitidas. Assim, os pais de família passam a enviar os seus filhos e filhas a uma escola pública ou particular, qualquer, seja regida por professor ou professora, a seu arbítrio, conforme lhes for mais cômodo à vista das distâncias ou seguindo a maior confiança que lhe inspire a idoneidade do professor ou da professora.

Desta forma, poderá haver, em uma escola dirigida por professora, meninos com meninas, e, vice-versa, em outra dirigida por professor, poderá ser recebidas meninas. A razão é a seguinte: a escola mista nada tem que agrave a moral. Na meninice é uma preocupação jesuítica essa da separação dos sexos. A confusão adoça os costumes, inspira numa fecunda rivalidade, faz da escola uma verdadeira família, e dos mestres e mestras, verdadeiros pais. Finalmente, estabelecido isto, é manifesto que o ensino primário ficará sendo uma carreira para as mulheres. É provável que elas absorvam como nos Estados Unidos. Com isto, ganharão a moralidade pública, o espirito nacional, e a própria instrução. Uma mulher instruída forma maior numero de homens educados do que um homem e a razão está que a sua vida no lar doméstico, e a vida exterior do homem; o seu predomínio sobre os filhos e a desatenção do homem distraído por outros encargos (Cad. 1, 1866, p. 15). Desse modo, o regime das escolas mistas seria adaptável desde já em todo o Brasil, porque em todas as províncias há maior número de escolas de meninos que de meninas, existindo paróquias em que não há nenhuma de meninas (Cad. 1, 1866, p. 16).

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A INSTRUÇÃO PÚBLICA EM OUTROS PAÍSES

Segundo a Revistas dos Dois Mundos, de 1a de agosto de 1866, à página 583 e seguintes, a Instrução Primária na Holanda prevê o princípio da laicidade em sua organização. O ensino de qualquer religião revelada é uma abstração. Mas a frente pretendo apresentar algumas demonstrações desse fato, extraídas da revista citada (Cad. 1, 1866, p. 7).

Em França, as escolas mistas, são em geral, escolas regidas por professor, escolas para o sexo masculino, onde são recebidas meninas : é assim que de 18.147 escolas mistas, 15.407 são regidas por professor, e só 2.740 por professora. (Jules Simon, pag. 135.) Nos Estados Unidos é mais geral a escola mista regida por professora, mesmo a escola, mista secundária ou do ensino do segundo grau (vide no outro caderno176 os algarismos sobre New York) (Cad. 1, 1866, p. 16).

Nos Estados Unidos é de antiguíssima origem a obrigatoriedade escolar. No código de leis do Connecticut promulgam em 1650 (cod. of 1650), segundo Toqueville (Democracy In America, Vol. 1º Cap. 2, p. 50 ) se bem asseguradas as disposições: criam-se escolas em todos os municípios (comunas). Obriga-se os habitantes diretos impostos para sustentá-las. Fundam-se escolas especiais no mesmo sentido. Os magistrados municipais devem velar em que os pais mandem os filhos à escola. Têm direito de multas os que a isso se recusem e, no caso de reincidência, a sociedade apodera-se do filho e faz o que o pai devia fazer (Cad. 1, 1866, p. 17).

E qual é o Estado de ensino primário em Portugal? Será possível engajar professores normais em Portugal? Ou seja, enviá-los para que complementem a sua formação iniciada aqui nas escolas normais. Os métodos e os conhecimentos estão ali bastante adiantados? O ensino é obrigatório em Portugal. Há que encaminhar estas questões, tais como a possibilidade de ali engajarmos bons mestres para ensinarem os novos métodos em nossas escolas normais. É preciso saber sobre os métodos de ensino primário, principalmente a escolha de livros e modelos; sobre os atlas de geografia, etc. Assim como também os resultados do método repentino do Castilho (1800-1850)177, e quais os modelos ali adaptados para isso, tais como gramáticas, exercícios de gramática, excertos de clássicos e literatura, dentre outros (Cad. 1, 1866, p. 19).

PROFESSORES: CARREIRA E APOSENTADORIA

Para ter bons professores no interior é mister pagar-lhes melhor. Ora, sem argumentar a despesa, poderia fazê-lo quanto às escolas das vilas e povoações,

176 Trata-se do caderno 2, que não será abordado neste estudo. 177 Como se sabe, trata-se de um escritor romântico português, polemista e pedagogista, criador do Método

Castilho de leitura.

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admitindo, em vez de uma escola para cada sexo, uma só para ambos, mista, sendo o reitor delas homem ou mulher, recebendo um vencimento razoável. Assim, em vez de professor e professora, com vencimentos de 6 a 900 contos de réis, pague-se a um só para o ensino de ambos as sexos o total dessas duas quantias, e elevará a possibilidade de encontrarem melhores professores (Cad. 1, 1866, p. 7).

Pensando em alguns meios para a aquisição de professores: como um primeiros, as escolar normais, como acima descrevo na página 6), deverão ser regidas por professores engajados no estrangeiro, ou sejam aqueles que estiveram lá para aprender as boas práticas. Em segundo, professores que desde já, as províncias mandem engajar em Portugal ou em países estrangeiros sabendo o português e em terceiro lugar, os jovens brasileiros a quem se mande praticar os novos métodos nos países estrangeiros por conta de cada província e do estado (Cad. 1, 1866, p. 8).

Há que se pensar em alguns estímulos para os professores: como um primeiro, definiriam-se prêmios segundo o bom resultado do seu ensino. Em segundo, estabeleceriam-se a preferência para quaisquer cargos, coeteris paribus, depois de 6 anos de serviço. O terceiro ponto, estará a hierarquia a do ensino, por meio da qual o provimento para as aulas secundárias será feito por concurso entre os professores primários e, na falha deste, é que se nomeará um estranho. E dos secundários retirem-se por concurso, igualmente, os superiores e os das faculdades (Cad. 1, 1866, p. 8).

Os meios de estímulo vão ao encontro da necessidade de abrir novas aspirações nos professores. O livro de Jules Simon (pag. 98) expõe o modo como a legislação francesa gradua os vencimentos, segundo os anos de serviço (Cad. 1, 1866, p. 13). Um meio me ocorre para graduar as vencimentos dos professores no Brasil, em forte escala ascendente, segundo os anos de efetivo serviço, por exemplo:

- título provisório nos três primeiros anos, com 800 $, pelo menos, ao professor de ambos os sexos,

- findo o terceiro ano, exame de habilitação e titulo definitivo, com 1ooo $ de ordenado.

- findo o sexto ano, 1ooo $. - Depois de 10, novo exame de habilitação em matérias superiores, que habilitem

o professor a passar ao ensino do segundo grau, e lhe deem direito ao vencimento de 1: 800$. Este será o máximo da instrução primaria.

- Em concurso, passa o professor primário do segundo grau, passar ao ensino secundário e então vencerá 2: 400 $.

- Daí ainda pode entrar nas escolas normais, e nas do ensino superior nas faculdades e institutos especiais, nos quais se pague maior vencimento que 2:400 $.

- Os presidentes de províncias apresentarão cada ano ao governo geral os professores do ensino secundário, que mereçam entram (Cad. 1, 1866, p. 12) em concurso para o provimento de cadeiras no resumo secundário, do normal ou do superior, e dos das faculdades e institutos, dependentes da administração geral.

- As pensões de aposentadoria só tinha o professor direito depois de certo ano de efetivo, provando impossibilidade física ou moral. Depois de quinze anos de efetivo,

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o professor faz direito à aposentadoria mesmo quando não tenha impossibilidade física ou moral. Mas, a pensão dessa aposentadoria corresponderá ao número de anos de efetivo serviço, sendo paga inteira depois de 20 anos.

- O que servir depois destes vinte anos, receberá mais tantos por cento por continuar, mas não pode continuar sem sofrer um exame, e sem mostrar-se habilitado nos novos métodos.

- O que ensinar as matérias do curso [...] em dois anos, receba por cada aluno aprovado em exame a gratificação de ..... $. (Cad. 1, 1866, p. 13)

Uma outra ponto que interfere na vida dos professores está relacionado à liberdade religiosa. A exigência do ensino do catecismo nas escolas primarias, fecha aos não católicos a profissão do ensino. Esta intolerância é um absurdo. Sua gravidade cumpre notar que, na Corte, nem a Lei de 17 de setembro de 1851178, nem o regulamento de 1854179, se formando a instrução contém disposição que separa o professor protestante, porquanto nem exigem o juramento, nem falam de doutrina católica, mas do ensino de doutrina cristã e da aplicação dos evangelhos. Nos regulamentos de 53, 54 e 55 para os cursos de direito e de medicina, nem o juramento das lentes , nem o dos professores compreende a religião católica (Cad. 1, 1866, p. 17).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo pretendeu apresentar os resultados parciais da pesquisa desenvolvida durante o estágio pós doutoral em Stanford University – CA/USA, entre 2014 e 2015. A pesquisa se estruturou a partir da investigação sobre novas possibilidades de constituição de chaves analíticas no campo da história e da historiografia, tomando como objeto e fonte um conjunto de documentos com cinco volumes manuscritos, sobre a educação, escritos pelo intelectual alagoano Aureliano Cândido Tavares Bastos (1839-1875), no Brasil Império.

A análise proposta sobre as interlocuções do intelectual com as ideias em circulação no período, investigadas por meio dos manuscritos, têm como objetivo aprofundar os estudos e análises históricas que permitam pensar na “produção de presença” como uma possibilidade de se conhecer e produzir narrativas sobre um determinado objeto histórico, tomando como referência as fontes e análises sobre estes mesmos objetos. Os objetivos propostos convergem para a ideia central deste estudo, que seria a possibilidade de elaborar formas de conhecimento que partam das análises interpretativas e suas narrativas, mas a superem, que vão além da atribuição de sentido aos objetos, deslocando-se para narrativas mais

178 “Autorisa o Governo para reformar o ensino primario e secundario do Municipio da Côrte. Coleção de Leis do Império do Brasil - 1851, Página 56 Vol. 1 pt I” (Publicação Original). http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-630-17-setembro-1851-559321-publicacaooriginal-81488-pl.html Acesso em 13 de março de 2016.

179

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presentificadas, mais eivadas de vida, mais móveis, cambiantes, menos estabilizadas: trata-se de um processo de produção de presença ou, em outras palavras, uma objetivação das sensibilidades.

Esta pesquisa incide mais diretamente sobre o período em que Tavares Bastos escreveu os cadernos sobre a educação, ou seja, entre 1866 e 1868, considerando sua inserção política como deputado pelo estado de Alagoas, e o debate sobre a educação presente na cena pública do Brasil Império.

Durante o percurso investigativo, consolidou-se o reconhecimento de que os estudos históricos sobre a educação, de uma maneira geral, têm avançado muito no Brasil e no mundo. Não apenas em termos quantitativos mas, sobretudo, em termos qualitativos, quando se pode observar, de modo geral, refinamento nas análises, escolha e tratamento metodológico das fontes e objetos, além de uma maior familiaridade e interseção com outras áreas do conhecimento, tais como a filosofia, política, a sociologia, a antropologia, estudo de gêneros e etnias, dentre outros. Longe de se pensar nos “louros” e cientes de que essa realidade aumenta os desafios para os historiadores, o reconhecimento desta levou-nos a uma outra questão a ser enfrentada: como podemos pensar novas formas de produzir conhecimento histórico para fazer avançar o campo?

Alguns trabalhos do professor de história da literatura comparada da Stanford University, Hans Ulrich Gumbrecht, apontam para o fato de que esta realidade pode provocar uma possível estagnação, sobretudo se consideramos a predominância de modelos interpretativos muito cristalizados, justificado por um certo esgotamento do modelo analítico interpretativo elaborado na modernidade. Segundo o professor, ainda que em diversos níveis este tenha sido superado, alguns elementos permanecem, de forma bastante recorrente. Dentre eles, o de que a única forma de produzir conhecimentos nas humanidades seria por meio de análises interpretativas.

A proposição do autor sugere que a insistência e a exigência de retomada de trabalhos considerados como clássicos, hegemônicas na academia, sempre relidos, muitas vezes de forma enviesada e apressada, para atribuir sentido aos objetos de estudos, tem a ver com a incapacidade de produzir a presença desses mesmos objetos. Isto é, o sentido construído por meio da apropriação por parte dos autores passam a representar o próprio objeto, que no entanto, muitas vezes, permanece passivo e em silêncio, na experiência de existência reduzida à análise ou apenas como uma espécie de “ventríloquo”, manipulado pelas teorias. Assim, mesmo com o avanço do campo e das consistentes chaves teórico-metodológicas adotadas, alguns dos principais trabalhos de história, em geral, e história da educação, em particular, dizem quais os sentidos os autores atribuem aos objetos ou o que os objetos históricos queriam ou poderiam estar querendo dizer.

A possibilidade de conhecer novos processos de pesquisa, para além das formas interpretativas analíticas hegemônicas na academia, tem sido o “motor” deste estudo. Não obstante os esforços interpretativos, realizados por meio da operabilidade de consistentes chaves conceituais adotadas, permanece ainda a sensação de que alguns objetos estudados permanecem inacessíveis, em silêncio, num passado imóvel e,

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numa imagem um pouco dramática, soterrado pelas análises. Com as assertivas apresentadas, não estamos defendendo a improdutividade ou a inutilidade das análises interpretativas. Bem ao contrário, foi muito em função de um grande refinamento das análises históricas interpretativas constituídas, sobretudo a partir da modernidade que, por um lado, possibilitou a emersão de novos conceitos, novos objetos e novas metodologias. Não há dúvidas de que “[...] os textos e os conceitos são os meios mais adequados para uma abordagem interpretativa do passado.” Por outro lado, foram esses mesmos refinamentos, que permitiram a formulação de novas questões e partindo destes, apontam também alguns de seus próprios limites. Isso teria se dado porque, “[...] até mesmo as mais básicas jogadas intelectuais de historização parecem alterar-se assim que elas começam a servir ao desejo de tornar presente o passado, e essas alterações obrigam-nos a revisitar alguns requisitos e pressupostos básicos da profissão de historiador” (Gumbrecht, 2010, p. 154).

De acordo com as proposições do literato podemos inferir que não é o passado que precisa das ações do presente para ter um sentido, para reviver, ainda que de forma sintomática. Seria o presente que precisaria do passado para se constituir como tal, para produzir significados, entendimentos sobre si mesmo. Entretanto, paradoxalmente, não haveria entre nós um lugar muito bem definido para o passado mais presentificado, mais experiencial, mais tangível, mais próximo, mais objetivo. As ações historiográficas geralmente se estabilizam na construção interpretativa do sentido, mas paradoxalmente, também não se satisfazem com esta. Esse fato, de acordo com o referido autor, explicaria, ao menos em parte, o crescente interesse atual pelos museus, como se estes funcionassem como uma constante sedução do passado para a sua permanência entre nós.

BIBLIOGRAFIA

GUMBRECHT, Hans Ulrich (2010). Produção de presença. O que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto e ED. PUC-Rio.

HAMDAN, Juliana Cesário (2014). Tavares Bastos e a educação no império: as palavras e os conceitos. In: VALLE, Ione Ribeiro; HAMDAN, Juliana Cesário; DAROS, Maria das Dores (Orgs.). Moderno, modernidade, modernização: a educação nos projetos de Brasil – séculos XIX e XX (pp. 141-154). Belo Horizonte: Mazza Edições.

KOSELLECK, Reinhart (2006). Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto e ED. PUC-Rio.

SOUZA, Josefa Eliana (2006). Uma compreensão a partir de referente norte-americano do “Programa de Instrução Pública” de Aureliano Cândido Tavares Bastos (1861-1873). Tese (Doutorado em Instrução) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.

TAVARES BASTOS, Aureliano Cândido de (1975a). Cartas do Solitário. Companhia Editora Nacional: São Paulo.

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ID: 993

INFANCIA EM WALTER BENJAMIN: PROPOSIÇÕES PARA A

INVESTIGAÇÃO HISTORIOGRÁFICA Autor: Cinthia Gabriela dos Santos Regina Brito Mota dos Santos Filiação: Universidade Federal de Alagoas

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RESUMO

A proposta desta comunicação pretende abordar as colaborações do pensamento de Walter Benjamin para se investigar a formação da criança nas primeiras décadas do século XX, época na qual o pragmatismo de John Dewey tornava-se uma das principais referências dos estudos da Escola Nova no Brasil. Uma leitura de Dewey nos permite entender como a sua concepção progressiva de infância é inseparável de uma visão evolucionista da História, na qual apagar a memória dos antigos, das tradições é fundamental para formar o homem novo. O argumento a ser desenvolvido aponta a visão benjaminiana como um campo teórico metodológico para educadores e historiadores, porque nela, a valorização da experiência infantil é inseparável de uma nova leitura da história da infancia.

PALAVRAS-CHAVE

Infância, Benjamin, História.

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INTRODUÇÃO

O conceito que atribuímos à infância hoje, não é inaugural, é fruto do que se foi pensado sobre a infância em épocas anteriores. A principal consequência disso é enxergarmos infância como algo que deve ser moldado conforme a moda do dia, e a criança obrigada a acompanhar as mudanças que ocorrem no mundo.

Uma influência em relação às formas de interpretação da criança é possível através do conceito de experiência do projeto escolanovista de John Dewey. Conforme consta em sua obra Experiência e Educação (1934), Dewey abarcava uma visão progressiva, pois ele entendia que a educação deveria estar centrada nas experiências da criança proporcionando uma aprendizagem gradual e autônoma. A infância estaria no centro desse debate por ser projetado como “ser do futuro” que iria corrigir a humanidade, onde o tempo da criança era o tempo do progresso, de aceleração, sem olhar para trás. A infância, assim como a vida, era apenas uma etapa a ser superada, vivida de forma vazia, em busca de um “vir a ser”. A escola, na inspiração escolanovista, teria a tarefa de regenerar os males sociais. Para tanto, apagar toda a tradição seria a primeira tarefa para formar o homem novo.

Mas é exatamente a colocação de uma visão progressiva sobre a infância que o filosofo alemão W. Benjamin enfrentará. Pensar em um desenvolvimento progressivo da criança, não se separa de uma visão evolucionista da História, que classificava diferentes grupos ou sociedades pelo nível de domínio técnico. Sua crítica se estenderia não apenas a formação infantil, mas também a arte, a técnica e o modo de vida moderno, que passava a artificializar as relações humanas. Para Benjamin, o tempo da infância era também o tempo da História, porque a vida deveria ser vivida de forma plena, o que hoje já não é mais possível, em consequência da aceleração das formas de vida moderna, como Benjamin ressalta em O Narrador (1985).

O autor de Passagens propõe uma reconsideração sobre a infância, não mais pensada como fase do desenvolvimento humano, pois o seu mundo não era diferente do mundo dos adultos. Este sujeito tinha no lúdico uma forma de se religar ao passado e as tradições exigia dos adultos, explicações simples, mas não infantis. Neste sentido, guardava distância da ideia de que a criança não compreendia assuntos sérios. Pelo contrário, conforme Benjamin, ela compreendia mesmo as coisas mais abstratas e pesadas, desde que fossem apresentadas de maneira simples, honesta e espontânea.

