8/18/2019 Práticas Etnográficas - Surpresas. Riscos e Desafios Do Fazer Antropológico
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IV Reunião Equatorial de Antropologia e
XIII Reunião de Antropólogos do Norte e Nordeste
04 a 07 de agosto de 2013, Fortaleza-CE
Grupo de Trabalho:
Práticas Etnográficas: Surpresas. Riscos e Desafios do Fazer Antropológico
“Antropologia, dúvidas e dores:
afetada por uma etnografia no dia de finados”
Polyanny Lílian do Amaral
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
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In trodução
"É por uma razão muito profunda, que se pretende, à
própria natureza da disciplina e ao caráter distintivo de seu
objeto, que o antropólogo necessita da experiência de campo."
C. Lèvi-Strauss
A antropologia, durante a sua formação e afirmação como ciência
deparou-se com diversos questionamentos sobre si e os seus próprios
métodos utilizados, assumindo uma postura que outras disciplinas, por vezes
consideradas até mais científicas que a antropologia, não assumiram. Muitas
vezes considerada como a disciplina da magia, da emoção e da não-ciência, aantropologia se permite fazer a partir as inquietações e curiosidades do
antropólogo. "A Antropologia é a disciplina dos indisciplinados, daqueles que se
recusam a limitar a sua curiosidade. O antropólogo é aquele que sai, que quer
conhecer tudo de maneira mais ampla e dando a ele mesmo todos os meios
para chegar a isso." disse Le Breton numa entrevista. E é exatamente por
assumir a emoção, as dificuldades do método e suas limitações que a
antropologia se faz como ciência.
Desde Malinowski e sua definição de observação participante, o trabalho
de campo tem sido uma das principais ferramentas do fazer antropológico. Mas
como já nos alertou este autor, muitas vezes o campo nos coloca situações
imprevisíveis, vividas apenas no campo e em momentos inesperados: são os
imponderáveis da vida real (cotidiana). Assumindo o papel de pesquisador na
busca pelo "outro", o antropólogo mergulha na pesquisa de seu "objeto". Porém
este "objeto" é um ator social, um indivíduo com capacidades racionais, comemoções e características próprias. Esse "objeto" ultrapassa a definição restrita
da palavra e atua como "sujeito". Desta forma, embora o pesquisador possa
prever algumas ações, ele se depara com sujeitos que são capazes de
influenciar e serem influenciados.
O trabalho etnográfico desafia o antropólogo pesquisador a enfrentar
situações únicas, em que ética, personalidade, limites e crenças são colocados
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em cheque. No que condiz a este trabalho, proponho refletir sobre as situações
que o campo nos coloca a partir de minhas experiências etnográficas.
Frente à proposta de avaliação da disciplina de Etnografia que requeria
uma breve pesquisa de campo, decidi imediatamente escrever algo sobrereligião. “Vou pesquisar os crentes” comentei, com ar de riso, com uma colega
de classe que por sua vez retrucou: “Mas tu és nativa”. Mas seja por afinidade
e pertença ou pela beleza de um desafio de refletir sobre si mesmo resolvi
inicialmente delimitar meu campo ao protestantismo.
Nascida e criada na doutrina protestante, estudante de ciências sociais e
com mil e uma ideias na cabeça, pensei em diversos temas que abordasse o
seguimento religioso no qual pertencia. Eu queria ser o “antropólogo-nativo” e o
“nativo-antropólogo” que Bourdieu propôs, além disso, a ideia de refletir sobre
si mesmo me fascinava. Ocorreu então uma atividade evangélica muito
oportuna para mim: a “marcha pra Jesus” que aconteceu no fim do mês de
setembro de 2011. Bastou ouvir uma vez sobre o evento e logo meus
pensamentos foram longe. Mergulhada em expectativas, esperei ansiosa pelo
dia que quando finalmente chegou fui ao campo com mais dois colegas de
pesquisa cheia de vontade. Ao fim do dia, com o diário de campo lotado de
ideias, fui logo tratar de escrever o esboço do que seria este trabalho. Porém,
junto com as atividades acadêmicas veio também a pesquisa sobre o dia de
finados1. Foi o terceiro ano de pesquisa no cemitério e minha função, como
sempre, era aplicar questionários e anotar minhas impressões do campo. O
fato é que no terceiro ano, aquela pesquisa foi diferente. Nunca havia sido
afetada antes por aquele campo, pois desacreditava totalmente na eficácia do
que aquelas centenas de pessoas faziam todos os anos.
