UNIVERSIDADE DE COIMBRA – UC
FACULDADE DE LETRAS – FLUC
CURSO DE DOUTORAMENTO EM LIT. DE LÍNGUA PORTUGUESA
DISCIPLINA: ENSINO DE LITERATURA I
PROFESSORA: DOUTORA ANA MARIA E SILVA MACHADO
ALUNO: JOSÉ WILLIAM CRAVEIRO TORRES
ANÁLISE DE UMA UNIDADE DIDÁTICA: FERNANDO PESSOA –
ORTÓNIMO E HETERÓNIMOS (ÁLVARO DE CAMPOS, 3ª FASE)
INTRODUÇÃO
A disciplina “Ensino de Literatura I”, ministrada pela Prof.ª Doutora Ana Maria e
Silva Machado, mostrou-se para nós bastante satisfatória, porque completa: nela
entramos em contato com textos que giravam em torno do Ensino da Literatura; tivemos
a oportunidade de (re)pensar teorias e propostas e de colocá-las em prática, a partir de
um trabalho que realizamos, intitulado “Ensinar e Deslumbrar”; e pudemos exercitar a
nossa capacidade analítica e o nosso senso crítico, ao lançarmos nossas opiniões sobre
os textos lidos e sobre as propostas de ensino que os nossos colegas desenvolveram.
Faltava-nos, no entanto, um olhar, igualmente analítico e crítico, sobre o material
didático utilizado nas escolas para o ensino da Literatura. O presente trabalho, último da
disciplina, tem justamente esse propósito. Coube-nos, como se pôde ver já no título
deste, a análise crítica de parte da unidade de um livro didático do décimo segundo (12º)
ano: a que diz respeito a Álvaro de Campos, um dos heterónimos de Fernando Pessoa,
na sua terceira fase1.
Embora saibamos que o índice, que os textos que compõem a unidade, que as
questões em torno destes e que as gravuras ou ilustrações que a unidade traz são
indissociáveis, ou seja, que são partes que mantêm uma estreita relação entre si,
dividiremos este trabalho em capítulos, para uma melhor análise do trecho da unidade e
para uma melhor exposição das nossas ideias: no primeiro, trataremos do índice, com
vista a verificar quais inferências podemos fazer, a partir da leitura deste, quanto ao
conteúdo da unidade, e também para ver se esta, a unidade, contempla mesmo tudo o
que foi apresentado ao estudante naquele, no índice; no segundo, verificaremos quais
1 FERREIRA, Idalina; SILVANO, Purificação; RODRIGUES, Sónia Valente. “Unidade 01 – Textos
Líricos: Fernando Pessoa – Ortónimo e Heterónimos”. In: ______. Português +: 12º Ano / Revisão
Científica de Fátima Oliveira. 1. ed. Porto: Areal Editores, 2012.
textos de Álvaro de Campos foram utilizados na unidade e se eles são mesmo
significativos, ou seja, se são capazes de transmitir para o educando as características
principais, essenciais, do poeta e de sua Poesia na terceira fase; verificaremos, ainda, se
os textos de natureza ensaística e/ou crítica que giram em torno de Álvaro de Campos e
de sua Poesia conseguem mesmo transmitir para os alunos as principais características
desta e daquele; no terceiro, teceremos considerações acerca dos questionários que se
seguem aos textos, para vermos o que aqueles querem que os estudantes saibam com
relação a estes; no quarto e último capítulo, sugeriremos um poema de Álvaro de
Campos que poderia ter sido trabalhado ao longo da unidade, bem como justificaremos
tal sugestão e apontaremos questões que poderiam ter sido feitas aos educandos, para
uma melhor leitura dos textos literários, por parte deles, e, consequentemente, para um
melhor aproveitamento desses textos. Vale salientar que, ao longo de todo o trabalho,
esforçar-nos-emos para embasar as nossas análises a partir do referencial teórico que
acumulamos ao longo da disciplina, mas sem deixarmos de lado o nosso pensamento, as
nossas opiniões, em torno das diversas questões que forem sendo colocadas. Ao cabo,
apresentaremos as nossas considerações finais e diremos se os livros didáticos
continuam a utilizar os textos literários como alavancas para atividades outras que não
as de literatura – como as de gramática, as de interpretação de texto ou as de produção
textual (o texto literário como pretexto) –, ou se há já alguma inovação no trabalho com
esses textos, na Escola. Também diremos se o material didático analisado dota o aluno
de competência literária e de sensibilidade estética.
1. O Índice
O índice de cada capítulo da unidade encontra-se dividido em três partes:
“Começar”, “Aprender: Conhecer e Aprofundar” e “Avaliar”. Em “Começar”, temos
sempre informações mais gerais acerca do autor; no caso específico da unidade por nós
analisada, em torno dos autores, dos heterónimos de Fernando Pessoa: Alberto Caeiro,
Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Essas informações giram em torno de dados
biográficos, do enquadramento dos escritores numa Escola literária (no caso, no
Modernismo) e das principais características da obra de cada um. Esses dados são
transmitidos aos estudantes por meio de excertos de textos escritos por grandes
estudiosos em Literatura Portuguesa. Após os textos, são apresentadas perguntas aos
educandos, com o intuito de verificar o que eles aprenderam.
Em “Aprender: Conhecer e Aprofundar”, os alunos entram em contato mais
especificamente, e de forma um pouco mais aprofundada, ainda que não completamente
satisfatória, com dados relacionados à biografia do autor e às características de sua obra;
na parte da unidade que nos coube, os estudantes entram em contato com informações
acerca de Álvaro de Campos e de sua Poesia de terceira fase. Em “Conhecer Álvaro de
Campos”, as informações sobre o poeta e sobre sua obra são transmitidas aos educandos
a partir de excertos de textos (dois) escritos por grandes estudiosos na matéria pessoana:
António Apolinário Lourenço e Robert Bréchon. Há, após cada um dos textos,
perguntas sobre o autor e sobre sua obra: mais à frente discutiremos o teor destas. Já em
“Aprofundar”, características da obra do autor são discutidas a partir de núcleos
temáticos; no caso da Poesia de Álvaro de Campos, dois temas são apresentados: “A
Vanguarda e o Sensacionismo” e “A Abulia e o Tédio”. O primeiro tema é trabalhado a
partir de excertos de dois poemas: “Ode Triunfal” e “Ode Marítima”. O segundo tema, a
partir de excertos de “O que há em mim é sobretudo cansaço” e “Lisbon Revisited”.
