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Assine 0800 703 3000 SAC Bate-papo E-mail E-mail Grátis Shopping BUSCAR São Paulo, domingo, 19 de agosto de 2001 Texto Anterior | Próximo Texto | Índice + autores Violência emancipadora Slavoj Zizek Em junho de 2001, Andrea Yates, de Houston, Texas (EUA), afogou seus cinco filhos numa banheira (desde Mary, de 6 meses, até Noah, 7 anos). Às 9 da manhã, depois que seu marido saiu para o trabalho, ela encheu a banheira e começou a matar as crianças. Quando ela pegou Mary e a colocou na banheira, Noah a flagrou no ato e tentou fugir, mas ela correu atrás dele e o empurrou para dentro da banheira. Ela agiu de maneira metódica: os matou um a um, segurando-os debaixo d'água (com, podemos imaginar, seus olhos arregalados olhando fixamente para ela) e depois deitando-os na cama, embrulhados em lençóis. Em seguida, com calma, telefonou para a polícia e para seu marido, informando-os de seu ato, que assumiu plenamente, tanto assim que, quando um policial lhe perguntou se ela sabia o que fizera, ela respondeu: "Sim. Matei meus filhos". Seu caso trouxe à tona a pobreza da discussão psiquiátrica/médica da chamada "DPP" (depressão pós-parto), ignorando os fatores ideológicos envolvidos: como deixam claros os nomes das crianças (Mary, Luke, Paul, John e Noah -este, ironicamente, o último a ser afogado), o ato de Andrea ocorreu numa família cristã devota. Quando se casaram, Andrea e Rusty Yates decidiram que Andrea deveria deixar seu emprego (de enfermeira num hospital de câncer), ficar em casa e se dedicar integralmente aos filhos. E ela o fez com dedicação total: além de alimentar, banhar e disciplinar seus filhos e de lhes ensinar a falar e a fazer contas, ela cuidava de seu pai, que tinha o mal de Alzheimer. Andrea dedicou sua vida a servir os outros. Se alguma crítica lhe pode ser feita é que se preocupava demais com os outros, tentando ser uma mãe boa demais, sempre pensando nas outras pessoas e nunca em si mesma. Presa na armadilha dessa subserviência aos outros, ela era, por definição, incapaz de cumprir sua tarefa: quanto mais se esforçava para cumprir a exigência de servir o próximo, mais se sentia incapaz de dar e fazer tudo o que era preciso, sofrendo ataques de depressão e distanciamento emocional como consequência da situação em que se encontrava. Depois de afogar seus filhos, ela disse à polícia que era uma mãe má e que seus filhos estavam inevitavelmente estragados. Em junho de 1999, após a morte de

Zizek - Violência emancipadora - Passagem ao ato e Clube da Luta - 2001

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São Paulo, domingo, 19 de agosto de 2001

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+ autores

Violência emancipadora

Slavoj Zizek

Em junho de 2001, Andrea Yates, de Houston, Texas (EUA),

afogou seus cinco filhos numa banheira (desde Mary, de 6

meses, até Noah, 7 anos). Às 9 da manhã, depois que seumarido saiu para o trabalho, ela encheu a banheira e começou a

matar as crianças. Quando ela pegou Mary e a colocou na

banheira, Noah a flagrou no ato e tentou fugir, mas ela correuatrás dele e o empurrou para dentro da banheira. Ela agiu de

maneira metódica: os matou um a um, segurando-os debaixod'água (com, podemos imaginar, seus olhos arregalados olhando

fixamente para ela) e depois deitando-os na cama, embrulhados

em lençóis. Em seguida, com calma, telefonou para a polícia epara seu marido, informando-os de seu ato, que assumiu

plenamente, tanto assim que, quando um policial lhe perguntou se

ela sabia o que fizera, ela respondeu: "Sim. Matei meus filhos".Seu caso trouxe à tona a pobreza da discussão

psiquiátrica/médica da chamada "DPP" (depressão pós-parto),ignorando os fatores ideológicos envolvidos: como deixam claros

