0
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
CENTRO DE ESTUDOS GERAIS
INSTITUTO DE LETRAS
DOUTORADO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM
TRANSITIVIZAO DE DESAPARECER SOB UMA TICA
COGNITIVO-FUNCIONAL
MONCLAR GUIMARES LOPES
Niteri
2015
1
MONCLAR GUIMARES LOPES
TRANSITIVIZAO DE DESAPARECER SOB UMA TICA
COGNITIVO-FUNCIONAL
Tese apresentada ao curso de Ps-graduao
em Letras da Universidade Federal Fluminense,
como requisito final para a obteno do Grau de
Doutor. rea de Concentrao: Estudos da
Linguagem. Subrea: Lngua Portuguesa. Linha
de Pesquisa: Interfaces
Discurso/Sintaxe/Fonologia Experimental.
Orientadora: Profa Dra Vanda Maria Cardozo de Menezes
Niteri
2015
2
Ficha Catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoat
L864 Lopes, Monclar Guimares.
Transitivao de desaparecer sob uma tica cognitivo-
funcional / Monclar Guimares Lopes. 2015.
177 f. ; il.
Orientadora: Vanda Maria Cardozo de Menezes.
Tese (Doutorado) Universidade Federal Fluminense,
Instituto de Letras, 2015.
Bibliografia: f. 170-176.
1. Lngua portuguesa. 2. Gramtica portuguesa.
3. Conjugao dos verbos. 4. Verbo. I. Menezes, Vanda Maria
Cardozo de. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de
Letras. III. Ttulo.
CDD 469.5
.
1. Lngua portuguesa. 2. Gramtica portuguesa.
3. Conjugao dos verbos. 4. Verbo. I. Menezes, Vanda Maria
Cardozo de. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de
Letras. III. Ttulo.
CDD 469.5
.
1. 371.010981
3
MONCLAR GUIMARES LOPES
TRANSITIVIZAO DE DESAPARECER SOB UMA TICA
COGNITIVO-FUNCIONAL
Tese apresentada ao curso de Ps-graduao
em Letras da Universidade Federal Fluminense,
como requisito final para a obteno do Grau de
Doutor. rea de Concentrao: Estudos da
Linguagem.
Aprovada em 21 de janeiro de 2015.
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________________
Profa. Dra Vanda Maria Cardozo de Menezes UFF (Orientadora)
_______________________________________________________
Profa. Dra Mrcia dos Santos Machado Vieira - UFRJ
_______________________________________________________
Prof. Dr. Eduardo Kenedy UFF
_______________________________________________________
Profa. Dra Maria Jussara Abraado de Almeida UFF
_______________________________________________________
Prof. Dr. Marcos Luiz Wiedemer UERJ
_______________________________________________________
Prof. Dr. Ivo da Costa do Rosrio UFF (Suplente)
_______________________________________________________
Prof. Dr. Gerson Rodrigues da Silva UFRRJ (Suplente)
Niteri
2015
4
AGRADECIMENTOS
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq), pelo
fomento que me proporcionou a tranquilidade necessria para o prosseguimento
adequado da pesquisa;
Universidade Federal Fluminense, pela oportunidade que me foi dada, a de um
ensino de excelncia;
Aos mestres que encontrei pelo caminho, sobretudo Vanda pela eterna
pacincia, educao e orientao competente , Eduardo Kenedy e Jussara
Abraado, cujas sugestes foram fundamentais para a concluso desta pesquisa;
minha famlia, que sempre me incentivou em minha educao;
minha esposa, pelo apoio incondicional e compreenso de minha ausncia;
Aos colegas (e amigos) da UFF, que sempre se dispuseram em ajudar-me no que foi
necessrio.
5
Os desejos humanos so infindveis. So
como a sede de um homem que bebe gua
salgada, no se satisfaz e a sua sede apenas
aumenta.
Texto Budista
[...]
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma no pequena.
Quem quer passar alm do Bojador
Tem que passar alm da dor.
[...]
Fernando Pessoa
6
RESUMO
Esta tese visa descrio do processo de transitivizao do verbo desaparecer no portugus brasileiro. Tal verbo, a despeito de ser considerado intransitivo na literatura tradicional (mais especificamente um verbo inacusativo, na medida em que apresenta um sujeito gramatical de papel paciente), apresenta-se frequente em construes transitivas na sincronia atual. Defende-se que tal mudana representa um processo de gramaticalizao e construcionalizao, motivado, sobretudo, pela estrutura conceptual humana. Nessa perspectiva, assume-se que adjuntos adverbiais com propriedades de causao (como as circunstncias de causa e instrumento) so promovidos posio de sujeito, partindo-se de uma construo SUJEITO-CAUSAO + VERBO + ADJUNTO ADVERBIAL+CAUSAO para uma outra: SUJEITO+CAUSAO + VERBO + OBJETO-CAUSAO. Tal hiptese pde ser confirmada, na medida em que adjuntos com propriedades semnticas de causao podem apresentar-se em uma nova construo em que passam a funcionar como sujeito e o sujeito gramatical, como objeto, como podemos comprovar nos corpora analisados. No obstante, vale ressaltar que esse processo de construcionalizao (isto , de uma FORMANOVA-SENTIDONOVO) escalar, e no abrupto. Nesse sentido, num primeiro estgio, os adjuntos adverbiais com propriedades semnticas de causao como os de causa e instrumento passam por um processo de analogizao, no qual so interpretados semanticamente como um tipo de argumento do verbo, muito embora ainda mantenham a mesma estrutura morfossinttica. Num segundo estgio, procede-se transitivizao (neoanlise), na medida em que se efetua mudana tanto na estrutura semntica quanto na morfossinttica. PALAVRAS-CHAVE: Transitivizao. Construcionalizao. Analogizao. Neoanlise. Dinmica de foras.
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ABSTRACT
This thesis describes the process of transitivization of the unaccusative verb desaparecer (disappear) in Brazilian Portuguese. Such verb, despite being regarded as unaccusative in the traditional literature (to the extent that it is intransitive and select a patient role as the subject), is frequently found in transitive constructions in nowadays synchrony. It is argued that this change represents a process of grammaticalization and construcionalization, motivated by the human conceptual structure. From this perspective, the causative-like adverbial adjuncts (like the circumstances of "cause" and "instrument") would be promoted to the subject position, that is, from construction 'SUBJECT-CAUSATION + VERB + ADJUNCT+CAUSATION " to another: " SUBJECT+CAUSATION + VERB + OBJECT-
CAUSATION". This assumption is quite reasonable, to the extent that causative-like adjuncts always permit a construction in which they become the subject and the grammatical subject becomes the object, as we demonstrate in the corpora analyzed. Nevertheless, it is noteworthy that this construcionalization process (that is, a FORMNEW MEANINGNEW) is gradual, and not abrupt. In this point of view, at first, the adverbial adjuncts which shows causation semantic properties like the ones of "cause" and "instrument" undergo a process of analogization, in which they are semantically interpreted as a kind of argument, though still maintaining the same syntactic structure. At second, transitivization occurs, as long as the semantic structure and morphosyntactic structure change (neoanalysis). KEY WORDS: Transitivization. Constructionalization. Analogization. Neoanalysis. Force Dynamics.
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LISTA DE QUADROS
Quadro 01 Escala de transitividade (HOPPER e THOMPSON) ..................... 58
Quadro 02 Ativao na gramtica ................................................................... 61
Quadro 03 Unidirecionalidade e mecanismos de gramaticalizao ................ 64
Quadro 04 Correlao entre categorias metafricas, classes de palavras e
tipos de constituinte ....................................................................... 65
Quadro 05 Correlao entre caso e categoria prototpica ................................ 65
Quadro 06 Tipos de contextos em gramaticalizao ........................................ 86
Quadro 07 Quantidade de palavras por corpora .............................................. 105
Quadro 08 Mdia e total de ocorrncias por corpora e frequncia relativa
percentual total dos dados .................................................... .......... 106
Quadro 09 Quadro resumitivo dos dados levantados por corpora..................... 119
Quadro 10 Quadro resumitivo dos dados levantados por periodicicade ........... 120
Quadro 11 Padres Sintticos de DESAPARECER + COM e
DESAPARECER COM ................................................................... 134
Quadro 12 Mdia de ocorrncias e frequncia relativa percentual de
DESAPARECER + COM e DESAPARECER COM .......................135
Quadro 13 Frequncia de DESAPARECER + COM e DESAPARECER COM
por periodicidade ............................................................................. 138
Quadro 14 Adjuntos com propriedade de causao ......................................... 148
Quadro 15 Adjuntos sem propriedade de causao ......................................... 149
Quadro 16 Correlao de parmetros da gramaticalizao .............................. 154
Quadro 17 Escala de transitividade .................................................................. 156
Quadro 18 Correlao entre padres construcionais e padres sintticos
de DESAPARECER + COM e DESAPARECER COM ................... 161
Quadro 19 Inverso da construo de DESAPARECER COM para a
construo DESAPARECER + COM ............................................... 164
9
LISTA DE FIGURAS
Figura 01 Teoria dos Prottipos (Rosch) ........................................................ 35
Figura 02 Teoria de semelhana de famlia (Wittgenstein) ............................ 36
Figura 03 Representao da estrutura argumental do verbo to put ............... 37
Figura 04 Representao do arqutipo cadeia de aes ............................... 40
Figura 05 Perfilamento prototpico da orao com adj. adv de instrumento .. 40
Figura 06 Perfilamento dos papis semnticos expressos na sentena
preferia pintar a leo ..................................................................... 41
Figura 07 Representao da transferncia de agentividade a instrumento .... 42
Figura 08 Representao de orao em que apenas o papel paciente
perfilado ........................................................................................... 43
Figura 09 A estrutura simblica da construo ............................................... 73
Figura 10 A estrutura interna da construo sem relaes sintticas ............. 74
Figura 11 Elementos, componentes e unidades da construo Heather sings
......................................................................................................... 76
Figura 12 Relaes simblicas na construo intransitiva Heather sings ........ 76
Figura 13 Representao do arqutipo cadeia de aes ................................ 92
Figura 14 O modelo cannico da clusula ....................................................... 94