Ao fim do dia de trabalho voltei para casa com um sentimento estranho,
dúvidas talvez. Lembrei-me do texto de Jeanne Favret-Saada (2005) em que a
1 Trabalho como auxiliar da pesquisa: “O “Dia da Saudade”: Uma abordagem sincrônico-diacrônica do
período de finados em Recife”, coordenado Profª Drª Mísia Lins Reesink da Universidade Federal de
Pernambuco – PPGA (Programa de Pós-Graduação em Antropologia). Com a função de aplicar
questionários em dois cemitérios da cidade do Recife (Cemitério de Santo Amaro e de Casa Amarela),
nos dias 1 e 2 de novembro.
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autora trata do “ser afetado”. Então decidi que este seria o meu trabalho de
conclusão da disciplina.
Pensar sobre o quanto o campo pode nos surpreender deve ser um
ponto levado em consideração pelo antropólogo. O fato de ser evangélica meproporcionou uma mudança de tema e atitude. O trabalho de campo começa
na sua escolha; esta escolha é condicionada pela trajetória do pesquisador,
suas experiências pessoais, crenças e inquietações. Além do conhecimento e
do domínio teórico, o trabalho de campo engloba características e
especificidades do pesquisador que esboçarão as diferencias das pesquisas
desenvolvidas. Como destacou Miriam Grossi (1992) que cada trabalho de
campo é uma “experiência marcada pela biografia individual de cadapesquisador.” (p.8)
Antropologia: O lugar do antropólogo em campo
Roberto Cardoso de Oliveira (1998) em “O trabalho do Antropólogo”
enfatiza o caráter constitutivo do olhar, do ouvir e do escrever, na elaboração
do conhecimento. O primeiro passo do pesquisador seria domesticar o olhar,
ou seja, ter uma olhar sensível a realidade social, ter o olhar do nativo. Pois,
uma vez que decidimos partir para a investigação empírica, o sujeito-objeto,
sobre o qual o nosso olhar está posto, está antecipadamente modificado pelo
modo que o visualizamos. Um olhar etnocêntrico, preconceituoso e com
interpretações culturais próprias deve ser desconstruído e reformulado a partir
de uma perspectiva relativista.
Após entrar em campo com o olhar despido de preconceitos, o segundopasso, de acordo com Oliveira seria o ouvir. Interessa para a antropologia
compreender o "modelo, a "estrutura nativa" e estas são fornecidas
diretamente pelos próprios membros da comunidade investigada. Desta forma,
ao ouvir o informante, o antropólogo pesquisador se permite construir teorias a
partir dos conceitos nativos. Segundo
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"A disposição de escutar o Outro, não é tarefa evidente. Exige um
aprendizado a ser conquistado a cada saída de campo, a cada
visita para a entrevista, a cada experiência de observação. Os
constrangimentos enfrentados pelo desconhecimento vão sendo
superados pela definição cada vez mais concreta da linha
temática a ser colocada como objetivo da comunicação. Diz-se
então que a prática etnográfica permite interpretar o mundo social
aproximando-se o pesquisador do Outro “estranho”, tornando-o
“familiar” ou no procedimento inverso, estranhando o familiar,
superando o pesquisador suas representações ingênuas agora
substituídas por questões relacionais sobre o universo de
pesquisa analisado (Da Matta, 1978 e Velho, 1978)." ( (ECKERT;
ROCHA, 2008:6)
Longe de serem independentes, numa investigação antropológica, olhar
e ouvir são complementares, constantemente ativados em campo e cumprem a
função cognitiva preliminar do trabalho de campo. Porém, é no escrever que o
trabalho se completa. Textualizar os fenômenos observados em campo não é
tarefa fácil para o antropólogo. Trata-se de um esforço maior e de um exercíciomais complexo que não deve ser confundido com a transcrição do bloco de
notas ou diário de campo. O escrever, segundo Roberto C. de Oliveira, não
significa que o autor terá todas as respostas ou conhecerá completamente o
grupo estudado, mas que poderá, atrelando a teoria, contribuir para o
conhecimento teórico já produzido.
