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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES
PÓS-GRADUAÇÃO DIREITO E PROCESSO PENAL
PROJETO A VEZ DO MESTRE
A COLISÃO DE DEVERES NO DIREITO PENAL
André Vinicius Coutinho da Silva
Orientador
Prof. Francis Rajzman
Rio de Janeiro
2010
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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES
PÓS-GRADUAÇÃO DIREITO E PROCESSO PENAL
PROJETO A VEZ DO MESTRE
A COLISÃO DE DEVERES NO DIREITO PENAL
Apresentação de monografia à Universidade
Candido Mendes como requisito parcial para
obtenção do grau de especialista em Direito e
Processo Penal
Por: André Vinícius Coutinho da Silva.
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AGRADECIMENTOS
...a minha querida namorada Marina
Damasceno pelo apoio e incentivo....
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DEDICATÓRIA
....dedico ao meu pai Manoel Faria C. da
Silva, pelo exemplo de luta e
perseverança.......
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RESUMO
O presente tem trabalho tem como finalidade tentar desvendar qual a
natureza jurídica da colisão de deveres para o Direito Penal.
O instituto é trabalhado de diferentes maneiras pela doutrina e, as
posições doutrinárias encontradas são totalmente divergentes. O tema é
estudado dentro do conceito analítico do crime, ou seja, é preciso entender a
estrutura do delito para que se tenha a noção exata do que se propõe.
Dessa maneira, é necessário que se tenha a precisa compreensão do
que significa o fato típico, a ilicitude e a culpabilidade. Somente à luz dessas
premissas é que se pode adentrar no tema em específico.
A colisão de deveres ocorre quando determinada pessoa se encontra
diante de dois deveres de conduta (mandamentos) que devem ser cumpridos
e, apenas um dos deveres poderá ser executado.
Nesse contexto, o agente ao fazer a escolha pelo cumprimento de um
dever deixará de cumprir o outro dever que lhe era imposto pela lei. Essa
impossibilidade acarretará na lesão de bens jurídicos protegidos pelo direito
penal. O exemplo clássico é o de um pai que diante de um incêndio só pode
salvar um dos seus filhos. Aí ficam as perguntas: qual a conseqüência jurídica
da morte de um de seus filhos? Por que ele escolheu determinado filho e não
outro? E, se no incêndio outra pessoa que não o seu filho estivesse em perigo?
A doutrina diverge sobre o tema. Há quem entenda que o fato é atípico,
outros entendem que o fato não é ilícito por excludente legal ou supralegal, e,
por fim, há quem sustente que é hipótese de causa supralegal de exclusão de
culpabilidade.
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METODOLOGIA
O estudo do tema foi realizado principalmente através de livros de
doutrina de Direito Penal. As respostas ao tema proposto só encontraram
amparo em livros que tem como finalidade um estudo mais aprofundado do
Direito Penal.
Assim, foi consultada doutrina de Portugal e também da Alemanha
(traduzida). Na doutrina nacional foi utilizada a leitura de livros que tratam da
teoria do crime em específico, assim como manuais que tratam os temas
convencionais de forma mais aprofundada.
Em sede de jurisprudência, a pesquisa permeou os tribunais de Portugal
e de Macau, em que o tema é tratado com maior freqüência, já que o instituto
está positivado no art. 36, nº 1, do Código Penal Português.
Para efeitos de exposição do conceito analítico de crime, a proposta foi
buscar sempre a posição majoritária sobre os temas, para que o texto não
ficasse cansativo com a perda inútil de tempo e espaço, explicando correntes
de pensamento que em nada alterariam o correto entendimento do instituto.
A explicação do tema propriamente dito foi feita através de exemplos,
que nada mais são que hipóteses em abstrato, e tem a finalidade de melhor
esclarecer o conteúdo da proposta e situar o leitor dentro do assunto.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 08
CAPÍTULO I - O Conceito Analítico de Crime 11
CAPÍTULO II - A Colisão de Deveres 20
CONCLUSÃO 38
ANEXOS 40
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 55
BIBLIOGRAFIA CITADA (opcional) 56
ÍNDICE 57
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INTRODUÇÃO
O tema em análise é uma das questões mais interessantes da parte
geral do direito penal. A colisão de deveres será analisada dentro da teoria
geral do delito, mais precisamente, dentro da estrutura analítica do crime.
A colisão de deveres se apresenta nas hipóteses em que determinado
sujeito se vê diante de dois deveres de conduta (mandamentos), e apenas um
dos dois poderá ser cumprido.
Assim, o agente ao fazer a escolha por cumprir um de seus deveres
impostos pela lei, automaticamente deixará de executar o outro dever que lhe
era imposto. A impossibilidade de cumprimento do mandamento legal irá afetar
bens jurídicos penalmente protegidos, que, em tese, podem configurar um fato
relevante para o direito penal.
O interessante é notar que o descumprimento do dever legal se dará
em situações fáticas que seria fisicamente impossível ao sujeito cumprir de
forma simultânea os deveres que lhe foram impostos pela lei. Assim, dentro
desse processo de escolha, diversas variáveis serão apresentas.
Os casos concretos são os mais diversos, como por exemplo: o pai que
diante de um desabamento deve fazer a escolha em salvar apenas um dos
filhos, o médico que só possui um determinado aparelho de salvamento e
diversos pacientes, o bombeiro que diante de uma tragédia deve escolher qual
das vítimas será salva e qual irá morrer.
Nesses casos, uma das pessoas que necessita de ajuda deve
necessariamente sair frustrada, haja vista que o potencial de salvamento não
basta para salvar todos os interesses.
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Então, fica a pergunta: Qual a conseqüência jurídica do
descumprimento do dever imposto?
A doutrina possui soluções técnicas divergentes sobre a matéria e a
resposta passa pela análise dos institutos que compõe o conceito estratificado
de crime.
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CAPÍTULO I
O CONCEITO ANALÍTICO DE CRIME
O estudo analítico do delito visa tornar mais fácil a verificação no caso
concreto da presença, ou ausência, de um crime. No presente trabalho será
feita uma análise do conteúdo do conceito de crime sob a ótica da doutrina
atualmente majoritária, que considera crime o fato típico, ilícito e culpável.
1.1 – Fato Típico:
O princípio da legalidade previsto no art. 1º do Código Penal, bem
como no inciso XXXIX do art. 5º da Constituição da República, é o mais
importante da Ciência Penal. É ele que confere legitimidade e segurança
jurídica dentro da perspectiva do Estado Democrático de Direito.
Consoante tal princípio, não haverá crime sem que exista uma lei o
definindo como tal. O princípio da legalidade gera quatro limites ao pode de
punir do Estado, que são: 1) Proibir a retroatividade da lei penal; 2) proibir a
criação de crimes e de penas pelos costumes; 3) proibir o emprego de analogia
para criar crimes; 4) proibir incriminações vagas e indeterminadas.
Nesse contexto, é que se insere o conceito de tipo penal. O fato típico
é um modelo, é a descrição de um comportamento humano. Tal definição, na
medida do possível, deve ser bem clara e precisa para que realize sua função
de individualização das condutas penalmente relevantes.
O fato típico tem como componentes uma conduta humana, dolosa ou
culposa, comissiva ou omissiva; pelo resultado; e também pelo nexo de
causalidade entre a conduta e o resultado. Além disso, é necessário que a
11 conduta se encaixe em um dos modelos abstratos previstos pela lei penal, que
é o tipo penal.
Uma vez reunidos todos esses fatores surgirá o fenômeno da
tipicidade, que nada mais é que a subsunção perfeita da conduta praticada
pelo agente ao modelo abstrato previsto na lei incriminadora. Essa adequação
entre o fato concreto praticado e moldura típica estampada pela lei é a
chamada tipicidade formal.
Com efeito, ao lado da tipicidade formal e existe a tipicidade material. O
conceito material do tipo passa pelo conhecimento das funções e finalidades do
direito penal. O direito penal dentro de um Estado democrático de direito é visto
como instrumento de proteção dos bens mais importantes da sociedade.
Dessa maneira, ele só atuará quando bens da maior importância como
a vida, a liberdade sexual, a honra dentre outros, sofrerem lesão. Assim, fatos
que não acarretem danos substâncias devem ser afastados da incidência do
direito penal (princípio da bagatela).
1.1.2 – Conduta:
O conceito de ação para o direito penal foi influenciado por algumas teorias, que são:
a) Sistema clássico, ou causal-naturalista (LISZT e BELING) – ação
como movimento humano voluntário, produtor de uma modificação no mundo
exterior – ação é, pois, o fato que repousa sobre a vontade humana, a
mudança do mundo exterior referível à vontade do homem. Sem ato de
vontade não há ação, não há injusto, não há crime. Mas também não há ação,
não há injusto, não há crime sem uma mudança operada no mundo exterior,
sem um resultado.
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Esse sistema sofreu fortes críticas, porque apesar de explicar o
conceito de ação em sentido estrito, não conseguiu solucionar o problema da
omissão.
b) Sistema neoclássico (Paz Aguado) – ainda dentro do causalismo,
ação é vista como um comportamento humano voluntário, manifestado no
mundo exterior. A ação deixa de ser absolutamente natural para estar inspirada
de certo sentido normativo que permita a compreensão tanto da ação em
sentido estrito (positiva) como a omissão (ação negativa).
c) Segundo uma concepção finalista (Welzel), a ação passa a ser
entendida como o exercício de uma atividade final. Ação é um comportamento
humano voluntário, dirigido a uma finalidade qualquer. O homem, quando age,
age dirigido a uma finalidade qualquer, que pode ser ilícita (movida por dolo) ou
lícita (mas praticada com imperícia, imprudência ou negligência, resultando em
culpa).
D) De acordo com uma concepção social da ação (Daniela de Freitas
Marques, Johannes Wessels), ação é toda atividade humana social e
juridicamente relevante, segundo padrões axiológicos de uma determinada
época, dominada ou dominável pela vontade.
A teoria finalista da ação (H. Welzel, 1931), que foi adotada entre nós
após a reforma do Código Penal em 1984, tornou o tipo que antes era
puramente objetivo para um tipo complexo, onde existem elementos objetivos e
subjetivos. Os elementos subjetivos que antes integravam a culpabilidade
passam a integrar o tipo.
Dolo segundo a teoria da vontade é a vontade livre e consciente de
praticar um fato (dolo direto), ou de assumir o risco de praticá-lo (dolo
eventual), de acordo com a teoria do assentimento, ambas adotadas em nosso
13 ordenamento. Ele envolve o “saber” (elemento cognitivo) e o “querer” (elemento
volitivo).