Figura 15 O esquema imagtico do verbo to enter .......................................... 100
Figura 16 Representao do arqutipo cadeia de aes de Joo abriu a
porta com a chave .......................................................................... 143
Figura 17 Perfilamento dos componentes da sentena Joo abriu a porta
com a chave.................................................................................... 144
Figura 18 Perfilamento dos componentes da sentena A chave abriu a porta
.......................................................................................................... 144
Figura 19 A construo inacusativa DESAPARECER + COM ........................ 150
Figura 20 A construo transitiva DESAPARECER COM ............................. 151
Figura 21 Processo de transitivizao de desaparecer .................................... 168
10
LISTA DE GRFICOS
Grfico 01 Quantidade de palavras por corpora .............................................. 105
Grfico 02 Frequncia relativa percentual de desaparecer por corpora .......... 106
Grfico 03 DESAPARECER + COM e DESAPARECER COM em relao a
todas as ocorrncias de desaparecer ........................................... 137
Grfico 04 DESAPARECER + COM e DESAPARECER COM em relao s
ocorrncias em que desaparecer seguido de com ...................... 137
Grfico 05 Aumento na frequncia relativa percentual de DESAPARECER +
COM e DESAPARECER COM por sculo ...................................... 139
11
SUMRIO
INTRODUO ..................................................................................................... 13
1 REVISO DE LITERATURA .................................................................... 21
1.1 VERBOS INACUSATIVOS NO PORTUGUS BRASILEIRO ................... 21
1.2 O PROCESSO DE TRANSITIVIZAO ................................................... 27
1.3 ADVRBIO E FUNO ARGUMENTAL .................................................. 32
1.3.1 O advrbio (e adjunto adverbial) de instrumento ....................................... 38
1.3.2 O papel semntico instrumento na Gramtica Cognitiva ........................ 39
1.3.3 A mudana de instrumento a instrumento-agentivo .............................. 43
1.3.4 O adjunto adverbial de causa e a propriedade de causao .................... 45
2 REFERENCIAL TERICO ...................................................................... 50
2.1 FUNCIONALISMO LINGUSTICO ............................................................ 50
2.1.1 O princpio da iconicidade ......................................................................... 53
2.1.2 O conceito de transitividade ...................................................................... 57
2.1.3 A gramaticalizao .................................................................................... 59
2.1.4 Princpio e mecanismos de gramaticalizao ........................................... 63
2.2 GRAMTICA DE CONSTRUES .......................................................... 68
2.2.1 A gramtica radical das construes ........................................................ 70
2.2.2 Uma perspectiva cognitivo-funcional da Gramtica de Construes......... 83
2.2.3 A construcionalizao ................................................................................ 87
2.3 A GRAMTICA COGNITIVA ..................................................................... 90
2.4 A SEMNTICA COGNITIVA ..................................................................... 98
3 ANLISE DE DADOS ............................................................................... 103
3.1 CARACTERIZAO DOS CORPORA ..................................................... 103
3.2 PROCEDIMENTOS DE ANLISE ........................................................... 107
3.3 CARACTERIZAO DE DESAPARECER, DESAPARECER + COM E
DESAPARECER COM ............................................................................. 111
3.4 PADRES SINTTICOS DE DESAPARECER + COM E
DESAPARECER COM ............................................................................ 119
12
3.5 ANLISE QUANTITATIVA DOS DADOS .................................................. 134
3.6 ANLISE QUALITATIVA DOS DADOS ..................................................... 139
3.6.1 Transitivizao de DESAPARECER .......................................................... 140
3.6.2 Gramaticalizao de DESAPARECER .................................................... 151
3.6.3 De adjunto adverbial a argumento ............................................................. 157
3.6.4 Padres construcionais de DESAPARECER + COM e DESAPARECER
COM ......................................................................................................... 159
3.6.5 Autonomia da construo transitiva de DESAPARECER ....................... 162
CONSIDERAES FINAIS ................................................................................ 166
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .................................................................... 170
13
INTRODUO
Esta tese visa descrio do processo de transitivizao de desaparecer. A
despeito de esse verbo ser tradicionalmente descrito como intransitivo mais
especificamente, um verbo inacusativo, na medida em que apresenta um sujeito
gramatical preenchido por um termo de papel paciente encontram-se, na sincronia
atual, vrias ocorrncias em que ele ncleo de uma construo transitiva.
(1) Os monumentos, que fazem da histria a melhor parte, e a mais visvel, no s se estragam, mas desaparecem, e de tal sorte, que nem vestgios deixam por onde ao menos lhes recordemos as runas.
Reflexes sobre a vaidade dos homens (Aires Matias, sc XVIII)1
(2) O desembargador Ernani Vieira de Souza, que foi acusado pelo juiz de ter feito contrataes irregulares acusaes rechaadas por ele , afirmou que o TJ no tem nenhum interesse em desaparecer com um cidado como esse, pelo contrrio.
Notcia do sculo XXI (Corpus do Portugus Brasileiro. Plataforma Sketch Engine2)
No exemplo (1), desaparecem uma construo intransitiva, tendo o sujeito
gramatical os monumentos a propriedade semntica de paciente da ao verbal.
No exemplo (2), por sua vez, o sujeito gramatical o TJ um termo agente, cuja
ao afeta o paciente um cidado como esse, que assume a funo de objeto. Tal
classificao se d sob critrios sintticos e semnticos, pautando-se, sobretudo, na
integrao existente entre o verbo e seu complemento.
O reconhecimento da construo transitiva de desaparecer, embora recente,
j encontra descrio nos estudos lexicogrficos. Houaiss (2001)3, por exemplo,
apresenta a construo transitiva indireta associada a desaparecer em diferentes
entradas de seu dicionrio:
1 Texto extrado do Corpus Histrico do Portugus, disponvel em: http://www.tycho.iel.unicamp.br/~tycho/corpus/. 2 Sketch Engine uma plataforma de corpus lingustico que funciona de forma colaborativa, com vrios corpora de diferentes lnguas. Disponvel em: http://www.sketchengine.co.uk/. 3 HOUAISS, A. (2001) Dicionrio Houaiss da Lngua Portuguesa. (Verso online) Disponvel em: http://houaiss.uol.com.br
14
4. (t.i.) [prep..: com] tirar do devido lugar; dar sumio em 6. (t.i.int.) [prep..: com] fig. roubar ou ser roubado. < desapareceram com o talo de cheques> 7. (t.i.) [prep.: com] fazer que no se manifeste; apagar, dissipar, extinguir. 8. (t.i) [prep..: com] tirar a vida de; matar
importante ressaltar que j se encontravam, nos dicionrios de meados do
sculo XX, sob o paradigma da Gramtica Tradicional, descries transitivas
indiretas para desaparecer. No entanto, a transitividade indireta se relacionava a um
complemento adverbial de natureza locativa e no a um termo afetado pela ao
verbal como observamos em Silva (1971, p. 509)4
Desaparecer, v. (des + aparecer). 1. Tr. ind. e intr. Deixar de aparecer; esconder-se, ocultar-se, sumir-se. Todos ns desapareceremos. 2. Tr. ind. e intr. Cessar de ser ou de existir: Se Deus atendesse a tdas as oraes, a ordem desapareceria do mundo (Coelho Neto). 3. Tr. ind e intr. Afastar-se, retirar-se: Certo dia desapareceu de casa. O avio passou e desapareceu. 4. Intr. Faltar sbitamente (pessoas ou coisas): Desapareceu o livro que deixei aqui. 5. Tr. ind. e intr. Apagar-se, ofuscar-se. 7. Intr. Esquivar-se furtivamente Antn. (acepo 1): surgir.
Analisando-se quatro corpora lingusticos diferentes, sendo dois deles
diacrnicos (PHPB e Corpus Histrico do Portugus), um sincrnico (Corpus do
Portugus Brasileiro) e outro que contempla ambas diacronia e sincronia (Corpus do
Portugus)5, procedeu-se investigao da construo transitiva, cujo objeto
preenchido por um termo de papel paciente. Sentiu-se a necessidade de recorrer a
diversos corpora porque o verbo desaparecer apresenta baixa frequncia
Nessa investigao, observou-se a presena da construo transitiva apenas
no sculo XX e incio do sculo XXI, com um aumento de frequncia de uso neste
ltimo sculo6. Desse modo, o uso mais transitivo de desaparecer parece instanciar
4 SILVA, A. P. Novo Dicionrio Brasileiro Melhoramentos. Vol II. So Paulo: Melhoramentos, 1971. 5 PHPB Por uma Histria do Portugus Brasileiro , disponvel em:
https://sites.google.com/site/corporaphpb/home/plataforma-de-corpora-phpb; Corpus Histrico do
Portugus , disponvel em: http://www.tycho.iel.unicamp.br/~tycho/corpus/; Corpus do Portugus ,
disponvel em: http//www.corpusdoportugues.org; Corpus do Portugus Brasileiro:
http://www.sketchengine.co.uk/. 6 Dados disponveis no captulo 3, seo 3.5.
15
uma construo mais recente, que vem se tornando mais frequente no portugus
brasileiro7.
importante frisar que um dos objetivos desta pesquisa o de descrever o
processo de transitivizao e no somente o de comprov-lo, at mesmo porque a
construo j se encontra dicionarizada , apontando as motivaes que subjazem a
esse processo de mudana. Para tal, recorreu-se a uma base terica de cunho
cognitivo-funcional, valendo-se da contribuio de quatro teorias, a saber: o
Funcionalismo Lingustico, a Gramtica de Construes, a Gramtica Cognitiva e a
Semntica Cognitiva.
A opo por essas correntes tericas se deve ao fato de defender-se que a
linguagem deve ser descrita em seu uso real, na medida em que a organizao das
estruturas lingusticas se d mediante as funes a que serve a linguagem. Nesse
sentido, o Funcionalismo e a Gramtica de Construes servem como um norte na
compreenso do processo de transitivizao de desaparecer, que ao sofrer um
processo de construcionalizao, torna-se uma estrutura mais gramatical8. A
Gramtica Cognitiva e a Semntica Cognitiva, por sua vez, colaboram
significativamente na compreenso dos mecanismos conceptuais que impulsionam a
mudana lingustica tanto na estrutura semntica quanto na morfossinttica.