Diante disto, Roberto Cardoso de Oliveira aponta que a compreensão e
interpretação dos sujeitos devem ser o principal método adotado pelosantropólogos, uma vez que os nossos conceitos se constroem num espaço de
intersubjetividade. O autor reflete, entre outros temas, sobre o lugar central da
relação sujeito cognoscente e objeto cognoscível na constituição do
conhecimento. Olhar, ouvir e escrever são etapas gerais mas que são
manifestadas diferentemente, segundo as particularidades do pesquisador.
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O trabalho de campo está sempre acompanhado do estilo, das
preferências e características do pesquisador. A biografia do antropólogo, as
afinidades teóricas, sua personalidade e até mesmo suas características
corporais interferem tanto na escolha quanto no decorrer do trabalho
etnográfico. Dois exemplos ilustram o anunciado anterior: Luïc Wacquant
(2002) e William Foote Whyte (2005) nos relatam suas experiências
etnográficas.
Wacquant, em "Corpo e Alma" conta como o campo lhe surpreendeu.
Começou como uma janela para o gueto, seu primeiro e principal objeto de
estudo, mas tornou-se uma pesquisa concreta e cativante sobre as técnicas
corporais dos boxeadores. Branco e de classe média alta, o autor se inquietavacom os problemas de desigualdade social que o incentivou a pesquisar sobre o
assunto. A fim de analisar o gueto num bairro negro de Chicago, Wacquant se
envolveu a ponto de cogitar abandonar o ofício de sociólogo pesquisador e
tornar-se apenas um boxeador. Tornando-se nativo e se deixando levar e
envolver pelas emoções do campo Wacquant anuncia a dificuldade de
transmitir emoções em palavras e conceitos sociológicos (p.60)
Por outro lado, com formação em economia, Foote Whyte recebe uma
bolsa em Harvard para realisar uma pesquisa de seu interesse. Escreve
"Sociedade de Esquina" em que a ideia de que as áreas pobres eram
desorganizadas e caóticas foram desconstruídas, perspectiva esta, de uma
classe média branca norte-americana, da qual o autor pertencia. A "visão de
fora" é logo questionada quando o autor entra em campo e se depara com a
"visão de dentro" de quem ver em Cornerville "um sistema social altamente
organizado e integrado" (p.21)
Wacquant e Foote Whyte mostram seus limites como etnógrafo e nos
fazem refletir sobre os nossos. Cada um dos autores ocupou um lugar no
campo: boxeador, pesquisador, economista, militante reformador. O que os
dois pesquisadores trazem em seus escritos sobre o trabalho de campo é que
o antropólogo é um sujeito e que tem um corpo que influencia e é influenciado
pelos sujeitos pesquisados. A escolha do campo, os limites do antropólogo , as
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dificuldades na escrita, os envolvimentos (físicos e emocionais), o descobrir-se
a partir do outro, o ser afetado e as técnicas no campo são momentos do
trabalho de campo que o antropólogo pesquisador está exposto.
A minha relação com os sujeitos do campo foi importante para minhareflexão, pois devido a multiplicidade de sujeito presentes (como vendedores
ambulantes, policiais, jornalistas, zeladores, devotos) fui tradada de forma
diferente por cada um deles segundo o lugar que ocupavam. Por ser
protestante, e isso se refletir na minha técnica e expressão corporal, na ida ao
campo percebi ocupar três lugares diferentes e, para mim, o resultado foi não
ocupar lugar algum.