A culpa é exteriorizada através da imperícia, imprudência e
negligência. Os tipos culposos exigem a ocorrência de um resultado
naturalístico para que sejam penalmente relevantes.
A conduta pode se traduzir por meio de uma ação (conduta comissiva
ou positiva) ou de uma omissão (conduta omissiva ou negativa).
Enquanto nos crimes comissivos o agente direciona sua conduta a uma
finalidade ilícita, nos crimes omissivos há uma abstenção de uma atividade que
era imposta pela lei ao agente. A omissão, segundo René Ariel Dotti, é a
abstenção da atividade juridicamente exigida. Constitui uma atitude psicológica
e física de não-atendimento da ação esperada, que devia e podia ser praticada.
O conceito é, portanto, puramente normativo.
Os crimes omissivos podem ser próprios (puros ou simples) ou
impróprios (comissivos por omissão ou omissivos qualificados):
Os crimes omissivos próprios são objetivamente descritos no tipo com
uma conduta negativa, de não fazer o que a lei determina, consistindo a
omissão na transgressão da norma jurídica e não sendo necessário qualquer
resultado naturalístico (são, portanto, delitos formais). São delitos nos quais
existe o chamado dever genérico de proteção.
Já os crimes omissivos impróprios somente são praticados pelas
pessoas referidas no §2o do artigo 13, do CP, pois existe o chamado dever
especial de proteção. Nesses crimes, o agente deve encontrar-se numa
posição de garante ou garantidor, que pode ocorrer de três formas distintas:
A) Deve ter a obrigação legal de cuidado, proteção ou vigilância;
B) De outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado;
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C) Com o seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do
resultado.
Tendo como norte a concepção finalista da ação, esta será sempre
uma ação final, dirigida à produção de um resultado. Logo, se não houver
vontade dirigida à produção de um resultado qualquer, não haverá conduta.
Ocorre nos casos de:
a) força irresistível (seja proveniente da natureza ou da ação de
um terceiro);
b) movimentos reflexos (só excluem a conduta quando
absolutamente imprevisíveis);
c) estados de inconsciência.
No caso de crime praticado em embriaguez completa, esta só excluirá
a conduta se proveniente de caso fortuito ou de força maior. Caso provier de
embriaguez culposa ou dolosa, seja ou não com a intenção de praticar um
delito, prevalece a teoria da actio libera in causa, ou seja, tendo em vista que a
ação foi livre na causa, o agente deve ser responsabilizado pelos resultados
dela decorrentes.
A ação possui sempre duas fases: a interna e a externa. A interna
ocorre na esfera do pensamento, e percorre os seguintes pontos:
a) Representação e antecipação mental do resultado a ser alcançado;
b) Escolha dos meios a serem utilizados;
c) Consideração dos efeitos colaterais ou concomitantes à utilização
dos meios escolhidos.
Na fase externa o agente somente exterioriza tudo aquilo que havia
arquitetado mentalmente. O direito penal só dá relevância aos atos
exteriorizados pelo agente, ou seja, não se pune o pensamento ou conjecturas.
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Os elementos objetivos possuem a finalidade de descrever a ação e o
resultado, assim como a figura do autor. Eles se subdividem em elementos
descritivos e normativos.
Os elementos descritivos têm o escopo de precisar a conduta penal de
maneira simples e clara, já os elementos normativos são aqueles que precisam
de uma valoração por parte do intérprete, que será ética ou jurídica, por
exemplo, conceitos como “dignidade” e “logo após a provocação”.
A estrutura do tipo se decanta em quatro elementos, que são: núcleo,
sujeito passivo, sujeito ativo e objeto material.
O objeto material é o bem da vida protegido pelo Direito Penal, como a
vida, a honra, o patrimônio etc. O sujeito passivo é o titular do bem
juridicamente protegido, e, o sujeito ativo é a pessoa que pratica a conduta
descrita no tipo. Por fim, o núcleo do tipo que é o verbo que descreve a
conduta proibida.
1.1.3 – Relação de Causalidade:
A relação de causalidade é o elo que existe entre a conduta do agente
o resultado por ela produzido. Embora nem todos os delitos produzam um
resultado naturalístico, todos produzem um resultado jurídico, que pode ser
considerado como a lesão ou perigo de lesão ao bem juridicamente tutelado
pela lei penal.
Doutrinariamente são apontadas diversas teorias sobre o nexo de
causalidade. A teoria da causalidade adequada, teoria da equivalência dos
antecedentes causais, teoria da relevância jurídica.
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Nosso código penal adotou a teoria da equivalência dos antecedentes
causais, que considera causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não
teria ocorrido. Verifica-se se o fato antecedente é causa do resultado a partir
de uma eliminação hipotética. Se, suprimido mentalmente o fato, vier ocorrer
uma modificação no resultado, é sinal de que aquele é causa deste último.
A doutrina aponta uma falha na teoria adotada pelo nosso Estatuto
Repressivo, qual seja, se estivermos diante de fatos que, isoladamente, teriam
plenas condições de produzir o resultado, haveria uma causalidade cumulativa.
Welzel, propõe que, se existem várias condições das quais cabe fazer
abstração de modo alternativo, mas não conjuntamente, sem que deixe de
produzir-se o resultado, cada uma delas é causal para a produção do
resultado.
Essa crítica que é muito difundida entre os autores que propõe uma
teoria funcionalista do delito, é rebatida com o argumento de que as ações
praticadas na cadeia causal devem estar influenciadas pelo dolo de praticar o
delito.
1.1.4 – Resultado:
Conforme se sabe, existem crimes que produzem resultados
naturalísticos, denominados crimes materiais, e outros, que não produzem tais
resultados, que são chamados crimes formais ou de mera conduta.
Acontece que, embora nem todos os crimes produzam um resultado
naturalístico, todos produzem um resultado jurídico, que pode ser conceituado
como a lesão ou perigo de lesão ao bem juridicamente tutelado pela lei penal.
1.1.5 – A omissão como causa do resultado:
17 Para o Código, considera-se causa tanto a conduta positiva (ação)
quanto a conduta negativa (omissão), com a ressalva de que, nesta, deve estar
presente o dever jurídico de evitar, ou pelo menos tentar evitar, o resultado
lesivo.
Os crimes omissivos podem-se dividir em crimes omissivos próprios,
puros ou simples e em crimes omissivos impróprios ou comissivos por
omissão, ou omissivos qualificados (Jescheck).
Os crimes omissivos próprios são os objetivamente descritos com uma
conduta negativa, de não fazer o que a lei determina, consistindo a omissão na
transgressão da norma jurídica e não sendo necessário qualquer resultado
naturalístico. Para a existência do crime, basta que o autor se omita quando
deve agir.
Já os crimes omissivos impróprios são aqueles que, para sua
configuração, é preciso que o agente possua um dever de agir para evitar o
resultado. Esse dever de agir não é atribuído a qualquer pessoa, mas apenas
àquelas que assumem o status de garantidoras da não-ocorrência do resultado
lesivo. O §2o, do artigo 13, do CP, esclarece as situações em que surge a
posição de garante:
“§ 2º. A omissão é penalmente relevante quando o
omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O
dever de agir incumbe a quem:
a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou
vigilância;
b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir
o resultado;
c) com seu comportamento anterior, criou o risco da
ocorrência do resultado.” (Código Penal Brasileiro)
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Daí podemos perceber que o Código adotou o critério das fontes formais
do dever de garantidor, pois somente nessas hipóteses contempladas na lei
surgirá o dever. Ao contrário, a teoria das funções, de Armin Kaufmann,
defendia a idéia de que garantidor seria aquele que tem relações estreitas com
a vítima, independentemente de vínculo legal entre eles.
A diferença básica entre as duas espécies está no fato que, nos
omissivos próprios, o legislador descreve claramente a conduta imposta ao
agente. Assim, caso ele se abstenha de praticá-la, ele poderá ter cometido, por
exemplo, os delitos de omissão de socorro, abandono material, abandono
intelectual, omissão de notificação de doença, prevaricação.
Nos omissivos impróprios, não há descrição alguma, são eles tipos
abertos. O julgador deve elaborar um trabalho de adequação, averiguando a
existência da posição de garantidor e a sua real possibilidade de agir.
Nos delitos omissivos impróprios exige-se a produção do resultado
naturalístico, tendo em vista que ele corresponde à realização do tipo legal
mediante uma ação ativa.
A relevância na omissão de acordo com o art. 13, § 2º,do Código Penal,
deve passar pela análise do fato se o sujeito podia e devia agir para evitar a
produção do resultado.
Assim, não basta que o sujeito esteja na posição de garantidor, que
possua o dever jurídico de agir para evitar o resultado. Deve também poder
agir fisicamente nesse sentido. A impossibilidade física afasta a
responsabilidade penal do garantidor.
19 A posição de garantidor, consoante art.13, § 2º, do Código Penal, surge
nas seguintes hipóteses:
1) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; é a
chamada obrigação legal, que deriva da lei, como a dos pais em relação aos
filhos (art. 1.634, do Código Civil Brasileiro), a do salva-vidas (art. 144, V, da
Constituição da República).
2) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; a
lei, nessa alínea, dispôs de forma a alcançar o maior número de situações em
que haja assunção do dever de impedir o resultado danoso, seja pela forma
contratual ou não. Assim, tanto a babá, que assume a responsabilidade de
impedir o resultado por meio de contrato de trabalho quanto o terceiro, que
assume responsabilidade independentemente de contrário, responderão pelo
dano eventualmente experimentado.
3) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do
resultado; aquele que criou o risco para o bem jurídico de terceiro está
obrigado a agir para impedir que o perigo se converta em dano, sob pena de
responder pelo resultado típico, como se o tivesse causado por via comissiva.
1.2.1 – IIicitude:
A ilicitude, ou antijuridicidade, é a relação de antagonismo, de
contrariedade entre a conduta do agente e o ordenamento jurídico. Se essa
contrariedade do fato se fizer em relação a uma norma de matéria penal,
tornar-se-á uma ilicitude penal. Mas ilicitude não é só essa contrariedade pura
e simples com uma norma que lhe é anterior. Essa é uma concepção
meramente formal.
20 Há casos no ordenamento jurídico em que a ilicitude não é
necessariamente típica, havendo casos em que o ato, embora ilícito, é atípico.