A primeira hiptese desta tese a de que a construo transitiva de
desaparecer SUJ + DESAPARECER COM + OBJ seja cognitivamente motivada
pela estrutura semntica da construo intransitiva, quando esta apresenta, alm de
um sujeito de papel paciente, um adjunto adverbial iniciado pela preposio com
que apresente propriedades semnticas de causao SUJ + DESAPARECER +
COM9 em incio de adjunto adverbial. Vale ressaltar que essas construes so
7 Cabe investigar os usos desse verbo, nas modalidadades oral e escrita em outras comunidades lingusticas de lngua portuguesa. 8 Vale ressaltar que a perspectiva de gramaticalizao adotada aqui mais ampla. Traugott e Trousdale (2013) reconsideram a viso que determina a gramaticalizao como um processo de reduo. Nessa perspectiva, expanso gramatical que envolve aumento de esquematicidade e produtividade um processo de gramaticalizao que antecede o processo de gramtica como reduo em que a rotinizao das estruturas lingusticas acarreta reduo da forma fnica, perda de complexidade (e informatividade), rapidez do enunciado e uma relao mais frouxa entre forma lingustica e estrutura da experincia. Nesse sentido, expanso e reduo so processos complementares. Para mais informaes, consulte o segundo captulo, seo 2.2.4. 9 O fato de tratarmos de duas construes distintas, sendo a primeira DESAPARECER COM e a segunda DESAPARECER + COM, se deve tanto integrao quanto dessemantizao associada preposio em DESAPARECER COM, caracterstica que melhor explicitamos na anlise de dados.
16
estruturalmente prximas, na medida em que apresentam uma preposio seguida
de um sintagma nominal.
(3) Os micos foram desaparecendo com a derrubada da mata pela especulao imobiliria, a implantao de fazendas agropecurias e a atuao de madeireiras e de caadores.
Notcia do Sc XXI (Corpus do Portugus Brasileiro).
(4) Vamos combater o privilgio desses marajs, que querem mandar neste
pas, mas no tm dignidade. Esse pas precisa desaparecer com os picaretas.
Reportagem do Sc XXI (Corpus do Portugus Brasileiro).
No exemplo (3), tem-se uma construo intransitiva e, no exemplo (4), uma
construo transitiva. O critrio adotado para diferenciar uma da outra de natureza
semntica. Enquanto, na primeira, o sujeito gramatical exerce um papel paciente e o
adjunto adverbial apresenta o valor semntico de causa, na segunda, o sujeito
gramatical agente e o objeto, o afetado.
A crena de que a construo inacusativa, nessa configurao, propicia a
construo transitiva advm da compreenso dos mecanismos de
construcionalizao (analogizao e neoanlise10), que preveem que o processo de
gramaticalizao envolve um conjunto de mudanas em micro escala.
Num primeiro momento, ocorre a analogizao, em que se opera uma nova leitura
semntico-pragmtica de uma dada construo. Num segundo momento, efetua-se
mudana morfossinttica (neoanlise). Nessa perspectiva, portanto, uma nova
construo deve emergir de uma outra com a qual esteja estruturalmente
relacionada, tratando-se, portanto, de um caso de construcionalizao (TRAUGOTT
e TROUSDALE, 2014).
A segunda hiptese a de que a construcionalizao, na transitivizao de
desaparecer, conceptualmente orientada por uma propriedade de causao. Em
critrios cognitivos, acredita-se que nossa cognio apresente uma forte tendncia
em lexicalizar como sujeito gramatical o termo de papel semntico mais proeminente
da clusula, estando essa proeminncia cognitivamente relacionada dinmica de
10 Os termos analogizao e neoanlise so paradigmas conceituais cunhados por Traugott (2013). Embora remetam aos processos conhecidos por analogia e reanlise, tais categorias apresentam
uma diferente perspectiva. Para mais informaes, ver captulo 2, seo 2.2.4.
17
foras, isto , transferncia de energia de um participante x para um participante y.
Como ilustrao, observa-se o seguinte exemplo de Langacker (2008, p. 369), em
que se apresentam trs participantes em interao de foras:
(a) Floyd broke the glass with a hammer. AGs INSTR PATo
Floyd quebrou o copo com o martelo.
(b) A hammer broke the glass. AG INSTRs PATo
Um martelo quebrou o copo.
(c) The glass broke. AG INSTR PATs
O copo quebrou.
Na primeira sentena (a), h uma interao de foras entre o agente (Floyd),
o afetado (o copo) e o instrumento (o martelo), de modo que o agente exerce uma
fora x sobre o instrumento, que exerce uma fora y sobre o afetado. Como o termo
mais proeminente tende a preencher a funo de sujeito, o agente assume essa
posio sinttica. Em (b), estando o agente que mais proeminente ausente da
sentena, a tendncia passa a ser que o segundo termo mais proeminente na
dinmica de foras assuma a funo de sujeito (o instrumento). Por fim, em (c), na
ausncia dos outros dois termos, o elemento afetado assume a posio de sujeito.
importante frisar, no entanto, que, na perspectiva da Gramtica Cognitiva e da
Semntica Cognitiva, esse processo uma tendncia conceptual, e no uma regra
algortmica na formao de sentenas. Embora a maior parte das sentenas da
lngua opere sob esse mecanismo, existem outras possibilidades, relacionadas,
sobretudo, perspectivao do falante no processo de enunciao.
Desse modo, assume-se que, numa construo intransitiva prototpica de
desaparecer, o sujeito gramatical preenchido por um termo de papel paciente
porque ele o nico termo disponvel na sentena no h elementos mais
proeminentes disponveis em relao dinmica de foras. No entanto, quando a
construo intransitiva apresenta, alm do sujeito gramatical de papel paciente, um
outro elemento mais proeminente, esses elementos entram em competio de
foras. Num primeiro estgio, a construo intransitiva se mantm, pois esse o
esquema argumental conceptualmente disponvel. Com o tempo, porm, efetua-se a
construcionalizao, na medida em que se reinterpreta pragmaticamente atravs
18
de analogizao o termo mais proeminente da dinmica de foras como sujeito da
sentena.
A ltima hiptese se correlaciona s outras duas. Defende-se que os adjuntos
adverbiais com propriedade de causao, na construo intransitiva de desaparecer,
so, na verdade, argumentos na estrutura sinttica, e no termos acessrios tal
como muitos tericos defendem, na teoria lingustica, em relao s circunstncias
locativas em sentenas com determinados verbos de movimento. Essa interpretao
se deve maior integrao entre verbo e adjunto, cuja supresso acarreta ora
problemas na produo de efeito de sentidos pretendidos ora incoerncia semntica:
(5) Quem sabe, se trata, justamente de ter esquecido que antigos problemas desaparecem com solues que fujam ao convencional.
Artigo acadmico (Corpus do Portugus Brasileiro)
(6) a. De fato, desde a Lei Francisco Campos, mantendo-se na Reforma Capanema e na L.D.B, a terminologia educacional e a popular consagravam as palavras Curso e Escola, com a conotao de terminalidade: curso primrio, curso ginasial, curso colegial, curso superior; havia a Escola primria, a Escola de Grau Mdio (e aqui j surgia a ideia de continuidade) e a Escola Superior. Tal conotao somente desaparece com a lei atual, de 1971.
b. * Tal conotao somente desaparece.
Artigo acadmico (Corpus do Portugus Brasileiro)
Como ilustrao, a sentena (5) apresenta integrao entre verbo e adjunto
adverbial. A supresso do adjunto com solues que fujam ao convencional
acarreta prejuzo semntico. O sujeito gramatical de desaparecer Os antigos
problemas s sofre a ao expressa pelo verbo se as condies expressas pelo
adjunto forem satisfeitas. No entanto, poder-se-ia argumentar que sua supresso,
embora prejudique o enunciado, no acarreta incoerncia.
Em (6), por outro lado, como a relao entre verbo e adjunto ainda mais integrada,
a supresso do adjunto impossvel, na medida em que forma uma frase
incoerente, estruturalmente fragmentada.
importante ressaltar que, ao longo desta tese, faz-se recorrente referncia
ao verbo desaparecer, ora como item lexical, ora como uma dada construo
19
lingustica. Para diferenciar um termo do outro, o item lexical vir sempre em
minsculas (desaparecer) e a construo, em caixa alta (DESAPARECER).
Paralelamente, como se defende que a transitivizao de desaparecer propiciada
pela relao estabelecida entre o adjunto adverbial com propriedade de causao e
o sujeito de papel paciente, diz-se, ao longo desta tese, que a transitivizao de
desaparecer se d pela construcionalizao de uma construo inacusativa para
uma construo transitiva. Embora se reconhea que os rtulos inacusativo e
transitivo pertenam a recortes tericos distintos, optou-se por manter o rtulo
inacusativo como forma de deixar bem explcita a importncia da presena de um
sujeito de papel paciente, que, em competio de foras com um outro elemento
mais proeminente, propicia a transitivizao. Nesse sentido, vale frisar que toda vez
em que aqui se fala de construo inacusativa e construo transitiva, faz-se
referncia no apenas ao verbo, mas a construo toda, em nvel esquemtico,
sendo a primeira uma construo SUJpaciente+ V e a segunda SUJagente + V +
OBJafetado11.
Quanto organizao, esta tese composta por trs captulos. O primeiro
aborda a reviso de literatura e est dividido em trs sees. Na seo 1.1, trata-se
do fenmeno da inacusatividade no portugus brasileiro. Na seo 1.2, trata-se do
processo de transitivizao em duas diferentes abordagens uma de cunho
formalista e outra funcionalista, explicitando-se os mecanismos desencadeadores da
transitivizao nos dois estudos. Na seo 1.3, revisa-se a funo do advrbio tanto
na estrutura sinttica quanto na estrutura semntica sob diferentes perspectivas, no
intuito de questionar sua natureza acessria e de confirmar sua natureza
argumental.
O segundo captulo versa sobre o referencial terico, visando explicitao
cuidadosa dos pressupostos que sustentam cada teoria. Na seo 2.1, trata-se do
Funcionalismo Lingustico, dando-se especial ateno perspectiva norte-
americana, sobretudo, aos conceitos de iconicidade, transitividade e
gramaticalizao. Na seo 2.2, trata-se da Gramtica de Construes, com
11 Vale ressaltar que a construo mais transitiva de desaparecer, embora tradicionalmente seja descrita como uma construo transitiva indireta, esquematicamente, apresenta-se to transitiva como uma transitiva direta. Em um exemplo como o bandido desapareceu com o corpo da vtima, observam-se os dez traos de transitividade alta de Hopper e Thompson (1980), na medida em que o exemplo apresenta: dois participantes, verbo de ao perfectivo, punctual e no modo realis, sujeito agentivo e intencional, polaridade afirmativa da sentena, objeto afetado e individuado.