os nomes das crianças (Mary, Luke, Paul, John e Noah -este,

ironicamente, o último a ser afogado), o ato de Andrea ocorreu

numa família cristã devota. Quando se casaram, Andrea e Rusty

Yates decidiram que Andrea deveria deixar seu emprego (deenfermeira num hospital de câncer), ficar em casa e se dedicar

integralmente aos filhos. E ela o fez com dedicação total: além de

alimentar, banhar e disciplinar seus filhos e de lhes ensinar a falar

e a fazer contas, ela cuidava de seu pai, que tinha o mal de

Alzheimer. Andrea dedicou sua vida a servir os outros. Sealguma crítica lhe pode ser feita é que se preocupava demais

com os outros, tentando ser uma mãe boa demais, sempre

pensando nas outras pessoas e nunca em si mesma. Presa na

armadilha dessa subserviência aos outros, ela era, por definição,

incapaz de cumprir sua tarefa: quanto mais se esforçava paracumprir a exigência de servir o próximo, mais se sentia incapaz

de dar e fazer tudo o que era preciso, sofrendo ataques de

depressão e distanciamento emocional como consequência da

situação em que se encontrava. Depois de afogar seus filhos, ela

disse à polícia que era uma mãe má e que seus filhos estavaminevitavelmente estragados. Em junho de 1999, após a morte de

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inevitavelmente estragados. Em junho de 1999, após a morte de

seu pai, não conseguindo manter a situação sem ter de cuidar

dele, ela já tentara se matar de overdose; no final, escolheu o

outro caminho, matando seus filhos.

Servir os outros Que leitura devemos fazer desse ato horrendo? As explicações

não faltam -pelo contrário. As feministas podem afirmar que o

ato de Andrea foi uma revolta desesperada contra o papel

materno tradicional. Os teóricos da "sociedade de risco" podem

interpretar seu ato como resultado do fato de que os valores

familiares tradicionais não conseguem capacitar os indivíduos aenfrentar a dinâmica da vida social moderna. Os conservadores

talvez prefiram enfatizar as pressões insuportáveis que a vida

moderna impõe às famílias. Existe, de fato, algo de "pré-

moderno" na rejeição de Andrea ao caminho da recomendação

narcisista moderna do "realize-se!": ela encontrava satisfação naatitude antiquada e auto-supressora de servir os outros.

O que tornou seu fardo insuportável foi que, em oposição aos

tempos pré-modernos, quando o cuidado dos filhos era maiscoletivizado (havendo a participação de avós, irmãos, irmãs e

outros parentes), a família nuclear moderna tende a relegar essa

tarefa à mãe sozinha. Ao mesmo tempo em que abandona sua

carreira profissional e se dedica à sua prole, a mãe é sujeita à

injunção ideológica de viver essa situação como a felicidade

suprema: o puro prazer da privacidade e intimidade, em

oposição ao trabalho profissional "alienado". O que dizer do fato

evidente de que crianças entre 2 e 5 anos efetivamente são

monstros, o mais próximo que um ser humano pode chegar do

"mal radical" -ou seja, seres caracterizados pela exigência

absoluta, inflexível e obstinada, por definição eternamenteinsatisfeitos? Não surpreende que, em 1646, a Corte Geral de

Massachusetts Bay tenha promulgado a "lei da criança teimosa",

pela qual filhos rebeldes podiam ser julgados e executados.

Não estamos lidando, aqui, com a simples tensão entre a

injunção ideológica excessivamente rigorosa e a resistência

oposta a ela pelo sujeito, mas com o dilema inerente à própria

injunção: sua mensagem explícita é complementada por uma

mensagem implícita e obscena que diz exatamente o contrário.

Assim, no caso da mãe, a mensagem completa da injunção é a

seguinte: seja feliz e encontre sua realização dentro do inferno de

sua casa, onde seus filhos a bombardeiam com exigênciasimpossíveis de serem satisfeitas e onde todas as suas esperanças

são frustradas. Não surpreende, assim, que a dedicação infinita

aos filhos possa se transformar em raiva destrutiva na direção

deles. Assim, quando lidamos com surtos de violência

aparentemente irracional, devemos sempre procurar o impasse

ideológico contra o qual esses surtos constituem reação. A

primeira reação a um dilema ideológico é obrigatoriamente uma

passagem "cega" aos atos, passagem que apenas mais tarde, num

segundo momento, pode ser adequadamente politizada.