Colocadas estas reflexões iniciais, neste trabalho buscamos apresentar algumas colaborações sobre a experiência da criança na modernidade, a partir do confronto entre as teorizações de Walter Benjamin e John Dewey. A análise sobre a infância se desenvolve a partir de textos do próprio Benjamin e de comentaristas da teoria crítica da cultura, da infância e da modernidade, como Pereira (2009), Schlesener (2011), Santi (2012) e Ferreira (2015). O diálogo com Dewey, sobretudo com a obra Experiência e Educação, é fundamental para estabelecer distinções entre os modos como os dois autores enxergam a infância, a relação entre adulto e criança, o conceito de experiência e o sentido de tradição infância que direcionam os seus escritos.

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No campo da história da educação, Marcelo Ride (2012) tematiza a cultura material como fonte de pesquisa e investigação historiográfica, o que nos permite considerar o brinquedo como um objeto que possibilita à criança acesso à valores de uma determinada cultura. Clarice Nunes (2005) traz algumas reflexões sobre como esta discussão serve de aporte teórico-metodológico no campo da pedagogia. Ao lado de Nunes, Gagnebin (2012), Mitrovich (2011) e Lowy (1996), são outros autores que, durante muito tempo, estiveram em contato com a obra de Benjamin, e que estão nesta discussão como importantes referências teóricas.

O texto está organizado em três partes. A primeira seção apresenta e discute o lugar da criança no projeto da Escola Nova e qual o conceito de experiência que fundamenta o seu projeto, bem como, as distinções do entendimento de experiência e tradição em Benjamin.

Na segunda seção, tematizamos as contribuições do pensamento de Walter Benjamin sobre os brinquedos e as brincadeiras infantis, analisando de que maneira a ideia de infância se vinculou a uma nova leitura da história, que visa à retomadada tradição e da memória do que foi sufocado, reprimido no processo de constituição da modernidade. Em Brinquedos e jogos (1928), História Cultural dos brinquedos (1928) e A hora das crianças (2015), Benjamin reúne alguns dos textos sobre a criança onde faz uma crítica contundente aos dogmas da indústria moderna180 de brinquedos.

Desta discussão emergem outros conceitos que perpassam o seu amplo projeto teórico, a saber: a experiência moderna, a reconstrução da história a partir de detalhes e ruínas, a temporalidade como repetição ou como criação, noções que, no conjunto do seu pensamento, se entrelaçam.

1. A EXPERIÊNCIA DA CRIANÇA NA MODERNIDADE

O sentido que atribuímos à infância é produto de construções sociais e, portanto, a ideia de experiência infantil é sempre condicionada pelo contexto histórico-social em que a criança está inserida. A título de exemplo, a visão adocicada da criança como um ser puro e distante das asperezas do mundo adulto, chega como uma maneira de reagir às formas severas de como a infância era concebida na Idade Média. O movimento escolanovista se insere nesta busca de ruptura com a teoria tradicional no campo da educação, tendo como inspiração o filósofo norte-americano John Dewey.

No contexto de escolarização das décadas de 1920 e 1930 no Brasil, o pensamento escolanovista ganha forças, já que pretende sanar os problemas sociais a partir de uma educação adequada aos novos tempos. Isto colocava Dewey na mesma

180 A crítica à indústria cultural já vinha sendo trabalhada pelo Instituto de Pesquisa Social, graças ao qual muitosdos textos de Benjamin puderam ser publicados.O Instituto seria o ponto de convergência de um grupo de pensadores nascidos na virada do século XIX para o XX, basilarmente formado por Theodor W. Adorno (1903-1969), Max Horkheimer (1895-1973), Erich Fromm (1900- 1980) e Herbert Marcuse (1898-1979).

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linha de otimismo dos intelectuais de seu tempo. Em seu projeto de Escola Nova, Dewey se coloca contra o pensamento tradicional, por fazer do aluno um receptor dos conhecimentos que foram incorporados pelas gerações anteriores. John Dewey propõe romper com este pensamento e o confronta com os interesses reais da criança, pois a teoria tradicional impõe os padrões desenvolvidos para adultos sobre aqueles que ainda caminham lentamente para a maturidade.

É contra esta imposição dos mais velhos aos mais jovens que Dewey passa a

enfatizar a individualidade. Para ele, a aprendizagem é um processo que se dá por experiência e não pelo saber acumulado por textos e professores. Em reação à concepção positivista de sociedade da teoria tradicional, o projeto escolanovista de Dewey acreditava que era através da experiência que o conhecimento deveria ser adquirido. Não é lido, não é contado, é experimentado. Na crença em um conhecimento que fosse inteiramente novo e útil, ele era um critico radical da visão tradicional do mundo, considerando-a conservadora. Cabia às crianças romperem com a sujeição às regras e padrões estabelecidos pelo mundo adulto.

Benjamin também irá concordar com Dewey em diversos pontos, porque ele enxerga na imposição do adulto os efeitos do racionalismo ocidental fruto dos ideais iluministas: "Isso se deve ao fato de que até o século XIX [...] o adulto constituía para o educador o ideal a cuja semelhança ele pretendia formar a criança" (BENJAMIN, 2002, p. 98). Sua crítica se dirige ao fato de o adulto se considerar como o estágio mais avançado da criança e, portanto, um modelo a ser atingido, na mesma posição das sociedades europeias como a parte mais avançada da humanidade.

Certamente, a diferença fundamental entre os dois pensadores está no conceito de experiência. Dewey formula um conceito de experiência que, conforme podemos analisar, é muito próximo da ideia de vivência e de contexto:

Ninguém questionaria o fato de que uma criança que mora em uma favela tem uma experiência diferente de uma criança que mora em um lar de uma família de classe média culta; [...] ou que um menino do litoral tem experiências diferentes das de um menino do sertão (DEWEY, 2011, p. 40).

Trata-se de uma experiência que se materializa no presente vivido pela criança, e a este presente que ela deve adequar. É um conceito de experiência que converge com a lógica atual de modernidade, que visa o progresso e a manutenção da ordem estabelecida. O papel ativo da criança na Escola Nova significa considerá-la como uma tábula rasa, que não necessita da história de seus antepassados, pois o que interessa é formação do homem novo.

Esta formação não agradava Benjamin, porque a tradição, a memória dos antigos, as fábulas ligam a uma época pré-capitalista. O sentido de tradição apropriado por Benjamin, não pressupõe que os conhecimentos acumulados no passado, nos sirvam no presente de forma autoritária, mas é o que permite “[...] recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a própria

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experiência, mas em grande parte a experiência alheia) [...]” (BENJAMIN, 2012, p. 240). É tarefa do historiador, rememorar este passado em busca de promessas não realizadas e dos sofrimentos que foram abafados pela História oficial que tem sido a comemoração das façanhas dos heróis, aqueles que apenas contribuem para o progresso da sociedade burguesa. É um passado que precisa vir à tona, pois se não houver rememoração, haverá esquecimento, e com ele o silenciamento dos sofrimentos vividos no passado. Cabe ao historiador deste presente resgatar as memórias, e incorporar o messias181 que vem para dar voz aos gemidos. Só quem sabe ler alegoricamente as cifras dessas esperanças derrotadas, contidas no exercício da rememorização, pode salvar a História.

Diante disto, a experiência da criança serve para o historiador como uma forma de entrar em contato com outra temporalidade, já que ela não se encontra nos moldes da civilização atual. Como analisa Schlesener (2011, p. 133), a criança habita o mundo “[...] sem a preocupação de definir ou respeitar limites, criando outras relações de pertencimento e temporalidade, que resultam em novo conhecimento do mundo”. A relação da criança com a cultura se dá sempre no campo da produção e não da reprodução, porque ela se coloca no mundo de forma a questionar os sentidos dados e lhe confere novos significados, mecanismos que ela encontra para sobreviver à cultura que lhe é imposta.

Em Experiência (1913), obra da juventude de Benjamin, já sugere a importância desse conceito para sua teoria, por que faz uma crítica ao adulto que subestima a capacidade da juventude e também da criança. Nas palavras do autor:

A máscara do adulto chama-se ‘experiência’ [...] ele sorri com ares de superioridade [...] de antemão ele já desvalorizava os anos que vivemos, converte-os em época de doces devaneios pueris, em elevação infantil que precede à longa sobriedade da vida séria (BENJAMIN 2002, p. 21).

A experiência das crianças é entendida como diferente da experiência dos adultos, pois enquanto o adulto narra a sua experiência com êxito, a criança a recria. Em Brinquedos e Jogos, o filósofo alemão coloca que enquanto descreve sua experiência, a criança se fundamenta na repetição típica da brincadeira e dos jogos como forma de elaboração de suas experiências. Segundo o autor, a “[...] essência do brincar não é um ‘fazer como se’, mas um ‘fazer sempre de novo’” (BENJAMIN, 2002, p. 102).

Assim como a criança encontra formas sutis de resistência às formas de vida e cultura do presente, cabe ao historiador procurar subverter à historiografia que, baseada em uma visao evolucionista da história, enxerga o passado como sucessão de

181 Lowy (1996) tematiza a relação entre Messianismo e Revolução nas obras de Benjamin, onde o historiador incorpora, metaforicamente, o messias que vem para salvar a História, assumindo um compromisso com a história não-oficial, daqueles que foram vencidos.

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vitórias fundamentais ao progresso da humanidade. Esta visão progressiva abre mão dos conhecimentos tradicionais e propõe uma visão positiva do presente.

É a este entusiasmo para com o presente que Benjamin dirige todo o seu pessimismo, pois encontra nesta visão de desenvolvimento histórico uma forma de manutenção da classe dominante, que parece fazer progredir a destruição da humanidade. Benjamin está fazendo referência à perda de sociabilidade comunitária, o que nos faz pobres, pois destituído de experiências coletivas, o humano se aproxima da barbárie. Nunes (2005, p. 89) explica que, para Benjamin

a verdadeira experiência […] não se encontra no meio das massas civilizadas nem nasce simplesmente da existência do homem em sociedade. A experiência 'verdadeira' nasceria da palavra poética, da relação com a natureza, o mito, a memória e a tradição.

Deste modo, é no que se refere à noção de experiência e ideias sobre criança e infância, que o autor enxerga nesta experiência a possibilidade de construção de outra racionalidade, diferente daquela empregada pela modernidade. Como analisa Santi (2012, p. 208) "A infância é a chave da experiência perdida para o adulto, que o coloca de novo na possibilidade de criação de um tempo (e de uma experiência) não mecânico, não aprisionador".

Em O Narrador, Benjamin denuncia o definhar da experiência na modernidade e, por outro, esboça simultaneamente, a necessidade de sua reconstrução. Nos dizeres de Gagnebin (2012):

[...] de um lado, demonstra o enfraquecimento da Efahrung no mundo capitalista moderno em detrimento de um outro conceito, a “Erlebnis”, experiência vivida, característica de um indivíduo solitário, esboça, ao mesmo tempo, uma reflexão sobre a necessidade de sua reconstrução para garantir uma memória e uma palavra comuns, malgrado a desagregação e o esfacelamento social (p. 9).

A experiência se torna cada vez mais escassa na modernidade, em função da incapacidade dos sujeitos de narrar acontecimentos memoráveis, dos avanços tecnológicos característicos do progresso, o que acaba por minimizar a memória coletiva deles. Para Benjamin, a partir da modernidade, a experiência se torna cada vez mais individual, uma “experiência vivida”, isolada. A ideia de vivência se refere ao capitalismo e a sua capacidade de gerar traumas, cuja vida do indivíduo se resume em interpretar os choques e as tensões da vida moderna, habilitando-o a viver como autômato, sem passado e sem futuro.

Assim, podemos compreender que, mesmo Dewey sendo contrário à ideia tradicional de imposição do adulto em relação à criança, o seu conceito de experiência está muito próximo do de vivência. Com um conceito de experiência tão de acordo com este presente, Dewey mostra o seu desejo de adequar a criança a este

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novo tempo e, por isto mesmo, não reflete criticamente sobre a barbárie moderna, pelo contrário, o que está relacionado à modernidade é visto como avanço.

À contrapelo dos intelectuais de sua época, Benjamin refuta a imposição do adulto, pelo fato de que tal imposição visa justamente a adequação da criança a civilização. Mitrovich (2011) explicita em seu estudo que este conceito de experiência pode ser entendido como uma forma de resistir à cultura. Na tese VII Sobre conceito de História, Benjamin irá propor uma investigação historiográfica contra esta corrente:

Todos os bens culturais têm uma origem sobre a qual não se pode refletir sem horror [...] Nunca houve um momento da cultura que não fosse também um momento de barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. A tarefa de todo e qualquer historiador é escovar a história a contrapelo (BENJAMIN, 2012, p. 245).

Nenhum elemento da cultura fez ainda justiça aos sofrimentos vividos no passado, na verdade, estes tesouros só fazem acumular o peso sobre as costas da humanidade. Assim, a sua oposição radical em relação à Dewey, consiste nesta recusa ao que propõe a modernidade, de acomodação em relação ao presente, porque é fundamental atender a súplica dos derrotados, pois "[...] uma história verdadeiramente humana deve estar mais voltada para os sofrimentos do passado que para as promessas do futuro" (MITROVICH, 2011, p. 76).

Além de definir um tipo de infância adequada à modernidade, teóricos como Dewey ajudaram a expandir um novo meio de produção com a indústria e a produção em serie de brinquedos. O homem novo requisitado deveria se ajustar a esta nova ordem social e produtiva. O contraponto de Benjamin nos explica como as mudanças na produção de brinquedos, com a consolidação da sociedade capitalista, interferem drasticamente no campo da infância, que agora passa a ser alvo de investimento.

A produção em massa do brinquedo, por exemplo, se justificava pela necessidade de se atender aos desejos infantis de ludicidade, assim compreendidos pelo conceito moderno de infância. Significava, portanto, que o adulto agora considerava a infância como uma idade própria, com suas necessidades. Desse modo, a Escola Nova se coloca de maneira positiva frente a indústria de brinquedos ou a qualquer novidade dirigida à infância. Supõe que através das inovações, também os novos métodos escolares na educação infantil, incluindo os jogos, caminham para a mudança.

2. BRINQUEDO E CULTURA MATERIAL: PARA UMA HISTORIOGRAFIA DA CRIANÇA

Todo brinquedo traz junto de si estilhaços da sociedade, da economia, da política, das artes e da ética das relações sociais. Como analisa Pereira (2009) o brinquedo carrega em si uma época, um modo de ver o mundo e de relacionar-se com as

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crianças, uma forma de educar e apresentar a tradição, um projeto de sociedade. É assim que W. Benjamin vê o brinquedo, como um lugar de produção da cultura material.

Observando os brinquedos com atenção, Benjamin nos convida a perceber a riqueza que há nos detalhes. Essa forma de percepção traduz sua perspectiva metodológica de produção de conhecimento. Como o passo do poeta em Boudelaire, este também deve ser o passo do historiador: "[...] ele deve apanhar na capital o lixo do dia que passou. Tudo o que a grande cidade deitou fora, tudo o que perdeu, tudo o que despreza, tudo o que destrói - ele registra e coleciona" (BENJAMIN, 1975, p. 16). Mas Benjamin acentuava que contar a história apenas a partir dos fragmentos também era insuficiente. Era insuficiente tentar compreender a realidade dos brinquedos apenas a partir do espírito infantil, e permanecer na totalidade da infância, porque o brinquedo era parte de uma ampla rede social e cultural.

Marcelo Ride (2012) nos ajuda a compreender o brinquedo industrializado enquanto mercadoria, como um objeto de análise histórica. O autor advoga que o consumo do brinquedo, enquanto mercadoria, não pode ser visto exclusivamente do ponto de vista econômico, como ato final da cadeia produtiva, mas como um momento de recepção de mensagem e expressão de valores. Quando um adulto oferece um brinquedo para a criança, ele faz isto em conformidade com a representação do que deve ser um brinquedo. Em Benjamin, também é entendido que o fetichismo da mercadoria ultrapassa o interior das indústrias, porque ocorre principalmente com a mediação social: "Para Benjamin, o fetichismo se manifesta não na produção das mercadorias, mas em sua circulação" (GAGNEBIN, 2012, p. 37).

Benjamin (2002) relata que antes do século XIX, o brinquedo era produzido de forma artesanal por pais e filhos, o que significava uma forte ligação entre a criança e a família. Na paulatina passagem de um modelo artesanal de produção para um modelo industrial, o brinquedo deixou de ser um produto de “restos”, para ser um produto industrializado, onde o novo substituía a tradição. A sua critica à produção industrial alerta que

[...] quanto mais atraentes, no sentido corrente, são os brinquedos, mais se distanciam dos instrumentos de brincar; quanto mais ilimitadamente a imitação se manifesta neles, tanto mais se desviam da brincadeira viva (BENJAMIN, 2002, p. 93).

O adulto termina por esquecer que a criança pode criar os seus brinquedos, porque a criança tem um poder imaginário superior ao adulto e capaz de transformar qualquer objeto e espaço em brincadeira, inclusive acomodada às suas necessidades vitais, físicas e psíquicas.

Foi esse o olhar singular para a infância que mobilizou Walter Benjamin a escrever e apresentar programas de rádio para crianças entre os anos de 1927 e 1932, sem jamais subestimar a capacidade de compreensão do seu público, tratando dos

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mais variados assuntos, como economia, política, tecnologias, enfim, sobretudo que lhe pudesse chegar sincera e diretamente do coração.

Como observa Pereira (2009) propor uma programação que tivesse por interlocutores as crianças, dá-nos a dimensão do lugar ativo no qual Benjamin reservaria às crianças na cultura e, da importância que a temática da infância ocupa em sua obra. Benjamin diz que não precisamos artificializar o ambiente das crianças, tampouco os seus brinquedos, porque o brinquedo industrializado retira o papel ativo da criança que é o de criação. Passeio pelos brinquedos de Berlim II reforça sua preferência: “Para mim não há nada como os brinquedos de papel” (2010, p. 69), pois nos brinquedos de papel as crianças são as construtoras e podem encontrar facilmente a matéria prima para sua produção.

O brinquedo produzido nas fábricas é portador de uma intenção pré-estabelecida, fato que revela o seu caráter homogeneizador, uma vez que lá é pensado em um brinquedo que seja adequado a todas as crianças. Mas espaço das brincadeiras e dos jogos infantis, para Benjamin, resistia ao que se pretendia inculcar. Ao contrário do que o adulto acreditava a brincadeira nem sempre significava imitação, pois nela a criança recriava as situações ao seu modo. Mesmo o brinquedo industrializado, portador de uma intenção preestabelecida, não limitava a capacidade criativa da criança.

Benjamin argumentava a respeito da capacidade mimética da criança. O seu conceito de mímesi não se restringe ao de imitação, mas se aproxima ao de libertação. Sobre a brincadeira infantil o autor mostra que a criança tem uma intensa ligação com a natureza, ela não imita apenas pessoas, mas objetos, animais, seres místicos e tudo o que a sua imaginação alcança: “A criança não brinca apenas de ser comerciante ou professor, mas também de moinho de vento e trem” (BENJAMIN, W. 2014, p. 117). Porque ela ainda é cheia de magia que transcende pelos olhos e encantam o mundo a sua volta, ao tempo em que conversa com ele fora da hierarquia.

A recuperação do conceito da mímesis aristotélica, como o oposto da imitação, é um conceito fundamental para o ofício do historiador que compreende a operação historiográfica como uma forma de compor a identificação entre documento e o evento ou a experiência humana. A busca das semelhanças não pode ser confundida com a procura da identidade: o modelo dessa busca é o mundo do inconsciente, o mundo dos sonhos em que os acontecimentos não são nunca idênticos, mas semelhantes. À vista disto, a produção de semelhanças pode ser reconhecida nas brincadeiras infantis é porque a criança estabelece outra relação com o tempo, e é no processo de educação que ela vivencia e se adapta às formas temporais do adulto.