20
especial nfase na teoria da construcionalizao (TRAUGOTT e TROUSDALE,
2014) e da Gramtica Radical de Construes (CROFT, 2001). Na seo, 2.3, trata-
se da Gramtica Cognitiva (LANGACKER, 2008), com nfase no arqutipo Cadeia
de Aes, que explicita a tendncia cognitiva de o sujeito gramatical ser ocupado
pelo termo de propriedade mais causativa na clusula. Na seo 2.4, trata-se da
Semntica Cognitiva (TALMY, 2000), explicitando-se o arqutipo Dinmica de
Foras e sua contribuio para a abstratizao de como os sujeitos gramaticais
tendem a se manifestar na lngua.
No terceiro captulo, descrevem-se tanto os corpora lingusticos e os
procedimentos de anlise empregados quanto se procede anlise de dados. Na
seo 3.1, descrevem-se os corpora, com nfase em sua periodicidade e quantidade
de ocorrncias das construes pesquisadas. Na seo 3.2, explicitam-se os
procedimentos adotados para a anlise de dados nos corpora. Na seo 3.3,
caracterizam-se as construes investigadas nos corpora. Na seo 3.4, descrevem-
se os diferentes padres sintticos encontrados para as construes
DESAPARECER + COM e DESAPARECER COM. Na seo 3.5, analisam-se os
dados quantitativamente, com foco na frequncia relativa percentual das
construes DESAPARECER + COM e DESAPARECER COM. Por fim, na seo
3.6, analisam-se os dados qualitativamente, defendendo-se, sobretudo, a
transitivizao como um caso de construcionalizao no portugus brasileiro.
21
1 REVISO DE LITERATURA
Neste captulo, o principal objetivo o de apresentar, na literatura
contempornea, abordagens que tratem tanto da caracterizao dos verbos
inacusativos do portugus brasileiro uma vez que desaparecer se inclui na classe
desses verbos quanto de seus processos de transitivizao. Paralelamente,
ressalta-se a funo argumental que pode ser atribuda a alguns adjuntos
adverbiais, com vistas descrio de um aspecto semntico que, no ponto de vista
defendido, propicia a transitivizao de desaparecer.
1.1 VERBOS INACUSATIVOS NO PORTUGUS BRASILEIRO
Na tradio dos estudos lingusticos, os verbos intransitivos compreendem
duas classes: os inergativos e os inacusativos, sendo cada classe associada a
propriedades semnticas e sintticas especficas. Nessa perspectiva, os inergativos
so os verbos tipicamente intransitivos, que possuem um nico argumento na
posio de sujeito. Os inacusativos12, por sua vez, so os verbos que tambm
possuem um nico argumento, entretanto, postula-se que esse argumento gerado,
em estrutura profunda, na posio de argumento interno13, na medida em que
seleciona um item com propriedade de afetado e no um desencadeador do
processo (isto , um termo de papel agente). No Portugus Brasileiro, so exemplos
de verbos inacusativos: chegar, crescer, florescer, aparecer, desaparecer, etc.
Como ilustrao do processo de inacusatividade, analisa-se um exemplo do
verbo desaparecer:
(7) (...) Hoje quando fui acessar os meus documentos (com o nome de CASA) a pasta tinha desaparecido (simplesmente sumiu). * Procurei ver a quantidade de memria da partio, e 200Gb de dados desapareceram. * Passei o dia tentando recuperar com alguns recuperadores de arquivos e s recuperei arquivos antigos que apaguei propositalmente, o resto
12 Por inacusativo, entende-se o verbo que no admite o caso acusativo caso do objeto para o
seu complemento. Nesse sentido, em vez de o termo paciente tpico objeto assumir a posio do
objeto da orao, ele assume o caso nominativo (a posio de sujeito). 13 Por argumento interno, entende-se o complemento do verbo, que pode ser tanto o objeto direto quanto o indireto. O termo argumento externo, por sua vez, refere-se ao sujeito.
22
desapareceu mesmo. * Por favor preciso de ajuda! urgente! Tenho dados realmente importantes, meu emprego depende disto!14
Enquanto verbos inergativos como trabalhar, gritar e caminhar exigem um
sujeito gramatical de papel agentivo, desencadeador do processo, desaparecer
apresenta um sujeito de papel paciente. Nesse sentido, em (7), representa-se o
valor inacusativo desse verbo, na medida em que a conceptualizao de um termo
agente no pode sequer ser inferida. J os verbos inergativos admitem, na
superfcie lingustica, a manifestao de um argumento interno. Pode-se observar
esse fenmeno no exemplo abaixo, em que o termo a corrida exerce a funo de
objeto direto de correr:
a. Joo correu uma corrida difcil.
O estudo do fenmeno da inacusatividade teve a sua origem com a Hiptese
Inacusativa, de Perlmutter (1978), dentro do quadro da Gramtica Relacional e,
posteriormente, fora assumida por Burzio (1986) dentro do contexto da Gramtica
Gerativa. Atravs de muitas anlises translingusticas, Perlmutter (1978, 1980),
Levin (1983), Marantz (1984), Rosen (1984) entre outros afirmam que
argumentos cujos papis temticos so agentes so sujeitos profundos de verbos inergativos; e argumentos cujos papis temticos so pacientes ou temas so, na realidade, objetos na estrutura profunda, embora se apresentem como sujeitos derivados na estrutura superficial dos verbos inacusativos. Evidncia dessa hiptese que os sujeitos de verbos inacusativos apresentam propriedades, tanto sintticas quanto semnticas, mais tpicas de objetos diretos do que de sujeitos profundos.
(CIRACO e CANADO, 2006, p. 208).
Conforme Alexiadou, Anagnostopoulou & Everaert (2004), h fenmenos
considerados sensveis inacusatividade. Dentre eles, os autores (ibid., p. 22)
citam:
a) Seleo de auxiliar: inacusativos selecionam to be e inergativos
selecionam to have;
14 Exemplo extrado da seo tira-dvidas do site Tech Mundo. Disponvel em: http://www.tecmundo.com.br/tira-duvidas/166148
23
b) Cliticizao do ne para o italiano (os inacusativos permitem e os
inergativos no);
c) Possibilidade de ocorrerem em construes resultativas (os inacusativos
ocorrem nesse tipo de construo, os inergativos no);
d) Aceitao do particpio passivo, tambm conhecido como construo com
particpio absoluto (os inacusativos aceitam e os inergativos no);
e) As passivas impessoais (os inacusativos no podem ser passivizados
porque no tm o papel temtico do sujeito para absorver).
Vale ressaltar que esses testes se aplicam a algumas lnguas, e no a outras,
uma vez que o fenmeno da inacusatividade manifesta-se idiossincraticamente. No
obstante, partindo-se da hiptese da existncia de papis temticos tpicos tanto de
sujeito profundo quanto de objeto profundo, Alexiadou et al. (2004 apud CIRACO e
CANADO, 2006, p. 209) afirmam que esses diagnsticos especficos apoiam-se
essencialmente:
a. na inexistncia de um argumento externo, e, consequentemente, na no seleo do papel temtico tpico do sujeito, que faz a posio de sujeito ser preenchida por um argumento do tipo de objeto, que recebe papel temtico caracterstico de objeto;
b. em uma relao de movimento entre a posio de objeto e a posio de sujeito.
Nessa perspectiva, a primeira generalizao aponta para uma caracterstica
que pode ser considerada universal: verbos que possuem um s argumento com
papel temtico tpico de sujeito so inergativos; j aqueles que selecionam um s
argumento com papel temtico associado, geralmente, posio de objeto, so
inacusativos. Pode-se tambm estender essa generalizao para relao entre
funes sintticas e funes semnticas especficas, sendo comum a existncia de
teorias que se apoiam na associao das noes gramaticais de sujeito e objeto s
noes semnticas de agente e paciente/tema, como pode ser observado em Rosen
(1984). Dowty (1989) trata da existncia de tais relaes semnticas, investigando
um padro quanto ao tipo de papel associado determinada posio sinttica.
Segundo o autor (ibidem), tais associaes no determinam a estrutura sinttica de
todos os verbos, mas funcionam muito bem para a classe dos verbos transitivos com
dois argumentos.
24
Segundo Dowty (1989), em predicados com sujeito e objetos gramaticais, o
argumento para o qual o predicado implica maior nmero de propriedades Proto-
Agente ser lexicalizado como sujeito; o argumento que tiver o maior nmero de
implicaes Proto-Paciente ser lexicalizado como objeto direto. Nesse sentido, as
caractersticas tpicas de Proto-Agente e Proto-Paciente seriam as seguintes:
Proto-Agente:
a) Envolvimento volitivo no evento ou no estado;
b) Conhecimento (e/ou percepo);
c) Causa um evento ou mudana de estado noutro participante;
d) Movimento (relativamente posio de outro participante).
Proto-Paciente:
a) Sofre mudana de estado;
b) Tema incremental;
c) Afetado causalmente por outro participante;
d) Estacionrio relativamente ao movimento de outro participante.
Contudo, como observa o prprio Dowty (1989), esses procedimentos de
anlise atendem bem estrutura transitiva, que a mais prototpica na lngua, mas
no atende, porm, s estruturas inacusativas. O verbo desaparecer, por exemplo,
apresenta um sujeito gramatical que apresenta mais caractersticas de Proto-
Paciente relacionadas categoria objeto direto do que de Proto-Agente
relacionadas categoria sujeito. De certo modo, o ponto de vista do autor (ibidem)
vai ao encontro do que afirma Perlmutter (1978) quando relaciona as propriedades
semnticas do sujeito gramatical dos verbos inacusativos com as caractersticas
prototpicas do objeto direto.
Retornando s generalizaes de Alexiadou et al. (2004), segundo os autores
(ibidem), a segunda generalizao (expressa em b) pode ser exemplificada no teste
de cliticizao de ne, em italiano. Como exemplo do Portugus, por sua vez, Ciraco
e Canado (2006) aplicam o teste da posposio, visto que, sendo o argumento de
25
um verbo inacusativo um objeto em sua origem, a ordem VS para esse tipo de verbo
ser aceita mais naturalmente, na medida em que indicar a relao de movimento
ocorrida na passagem da sentena da estrutura profunda para a superficial.