O exemplo dado pela doutrina é o da “agressão injusta” exigida para que se
justifique a legítima defesa. A agressão que autoriza a reação defensiva não
precisa necessariamente constituir um crime, não precisa ser um ilícito penal,
desde que seja um ato ilícito. O que não se admite é a legítima defesa contra
atos lícitos.
De acordo com a teoria da ratio cognoscendi, que prevalece entre os
doutrinadores, a tipicidade funciona como indício da ilicitude. Quase sempre o
fato típico será também antijurídico, só se concluindo pela licitude se o agente
agir amparado por uma causa de justificação.
Por outro lado, a teoria da ratio essendi, que prevê um tipo total de
injusto, onde há uma fusão entre o fato típico e a ilicitude, a ausência desta nos
levaria a concluir pela inexistência do próprio fato típico.
O Código Penal no art. 23 prevê quatro modalidades diferentes de
exclusão de ilicitude, que são: a legítima defesa, o estado de necessidade, o
exercício regular de direito e o estrito cumprimento do dever legal. O rol do art.
23 não é taxativo, haja vista que existem excludentes de ilicitude previstas na
parte especial, como é o caso do art. 128 e 146 § 3º do Código Penal.
A doutrina majoritária aponta o consentimento do ofendido como uma
causa supralegal de exclusão de ilicitude.
1.2.2 – Estado de Necessidade:
O estado de necessidade está previsto no art. 24 do Código Penal.
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“Art. 24. Considera-se em estado de
necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo
atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de
outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício,
nas circunstâncias, não era razoável exigir-se.”
De forma diferente do que ocorre na legítima defesa, em que o agente
atua em defesa contra uma agressão injusta, no estado de necessidade a regra
é de que ambos os bens estejam em perigo e também estejam ambos
amparados pelo ordenamento jurídico. Esse conflito levará à prevalência de um
sobre o outro.
Para a verificação da prevalência de um ou de outro bem jurídico, utiliza-
se do princípio da ponderação de bens.
Há na doutrina duas teorias sobre o estado de necessidade, a teoria
unitária e a teoria diferenciadora.
Para a teoria unitária, adotada pelo Código Penal, não importa se o bem
protegido pelo agente é de valor superior ou igual àquele que está sofrendo a
ofensa, uma vez que em ambas as situações o fato será tratado sob a ótica
das causas excludentes da ilicitude. Para essa teoria, todo estado de
necessidade é justificante, e não exculpante.
Já a teoria diferenciadora distingue o estado de necessidade justificante
(afasta a ilicitude) e o estado de necessidade exculpante (afasta a
culpabilidade). O Código Penal Militar adotou a teoria diferenciadora nos
artigos 39 a 43.
O princípio da razoabilidade norteia o estado de necessidade. Aqui fica
clara a necessidade da ponderação dos bens em conflito para se estabelecer
uma relação de importância entre eles.
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Embora o Código Penal tenha adotado a teoria unitária (todo estado de
necessidade é justificante), o princípio da razoabilidade nos permite concluir
que quando o bem sacrificado for de valor superior ao preservado, será
inadmissível o reconhecimento do estado de necessidade. Pode haver,
contudo, se as circunstâncias o indicarem, a inexigibilidade e conduta diversa,
que exclui a culpabilidade.
O legislador permite, caso não seja possível beneficiar o agente com o
afastamento da culpabilidade, aplicar-lhe uma redução de pena, nos termos do
artigo 24, §2o, do Código Penal.
O art. 24, § 1º do Código Penal disciplina que não pode alegar estado de
necessidade o sujeito que possui o dever legal de enfrentar o perigo. Trata-
sede uma norma penal explicativa. A finalidade é afastar da proteção do estado
de necessidade, profissões como a de bombeiro, policial e salva-vidas.
Acontece que, obviamente, não se pode exigir que um bombeiro
sacrifique a própria vida para salvar um objeto de natureza patrimonial, da
mesma forma que não se pode negar que um marinheiro se salve sacrificando
uma certa mercadoria. Portanto, não se quer dizer com o disposto no parágrafo
primeiro que o estado de necessidade não será reconhecido sob qualquer
circunstância. Quando houver uma grande desproporção entre a importância
do bem sacrificado e do bem defendido é perfeitamente possível incidir a
excludente de ilicitude.
1.2.3 – Legítima Defesa:
A natureza do instituto da legitima defesa é constituída pela
possibilidade de reação direta do agredido em defesa de um interesse, dada a
23 impossibilidade da intervenção tempestiva do Estado, o qual tem igualmente
por fim que interesses dignos de tutela não sejam lesados.
A legítima defesa tem aplicação na proteção de qualquer bem
juridicamente tutelado pela lei. Alguns autores afirmam que os bens jurídicos
comunitários não podem ser objeto de legítima defesa.
O art. 25 do Código Penal traz como requisito da legítima defesa que, o
agente usando moderadamente dos meios necessários pode repelir agressão
injusta atual ou iminente de direito seu ou de outrem.
Agressão será injusta, quando for uma ameaça humana de lesão de um
interesse juridicamente protegido. Mas não basta que haja uma agressão para
justificar a legítima defesa. Tal agressão deve ser também injusta, ou seja, não
pode ser de qualquer modo amparada por nosso ordenamento jurídico.
Não é preciso que a conduta praticada seja um crime para que possa
ser reputada como injusta. Ex.: furto de uso, defesa de bem de valor irrisório.
A injusta agressão não se confunde com uma mera provocação. Aquele
que reage a uma simples provocação deve responder por sua conduta, não
estando amparado pela legítima defesa.
Para Francisco de Assis Toledo, embora a agressão possa ser uma
provocação (tapa, empurrão), nem toda provocação constitui uma agressão. A
defesa contra uma provocação não deve ultrapassar o mesmo nível e grau da
mesma. Uma provocação verbal pode ser razoavelmente repelida com
expressões verbais, e não como um tiro, uma facada.
Os meios necessários são aqueles eficazes e suficientes à repulsa da
agressão que está sendo praticada ou que está prestes a ocorrer. Embora
alguns autores definam meio necessário como sendo o que a vítima dispõe no
24 momento da agressão, podendo ou não ser proporcional ao ataque, o autor
discorda do posicionamento, entendendo que a proporcionalidade do contra-
ataque é essencial para a configuração da necessidade do meio.
Se o agente tiver à sua disposição vários meios aptos a ocasionar a
repulsa à agressão, deverá sempre optar pelo meio menos gravoso, sob pena
de ser considerado desnecessário, afastando a legítima defesa.
Além de eleger o meio necessário a repulsa da agressão, o agente deve
utilizá-lo de forma moderada, sob pena de incorrer no chamado excesso. Não
se pode tomar como critério para a averiguação da moderação do meio a
simples quantidade de golpes, ou de tiros, ou seja, lá do que se tratar. Pode
ocorrer, por exemplo, de o agressor, ainda que levando 5 tiros, continue
caminhando em direção ao ofendido, e só venha a parar com o disparo do 6o
tiro. Nesse caso, não se pode dizer que houve excesso.
É preciso, portanto, que haja um marco, qual seja, o momento em que o
agente consegue fazer cessara a agressão que contra ele era praticada. Tudo
o que fizer após esse marco será considerado excesso.
Entende-se por agressão iminente aquela que, embora não esteja
acontecendo, irá acontecer quase que imediatamente. Deve haver uma relação
de proximidade. Se a agressão é remota, futura, não se pode falar em legítima
defesa. Se o agente age para repelir agressão que, embora não seja iminente,
é certa e futura, age não amparado pela justificante legítima defesa, mas pela
exculpante de inexigibilidade de conduta diversa
O agente pode defender direito próprio (legítima defesa própria) ou
direito de terceiro (legítima defesa de terceiros).
Aqui, destaca-se o elemento subjetivo da legítima defesa. O agente deve
agir querendo defender direito de terceiro. Se o sujeito mata seu desafeto
25 sabendo que este estava prestes a matar outrem, não pode ser beneficiado
pela justificante se a intenção real era pôr fim ao desafeto, e não defender o
terceiro.
Não cabe, ainda, a defesa de terceiros quando o bem for considerado
disponível. Neste caso, o agente só poderá intervir para defender o bem caso
haja autorização do seu titular. Caso contrário, sua intervenção será
considerada ilegítima.
A legítima defesa pode gerar situações em que o agente atue com
excesso na repulsa à agressão injusta que lhe foi proferida. Antes da reforma
de 1984, a figura do excesso só era cabível no caso da legítima defesa. Após a
reforma, todas as causas excludentes da ilicitude (art. 23) passaram a admitir a
figura.
No excesso, o agente, primeiramente, agia amparado por uma causa de
justificação, ultrapassando, contudo, o limite permitido pela lei. Toda conduta
praticada em excesso é ilícita, devendo o agente responder pelos resultados
dela advindos.
O excesso pode ser doloso ou culposo, será doloso quando o agente,
mesmo após fazer cessar a agressão, continua o ataque porque quer causar
mais lesões ou mesmo a morte do agressor inicial (excesso doloso em sentido
estrito); ou quando o agente, mesmo após fazer cessar a agressão que era
praticada contra sua pessoa, pelo fato de ter sido agredido inicialmente, em
virtude de erro de proibição indireto (erro sobre os limites de uma causa de
justificação), acredita que possa ir até o fim, matando o seu agressor, por
exemplo.
Já o excesso culposo ocorre quando o agente, ao avaliar mal a situação
que o envolvia, acredita que ainda está sendo ou poderá vir a ser agredido e,
em virtude disso, dá continuidade a repulsa, hipótese na qual será aplicada a
26 regra do artigo 20, §1o, do Código Penal; ou também na hipótese em que o
agente, em virtude da má avaliação dos fatos e da sua negligência no que diz
respeito à aferição das circunstâncias que o cercavam, excede-se em virtude
de um erro de cálculo quanto à gravidade do perigo ou quanto ao modo da
reação.
A doutrina menciona também a hipótese do excesso exculpante. Essa
modalidade de excesso ocorre quando a reação defensiva é fruto de uma
perturbação de ânimo, surpresa, medo, ou seja, situações fáticas que façam
que o sujeito não tenha o adequado domínio de suas emoções
No excesso exculpante elimina-se a culpa do agente. A conduta é típica,
ilícita, mas não é culpável, pois não se poderia exigir do agente outra conduta
que não aquela por ele adotada.
Esse tipo de excesso estava previsto na redação de 1969 do CP, mas
não foi previsto após a reforma de 84. Assim, Doutrina e Jurisprudência vêm
tratando do mesmo como causa supralegal de exclusão de culpabilidade..