Simplesmente temos que assumir o risco de que a explosão

violenta e cega será seguida por sua politização correta.Há uma cena insuportavelmente dolorosa no filme "Clube da

Luta" (1999), de David Fincher, uma conquista extraordinária em

se tratando de Hollywood: para chantagear seu chefe, forçando-

o a pagá-lo por não trabalhar, o herói do filme se atira para cá e

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o a pagá-lo por não trabalhar, o herói do filme se atira para cá e

para lá no escritório do chefe, machucando-se todo, de

propósito, antes da chegada dos seguranças do prédio. Assim,

diante de seu chefe constrangido, ele representa sobre si mesmo

a agressividade do chefe em relação a ele.

O que representa esse auto-espancamento? Quando o herói se

espanca diante de seu chefe, a mensagem que está enviando a

ele é: "Sei que você quer me bater, mas seu desejo de me bater étambém meu desejo, de modo que, se me batesse, você estaria

cumprindo o papel de servo do meu desejo masoquista

perverso. Mas você é covarde demais para pôr seu desejo em

prática, então eu o farei por você. Aqui está, é o que você

realmente queria. Por que você está tão constrangido? Não

consegue admiti-lo?". O crucial aqui é a distância que separa a

fantasia da realidade. É evidente que o chefe jamais teria

espancado o herói -ele estava apenas tecendo uma fantasia na

qual o fazia, e o efeito doloroso do auto-espancamento do herói

se deve ao próprio fato de ele concretizar o conteúdo da fantasia

secreta que seu chefe jamais teria podido colocar em prática.

Paradoxalmente, essa passagem ao ato é o primeiro ato dalibertação: por meio dela, o vínculo libidinoso masoquista do

empregado com seu patrão é trazido à tona, e, com isso, o

empregado cria uma distância mínima em relação a ele. O fato de

espancar a si próprio deixa clara a questão muito simples de que

o chefe é desnecessário: "Quem precisa de você para me meter

medo? Eu mesmo posso fazê-lo!". Não surpreende que a mesma

estratégia às vezes seja usada em manifestações políticas: quando

uma multidão tem sua passagem freada pela polícia, que está

disposta a espancar seus integrantes, uma maneira de induzir uma

inversão chocante da situação é que os indivíduos na multidão

comecem a espancar uns aos outros.Em seu ensaio sobre Sacher-Masoch, Gilles Deleuze tratou

desse aspecto com detalhes: longe de dar qualquer satisfação à

testemunha sádica, a autotortura do masoquista frustra o sádico,

privando-o de seu poder sobre o masoquista. Enquanto o

sadismo envolve uma relação de dominação, o masoquismo é onecessário primeiro passo para a libertação. Quando estamos

sujeitos a mecanismos de poder, essa sujeição é sempresustentada por algum investimento da libido: o sujeito gera um

prazer perverso próprio. Apenas quando se começa batendo emsi mesmo é possível se libertar. Como se diz em inglês, o

verdadeiro objetivo desse auto-espancamento é "to beat the shitout of me" (literalmente, "bater a merda para fora de mim") -ou

seja, arrancar de mim, pelo espancamento próprio, aquilo queexiste em mim e que me mantém ligado ao chefe, o prazer

perverso que minha subordinação me proporciona.A lição a ser tirada de nossos dois exemplos, um deles saído daficção, e o outro, da vida real, é, portanto, a mesma, simples,

mas difícil de aceitar: libertar-se da prisão da ideologiahegemônica é sempre um esforço violento, nunca apenas uma

questão de argumentação racional habermasiana. Para alcançar aliberdade, é preciso pagar o preço na própria carne.

Slavoj Zizek é filósofo esloveno, professor do Instituto de Sociologia daUniversidade de Liubliana, autor de "Eles Não Sabem O Que Fazem" e"Um Mapa da Ideologia". Escreve mensalmente na seção "Autores", doMais!.

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Mais!.Tradução de Clara Allain.

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