Após cada um dos textos, são apresentadas algumas questões aos alunos. Depois dos
trechos de “Ode Marítima” e “Lisbon Revisited”, também são postas para os estudantes
três atividades, com o intuito de dotar-lhes de conteúdos gramaticais e das habilidades
de escrita, por meio da produção textual, e de oralidade, por meio de uma exposição:
“Reflexão sobre a Língua”, “Escrita” e “Oralidade” são, respectivamente, os títulos
dessas atividades. Há, ainda, no final de “Aprender: Conhecer e Aprofundar”, uma parte
dedicada à Literatura, intitulada de “Reflexão sobre o Literário”: como veremos adiante,
tal reflexão gira em torno dos textos literários, de fato, mas está longe de ser uma
reflexão literária.
Já em “Avaliar” temos, como não poderia deixar de ser, testes de múltipla escolha
em torno de Álvaro de Campos e dos demais heterónimos. Tais testes, conforme
percebemos, têm o intuito de fazer um apanhado geral do conteúdo da unidade. Na parte
do trabalho dedicada às questões em torno dos textos, faremos algumas considerações
também sobre esses testes.
Enfim, o índice aponta mesmo para todas as partes da unidade; inclusive trazendo
o título de cada um dos textos com os quais os educandos irão entrar em contato. A
partir da leitura do índice, o aluno é capaz de saber que Álvaro de Campos foi um poeta
vanguardista e sensacionista, que escreveu a “Ode Triunfal” e a “Ode Marítima”, e
também um poeta abúlico e entediado, autor dos poemas “O que há em mim é
sobretudo cansaço” e “Lisbon Revisited”; enfim, que foi um poeta que teve sua obra
dividida em fases. Tudo isso, de fato, o estudante irá encontrar ao longo da parte da
unidade dedicada a Álvaro de Campos.
2. Os Textos
Conforme dissemos na introdução, analisaremos, nesta parte do trabalho, não só
os textos da terceira fase de Álvaro de Campos que se encontram dentro da unidade
dedicada a Fernando Pessoa e a seus heterónimos – “O que há em mim é sobretudo
cansaço” e “Lisbon Revisited” – como também os textos dos estudiosos na matéria
pessoana que se encontram na parte da unidade dedicada a Álvaro de Campos e que
procuram dar conta das principais características deste e de sua Poesia.
Com relação aos poemas de Álvaro de Campos presentes na unidade, julgamos
que eles sejam bastante representativos dessa terceira fase: “O que há em mim é
sobretudo cansaço” já faz, a partir do próprio título, alusão a ela, denominada, por
alguns estudiosos em Pessoa, justamente como a “Fase do cansaço ou do torpor2”.
Linhares Filho, em artigo publicado no Jornal O Povo, de Fortaleza-CE, em
07/03/1997, chega mesmo a citar versos desse poema, bem como de “Lisbon
Revisited”, para justificar as principais características do poeta em sua terceira fase. De
acordo com o ensaísta cearense:
Surge a terceira fase de Campos devido à falta de
adaptação às teorias de Caeiro e à desilusão própria do após-
guerra. Vejamos as características desta fase: antidogmatismo
(“Não me venham com conclusões!”); revolta, inconformismo
(“Vão para o diabo sem mim / Ou deixem-me ir sozinho para o
diabo!”); enternecimento memorialista, que também ocorre na
segunda fase (“Ó céu azul – o mesmo da minha infância – /
Eterna verdade vazia e perfeita!”); senso de fragilidade humana
e senso do real (“E eu tantas vezes reles, tantas vezes porco,
tantas vezes vil”); desprezo ao mito do heroísmo (“Ah, a
frescura na face de não cumprir um dever!”); dispersão (“Outra
vez te revejo, / Mas, aí, a mim não me revejo!” – refere-se o
autor a Lisboa no importante poema “Lisbon Revisited”);
2 LINHARES FILHO, José. Álvaro de Campos: o engenheiro e o poeta. Jornal O Povo, Fortaleza, 07
mar. 1997. Texto publicado, também, no Jornal de Poesia: LINHARES FILHO, José. Álvaro de
Campos: o engenheiro e o poeta. Jornal de Poesia. Disponível em:
<http://www.jornaldepoesia.jor.br/linha05.html>. Acesso em: 30 jan. 2013.
expressão de semidemência (“Se ao menos endoidecesse
deveras! / Mas não: é este estar entre, / Este quase, / Este poder
ser que…, / Isto”); torpor expresso em sono e cansaço (“O sono
universal que desce individualmente sobre mim / É o sono da
síntese de todas as desesperanças”); preocupação com o
existencial, o ontológico (“Sou quem falhei ser. / Somos todos
quem nos supusemos, / A nossa realidade é o que não
conseguimos nunca”); adoção de intensos e funcionais desvios
gramaticais e livremetrismos (“Eu que me aguente comigo e
com os comigos de mim”; “Ou somos, todos os Eu que estive
aqui ou estiveram, / Uma série de contas-entes ligadas por um
fio-memória, / Uma série de mim de alguém fora de mim?”;
“Um supremíssimo cansaço, / Íssimo, íssimo, íssimo, /
Cansaço…”)3.
Como vimos, de “O que há em mim é sobretudo cansaço” e de “Lisbon
Revisited”, Linhares Filho retira os versos mais ilustradores das características da
terceira fase de Álvaro de Campos. Sendo assim, podemos constatar, mesmo, que são
poemas bastante representativos da fase em apreço. Além desses, outros poderiam ser
apresentados aos alunos, para uma visão mais globalizante dessa terceira fase: “Poema
em linha reta”, “Ah, a frescura na face de não cumprir um dever!”, “Esta velha
angústia”, “O sonho”, “Pecado original”, “Contudo”, “Excerto de uma Ode”, “Trapo” e
“Aniversário” (posteriormente trataremos destes três últimos). Na quarta parte do
presente trabalho, sugeriremos alguns poemas que poderiam ser trabalhados com os
estudantes do 12º ano, de modo a ampliar-lhes a visão em torno de Álvaro de Campos e
de sua Poesia de terceira fase.
Já com relação aos textos de natureza ensaística em torno de Álvaro de Campos e
de sua obra que se encontram na unidade, escritos por António Apolinário Lourenço,
Robert Bréchon e Jacinto do Prado Coelho, pensamos que estes poderiam ser
substituídos por textos mais fáceis, mais simples, e que trouxessem mais informações
acerca do poeta e de sua Poesia: o excerto do texto de Apolinário Lourenço, que tem por
objetivo apresentar ao educando o poeta e sua Poesia, peca pela falta, pela escassez de
informações, de modo que praticamente a única informação válida que transmite acerca
de Álvaro de Campos é a de que ele é um “poeta atual, modernista e vanguardista”; o
trecho do texto de Robert Bréchon, que possui o mesmo intuito, peca por informações
rebuscadas, ou seja, informações que julgamos acima do nível de compreensão dos
alunos, pois se refere a Álvaro de Campos como “vate da era industrial, […] do
3 Idem, ibidem.
expressionismo mais concreto”, e diz que “À beleza apolínea ele opõe a beleza
dionisíaca, a que os surrealistas em breve chamarão «convulsiva»”, afirmando que o
heterónimo de Pessoa em questão deseja “conhecer «o estado supremo da vertigem»”.