1.2.4 – Estrito Cumprimento do Dever Legal:
O estrito cumprimento do dever legal como excludente de ilicitude
também exige a presença dos elementos objetivos e subjetivos.
É necessário que exista um dever legal a ser cumprido pelo agente. De
acordo com a doutrina o dever legal é aquele imposto pela lei aos agentes
públicos no cumprimento do seu dever de ofício. O cumprimento desse
dever deve ser feito nos limites da lei, sob pena da prática de um ilícito.
27 Assim, o policial não pode, na situação em que ocorre fuga de presos,
atirar contra os mesmos no intuito de matá-los sob o fundamento de que
cumpre o dever legal de evitar a fuga dos prisioneiros.
Em algumas situações o dever legal não é imposto somente aos agentes
administrativos. O Código Civil Brasileiro, por exemplo, diz em seu artigo
1.634, que é dever dos pais darem educação e criação aos filhos.
1.2.5 – Exercício Regular de Direito:
Essa causa de justificação prevista na segunda parte do art. 23, III, do
Código Penal, não foi conceituada pelo legislador. O seu conceito e limites
ficaram a cargo da doutrina e dos tribunais.
Os seus requisitos, porém, são extraídos da interpretação da expressão
“exercício regular de direito”. Esse direito pode surgir de situações
expressas nas regulamentações legais em sentido amplo, ou até mesmo
dos costumes.
Para uma parcela da doutrina, a correção aplicada pelos pais a seus
filhos menores encontra amparo nessa causa de exclusão de ilicitude, bem
como as práticas esportivas violentas, desde que os atletas permaneçam
nas regras previstas para aquela determinada modalidade.
O limite do ilícito, tem início quando começa o abuso, já que o direito
deixa de ser exercido regularmente e passa a ser exercido de maneira ilícita.
1.3.0 – Culpabilidade:
Culpabilidade é o juízo de reprovação pessoal que se realiza sobre a
conduta típica e ilícita (injusto penal ) praticado pelo agente. O conceito de
28 culpabilidade para o direito penal passou por um processo evolutivo até chegar
ao estágio atual.
Para o sistema causal-naturalista de Liszt-Beling o delito possuía dois
aspectos bem definidos: um interno e outro externo. O externo compreendia a
ação típica e antijurídica. O interno dizia respeito à culpabilidade que era o
vínculo psicológico que unia o agente à conduta.
A ação era vista como um movimento humano voluntário que causava
uma modificação no mundo exterior. No conceito de ação estava embutido,
também, o de resultado. Não há ação sem vontade, e não há ação sem
resultado. Portanto, dois elementos compunham a ação: ato de vontade e
resultado.
O tipo possuía a função de descrever objetivamente as condutas,
descrevendo, ainda, o resultado.
A antijuridicidade em conjunto com a ação típica, compunha o injusto
penal. A ilicitude limitava-se à comprovação de que a conduta do agente
contrariava a lei penal. Não se perquiria sobre o elemento subjetivo do agente,
pois a antijuridicidade possuía somente elementos objetivos. As causas de
exclusão da ilicitude também eram analisadas objetivamente.
Para a teoria causalista da ação, dolo e culpa residiam na culpabilidade.
A imputabilidade era pressuposto da culpabilidade. Antes de se analisar o dolo
e a culpa, primeiro dever-se-ia avaliar se o agente é ou não imputável. A
culpabilidade era o vínculo psicológico que ligava o agente ao fato ilícito por ele
cometido, razão pela qual essa teoria passou a ser conhecida como uma teoria
psicológica da culpabilidade. Posteriormente, recebeu a denominação de
sistema clássico.
29 Esse sistema era muito criticado por não explicar os delitos omissos e
também não elucidava a problemática da culpa inconsciente.
Posteriormente, surgiu a teoria normativa também chamada de sistema
neoclássico. Para essa teoria a ação deixa de ser essencialmente natural
para estar inspirada em um certo sentido normativo que permita a
compreensão tanto da ação em sentido estrito (positiva) como da omissão.
Ao tipo penal acrescentaram-se elementos normativos, que deixou de
ser um elemento meramente descritivo, e de elementos subjetivos que
deviam ser incluídos no tipo (ânimo de injuriar etc.). A ilicitude deixou de ter
somente caráter formal e passou a ter também conteúdo de desvalor
material, representado pela danosidade social.
A culpabilidade deixa de ser eminentemente psicológica e passa a ser
também normativa. A base do sistema passa a ser a reprovabilidade como
juízo de desaprovação jurídica do ato que recai sobre o autor (exigibilidade
da conduta conforme o direito).
A culpabilidade passa a ser composta por: A) Imputabilidade; B)
exigibilidade de conduta conforme ao direito; C) dolo e culpa.
A teoria normativa ficou reconhecida como teoria psicológico-normativa,
pois, aos elementos subjetivos, que eram tidos como espécies de
culpabilidade, agregaram-se outros, que possuíam uma natureza normativa.
A teoria normativa ou neoclássica é considerada uma evolução teórica no
sistema causal.
Nesse contexto evolutivo, por fim, veio a lume a teoria finalista da ação
em 1931, com a publicação da obra “Causalidade e ação”, de Hans Welzel.
30 Para essa teoria, a ação humana é essencialmente final. O homem pode
prever, dentro de certos limites, as conseqüências possíveis de sua
atividade, estabelecendo fins diversos e dirigir sua atividade, conforme o seu
plano, a consecução desses fins.
Essa teoria parte do pressuposto de que, toda conduta humana – lícita
ou ilícita – pressupõe uma finalidade, o dolo e a culpa não poderiam
continuar a ser estudados em sede de culpabilidade. O dolo migra para o
tipo penal, afastando-se da sua carga de normatividade (consciência sobre a
ilicitude do fato). Por isso, diz-se que o dolo finalista é um dolo natural. O
tipo penal, portanto, passa a ser um tipo complexo, composto por elementos
de ordem objetiva e subjetiva (dolo e culpa).
A antijuridicidade por ser um predicado da ação típica, passou a vir
impregnada de elementos subjetivos. O injusto típico ou injusto penal
(tipicidade + antijuridicidade) passou a ser composto por elementos de
ordem objetiva e subjetiva.
Da culpabilidade foi extraído o dolo e a culpa. O dolo deixa de ser
normativo e passa a ser natural. Permaneceu na culpabilidade o potencial
conhecimento sobre a ilicitude do fato (extraído do dolo), juntamente com a
imputabilidade e a exigibilidade de conduta diversa.
Dessa maneira, a culpabilidade passa a ser composta pelos seguintes
elementos: A) Imputabilidade; B) Potencial consciência da ilicitude; C)
Exigibilidade de conduta adversa.
Assim, a culpabilidade passa ser composta apenas por elementos
normativos, por isso, a teoria final ficou conhecida como teoria normativa
pura.
31
CAPÍTULO II
A COLISÃO DE DEVERES
O instituto da colisão de deveres não recebe um tratamento destacado
da doutrina nacional. Em países como Portugal e Alemanha o tema é fruto
de diversos estudos jurídicos. Tal fenômeno jurídico se descortina através
de um estudo de casos, em que as soluções variam de acordo com os bens
jurídicos em conflito.
Se sobre um sujeito recaem dois deveres de conduta (mandamentos),
dos quais apenas um pode ser cumprido não haverá dificuldade em
solucionar o caso se o interesse preservado por meio do adimplemento do
dever preponderar substancialmente sobre o direito lesionado.
Contudo, se a preponderância for mínima e, com mais relevância, se a
importância for a mesma, faltará uma alternativa de comportamento lícita.
Pode-se ter como exemplo os seguintes casos: dois policiais baleados em
uma incursão a uma favela dão entrada em um pronto socorro com lesões
fatais, e só existe possibilidade de salvar a vida de um policial; em um
incêndio em casa em que o pai de duas crianças somente consegue salvar
uma delas.
Nessas hipóteses, um dos sujeitos que necessitava de ajuda
necessariamente sairá frustrado, visto que o potencial de salvamento não é
suficiente para resguardar todos os interesses. Com muita razão, a vítima
que foi negligenciada sairá frustrada, já que foi negligenciada sem que
houvesse um interesse preponderante. Essa frustração somente pode
referir-se à escolha feita pelo agente, não à circunstância de ela não ter sido
salva adicionalmente, pois faltava a capacidade de atuar para salvar todos.
32
Contudo, quanto à escolha entre deveres iguais, não existe qualquer
princípio juridicamente vinculante. A frustração da vítima refere-se a
expectativas que não são juridicamente asseguradas. Logo, o agente tem
livre escolha e não atua ilicitamente.
Se os deveres jurídicos tiverem o mesmo valor, a doutrina diverge
quanto a solução adequada.
A doutrina dominante em Portugal sustenta que será hipótese de
exclusão de ilicitude, é a opinião de Jorge de Figueiredo Dias, Eduardo
Correia dentre outros. Tal conclusão surge do fato de que em Portugal existe
previsão específica no Código Penal Português, vide artigo 36, nº 1, abaixo
exposto:
Artigo 36º
Conflito de deveres
1 – “Não é ilícito o facto de quem, em caso de conflito no
cumprimento de deveres jurídicos ou de ordens
legítimas de autoridade, satisfizer dever ou ordem de
valor igual ou superior ao do dever ou ordem que
sacrificar.”(Código penal de Portugal)
Assim, em Portugal o conflito de deveres é justificante, mas para tanto é
necessário que os bens jurídicos em colisão sejam iguais. Se os bens
jurídicos em conflito forem de valor diferente, ou seja, um superior ao outro a
hipótese será de estado de necessidade, art. 34 do Cód. Penal Português.
A solução dada pela doutrina majoritária na Alemanha é diferente.
Consoante os ensinamentos de Günter Jakobs, Claus Roxin dentre outros, a
hipótese seria de causa supralegal de exclusão de ilicitude.
33
Para G. Jakobs, não se trata de um problema de tipo (do conceito de
ação ou omissão), mas sim da justificação ou eximência. É que o tipo
somente se refere ao bem individualmente considerado, e este o agente
sempre pode preservar, negligenciando outros bens. O saldo total de bens,
que o agente, nos casos de colisão de deveres (como no próprio estado de
necessidade), não pode maximizar até (incluir) na soma de todos os bens,
somente é levado em consideração no plano da justificação.
Vale ressaltar que, o problema também pode ser construído quando são
diferentes os obrigados. Exemplo: dois médicos somente podem realizar
uma cirurgia conjuntamente, cada qual é garantidor relativamente a outro
paciente pela assunção do tratamento que, em cada caso, é inadiável.