Ao chegar ao cemitério, logo pela manhã, fui logo arremetida de uma
situação que me fez refletir: Uma vendedora de velas que estava próximo à
entrada principal abordou uma senhora que caminhava logo a minha frente e
ofereceu velas sem sucesso. Rapidamente virou-se para mim e como por
impulso falou: “Vai uma...”. A frase interrompida me fez parar e ouvir uma nova
frase da vendedora: “Ah não! Ela é crente, não compra essas coisas não” , sem
resposta de minha parte a vendedora continua: “Não tá indo pro cemitério não
né minha filha?”
Já dentro do cemitério, algumas horas depois da minha chegada, eu e
meus colegas de pesquisa fomos abordados por uma mulher que distribuía
folhetos evangélicos. Ela entregou a todos por quem passava até chegar a mim
e dizer: “A paz do Senhor”. Eu sorri e perguntei se ela estaria disposta a
responder o questionário.
Em certo momento do dia, munida de pasta, questionários e caneta, fuiparada por um jornalista curioso e sua maquina fotográfica pendurada no
pescoço. Ele perguntou o que estávamos fazendo ali, se eu era jornalista
também e pra quem era a pesquisa. Mal terminei de responder as perguntas e
o jornalista partiu apressado.
Alguns antropólogos comentam seu lugar no campo: Tornquist (2007)
comenta a posição de “prestigio” que adquirira no grupo em que pesquisava,
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Maria Laura Cavalcanti (2007) conta sua participação nos rituais espíritas,
Larissa Pelúcio (2007) relata como ela, embora quase amiga das travestis,
ainda era uma mulher e não podia “fazer parte da turma”. Quanto a mim, fui a
crente que não pode comprar velas, a irmã que por algum motivo está no
cemitério no dia de finados e uma pesquisadora observando um evento da
cidade. Ocupei esses três lugares. Refleti sobre como o antropólogo é visto
pelo olhar do nativo. O primeiro objetivo do antropólogo é conhecer o outro,
perceber sua organização social, suas regras, suas técnicas corporais e outros
vetores que convergem para produção do conhecimento antropológico. Porém,
por vezes esquecemos que o nativo também faz suas interpretações sobre o
pesquisador. Ao questionar o meu lugar no cemitério, percebi que não ocupava
apenas o lugar de cientista social, antropóloga ou pesquisadora. Eu ocupava
todos esses lugares e muitos outros atribuídos pelos múltiplos personagens do
campo que pesquisava. "Esta descoberta sobre o Outro, é uma relação
dialética que implica em uma sistemática reciprocidade cognitiva entre o(a)
pesquisador(a) e os sujeitos pesquisados." (ECKERT; ROCHA, 2008)
As dúvidas: refletindo sobre si mesmo
Ao chegar em campo, carregado de teorias, buscamos logo por
situações que confirmem nossas hipóteses. Porém quando atrelamos teoria e
prática, nem sempre ambas concordam. Bachelard nos mostra que vivemos no
campo científico uma ruptura epistemológica (BACHELARD, 1996 apud
ECKERT; ROCHA, 2008).
Um dos alunos mais célebres de Bourdieu nos chama atenção para a
importância que o autor concede à relação entre teoria e trabalho de campo
(WACQUANT, 2006). Segundo Bourdieu, a teoria não é imutável, nem encaixa-
se na realidade social de forma exata. Antes, é no trabalho de campo, no vis a
vis, que é possível exercer uma "criatividade teórica", de forma que o par teoria
e prática se tornam indissociáveis para a produção do conhecimento científico.
Além disso, o autor rompe com a dicotomia "sujeito e objeto" sugerindo que
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ambos são atores sociais e exaltando a possibilidade de envolvimento
emocional.