Propomos, no lugar desses dois primeiros textos em torno de Campos e de sua obra, um
trecho da carta que Fernando Pessoa enviou a Adolfo Casais Monteiro, sobre a génese
dos heterónimos, que dá conta da biografia de Álvaro de Campos:
Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de
1890 (à 1.30 da tarde, diz-me o Ferreira Gomes; e é verdade,
pois, feito o horóscopo para essa hora, está certo). Este, como
sabe, é engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui em
Lisboa em inactividade. […] Álvaro de Campos é alto (1,75m
de altura, mais 2 centímetros do que eu), magro e um pouco
tendente a curvar-se. Cara rapada […] teve uma educação vulgar
de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia,
primeiro mecânica, depois naval. Numas férias fez a viagem ao
Oriente de onde resultou o «Opiário». Ensinou-lhe latim um tio
beirão que era padre.
Como escrevo em nome desses três? […] Campos, quando sinto
um súbito impulso para escrever e não sei o quê4.
E um excerto de um texto escrito por Álvaro Cardoso Gomes, que se encontra no
livro A Literatura Portuguesa em Perspectiva, sobre algumas das características do
poeta e de sua Poesia:
Álvaro de Campos é arauto da modernidade e, assim, sua
poesia busca mimetizar o ritmo da vida contemporânea.
Compondo, pelo menos na primeira fase de sua poesia, grandes
odes, o poeta implode o “eu”, na tentativa de captar a
multiplicidade da vida moderna […] visa a traduzir o ímpeto do
sujeito que quer “sentir tudo de todas as maneiras” e “ser a
mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo”
[…]. A ânsia de querer abarcar tudo, de ter em si “todos os
sonhos do mundo” (“Tabacaria”) leva o poeta a um beco sem
saída, porque o sujeito é uno e a realidade é múltipla. A
consciência dessa impossibilidade é responsável por uma
mudança de ritmo na produção poética de Álvaro de Campos.
Pouco a pouco, suas odes eufóricas, grandiloqüentes, vão sendo
substituídas por poemas, nos quais um “eu” desalentado põe-se
a refletir sobre o desejo de fuga da realidade banal, sobre a
inutilidade dos esforços e, sobretudo, sobre a oposição entre os
grandes sonhos e a mesquinhez do cotidiano […].
4 PESSOA, Fernando. “Carta de Fernando Pessoa sobre a Génese dos Heterónimos”. In: Poesia de
Fernando Pessoa. 3. ed. Lisboa: Editorial Presença, 2006. pp. 209-210.
Consubstancia-se, nesta fase, de maneira muito aguda, a
angústia existencial do homem moderno5.
Marisa Lajolo, em “A Leitura Literária na Escola”, fala mesmo da necessidade de
os alunos entrarem em contato com textos de natureza ensaística e de teor crítico, nas
aulas de Literatura, para que possam ter em mente que a Instituição literária não é
formada exclusivamente por poemas, por contos e por romances. Segundo ela, os
estudantes também devem estabelecer contato com textos de teor historicista, para que
possam inserir o texto literário na época em que este foi produzido e verificar, assim, a
sua importância e a sua recepção, quando veio a público pela primeira vez. Para Lajolo,
essa contextualização histórica deverá servir, ainda, para que os educandos verifiquem
se, hodiernamente, o texto literário com o qual entraram em contato desperta, nos
leitores, a mesma impressão, as mesmas emoções, que despertou noutras épocas.
De modo geral, não se pode – e talvez nem se deva – fugir
a alguns encaminhamentos mais tradicionais no ensino da
literatura: por exemplo, a inscrição do texto na época de sua
produção, uma vez que textos assim contextualizados nos dão
acesso a uma historicidade muito concreta e encarnada, à qual se
cola a obra de arte à revelia ou não das intenções do autor; outro
caminho, a inscrição, no texto, do conjunto dos principais juízos
críticos que sobre ele se foram acumulando, fundamental para
fazer o aluno vivenciar a complexidade da instituição literária
que não se compõe exclusivamente de textos literários, mas sim
do conjunto destes mais todos os outros por estes inspirados;
outro exemplo ainda, a inscrição do e no texto, no e do
cotidiano do aluno, entendendo que este cotidiano abrange
desde o mundo contemporâneo (no que essa expressão tem,
intencionalmente, de vago e de amplo) até os impasses
individuais vividos por cada um, nos arredores da leitura de cada
texto6.
Contudo, pensamos que talvez esses textos de natureza historicista, ensaística e/ou
crítica devessem ser apresentados aos estudantes somente depois que eles tivessem
entrado em contato com os poemas de Álvaro de Campos, pois assim, por meio das
leituras destes textos, eles poderiam fazer uma imagem muito melhor do poeta e de sua
obra; intenção, esta, aliás, dos autores do livro didático, ao colocarem para os estudantes
os excertos dos textos de Apolinário Lourenço e Robert Bréchon, seguidos de algumas
5 GOMES, Álvaro Cardoso. “Fernando Pessoa”. In: MOISÉS, Massaud (dir.). A Literatura Portuguesa
em Perspectiva: Vol. 4. São Paulo: Editora Atlas, 1994. pp. 128-129. 6 LAJOLO, Marisa. “A Leitura Literária na Escola”. In: ______. Do Mundo da Leitura para a Leitura do
Mundo. 3. ed. São Paulo: Ed. Ática, 1997. p. 16.
perguntas inferenciais, que, a nosso ver, poderiam ser suprimidas ou modificadas. No
próximo capítulo deste ensaio, teceremos algumas considerações acerca destas questões;
inclusive justificando a supressão ou a modificação delas. Por ora, justificamos o nosso
pensamento em torno do contato que os alunos precisam ter com o texto do autor, para
conhecer melhor não só o autor e o seu texto, mas também o contexto da produção do
texto e da sua recepção, por meio destas palavras de Zuleika Murrie:
Acrescenta-se, assim, à natureza literária, uma intenção
determinada: a leitura. O leitor adquire um papel privilegiado,
no estudo da literatura […].