Para G. Jakobs, se os deveres concorrentes são do mesmo tipo, mas
não tem a mesma importância (v.g., uma posição de garantidor de proteção
da vida frente à outra, de proteção de coisas), prevalece o dever mais
importante, por mais ínfima que seja a diferença. Os deveres de
preservação da vida têm o mesmo valor, diferentemente dos deveres
relativos a bens qualificáveis (bens materiais).
Nesse contexto, em caso de concurso entre deveres de tipos diferentes,
prevalece o dever do garantidor. Exemplo: em um acidente de carro, um pai
precisa salvar primeiro o seu filho de um perigo de vida, antes de salvar
terceiros. Por outro lado, deve-se decidir diferente quando o interesse não
assegurado pela posição de garantidor prepondera essencialmente.
Exemplo: o garantidor do bem estar de um animal estará justificado se não
puder cumprir seu dever por ter que cuidar do bem estar de uma pessoa,
pois ao dever mais gravoso (proteção de um bem jurídico mais importante)
corresponde o injusto mais grave e vice-versa.
34 Com efeito, na hipótese do agente não cumprir nenhum dos seus
deveres, responderá apenas pelo não cumprimento daqueles que deveria ter
cumprido; se puder escolher, responderá pelo injusto menos grave, pois ao
menos este poderia ter sido evitado, se ele tivesse obedecido ao direito.
De acordo com G. Jakobs, quando coincidirem um dever de conduta
(mandamento) e um dever de omissão (proibição), este último prevalece,
pois ao titular do interesse favorecido pelo dever de conduta não pode exigir
uma tolerância da conduta interventora que o beneficia até que, segundo os
princípios gerais, deixe de existir o dever de omissão (a proibição). Ou seja,
somente quando a vítima da intervenção, segundo os princípios gerais, tem
o dever de tolerar é que o mandamento se concretiza, de fato, em dever.
Exemplo: um garantidor que, em uma situação de perigo, somente pode
preservar a vida de seu protegido matando um terceiro envolvido somente
se comporta licitamente quando omite a conduta.
No Brasil, a doutrina que se ocupa do tema possui entendimento
diametralmente oposto aos acima expostos.
Juarez Cirino dos Santos argumenta que o conflito de deveres deve ser
tratado em sede culpabilidade, mais precisamente, como uma causa
supralegal de exculpação. O autor ilustra sua tese com o exemplo clássico
do da eutanásia de doentes mentais durante o regime nazista. Nesse caso,
houve o sacrifício de uma minoria selecionada de doentes mentais graves
para salvar a maioria dos doentes mentais, porque a recusa radical de
cumprir a ordem superior determinaria a morte de todos por médicos
substitutos fiéis ao regime.
Segundo o autor, o argumento da escolha mal menor pode fundamentar
igualmente a justificação do estado de necessidade e a exculpação
supralegal do conflito de deveres: no primeiro caso, se a lei não pode proibir
a redução de um mal maior , então a ação dos médicos seria justificada pelo
35 estado de necessidade; no segundo caso, se qualquer pessoa no lugar dos
médicos escolheria o mal menor, então a ação dos autores teria ocorrido em
situação de exculpação supralegal por conflito de deveres.
O autor ainda traz exemplos mais polêmicos, como a hipótese em que
um funcionário para evitar a colisão de um trem de passageiros, que
acarretará a morte de muitos, desvia trem de carga desgovernado para trilho
diferente, causando a morte certa de alguns trabalhadores; ou o caso do
médico que substitui paciente com menores chances de sobrevivência por
paciente com maiores chances de sobrevivência em máquina de
circulação/respiração artificial.
Nesses casos, a escolha do mal menor constituiria situação de
exculpação (para opinião dominante), já que qualquer agiria igual ao autor,
então seria inexigível conduta diversa; entretanto há quem considere
indesculpável corrigir o destino com vitimização de inocentes, porque o
sentimento de segurança jurídica da sociedade supõe a confiança na
proteção do direito contra lesão à vida e ao corpo de inocentes ou de
terceiros estranhos ao perigo.
Alguns casos apresentados são mais contemporâneos e possuem uma
possibilidade fática de incidência maior, como o das pessoas que vivem em
condições sociais adversas. É o caso de trabalhadores que vivem sob uma
condição marginalizada de trabalho, especialmente por efeito de políticas
econômicas recessivas das áreas periféricas, impostas por grupos e
interesses hegemônicos da globalização capital ou casos de desastres
naturais como ocorre atualmente no Haiti.
Nesse contexto, as pessoas são constrangidas a romper vínculos
normativos comunitários (ou seja, deveres jurídicos de ação ou omissão
proibidos) para preservarem valores concretamente superiores, como o
dever jurídico de garantir a vida, saúde, moradia, alimentação. Para tanto,
36 começam a praticar delitos patrimoniais com a finalidade de impedir à
desintegração da família, a pivetização dos filhos, a prostituição das filhas
etc.
Dessa maneira, as condições adversas de existência social deixam de
ser transitórias e passam a ser contínuas da vida de massas
miserabilizadas, então o crime passa a ser uma resposta normal de sujeitos
que vivem em uma situação social anormal. Assim, os critérios normais de
valoração do comportamento individual devem mudar, utilizando pautas
excepcionais de inexigibilidade para fundamentar hipóteses supralegais de
exculpação por conflito de deveres, porque, afinal, o direito é a regra da
vida. O ser humano rege contra a violência da estrutura econômica da
sociedade, instituída pelo direito e garantida pelo poder do Estado, utilizando
a única alternativa real de sobrevivência animal disponível, a violência
individual.
Para o autor, a uma interpretação mais extensiva do conceito de
inexigibilidade com a finalidade de adequar as condições reais de vida do
povo parece alternativa capaz de contribuir para a democratização do Direito
Penal, reduzindo a injusta criminalização de sujeitos penalizados pelas
condições de vida social. Dessa maneira, direito justo é direito desigual,
porque considera desigualmente sujeitos concretamente desiguais.
Divergindo de Juarez Cirino, o festejado mestre Eugênio Raúl Zaffaroni e
José Henrique Pierangeli, sustentam que a colisão de deveres não deve ser
tratada em sede de culpabilidade e, sim, em sede de tipicidade.
Os autores sustentam que na maioria dos casos sempre haverá um
dever preponderante, exemplo: guardar um segredo médico ou evitar uma
epidemia. E, para as hipóteses em que houver dúvida entre qual dever deve
preponderar sobre o outro, o caso deve ser considerado como erro de
37 proibição, se o sujeito escolher pelo dever que não é o preponderante no
caso concreto.
Aduz, ainda, como argumento prático, o fato de que se para a doutrina já
é difícil decidir qual o interesse preponderante, no caso concreto, quiçá para
o leigo que diante de uma verdadeira encruzilhada não consiga resolver
adequadamente.
Para esses autores, ainda nas hipóteses em que os deveres jurídicos
sejam de igual hierarquia, na qual não haveria alternativa para o sujeito,
senão a prática de uma conduta ilícita, como no exemplo já citado em que
um pai deve escolher qual filho salvar diante de um naufrágio ou incêndio,
não seria correto afirmar que houve uma excludente de ilicitude (legal ou
supralegal), como também uma causa de exculpação supralegal.
Com efeito, para essa doutrina, trata-se de mais um caso de atipicidade,
porque o pai só pode salvar um dos filhos. Assim, não poderá haver omissão
quanto ao outro filho negligenciado. Isso porque, a tipicidade omissiva
requer uma possibilidade física, que no exemplo não ocorre. O dever jurídico
do pai diante do incêndio ou naufrágio será salvar qualquer um dos filhos, e
nada mais, porque mais lhe é impossível.
CONCLUSÃO
38 O conflito de deveres, malgrado não ser objeto de estudo da maioria dos
livros de Direito Penal no prelo, passa longe de ser um tema puramente teórico,
em que as argumentações e teses nunca sairão do debate acadêmico. Pelo
contrário, as situações fáticas apresentadas nos exemplos mencionados
acontecem no dia a dia.
Dessa maneira, deve-se perquirir qual a verdadeira natureza jurídica do
instituto. Como visto não se trata de ponto pacífico na doutrina estrangeira e
nacional.
Os diferentes pensamentos expostos pela doutrina é fruto da
complexidade do tema, que envolve praticamente todos os elementos do
conceito analítico de crime.
Com efeito, em que pese todos os brilhantes argumentos de autores
como Jorge de F. Dias, que é um expoente da doutrina portuguesa,
sustentando que o tema deve ser resolvido em sede de excludente de ilicitude.
Bem como, a opinião de G. Jakobs que trata a matéria como causa supralegal
de exclusão de ilicitude. E, ainda, no Brasil, Juarez Cirino do Santos que,
estuda o tema como uma excludente supralegal de culpabilidade.
É certo que a melhor opinião parece estar com Eugênio Raúl Zaffaroni e
José Henrique Pierangeli, que, com acerto, cuidam do tema em sede de
tipicidade, explicando o tema em conjunto com a natureza dos crimes
omissivos (próprios e impróprios).
Sendo assim, face ao exposto, dentro do panorama atual do direito
Penal Brasileiro, a colisão de deveres deve ser vista como uma forma de
exclusão de tipicidade da conduta, por ser uma solução mais técnica e, ainda,
por evitar que o intérprete tenha que percorrer todos os elementos que
compõem o conceito analítico do delito.
39
ANEXOS
40
Índice de anexos
Anexo 1 >> Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça de Macau; Anexo 2 >> Jurisprudência do Tribunal da Relação de Coimbra.
ANEXO 1
JURISPRUDÊNCIA DE MACAU
Acórdão de 16/4/97
41
Processo n.º 642
Conflito de deveres �ão exigibilidade
Sumário
1. - O conflito de deveres é causa de exclusão da ilicitude quando o agente faz subsumir a sua conduta a um tipo penal para acolher um dever de valor igual ou superior ao sacrificado.
2. - O dever legal dos pais de assistirem, educarem e darem habitação aos filhos menores é de valor muito superior ao que os impede de acolherem indocumentados.
3. - Sempre teriam agido sem culpa, por não lhes ser exigível outra conduta, perante um filho criança (de 4 anos de idade) e só em Macau.
ACORDAM �O TRIBU�AL SUPERIOR DE JUSTIÇA DE MACAU
Cheong Sun Man e sua mulher Lau Lai Sun, residentes em Macau, responderam, em processo correccional, pela prática de um crime do artigo 8º nº 1 da Lei nº 2/90/M, de 3 de Maio.