"Para o sociólogo francês tal pesquisa necessita contemplar o
sentido reflexivo da trajetória dos conceitos e teorias produzidossuperando a força e a qualidade heurística das ditas ciências
duras. A apresentação do mundo subjetivo do pesquisador como
parte integrante dos procedimentos científicos de objetivação a
pesquisa do mundo social e não como impedimentos a sua
realização encontram na história das técnicas de pesquisa em
antropologia uma fonte de inspiração." (ECKERT; ROCHA,
2008:13)
Vale a pena ressaltar que para Bourdieu o envolvimento emocional é
uma técnica de pesquisa, ou seja, de ordem metodológica e explicado pela
episteme. "O observar na pesquisa de campo implica na interação com o Outro
evocando uma habilidade para participar das tramas da vida cotidiana, estando
com o Outro no fluxo dos acontecimentos." (ECKERT; ROCHA, 2008:4)
Por outro lado, Malinowski (1976) com a defesa de uma etnografia de
longa duração, talvez se surpreendesse com as, suficientes, quase oito horas
que precisei para ser afetada no campo, refletir sobre diversos pontos e realizar
este trabalho. Este autor, tido como um dos pais da antropologia e do trabalho
do campo, esteve mais interessado em destacar a metodologia científica e
concreta de suas técnicas em campo, não valorizando a subjetividade do
pesquisador e as emoções que influenciam no trabalho de campo. Mas um
ponto importante este antropólogo nos adverte:
"Se um homem embarca em uma expedição decidido a provar
certas hipóteses e se mostra incapaz de modificar sem cessar
seus pontos de vistas e de abandoná-los em razão de
testemunhos, inútil de dizer que seu trabalho não terá valor
algum." (Malinowski, 1976:65)
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Marcio Goldman (2005) quando trata do trabalho de Jeanne Favret-
Saada, Ser afetado, reflete sobre como o antropólogo pode ser afetado ao se
deparar com certas situações do campo. “Não de afeto no sentido da emoção
que escapa da razão, mas de afeto no sentido do resultado de um processo de
afetar, aquém ou alem da representação.” (Goldman, 2005, p. 150)
Um episódio em especial marcou o estopim do “meu ser afetado”. Ao
entrevistar um homem ouvi uma história que fez questionar as minhas próprias
categorias e crenças religiosas. Uma das perguntas do questionário era se a
pessoa acreditava em reencarnação, diante disso o homem entrevistado,
pensativo, respondeu “sim” e imediatamente se explicando:
“Eu disse que era evangélico no começo. E sou. Mas eu acredito
sim em reencarnação. Sabe por que minha filha? Olhe. Quando
eu era mais novo que você, tinha uns 16 prá 17 anos a menina
que eu namorava ficou grávida. Nós não queríamos o bebê e ela
fez de tudo pra abordar tomando remédio. Só que não deu certo.
Daí um conhecido meu me levou num médio lá do interior onde a
gente morava que ele fazia o aborto. Marquei tudo certinho com
ele. Quando foi na madrugada do dia que ia ser o aborto,
aconteceu... minha filha, acho que você não vai acreditar... Eu
sempre durmo só de calção, sem camisa. Eu estava de barriga
pra cima quando senti um gelo e um peso em cima de mim, me
acordei agoniado, mas só fiz abrir os olhos... [mostrou-me o
braço] Fico até arrepiado... Eu vi, minha filha, meu avô que tinha
morrido, deitado em cima de mim, dizendo: ‘não me mate não,
não me mate não que eu preciso voltar’. Depois dessa eu assumi
meu filho e ele hoje já está grande... Por isso eu acredito em
reencarnação” (Diário de campo, novembro de 2011)
Quando alguns antropólogos dizem que o desafio do antropólogo é
textualizar a experiência de campo, eu escreveria com letras maiúsculas a
palavra “desafio”, pois descrever o que senti depois de ouvir o depoimento é
praticamente impossível, atividade que talvez nem uma “descrição densa” no
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sentido geertziano poderia dar conta. Boca entre aberta, olhos que nem
piscavam... Minha face pasma revelava uma mistura de sentimentos. Ao
terminar a entrevista e despedi-me do homem, caminhei lentamente pela rua
do cemitério e, depois de alguns minutos com um turbilhão de pensamentos, a
primeira palavra que saiu da minha boca foi: “Será?”. Daí questionamentos que
nunca me havia ocorrido antes me tomaram como uma enxurrada. Será que
existe mesmo reencarnação? Será que essa categoria, predominantemente
espírita, é verdade? E pior, será que a minha religião não dá conta de fatos
como estes? Enquanto o questionamento sobre a veracidade da religião do
“outro” pairava meus pensamentos, fui surpreendida por uma sensação um
tanto assustadora: e quando é a minha crença que está em cheque?