Nesta perspectiva de análise, infere-se que o aluno
iniciante do 2º grau detém uma série de hipóteses, mesmo que
não sistematizadas, em relação ao conceito de literatura. […]
Os conceitos de texto literário em diversas épocas, através
dos escritores representantes de cada momento, devem ser
criticados e analisados à luz da perspectiva atual da crítica, bem
como a partir das leituras efetivamente realizadas pelos alunos,
a fim de não se tornarem parte de um ensaio autoritário e
ideológico, centrado no professor como transmissor do próprio
saber sobre o assunto. […]
Tal compreensão necessita do auxílio de um professor que
irá motivar a leitura da obra, gerando o “prazer” da leitura,
porque “prazer” também se aprende. […]
A atualização do texto literário depende da leitura
realizada e cada leitor traz sua própria perspectiva de mundo,
expectativas que o atraem, releituras dependentes do
conhecimento de cada um, passíveis de transformação, à medida
que se constrói um saber sistematizado sobre as mesmas […]7.
E de Vítor Manuel de Aguiar e Silva:
O texto literário, nas suas estruturas formais, retóricas,
estilísticas, semânticas e pragmáticas, deve ser o fulcro do
processo de ensino-aprendizagem e será a partir da descrição, da
análise, da interpretação e da valorização dessas estruturas que
se efectuarão as aconselháveis ou indispensáveis correlações e
articulações com a história da língua e da literatura, com os
períodos literários e com os contextos histórico-sociais.
[…]
Os programas de Português do ensino secundário devem
possuir portanto uma coluna vertebral, digamos assim,
textocêntrica, mas não devem confinar-se a um textocentrismo
extreme ou clausurado sobre si mesmo. A partir de cada «núcleo
de textualidade canónica», com sustentação nas estruturas
7 MURRIE, Zuleika de Felice. “Ensino de Literatura no 2º Grau: Possibilidades de Leitura”. In:
MURRIE, Zuleika de Felice et alii (orgs.). O Ensino de Português do Primeiro Grau à Universidade.
São Paulo: Ed. Ens. Contexto, 1998. pp. 79-88, passim, grifos nossos.
verbais, retóricas, estilísticas, sémicas e pragmáticas dos
próprios textos, deverá ser produzida e transmitida a informação
transtextual considerada como indispensável e apropriada para
tornar mais rica, mais fascinante e mais rigorosa também a
construção de sentido de cada texto. Partir do texto e regressar
sempre ao texto, mas tendo adquirido, antes e ao largo do
périplo textual, saberes e instrumentos de análise e compreensão
que permitam fazer com segurança, mas sem destruir o mistério
e a emoção da descoberta, a viagem textual. A hermenêutica do
texto literário co-envolve a inteligência, a intuição, a
sensibilidade, a emoção e o desejo, mas não dispensa os saberes
especializados, as regras metodológicas, as técnicas de análise
pertinente. […]
A leitura e a interpretação dos textos literários devem ser
para os alunos uma viagem guiada pelo professor com
segurança, mas com delicadeza e com discreção [sic], de modo
que o aluno seja efectivamente um leitor com identidade
própria, isto é, um leitor que lê com a sua memória, com a sua
imaginação, a sua experiência vital, as suas expectativas e os
seus conhecimentos linguísticos-literários [sic]. É necessário que
as emoções – a alegria, a tristeza, a angústia, a piedade, a
indignação, a revolta… –, fundamentais nos jovens e nos
adolescentes, não sejam asfixiadas ou esterilizadas no acto de
leitura por impositivas grelhas de leitura ou por modelos
analítico-interpretativos de aplicação mecânica8.
Como vimos, Zuleika Murrie e Vítor Manuel de Aguiar e Silva defendem a ideia
de que o estudante deve, antes e acima de qualquer coisa, entrar em contato com o texto
literário, para dele tirar suas próprias conclusões. A ida a textos de natureza ensaíst ica
ou crítica sem dúvida deve acontecer, mas somente para que o educando esclareça,
como frisou Vítor Manuel de Aguiar e Silva, algum(ns) ponto(s) que tenha(m) se
tornado obscuro(s) para ele, ao longo da leitura; que lhe tenha(m) prejudicado a
compreensão do texto literário.
No final da unidade, numa seção intitulada “Reflexão sobre o Literário”,
novamente o aluno é levado a conhecer Álvaro de Campos; melhor, as fases de sua
Poesia, por meio de excertos de textos de natureza ensaística e/ou crítica: coube a
Jacinto do Prado Coelho tratar das duas primeiras fases do heterónimo em questão; já a
Robert Bréchon, da última. Vale ressaltar que, neste momento da unidade, trechos de
poemas de Álvaro de Campos – “Opiário”, “Tabacaria” – foram utilizados, pelos
autores do livro didático, para ilustrar os textos dos ensaístas supramencionados. De
8 AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. “Teses sobre o ensino do Texto Literário na aula de Português”.
In: ______. As Humanidades, os Estudos Culturais, o Ensino da Literatura e a Política da Língua
Portuguesa. Coimbra: Editora Almedina, 2010. pp.207-216.
“Tabacaria” apenas alguns poucos versos foram utilizados: os quatro primeiros. Mais
uma vez acreditamos que deveria ter acontecido o inverso: os estudantes deveriam ter
entrado em contato com os poemas, num primeiro momento, para que, a partir de suas
leituras, pudessem tirar suas conclusões acerca das três fases do poeta, e, somente
depois, deveriam ter entrado em contato com os textos de natureza ensaística e/ou
crítica. O que pareceu foi que, neste caso, o texto literário deixou de ser algo principal e
passou a ser algo acessório, servindo apenas para ilustrar o que acabara de ser dito.
Sobre o texto literário como ilustração, disse Marisa Lajolo, em “O Texto não é
Pretexto”:
Uma outra função freqüentemente invocada para justificar
a presença de textos na prática escolar é o ensino de história da
literatura, que tem seu espaço garantido pelas diretrizes oficiais
nos últimos anos de segundo grau.
No cumprimento desta função, o texto costuma ilustrar
estilos de épocas ou de autores, figuras de linguagem e
procedimentos estilísticos devidamente inventariados pelo autor
(do livro didático) e/ou pelo professor.
Este é um caso particular da concepção do texto como
exemplo de alguma coisa. E mesmo quando esta alguma coisa é
a literatura, a atitude continua a ser tão imprópria quanto o
debruçar-se no texto em busca de modelos de comportamento ou
de procedimentos lingüísticos exemplares.
É preciso levar em conta, para refletir sobre isso, que tanto
as teorias da literatura quanto a subdivisão dela em conjuntos de
obras e autores rotulados por um ismo são históricas e
ideológicas. E, na diluição que sofrem até chegarem aos níveis
médios de escolaridade (segundo grau, supletivos, cursinho…),
transformam-se numas paródias de si mesmas. Perdem o
significado que têm na formulação original e se transformam em
informações desprovidas de sentido9.