No entanto, Ciraco e Canado (ibidem), ao aplicar esse teste de posposio
em quarenta verbos monoargumentais do Portugus Brasileiro tanto inacusativos
quanto inergativos , observam uma fragilidade na proposta. Constatam que alguns
verbos inacusativos no apresentam naturalidade na inverso da ordem SV para VS
e, por sua vez, alguns verbos inergativos aceitam naturalmente essa inverso. Como
ilustrao, transcrevem-se alguns exemplos das autoras (2006, p. 210):
(a) Joo amadureceu com a morte da me. (b) * Amadureceu Joo com a morte da me. (c) Saiu a folha de pagamento.
O verbo amadurecer, inacusativo, no procede naturalmente inverso da
ordem SV, na medida em que o exemplo (b) no soa natural nas variedades do
portugus brasileiro. Paralelamente, o verbo inergativo sair soa naturalmente na
ordem VS. Ao enxergar essa fragilidade nos testes de inacusatividade e
inergatividade, as autoras procedem a uma nova metodologia, considerada por elas
mais flexvel15.
Defende-se que a transitivizao de desaparecer se deve, em parte, s
propriedades semnticas de seu sujeito e adjunto adverbial. Assume-se que a
mudana da posio de adjuntos adverbiais com propriedades semnticas de
causao para a posio de sujeito gramatical torna-se possvel pela competio
entre diferentes foras: a presena de um termo mais agentivo16 como as
circunstncias de causa e instrumento compete pela posio de sujeito gramatical
com o termo paciente, propiciando a nova construcionalizao17, isto , parte-se da
15 Tal metodologia, no entanto, no ser abordada nesta tese. Na verdade, o nosso objetivo neste momento foi o de caracterizar os verbos inacusativos e entender os parmetros que os caracterizam na literatura vigente, uma vez que a hiptese mais forte desta pesquisa reside no processo de transitivizao de desaparecer, considerado um verbo inacusativo. 16 Utiliza-se o termo mais agentivo para fazer referncia propriedade de causao e no particularmente ao papel agente. Nesse sentido, afirma-se que um termo agentivo aquele que acarreta uma ao x sobre um paciente y.
26
construo esquemtica inacusativa SUJ -CAUSAO18 + V + ADJUNTO ADVERBIAL+
CAUSAO para a construo transitiva SUJ+CAUSAO + V + O-CAUSAO.
Um dos critrios tradicionalmente adotados na identificao de verbos
inacusativos o da no identificao de um agente na estrutura inacusativa, na
medida em que o desencadeador do processo no infervel. Sob esse aspecto,
Ciraco e Canado (2006) citaram como exemplo o verbo amadurecer. No exemplo
(a), amadurecer apresenta realmente propriedades inacusativas. Entretanto,
possvel encontrar, em corpora de uso real da lngua, ocorrncias transitivas de tal
verbo. Veja:
(8) Como amadurecer um abacate?
Coloque o abacate num saco de papel pardo. O saco ser usado para armazenar gs etileno, que amadurece o abacate. Certifique-se de que no haja buracos nele!
http://pt.wikihow.com/Amadurecer-um-Abacate19.
(9) Meu processo interessante: eu amadureo a ideia do texto dirigindo...
http://bloglog.globo.com/blog/post.do?act=loadSite&id=1483420
.
Acima, os dois exemplos apresentam o papel agente, sendo infervel no
primeiro exemplo atravs da elipse do sujeito e, no segundo, explcito o sujeito
gramatical eu. Em um ponto de vista cognitivo-funcional, a identificao de
empregos menos prototpicos como esse facilitada por uma anlise de corpus de
uso da lngua, em que se mapeiam as diferentes possibilidades pragmticas,
semnticas e morfossintticas admitidas por uma determinada construo
lingustica.
17 A construcionalizao representa um processo de gramaticalizao de construes, em que uma determinada construo resulta em uma FORMANOVA-SENTIDONOVO. Para melhor compreenso do conceito, consulte a seo 2.4 do segundo captulo. 18 Os termos CAUSAO e +CAUSAO correspondem a ausncia ou presena da propriedade de causao na posio sinttica. Causao representa, nessa perspectiva, a propriedade de desencadear uma ao em outro termo da orao. 19 Acesso em novembro/2014. 20 Acesso em novembro/2014.
27
1.2 O PROCESSO DE TRANSITIVIZAO
Visa-se, nesta pesquisa, descrio do processo de transitivizao do verbo
desaparecer, tradicionalmente considerado um verbo inacusativo. O uso transitivo
de desaparecer j consta na descrio lexicogrfica na medida em que os
dicionrios atuais j o registram como se pode comprovar no Dicionrio de usos do
portugus do Brasil (BORBA, 2002), no Dicionrio UNESP (BORBA, 2004) e no
Dicionrio Houaiss da Lngua Portuguesa (HOUAISS)21, por exemplo.
A nossa inteno, no entanto, no apenas a de confirmar a transitivizao
de desaparecer, mas principalmente a de descrever as motivaes que ensejam a
mudana, que se considera ser de ordem cognitiva. Nesta seo, far-se- referncia
literatura existente sobre o assunto, no intuito de verificar pontos de vista
convergentes e/ou divergentes com a perspectiva assumida.
Como primeira referncia de estudo da transitivizao, citam-se as pesquisas
funcionais de Gutirrez Ordes (2002a) e Touratier (2000). Os autores argumentam
que os processos de transitivizao e intransitivizao ocorrem devido a uma
modificao valencial na estrutura semntica do verbo, que pode dar-se por
aumento, reduo ou apenas transformao da valncia verbal. Nessa perspectiva,
Maralo (2007, p. 2) diz que:
Falamos de reduo valencial quando se elimina ou anula uma das funes previstas na valncia significativa do signo. O contrrio tambm pode acontecer, ou seja, acrescenta-se ao verbo uma funo argumental no prevista nas possibilidades combinatrias do seu significado. Pode ainda acontecer uma transformao que consiste na alterao dos papis semnticos que correspondem aos espaos funcionais de carter formal.
Segundo Gutirrez Ordes (2002a), a modificao valencial pode ocorrer em
toda diatesis, que pode ser compreendida como a oposio de estruturas
sintagmticas que representam o mesmo evento mediante um relacionamento
distinto entre papis semnticos e funes sintticas. O tipo mais prototpico de
diatesis pode ser verificado na alternncia entre as vozes verbais, cujos enunciados
descrevem os mesmos tipos de eventos, mas sob uma diferente perspectiva.
21 Dispem-se exemplos extrados de dicionrio na introduo deste trabalho.
28
Segundo o autor (ibidem), a passagem da voz ativa para a passiva implica tanto
uma reduo quanto uma incorporao valencial: reduz-se a valncia ao suprimir-
se a funo semntica que ocupa o sujeito e incorpora-se uma valncia quando o
segundo argumento o objeto direto passa a ocupar a funo sujeito. Trata-se,
desse modo, de um caso especfico de intransitivizao.
J em se tratando de transitivizao, Maralo (2007) mostra o aumento
valencial de verbos inacusativos. Os verbos detonar e amedrontar, por exemplo,
esto na classe dos verbos inacusativos. No entanto, na sincronia atual, tais verbos
so frequentemente usados em uma construo transitiva, como ilustra Maralo
(2007, p. 7) com os exemplos a seguir:
A polcia detonou a bomba. A av amedrontou as crianas.
Segundo a autora, esses casos aceitam comutao por perfrases com o
verbo fazer, de modo que se poderia parafrase-las do seguinte modo: a polcia fez
com que a bomba detonasse; a av fez com que as crianas amedrontassem.
Nesses casos, a transitivizao ocorre pela presena de um agente-instigador do
processo na estrutura semntica.
Processo anlogo a esse o que ocorre na transitivizao de desaparecer.
Seu uso transitivo d-se pela presena do agente-instigador do processo. Observe o
exemplo:
(10) Prefeitura de Volta Redonda desaparece com mais de R$ 7 milhes do oramento da educao para 1998.
Notcia de jornal. (Corpus do Portugus Brasileiro)
Acima, o verbo desaparecer tambm procede comutao com verbo fazer,
na medida em que se poderia parafrasear toda a sentena por uma como esta: a
prefeitura de volta redonda faz mais de R$ 7 milhes do oramento da educao
para 1998 desaparecer.
Por conseguinte, observa-se que, para os autores supracitados, a mudana
da estrutura lingustica se d sob critrios semnticos. Muda-se a valncia na
estrutura semntica e, por consequncia, altera-se a forma. Concorda-se com
esse ponto de vista, na medida em que se acredita que a funo o sentido
enseja a forma a estrutura gramatical. Assim sendo, pretende-se agregar valor
29
nessa pesquisa ao incluir um ponto de vista cognitivo sobre esse processo de
transitivizao, mais especificamente, ao procurar investigar quais so as
motivaes de ordem cognitiva que ensejam uma nova conceptualizao e,
portanto, uma nova estrutura lingustica.
Outro estudo que trata da transitivizao pertence a Whitaker-Franchi (1989),
que descreve casos de causativizao (ou transitivizao) em verbos tipicamente
usados como intransitivos. Como ilustrao, Ciraco (2007) cita os seguintes
exemplos:
(a) Essa escova di a cabea. (b) Essa bicicleta sua voc (verbo suar).
Diferentemente da pesquisa de Gutirrez Ordez (2002a) e Maralo (2000),
Whitaker-Franchi (1989) e Ciraco (2007) atuam sob um paradigma formal de anlise
lingustica, assumindo a hiptese de que a semntica constitui-se como um mdulo
autnomo, assim como a sintaxe e a fonologia; e que esses mdulos da gramtica
so igualmente estruturados, sendo a sintaxe o mdulo gerador, isto , o mais alto
da hierarquia. Um paradigma funcionalista, em contrapartida, concebe um sistema
holista, simblico, em que no h diviso de blocos: forma e sentido representam,
na verdade, um continuum.
Segundo Ciraco (2007, p. 55), a causativizao consiste em inserir um
argumento desencadeador estrutura argumental de um verbo basicamente
intransitivo, dando origem forma causativa z CAUSA x V. Nesse processo, o verbo
tipicamente processual incorpora uma causao. Veja (CIRACO, 2007, p. 55):
a. A chave sumiu. b. Joo fez a chave sumir. c. Joo sumiu a chave.