Era-lhes imputado terem trazido para Macau, onde residem legalmente há vários anos, seu filho Cheong Man Io, nascido em 22 de Outubro de 1986 e que se encontrava na R.P. China; que o fizeram em circunstâncias não apuradas em data incerta de 1990 e, desde então, o vêm alimentando, fornecendo vestuário e alojando, bem sabendo que não dispõe de documentos que lhe permitam permanecer no Território.
A final foram absolvidos.
Recorreu o Ministério Público para concluir que:
- Os factos provados integram a previsão do artigo 8º nº 1 da Lei nº 2/90/M, de 3 de Maio;
- Não há exclusão de ilicitude por não existir qualquer conflito de deveres;
- Os Réus não foram afastados do filho, antes se afastaram;
- Não estavam impedidos de exercer o poder paternal no seu país de origem;
- Há razões de política de imigração que subjazem à Lei nº 2/90/M.
42 Pede, por isso, a condenação dos Réus.
Contra-alegaram os recorridos pugnando pela confirmação da sentença.
O Mº Juíz "a quo" defendeu doutamente o julgado.
Nesta instância, o Ilustre Procurador foi de parecer que de ser dado provimento ao recurso.
Por não ter havido registo de prova, o recurso é limitado à matéria de direito, nos termos do artigo 20º do DL nº 605/75, de 3 de Novembro.
Foram apurados os seguintes factos:
- Os Réus residem há vários anos, em Macau, na Avenida da Longevidade, Edifício Wai Long Fa Un, Bloco I, 17º L;
- São pais de Cheong Man Io, nascido na R.P. China no dia 22.10.1986;
- Que nunca deteve qualquer documento permissivo da entrada e permanência em Macau;
- Têm mais dois filhos, consigo residentes, detentores de documentos de Macau;
- Em data incerta de 1990, e por modo não apurado, conseguiram trazer para Macau o Cheong Man Io;
- Acolhendo-o em sua casa;
- Até Fevereiro de 1996;
- Quando foi expulso de Macau;
- Os Réus não têm casa na R.P. China;
- O menor vivia com uma avó invisual;
- Os Réus sabiam que o filho era indocumentado;
- Ao darem-lhe comida, alojamento e vestuário estavam convictos que era seu dever tratar e educar o filho;
- São pobres e de modesta condição social;
- O Réu é carpinteiro;
43 - Têm boa conduta anterior.
Foram colhidos os vistos.
Conhecendo:
1. - Crime de acolhimento de indocumentados.
2. - Colisão de deveres.
3. - Exclusão de culpa.
4. - Conclusões.
1. - Crime de acolhimento de indocumentados.
Os Réus foram acusados da co-autoria material de um crime do artigo 8º nº 1 da Lei nº 2/90/M, de 3 de Maio.
Este preceito prevê e pune aquele que, sem propósito de obtenção de "vantagem patrimonial ou benefício material", "transportar ou, ainda que temporariamente, acolher, alojar ou instalar" quem se encontre em situação de clandestinidade.
Os Réus acolheram e instalaram em sua casa seu filho Cheong Man Io, desde 1990, quando tinha 4 anos de idade.
Não tendo logrado apurar-se a data da entrada, não poderia imputar-se-lhes o crime de introdução no Território, do artigo 7º, uma vez que o diploma só entrou em vigor no dia 4 de Maio de 1990.
Ora, antes, vigorava o artigo 19º da Lei nº 1/78/M, de 4 de Fevereiro que tinha como elemento do tipo do crime de introdução o propósito de lucro que, manifestamente (e tratando-se de uma relação entre pais e filho menor) não ocorre.
Igual raciocínio é válido para o crime de acolhimento já que, ao tempo esta conduta não era penalmente punida.
Só que tratando-se de conduta reiterada (ou permanente) está a coberto da ulterior incriminação.
A sentença agravada considerou justificada a conduta dos Réus, ao abrigo do nº 1 do artigo 35º do Código Penal.
A questão será vista nesta óptica da ilicitude mas, e também, na perspectiva da culpa.
44
2. - Colisão de deveres.
2.1 - O conflito de deveres, como causa de exclusão da ilicitude, é explicado pela Profª Teresa Pizarro Beleza, nos termos seguintes:
"Ao contrário do que se passa no estado de necessidade, em que a pessoa age dentro de um direito de necessidade, e portanto pode fazer uma opção entre agir e não agir (eventualmente agirá ilìcitamente se decidir agir), no conflito de deveres a situação é diferente (...). E portanto, estando em conflito de deveres, ele não é livre de escolher entre agir e não agir, é obrigado a agir, e então basta que salve um bem igual ao outro. Isto é, já não é preciso uma contraposição entre um bem manifestamente superior em relação a outro, basta que uma pessoa em conflito de deveres cumpra um dever dentro de uma igualdade de importância". (apud "Direito Penal" 2ª, 291).
O considerar a hipótese de conflito de deveres na teoria do estado de necessidade é típico da doutrina tradicional.
Mas o Prof. Eduardo Correia, ao apresentar o artigo 38º do Projecto do Código Penal defendeu que essas teorias devem ser autonomizadas "sobretudo porque não parece de exigir aqui, para que se dê a justificação do facto, que o dever ou ordem que se cumpre seja sensivelmente superior ao do dever ou ordem que se sacrifica", (in "Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal", parte geral, I e II, 241).
No mesmo sentido, anotam os Dr.s Leal Henriques e Simas Santos (in "O Código Penal de 1982", I, 238).
2.2 - Os Réus tinham o dever legal de recusarem o acolhimento, alojamento ou instalação do menor, já que este era indocumentado.
A Lei nº 2/90/M tem por escopo reprimir a imigração clandestina, assim acautelando a vida social e económica do Território, pela probição de ser "invadido" por quem aqui se queira instalar.
Razões de controlo demográfico, de segurança das pessoas, de estabilidade social, enfim, inspiraram aquela Lei.
De outra banda têm o dever legal de educar e manter o filho, o que resulta do nº 5 do artigo 36º da Constituição da República.
Outrossim, os artigos 1878º, 1879º e 1885º do Código Civil impõem aos pais deveres legais de auxílio, de educação, de assistência aos filhos menores, sendo que também lhes é imposto o dever de com eles habitarem.
Com este quadro, perfilar-se-ia um típico conflito de deveres.
45 Que não poderão sequer ser colocados a par, já que o dever de assistir um filho menor é de valor muito superior ao de não acolher um indocumentado.
Quando se interpõe uma relação familiar há, necessariamente, e também, uma carga afectiva que, para além dos deveres legais, impele o agente a uma conduta tantas vezes colidente.
E a lei reconhece tais comportamentos e valora-os sob esse ponto de vista.
O Código Penal anterior não considerava encobridores - na forma de encobrimento pessoal - o cônjuge, ascendentes, descendentes e os parentes ou afins até ao 3º grau da linha colateral - § único do artigo 23º.
O Código Penal de Macau admite a dispensa de pena quando o crime de favorecimento pessoal (novo "nomen juris" do encobrimento) é cometido pelo cônjuge, adoptando, adoptado, parente ou afim até ao 2º grau do agente.
Ora, embora, não exista nestes casos uma situação de conflito de deveres, e mantendo o acto a ilicitude, o certo é que o legislador privilegia condutas criminosas em favor de cônjuge, parentes ou afins muito próximos.
O que traduz uma valoração desses laços.
A conduta destes Réus e nesta situação concreta estaria, pois, justificada, nos termos do nº 1 do artigo 35º do Código Penal.
3. - Exclusão de culpa.
Se assim não fosse entendido, e a conduta fosse de considerar ilícita passar- -se-ia à sua análise em sede de culpa.
E, então, afigura-se que os Réus não seriam punidos por a sua culpa ser excluída nos termos do nº 1, "in fine", do artigo 34º do Código Penal.
É que tendo um filho, com 4 anos de idade, na RPC sem estar devidamente acompanhado e assistido, não lhes era exigível comportamento diferente.
Numa perspectiva de cotejo dos valores ético-sociais que se confrontam, parece evidente que a qualquer pai normal não podia ser pedido que não alojasse ou acolhesse seu filho criança, perfeitamente indefeso em Macau.
Esta não exigibilidade é de aferir em termos concretos, e não como resultava do projecto da lei penal portuguesa, avaliável perante um homem médio suposto pela ordem jurídica.
46 Para além da diferente caracterização conceptual, num caso excluindo a ilicitude aqui excluindo a culpa, não há sobreposição com o conflito de deveres.
A propósito, dizia o Prof. Eduardo Correia que, fora do conflito de deveres ficam "todos os casos de colisão entre deveres jurídicos e não jurídicos - v.g. morais - que muitas vezes podem ser perfeitamente merecedores de conduzir à exclusão da culpa, com a mesma ou até com maior força do que quando se trata de colisão de deveres jurídicos". (in "Actos .." ob. cit. 257).
A não exigibilidade deve ser usada "com a maior prudência" (cfr. Cons. Maia Gonçalves) tanto mais que a sua apreciação caso a caso e perante aquele agente em concreto pode originar soluções diferentes em casos aparentemente iguais.
Aqui afigura-se, porém, uma situação nítida.
Daí que a conduta estivesse desculpada.
4. - Conclusões.
Pode concluir-se que:
a) O conflito de deveres é causa de exclusão da ilicitude quando o agente faz subsumir a sua conduta a um tipo penal para acolher um dever de valor igual ou superior ao sacrifício.
b) O dever legal dos pais de assistirem, educarem e darem habitação aos filhos menores é de valor muito superior ao que os impede de acolherem indocumentados.
c) Sempre teriam agido sem culpa, por não lhes ser exigível outra conduta, perante um filho criança (de 4 anos de idade) e só em Macau.
Eis porque acordam negar provimento ao recurso mantendo a sentença recorrida.
Não é devido imposto de justiça.