Neste excerto, Lajolo deixa claro que utilizar o texto literário como ilustração de
características de Escolas literárias, de autores e de obras não só o descaracteriza,
porque esta não é a sua verdadeira função, como também o empobrece. Além do mais,
essas características assim postas aos educandos, ilustradas, exemplificadas por meio de
um texto literário, mas fora de um contexto maior, acabam por não fazer sentido para
eles. É preciso, portanto, que os alunos leiam os textos literários e que tirem, a partir
dessas leituras, suas próprias conclusões acerca da Escola, do autor e da obra. As
leituras de textos de natureza historicista, ensaística e/ou crítica devem ocorrer somente
9 LAJOLO, Marisa. “O Texto não é Pretexto”. In: ZILBERMAN, Regina (org.). Leitura em Crise na
Escola: as Alternativas do Professor. 10. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1991. pp. 60-61.
depois de eles terem feito as suas próprias leituras, como vimos e pelas razões que há
pouco expusemos.
3. As questões
As primeiras questões colocadas para os estudantes, na parte da unidade dedicada
a Álvaro de Campos e à terceira fase de sua Poesia, dizem respeito, como não poderia
deixar de ser, à biografia do poeta e às principais características de sua obra. Tais
questões, de teor inferencial, aparecem logo após os textos de natureza ensaística
escritos por António Apolinário Lourenço e Robert Bréchon, aos quais nos referimos há
pouco, e procuram fazer com que os educandos sejam capazes de, a partir dos textos
que leram, montar uma imagem do heterónimo em questão que os ajude a compreender
melhor a Poesia por este desenvolvida; sobretudo na sua segunda fase (“vanguardista” e
“modernista”), pelo fato de os autores do livro didático acreditarem que é a fase que o
melhor caracteriza.
Uma das perguntas feitas aos estudantes, após o excerto do texto de Apolinário
Lourenço – que já dissemos ser bastante escasso, em termos de informações acerca do
heterónimo pessoano em apreço –, pede para que eles lancem “algumas hipóteses acerca
de possíveis características temáticas e formais da poesia de Álvaro de Campos” com
base no que conhecem acerca dos significados de “modernista” e de “vanguardista”.
Acreditamos que essa pergunta seja muito vaga, uma vez que, por trás dos termos
“modernista” e “vanguardista” (isso se levarmos em consideração que os alunos já têm
uma ideia razoável do que esses vocábulos significam), podemos encontrar uma
infinidade de entradas lexicais. Além do mais, quantos estilos, ou quantas vertentes,
muitas vezes discordantes entre si, encontramos abrigados(as) pelo que
convencionalmente chamamos de “Vanguardas” e de “Modernismo”? Pensamos que,
para que os educandos possam fazer uma ideia aproximada, ou mesmo exata, de Álvaro
de Campos e de sua obra, seja necessário colocá-los em contato, primeiramente, com
textos do poeta, bem como deixar que cheguem, sozinhos – ou, depois, com a ajuda de
textos de natureza historicista, ensaística e/ou crítica –, à conclusão de que se trata de
um escritor “vanguardista” e “modernista”. Acreditamos, ainda, que, na impossibilidade
de o professor realizar discussões em torno das características da vida e da obra de
Álvaro de Campos com os estudantes, o que tornariam desnecessárias perguntas de
natureza exploratória, nesse sentido, por parte do livro didático, este, o livro didático,
poderia, então, trazer perguntas mais abertas para os alunos, a partir dos textos do
próprio autor, mas de forma a dotar-lhes de informações mais precisas acerca deste – de
Álvaro de Campos –, uma vez que seriam embasadas nos seus próprios poemas: “A
partir da leitura dos poemas ‘Ode Triunfal’ e ‘Saudação a Walt Whitman’, que
imagem(ns) podemos fazer do seu autor?” poderia, por exemplo, ser uma dessas
perguntas. Questões como essa, embasadas em leituras de textos literários, podem
tornar acessórias e, em alguns casos, até mesmo desnecessárias, leituras de textos de
natureza historicista, ensaística e/ou crítica, como o texto de Robert Bréchon que vem
imediatamente após o de Apolinário Lourenço, com o intuito de complementar-lhe as
informações. Como dissemos anteriormente, estes dois textos ensaístico-críticos
deveriam, na impossibilidade de serem trocados por poemas do próprio Álvaro de
Campos, dar lugar a textos mais informativos, mais substanciais, e de linguagem mais
simples; ou seja, a textos mais didáticos: sugerimos, anteriormente, um de autoria do
próprio Fernando Pessoa e outro de Álvaro Cardoso Gomes.
Já com relação às questões que vêm após os poemas “O que há em mim é
sobretudo cansaço” e “Lisbon Revisited”, textos que giram em torno da terceira fase da
Poesia de Álvaro de Campos e que mais diretamente nos interessam, devemos dizer que
elas procuram explorar (i) a compreensão ou a interpretação textual, como em “Explica
a afirmação que é feita na primeira parte [do poema ‘O que há em mim é sobretudo
cansaço’]”, e em “O sujeito poético [de ‘Lisbon Revisited’] afirma não querer nada e,
por isso, rejeita as ofertas que lhe fazem. Enumera as rejeições que ele faz”; e (ii) a
gramática, notadamente a sintaxe, como em “Encontra a oração subordinante das
orações subordinadas adverbiais causais presentes nesta [terceira] estrofe [do poema ‘O
que há em mim é sobretudo cansaço’]”, e a semântica, como em “Explica o significado
do último verso [do poema ‘Lisbon Revisited’], tendo em atenção a maiusculização de
‘Abismo’ e de ‘Silêncio’”. Curiosamente, nenhuma das questões realizadas a partir dos
poemas de Álvaro de Campos gira em torno da Literatura; melhor dizendo: nenhuma
das questões explora características do poeta, de sua obra ou da Escola literária à qual
ele está integrado, ou mesmo pede para que os educandos realizem uma leitura e uma
análise mais profundas dos textos em apreço. Sobre o texto literário ser utilizado para a
realização de atividades outras que não dizem respeito à leitura em si mesma e a
questões relativas ao universo literário, disseram estas palavras Regina Zilberman:
o objeto de leitura que preferentemente circula na escola é o
livro didático. Neste, a literatura faz sua entrada de modo
distinto: é texto, parte de um todo mais completo, empregado
com a finalidade de se alcançar certa aprendizagem.