Em (a), o verbo sumir, basicamente intransitivo, passa pelo processo de
causativizao, formando uma construo transitiva, tendo-se as seguintes
estruturas: x V z V.
Vale ressaltar que, na perspectiva adotada, a noo de transitividade
quando relacionada aos conceitos de causatividade e inacusatividade est
intimamente relacionada noo de acarretamento. Para Dowty (1979), em uma
estrutura x V y, se x V y acarreta propriedades para x, ou seja, Pn(x), ento, pode-se
30
inferir Pn(x) em qualquer contexto em que esse verbo ocorra. Em outras palavras, o
acarretamento lexical de um verbo o grupo de tudo o que se pode concluir sobre x
e y somente por saber que x V y verdade, independentemente do contexto
sentencial em que esse verbo aparece. Como exemplo, Ciraco (2007, p. 48) cita
dois exemplos do verbo quebrar.
a. Joo quebrou o vaso. b. O vaso quebrou.
Em (a), tem-se a forma transitiva x QUEBRAR y, e no conjunto Pn(x), x figura
como o desencadeador do processo. Em (b), entretanto, mesmo no havendo a
presena de um desencadeador do processo, este infervel. Portanto, embora o
verbo quebrar, no primeiro exemplo, esteja em uma construo transitiva e, no
segundo, em uma construo inacusativa, originalmente quebrar transitivo. Um
verbo originalmente inacusativo, por sua vez, no teria um desencadeador infervel,
como no caso do verbo desaparecer.
(11) Da Chacra do Capito Jeronimo Jo-|s dAndrade, desapareceo uma besta de| Sella; suppoem-se ter sido furtado por um| preto que a se achava alugado titulo| de forro; a besta pequena vermelha, qua-|si pangar, e boa marchadeira; quem della| tiver noticia avise as mesmas pessoas acima.
O Farol Paulistano, 15 de maro de 1828 (Notcia do sculo XIX. Corpus
PHPB)
(12) O pai de Srgio, Raimundo Gomes, disse acreditar que a PM tenha matado o garoto e desaparecido com seu corpo.
Notcia de jornal do sculo XXI (Corpus do Portugus Brasileiro.)
Nos exemplos acima, tm-se, respectivamente, uma construo intransitiva e
outra transitiva de desaparecer. No primeiro caso, no se pode depreender que,
necessariamente, haja um desencadeador do processo. Por isso, sob a perspectiva
de Dowty (1979), desaparecer, originalmente, um verbo intransitivo.
Em se tratando da noo de desencadeador do processo, Canado (2000
apud CIRACO, 2007, p. 74) afirma que parece haver uma especificao de causa
direta e indireta para os verbos. Nesse sentido, segundo CIRACO (ibidem),
31
Existem verbos causativos que acarretam a seu argumento x no apenas a propriedade P1(x) = ter um papel no desenrolar do processo, mas tambm podem acarretar as propriedades de P2(x) = no apresentar nenhum tipo de mediao no desenrolar desse processo e de P3(x)= apresentar algum tipo de mediao no desenrolar desse processo. Chamaremos, descritivamente, o papel temtico do sujeito dos verbos causativos que acarretam a x as propriedades P1(x) e P2(x) de desencadeador direto. J o papel temtico dos verbos causativos que acarretam a x propriedades P1(x) e P3(x) ser chamado, descritivamente, de desencadeador indireto. (...) Desse modo, podemos dizer que o desencadeador direto o responsvel imediato pelo desencadeamento do processo e que o desencadeador indireto aquele que tem um papel no desenrolar do processo de forma mediada.
Como ilustrao, Ciraco (2007, p.75) cita os seguintes exemplos:
(a) Joo quebrou o vaso com um martelo. (b) Joo quebrou o vaso com o empurro que levou.
Segundo anlise da autora, na sentena (a), percebe-se que ao argumento
Joo so acarretadas as propriedades do papel temtico ser o desencadeador direto
do processo de quebrar. Entretanto, em (b), percebe-se que o argumento Joo
desempenha um papel diferente, ele no desencadeia o processo de quebrar de
forma direta, mas mediado por um evento anterior ao evento do qual participa, de
modo que se poderia parafrasear esta ltima sentena como o empurro que Joo
levou quebrou o vaso.
Argumenta-se que, embora as pesquisas de Whitaker-Franchi (1989) e
Ciraco (2007) sejam de base formalista, elas apresentam semelhanas com
algumas perspectivas de base funcionalista. A noo de causao, por exemplo,
figurativizada no modelo da cadeia de aes (CROFT, 1991, 1998; CROFT e
CRUSE, 2004; LANGACKER, 1987; TALMY, 1976, entre outros), que aponta para a
tendncia conceptual de o sujeito ser conceptualizado pelo elemento mais
proeminente na cadeia de aes22, a origem de energia.
Sob essa perspectiva, retomando os exemplos (a) e (b) de Ciraco (2007, p.
75), concebe-se que a cadeia de aes poderia ser conceptualizada da seguinte
forma:
22 Para definio de cadeia de aes, veja o segundo captulo, seo 2.3.
32
a) Joo > martelo > vaso.
b) Empurro > Joo > vaso.
No primeiro caso, Joo, o elemento mais proeminente na cadeia de aes
lexicalizado como sujeito da clusula. Ele incide uma fora x para o martelo, que
exerce uma fora y sobre o vaso. A mesma cena, em critrios conceptuais, poderia
ser lexicalizada pondo o segundo elemento na posio de sujeito o martelo
quebrou o vaso ou o ltimo elemento o vaso quebrou. A cada avano na cadeia
de aes na posio de sujeito, h uma tendncia para a no lexicalizao dos
elementos esquerda na sentena (pois, quando lexicalizados, assumem posies
perifricas). O mesmo ocorre com o exemplo em b.
1.3 ADVRBIO E FUNO ARGUMENTAL
Advrbio a expresso modificadora que por si s denota uma CIRCUNSTNCIA (de lugar, de tempo, modo, intensidade, condio, etc.) e
desempenha na orao a funo de adjunto adverbial.
Bechara (2004, p. 287)
Os advrbios recebem a denominao da circunstncia ou de outra ideia ACESSRIA que expressam.
Cunha e Cintra (2001, p. 542)
As descries acima, extradas de duas renomadas gramticas brasileiras23,
trazem dois pontos de vista consensuais na caracterizao do advrbio prototpico.
Semanticamente, advrbios so circunstncias; sintaticamente, so termos
acessrios da orao.
Tal caracterizao embora necessria como forma de abstratizao das
caractersticas que configuram a classe dos advrbios relativizada pelos autores,
23 As obras citadas so as seguintes: 1) BECHARA, E. Moderna Gramtica Portuguesa. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004; 2) CUNHA, C; CINTRA, L. Nova Gramtica do Portugus Contemporneo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
33
na medida em que facilmente se encontram expresses adverbiais com estatuto de
argumento, e no de circunstncia. Como exemplo, cita Bechara (2004, p. 436):
A criana caiu da cama durante a noite. Os carregadores puseram o mvel na sala logo pela manh.
Segundo o autor (ibidem),
levada exclusivamente pelo aspecto semntico, a gramtica tradicional igualou estes termos tambm sintaticamente, considerando-os ambos adjuntos adverbiais, isto , como termos no argumentais, fora do mbito da regncia do verbo da orao.
Nesse sentido, tanto da cama quanto na sala so interpretados como
adjuntos adverbiais, do mesmo modo como as expresses durante a noite e logo
pela manh. No obstante, percebe-se, atravs do teste de reduo, que os termos
da cama e na sala so obrigatrios, isto , argumentais24, na medida em que
pertencem regncia dos verbos cair e pr, respectivamente.
Said Ali (1931, p. 183), de quem Bechara foi fiel discpulo, reconhecia a
existncia de complementos de natureza circunstancial a que ele chamava de
objeto indireto circunstancial , sem, contudo, associ-los categoria advrbio. Vale
ressaltar que Said Ali (1931) tinha uma concepo diferenciada de transitividade.
Para o estudioso, intransitivos eram todos os verbos que no exigiam objeto direto,
sendo eles intransitivos absolutos (p. ex.: viver e chorar) ou intransitivos relativos.
Nesta ltima categoria, incluam-se os verbos a que se convencionou chamar, hoje,
de transitivos indiretos, como depender e precisar, por exemplo. Sua classificao
dos verbos transitivos corresponde aos casos acusativo (objeto direto) e dativo
(objeto indireto). Nesse sentido, verbos que no admitiam tais casos, mas cujo uso
requeria um complemento eram interpretados sob um aspecto circunstancial.
Kury (2000, p. 32), assim como Bechara, reconhece a existncia de
argumentos de natureza adverbial:
Certos verbos de movimento ou de situao (como chegar, ir, partir, vir, voltar; estar, ficar, morar, etc.), quando pedem um COMPLEMENTO ADVERBIAL DE LUGAR que lhes integre o sentido, embora tradicionalmente classificados como intransitivos, devem ser considerados transitivos, desde que se entenda por TRANSITIVIDADE a
24 Vale ressaltar que, embora Bechara (2004, p. 36) defenda a classificao desses elementos como argumentais, o autor no prope uma nova categorizao para os elementos em estudo.
34
necessidade de um complemento que vem acabar uma ideia insuficiente em si mesma.
De modo anlogo, Rocha Lima (2011 [1972], p. 312), descreve os
complementos circunstanciais:
O complemento circunstancial um complemento de natureza adverbial to indispensvel construo do verbo quanto em outros casos, os demais complementos verbais.
Se compararmos frases como:
Irei a Roma e Jantarei em Roma , verificaremos que, na segunda, o liame entre a preposio e o substantivo se nos mostra muito mais ntimo do que na primeira, onde, pelo contrrio, a preposio como que forma um bloco com o verbo. Temos, a, com efeito, dois sintagmas.
Irei a Roma Jantarei em Roma
Por seu valor de verbo de direo, ir exige, por assim dizer, a preposio a para lig-lo ao termo locativo.