Essa maneira peculiar da brincadeira infantil se opõe a velocidade desenfreada da indústria, porque a criança não precisa de algo mirabolante para se divertir, dos brinquedos de última geração que a mídia divulga insistentemente a fim de provocar o sentimento de necessidade. Pelo contrário, ela age "Como se soubesse do caráter provocativo, insubordinado, de tal atitude, a criança deseja mais tudo aquilo que não foi destinado a ela: ela quer os farrapos, os detritos, o lixo" (SANTI, 2012, p. 210).

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Neste momento, o objeto aparentemente mais inútil, toma uma forma diferente dada pela criança, uma que o adulto jamais tenha visto. A sua brincadeira não se torna enfadonha em função da simplicidade dos objetos transformados em brinquedos por ela, uma vez que a brincadeira é norteada pelo que Benjamin nomeou de lei da repetição.

Sabemos que a repetição é para a criança a essência da brincadeira, que nada lhe dá tanto prazer como “brincar outra vez”. O obscuro ímpeto da repetição não é menos violento nem menos astuto na brincadeira do que o impulso sexual do amor. Não é por acaso que Freud acreditava ter descoberto nesse impulso um “além do princípio do prazer”. (BENJAMIN, 2012, 270 - 271).

Esta eterna vontade de repetição é o que Freud denomina atividade mental no processo primário, em que a mente da criança não consegue controlar os seus desejos, obedecendo ao princípio do prazer (Peter Gay, 2012).

Pensar a relação entre a produção artesanal de brinquedos e a sua produção industrializada implica ultrapassar uma visão evolucionista de história em distinguir diferentes grupos ou sociedades pelo nível de domínio técnico. Para Benjamin, a criança mantém vivo algo que se perdeu com o advento da modernidade e que tem como paralelo o que os intelectuais identificam como a crise da experiência.

Entender essa perda implica explicitar alguns aspectos da modernidade, na perda de referências coletivas, substituídas pela vivência individual e solitária do homem moderno que rompeu os laços com o passado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com este debate sobre a formação da infância em torno dos fragmentos teóricos do filósofo alemão Walter Benjamin, supomos ter colaborado para revisitar os postulados da Escola Nova nas decadas iniciais do século XX. Como abordamos, tratava-se de um contexto marcado por grande aceleração industrial, e os projetos para a criança a colocavam como um ser ativo, frente à cultura, criativa e crítica, por seu estranhamento ao que lhe é imposto.

A produção literaria desses dois intelectuais revelava, entretanto, lados opostos de intepretação, sobre a infancia, numa mesma época. Dewey elaborou um conceito de experiência ajustado àquela época, pois entendia que a criança precisava se adequar a este novo tempo. Na contramão, Benjamin entendia que a experiência da criança por não se realizar de maneira mecânica, como pressupunha as formas de vida moderna, não deveria ser moldada de acordo com as necessidades da atualidade. À luz das teorizações de Benjamin, o historioador que lida com a experiência da criança deve entendê-la como uma forma de entrar em contato com outra temporalidade, pois ela não se encontra nos moldes da civilização atual. Frente a isto, entendemos que o ofício de quem produz historiografia consiste em incorporar o intelectual que vem para salvar a história, de modo a se ater a tudo que nos religue

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ao passado, pois é nele que está enterrada a história dos oprimidos e seus gemidos sufocados elo peso da modernidade e do progresso. Contudo, deve compreender que este passado já se foi e a forma como o historiador olha para ele é fundamental para influenciar o curso da investigação. Portanto, entende-se o motivo da historiografia ser um trabalho tão delicado e laborioso.

A nossa pobreza atual é das experiências coletivas e de uma sociabilidade comunitária nas quais se fundamentavam as sociedades pré-capitalistas. Reconhecer esta perda implica em entender que estamos caminhando para a barbárie, porque passamos a nos contentar com pouco, com uma experiência em definhamento, sem olhar para o lado e nem para trás. Tidos como de tabula rasa, a sociedade nova nos veste com antolhos e nos condiciona a olhar do presente para o futuro, nos deixando pobres, em uma espécie de esvaziamento histórico. Mas se é das ruínas que se produz história, é na ausência de condições sociais que possibilitam a experiência (a sociabilidade comunitária), que o historiador deve evocar deliberadamente essa memória (involuntária) sepultada pelo desenvolvimento do capitalismo, de forma a tornar acessível ao homem moderno às lembranças e esperanças relacionadas com outro tipo de sociabilidade.

Esta breve introdução ao conceito de experiência benjaminiano, que visa provocar um mal estar na cultura atual, nos aponta a necessidade de aprofundar a reflexão sobre as formas atuais de educação. A título de exemplo, uma das grandes preocupações dos pedagogos tem sido a procura febril por materiais e brinquedos que sejam mais adequados às crianças. Contudo, eles esquecem da fantasia e da criatividade que permeiam o universo infantil, e também da sensibilidade que a permite se encantar com elementos que os adultos desprezam, como os trapos, lixos e restos: é com eles que elas produzem o seu brinquedo. Isso nos instiga a repensar como a escola dialoga com os ideais de infância na modernidade e com as práticas modernas de relacionamento. Consideramos que a educação teria a essência do não-acabamento, ou da possibilidade de conhecer o humano, mas de nunca conhecê-lo completamente. Daí a importância do respeito às singularidades, às sensibilidades e os desejos, aqui em particular, da criança.

Tentar atualizar a teoria de Benjamin ao mundo moderno para instrumentalizar, seja o professor ou o historiador, ou para pensar numa escola ideal, seria cair num extremo romantismo e abrir mão de categorias fundamentais, ao tempo em que isso se limitaria a trazer um método, uma medida pragmática. Pelo contrário, intentamos contribuir para que se busque uma perspectiva historiográfica, que veja na tarefa de quem escreve a história, uma nova maneira de religamento com o passado, ou como diria Clarice Nunes, recuperar o que se perdeu do lado oposto das certezas.

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ID: 1008

A REDE DE REFERENCIABILIDADES COMO METODOLOGIA DE

PESQUISA: O INÍCIO DE UM PERCURSO EM DIÁLOGO COM

FONTES PRODUZIDAS POR GABRIELA MISTRAL E CECÍLIA

MEIRELES Autor: Rosângela Veiga Júlio Ferreira Carolina Veiga Júlio Ferreira Filiação: Universidade Federal de Juiz de Fora Universidade Federal de Minas Gerais

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RESUMO

O texto reflete sobre o processo de elaboração de uma metodologia de pesquisa. A rede de referenciabilidades coloca-se como possibilidade interpretativa que permite a compreensibilidade de movimentos ocorridos em uma temporalidade, considerando relações estabelecidas em diferentes dimensões de espacialidade em que sujeitos agem sobre e pelo lugar que ocupam suas ações no tempo histórico. Analisamos crônicas jornalísticas e cartas entendendo que os laços de trabalho entre Mistral e Meireles retratam o tempo em que viveram e simultaneamente nos possibilita compreendê-lo. O conceito de rede de referenciabilidades advém do movimento de interpretação dessas fontes à luz do conceito de referência ricoeuriana e de rede de sociabilidade na perspectiva da História Cultural e naquilo em que esses aportes teóricos não responderam. Nesse movimento de interpretação foi possível comparar laços de trabalho em territórios geográficos distintos. A perspectiva de interpretação institui-se pela simultaneidade do processo de compreensibilidade tecida a partir de similitudes que conduzem à identificação de convergências e divergências, continuidades e descontinuidades, movimentos de idas e vindas pela ocupação do território feminino da palavra no tempo vivido. Desafios que promoveram ações de formação do leitor que se romperam pelos desafetos e por interesses conflitantes inerentes a um projeto de sociedade.

PALAVRAS-CHAVE

Rede de referenciabilidades, Metodologia, Fontes de pesquisa.

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1. INTRODUÇÃO

O objetivo deste texto é refletir sobre a rede de referenciabilidades como metodologia de pesquisa na área da História da Educação. Ao nos depararmos com crônicas jornalísticas e cartas - fontes históricas - produzidas pelas intelectuais182 Gabriela Mistral e Cecília Meireles, limites e desafios advieram do percurso de escrita da história comparada (Schirewer, 1997)183.

Ao tomar as crônicas como fonte de análise, o desafio foi o de pensar essas fontes jornalísticas datadas para além dos limites de sua produção. Enfrentamos esse desafio, a partir do conceito de tempo histórico. Para realizar essa análise, foram selecionadas as crônicas escritas por Mistral e Meireles, que tratam direta ou indiretamente de temas ligados à educação.

Considerando os limites e as possibilidades de interpretação das crônicas analisadas, a pretensão foi a de identificar relações entre os sentidos que ambas as intelectuais atribuíram a essas produções jornalístico-literárias para refletir sobre suas ideias em tempos cronológicos distintos, ao enfrentarem os problemas dos países em que atuaram. Referimo-nos ao México e ao Brasil, respectivamente. Analisamos essas fontes não para acatar as soluções apontadas por aquelas intelectuais com o intuito de preencher lacunas da formação do leitor na contemporaneidade, mas para interpretar discursos educacionais por elas proferidos nos espaços públicos que ocuparam. Interpretamos as crônicas atentas ao inédito – fundamentos da modernidade educacional - e que pode provocar a suspensão de certezas. As informações que circularam nessas crônicas e que permitiram compreender particularidades desse tempo histórico atribuem contornos fixos a alguns dos fios da rede.

As cartas foram interpretadas com o intuito de refinar as análises das crônicas jornalísticas no que se refere, principalmente, às concepções de educação popular que Mistral e Meireles defenderam quando atuaram na formação do leitor, nas décadas de 1920 e 1930, respectivamente.

A linha metodológica escolhida apoia-se em dois pontos: um que procura identificar os laços geracionais, a partir do que essas duas intelectuais disseram a seus pares, o que interfere no segundo, nas relações instituídas pela rede de referenciabilidades. Essa rede nos possibilita reinterpretar os ideais compartilhados, ao identificar os traços da dimensão privada que naquelas cartas se colocaram, assim como os pensamentos educacionais que nelas vigoraram e que remetem a uma

182Adotamos neste artigo a acepção dada ao termo intelectuais por Cecília Meireles, qual seja: alguém que consegue, ao olhar “as coisas do alto, vê-las em conjunto, ainda sem perder o encanto dos seus pormenores: contemplando o mundo como apartado dele, ama a variedade de ideias, sem se perder nos seus contrastes, com esse gosto, que só o pensamento universalista encontra, de ver emergir dentre as ondas contraditórias a realidade humana em sua figura completa” (Meireles, 1932).

183 Para ler sobre a comparação entre os laços de trabalho que Mistral e Meireles estabeleceram em torno do discurso de formação do leitor nas primeiras décadas do século XX, no México e no Brasil, respectivamente, ver Ferreira (2014).

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dimensão pública, permitindo entender os discursos que marcaram a novidade da modernidade educacional.

Nesse percurso investigativo identificamos nos laços geracionais fios encadeadores da rede de referenciabilidades, entendida como possibilitadora de sentidos advindos das dimensões éticas, estéticas, sociais, educacionais, artísticas, políticas, afetivas, entre outras. Os sentidos advieram da investigação de fatos que ocorreram na modernidade educacional a partir de uma concepção de passado aberta a novas interpretações.

Para defender a metodologia, atentando para a necessidade de instituirmos um rigor acadêmico que não represente uma mera junção entre dois campos metodológicos já consagrados na análise de fontes documentais, ampliando, dessa forma, a visão sobre o objeto de pesquisa, apresentamos o texto em questão como uma narrativa do percurso diante das fontes. As escolhas são aqui narradas a partir da visão do pesquisador diante das análises pelas leituras teóricas do conceito de referência ricoeuriana e de rede de sociabilidade, na perspectiva da História Cultural. Ambas incursões metodológicas foram ora possibilitando interpretações e ora apontando limites para as respostas que procurávamos. Desse modo, em um primeiro momento trazemos esse percurso de aproximação e de afastamento e, na sequência, aspectos conceituais da rede de referenciabilidades a partir da identificação de meandros de constituição de laços de trabalho.

2. A CONSTRUÇÃO DA REDE DE REFERENCIABILIDADES: NARRANDO PERCURSOS DE COMPARABILIDADE

Durante o processo de escrita da dissertação184 alguns pontos se colocaram como forma de desdobramento da pesquisa que nos permitiu definir o tema de doutoramento: como a criança era entendida no tempo em que a intelectual Cecília Meireles esteve à frente de territórios políticos. Todavia, no recorte daquele texto foi possível identificar que a artífice dialogou com outros intelectuais de sua geração e o ponto que precisava ser definido era por qual deles os fios da nova pesquisa seriam tecidos e a rede estabelecida.

A necessidade de definir essa escolha conduziu o percurso de constituição do projeto de doutoramento para caminhos distintos e, simultaneamente, complementares. Distintos na medida em que tanto intelectuais brasileiros quanto aqueles de outros países possibilitariam uma comparação entre projetos de nação que impactavam em políticas de formação da criança. Complementares por ser possível identificar que esses intelectuais eram contemporâneos de Meireles, portanto, estavam inseridos em um mesmo contexto histórico, cultural, social,

184 A dissertação de Ferreira (2007), defendida no Programa de Pós-Graduação em Educação, da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora, intitulada No veio da esperança a essência etérea da criança diversa na escola: o jogo inquieto do discurso jornalístico de Cecília Meireles.

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político e, em alguns casos, econômicos, entre outros pontos de aproximação. O reconhecimento desse solo comum complexificou o processo de escolha do sujeito e também do objeto de pesquisa. Havia o tema, mas não o foco sobre o qual o objeto se definiria, pois era preciso escolher o que cotejar e por quem olhar esse percurso para chegar ao como estabelecer vieses comparativos. Referimo-nos aos educadores brasileiros Henriqueta Lisboa, Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira, por exemplo, à francesa Mme Artus Perrelet e à chilena Gabriela Mistral. Sendo os laços de trabalho que a última instituiu ao longo de sua trajetória jornalística, educacional, literária e política os escolhidos como fonte para análise e definição dos componentes cotejados na rede de referenciabilidades.

O que fica desse percurso de dúvidas quanto à escolha do sujeito que dialogaria e, dessa forma, possibilitaria a comparação com o percurso educacional traçado por Meireles é o fato de as duas intelectuais pertencerem a uma mesma geração, terem compartilhado experiências em torno da formação do leitor, delineando contornos de conquistas e dilemas.

Era necessário então identificar pontos que caracterizavam aquele tempo histórico, compreendendo aspectos que se colocavam como marcos espaciais de ocupação daquelas intelectuais elencadas como sujeitos de pesquisa, tendo como mote investigativo da rede o projeto que pensaram sobre a formação da criança e a mulher leitora em países geograficamente distintos, mas que formam uma mesma espacialidade: a América Latina 185 . Para essa identificação fomos às fontes produzidas por Mistral e por Meireles nos diversos espaços públicos que ocuparam para que pudéssemos comparar os percursos profissionais e pessoais e recortar o que dessas fontes responderia aos problemas elencados na pesquisa.

Conseguimos compreender que o que fizemos foi a identificação de similitudes para a definição dos sujeitos com quem iríamos traçar diálogos que nos permitissem defender um ideário de educação daquele tempo histórico.

A necessidade de detectar o solo comum pela definição do tempo histórico, das espacialidades e dos sujeitos pela identificação de similitudes políticas e educacionais em dois países da América Latina definiu um percurso de singularidades que diferiam, por exemplo, se a escolha fosse pelo encontro entre a francesa Mme Perrelet, que veio ao Brasil para contribuir com a formação de professores que pudessem pensar o desenho como forma de compreender sentidos que a criança atribui ao mundo. Na mesma medida, se a comparação fosse entre escolhas políticas dos intelectuais que assinaram o Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova186 ao lado

185Trata-se dos projetos de educação que advieram da Reforma Educacional mexicana de 1922, protagonizada pelo Secretário de Educação Pública José Vasconcelos, e da Reforma Educacional Brasileira administrada por Anísio Teixeira quando atuou como Diretor Geral de Instrução Pública do Distrito Federal, no Rio de Janeiro, em 1931.

186O Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova, documento assinado por vários intelectuais vinculados à Associação Brasileira de Educação, apresentava os ideais educacionais que deveriam pautar a escola no contexto da modernidade educacional.

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de Meireles ou se fossem com aqueles que se destacaram por escreveram para crianças aqui no Brasil, como foi o caso da poetisa Henriqueta Lisboa. Dúvidas que reforçaram a importância não só da definição do solo comum, mas também do quanto esse solo é entendido pelas espacialidades.

As redes de compreensibilidade foram formadas pelo entendimento das duas intelectuais agindo no tempo em que viveram, enfrentando barreiras culturais, sociais, econômicas, territoriais que foram ora conduzindo-as a ocupação de novos territórios políticos, aproximando-as de seus ideais, e ora afastando-as.

Os problemas por elas vivenciados, colocados pelos percursos de trabalho que instituíram no movimento de deslocamento dos espaços privados de ocupação da mulher para os públicos, assim como aqueles que advieram da implementação dos projetos de formação do leitor que defenderam, foram de fundamental importância para o estabelecimento da rede de referenciabilidades.

Foi por essa rede que foi possível identificar continuidades e descontinuidades do projeto de formação do leitor pensado por essas intelectuais em diálogo com outros de sua geração, entendendo que os desafetos representaram cortes fundamentais e decisivos nas redes que traçavam, conduzindo-as a outros lugares, alterando fluxos e provocando a ocupação de novos territórios.

Com base no percurso empreendido para a definição dos elementos que sustentaram a rede, o que registramos como fator a ser considerado é a impossibilidade de definirmos, mesmo considerando o rigor acadêmico, uma ordem hierárquica para a escolha dos critérios de reconhecimento de temporalidade, espacialidade e sujeitos no processo de tessitura das redes que sustentam argumentos em torno de experiências. O que constatamos é que esse processo acontece de forma simultânea e singular, sendo necessário considerar variáveis contextuais. Todavia, esse caminho não é fluido, pois na medida em que ocorrem as incursões às fontes é possível delinear ocupações espaciais precisas que dão sustentação às análises: nexos causais fundamentais no movimento de definição dos nós e dos fios que conduzem a novos nós e novos fios. O movimento de análise implica na constituição de um mosaico de informações em que o desafio é o de não deixar fios soltos: amarrá-los, reinterpretando-os num exercício de definição de referenciabilidades que possibilitam refletir sobre causas e consequências de problemas do tempo histórico que colocam limites, mas apontam possibilidades de atuação. No recorte que sustenta a argumentação deste texto seria, por exemplo, pensar simultaneamente as dimensões social, cultural, econômica, política, ética, estética, territorial, educacional e, na mesma medida, o tempo histórico como possibilitador das ações das intelectuais no campo literário, jornalístico, educacional e político.