O texto provém de uma obra literária, tomada integral,
como um poema ou um conto, ou parcialmente, como um
segmento de romance. Porém, ao ser transportado de uma
situação a outra, ele assiste ao obscurecimento de sua origem – o
livro de onde proveio, o patrimônio artístico e cultural a que
pertenceu. É o que permite ao livro didático tomar, diante do
texto, liberdades consideradas descabidas se adotadas perante
um objeto de arte. O texto, assim, representa a literatura já
dessacralizada pelo ensino, mas, ao mesmo tempo, alvo de
técnicas e atitudes que afastam progressivamente a ficção do seu
suposto destino: ser consumida pelo ato individual da leitura.
Isso se passa, porque o texto só legitima sua presença em
sala de aula, quando se torna objeto de alguma atividade, sejam
elas gramaticais ou de interpretação, jamais as exclusivamente
de leitura10
.
E Marisa Lajolo:
Em primeiro lugar, vale a pena considerar que, em
situações escolares, o texto [literário] costuma virar pretexto, ser
intermediário de aprendizagens outras que não ele mesmo. […]
De qualquer forma, o objetivo de proporcionar ao aluno
contato com modalidades cultas do português não pode ser
pretexto para limitar a isso o trabalho com o texto, pois o texto
[literário] não está em função da linguagem, mas vice-versa.
[…]
É bastante comum, nos textos de livros didáticos, a
proposição de exercícios chamados de compreensão ou de
intelecção. Hoje em dia, este tipo de atividade é muito difundido
e popular. […]
À primeira vista, nada a objetar. Parece realmente
importante assegurar-se que o leitor percebeu que quem foi para
a escola foi o João e não José, que o patinho que nadava no lago
era o amarelo e não o preto e, num outro nível, que quem morre
no Grande Sertão: Veredas é Diadorim e não Riobaldo que,
aliás, é quem conta a história…
Se esta compreensão episódica é fundamental, ela não se
esgota em si. Saber só isso de um texto [literário] é saber muito
pouco ou quase nada, pois é um saber que se constrói às custas
da polissemia do texto. Principalmente porque, na maioria dos
casos, o nível das questões propostas insulta não só os alunos
como os professores coniventes com elas, ao patrociná-las sem
crítica. Este equívoco tem seu preço: pode transformar-se num
10 ZILBERMAN, Regina. “Tempo para Leitura”. In: ______. A Leitura e o Ensino da Literatura. São
Paulo: Contexto, 1988. pp. 112-113.
modelo de leitura redutora do que o texto tem de mais
essencial11
.
De fato, como disse Lajolo, muitas das questões que encontramos nos livros
didáticos, em torno de textos literários, parecem “insulta[r] não só os alunos como os
professores coniventes com elas”: é justamente isso o que parece acontecer com relação
às questões do livro didático em apreço que giram em torno dos poemas de Álvaro de
Campos. Como se as questões que dizem respeito à compreensão ou interpretação
textual e à gramática já não fossem suficientemente fáceis, os enunciados delas já
trazem informações importantes acerca dos poemas (informações, essas, que poderiam
ser pedidas aos estudantes, para que estes pudessem se pronunciar sobre o que leram) e
apontam para as respostas; inclusive indicando em quais estrofes dos poemas o
educando poderá encontrá-las. Como exemplo disto, poderíamos citar estas perguntas:
“Este poema [‘O que há em mim é sobretudo cansaço’] […] aborda o tema do cansaço
do sujeito poético e pode ser dividido em quatro partes, correspondendo cada estrofe a
uma parte. Explica a afirmação que é feita na primeira parte”; “Na segunda estrofe [do
poema ‘O que há em mim é sobretudo cansaço’], o sujeito poético explica os motivos
para a sua sensação de cansaço. Indica esses motivos”; “O sujeito poético [de ‘Lisbon
Revisited’] afirma não querer nada e, por isso, rejeita as ofertas que lhe fazem. Enumera
as rejeições que ele faz”; e “No entanto, [o sujeito poético de ‘Lisbon Revisited’]
reclama alguns direitos: o direito à indiferença, o direito à solidão, o direito ao silêncio.
Encontra no texto expressões que remetam para cada um desses direitos”.
Como vimos, essas quatro perguntas dirigem o aluno já para as respostas (“Na
segunda estrofe o sujeito explica os motivos para a sua sensação de cansaço. Indica
esses motivos”; “O sujeito poético rejeita as ofertas que lhe fazem. Enumera as
rejeições”); de modo que este não precisa pensar muito para elaborá-las: as respostas
são, assim, mecânicas; ou seja, não exigem qualquer esforço da parte do estudante. Este,
para responder às questões, precisa apenas copiar alguns versos dos poemas que foram
previamente apontados pelos autores do livro didático, por meio das perguntas que
elaboraram, ou, quando muito, parafrasear o conteúdo da estrofe, também previamente
apontada pelos autores. Enfim, são bem estas as “perguntas de respostas óbvias12
” às
quais Zilberman fez alusão no seu texto “Tempo para Leitura”, quando tratou das
questões elaboradas pelos autores dos livros didáticos em torno dos textos literários.
11 LAJOLO in ZILBERMAN, op. cit., pp. 53-59, passim. 12 ZILBERMAN, op. cit., p. 113.
Pensamos que as questões à volta dos textos de Álvaro de Campos, bem como as
demais do livro didático, devam antes fazer com que os alunos pensem acerca do que
leram que propriamente falar-lhes dos conteúdos dos textos e indicar-lhes respostas
óbvias. Assim, propomos algumas perguntas que poderiam ser feitas aos estudantes com
relação ao poema “O que há em mim é sobretudo cansaço”: “Em torno de qual tema
gira o texto? Fundamente sua resposta com excertos do poema.”; “Que tipo de ‘cansaço’
seria esse de que fala o sujeito poético? Qual(is) o(s) motivo(s) para tanto ‘cansaço’?”;
“Qual efeito quis causar o eu lírico ao utilizar a expressão ‘Íssimo, íssimo, íssimo’, no
texto?”; “Comente a seguinte afirmação do sujeito poético: ‘Três tipos de idealistas, e
eu nenhum deles’, e diga quem poderiam ser esses três tipos de idealistas”; “A partir da
leitura do poema, justifique o seu enquadramento na terceira fase da Poesia de Álvaro
de Campos, com passagens do texto”.