Favret-Saada ao aceitar ser “desenfeitiçada” comenta:
“Como se vê, quando um etnógrafo aceita ser afetado, isso não
implica identificar-se com o ponto de vista nativo, nem aproveitar-
se da experiência de campo para exercitar seu narcisismo. Aceitar
ser afetado supõe, todavia, que se assuma o risco de ver seu
projeto de conhecimento se desfazer. Pois se o projeto de
conhecimento for onipresente, não acontece nada. Mas se
acontece alguma coisa e se o projeto de conhecimento não se
perde em meio a uma aventura, então uma etnografia é possível .”
(Favret-Saada, 2005, p. 160 – grifos meus)
O fato de realizar as atividades do nativo não implica necessariamente
na crença dessas atividades, da mesma forma que questionar suas próprias
categorias não implica na descrença nelas.
Como o antropólogo deve agir em situações como estas, em que
sentimentos não textualizáveis o invadem? Para isso não há regra, cada um
age de um jeito peculiar, mas pelo menos uma coisa deve ser comum entre os
pesquisadores que passam por isso: o compartilhamento da experiência de
campo. É “a necessidade de compatibilizar o momento metódico e o não
metódico (explicar e compreender) na construção do conhecimento” que
Roberto Cardoso de Oliveira (1998) reflete.
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E as dores...
Descobrir a si mesmo na reflexão do outro é um fenômeno recorrente na
antropologia:
"O antropólogo brasileiro Roberto Cardoso de Oliveira recorre a
uma expressão em inglês para definir esta experiência de
escrever sobre a experiência de observar o Outro e escutar o
Outro: Semantical Gap. Isto quer dizer que o(a) antropólogo(a)
vivencia seja na interação face a face, seja no ato de refletir sobre
esta experiência, o momento de descoberta do Outro, mas onde o
pesquisador faz sempre um retorno a si mesmo porque ele
também se redescobre no Outro. O(a) antropólogo(a) reconhece,
ao se relacionar na pesquisa de campo, uma diferença, uma
separação de valor, um abismo entre valores que é definido
desde a fundação da premissa de estranhar o Outro como de
relativismo cultural". (ECKERT; ROCHA, 2008:8)
Mas essa descoberta de si mesmo vem sempre acompanhada de
emoções um tanto desconfortáveis, situações de questionamentos e medos
sobre algo que nos toca diretamente.
Larissa Pelúcio (2007) em ““No salto”: trilhas e percalços de uma
etnografia entre tr avestis que se prostituem” conta um momento perturbador de
sua pesquisa quando se refere as ofensas, via internet, que ela recebeu de
uma travesti que entrevistava. Depois esta mesma travesti contou-lhe de boa
vontade suas emoções e experiências no meio em que vivia. Imagino o que a
autora não sentiu. Imagino ainda se algum antropólogo já não sentiu raiva,vontade de chorar, saudade, dúvidas e incontáveis sensações que o campo lhe
causou. E quando o antropólogo tem sensações quase que incontroláveis
diante do nativo.