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3. A REFERÊNCIA RICOEURIANA E A REDE DE SOCIABILIDADE: PONTOS DE ENCONTROS E DESENCONTROS NA CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS

Durante a pesquisa, quando nos vimos diante do desafio de sustentar os argumentos a partir das contribuições dos campos metodológicos da Hermenêutica e da História Cultural, percebemos que os diálogos que Gabriela Mistral e Cecília Meireles travaram entre si e com outros intelectuais na modernidade educacional representavam um elemento importante para entender o pensamento educacional de ambas. Cada um dos aportes teóricos elencados possibilitava pensar na influência dos intelectuais no pensamento educacional das duas poetisas a partir de pontos de vista complementares, a saber: a Hermenêutica, no plano da interpretação das experiências compartilhadas pelas intelectuais em um solo comum – a modernidade educacional; a História Cultural, no plano dos sentidos que advieram das relações estabelecidas por essas intelectuais em sua dimensão afetiva, atentos aos implícitos que uma imersão em culturas distintas pode promover. Consideramos, assim, as contribuições do campo da História Cultural, no que se refere à rede de sociabilidade.

No que tange à Hermenêutica, o pensamento de Ricoeur (1995) que entende por referência aquilo que surge no jogo da compreensibilidade, da elaboração do sentido, em que o discurso narrativo vale-se de um duplo movimento: o que nos permite um afastamento do real, a configuração, e o que nos possibilita uma aproximação com o real, a refiguração, tendo como ponto comum o mundo vivido como validação do real ou pretensão de verdade. Buscamos, então, compreender em que medida, no campo intelectual, as ideias de Mistral influenciaram o pensamento de Meireles, e vice-versa, identificando o solo comum que as une, ou seja, as conexões que entabularam entre si e com outros intelectuais. No entanto, o que fizemos não foi a junção das duas perspectivas teóricas, utilizando-nos o que delas pudesse responder aos problemas que se colocaram àquele tempo.

Para situar a atuação de Mistral e de Meireles nos projetos educacionais que desenvolveram na modernidade educacional, importa aclarar o que compreendemos por tempo histórico em que situamos a concepção de modernidade educacional como inacabada187. Em consonância com a hermenêutica ricoeuriana (Ricoeur, 2007), destacamos a temporalidade, condição fenomênica de percepção do tempo vivido, que se efetiva através de marcações metodologicamente diferenciadas: cronometria, cronologia, cronografia e cronosofia.

As três primeiras dizem respeito à marcação cronológica propriamente dita. A cronometria associa-se à marcação cíclica, isto é, a que se repete indefinidamente - dia, semana, mês, ano. A cronologia é a marcação linear de períodos como século e

187Rocha (2011) e Nunes (2009) elencam pontos diferentes para entender e polemizar o acontecimento da modernidade, apesar de ambos defenderem que se trata de um acontecimento inacabado, cujos dilemas ainda permanecem na contemporaneidade.

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milênio e que, portanto, não se repete. A cronografia diz respeito à percepção da passagem temporal pela sucessão de acontecimentos com marcação definida uns em relação aos outros. É o ponto de referência em uma narrativa, no caso deste texto, a modernidade educacional. Por último, a cronosofia diz respeito aos sentidos atribuídos aos acontecimentos cada vez que se vai a eles, percebendo-os como inacabados, permitindo, portanto, especulá-los, pesquisá-los, reinterpretá-los. O tempo histórico constitui-se, nessa concepção metodológica, em um jogo constante entre essas quatro dimensões.

A modernidade educacional é compreendida, então, como um tempo amorfo (Ricoeur, 2007), porque o sentido para este tempo não está posto. Essa modernidade não é tomada apenas em sua circularidade – cronometria – ou em sua linearidade – cronologia. Interpretá-la é produzir um sentido novo para os acontecimentos a partir das imbricações entre cronografia e cronosofia.

Ao realizarmos o movimento de comparação no tempo histórico em que viveram, constatamos que as respostas não estavam na perspectiva cultural nem na hermenêutica, mas na relação entre o que se assemelha nas trajetórias de ambas as intelectuais, atentando para a temporalidade em que se inseriam, nas relações que arquitetavam na ocupação de espacialidades, agindo sobre aquele tempo modificando-o e sendo por ele modificadas.

Consideramos as contribuições da História Cultural, no que se refere à rede de sociabilidade, como mais uma referência que, em articulação com outras, auxiliou na compreensão de como as ideias de Mistral influenciaram o pensamento de Meireles, e vice-versa, identificando o que as une. Trata-se de laços que instauraram entre si e com outros intelectuais formando referenciabilidades que são na contemporaneidade retomados, rompendo, dessa forma, com o tempo cronológico de produção dos discursos.

Defendemos que para compreender essa influência mútua é necessário perceber o sentido que se instaura quando uma experiência é vivida a partir de referências comuns, compartilhadas pelo humano. Isso implica entender, nas cartas e nas crônicas, os laços geracionais, considerando percursos, contextos e outros elementos implícitos nesses textos. Gomes (1993, p.65) aponta que “se os espaços de sociabilidade são ‘geográficos’, são também ‘afetivos’, neles se podendo [...], pensar uma espécie de ‘ecossistema’, onde amores, ódios, projetos, ideais se chocam, fazendo parte da organização da vida relacional”. Essa dimensão afetiva dos laços geracionais requer considerar experiências advindas dos lugares frequentados por ambas as intelectuais, atentando para o tempo e os sujeitos que neles circulavam, dialogando com uma ideia de tempo simultâneo e de duração, observando possíveis aproximações e/ou afastamentos.

Não se trata de uma sobreposição da contribuição de um e/ou outro campo teórico, como dissemos anteriormente, mas do esforço de compreender laços geracionais de outro lugar: o da experiência como referência. Essa concepção acrescenta ao conceito de rede de sociabilidade, pautado na História Cultural, a existência de lugares e relações, nos quais o solo comum (referência) seja

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comunicado e o sentido edificado. Acrescenta ainda a ideia de que os desafetos, que Gomes (1993) define como “ódios” afasta as duas intelectuais daquilo que defendiam, portanto, rompem os nós da rede, mesmo tendo clareza de que instituem novos nós que geram laços de trabalho.

A análise dos enfrentamentos que geraram desafetos a ambas aponta para o aumento da distância entre o que defendiam e o que se operacionalizou, gerando rupturas que não foram reconstruídas, mas sim destruíram projetos. Referimo-nos, no caso de Meireles, ao afastamento de atuações em espaços públicos específicos que mesmo quando retomados perderam a dimensão inicial de luta por uma educação pública e por um lugar para a criança nos debates educacionais, ou a destruição total do Centro Cultural Pavilhão Mourisco. No que se refere à Mistral ao deslocamento para atuações em esferas políticas mais amplas que não lhe possibilitava uma influência direta a questões educacionais, como o fato de terminar sua significativa trajetória pública atuando como embaixadora do Chile nos Estados Unidos, longe dos ideias educacionais que lhe foram tão caros.

Pensar o tempo histórico do acontecimento dos projetos de formação de leitor na modernidade educacional e a dimensão afetiva advinda do(s) lugar(es) em que esse acontecimento se manifestou permite compreender o processo de instituição dos laços geracionais. Laços que podem ser percebidos a partir dos sentidos que emergem dos diálogos que Mistral e Meireles travaram entre si e com seus contemporâneos, nos lugares que frequentaram, nos livros que leram e nos textos que escreveram. O entrelaçamento dessas ações e, simultaneamente, suas especificidades, constituem a rede de referenciabilidades, tecida de diversos campos da experiência humana, que foram detalhadamente trabalhados na tessitura da rede defendida em processo de doutoramento.

Conscientes da riqueza interpretativa das fontes, respeitando a dimensão de autoria que nelas se coloca, pois nos vemos diante de narrativas que revelam estilos, procuramos conservar a curiosidade intelectual, identificando características geracionais – pontos cruciais da rede de referenciabilidades. Em suas narrativas do cotidiano, observamos como Mistral e Meireles manifestavam, pela escrita das crônicas e das cartas, acertos, aberturas e dilemas, vivenciados nos espaços públicos que ocuparam. Esse fato, que dificulta a apreensão do passado, ao mesmo tempo instiga a dialogar com outras fontes para entender os possíveis acontecimentos que ocorriam naquele tempo, tanto para o remetente quanto para o destinatário, considerando os explícitos e os implícitos do contexto do tempo histórico. A incursão àquelas cartas pessoais e às crônicas jornalísticas permite compreender a fronteira tênue entre a dimensão individual do tempo vivido pelas intelectuais, e a coletiva, que remete a um mesmo tempo histórico em que os discursos foram produzidos.

4. O DIÁLOGO COM AS FONTES COMO POSSIBILITADORA DE SENTIDOS PARA A REDE DE REFERENCIABILIDADES

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Para o estudo do percurso desenvolvido pelas intelectuais Gabriela Mistral e Cecília Meireles num contexto social, econômico e cultural, diferente da sociedade atual tomamos como base a possibilidade de compreendê-las através dos textos que produziram, identificando o esboço de novos seres no mundo. Entendendo as fontes que ambas produziram como um “conjunto de referências abertas pelo texto [...] a espiritualidade do discurso se manifesta pela escrita, libertando-nos da visibilidade e da limitação das situações, abrindo-nos um mundo, a saber, novas dimensões do ser – no – mundo” (Ricoeur, 1989, p.190).

Portanto, um texto escrito, ao ser tomado como fonte investigativa, pode ultrapassar seu tempo de produção, sem as amarras dos sentimentos do autor que o produziu num dado tempo cronológico. A busca por essa quebra de linearidade, ao analisar os fatos históricos a partir de vivências compartilhadas descritas de forma narrativa, dá-se num movimento de retomada que um contexto outro oferece. Nessa perspectiva, a obra das duas intelectuais, embora datada, encontram-se inacabadas: ações humanas abertas a interpretações.

O discurso das intelectuais é entendido como conexão central em vários pontos da rede de referenciabilidades, materializações temporais, pois “tudo o que se narra acontece no tempo, desenvolve-se temporalmente; e o que se desenvolve no tempo pode ser contado” (Ricoeur, 1988, p.24) por, pelo ponto de vista cultural, encontrar representações.

Ao tomarmos a linguagem das fontes crônica e carta pela relação de alteridade a concebemos como viva e dinâmica, constituindo-se, portanto, em forma de registro da experiência humana. A compreensibilidade dessas fontes não ocorre de forma diferente, a despeito das especificidades de cada gênero porque são entendidas como produções humanas. Quando falamos que: “isto que Mistral e Meireles escrevem é uma crônica ou uma carta”, já fazemos uma interpretação. Essa interpretação deixa um sentido para além do seu enunciado, levando-nos a compreender o texto como ação. Uma ação deixa um rastro, põe sua marca quando contribui para a emergência do curso dos tempos, que se tornam documentos da ação humana. Aqui compreendida como “um fenômeno social, não apenas porque é a obra de vários agentes, de tal modo que o papel de cada um deles não se pode distinguir o dos outros, mas também porque os nossos atos nos escapam e têm efeitos que não tínhamos visado” (Ricoeur, 1989, p.195).

A análise de estratégias discursivas de ambas as intelectuais, na perspectiva da História cultural, possibilita "identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler" (Chartier, 1990, pp.16-17), quer seja a leitura das fontes como fenômeno social, marca do humano que permite interpretar acontecimentos registrados em textos no tempo em que são gerados.

Nesse ponto, o pensamento do filósofo Paul Ricoeur apresenta uma intertextualidade com a discussão aqui proposta de compreensibilidade das fontes produzidas pelas intelectuais que nos permitem constituir a rede de referenciabilidades: “o que diz o texto importa mais do que aquilo que o autor quis

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dizer; doravante, toda a exegese (significado) desenvolve os seus processos no seio da circunscrição de significação que rompeu as suas amarras com a psicologia do seu autor” (Ricoeur, 1989, p.189). Com essa interpretação, o discurso é tomado na sua dimensão de alteridade, pois seu sentido ocorre pela interação do leitor a quem se dirige, nesse caso, leitores de gerações que sucederam aquela que produziu o discurso e que, na mesma medida, sofreu a influência de pensamentos de gerações anteriores numa perspectiva de circularidade. Nesse sentido, constitui-se como formas de compreensão do tempo histórico nas e pelas relações que os sujeitos tecem pelas ações que exercem no mundo materializadas pelas linguagens: obras inacabadas.

Tomamos a concepção de inacabamento para a rede de referenciabilidades, que atribui movimento à interpretação, para pensar a questão da historicidade. Nessa perspectiva de análise, a constituição do sujeito histórico, como parte da sociedade que o afeta e/ou quando é por ela afetado, já não é a do conhecimento histórico concebido como método; ela designa a maneira como o existente se relaciona com os existentes: suas intencionalidades, as dimensões éticas e estéticas das escolhas, entre outros fatores que permitam interpretar esse movimento de formação da consciência histórica. A compreensão já não é a réplica das ciências do espírito à explicação naturalista; ela diz respeito a uma maneira de ser próxima do ser, anterior ao encontro de entes particulares. Ao mesmo tempo o poder da vida de se distanciar livremente em relação a si mesma, de se transcender, torna-se uma estrutura do ser finito. Se o historiador pode medir-se pela própria coisa, igualar-se ao conhecido, é porque ele e o seu objeto são ambos históricos, podendo, portanto, formar conexões que se enredam desdobrando-se em novas ações do presente, considerando o passado e o futuro: um entrelaçar de concepções ideológicas.

Trata-se do entendimento do ser histórico e ideológico como aquele que defende ideais por estar no mundo e que, portanto, não há como ser isento de uma concepção de mundo. Dessa forma, concebemos a visão ideológica dos espaços ocupados pelas duas intelectuais como possibilidade de conhecer o pensamento de Mistral e de Meireles.

Os laços de trabalho que Mistral e Meireles instituíram, ao se deslocarem do espaço privado para o público, quando atuaram nos campos literário, jornalístico e educacional, identificados nas crônicas jornalísticas que produziram, repercutiram em outras esferas de atuação, revelando-se em cartas que trocaram entre si e com outros intelectuais tempos depois, o que constituiu mais fios da rede de referenciabilidades.

Ambas as fontes são consideradas como registros de eventos singulares do passado que ganham significado pela análise do contexto em que se inserem, portanto, pelo entendimento de ações simultâneas desencadeadas por intelectuais de gerações que se tocam na e pela rede de referenciabilidades. Buscamos compreender a produção das fontes pelas duas intelectuais nas minúcias de detalhes, no que tange à perspectiva cultural, centrada na intersubjetividade do pesquisador, mas também na articulação dos discursos que se entrecruzam na produção de enunciados que

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caracterizam o tempo histórico de confecção dos discursos expressos nas crônicas e nas cartas.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pelo que discutimos neste texto na defesa da rede de referenciabilidades como uma forma de interpretar fontes de forma comparada, identificando discursos produzidos em um solo comum- o tempo histórico- pelas relações estabelecidas em dimensões de sociabilidade aproximamo-nos e nos afastamos na busca pela edificação de diálogo com conceitos advindos da hermenêutica ricoeuriana e da história cultural.

Aproximamo-nos quando consideramos Cecília Meireles e Gabriela Mistral como mulheres que romperam com paradigmas do tempo em que viveram na produção de obras que encontram reflexos e refrações em discursos contemporâneos na luta pela formação do leitor desde a infância. Nesse sentido, entendendo o discurso como ação da linguagem humana que se realiza temporalmente e que para interpretá-los precisamos olhar para fragmentos de acontecimentos históricos que no tempo se coloca atentos à totalidade que os constitui.

Distanciamo-nos da concepção de rede de referência ricoeuriana na medida em que o que tomamos como conexão central para as fontes escolhidas a ideia de que ultrapassam o tempo de produção sim, sem dúvida, mas também possibilita compreendê-lo nas realizações nele dadas.

Nessa concepção é possível compreender que se trata de mulheres de seu tempo e interpretá-las pelas fontes que produziram em um dado tempo cronológico é entendê-las nas ações dos laços geracionais do tempo histórico e no que neles se colocam como desafio de compreensibilidade. A interpretação da obra ultrapassa o tempo de produção, mas, na mesma medida, diz por uma análise simultânea, comparada com produções de espacialidades distintas e complementares ou divergentes, de acontecimentos que marcam aquele tempo e podem ser pensados e ressignificados em temporalidades cronológicas distintas.

Nessa perspectiva de compreensão da rede de referenciabilidades, ao tomarmos a rede de sociabilidade como mais uma conexão do processo de interpretação, afastamo-nos dela própria, no campo da História Cultural, quando entendemos a dimensão afetiva com implicações diferentes nos afetos e nos desafetos, sendo os desafetos descontinuidades dos fios da rede. Nas minúcias sem abandonar a totalidade as fontes se colocam, mas considerando, especialmente, aspectos simultâneos de uma mesma realidade.

Consideramos a simultaneidade da ocupação dos espaços públicos das intelectuais, entendidos nas exigências da modernidade educacional, tempo em que se encontram similitudes e, consequentemente, oportunidade para comparar acontecimentos, o que nos levou a identificar relações de causalidade encadeadas por pontos específicos e complementares. Temporalidade. Espacialidade(s). Sujeito(s).

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Agentes e, simultaneamente, pacientes que sofrem interferências do tempo histórico por meio da ocupação de espaços distintos e complementares: conexões da rede de referenciabilidades que marcam confrontos e consensos, possibilitando que cotejamentos sustentem análises sobre formas de organização sociais que são frutos de historicidades diversas em contextos semelhantes. Esse movimento de simultaneidade interpretativa possibilita o mapeamento das fontes e o recorte do foco que responde a(s) questão(ões) de investigação: análises comparadas de pontos de divergência que se originam em similitudes.

Cada um dos aportes teóricos elencados possibilita pensar por um lugar específico: a Hermenêutica, na interpretação das experiências características na modernidade educacional; a História Cultural, nos sentidos que advieram das relações firmadas na dimensão afetiva. Todavia, o que fomos interpretando implica considerar não só o tempo histórico, os lugares e as dimensões afetivas, mas sim como os implícitos de um tempo histórico permite entender aproximações e afastamentos de concepções. Ao avançar no movimento de comparação, atentos aos pontos de entrecruzamento determinados por aspectos inferenciais, muitas vezes marcados por ausências, é necessário entabular relações e ir tecendo-as, procurando conexões centrais, consensuais ou não, em torno de um discurso específico, no caso em questão, aqueles que circulam em torno da defesa de um lugar para criança em políticas públicas de formação do leitor.

Encontramo-nos, no momento, desenvolvendo a referida metodologia na pesquisa sobre ensino de História e Geografia nos anos iniciais e formação continuada de professores, elencando pontos de comparabilidade no processo de estabelecimento de referentes para análise188. A ideia é a de que possamos, com base em diferentes pontos de vista, identificar respostas às questões que levantamos sobre a metodologia da rede de referenciabilidades e, na mesma medida, lacunas que possam refiná-la. Com esse pensamento, reiteramos a concepção de inacabamento da metodologia enfatizando a dimensão de possibilidade interpretativa que se coloca na busca por respostas que contribuam para delinear novas pesquisas.

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188 Referimo-nos às pesquisas, que são parte integrante das ações do Grupo de Pesquisa Linguagens, Infância e Educação (LINFE), da Faculdade de Educação da UFJF, liderado pela profª Drª Hilda Micarello, tendo como vice-lider a autora principal deste texto.