Com essas perguntas mais “abertas”, no sentido de que não trazem informações
acerca do poema e de que não apontam para as respostas, acreditamos que os educandos
iriam pensar mais, antes de respondê-las. A partir da recorrência à palavra “cansaço”,
com a qual entramos em contato já a partir do título do texto e que aparece, ao longo
deste, pelo menos umas nove vezes, o estudante iria responder que o tema do poema é,
sem dúvida, “o cansaço”. E diria, possivelmente, que esse “cansaço” do sujeito poético
seria uma “vontade de não fazer nada”, causada por uma preguiça de iniciar o que quer
que seja. Por meio da sentença “Íssimo, íssimo, íssimo”, o educando diria que o eu
lírico quis transmitir a ideia de que o seu “cansaço” é enorme, imensurável; de que não
há cura para ele. Por fim, com relação ao verso “Três tipos de idealistas, e eu nenhum
deles”, o aluno diria que o sujeito poético não é idealista; ou seja, que ele não sonha
com o futuro e que, por isso mesmo, não luta para que os seus sonhos se tornem
realidade, como fazem os outros três tipos de pessoas. Esperaríamos que, neste
momento, após terem travado conhecimento com as biografias e com as obras de
Fernando Pessoa ortónimo, Alberto Caeiro e Ricardo Reis, os estudantes fossem
capazes de dizer que, com a expressão “Três tipos de idealistas”, o eu lírico referia-se a
Fernando Pessoa e aos outros dois heterónimos. “Há sem dúvida quem ame o infinito”
diria respeito a Fernando Pessoa, que tencionava, por meio da Arte, da Literatura,
chegar à glória; sobressair-se perante os homens comuns; chegar, o máximo possível,
próximo da Verdade absoluta, por meio das verdades relativas de cada um dos seus
heterónimos. Já “Há sem dúvida quem deseje o impossível” diria respeito a Ricardo
Reis, porque “Esse heterónimo pessoano, numa arte poética particularmente sua,
procurou sempre o mais alto, o impossível até, para encrustar uma poesia refinada,
concisa, elíptica, cunhada em linguagem esmerada e com vocabulário algo alatinado13
”,
bem diferente do que estava sendo praticado, em termos de Poesia, à época em que
viveu (fins do século XIX e início do XX). Por fim, “Há sem dúvida quem não queira
nada” diria respeito a Alberto Caeiro, pois
Este heterônimo pessoano, diante da impossibilidade de se
infelicitar com o sol, os prados e as flores que contentam com a
sua grandeza, procura minimizá-los, comparando-os com ele
próprio. Nessa redução do mundo, fica mais latente o “nada”.
Daí ser ele o heterônimo que nada quer14
.
Para finalizar, os educandos poderiam constatar facilmente que o poema “O que
há em mim é sobretudo cansaço” faz parte da terceira fase de Álvaro de Campos já a
partir da palavra “cansaço” que se encontra no título, pois “Fase do cansaço ou do
torpor”, como vimos, é o nome dado por alguns estudiosos em Pessoa à fase em
questão. Também perceberiam que é um poema da terceira fase a partir de sua
atmosfera de abulia e de tédio, reforçada pela constante alusão, ao longo do texto, ao
vocábulo “cansaço”; atmosfera, essa, que podemos encontrar em muitas das produções
desse terceiro momento da Poesia de Álvaro de Campos.
Com relação ao poema “Lisbon Revisited”, poderiam ser colocadas estas questões
para os alunos: “Qual o posicionamento do eu lírico perante a vida?”, “Qual(is) ideia(s)
de Alberto Caeiro podemos encontrar nesse poema de Álvaro de Campos?”, “Por que o
eu lírico faz alusão à sua infância de ‘céu azul’, no poema em questão?”, “O que Lisboa
representa para o sujeito poético?” e “A partir da leitura do poema, justifique o seu
enquadramento na terceira fase da Poesia de Álvaro de Campos, com passagens do
texto”.
A partir da leitura do poema “Lisbon Revisited”, os estudantes iriam notar,
facilmente, que o sujeito poético mostra-se extremamente negativo (daí também ser
chamado por alguns estudiosos em Pessoa de “o poeta do ‘não’”), o que facilmente se
verifica a partir da quantidade de advérbios de negação (“não”, “nada”) utilizados pelo
eu lírico ao longo de todo o texto. Já a partir daí, constatariam que se trata de um poema
da terceira fase da Poesia de Álvaro de Campos. Os educandos também perceberiam
13 Batista de Lima com base nas ideias do Prof. Doutor Linhares Filho em torno de Pessoa e de seus
heterónimos. BATISTA DE LIMA, José. Quatro Personalidades Pessoanas. Jornal de Poesia.
Disponível em: <http://www.jornaldepoesia.jor.br/blima01.html>. Acesso em: 30 jan. 2013. 14 Idem, ibidem.
que o sujeito poético, inconsolável, pretende isolar-se do restante do mundo e esperar
pela Morte, que viria a dar cabo ao seu sofrimento; comportamento, este, aliás, bastante
romântico, como também são românticas as outras formas de fuga utilizadas pelo eu
lírico para sair da realidade: a sua ida a Lisboa (uma fuga espacial, “Lisboa Revisitada”)
e o seu pensamento voltado para os acontecimentos da sua infância (uma fuga
temporal). O sujeito poético vai em direção à infância, notariam os alunos, porque
geralmente esta é uma época feliz da existência: durante a meninice há o predomínio da
ignorância e, consequentemente, a ausência de preocupações com questões graves.
Lisboa foi evocada, neste poema (“Lisbon Revisited”), justamente porque foi nessa
cidade em que o eu lírico viveu esses momentos felizes e também porque o “céu azul”
da cidade fazia-o lembrar daquele da sua infância. A cor “azul”, para este céu,
certamente não foi escolhida por acaso, mas pelo fato de o azul simbolizar paz,
serenidade e amor, dentre outros sentimentos positivos, de acordo com Modesto Farina,
em seu texto “Psicologia das Cores15
”. Por fim, após terem lido acerca de Alberto
Caeiro e de sua obra, os alunos perceberiam que, no poema “Lisbon Revisited”, o
sujeito poético, como ocorre com o eu lírico de muitos dos textos d’O Guardador de
Rebanhos, nega a metafísica, os sistemas completos, as conquistas das ciências e das
artes e a Verdade.