Sebastião Póvoas (Relator) — Manuel Leal-Henriques — Nuno Salgado
ANEXO 2
JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA
3878/04
47 Nº Convencional: JTRC Relator: DR. BELMIRO DE ANDRADE Descritores: DISPENSA DE SIGILO BANCÁRIO Data do Acordão: 12/01/2005 Votação: UNANIMIDADE Tribunal Recurso: SERVIÇOS DO MºPº (DIAP) - COMARCA DE COIMBRA Texto Integral: S Meio Processual: INCIDENTE - SIGILO BANCÁRIO Decisão: PROVIDO Legislação Nacional: ART. 135º DO CPP Sumário: I – No regime legal vigente, ao contrário do que se vinha entendendo na vigência do DL 2/78 de 09.01, o sigilo bancário não prevalece, sistematicamente, sobre o dever de colaboração com a justiça penal. II – Do mesmo modo se encontra afastada a tese inversa de que a prestação de testemunho perante o tribunal constitui, só por si e sem mais, justificação bastante da violação do segredo. III – O regime do art. 135º do CPP reconhece desde logo ao interesse da descoberta dos agentes de crimes a idoneidade para ser levado à ponderação com os interesses protegidos pelo segredo esteja em causa a perseguição dos crimes mais graves, designadamente quando estejam em causa crimes que provocam maior alarme social. IV – Obrigando à ponderação, em concreto, dos interesses em confronto com base em padrões objectivos e controláveis. V – Tendo a investigação chegado a um ponto de impasse em que informação sobre a titularidade da conta em que foi depositado determinado cheque subtraído num assalto a uma residência, fundamental para se poder chegar ao eventual autor do crime, a própria confiança no sistema bancário ficaria prejudicada, caso o indiciado crime de furto qualificado ficasse encoberto. VI – A não ser facultada, em nome do sigilo bancário, a informação pretendida, o agente (ou agentes) dos crimes em investigação estaria(m) a ser protegido(s) directamente por aquele sigilo. O próprio interesse privado da ofendida, também ela “cliente” do sistema bancário e do próprio sistema bancário (que lhe facultou a carteira de cheques cujo desaparecimento se investiga) é pelo menos de igual relevância daquele do titular da conta protegida pelo sigilo bancário. VII – Somando ao referido interesse o interesse público na verdade e lisura das relações entre os cidadãos e num sistema bancário transparente, bem como na descoberta dos infractores de normas fundamentais à vida em sociedade, justifica-se a quebra do sigilo. Decisão Texto Integral: ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA Nos autos de inquérito supra referenciados, a correr termos nos Serviços do Ministério Público da Comarca de Coimbra (DIAP), em que é ofendida A..., investiga-se a prática de factos susceptíveis de integrar o crime de Furto
48 Qualificado, p. e p. pelos art. 204.° n.º 2, al. e) com referência aos artigos 203° e 202°, al. f), todos do Código Penal. No decurso das diligências efectuadas, apurou-se que um dos cheques
desaparecidos (cheque com o n.º 202/... .3, com referência de arquivo 001111500059342 e data de compensação de 15.11.2000 da Agência do BES da Rua Visconde da Luz, Coimbra, no valor de 7.500$00, fotocopiado a fls.7 dos presentes autos) foi depositado na Caixa Geral de Depósitos, Agência da Praça 8 de Maio, Coimbra – cfr. ofício da Caixa G. D. certificado a fls. 13. Razão pela qual, no âmbito dessa investigação, importava apurar a identificação da referida conta onde o cheque foi creditado, respectivo titular e operações inerentes à movimentação do mesmo cheque. Com esse objectivo foi solicitado à C. G. D. informação sobre o titular da referida conta, cópia da respectiva ficha de assinaturas e extracto da conta relativo a tal depósito, informações essa tidas por pertinentes e necessárias para prosseguir a investigação, tanto que se apresentam como o único meio de identificar os eventuais autores do crime investigado [furto em habitação – al. e) do n.º2 do art. 204]. No pedido formulado à CGD mencionava-se ainda que aquela informação se destinava à instrução de processo crime. Porém aquela Instituição Bancária, pelas razões que se alcançam dos seus ofícios de fls. 3, 5, 11, e 12, recusou fornecer os elementos solicitados, invocando o sigilo bancário e aguardar autorização do titular da conta. Dada a relevância de tais elementos, o Ex.mo Procurador- Adjunto titular do Inquérito requereu ao M.º Juiz de Instrução Criminal que fosse suscitado, perante este Tribunal da Relação, o incidente previsto nos arts. 135° n.º 2 e 3 e 182.° n.º 2, ambos do Código de Processo Penal. Concordando em que a obtenção daquelas informações solicitadas à referida Instituição bancária é absolutamente necessária à prossecução da investigação, não sendo por outro lado as mesmas passíveis de serem obtidas por consentimento do titular da conta (o qual é desconhecido, sendo também esse o objectivo do pedido de informação), a M.ª Juiz de Instrução, desencadeou o incidente, remetendo para o efeito certidão a este Tribunal, solicitando prolação de decisão no sentido de ser autorizada a quebra do sigilo bancário, a fim de que a GGD possa fornecer as informações solicitadas – cfr. despacho de fls. 15 e v. Neste Tribunal o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que deve proceder a quebra do sigilo. Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
***
49 Dispõe o artigo 78º do D. L. n.º 298/92, de 31 de Dezembro, que aprovou o Regime Geral de Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (integralmente publicado, em versão consolidada por sucessivas alterações, em anexo ao DL 201/02 de 26.09): 1. Os membros dos órgãos de administração ou de fiscalização das instituições de crédito, os seus empregados, mandatários, comitidos e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou à relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços. 2. Estão, designadamente, sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósitos e seus movimentos e outras operações bancárias. 3. O dever de segredo não cessa com o termo das funções ou serviços. O referido dever de segredo bancário não é, porém, absoluto. Logo postulando o artigo 79.º do mesmo diploma: Excepções ao dever de segredo 1 - Os factos ou elementos das relações do cliente com a instituição podem ser revelados mediante autorização do cliente, transmitida à instituição. 2 - Fora do caso previsto no número anterior, os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados: a) Ao Banco de Portugal, no âmbito das suas atribuições; b) A Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, no âmbito das suas atribuições; c) Ao Fundo de Garantia de Depósitos e ao Sistema de Indemnização aos Investidores, no âmbito das respectivas atribuições; d) Nos termos previstos na lei penal e de processo penal; e) Quando exista outra disposição legal que expressamente limite o dever de segredo. O regime penal e processual penal [para que remete a al. d) do art. 79º acabado de transcrever] consta dos artigos 195.° a 198.° do Código Penal e dos artigos 135.°, 181.° e 182.° do CPP. Da conjugação destas disposições resulta que o artigo 79.° do D.L. 298/92, ao consagrar uma enumeração taxativa das excepções ao dever de segredo bancário, impõe que, para além dos casos previstos na lei, apenas seja possível quebrar o segredo mediante incidente em que se afira do interesse preponderante ou prevalecente (...sempre que esta se mostre justificada face
50 às norma e princípios aplicáveis de direito penal, nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante - texto do art. 135º, n.º3 do CPP). Este normativo teve aliás um enorme alcance prático, suprindo uma lacuna na ordem jurídica no que respeita às relações entre o dever de segredo bancário e o dever de colaboração com a justiça, tendo designadamente em atenção a prática corrente no âmbito da vigência do DL 2/78 de 09.01 em que se considerava que o primeiro prevalecia inexoravelmente sobre o segundo. No regime vigente, quando seja invocado o dever de sigilo a autoridade judiciária poderá tomar uma das seguintes atitudes: - ou aceita como legítima a escusa e aí permanece o dever de sigilo da entidade bancária, sob pena de se sujeitar às penas correspondentes ao crime de violação de segredo do artigo 195.° do Código Penal; - ou entende que a escusa é ilegítima e então ordena, após as necessárias averiguações, que o banco forneça os dados pretendidos ou seu representante deponha sobre o que lhe é perguntado (art. 135.°, n.ºs 2 e 5), cometendo o crime de recusa de depoimento se o não fizer (art. 360.°, n.º 2, do Código Penal). - ou suscita ao tribunal competente que ordene a dispensa de sigilo, se tiver que ser quebrado o segredo profissional (art. 135.°, n.º 3). O n.º 3 do art.135º prevê uma fase do incidente que surge num momento posterior, ou seja, quando a autoridade judiciária pretende, contudo, que, dado o interesse da investigação, se quebre o segredo profissional, caso em que a decisão sobre o rompimento do segredo é da competência do tribunal superior aquele em que se suscita o incidente. O critério material adoptado pelo legislador é o de que o tribunal competente só pode impor a quebra do segredo profissional quando esta se mostre justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante. Fórmula que, como escreve Costa Andrade (Comentário Conimbricence ao C. Penal, T.I, 795-796) ««« se projecta em quatro implicações normativas fundamentais: a) Em primeiro lugar e por mais óbvia, avulta a intencionalidade normativa de vincular o julgador a padrões objectivos e controláveis. b) Em segundo lugar, resulta líquido o propósito de afastar qualquer uma de duas soluções extremadas; tanto a tese de que o dever de segredo prevalece invariavelmente sobre o dever de colaborar com a justiça penal (que, já o vimos, fez curso nos tribunais portugueses, pelo menos em matéria de sigilo bancário, supra, § 50); como a tese inversa de que a prestação de testemunho perante o tribunal (penal) configura só por si e sem mais, justificação bastante