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ID: 1021

Estudos históricos comparados e o domínio da história da

educação: uma reflexão acerca dos procedimentos de

comparação utilizados pela historiografia da educação

brasileira Autor: Armando Silva Lima Flávia Alvarenga Estevan Roni Cleber Dias de Menezes Filiação: Universidade de São Paulo

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RESUMO

Os congressos e encontros em História da Educação no espaço luso-brasileiro tem particularmente assinalado estudos voltados à circulação cultural em educação, lançando, inclusive, o desafio de se formular ferramentas para se pensar o “geral” ou “comum” e as particularidades intrínsecas às experiências educativas. Conforme tal perspectiva, afigura-se relevante, segundo acreditamos, compreender o alcance e os significados assumidos pelo exercício comparativo, no domínio da história da educação e das “passagens” e intersecções culturais entre diferentes realidades geo-espaciais, integrando uma reflexão a propósito dos instrumentais utilizados pela historiografia da educação brasileira com vistas a sopesar a adoção da perspectiva comparada nos estudos de história da educação efetuados no país desde a década de 1990, procurando ao mesmo tempo historicizar a abordagem comparativa enquanto categoria analítica (no entrecruzamento dos estudos que focam a história, a educação e a história da educação) e levantar as contribuições trazidas pelo aporte metodológico representado pelas “connected histories”, termo cunhado pelo historiador indiano Sanjay Subrahmanyam a partir de suas investigações sobre a presença portuguesa no continente asiático entre os séculos XVI e XVIII.

PALAVRAS-CHAVE

História da educação comparada, connected histories, historiografia da educação brasileira

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1. À GUISA DE UMA DEFINIÇÃO DO OBJETO DE PESQUISA

Nos horizontes vislumbrados contemporaneamente o campo de história da educação tem problematizado algumas barreiras cronológicas e geo-espaciais que se notabilizaram por demarcar as fronteiras dos estudos na área praticados na esfera do ensino e da pesquisa. Isso vale tanto no que se relaciona à periodização, em que se tem buscado questionar as balizas clássicas oriundas da história político-administrativa (no caso do Brasil: Colônia-Império-República) quanto no que tange à adoção de uma visada que, escapando aos constrangimentos lançados pela construção de uma narrativa histórica de cariz nacional, é sensível aos trânsitos e trocas levadas a cabo por experiências em nível tanto regional e local quanto em âmbito continental e mundial, conferindo destaque para variadas formas de circulação cultural, em que se incluem as de pessoas, ideias, métodos e materiais e pedagógicos.

Os congressos e encontros em História da Educação189 tem particularmente propiciado estudos voltados à circulação cultural em educação, lançando, inclusive, o desafio de se formular ferramentas para se pensar o “geral” ou “comum” e as particularidades intrínsecas a cada experiência educativa. E é exatamente consoante com a perspectiva de compreensão dos significados da comparação em história da educação e das “passagens” e intersecções culturais entre diferentes realidades geo-espaciais que a contribuição desta comunicação se concentra, integrando uma reflexão a propósito dos instrumentais utilizados pela historiografia da educação brasileira com vistas a sopesar a adoção da perspectiva comparada nos estudos de história da educação efetuados no país desde a década de 1990, procurando ao mesmo tempo historicizar a abordagem comparativa enquanto categoria analítica (no entrecruzamento dos estudos que focam a história, a educação e a história da educação).

Inspirado por tais ponderações, apresentou-se projeto de ensino, pesquisa e extensão ao Departamento de Filosofia da Educação e Ciências da Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, projeto ao qual está associada

189 Além dos encontros de caráter local e regional organizados pelas associações científicas da área e pelas

instituições universitárias e seus programas de pós-graduação no país, sublinhamos o Congresso Brasileiro de História da Educação (CBHE), o Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação (COLUBHE), o Congresso Ibero-americano de História da Educação Latino-americana (CIHELA) e o International Standing Conference for History of Education (ISCHE). Permanecendo tão somente no âmbito dos CBHE’s, percebe-se que dos oito encontros promovidos até hoje, com exceção do I, do VI, do VII e do VIII congressos, ocorridos, respectivamente, em 2000 no Rio de Janeiro/RJ, em 2011 em Vitória/ES, em 2013 em Cuiabá/MT e em 2015 em Maringá/PR, conta-se, a partir da observação dos eixos temáticos, a presença do tema História Comparada da Educação (nome com que aparece no II Congresso e suas variantes: como Estudos comparados, no III; e Historiografia da educação brasileira e história comparada, no IV e V) em 4 congressos. Ainda assim, os eventos que não continham eixo temático explicitamente identificado como História Comparada da Educação, apresentaram em sua programação conferências e mesas coordenadas que abordaram a temática, com destaque para o último congresso, realizado em Cuiabá em maio de 2013, o qual contou com a mesa Circulação de sujeitos e ideias na Educação, sendo o próprio nome com que se intitulou o encontro bastante sugestivo: Circuitos e Fronteiras da História da Educação no Brasil.

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esta comunicação, em que se postula testar a capacidade operatória de conceitos e categorias presentes em substantivos trabalhos de historiadores da educação que vem se debruçando há algum tempo sobre as escalas espaciais, cronológicas e epistemológicas da percepção de objetos históricos. Assim, a partir de um levantamento preliminar e incompleto dos periódicos científicos e demais publicações do campo da história da educação no Brasil, observou-se que a apreciação de tais objetos tem variado bastante em relação à adoção de uma postura comparativa e mesmo quanto ao esforço analítico de conceituação e delimitação da ferramenta em marcos teórico-conceituais. Em sintonia com essas considerações e circunscrevendo-nos às balizas cronológicas indicadas anteriormente – início da década de 1990 aos dias atuais – do ponto de vista de sua operacionalização o projeto intenta rastrear um conjunto heterogêneo de fontes e, por seu intermédio, analisar os estudos vinculados às problemáticas que denominamos de comparativa e conectiva (esta última abarca nomeadamente as contribuições trazidas pelo aporte metodológico representado pelas “connected histories”190).

O conjunto de fontes a que se aludiu abrange as teses e dissertações produzidas nos programas de pós-graduação do país, os trabalhos apresentados no GT 2 da Anped (História da Educação) e aqueles publicados nos anais de alguns congressos da área, aqui especificamente das edições do Congreso Iberoamericano de Historia de la Educación Latinoamericana (CIHELA), do Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação (COLUBHE) e do Congresso Brasileiro de História da Educação (CBHE). O conjunto ao qual nos referimos engloba também alguns periódicos da área, entre os quais selecionamos a Revista Brasileira de Educação (RBE), a Revista Brasileira de História da Educação (RBHE), a Revista História da Educação (RHE), ligada à Associação Sul-rio-grandense de Pesquisadores em História da Educação (ASPHE) e os Cadernos de História da Educação, publicação do Núcleo de Estudos e Pesquisas em História e Historiografia da Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Uberlândia.

Almeja-se, portanto, a partir desse levantamento, levar a cabo um trabalho de aprofundamento da reflexão acerca do problema comparação/conexão, orientados aqui por uma dimensão inter e transnacional, o que implica – com vistas à potencialização do arsenal teórico e metodológico do qual se dispõe atualmente nas

190 O termo é cunhado pelo historiador indiano Sanjay Subrahmanyam (especialista em história da presença

portuguesa na Ásia) e emerge no bojo da constatação da inadequação, observada pelo autor, das várias abordagens, eminentemente suportadas no dado comparativo, levadas a cabo por estudiosos do “ocidente” e do “oriente” a respeito de fornecer explicações para o desdobramento do encontro entre europeus e asiáticos ocorrido após o século XV. Antes que procurar num e outro continente, de modo compartimentado, o desenvolvimento das condições que propiciaram o surgimento do Estado moderno na Europa e – o que a esse fato se associa – a consolidação do capitalismo no mundo ocidental e a subjugação econômica e, em muitos aspectos, também cultural, dos povos compreendidos desde o Mar Vermelho até o Mar da China, Subrahmanyam privilegia em sua análise uma mirada que ultrapasse os limites impostos pela categoria comparativa, apurando o olhar para as conexões entabuladas entre Europa e Ásia e as fertilizações que esse encontro produziu nas várias culturas de um e outro continente.

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pesquisas em história da educação no espectro luso-brasileiro – a aproximação com vertentes historiográficas estrangeiras.

Tal programa pretende ser enfrentado pela adoção de determinados procedimentos metodológicos os quais, espera-se, possam oferecer um esboço preliminar dos principais temas e/ou objetos alvos de comparação da historiografia da educação brasileira. A expectativa é a de que tal esboço revele as eventuais regularidades no arco das comparações, especialmente no que respeita aos períodos, lugares e atores representados em maior intensidade e, a partir daí, possibilite-nos a traçar algumas hipóteses a respeito das implicações e das ressonâncias a propósito dos itinerários trilhados pelos investigadores do campo de história da educação no Brasil no último quarto de século.

Com relação a esta comunicação, as fontes pesquisadas correspondem a um dos periódicos arrolados anteriormente, a Revista História da Educação (doravante denominada apenas RHE), e às atas do III Congresso Brasileiro de História da Educação (doravante denominados apenas CBHE).

1.1 A REVISTA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

No que tange à RHE, o procedimento de pesquisa adotado partiu de três verificações acerca de todas as edições da revista, a fim de identificar com a maior amplitude possível os trabalhos que adotassem a perspectiva comparativa. A primeira verificação foi feita através de um sistema de busca online para selecionar os artigos que em seu conteúdo contivessem a palavra “comparação” ou “conectada”, em seguida foi feita uma análise de seu título e conteúdo para com o objetivo de certificar que se enquadrava como objeto desta pesquisa. A segunda verificação foi através de uma leitura dos sumários de todas as edições publicadas no período de vinte e cinco anos analisando os resumos daqueles títulos que remetessem a estudos comparados ou histórias conectadas. Por fim, na terceira verificação, foram utilizados, conjuntamente, os dois métodos.

Foram analisados quatrocentos e noventa e nove artigos publicados na revista História da Educação da Associação de Pesquisadores de História da Educação (ASPHE) desde sua primeira edição em 1997, a planilha com os artigos encontrados que se enquadram no objeto desta pesquisa segue em anexo, mas já é possível identificar sinais de uma presença significativa, ainda que incipiente, de estudos comparados em História da Educação e uma quantidade, embora menor, de artigos que adotem a perspectiva das histórias conectadas.

Desses quatrocentos e noventa e nove artigos apenas dois tratavam de histórias conectadas enquanto onze tratavam-se de estudos comparados de História da Educação que podem ser classificados conforme o gráfico a seguir:

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1.1.1. Os Congressos Brasileiros de História da Educação

Em primeiro lugar é necessário estabelecer algumas advertências quanto às variações em aprofundamento teórico e metodológico tanto das comunicações do referido congresso entre si quanto, especialmente, dessa modalidade de texto face à exigências mais rigorosas exigidas para submissão de artigos para periódicos científicos. Em segundo, registra-se que operamos com uma classificação sugerida pela própria organização do III CBHE, isto é, apreciamos as comunicações integrantes do eixo que englobava no próprio título a ideia de comparação, no caso do congresso em foco, “Estudos comparados”. Um sobrevoo pelos títulos das comunicações dos demais eixos, no total de oito, não indicou explicitamente que se pudesse encontrar trabalhos que se dispusessem a encetar alguma análise precipuamente comparativa ou – o que mais nos interessa – que se propusesse a refletir metodologicamente e/ou a testar alguma ferramenta comparativa. Não obstante, reconhece-se que a partir da leitura integral das comunicações poder-se-ia eventualmente deparar com trabalhos que abordassem a educação comparada, a história comparada, a história da educação comparada ou a história comparada da educação (Saviani, 2001), porém, o mais frequente foi encontrarmos comunicações no próprio eixo “Estudos comparados” que sequer exercitavam algum tipo de comparação, quanto mais uma reflexão conceitual acerca da ferramenta.

No III CBHE o eixo 2 – “Estudos comparados” – não contou com nenhuma sessão de comunicações coordenadas, tendo recebido apenas comunicações

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individuais de pesquisa. Ao todo, o eixo apresentou 13 trabalhos, porém, como indicamos acima, nem todos voltados especificamente ao tema que nomeia o eixo.

De modo geral, as comunicações podem ser agrupadas em dois núcleos, subdivididos, cada um deles, em mais dois grupos. De um lado há os trabalhos que operam na dimensão da comparação entre 2 ou mais dados e, de outro, aqueles que se propõem a observar os eventuais pontos de contato ou regimes de circulação entre os dados estudados. Internamente a essas perspectivas, nota-se que parte das comunicações se regula exclusivamente pela estruturação de balizas que apontam para as similitudes e as diferenças entre as realidades observadas, e outra que, conquanto também se valham desse mecanismo de aproximação e distanciamento, ultrapassa essa noção mais tradicional, lidando com as fertilizações efetuadas entre os dados comparados.

Das 13 comunicações mencionadas, apenas 10 lidam com a perspectiva comparada. A seguir, entabulamos algumas considerações acerca do universo observado.

Em BAÍA HORTA, José Silvério. A mobilização da juventude na Itália (1922-1945), em Portugal (1936-1945) e no Brasil (1937-1945), o autor procura estudar três casos de criação de associações da juventude em países que viveram governos autoritários entre as décadas de 1920 e 1940. Neste trabalho se percebe tanto a organização clássica da comparação dos regimes autoritários e das modalidades de grupamentos da juventude quanto uma sensibilidade para a “influência” de uma experiência sobre outra, o que leva suportaria uma interpretação que corroborasse uma transferência de modelos culturais entre Itália, Portugal e Brasil.

O objetivo da comunicação de COSTA NETO, Pedro Leão da; FERREIRA, Naura Syria Carapeto. Sobre a institucionalização do ensino de filosofia no Brasil: dois exemplos, é reconstruir duas distintas trajetórias de institucionalização do ensino de filosofia no Brasil: a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, criada em 1934 e a Escola de Filosofia e Letras da UDF (1935), depois Faculdade Nacional de Filosofia, integrante da Universidade do Brasil (1939). Grosso modo o texto não faz comparação alguma, apenas aponta algumas idiossincrasias das duas instituições. Trata-se de uma longa descrição, sem operar com nenhuma ferramenta de comparação.

A comunicação de FERNANDES, Ana Lúcia Cunha. A “santa causa da instrução” e o “progredimento da humanidade”. Revistas pedagógicas e construção do conhecimento pedagógico no Brasil e em Portugal no final do século XIX, possui como meta comparar discursos especializados sobre educação no Brasil e em Portugal no final do século XIX na perspectiva comparada. Para tal, analisou duas revistas pedagógicas, a brasileira Revista Pedagógica e a portuguesa Revista de Educação e Ensino. Nesse aspecto, as revistas são tomadas enquanto um ponto importante de intersecção das redes educativas: ponto de encontro de discursos e organizações. A autora também trabalha no horizonte das diferenças e similitudes entre o funcionamento das duas revistas, porém, apresenta a singularidade de problematizar o cânone do modelo nacional, optando pela dimensão transnacional.

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Não toma Brasil e Portugal como realidades isoladas, mas é sensível aos pontos de contato e de ruptura entre ambas realidades, percebendo-as como unidades pertencentes ao contexto de uma comunidade imaginada – fenômeno ocorrido num determinado espaço-tempo.

Em FERREIRA, António Gomes; VECHIA, Ariclê. Instruir as elites em meados do século XIX; o Liceu de Coimbra e o imperial colégio de Pedro II, é realizada uma comparação dos planos de estudos das duas instituições mencionadas no título, com a apresentação dos respectivos planos curriculares. A comparação logra apontar uma série de similitudes quanto à periodização: criação das instituições, reformas. O objetivo principal é observar como o ensino secundário se inseria no âmbito das possibilidades políticas e sociais que se abriam com a consolidação da racionalidade burguesa em meados do século XIX nos dois países. Os autores trabalham com a ideia de proximidade cultural entre Brasil e Portugal. O texto funciona mais ou menos no seguinte registro: partem da constatação de uma semelhança (proximidade cultural), para identificar as diferenças – como cada país encaminhou a questão da participação dos dois estabelecimentos secundários de ensino no processo de racionalização burguesa das respectivas sociedades.

O artigo de FREITAS, Marcos Cesar de. Cuidar da infância "rústica": um estudo comparado sobre estratégias educacionais direcionadas às crianças de lugares considerados arcaicos (Portugal e Brasil, 1860-1935), aborda os intelectuais brasileiros e portugueses que apresentam uma visão não convencional da rusticidade – do analfabetismo e do semi-analfabetismo. Põe em cena os vínculos entre intelectuais de uma e outra margem do Atlântico no que respeita a essa caracterização da rusticidade e de seu ator. O que no fim das contas deságua na elaboração de uma plataforma mais ou menos compartilhada. Distintamente de outras comunicações aqui estudadas, o artigo de Freitas se estrutura não em função das semelhanças e diferenças que orientaram intelectuais brasileiros e portugueses na abordagem do homem rústico, mas sim, busca observar as porosidades entre os retratos produzidos aqui e além-mar, salientando que o interesse pela rusticidade, especialmente na transição do século XIX para o século XX constituiu um fato notável na história intelectual de Brasil e Portugal.

O artigo de HEROLD JR., Carlos. A Educação física e os sistemas nacionais de ensino: análise das relações entre o pensamento educacional europeu e brasileiro (1870-1920), tem como escopo realizar um estudo comparativo entre o pensamento educacional europeu e brasileiro no que tange ao aproveitamento da educação física enquanto disciplina escolar entre 1870-1915. Não se propõe precipuamente a comparar os “pensamentos em educação física na Europa e no Brasil” em termos de semelhanças e diferenças, realiza apenas uma longa descrição de tratados do campo do cuidado com o corpo. A única comparação efetuada pelo autor leva a matizar o itinerário da educação física na Europa em termos da luta entre o trabalho e o capital, o que levou ambos a defender a inclusão da educação física na escola; já no Brasil conclui pelo desânimo em relação ao exíguo apoio que a tese da introdução da

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educação física na escola angariava entre a elite letrada, tendo o país que esperar até os anos 1930 para assistir a concretização desse processo.

A comunicação de MOGARRO, M. J.; MENEZES, Maria Cristina. Os arquivos escolares no Brasil e em Portugal; uma pesquisa comparada se propõe a apresentar experiências de tratamento de arquivos escolares em Portugal e no Brasil, porém, só aparece nas atas do congresso a exposição do trabalho de Mogarro, relativo ao caso português. Não há exposição nem análise no que se refere ao Brasil, portanto, não há comparação.

O trabalho de RIBEIRO, Maria das Graças M. De Caubóis e caipiras: os land grant colleges e a Escola Superior de Agricultura de Viçosa opera de modo a identificar as similitudes e diferenças entre os estabelecimentos agrícolas norte-americano e brasileiro. Os pontos de comparação escolhidos pela autora remontam às finalidades proclamadas nos atos de criação das 2 instituições, a forma como se constituiu a administração e os eixos sobre os quais foram organizadas suas atividades. Elenca algumas categorias que são objeto de análise comparativa: modernização agrícola, ensino superior agrícola, educação rural e extensão rural. Para além da caracterização pormenorizada de cada uma das instituições, Ribeiro logra empreender um estudo acurado da circulação de pessoas, métodos e concepções de ensino no continente americano.

O objeto de estudo do texto de BATISTA, Vivian; CORREIA, Antônio C. L. Os manuais pedagógicos e o discurso da formação de professore: saberes em viagem permanente diz respeito aos manuais pedagógicos (livros de pedagogia, didática, metodologia e prática de ensino) escritos para formação de professores no Brasil e Portugal a partir de finais do XIX até o XX. Move-se no âmbito da pesquisa financiada pela União Europeia – PRESTiGE e o desdobramento dessa iniciativa no espaço luso-brasileiro (acordo Capes- ICCTI). O matiz característico do trabalho responde pela compreensão de que os manuais são lugares específicos de divulgação de conhecimentos entre professores. Afastando-se da organização que privilegia o arrolamento das similitudes e discrepâncias entre os manuais pedagógicos do Brasil e de Portugal, os autores tendem a observar antes as constâncias nos itinerários das escolas de massas no Ocidente do mundo moderno. A ênfase recai na circulação de objetos pedagógicos e das representações quanto ao discurso pedagógico veiculado por esses manuais no espaço luso-brasileiro.