Encontrei-me numa situação como esta. Uma mulher começou a me
contar a forma trágica na qual tinha perdido três membros de sua família
(dentre eles seu filho único) e cinco vizinhos e ainda tinha uma filha deficiente
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física dependente de cadeira de rodas. Contou-me como passara por uma
depressão profunda devido a um desmoronamento causador de todo este
desastre. No meio do seu relato, a mulher começou a chorar e me abraçou.
Fiquei sem saber o que fazer e não posso negar que fui tomada por uma forte
comoção e tive que conter as lágrimas. Só consegui pensar em “aqueles
aspectos extraordinários, sempre prontos a emergir em todo o relacionamento
humano” que DaMatta (1978:4) se referia ao falar em “anthropological blues”.
“... a tristeza e a saudade (também blues) se insinuam no processo do trabalho
de campo, causando surpresa ao etnólogo.” (idem,p.30).
Assim como DaMatta, estamos interessados em falar da a rotina do
trabalho de campo como algo criativo, como algo inesperado e substancial paraanálise antropológica. Roberto DaMatta nos incentiva a refletir sobre os
aspectos do trabalho do campo no seu sentido intersubjetivo, no campo das
emoções. O autor separa três fases da etnografia: a primeira é teórica, em que
o antropólogo pesquisa a produção científica já existente e discute sobre o
grupo que pretende estudar; a segunda fase se trata do pré-campo, do primeiro
contato com o outro, é o momento de negociar a entrada em campo; o terceiro
e útimo momento se refere ao momento em que o antropólogo não se deparamais com livros, artigos e teorias, mas com pessoas. É o momento de
realmente entrar em campo. Sobre isto, reflete o autor:
"Nesta etapa ou, antes, nesta dimensão da pesquisa, eu não me
encontro mais dialogando com índios de papel, ou com diagramas
simétricos mas com pessoas. [...] Vejo-me diante de gente de
carne e osso. Gente boa e antipática, gente sabida e estúpida,
gente feia e bonita. Estou assim submerso no mundo que sesituava, e depois da pesquisa volta a se situar, entre a realidade e
o livro." (DAMATTA, 1978:25)
Ao lermos e refletirmos pela primeira vez o que Roberto DaMatta (1978)
apresenta sobre o “anthropological blues” talvez nos perguntamos quando isso
aconteceria conosco. Como agir diante de um acontecimento inesperado?
Nenhum manual de pesquisa qualitativa e nenhuma etnografia tem a resposta
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para tal indagação. Cada campo, cada nativo manifesta situações próprias em
que o antropólogo não pode prever.
Por anthropological blues se quer cobrir e descobrir, de um modo
mais sistemático, os aspectos interpretativos do ofício deetnólogo. Trata-se de incorporar no campo mesmo das rotinas
oficiais, já legitimadas como parte do treinamento do antropólogo,
aqueles aspectos extraordinários, sempre prontos a emergir em
todo relacionamento humano. (Idem, pp. 27-8)
Então me vi ao fim do dia sentada na escada de uma das portas da
capela do cemitério ao lado de um amigo e colega de pesquisa que havia
escutado paciente a história que eu ouvira do homem, o choro engasgado na
garganta no abraço da nativa, bem como minhas dores e questionamentos
ainda atordoados e em formação. Eu, em especial, extremamente afetada pelo
campo, não tive muito sucesso na conversa com o colega, me sentia sozinha e
incompreendida. Até que depois de minutos de silêncio, olhando para os
túmulos ao longe, virei ao meu colega e falei: “será que isso é a sensação do
anthropological blues que DaMatta fala?”
Carmen Suzana Tornquist (2007) conta sobre um momento que ela foi
solitária numa indignação que teve, pois nem mesmo suas colegas de trabalho
compartilharam aquele momento. Muitas vezes o antropólogo se ver “sozinho
no meio da multidão”, é impedido de compartilhar seus momentos e mesmo
que o faça, será incompreendido. O que eu pude compreender é que
momentos de solidão, desespero e dores fazem parte do oficio do antropólogo.