51 da violação do segredo profissional. Esta última uma compreensão das coisas recusada pela generalidade dos autores (cf. v. g. HAFFKE, GA 1973 66 ss.; M/ S / MAIWALD 293) mas que começou por ter o aplauso claramente maioritário da doutrina e da jurisprudência. Que, em geral, se reviam na proclamação feita logo no princípio do século (1911) por SAUTER: "Segundo a compreensão moderna do Estado (...) a realização da justiça em conformidade com o direito satisfaz um interesse público tão eminente que por este bem e por este preço pode sempre sacrificar-se o interesse individual na protecção da esfera de segredo." (apud HAFFKE 67). c) Em terceiro lugar, o apelo ao princípio da ponderação de interesses significa o afastamento deliberado da justificação, neste contexto, a título de prossecução de interesses legítimos. Isto é: a realização da justiça penal, só por si e sem mais (despida do peso específico os crimes a perseguir) não figura como interesse legítimo bastante para justificar a imposição a quebra do segredo. E isto sem prejuízo da pertinência e validade reconhecidas a esta derimente no regime geral da violação de segredo (infra § 61 s.). d) Em quarto lugar, com o regime do art. 135º do CPP, o legislador português conheceu à dimensão repressiva da justiça penal a idoneidade para ser levada à balança a ponderação com a violação do segredo: tudo dependerá da gravidade dos crimes a perseguir. A lei portuguesa não aderiu, assim, à tese extremada que denegou à repressão criminal qualquer possibilidade de ponderação com o sacrifício real da violação de segredo. Como a sustentada por HAFFKE: " a necessidade de punição e o interesse da defesa da ordem jurídica não podem legitimar a violação do segredo " (cit. 69). O art. 135º do CPP consagrou a solução mitigada que admite a justificação (ex vi ponderação) da violação do segredo desde que esteja em causa a perseguição dos crimes mais graves, s. c,. os que provocam maior alarme social.»»». O segredo bancário constitui uma forma de protecção penal da reserva da vida privada de ordem económica e bem assim da protecção da confiança no sistema bancário que se encontra tutelado, também ele, no vasto âmbito do art. 195° do Código Penal. A ilicitude da conduta prevista naquele preceito pode ser excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade, em obediência ao princípio de que o ordenamento jurídico deve ser encarado no seu conjunto, sendo um dos casos de exclusão de ilicitude quando o facto é praticado "no cumprimento de um dever imposto por lei ou por ordem legítima da autoridade" (cfr. art. ° 31/1 e 2.alínea c) do CP) e, no caso de conflito de deveres, quando "satisfizer dever ou ordem de valor igualou superior ao do dever ou ordem que sacrificar (cfr. art. 36°/1 do CP) . Face ao regime traçado pelas disposições conjugadas dos artigos 182°/2 e
52 135°/3 do C.P. Penal e 31 °/1 e2, ala. c) e 36°/1 do Código Penal a quebra do segredo impõe uma criteriosa ponderação dos valores em conflito, em ordem a determinar se a salvaguarda do segredo deve ou não ceder perante os outros interesses em jogo. Passando a resolução do conflito pela avaliação da diferente natureza e relevância dos bens jurídicos tutelados por aqueles deveres, segundo um critério de proporcionalidade na restrição de direitos e interesses constitucionalmente protegidos, como impõe o n.º2 do art. 18° da Constituição da República Portuguesa, tendo em atenção o caso concreto. O dever de sigilo destina-se a proteger os direitos pessoais v.g. ao bom nome e reputação e à reserva da vida privada, consagrados no art. 26° da Constituição da República Portuguesa, bem como o interesse da protecção das relações de confiança entre as instituições bancárias e respectivos clientes. Dizendo respeito predominantemente à esfera privada da ordem económica que é merecedora de tutela, tanto ou mais que outros aspectos – cfr. Alberto Luís, Direito Bancário, ed. Almedina, 1ª ed., p. 88. Sendo certo que mesmo nos regimes mais restritivos nunca foi um sigilo absoluto. Nem na banqueira Suíça, onde a lei federal sobre processo penal não inclui os banqueiros na dispensa de testemunhar, e, segundo os códigos cantonais os banqueiros são obrigados a exibir documentos e depor como testemunhas sempre que a autoridade judiciária, avaliando a importância dos interesses em jogo, os não dispensar dessa obrigação – cfr. Alberto Luís, cit. p. 110. O dever de colaboração com a administração da justiça penal visa satisfazer o interesse público do exercício do direito de punir, consagrado constitucionalmente nos art°s 29°, 32° e 202° da CRP. Confrontam-se assim dois interesses conflituantes: - de um lado o do Estado em exercer o seu “jus puniendi” relativamente aos agentes que ofendem a ordem jurídica estabelecida e em que se não pode prescindir do apuramento da verdade material, para o que serão fundamentais as informações solicitadas às instituição de crédito; - do outro a tutela do sigilo bancário que tem a ver fundamentalmente com o direito à reserva da vida privada dos agentes enquanto clientes dos bancos propício ao estabelecimento de um clima de confiança na banca, desejável. No caso em apreço está em causa a obtenção de uma informação que, a não ser prestada em nome do sigilo bancário, daria azo a que o agente do crime que se investiga fosse protegido pelo sigilo em detrimento do interesse público da boa administração da justiça. O que, em ultima instância redundaria em violação dos próprios interesses que o sigilo visa proteger – a confiança da comunidade no sistema financeiro e a reserva da vida económica dos clientes. Com efeito a protecção do eventual agente do crime investigado, só por si,
53 seria adequada a quebrar essa relação de confiança, por assentar em dados presumivelmente falsos. Não podendo o segredo bancário ser absolutizado ou colocado num regime de “extraterritorialidade”, como lhe chama Alberto Luís, ob. cit., p. 109. Como se salienta ao longo do percurso processual, nos autos a investigação carece de uma informação sobre a titularidade e movimentação de uma conta bancária, com vista ao apuramento de quem beneficiou do montante de um cheque subtraído ilegitimamente à queixosa. Sem o que fica gravemente inquinada a obtenção de prova essencial para a eventual imputação criminal indiciada, absolutamente dependente da análise da conta e circunstâncias em que o cheques aí tenha sido creditado/depositado. Não sendo obtida a informação a descoberta da verdade material será impossibilitada de uma forma tão desproporcional que não é aceitável que a ordem jurídica penal e processual penal o permitam – a própria confiança no sistema bancário ficaria prejudicada, como se disse, caso o indiciado crime de furto qualificado ficasse encoberto. Não está assim em causa a obtenção de informação para uma qualquer devassa da vida económica do titular da conta com uma finalidade da mesma natureza. Destinando-se antes a informação pretendida à investigação, em processo penal, com todas as garantias de defesa e de exercício do contraditório, da prática de crime de furto qualificado, com introdução furtiva em habitação. Há assim uma evidente prevalência do interesse público na boa administração da justiça penal – onde estão em causa os valores éticos fundamentais da sociedade - sobre o interesse privado do titular da conta onde foi efectuado o depósito suspeito, assente, em termos de prova indiciária, na subtracção fraudulenta do cheque depositado. A não ser facultada, em nome do sigilo bancário, a informação pretendida, o agente (ou agentes) dos crimes em investigação estaria(m) a ser protegido(s) directamente por aquele sigilo. E o crime não pode ficar protegido sob o “manto de misericórdia do segredo Bancário”, na expressão de Alberto Luís, ob. cit. p. 110. O próprio interesse privado da ofendida, também ela “cliente” do sistema bancário e do próprio sistema bancário (que lhe facultou a carteira de cheques cujo desaparecimento se investiga) é pelo menos de igual relevância daquele do titular da conta protegida pelo sigilo bancário. Pelo que, somando aos referidos interesses o interesse público na verdade e lisura das relações entre os cidadãos e num sistema bancário transparente, bem como na descoberta dos infractores de normas fundamentais à vida em sociedade, se justifica a quebra do sigilo, nos termos pretendidos. Daí que, ao contrário do que sucedia na vigência do DL 2/78 de 09.01, em que
54 se entendia que o sigilo apenas podia ser ultrapassado em casos expressamente previstos na lei, criando uma barreira que privou o dever de informação de qualquer possibilidade de actuação (cfr. Costa Andrade, no Comentário, cit. p. 794 e Alberto Luís, Direito Bancário, cit. 116), na vigência do actual quadro legal a jurisprudência tem vindo uniformemente a afirmar a prevalência do interesse subjacente à investigação penal – cfr. designadamente a vasta jurisprudência citada no douto parecer. Como o salienta, de modo paradigmático, o Ac RE de 12 de Maio de 1992 (Col. de Jur., tomo III/92, 353): Justifica-se a dispensa do cumprimento de observância do sigilo bancário relativamente a factos que estejam a ser apurados em processo criminal em que se averigue matéria relacionada com a comissão de infracções penais de agentes que, em violação das regras estabelecidas, se servem do sistema bancário para enriquecerem ilicitamente à custa do património dos outros.. Ou o Ac da RC de 06 de Julho de 1994, CJ, tomo IV/94, p. 46: "...O interesse da "boa administração da justiça" prevalece sobre o interesse da "protecção da posição do consumidor de serviços financeiros" ou mesmo da “manutenção do clima de confiança na banca”. Assim, apontando a ponderação da relevância dos interesses conflituantes, indiscutivelmente, no sentido da prevalência do interesse público da realização da justiça sobre o interesse do bom nome e reserva da vida privada dos eventuais visados, procederá a quebra do sigilo. ** 3. Termos em que se corda conceder provimento à pretensão formulada, determinando-se a dispensa do sigilo bancário invocado pela CGD nos autos, nos termos acima referidos, devendo aquela Instituição fornecer os elementos solicitados, que recusou, bem como outros, complementares que no âmbito desta investigação se revelem necessários à descoberta da verdade. Sem custas.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
BIERRENBACH, Sheila. Teoria do Crime. Rio de Janeiro, Editora Lumen Juris.
1ª Edição. 2009.
55
Código Penal do Brasil. São Paulo. Editora Saraiva. 47ª Edição. 2009.
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal Parte Geral, Tomo I. São Paulo,
Revista dos Tribunais. 1ª Edição Brasileira. 2007.
DOS SANTOS, Juarez Cirino. A moderna Teoria do Fato Punível. Curitiba: 4 ª
Edição, Lumen Juris. 2005.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. Rio de Janeiro, Editora
Impetus. 7ª Edição. 2006.
JAKOBS, Günter, Tratado de Direito Penal – Teoria do Injusto Penal e
Culpabilidade. Belo Horizonte. Editora Del Rey. 1ª Edição. 2009.
ZAFFARONI, E. R.; PIERANGELI, J. H. Manual de Direito Penal Brasileiro. São
Paulo, Revista dos Tribunais, 5ª Edição, 2004.
BIBLIOGRAFIA CITADA
1 - ZAFFARONI, E. R.; PIERANGELI, J. H. Manual de Direito Penal Brasileiro.
São Paulo, Revista dos Tribunais, 5ª Edição, 2004.
56
2 - DOS SANTOS, Juarez Cirino. A moderna Teoria do Fato Punível. Curitiba: 4
ª Edição, Lumen Juris. 2005.
3 - DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal Parte Geral, Tomo I. São Paulo,
Revista dos Tribunais. 1ª Edição Brasileira. 2007.
4 - JAKOBS, Günter, Tratado de Direito Penal – Teoria do Injusto Penal e
Culpabilidade. Belo Horizonte. Editora Del Rey. 1ª Edição. 2009.
5 - Código Penal do Brasil. São Paulo. Editora Saraiva. 47ª Edição. 2009.
ÍNDICE
57 FOLHA DE ROSTO 2
AGRADECIMENTO 3
DEDICATÓRIA 4
RESUMO 5
METODOLOGIA 6
SUMÁRIO 7
INTRODUÇÃO 8
CAPÍTULO I
O CONCEITO ANALÍTICO DE CRIME 10
1.1 – Fato Típico 12
1.2 – Ilicitude 19
1.3 – Culpabilidade 28
CAPÍTULO 2
A COLISÃO DE DEVERES 31
CONCLUSÃO 38
ANEXOS 40
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 55
BIBLIOGRAFIA CITADA 56
ÍNDICE 57