O objetivo da comunicação de WERLE, Flávia Obino Corrêa; TRINCHÃO, Gláucia. Construindo a trajetória da posição do desenho na formação de professores: Bahia e Rio de Janeiro – 1835-1889, é comparar a história da inserção da disciplina desenho em escolas secundárias das províncias do Rio de Janeiro e da Bahia desde a criação da primeira escola normal do Império até o fim do regime. Anuncia que suas fontes são as leis provinciais e os relatórios de presidentes de província e diretores de instrução pública, porém, ao longo do texto, só se valeu dos registros formulados por Primitivo Moacyr (A instrução e o império). A comparação praticamente não existe, não apresentando análise, apenas descrição de um ou outro

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estabelecimento de ensino que inclui nos planos de estudo a disciplina ou conteúdos de desenho.

A comparação, portanto, tem se pronunciado, no campo da história da educação brasileira, na convergência com uma metodologia que prioriza os entrecruzamentos, as conexões, os diálogos entre os atores da experiência educativa de Brasil e Portugal. Tal perspectiva já vem sendo posta em prática desde a década de 1990, quando, por exemplo, Rogério Fernandes, então professor da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Lisboa alude aos caminhos cruzados da História da Educação no Brasil e em Portugal. Malgrado as variações quanto às abordagens comparativas e ao aprofundamento da reflexão sobre as ferramentas de comparação, é possível observar, à guisa de uma breve e sucinta conclusão em vista do sub-recorte sobre o qual nos debruçamos, que a reflexão acerca do passado educativo brasileiro demonstrou uma nítida sensibilidade quanto à apreciação dos respectivos objetos de estudo num plano que não se atém apenas à dimensão nacional, encontrando narrativas empenhadas em efetuar análises comparativas e relacionadas à circulação cultural em escala continental e global, cuja característica principal apresentada, indubitavelmente, relacionou-se com a investigação dos projetos de atualização histórica levadas a efeito no Brasil com vistas ao ingresso do país no rol de nações modernas.

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ID: 1036

HISTÓRIA ORAL: ENTRE O STATUS DE METODOLOGIA E A

TÉCNICA

Autor: Ana Beatriz da Silva Duarte Andreia Demétrio Moraes Tânia Silvestre Cunha Sônia Maria dos Santos Filiação: Universidade Federal de Uberlândia Universidade Estadual de Minas Gerais

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RESUMO A utilização da História Oral como metodologia de uma investigação no campo

da História da Educação, tem-se ampliado sistematicamente nos últimos anos, tomando percursor de muitas pesquisas que colocam no centro das análises as narrativas dos sujeitos que tiveram envolvimento direto ou indireto com o objeto a ser estudado. Essa modificação foi proporcionada pelos diversos movimentos historiográficos, principalmente após o surgimento da Escolas dos Annales, que ampliou o conceito de fontes e objetos para os estudos históricos. Neste trabalho, legitimamos a utilização da da História Oral como percursor de pesquisas que tem como objetivo a estudar, por exemplo, a “Formação de Professores”, dando pressupostos teóricos e epistemológico da consituição da fonte oral como método, contraponto o uso desta como técnica, evidênciando as experiências e memórias dos sujeitos. Dessa maneira, a fundamentação teórica que nos dá base a essa concepção metodológica, se constitui em um campo de discussão e confrontamento de ideias, assim, que temos construído nosso quadro teórico para sustentar as reflexões entre o campo de pesquisa e o campo teórico. O desafio de mudança de postura no movimento de pesquisar qualitativamente foi movido para modificar a forma de escrever, de buscar fontes que pudessem elucidar melhor o problema, qualificar e dar peso científico, as vozes dos sujeitos e as reflexões e análises.

PALAVRAS-CHAVE

História, Memória e Formação de Professores.

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1. INTRODUÇÃO

A história oral, utilizada como um dos procedimentos metodológicos de análise crítica e interpretação da realidade se alicerça na busca de qualidade e profundidade investigativa com os atores sociais envolvidos no processo de construção do conhecimento.

Construir um artigo específico dedicado à História Oral foi feita, com o intuito de dar maior visibilidade a uma metodologia de pesquisa que, apesar de seu recente reconhecimento no Brasil dentre outros países, ainda necessita de ampla divulgação estimulando a propagação e reconhecimento da História Oral como metodologia de pesquisa. Pois,

Apesar da dimensão que a História Oral tem atingido no debate sobre as tendências da historiografia brasileira contemporânea, há ainda grupos de pesquisadores que não aceitam a História Oral pela seletividade, alegando também a falibilidade das fontes orais. Esses integram uma tradição historiográfica, centrada em documentos oficiais ou congêneres (FREITAS, 2006, p.35).191

A utilização da metodologia da História Oral, tem sido utilizada com mais frequência no Brasil, e o debate entorno da mesma possibilita reflexões sobre o registro dos fatos históricos tendo como fonte a voz dos próprios protagonistas.

Para tanto, organizamos este artigo com um tópico sobre a pesquisa qualitativa e os estudos biográficos onde apresentamos como compreendemos esse diálogo; no segundo tópico apresentamos a nossa escolha pela História Oral e pelo gênero da História Oral Temática; mapeamos o campo teórico dessa abordagem metodológica, onde apresentamos o campo da memória como sendo a pedra “preciosa” para coletar, registrar e pensar sobre as narrativas.

Acreditamos que todas as pesquisas necessitam definir o percurso teórico-metodológico para assim poderem encontrar caminhamos e assim compor os possíveis achados das pesquisas.

Neste contexto, a metodologia de trabalho para uma pesquisa tem por condição ser um movimento dialogado com o espaço de estudo, com os professores, com as questões postas, os objetivos pretendidos e com a forma com que a pesquisadora pensou e vivenciou o processo deste estudo-a pesquisa – sua episteme, sua condição de lente para enxergar e apresentar a realidade e sua validade diante do que foi proposto.

No nosso caso, que elegemos investigar “Formação de professores”, via instituições, buscando compreender modos de conceber e fazer as práticas na Escola, neste contexto estamos nos permitindo conhecer o universo de subjetividades dos sujeitos, suas histórias, lembranças, ligações entre passado, presente e futuro. Isto acontece porque nos interessa enveredar e mergulhar em um processo rico e

191 FREITAS, Sônia Maria de. História oral: possibilidades e procedimentos. 2. Ed. – São Paulo: Associação

Editorial Humanistas, 2006, p. 35.

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singular, de escuta, observação, análise e interpretação, com uma finalidade de fazer revelar o vivenciado e experimentado.

Compreendemos que esse processo possibilita novas perspectivas de pesquisa e nos permite conhecermos saberes e práticas experimentadas por professores, diretores, alunos, esse processo nos dá acesso a outro tempo, a situações diferentes das que vivemos atualmente. O sentimento que tem nos ocupado nos nossos estudos tem sido o de imaginar, refletir, solidarizar-se, compartilhar de momentos importantes, vivido pelos sujeitos entrevistados, tecendo identidades com o vivenciado e experimentado na história.

2. A ARTE DE TECER FIOS DE LINHO: PRESSUPOSTOS METODOLÓGICOS DA HISTÓRIA ORAL PARA O CAMPO DA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

Meu enleio vem de que um tapete é feito de tantos fios que não posso me resignar a seguir um fio só; meu enredamento vem de que uma história é feita de várias histórias. Clarice Lispector192

A escolha da epígrafe desse artigo, extraída do conto de Clarice Lispector, foi feita por acreditarmos, assim como a autora, que a história é constituída por inúmeros fios e são esses que nos possibilitam a reconstrução da mesma, uma história é constituída de várias histórias e para conhecê-las acreditamos ser necessário lançar mão da História Oral como caminho metodológico, como uma das possibilidades para recuperar os registros do passado com auxílio da memória dos sujeitos de hoje.

Desta forma, para Santos (2001) quem faz opção pela História Oral tem a possibilidade de ter um o caminho metodológico, que já se constitui como uma vivência histórica, de relações tecidas entre o pesquisador, sua realidade social, suas vivências teóricas, que acabam por proporcionar marcas em nossa postura como ser humano e pesquisadora, como o próprio autor afirma: rechaço um caminho pela eleição de outro.

Vendo desta forma, a definição por utilizar a História Oral como metodologia para investigarmos por exemplo “a Formação de professores”, e como ela se constituiu e se desenvolveu, é uma das possibilidades que se apresenta como um reflexo da nossa própria condição no mundo, na maneira como nos preocupamos e pensamos sobre a realidade formativa de tais professores, que funciona como um reflexo daquilo que somos e vivenciamos no decorrer de nossas construções também como professoras.

A partir dessa compreensão, podemos afirmar que o desejo de conhecer os movimentos em que os atores que participam de nossas pesquisas se constituem no dia a dia ao se tornarem professoras, tem nos solicitou algumas posturas diante da

192 Os Desastres de Sofia. In: Felicidade Clandestina, 1988, p. 100.

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observação, análise, e constituição de um referencial teórico-metodológico para manter o diálogo conosco e com a realidade a partir de nossas leituras, de nossos encontros, de nossos desejos.

Seguindo esses pressupostos, a opção por uma abordagem qualitativa de pesquisa nos foi apresentada como uma exigência do que temos nos comprometidas a investigar, assim como se tornou uma necessidade do nosso modo de pensar, perceber e construir e reconstruir o vivenciado e experimento por outras professoras.

Os estudos dessa área, tem apontado e acreditamos neste postulado que como pesquisadoras, ao optar pela pesquisa qualitativa nos comprometemos a uma mudança interna de propósitos, de valores, de olhar para a realidade, de compreender de outra forma a condução da pesquisa, da análise, da narrativa, da busca incansável pelos achados, da relação da pesquisadora com ela mesmo e com o outro.

Para Brito, (2011), o qualitativo, nesta perspectiva, centra-se no processo e não simplesmente com os resultados, ou com a validade das descobertas. Isso tem se tornado um desafio para as pesquisadoras autoras deste artigo, até porque nessa relação ambos são construídos mutuamente – pesquisadora e campo de investigação.

Dessa forma, nos nossos estudos e orientações a cerca da utilização dessa metodologia, tem sido necessário despir-nos constantemente de algumas marcas, olhares, e construir outras bases, outros valores que possam demarcar um afastamento de velhos hábitos internalizados da pesquisa quantitativa, para a reconstrução de outros caminhos internos de subjetividades que se desdobram em práticas, já experimentadas em outros estudos.

Ao lidar com as subjetividades e memórias dos sujeitos, estamos interagindo o tempo todo com o que os cercam, como constroem suas histórias e interferem na construção de outras tantas histórias, estamos, muitas vezes, nos defrontando com nossos espelhos, com nossas interações, com nossas limitações, com percursos dos outros, e que muitas vezes compõe o nosso percurso.

Vendo desta forma, a pesquisa qualitativa é uma possibilidade de fazer valer a perspectiva de relações de complexidade entre todos os envolvidos em um campo de pesquisa. É uma possibilidade de contrapor ao movimento da cientificidade baseada na idéia da separação entre as pesquisadoras, o objeto de conhecimento e os processos de construção de novos conhecimentos a partir das análises dos dados adquiridos com o auxílio dos instrumentos utilizados nesta pesquisa.

A pesquisa baseada numa abordagem epistemológica qualitativa apresenta na sua condição um movimento de ruptura com a assepsia característica da pesquisa quantitativa e desenvolvida com base na lógica da não interação entre os sujeitos, o contexto e as pesquisadoras. A lógica do qualitativo é de justamente modificar essa concepção de distância que poderiam separar as pesquisadoras de sua condição humana, que o permite refletir, recolocar-se, aprender, fazer conceitos, refazer percursos e se possibilitar a formar-se na sua condição de observadoras, interpretadoras, de sujeitos que analisam.

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Nesse sentido, é necessário ter consciência que seremos nesta perspectiva interpretadores do outro, como afirma Gertz (2008), o olhar de fora sempre será um segundo olhar e que é nesse segundo olhar que as vozes dos outros são postas em destaque, fazendo valer assim a responsabilidade de quem observa, percebe e comunica ao mundo o que viu, sentiu, apreendeu e aprendeu. (BRITO, 2011).

Igualmente, podemos afirmar que uma pesquisa gera possibilidades de encontros, com outras idéias, com outros sujeitos, com outras formas de compreender a realidade e construí-la, é um encontro com outras experiências, com outros momentos da história que compõe nossas histórias, enfim é um encontro com outro encantamento.

Para Brito, (2011), foi neste contexto que, ela se coloca na condição de construir um espaço de diálogo entre os professores colaboradores da pesquisa, que realizou com suas memórias, com os valores construídos durante sua jornada como pessoa e profissional, como parte e como sujeito da história e da organização da vida e da carreira de professor.

Nesta caminhada, tem se tornado necessário ampliarmos nossa visão histórica, política e cultural das relações tecidas pelos sujeitos que entrevistamos dos nossos percursos individuais e coletivos que permeiam a constituição da carreira docente. Assim, tem sido necessário entender que a teoria é tida como uma propriedade construída durante o percurso das pesquisas, o que nos faz entender que no lugar de confluências entre o que já está prescrito, pretendemos constituir, com as narrativas, novos sentidos sobre o problema estudado em cada pesquisa.

A teoria, neste contexto tem sido compreendida por nós, não como um lugar de confluências entre o que se encontrou no campo de pesquisa com o que se escreveu a priori sobre o fenômeno. A teoria para nós é um espaço de confrontamentos entre idéias concebidas e idéias apreendidas para a constituição de outras idéias, outras teorias. É dessa forma que temos construído nosso quadro teórico para sustentar as reflexões entre o campo de pesquisa e o campo teórico. O desafio de mudança de postura no movimento de pesquisar qualitativamente foi movido para modificar a forma de escrever, de buscar fontes que pudessem elucidar melhor o problema, qualificar e dar peso científico, as vozes dos sujeitos e as reflexões e análises feitas por nós.

Em nossos processos de reflexões, entendemos que natureza do objeto não se constitui na perspectiva de buscar apenas o(s) “porquês” dos acontecimentos do torna-se professor, ou o porquê de fazer a caminhada de uma forma e não de outra. Estamos na busca de compreender para além dos “porquês”. Buscamos o como a caminhada foi construída e quais construções foram possíveis de serem realizadas neste caminhar. (BRITO, 2011).

Entendendo nossas pesquisas dessa maneira, acreditamos na possibilidade da eleição de uma linha de pensamento que estabeleça nas experiências formativas a sua condição de caminhar, que respeite as vozes dos professores como vozes da história de um grupo, de um tempo histórico. Isso implicou em encontrar um percurso que foi capaz de nos dar condições de manter o respeito ao espaço do outro,

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a interação entre professores envolvidos na pesquisa, a aprendizagem socializada, à reflexão, a valorização da condição humana e dessa narrativa. Assim, os caminhos da História Oral nos foram apresentados ainda no mestrado como essa possibilidade.

3. HORIZONTE DE HISTÓRIAS: A MEMÓRIA E A HISTÓRIA PARA A COMPOSIÇÃO DO PASSADO

A complexidade com a qual nos propusemos lidar nos nossos estudos: o universo formativo do professor, ou quando queremos analisar os modos de conceber e de fazerem suas práticas pedagógicas, quando investigamos a história da sua formação e atuação, esses sujeitos que fizeram suas formações em instituições legalmente autorizadas a formar docentes.

Essas são temáticas as quais nos fazem optar a escolher essa metodologia de pesquisa, pois acreditamos que esse caminho tem sido capaz de satisfazer o que nos propusemos a investigar.

Brito (2011), acredita que não é só uma questão de temperamento, mas de afinidade, de afetividade, de motivação, o estudo (auto) biográfico nos permite adentrar nesses espaços da subjetividade formativa dos sujeitos escolhidos para participarem de um estudo. Isso porque são esses movimentos contidos no exercício de oralizar ou escrever suas histórias de vida, de formação e das relações tecidas nesse movimento, que propiciaram aos pesquisadores mergulharem e serem apresentados ao universo no qual os narradores estavam submersos.

Baseado nas crenças de Correa (2001), a escolha pelo caminho biográfico tem se dado em função de entender que ele possibilita:

Inicialmente, compreender os processos vividos pelas professoras nos seus percursos formativos, no sentido dado ao que as narradoras dão aos seus atos, as suas lógicas que organizam sua vida cotidiana, seus sistemas e vínculos com os outros, suas relações com as instituições, e também as buscas por uma identidade social;

Como também estabelecer, no desenvolvimento da investigação, relação de implicação entre pesquisadora e os professores envolvidos neste estudo, quer dizer, permite uma troca da estrutura do poder tradicional nas pesquisas, com a forma de entender a produção de conhecimento via narrativas;

Por último, tanto os princípios como as proposições da aproximação biográfica tem ressonância com nossa concepção de ciência, e com o trabalho de investigação.193

193 Adaptação nossa de uma passagem do texto intitulado “La aproximación biográfica como uma opción

epistemológica, ética e metodológica”. Rosário Correa (2001).

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Apresentamos aqui parte dos movimentos da História Oral e seus desdobramentos no campo das pesquisas sociais, como sendo mais uma forma de justificá-la e aproximá-la de nossa pesquisa em educação. Podemos iniciar afirmando que a História Oral surgiu com o movimento da École dês Annales 194, chega como um meio de valorizar as fontes orais e as vozes dos excluídos.

Durante as décadas de 70 e 80 do século passado as transformações ocorridas no campo da pesquisa fomentaram a possibilidade de perceber nos depoimentos, nas narrativas orais e escritas uma relação verticalizada entre os acontecimentos históricos e os impactos disso nos registros das pessoas “comuns”, daquelas que por muito tempo foram silenciadas por uma pesquisa que valorizava a macro realidade, as narrativas coletivas, em detrimento das vozes de quem viveu e não só passou pela história, mas foi protagonista da história.

Para Freitas, sem dúvida, esse movimento – chamado por Peter Burke de Revolução Francesa

da Historiografia – revolucionou a História no que diz respeito a conceitos, abordagens e métodos. O grupo dos Annales passou a ser denominado, mais tarde, de “Nova História”, dedicando-se, sobretudo, à história do cotidiano e das mentalidades. Os historiadores desse grupo apontaram para a necessidade de a História se dedicar menos aos acontecimentos, aos heróis e à cronologia dos fatos (2006, p. 42).