Considerações finais
Tendo por base minha experiência etnográfica num cemitério de Recife,
este trabalho se utilizou da teoria antropológica e de algumas outras
etnografias produzidas para uma discussão sobre o trabalho etnográfico e suas
especificidades. Refletimos sobre o lugar do antropólogo no campo e alguns
dos diversos impasses vividos em campo. Destacamos que, ao pesquisar um
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outro sujeito, o antropólogo está sujeito a situações que o afetam diretamente.
Este pesquisador passa então a refletir sobre si mesmo a partir da descoberta
do outro, colocando em cheque suas próprias crenças e certezas. Mostramos
também que os desafios do antropólogo não se limitam ao campo, antes, se
estendem ao momento da escrita, quando as emoções e os fenômenos
vivenciados em campo precisam ser textualizados.
Já era o terceiro ano no campo e apenas nesta ultima vez fui realmente
afetada. Gilberto Velho (1978) comenta sobre o distanciamento para além do
físico. Um distanciamento em que “o fato de dois indivíduos pertencerem à
mesma sociedade não significa que estejam mais próximos do que se fossem
de sociedades diferentes, porem aproximados por preferência, gostos,idiossincrasias” (p.3). Eu estava familiarizada com aquele contexto religioso
(embora não fosse pertencente a ele), mas de forma superficial. Era uma
espécie de “exótico-familiar” que eu não entendia. Mas, assim como Malinowski
descobriu no campo que o Kula não era apenas uma atividade meramente
econômica, antes levavam em conta as trocas religiosas, matrimoniais,
simbólicas, percebi que o dia de finados não é apenas uma atividade
meramente religiosa, mas que também envolve suas trocas simbólicas,memória, devoção. Ao viver essa experiência de campo, recordei que Mariza
Peirano (1992) chama atenção para o fato de que a antropologia ganha um
caráter mais dramático do que nas outras ciências por causa do trabalho de
campo, uma vez que traz impacto ao contrastar as categorias nativas e do
antropólogo no encontro das diferenças.
“De tal modo que vestir a capa de etnólogo é aprender a realizar
uma dupla tarefa que pode ser grosseiramente contida nasseguintes fórmulas: (a) transformar o exótico no familiar e/ou (b)
transformar o familiar em exótico. E, em ambos os casos, é necessária
a presença dos dois termos (que representam dois universos de
significação) e, mais basicamente, uma vivência dos dois
domínios por um mesmo sujeito disposto a situá-los e apanhá-
los.” (DAMATTA, 1978, p.4)
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As palavras de Roberto DaMatta fazem-se resumir o dever do
antropólogo. Assim, “vestir a capa de etnólogo é aprender a realizar uma dupla
tarefa que pode ser grosseiramente contida nas seguintes fórmulas: (a)
transformar o exótico no familiar e/ou (b) transformar o familiar em exótico”
(Idem, p. 28). O que puder viver em campo é que quando o pesquisador está
contido num determinado contexto cultural que lhe é familiar e precisa
desconstruí-lo a fim de torná-lo exótico; e indo ao campo e se depara com um
exótico que necessita se lhe tornar familiar; e ao término da sua pesquisa, este
mesmo antropólogo ao retornar a sua cultura primeira, a ver com outros olhos e
toda sua origem já não é tão familiar.
A confrontação pessoal com o desconhecido e os questionamentos nointerior sobre si mesmo é uma etapa intensa do trabalho de campo. O processo
de estranhamento é doloroso, o de familiarização é penoso e o processo de
retorno é ainda mais do que a união dos dois sentimentos anteriores. Um
trecho de Carmen Susana Tornquist expressa bem ao problema que me refiro
acima:
“ Assim como um viajante: por mais que almeje retornar à sua
terra de partida, não vo ltará ao mesmo luga r , tendo em vista aexperiência de deslocamento subjetivo da viagem – no caso, da
viagem simbólica que, por dever de oficio, devemos realizar .”
(2007, pp. 47,48 – grifos meus)
Foi exatamente assim que me senti.
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