A partir dessas anlises, pode-se questionar a natureza
acessria/circunstancial de algumas expresses classificadas como advrbio. Ao
compreender-se circunstncia como uma PARTICULARIDADE que acompanha um
fato, uma situao25, entende-se que muitas das expresses cuja classificao
adverbial compem um argumento semntico do verbo a que se referem. Definir o
advrbio como um termo acessrio da orao evidencia um paradigma formal de
anlise lingustica, cujos estudos se restringem ao prottipo, isto , aos exemplos
mais centrais da categoria, sobrepondo-se, assim, a estrutura funo. O que fica
margem tratado em carter de excepcionalidade. Como tipicamente os advrbios
so termos modificadores dos verbos e representam ideias de lugar, tempo, modo,
condio, etc., convencionou-se chamar de advrbios expresses que traziam tais
caractersticas, mesmo que representassem, semanticamente, um argumento do
verbo.
25 FERREIRA, A. B. H. Aurlio Sculo XXI: O dicionrio da Lngua Portuguesa. 3. ed. rev. e ampl. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
35
A descrio lingustica a partir dos elementos mais centrais da categoria
parece-nos um procedimento padro de nossa cognio, como bem aponta Eleanor
Rosch et al. (1976) na perspectiva da Teoria dos Prottipos. Inicialmente, fixa-se em
um elemento como sendo um ponto de partida, um ncleo, de cada categoria em
anlise. Contudo, com o avano do estudo dos elementos mais nucleares de uma
dada categoria, torna-se natural que se passe a investigar seus elementos mais
perifricos. No obstante, muito comum que, nessa anlise, alguns traos
semnticos que eram considerados essenciais categoria passem a ser negados,
fato que se consegue depreender das observaes tecidas por Bechara (2004) e
Kury (2000), ao considerarem alguns adjuntos adverbiais como complementos do
verbo. Afinal, se h advrbios que, semanticamente, funcionam como argumentos,
estes no podem ser termos acessrios do verbo26.
Sob esse ponto de vista, concorda-se com Wittgenstein (1991[1941]) quando
afirma que as categorias no so discretas, uma vez que no possvel delimit-las
com traos de essncia. Os traos so intermitentes e dependem da perspectiva e
do uso que se faz da linguagem para referir-se ao conceito. Desse modo, alm de
interpretar as categorias a partir de um ncleo, como se os elementos se
agrupassem ao redor de caractersticas comuns (figura 1), pode-se pens-las de
uma forma lateral (figura 2), analisando-se cada elemento e seus atributos
especficos.
Fig 1. Teoria dos Prottipos (Rosch)
26 Toda vez em que se utiliza o termo argumento nesta tese, faz-se referncia estrutura semntica, e no sinttica, defendendo-se que alguns adjuntos adverbiais so imprescindveis na construo da sentena, diferentemente do que tradicionalmente se associa aos usos mais prototpicos dos advrbios.
A B C D
E
36
Fig 2. Teoria de Semelhana de Famlia (Wittgenstein)
Pensando sob o paradigma da figura 2, tem-se um extenso agrupamento de
elementos que no necessariamente tm, entre si, as mesmas caractersticas,
sendo que um elemento A, uma categoria mais nuclear e prototpica, pode no ter
semelhana alguma com D, que no mais apresenta os traos considerados
essenciais categoria do primeiro elemento. Vale ressaltar que, nessa perspectiva,
mantm-se a representao de um continuum, que atende muito bem s
abordagens gramaticais, na medida em que se preveem, gradativamente, tanto a
mudana categorial quanto a semntica. Observe, em carter de ilustrao, dois
exemplos:
Compramos um carro naquela agncia de automveis Os carregadores puseram o mvel na sala logo pela manh.
(BECHARA, 2004, p. 436)
Tanto no primeiro quanto no segundo exemplos, destacam-se expresses
tradicionalmente chamadas de adjuntos adverbiais de lugar. No entanto, elas se
diferenciam semntica e sintaticamente. A primeira, sintaticamente, um termo
acessrio da orao; semanticamente, uma circunstncia e denota a ideia de
lugar, funcionando como um modificador do verbo da orao. J a segunda, embora
sintaticamente seja tambm um adjunto adverbial, semanticamente, complementa o
sentido do verbo, no sendo, assim, um termo acessrio. Logo, pode-se inferir, com
base na figura 2, que naquela agncia de automveis ocuparia a posio A e que na
sala ocuparia a posio B. O ponto de interseo entre os dois seria to-somente a
D E C B A
37
ideia de lugar que os dois expressam e a estrutura morfolgica semelhante, iniciada
pela preposio locativa em seguida de sintagma nominal.
Goldberg (1995), j sob uma perspectiva cognitiva da anlise lingustica
(Gramtica de Construes), lana mo de exemplos que mostram a funo do
adjunto adverbial como argumento componente da estrutura argumental da clusula.
Um de seus exemplos da construo de movimento causado (ibid., p. 52) evidencia
que o verbo to put (pr) precisa de um argumento circunstancial em algumas de
suas instanciaes isto , sintaticamente, pode exigir um adjunto adverbial de
lugar para complementar-lhe o sentido:
Sem CAUSE-MOVE < cause goal theme >
PUT < putter put.place puttee >
Syn V SUBJ OBL OBJ
Fig 3. Representao da estrutura argumental do verbo to put.
Na tabela acima, o termo goal (destino) apresenta uma barra tracejada,
mostrando que a estrutura argumental pode no realizar o adjunto. No entanto, vale
ressaltar que essa no realizao do adjunto adverbial depende da instanciao da
construo. O adjunto adverbial ser inferido contextualmente quando o objeto,
pragmaticamente, puder representar um lugar infervel, como, por exemplo, na frase
Ponha a jaqueta em que o lugar s pode ser o prprio corpo. No entanto, em uma
frase como ponha a jarra na mesa, a expresso adverbial na mesa deixa de ter
carter acessrio, na medida em que no pode ser inferida a partir do contexto e
que sua omisso compromete, efetivamente, o sentido pretendido na frase.
Ao longo desta seo, questionou-se e discutiu-se a definio tradicional
atribuda ao advrbio, na medida em que h expresses tradicionalmente
classificadas como advrbios, muito embora no sejam termos acessrios do
38
verbo. No entanto, o objetivo, aqui, no a de propor uma nova definio para a
categoria. Na verdade, um dos objetivos desta tese o de retratar como o objeto de
estudo em anlise, os advrbios que admitem a ideia de causao, podem afastar-
se da concepo clssica de advrbio quando assumem uma posio argumental.
Por causao, entende-se uma categoria cognitiva que representa a fonte da
energia de um determinado processo/ao. Nesta pesquisa, afirma-se que advrbios
de causa e instrumento podem representar, semanticamente, um argumento do
verbo, na medida em que se encontram mais integrados.
1.3.1 o advrbio (e o adjunto adverbial27) de instrumento
A categoria instrumento, enquanto um dos papis semnticos ou um dos
valores semnticos do advrbio, parece apresentar-se como discreta e
homognea nas gramticas tradicionais, uma vez que os autores apenas a
exemplificam, e no a descrevem. Veja alguns exemplos:
As principais circunstncias expressas por advrbio ou locuo adverbial so:
[...] instrumento: Escrever com lpis.
Bechara (2004, p. 290-291)
difcil enumerar todos os tipos de ADJUNTOS ADVERBIAIS. Muitas vezes, s em face do texto se pode propor uma classificao exata. No obstante, convm conhecer os seguintes:
[...] e) DE INSTRUMENTO: Anastcio estava no alto, na orla do mato, juntando, a ancinho, as
folhas cadas (Lima Barreto, TFPQ, 156.) Dou-te com o chicote, ouviste! (Luandino Vieira, L. 41.)
Cunha & Cintra (2001, p. 152-153)
Muito difcil seria relacionar todos os tipos de adjunto ou complemento adverbial. Quantas vezes somente num caso concreto se consegue dar a denominao mais expressiva. Deve o professor aceitar todas as que revelem no aluno compreenso inteligente. Sirvam apenas de guia os exemplos que adiante se do:
27 Vale ressaltar que, na sintaxe, o termo adjunto adverbial equivale ao advrbio e locuo adverbial na morfologia.
39
[...]
Instrumento: Preferia pintar a leo (ou com guache).
Kury (2000, p. 56)
Grosso modo, os exemplos acima correspondem definio encontrada na
literatura existente sobre o estudo dos casos gramaticais, para o qual o instrumento
o quinto caso, usado para indicar que um nome o instrumento ou meio pelo
qual ou com o qual o sujeito realiza e efetua uma ao. (GARCIA, 1993, p. 137)
Tal concepo no se diferencia nas obras de orientao funcionalista. Nas
obras analisadas28, apenas uma trazia definio para a categoria adjunto adverbial
de instrumento, a qual se adequa tanto definio de Garcia (1993, p. 137) quanto
aos exemplos citados pelos autores das gramticas a que se fez referncia
anteriormente.
Segundo Valin e LaPolla (1997, p. 177), o papel semntico de instrumento29
uma entidade manipulada por um agente no fazer de uma ao. Dessa forma,
observa-se que os sujeitos gramaticais dos exemplos extrados de Bechara (2004),
Cunha e Cintra (2001) e Kury (2000) embora nem todos estejam expressos so
agentes que, por sua ao e poder, executam uma ao com o uso de determinado
instrumento.
1.3.2 O papel semntico instrumento na gramtica cognitiva
De modo anlogo a Valin & LaPolla (1997), Langacker (2008, p. 356) define o
papel semntico instrumento, sem, no entanto, associar-lhe a uma classe gramatical
especfica.
[...] Um instrumento algo usado por um agente para afetar outra
entidade. O instrumento tpico um objeto inanimado, fisicamente
manipulado por um agente. Portanto, ele no uma fonte de energia
28 Dentre as obras pesquisadas, destacamos: 1) a Gramtica de Usos do Portugus (NEVES, 1999); 2) a Gramtica Discursivo-Funcional (HENGEVELD e MACKENZIE, 2008); 3) a Lingustica Sistmico-Funcional (HALLIDAY, 1985), a Lingustica Funcional Padro (DIK, 1989 e 1997); 4) a Gramtica de Papel e Referncia (VALIN e LAPOLLA, 1997). 29 Embora os autores definam a categoria enquanto papel semntico, vale ressaltar que eles a associam ao sintagma adverbial. Langacker (2008) j a trata conceptualmente e ilustra que ela pode ocupar outra posio sinttica, a de sujeito.