Assim, a partir dos trabalhos e estudos desenvolvidos pela chamada Nova História, acorrera um redimensionamento aos acontecimentos, aos fatos descritos em documentos oficiais - eles não eram mais os únicos a serem legítimos para testemunhar a História como até então era apresentada. A substituição da narrativa tradicional de acontecimentos por uma história-problema; a valorização da história de todas as atividades humanas e não apenas da história política; a aceitação de espaços de diálogos entre as disciplinas como geografia, sociologia, psicologia, economia, lingüística e a antropologia social; a introdução de aspectos da vida social nos estudos da história; a ênfase na história econômica, demográfica e social (estudos regionais, coletivos e comparados); a descoberta e utilização de novas fontes

194 Essa nomenclatura “Escola dos Annales” foi forjada devido a importância que a “Revista dos Annalles” teve

durante seus longos anos (1920-1989) de produção. A revista foi criada como tentativa de oposição ao Antigo

Regime Historiográfico que destinava às fontes escritas o único espaço aceito como fonte. Peter Burke (2010),

aponta que esta escola teve três gerações: a primeira (1920-1945), Lucien Febvre e Marc Bloch (seus fundadores)

que carrega como pressuposto uma colaboração interdisciplinar; A segunda fase, que se inicia em 1945 logo após

a II Guerra Mundial, fase em que mais se aproximou de uma “escola” por conta de seus conceitos diferentes

(estrutura e conjuntura) onde Fernad Braudel é seu representante; a Terceira fase, em 1968, que foi

profundamente marcada pela fragmentação em linhas de pensamentos e ao mesmo tempo pela entrada de

mulheres nesse espaço dominado por homens.

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(tradição oral e vestígios arqueológicos) 195 , segundo Freitas (2006), foram as diretrizes anunciadas por Burke que marcaram definitivamente os trabalhos dessa Nova História, afirmando mais vez que as fontes da história não se restringiam mais às fontes ditas como oficiais.

Neste sentido, descobrimos que há várias possibilidades constituídas para dar status e valer as narrativas orais como metodologia nas pesquisas. Com exceção do primeiro grupo que nem a reconhece como fonte, os outros três se apropriam delas de acordo com suas convicções. Como consequência de um grupo mais tradicional, por muitos anos várias tribos indígenas e/ou africanas, grupos sociais das mais variadas etnias deixaram de ser representados, estudados e entendidos como fazedores de história sem falar de professores alfabetizadores, uma vez que muitos desses grupos viam na oralidade (na chamada Tradição Oral) a sua forma de registro e de expressar suas histórias. Os grupos subsequentes apontam na direção de um entendimento e utilização do espaço da oralidade apenas como ilustrativa ou no máximo reforçadora de uma história factual, mas nunca como a possibilidade de história vivenciada e experimentada. “A esses pesquisadores que defendem essa visão, diríamos que todo documento é questionável e que todo documento escrito ou iconográfico é limitado e subjetivo” (FREITAS, 2006, p. 44), passível do mesmo tipo de questionamento que se fez por muito tempo a História Oral.

Temos acreditado, e investido nossas pesquisas e estudos nas possibilidades de cruzamento entre fontes para outras formas de compreender a história dos homens, essa para nós tem sido uma das alternativas que mais condiz com a multiplicidade posta no mundo. Os grupos elegem sua forma de se expressar, processar, armazenar suas histórias e conhecimentos sobre suas vivencias, suas memórias, suas tradições. Cabe a quem quer entender, respeitar a forma, procurar dialogar com as várias fontes para fazer valer a condição de pesquisadoras, tradutora do outro e de nós.

Aqui no Brasil, segundo Moraes:

embora a introdução da História Oral seja marcada nos anos 70 pelo Programa de História Oral do CPDOC, que se preocupava em recolher depoimentos da elite política nacional, a expansão mais significativa é datada nos anos 90, principalmente com a criação da Associação Brasileira de História Oral (1994), com a realização de seminários e a divulgação de estudos na área (2003, p. 1).

Temos a afirmação de a produção acadêmica dessa área, cresce e se utiliza a História Oral em diferentes áreas do conhecimento. Para Moraes (2003), as

195 Essas características citadas pela autora Freitas (2006) que constituem esse parágrafo, foram adaptadas por

nós. O texto original está na p. 41 da referida obra.

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narrativas vêem ganhando espaço e legitimidade nas pesquisas em diversas áreas como na sociologia, na antropologia, na história196 e na educação.

Como nos afirma Santos

Saindo dos domínios propriamente da pesquisa histórica, a “História Oral” tem hoje uma característica pluridisciplinar e abrange diversas modalidades de relatos. E, ainda, a “História Oral” vem sendo utilizada com finalidades distintas: na formação de banco de dados cujo interesse está no próprio registro ou documentação de fatos ou questões a que de outra forma não se teria acesso; na pesquisa histórica em que se procura por meio de testemunho reconstituir fatos ou acontecimentos pretéritos; e, por último, como método de pesquisa na investigação de determinados problemas e questões que requerem uma abordagem histórico-sociológica (2001, p. 41).

Sobre as pesquisas que fazemos, o terceiro aspecto é justamente o que mais nos interessa – como metodologia de pesquisa. Nela damos, aos narradores status de autores, e isso se dá por meio das narrativas sobre suas trajetórias, que são singulares, narrar sobre como a profissão aconteceu no seu processo de vida, de como se situam no mundo do trabalho, de se reconhecerem como sujeitos de um processo e fazedores de história que repercute no coletivo de uma profissão, de um grupo.

Dessa forma, ter na História Oral um método de pesquisa é pensá-la como um meio pelo qual apresentaremos a forma como os sujeitos do presente, aqui entendidos como sujeitos de uma pesquisa pensam sua condição, pensam sobre as relações tecidas pela história acerca das vivências e experiências, de seu trabalho, de sua carreira, e como é ser sujeitos da história. Assim, ter a História Oral como método é devolver aos sujeitos a autoria de suas histórias para que elas sejam narradas, registradas, transcritas, autorizadas, analisadas e divulgadas como fontes tão verdadeiras e confiáveis, como também subjetivas e objetivas, válidas para servir de referência como qualquer outra fonte. (SANTOS, 2001).

Aqui é importante então, apresentar alguns conceitos que elucidaram a nossa caminhada no diálogo com o entendimento da História Oral.

Queiroz, afirma que a História Oral deve ser entendida como

um termo amplo que recobre uma quantidade de relatos a respeito de fatos não registrados por outro tipo de documentação, ou cuja documentação se quer complementar. Colhida por meio de entrevistas de variada forma, ela registra a experiência de um só indivíduo ou de diversos indivíduos de uma mesma coletividade (1988, p. 19).

196 Segundo Harres (2004) a História foi a última disciplina da área das ciências do humano a incorporar essa

metodologia entre seus instrumentos de pesquisa. Isso se deve ao processo de constituição da mesma como

ciência que rejeitou o testemunho dando ênfase na fonte escrita.

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Já para Thompson

a História Oral é uma história construída em torno de pessoas. Ela lança a vida para dentro da própria história e isso alarga seu campo de atuação. Admite heróis vindos não só dentre os líderes, mas dentre a maioria desconhecida do povo. Estimula professores e alunos a se tornarem companheiros de trabalho (1992, p.44).

Lang, conceitua História Oral como um trabalho de pesquisa que se baseia em fontes orais, coletados em entrevistas, e é parte constitutiva do método biográfico; por isso, não deve ser vista apenas como uma técnica para coleta de dados orais. (1995, p.34)

Concordando com os autores citados, consideramos então que a História Oral nos aponta para outras maneiras de perceber a realidade, de entender a história e respeitar os bastidores como um movimento que compõe e contribui para novas, outras leituras acerca de um fato social. Daí afirmar que a História Oral proporciona um espaço metodológico que agrega outros caminhos no processo de registro de vida, de formação, de constituição dos sujeitos ou de grupos. A História Oral assim nos é apresentada como outra maneira de nos posicionar diante da realidade e dos sujeitos que a tornam real.

Thompson afirma que

por meio da história, as pessoas comuns procuram compreender as revoluções e mudanças por que passam em suas próprias vidas: guerras, transformações sociais como as mudanças de atitude da juventude, mudanças tecnológicas como o fim da energia a vapor, ou migração pessoal para uma nova comunidade. [...] A História Oral não é necessariamente um instrumento de mudança; isso depende do espírito com que seja utilizada. Não obstante, a História Oral pode certamente ser um meio de transformar tanto o conteúdo quanto a finalidade da história. Pode ser utilizada para alterar o enfoque da própria história e revelar novos campos de investigação (1992, p. 21-22).

Isso só reforça a ideia de que a História Oral para o que nos propusemos a estudar/pesquisar foi uma possibilidade concreta de visualizar como os professores escreveram suas histórias de formação, sua história de vida junto a instituição, a sua vida familiar, sua relação com o trabalho, suas conquistas pessoais e seus sentimentos junto a uma história que ajudou a forjar e sob a qual foram forjados.

Sendo assim, trazer para este estudo a oralidade, ouvir de cada narrador, um o reflexo desses movimentos de criação, de transformação na ação diária de cada docente, e sentir a forma como isso se deu e ficou registrado na memória de cada um. É descobrir sentidos diversos que são desenhados pelos sujeitos que fizeram com que a história local ou regional acontecesse.

Nesse contexto cabe nos perguntar, como recuperamos nossas histórias, tivemos que estudar e entender o significado e o lugar da memória que aqui passou a ser vista

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como uma possibilidade de entender uma história partilhada por determinado grupo e ao mesmo tempo perceber-se como constituinte desse mesmo movimento na condição de atores e autores de um processo histórico de uma região, de uma profissão ou de uma instituição.

Nas palavras de Harres “é a experiência do indivíduo com o passado que precisa ser compreendida, o que implica termos em conta o trabalho da memória na formação das identidades pessoais e sociais” (2004, p. 145).

Nessa condição a memória dos “outros”, daqueles que construíram nos bastidores a sua história pessoal e ao mesmo tempo a história coletiva e social deve ser entendida como um material vivo para apreciação e elaboração de nossas formas de entender o contexto estudado.

Voltando essas reflexões para o campo da educação, situamos, especificamente, a História de Vida e de Formação nos trabalhos apresentados pelo grupo de estudo e pesquisa de Nóvoa (1995) que teve participação especial nesse movimento, pois sustentou na década de 90 outros tantos grupos de pesquisa, inclusive aqui no Brasil, apontando a História de Vida, a (auto) biografia, como sendo possibilidades concretas de tramitação no universo da formação, da história, do contexto histórico, e dos significados dados aos educadores ao ato de ensinar, de aprender, de se tornar professor, de se sentir parte de um grupo de trabalho e responsável pelo desenvolvimento de outros tantos colaboradores.

Para Nóvoa “a utilização contemporânea das abordagens (auto) biográficas é fruto da insatisfação das Ciências Sociais em relação ao tipo de saber produzido e da necessidade de uma renovação dos modos de conhecimento científico (1992, p. 18).”

Particularmente para a Educação, foco de nossos interesses, Nóvoa afirma que ao contrário das outras áreas citadas acima (Sociologia e Antroplogia),

a introdução do método biográfico no domínio das ciências da educação não provocou grandes debates teóricos e epistemológicos; menos impregnadas do que as outras ciências sociais por uma perspectiva positivista, as ciências da educação compreendem de modo intuitivo a importância do método biográfico, que veio a revelar não apenas um instrumento de investigação, mas também (e sobretudo) um instrumento da formação (1988, p.12).

E isso devido à possibilidade de uma escuta mais atenta das narrativas com vista a conhecer melhor os processos pelos quais os formadores constituem sua formação, seus processos indenitários e seu reconhecimento no grupo, na profissão. Ainda para este autor, essa abordagem inaugura outro momento de estudos sobre o que ele afirmou ser uma “nova epistemologia da formação”. (BRITO, 2011).

Para Nóvoa, é nesse movimento de relembrar, de relatar, de refletir sobre sua história que outro processo se inicia: o de formar-se novamente diante de si, de reencontrar-se, de rememorar-se.

Contrária a uma racionalidade que marcou as pesquisas sobre a escola, os alunos e os professores nas décadas de 60, 70 e início dos anos 80, os estudos em torno das

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histórias de vida veem contracenar com esta ótica. A crise dos paradigmas hegemônicos da ciência moderna foi o ponto de apoio para sustentar os movimentos em torno da valorização das subjetividades do cotidiano escolar, no qual os estudos sobre os professores e seus saberes e processos indenitários tomou fôlego nas academias e espaços outros de pesquisa.

Para Josso outra estudiosa da história oral,

[...] o entusiasmo pela perspectiva biográfica aparece inseparável da reabilitação progressiva do sujeito e do ator197. Esta reabilitação pode ser interpretada como um retorno do pêndulo depois da hegemonia do modelo de causalidade determinista das concepções funcionalistas, marxistas e estruturalista do indivíduo, que predominaram até o final dos anos setenta (2004, p. 20).

Nesse movimento de retomada do sujeito, ator para o centro do processo da história e consequentemente da pesquisa é que nos situamos para compreender e fazer revelar o que temos nos propostos a estudar e responder nas nossas investigações.

A necessidade de conhecer para além dos porquês, como posto anteriormente, alimenta a nossa perspectiva de enveredar pela história contada pelos outros e suas reflexões sobre um pensamento coletivo, que reflete o tempo todo sobre nossos pensamentos, nossas ações, nosso olhar para si e para o outro, reflete a nossa compreensão do significado de formar e formar-se.

Para Fonseca, a primeira enfoca “as vivências e as representações individuais. As experiências dos homens, constitutivas de suas trajetórias, são rememoradas, reconstruídas e registradas a partir do encontro de dois colaboradores: narrador e pesquisador. ” Sendo assim a História Oral de Vida constitui para Fonseca uma possibilidade de transmissão da experiência de vida via narrativas (1997, p. 36-39).

A História Oral Temática, nestas pesquisas, tiveram e tem sua importância por apresentar de maneira mais singular e aguda parte da história de vida de uma pessoa ou de pessoas de um grupo.

Santos e Araújo afirmam que o trabalho com

História Oral Temática parte de um assunto específico, preestabelecido. A objetividade é mais direta, aproximando-se mais da apresentação de trabalhos analíticos em diferentes áreas do conhecimento acadêmico. Procura buscar a verdade pela narrativa de quem presenciou um acontecimento, ou dele tenha

197 A autora comenta que a reabilitação desses dois termos (ator e sujeito) se deu em virtude do sucesso da Teoria

dos Sistemas, proposta por Bertalanffy (1972), que introduziu a abertura e a indeterminação no seio de uma visão

determinista, quer seja linear ou multifatorial, pela mediação do conceito de autopoiésis*, caracterizando, no

campo as individualidades. (JOSSO: 2004, p.20) * autopoiésis, termo cunhado por Maturana e Franscisco Varela

que significa “produzir a si mesmo”.

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uma versão. Nesta modalidade, os detalhes da história pessoal do narrador só interessam quando se relacionam, ou revelam, aspectos úteis à informação temática (2007, p. 197).

Desta maneira, o trabalho com a História Oral temática tende a satisfazer às pesquisas que querem ter acesso ao que os sujeitos da ação pensam, fazem, porque fazem, de que forma fazem, mais como uma condição de fazer revelar/valer aquelas verdades do que de validá-las ou concluí-las para um rol de outras verdades já conhecidas. As pesquisas neste contexto se comprometem a anunciar as vozes de sujeitos que pensam, aprendem, refletem, crescem profissionalmente e se desenvolvem em suas profissões.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Defender a História oral sem nos comprometermos em estudar e entendermos o campo da memória isso é importante na medida em que as narrativas se valem de um tempo, de um acontecido, de uma forma de falar sobre o que viveu, sentiu, aprendeu.

Estudos sobre os diferentes aspectos da memória e da identidade docente são imprescindíveis no registro do processo de formação de professores e na rememoração de aspectos considerados relevantes na construção da nossa identidade docente, na compreensão do fazer-se.

A utilização da memória nos nossos estudos tem sido pensada como fator dinâmico de interação entre passado e presente. Percorrendo os caminhos da memória objetivamos compreender aspectos da profissão docente oriundos do processo de formação.

Pensar o passado nos faz mergulhar em nossa memória e com ela as lembranças de um tempo distante. Refletir o lugar da memória e a memória do lugar de formação de professores nos faz pensar sobre o cotidiano da escola de formação docente e compreendê-la como lócus de preservação e socialização de marcas culturais, como centro recriador da memória e da cultura local e ainda, compreender a prática educativa, como um espaço plural de memória e narração.

Ao investigar a formação docente, pelo viés da história oral, contamos com o auxílio da memória a fim de retomar acontecimentos específicos de um passado distante, para tal, essa pesquisa manteve-se centrada na formação inicial de professores ocorrida à partir do período de 1953 e que toma a vida do aluno e do professor como importante elemento reflexivo. Nesse sentido nossos estudos estão assentados no resgate de memórias e na recriação de saberes e fazeres de uma comunidade local, na recuperação das práticas educativas ocorridas no cotidiano da escola. BIBLIOGRAFIA

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ID: 1049

História Intelectual e dos Intelectuais: uma análise conceitual

crítica sobre as perspectivas metodológicas contemporâneas Autor: Jean Carlo de Carvalho Costa Filiação: Universidade Federal da Paraíba

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RESUMO

Esse texto procura apresentar alguns elementos sobre o debate existente no campo de investigação intitulado História Intelectual. Para tanto, o divido em quatro momentos inter-relacionados. A princípio, argumento sobre a importância da temática no âmbito da História da Educação contemporânea. Em um segundo momento, procuro apresentar a natureza das preocupações com a figura do intelectual e a sua relação com a História das Ideias, em sua vertente americana, e a História dos Intelectuais, em particular, a produzida na França. Após isso, elaboro um breve mapeamento de aspectos importantes para compreender a evolução recente desse campo a partir de alguns de seus personagens centrais como, por exemplo, o britânico Quentin Skinner e o historiador alemão Heinhart Koselleck, situando-os no interior de tradições intelectuais que sobre as suas trajetórias exerceram papel relevante. Finalmente, discuto o contributo dessa perspectiva teórica e metodológica para o entendimento dos fenômenos educacionais e, em particular, o entendimento da própria escrita da História da Educação.

PALAVRAS-CHAVE

História Intelectual; Intelectuais; História Conceitual

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A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO E A ESCRITA SOBRE OS INTELECTUAIS NA ATUALIDADE

Observa-se um processo de redefinição metodológica no campo da História da Educação em relação ao intelectuais, em especial, nas iniciativas destinadas ao estudo desses sujeitos e de suas trajetórias, percebe-se, por um lado, a existência de investigações interessadas na ação dos intelectuais e nos elementos geradores de sua escrita que, todavia, não parecem traduzir um exercício de exploração mais cuidadoso sobre os instrumentos teóricos e metodológicos utilizados por seus agentes. Uma conseqüência é que talvez pareça ter fundamento a crítica a certo psicologismo e a um caráter excessivamente descritivo e pessoal associado à escrita das trajetórias desses sujeitos, bem como à mitificação de seu lugar enquanto protagonistas de uma história educacional.Ou seja, muitas vezes, deixam-se de lado os aspectos que os singularizam enquanto sujeitos qual seja as suas contradições, o caráter descontínuo de seus itinerários, os elementos de interação envolvendo outros sujeitos e a produção dialógica das ideias, bem como as transformações várias e inevitáveis constituintes de uma vida.

No entanto, por outro lado, estudos produzidos na última década, tanto no contexto europeu (Rémond, 2003; Sirinelli, 1998, 2003; Lorenzo, 2005; Vilanou, 2006; Magalhães, 2007, 2015), para citar apenas algumas poucas referências, têm elaborado uma crítica muitíssimo interessante à natureza tanto da historiografia e a figura do intelectual, como também da própria historiografia da História da Educação. Em solo brasileiro, alguns inspirados nesse novo lugar ocupado pela História da Educação, na tradição inglesa de Cambridge ou na História Conceitual (Alves, 2012; Costa, 2015; Faria Filho; Inácio, 2009; Vieira, 2015), estão preocupados com a introdução de novas perspectivas de olhar esses indivíduos, procurando identificar as perguntas adequadas a fazer quando utilizamos o conceito de intelectual ou no intelectual como categoria epistêmica. Ou seja, como, afinal, assimilar de forma adequada essa tradição de pesquisa que é a História Intelectual a partir do manuseio dos problemas internos à própria historiografia da educação.

Esse texto é conseqüência de nossa produção sobre intelectuais no contexto da historiografia da educação recente, na qual é possível identificar, entre vários de seus desdobramentos, não apenas a eleição de novos objetos, novas estratégias metodológicas e problemas não usualmente tratados (Fonseca, 2008), mas também a consideração da participação de sujeitos não protagonistas ou mesmo aqueles que se encontram não no centro, do ponto de vista geográfico, das discussões. Além disso, a sua circulação entre outras localidades, assim como os diversos espaços de atuação, isso conduzido por um olhar distinto daquele que privilegia o protagonismo de ideias ou sujeitos, mas sim o que procura compreender as suas trajetórias, as redes de sociabilidade que engendram a projeção desses indivíduos e que envolvem instituições, publicações e espaços educativos de diversos formatos, representações e

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práticas, assim como o seu papel no processo de escolarização entre tantos outros elementos (Leite; Alves, 2011).

De fato, é possível identificar proficuidade nessa produção, no entanto, como acima referi, há ainda certa deficiência no trato do conceito de intelectual ou talvez uma preocupação excessiva de, identificando conceito e o autor responsável por ele, associá-los de forma imediata ao sujeito investigado, sendo guiado, desse modo, por elementos presentistas muito mais perniciosos ao entendimento do sujeito do que o seu contrário. Além disso, há certa desconsideração da palavra intelectual enquanto categoria epistemológica, derivando daí, por vezes, uma dubiedade na abordagem dessa figura e em sua relação com a educação e com a sociedade. O termo intelectual, do nosso ponto de vista, aparece muito mais como uma adjetivação dos sujeitos pesquisados e menos como um conteúdo a ser investigado de forma minuciosa, em todos os elementos possíveis a indagar que envolvem tanto a produção de ideias do sujeito em seu contexto local como em sua relação com dimensões mais amplas.

Na próxima seção, apresentaremos alguns elementos que nos auxiliam a entender as discussões em torno da figura do intelectual no ocidente, o desenvolvimento do campo intitulado História Intelectual, em seu diálogo, do nosso ponto de vista, indissociável, da História dos Intelectuais e da natureza do estudo das ideias.

DA HISTÓRIA DOS INTELECTUAIS À HISTÓRIA INTELECTUAL

Considerando a já extensiva literatura existente sobre o tema, parece ser importante como se dá a constituição de uma espécie de modelo do intelectual na modernidade no qual é possível introduzir personagens como Voltaire ou Rousseau (Dosse, 2007), por exemplo, e, mais recentemente, tratar o Caso Dreyfuss como fio condutor e considerá-lo revolucionário no campo intelectual, pois esse pode servir de espectro para discernir as transformações que afetaram os intelectuais na segunda metade do século XX. O caso Dreyfuss, ao longo do século XX, desdobra-se em inúmeras tentativas de problematizar a figura do intelectual enquanto conceito além de várias tentativas de prescrever ou mesmo definir o seu comportamento. Ou seja, preocupações com a historicidade das ideias, com os tipos de práticas que esses sujeitos protagonizaram, quais profissões seguiram (o ofício), discussões em torno de sua pertença social (classe), a necessidade de seu engajamento ou de seu sacerdócio (neutralidade), enfim, o caso Dreyfuss se tornou uma espécie de tipo ideal para pensar sobre o papel do intelectual e a própria História dos Intelectuais. Não por acaso, essa se desenvolve muito fortemente na França e tem a sua história intrinsecamente associada à história política e, mais recentemente, à figura do professor Jean-François Sirinelli (2003).

De forma concomitante à efervescência dessas discussões no contexto francês que conduziram a essa associação entre História dos Intelectuais e a prática investigativa na França, outros desdobramentos se deram em relação à natureza das ideias e de seu estudo e, a partir daí, de certa confusão em relação à História dos

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Intelectuais e o seu indissociado vínculo com à História Intelectual. Tentaremos argumentar sobre essa relação e do encontro dessas perspectivas a partir da entrada, saída e re-entrada das ideias e do pensamento em cena, bem como do retorno do político para pensar os intelectuais.

A indagação sobre o que seria uma história intelectual não é uma questão recente no contexto europeu. No entanto, no Brasil, parece se tratar de área de discussões mais recentemente travadas, talvez em função da tradução, nas duas últimas décadas, de obras substanciosas que investigam o pensamento político moderno. Uma das conseqüências tem sido repor a pergunta sobre a sua natureza e adequação em um contexto distinto do qual se originou (Silva, 2002). De todo modo, pode-se dizer que se trata de domínio no qual se encontram investigadores das mais diversas áreas de pesquisa, instituindo, para alguns, muito mais dúvidas do que esclarecimentos. Trata-se de uma área investigação pluridisciplinar na qual se aglutinam perspectivas distintas de se abordar sujeitos, formas de sociabilidade e textos como, por exemplo, a história dos intelectuais, a história das ideias, o pensamento social, análise do discurso entre outras e, muitas vezes, confunde e pouco elucida em função talvez da disciplinarização autônoma das áreas.

Além disso, certa confusão derivada da busca do conceito mais adequado de intelectual conduz, do nosso ponto de vista, à ambigüidade e à insegurança no trato dessa figura ao invés de seu esclarecimento. Uma alternativa com a qual concordamos é talvez a preocupação maior com o tipo de comportamento que têm esses indivíduos e as mudanças pelas quais esse comportamento vai sendo alvo ao longo de certo período histórico (Rodrigues, 2005). De fato, ao vir à baila a palavra, imediatamente, em qualquer fórum público, as dúvidas se encontram em torno das representações existentes sobre esse sujeito e o lugar dele nos dias atuais. No entanto, por ora, não trataremos do problema conceitual de modo substancial, mas sim da natureza da área e de suas perspectivas.

De modo geral, a História Intelectual é tratada como sendo um domínio relativamente novo que tem encontrado profunda ressonância no interesse de investigadores nas últimas décadas. No entanto, há certa confusão em considerá-la um procedimento de análise ou uma disciplina em formação (Silva, 2003). Além disso, a própria expressão tem compreensões distintas nos contextos americano, voltado para preocupações essencialmente lingüísticas, e o francês, mais próximo de uma sociologia dos intelectuais, da história das ideias e/ou de uma sociologia da cultura. Para Dosse (2007), toda uma corrente da história intelectual se define como uma crítica à história das mentalidades, e aqui eu incluiria também a história das ideias, propondo “um enfoque mais complexo das representações, essas que não podem ser reduzidas a simples reflexo das categorias sócio-profissionais” (Dosse, 2007, p. 128-129).

De fato, ao se tratar de História Intelectual, de imediato, nos vem à mente ideias e história das ideias. Aqui é preciso fazer duas observações a título de esclarecimento. A princípio, a ênfase na história das ideias pode sugerir que estamos lidando com abstrações autônomas que em certo momento, ou por algum acidente, ancoram na

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mente humana e o nosso papel seria o de penetrá-la e descobrir a sua origem última. Algo que lembra muitíssimo parte do pensamento alemão de inspiração hegeliana no XIXX e a empreitada filosofica de Wilhelm Dilthey e a sua Geistesgeschichte. O termo história intelectual, por outro lado, indica que a ênfase está em um aspecto da atividade humana, da mesma forma como fazem a história econômica e/ou história política.

No entanto, é preciso lembrar que a história das ideias foi expressão escolhida entre os anos de 1920 e 1930 pelo filósofo americano, A. O. Lovejoy (1873-1962), para designar a sua própria abordagem idiossincrática para o estudo da vida do passado publicada em seu livro “A grande cadeia do ser: um estudo de uma ideia” (2005). Uma abordagem que consistia essencialmente em isolar o que denominou universais ideias-unidade (unit-ideas), das quais, segundo ele, todas as doutrinas mais complexas e teorias originadas da Filosofia foram compostas. Trata-se de uma perspectiva eminentemente idealista e imanentista da história das ideias, supondo a história do ocidente como sendo atravessada “por la permanência de algunas ideas importantes, animadas por uma búsqueda de plenitud, teniendo en su base una visión del equilíbrio de la naturaleza” (Dosse, 2007, p. 183). Em 1940, ele funda o Journal of the History of ideas. A abordagem de Lovejoy dominou o campo universitário americano durante pelo menos uma geração, levando à elaboração de listas imensamente exaustivas das unidades particulares de ideias. Embora a sua influência tenha diminuído nas últimas décadas (e a própria Revista que fundou tornou-se menos mecânica e sectária na sua abordagem), o termo história das ideias é, pelo menos nos Estados Unidos, ainda freqüentemente identificado com o seu trabalho e tende a causar mal-entendidos não apenas no contexto americano, mas também em contextos distintos como o ibero-americano.

Ao longo de algumas poucas décadas, a força desse modo de abordar as ideias foi gradativamente diminuindo e, de modo concomitante, novas ideias e pontos de vistas foram emergindo de contextos distintos, mas talvez guiados por inquietações similares cuja tendência foi colocar em dúvida a própria modernidade e o seu legado fundado na razão e no caráter universal de certas ideias. A crítica foi derivada, por um lado, de certos integrantes do movimento dos Annales e a sua preocupação com as condições sociais de produção. Lucien Fevbre (1989) e a sua conhecida expressão para tratar essa forma de modalidade de história das ideias desencarnadas é comum ainda nos dias atuais para se referir a um tratamento do pensamento ou das ideias indissociado de seu contexto de produção. Por outro, uma muito interessante perspectiva crítica é derivada dos inúmeros desdobramentos suscitados pela The Linguistic Turn, expressão comumente associada ao conjunto de ensaios, com o mesmo título, organizados e publicado em 1967 por Richard Rorty, profundamente ressonante ao paradigma estruturalista francês que, àquele período, inicia os seus anos de profundo impacto no pensamento ocidental através de figuras como Michel Foucault, Jacques Derrida e Jacques Lacan. Esses tempos pós-modernos trazem inúmeras conseqüências sobre a história intelectual, mas não apenas sobre ela como é sabido, pois a ideia de texto, de modo geral, é trazida ao palco das humanidades.

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De fato, ainda que exista um campo de tensão entre nossa interpretação e as possibilidades que o texto nos dá, as palavras não tem significado em si, mas mudam de acordo com o período histórico, grupo lingüístico e os seus leitores. Isso significa dizer que certos termos podem mudar completamente de sentido ou até perder qualquer significado a um leitor contemporâneo. Ou seja, a partir da virada lingüística, as ideias de leitura e interpretação podem ser pensadas, portanto, como campo de tensão e também enquanto processo dialógico, intersubjetivo, mas também social de produção de sentido.

O próprio Skinner, em uma de suas primeiras importantes publicações metodológicas, publicada em meados dos anos de 1960, assim inicia o seu texto:

“Vivemos em tempos pós-modernos (não sou o primeiro a notar) e um dos traços mais desafiantes da cultura pós-moderna é o profundo ceticismo acerca do projeto humanista tradicional de interpretar texto” (Skinner, 2002, p. 90).

Ou seja, a crítica derivada de diversos lugares e que tiveram certos elementos comuns que a permitiram, trouxeram à tona inúmeras tentativas de conciliar ideias, correntes de pensamento, formas de pensar, os intelectuais, sociabilidade, entre outros tantos aspectos que fizeram e fazem parte desse campo de investigação. Além disso, também trouxe, para a cena, o debate entre internalismo e contextualismo, do nosso ponto de vista, uma espécie de falso debate que acabou gerando tipologias as mais variadas para situar autores, obras e abordagens metodológicas. As ideias, em seu final, não se encontram ausentes, mas também não são concebidas de forma abstrata como na perspectiva de Artur Lovejoy, mas sim no interior de sistemas, de correntes de pensamento e no caráter dialógico que funda a relação entre as estruturas sociais e a ação dos indivíduos.

Diante dessas questões, conceituar essa área de investigação não parece ser das tarefas mais fáceis. No entanto, parece ser relativamente necessário para fins didáticos e de esclarecimento de alguns movimentos recentes do ponto de vista das investigações. Desse modo, é possível esse exercício inclusive para a nossa própria organização do pensamento. Assim, poder-se-ia dizer que a História Intelectual designa “todas as espécies de estudos históricos concernentes a obras, doutrinas, formas de pensamento, tradições de saber, movimentos etc. na esfera erudita da cultura, diferenciando-se assim das pesquisas de mentalidades, do imaginário, dos processos culturais simbólicos e das dimensões sociais da cultura” (Lacerda; Kirschener, 2003, p. 29).Para alguns, talvez esse destaque relativo à esfera erudita da cultura possa parece inadequado ou problemático por talvez não considerar diretamente correntes de pensamento que circulem à margem. De qualquer modo, aqui há a ênfase nas dimensões sociais da cultura. Por outro lado, poderíamos pensar então, e com esse ponto de vista concordamos mais, que:

a História intelectual, domínio pluridisciplinar por excelência, possibilita diferentes enfoques, como o dos contextos de produção de idéias, o dos agentes

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socioprofissionais e o das correntes de pensamento. Situada, portanto, na interseção de diferentes disciplinas (História, Sociologia, Filosofia etc.), ela parece visar dois pólos de análise: de um lado, o conjunto de funcionamento de uma sociedade intelectual (o ‘campo’, na versão de Pierre Bourdieu), isto é, suas práticas, seu modo de ser, suas regras de legitimação, suas estratégias, seus habitus; de outro lado, as características de um momento histórico e conjuntural que impõe formas de percepção e de apreciação, ou modalidades específicas de pensar e de agir de uma comunidade intelectual. Em outras palavras, a História Intelectual, tal como nós a percebemos, teria por principal pressuposto restituir, do ponto de vista sociológico, filosófico e histórico, o contexto de produção de uma obra (Silva, 2003, p. 16, grifo nosso).

De todo modo, o consenso, nessa área de reflexão, como já foi ressaltado, é precário, ainda que seja possível mapear as discussões e os pontos de vista relativamente distintos. Assim, partimos do suposto de que a História Intelectual contemporânea nos apresenta três vertentes metodológicas que se debruçam sobre a categoria intelectual. A primeira se distingue pelo apego a uma noção historicista de contexto, a “entender-se no sentido da redução do significado dos textos a seu valor documental, de expressão ou resposta a uma situação histórica particular” (Lacerda; Kirschener, 2003, p. 32). Historiadores da Escola de Cambridge como Quentin Skinner, J. G. Pocock e John Dunn são os mais conhecidos dessa variante em função da busca por reconstruir os universos comunicativos em que se originaram os escritos elaborados por esses pensadores clássicos. A segunda vertente, intitulada New Intellectual History aglutina duas tendências, a hermenêutica, especialmente aquela derivada de Hans-Georg Gadamer e o desconstrucionismo de Jacques Derrida, o primeiro se centrando na ideia de unidade do texto e o segundo privilegiando a polissemia e os elementos contraditórios dos processos textuais. Também é possível introduzir aqui a História dos Conceitos de Reinhart Koselleck e a introdução das categorias espaço de experiência e horizonte de expectativa (Koselleck, 2006), isso em função do legado da hermenêutica existencial de Gadamer e de sua ideia de narrativa histórica sobre a obra desse historiador alemão (Koselleck, 2014). No entanto, o elemento central talvez seja o fato de ele identifica na análise do que ele denomina coletivos singulares a forma de tornar o conceito como elemento central da prática do historiador, articulando-o a uma nova forma de tratar as temporalidades passado, presente e futuro e introduzindo uma prática integradora de pensar tanto teórica como também metodologicamente o objeto de estudo da História.

Nessa perspectiva, destaca-se a discussão da natureza da experiência hermenêutica e de seu elemento central, cujas conseqüências sobre a experiência educacional são várias, qual seja a ideia de abertura e, finalmente, uma análise da estrutura da abertura: a pergunta e a resposta. A despeito de sua diversidade originária, a expressão hermenêutica, refere-se ao problema da compreensão e/ou interpretação do significado de textos, ações humanas e produtos culturais. Aqui as

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implicações sobre a História Intelectual são várias. Como é possível pensar o papel do investigador do presente? Qual é o lugar, afinal, desse investigador que urge pensar o passado acreditando em seu contributo para o entendimento de seu próprio presente e quiça o futuro? É possível pensar em alguma unidade interpretativa e qual seria o elemento guia dessa procura? Uma ética?

As conseqüências também sobre as ideias de presente e passado, método e as categorias de compreensão e explicação são várias e sobre elas se debruçaram os críticos. Jürgen Habermas argumenta que Gadamer aceita acriticamente o significado tradicional porque ele negligencia o poder da razão de revelar a gênese dos preconceitos e sequestra daí aqueles cuja autoridade é derivada da força e não da razão; nele há ausência de crítica do poder e da ideologia. Em Paul Ricoeur, herdeiro contemporâneo dessa tradição, encontramos a afirmação da necessidade do que ele denomina de uma hermenêutica da desconfiança, cujo eixo central é a afirmação da possibilidade de análise estrutural da obra, possibilitando um reencontro entre as ideias de compreensão e explicação. Finalmente, em Jacques Derrida, para além das críticas metodológicas anteriores, há a acusação mais radical qual seja a ideia de que Gadamer permanece atrelado às ideias de verdade e de significado em torno da linguagem e do círculo hermenêutico. Em Derrida há a consideração fundamental de que a linguagem é um sistema descentrado de significantes em que nada é significado transcendental. As conseqüências dessas críticas são, por um lado, salvaguardar o caráter originário do método em História qual seja a sua proximidade com certa concepção de ciência interpretativa e, por outro, desdobrar-se em um relativismo radical ou em uma visão neopragmática da História próxima do pensamento de Richard Rorty que, por seu turno, é mais próxima da virada retórica de Skinner (Skinner, 2002)

Finalmente, Michel Foucault e a sua ideia de um intelectual específico é tratado por muitos como uma terceira perspectiva de análise na história intelectual. A figura do intelectual específico aparece em Foucault a partir do momento em que ele é convidado por Daniel Defert a participar como coordenador, no início dos anos 70, de uma comissão de pesquisa sobre as condições de prisão, isso em função de seu envolvimento com alguns personagens militantes de esquerda na França. A preocupação dele ao abordar a prisão é deixar os outros falarem, não impondo limites àqueles que têm o direito de falar. De acordo com Bert (2013):

o intelectual específico, tal como definido por Foucault, está às voltas com o atual e o presente. Ele se dedica a inventar novas formas de ação que escapam ao militantismo tradicional. Eficiente em um campo determinado, esse intelectual deixa de ser, como em Sartre, portador de uma forma de universalidade ou porta-voz, mas, antes de tudo, passa a ser um ‘conhecedor especializado’ que alimenta sua crítica de maneira local, a partir de uma politização dos problemas cotidianos (Bert, 2013, P. 46).

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Ainda que seja possível identificar esse mapeamento em torno da História Intelectual e, como se vê, guiado por variações inevitáveis entre os seus autores, para esse momento, há ainda, do nosso ponto de vista, certa confusão na esfera nacional, em particular, devido ao trato do conceito e à preocupação excessiva por organizar autores e formas distintas de investigação, daí talvez a História dos Conceitos, em função de sua defesa em agregar elementos conceituais, discursivos, sociais e culturais possa vir a ser uma modalidade de História Intelectual a ser dada atenção mais cuidadosa.

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