40
independente, mas intermediria na transferncia de energia do agente
para o paciente.
Quando Langacker (2008) afirma que o instrumento no uma fonte de
energia independente, ele faz referncia a um dos arqutipos da Gramtica
Cognitiva, a Cadeia de Aes, que representa interaes de fora, cada uma
envolvendo transmisso de energia (seta larga) de um participante para o outro.
Veja sua representao abaixo:
Fig 4. Representao do arqutipo Cadeia de Aes (LANGACKER, 2008)
Nessa perspectiva, pode-se entender que um agente A transfere sua fora
para um instrumento B, o qual transfere sua fora para um paciente C, como se
ilustra no esquema a seguir:
Fig 5. Perfilamento prototpico da orao com adjunto adverbial de instrumento
(LANGACKER, 2008)
Ao se tomar como ilustrao o exemplo Dou-te com um chicote, observa-se
na orao (nosso escopo imediato EI), os seguintes elementos perfilados (em
Cenrio
EI
AG INST PAC
ESP
41
negrito): 1) agente, representado pela desinncia nmero-pessoal u do verbo dar;
2) instrumento, representado pelo adjunto adverbial com um chicote; 3) paciente,
representado pelo complemento verbal te30.
Embora esse seja o esquema cannico da orao com adjunto adverbial de
instrumento, nem sempre todos os elementos precisam ser perfilados, isto , esto
presentes na orao. Em preferia pintar a leo, o paciente infervel no escopo
imediato, embora no se encontre perfilado, como se pode observar no esquema a
seguir:
Fig 6. Perfilamento dos papis semnticos expressos na orao preferia pintar a olo.
Langacker (2008, p. 369) ainda afirma que o papel semntico instrumento
pode ser promovido a agente quando o perfilamento da clusula se limita interao
instrumento-paciente.
Quando o perfilhamento limitado a interaes instrumento-paciente, o instrumento selecionado: ele semelhante ao agente porque ele afeta o paciente e, em termos locais, a fonte de energia31.
30 O esquema da figura 5 um modelo bsico da Gramtica Cognitiva, o Modelo de Palco, que, segundo Langacker (2008), pertence ao mundo externo. O termo utilizado para sugerir que o processo cognitivo semelhante a assistir uma pea. Como ns no podemos ver tudo de uma nica vez, assistir, portanto, exige o direcionamento e a focalizao da ateno. A partir de nosso escopo de viso, selecionamos uma rea limitada como o lugar de ateno. Dentro dessa regio, ns focalizamos nossa ateno especificamente em certos elementos. Nesse sentido, EI, representa nosso escopo imediato, isto , os elementos proeminentes para os quais nossa ateno foi dedicada; esp, significa espectador e, por isso, representa os interlocutores.
Cenrio
EI
AG INST PAC
ESP
42
Para tal, Langacker (ibidem) faz uso dos seguintes exemplos:
(a) Floyd broke the glass with a hammer. AGs INSTr PATo Floyd quebrou o copo com o martelo
(b) A hammer broke the glass. AG INSTrs PATo O martelo quebrou o copo.
(c) The glass broke AG INSTr PATs O copo quebrou.
No exemplo (a), tem-se uma orao em que o agente, o instrumento e o
paciente encontram-se perfilados, de modo que o instrumento exerce sua funo
prototpica, isto , o agente prototpico ocupa a posio de sujeito; o paciente, o
objeto; o instrumento, o adjunto adverbial. J no exemplo (b), uma vez que o agente
no perfilado, o instrumento torna-se agentivo, uma vez que ele a fonte de
energia. Pode-se representar essa transferncia de agentividade ao instrumento no
seguinte esquema:
Fig 7. Representao da transferncia de agentividade a instrumento.
J no exemplo (C), apenas o paciente perfilado, e por isso assume a
posio de sujeito da orao, mesmo no assumindo carter agentivo, veja:
31 When the profile is limited to the instrument-patient interaction, the instrument is chosen: it is agent-like because it affects the patient and in local terms is the energy source.
AG INST PAC
ESP
Cenrio
EI
AG
43
Fig 8. Representao de orao em que apenas o papel paciente perfilado.
1.3.3 A mudana de instrumento a instrumento-agentivo32
A transferncia de agentividade a instrumento facilmente encontrada em
verbos de dois argumentos no portugus brasileiro, como se pode observar no
segundo exemplo abaixo, em que o no perfilamento do agente prototpico (isto ,
um ser humano) nos leva a interpretar o instrumento como agente, atribuindo-lhe,
nesse caso, o papel prototpico de sujeito da orao.
a) Carlos abriu a porta com a chave.
b) A chave abriu a porta.
c) A porta abriu.
No obstante, em verbos monoargumentais de sujeitos no agentivos,
tambm possvel essa promoo de instrumento a instrumento-agentivo, como se
v a seguir:
a) Com Clear, a caspa desaparece.
32 Optou-se por chamar de instrumento-agentivo, o papel semntico instrumento quando este assume a posio de sujeito da sentena. Nesse caso, o instrumento assume uma funo semelhante a do agente prototpico, na medida em que ele desencadeia uma ao.
Cenrio
EI
AG INST PAC
ESP
44
Em Com Clear, a caspa desaparece, o sujeito gramatical afetado (isto , a
caspa no faz desaparecer, mas sofre essa ao) e a agentividade sobre essa ao
parece pertencer entidade Clear, que funciona como ncleo do adjunto adverbial
de instrumento (Clear faz a caspa desaparecer). Julga-se a expresso Com Clear
sob o papel semntico instrumento porque se compreende que a cena original dessa
orao envolve um agente humano que no se encontra perfilado na orao. Em
critrios cognitivos, pode-se conceber que algum faz a caspa desaparecer com o
uso de Clear. Ter-se-ia, sob esse ponto de vista, o esquema representado na figura
733.
Conforme se viu anteriormente, na perspectiva de Langacker (2008, p. 369),
em parmetros conceptuais, a categoria prototpica instrumento promovida a
instrumento-agentivo quando o perfilamento da clusula se limita interao
instrumento-paciente.
Sob essa perspectiva, na orao Com Clear, a caspa desaparece, Clear
promovido a instrumento-agentivo, j que caspa preenche o papel participante
paciente na estrutura da construo adverbial. Segundo a Gramtica Cognitiva
(LANGACKER, 2008), essa transferncia de papis se d pelo no perfilamento da
fonte da energia na clusula, isto , do agente humano que faria a caspa
desaparecer com o uso de Clear. Desse modo, o instrumento eleito fonte de
energia, nico elemento disponvel a esse papel no escopo imediato.
No entanto, diferentemente do que se viu no exemplo de verbo de dois
argumentos, em que o instrumento-agentivo lexicalizado como sujeito o martelo
quebrou o copo , Com Clear apresenta uma estrutura adverbial, preposicionada.
No caso da orao o martelo quebrou o copo, interpretou-se o sintagma nominal o
martelo como sujeito gramatical e como agente, como bem aponta Langacker
(2008), sem que se tenha a um problema para as descries gramaticais vigentes.
O mesmo fato j no ocorre com o sintagma adverbial com Clear.
33 Entende-se que com Clear apresenta um instrumento de comportamento distinto do exemplo anterior: a chave abriu a porta. Nesse caso, embora se atribua o papel semntico instrumento ao adjunto adverbial com Clear, observa-se uma agentividade inerente aos produtos qumicos. Clear age sobre a caspa independentemente da ao humana. Enquanto a chave, no exemplo anterior, requer a conceptualizao de um agente, na medida em que a chave necessita de uma pessoa que a utilize como um instrumento, Clear age sobre a caspa independentemente da ao de um ente humano. A despeito dessa diferena, consideramos que, nesse exemplo, um ente humano tambm infervel como um agente primrio, na medida em que algum precisa fazer uso do produto.
45
Ao se entender que o adjunto adverbial de instrumento em anlise funciona,
na verdade, como agente, tem-se, a, uma construo diversa, no prototpica.
Nesse caso, deve-se ainda classificar essa expresso adverbial como instrumento
ou deve-se propor uma nova classificao para a categoria? Ademais, ao se
reconhecer que essa construo tem papel agentivo, deve-se analis-la, sob
critrios semnticos, ainda, como termo acessrio, e no argumento?
Em se tratando de uma tendncia pelo perfilamento do elemento mais
agentivo no escopo imediato da sentena, tambm justifica-se, baseando-se em
Langacker (2008), que o papel semntico arquetpico instrumento, na estrutura
conceptual humana, um dos provveis desencadeadores da transitivizao tanto
de desaparecer quanto de outros verbos inacusativos. Nesse sentido, encontrar-se-
ia a motivao cognitiva para alguns exemplos, como Normaderm some com
aquelas espinhas inconvenientes, em que um verbo prototipicamente intransitivo
apresenta-se em uma construo transitiva. Veja que, assim como no exemplo
anterior, h uma promoo do instrumento a sujeito, e o paciente da construo
original foi promovido posio de complemento, prototpica desse papel semntico.
1.3.4 O advrbio (e o adjunto adverbial) de causa e a propriedade semntica da
causao
Causa, sob o olhar da gramtica normativa tradicional, um valor (e no um
papel) semntico que remete ao verbo. Nessa perspectiva, ele est associado s
circunstncias, estruturalmente classe dos advrbios e dos adjuntos adverbiais.
Nas gramticas contemporneas de alta circulao nacional, pouco se trata
desse valor semntico. De modo geral, concorda-se que causa uma circunstncia
expressa, sobretudo, por locues adverbiais (morfologia) ou adjuntos adverbiais
(sintaxe).
difcil enumerar todos os tipos de ADJUNTOS ADVERBIAIS. Muitas vezes, s em face do texto se pode propor uma classificao exata. No obstante, convm conhecer os seguintes:
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(...) a) De causa: Por que lhes dais tanta dor? (A. Gil, LJ, 25)
No havia de perder o esforo daqueles anos todos, por causa de um exame s, o derradeiro. (C. dos Anjos, MS, 343).
(...) Cunha & Cintra (2001, p. 152)
As principais circunstncias expressas por advrbio ou locuo adverbial so: (...) 2) causa: Morrer de fome. (...)
Bechara (2004, p. 291)
Muito difcil seria relacionar todos os tipos de adjunto e complemento adverbial. Quantas vezes somente num caso concreto se consegue dar a denominao mais expressiva.