Após as perguntas em torno do poema “Lisbon Revisited”, os estudantes entram
em contato com algumas relacionadas, mais explicitamente, com a Linguística e com a
Gramática: essa parte da unidade é, por isso mesmo, denominada “Reflexão sobre a
Língua”. As questões desta procuram explorar o conhecimento dos educandos em torno
da Morfologia, a partir do trabalho com adjetivos, como podemos ver em “Classifica o
adjetivo presente no verso e indica o seu valor semântico”; da Semântica; da Sintaxe,
por meio do trabalho com as orações subordinadas, como podemos notar a partir do
enunciado “Classifica as orações subordinadas dos versos”; e da interpretação de texto,
novamente através da Semântica, como podemos perceber em “As frases do poema
‘Quero estar sozinho’ e ‘Quero ser sozinho’ representam situações assertivas. No
entanto, apresentam diferenças na interpretação. Explica a diferença aspetual entre
elas”. Não teceremos, aqui, considerações acerca do trabalho com a Linguística e com a
Gramática (sobretudo com esta) realizadas a partir dos textos literários, porque fizemos
isso, anteriormente. No entanto, salientamos que as questões desta parte da unidade não
15 FARINA, Modesto. “Psicologia das Cores”. In: ______. Psicodinâmica das Cores em Comunicação. 4.
ed. São Paulo: Edgar Blucher, 1990. pp. 114-115, passim.
trazem inovações com relação às demais que foram postas aos alunos e que procuravam
explorar o conteúdo dos textos literários: todas gravitavam em torno da compreensão ou
da interpretação de textos e de conteúdos gramaticais.
Curiosamente, as questões que mais exploram conteúdos ligados à Literatura,
dentro da unidade, encontram-se nas partes dedicadas à produção escrita e ao
desenvolvimento da oralidade. Na parte dedicada àquela, solicita-se ao estudante que
“Num texto de oitenta a cem palavras” estabeleça “a diferença entre a poesia de Ricardo
Reis e a de Álvaro de Campos no que se refere ao ‘não querer nada’”: esta questão
mostra-se interessante não só pelo fato de girar em torno dos aspectos literários, tão
negligenciados ao longo da parte da unidade relacionada a Álvaro de Campos e à sua
Poesia de terceira fase, mas por realizar uma ponte, uma ligação, com a parte
imediatamente anterior da unidade, aquela que diz respeito a Ricardo Reis e à sua obra.
O educando, desse modo, percebe que há um diálogo, intenso e interessante, entre as
obras poéticas de Fernando Pessoa ortónimo e de seus heterónimos, por trabalharem
com temáticas comuns e/ou pelo fato de as obras de uns terem sido influenciadas pelas
obras dos outros (influências de Alberto Caeiro sobre a Poesia dos demais, por
exemplo). Na parte dedicada ao desenvolvimento da oralidade, habilidade que os alunos
precisam dominar, para usar satisfatoriamente a Língua Portuguesa, o tom é o mesmo,
ou seja, de comparativismo, de diálogo: pede-se que o estudante prepare “uma
exposição oral sobre o seguinte tema ‘O tédio existencial’ em Pessoa ortónimo e em
Álvaro de Campos”. Assim, esta atividade mostra-se tão interessante e tão importante
quanto a anterior, pelas razões há pouco apresentadas.
Na parte do capítulo dedicada à Literatura, intitulada, por isso mesmo, de
“Reflexão sobre o Literário”, os autores procuraram transmitir para os educandos
informações acerca das três fases da Poesia de Álvaro de Campos, por meio de textos de
natureza ensaística e/ou crítica de Jacinto do Prado Coelho e Robert Bréchon, seguidos
dos excertos dos poemas “Opiário” e “Tabacaria”, conforme dissemos anteriormente.
As questões feitas aos estudantes, nesta parte, orbitam, como não poderia deixar de ser,
em torno das características concernentes a cada uma das fases da obra poética do
heterónimo em apreço. No entanto, percebemos, mais uma vez, que as perguntas guiam
o aluno para a resposta, solicitando que este simplesmente vá aos textos e retire deles
características de cada uma das fases: “Transcreve as expressões que melhor
caracterizam os temas desenvolvidos em cada uma das fases”; “Indica as características
que distinguem os estilos da primeira e da segunda fases”. O problema, neste caso, gira
em torno da natureza dos textos (ensaística e/ou crítica), uma vez que eles trazem, de
forma bastante evidente, tais características, fazendo com que o estudante responda às
questões de forma mecânica, sem qualquer esforço. As questões mostrar-se-iam
pertinentes se os textos utilizados fossem mesmo os literários, os poemas, que, nesta
parte do capítulo, como mostramos anteriormente, tornaram-se acessórios, apenas
ilustrativos. Enfim, percebemos que, na parte do capítulo dedicado ao trabalho com o
literário, há mesmo pouco de Literatura, como aliás ocorre em todas as outras partes.
Para finalizar esta parte do trabalho, dedicada à análise das questões do livro
didático em torno dos textos literários que ele traz, não poderíamos deixar de falar dos
testes que existem ao final de cada unidade e que procuram revisar o conteúdo desta. No
caso da unidade relacionada a Fernando Pessoa e a seus heterónimos, percebemos que
há testes em torno destes e daquele. Nos testes que dizem respeito a Álvaro de Campos
e à sua Poesia, encontramos, mais uma vez, uma preponderância da compreensão, da
interpretação textual, e da gramática, em detrimento do literário.
4. Sugestão de um Poema
Trapo
O dia deu em chuvoso.
A manhã, contudo, esteve bastante azul.
O dia deu em chuvoso.
Desde manhã eu estava um pouco triste.
Antecipação! Tristeza? Coisa nenhuma?
Não sei: já ao acordar estava triste.
O dia deu em chuvoso.
Bem sei, a penumbra da chuva é elegante.
Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante.
Bem sei: ser susceptível às mudanças de luz não é elegante.
Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante?
Dêem-me o céu azul e o sol visível.
Névoa, chuvas, escuros — isso tenho eu em mim.
Hoje quero só sossego.
Até amaria o lar, desde que o não tivesse.
Chego a ter sono de vontade de ter sossego.
Não exageremos!
Tenho efetivamente sono, sem explicação.
O dia deu em chuvoso.
Carinhos? Afetos? São memórias…
É preciso ser-se criança para os ter…
Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!
O dia deu em chuvoso.
Boca bonita da filha do caseiro,
Polpa de fruta de um coração por comer…
Quando foi isso? Não sei…
No azul da manhã…
O dia deu em chuvoso16
.
Propomos o poema “Trapo”, de Álvaro de Campos, para análise do décimo
segundo (12º) ano, porque acreditamos que ele traga, em seus versos, características
importantes da terceira fase do heterónimo em apreço; quais sejam: “tédio, tristeza,
decadência, […] desânimo, […] passado, […], pena, aborrecimento […], carência
vital17
”, a partir da metáfora em torno do “dia chuvoso”, cinzento (“O dia deu em
chuvoso”); oposição entre “passado feliz” e “presente melancólico, depressivo”, por
meio das metáforas “manhã azul”, simbolizando, ao que tudo indica, a Infância, e “dia
chuvoso”, simbolizando o momento presente, atual, a Idade adulta (“A manhã, contudo,
esteve bastante azul. / O dia deu em chuvoso”); a Morte, por meio da metáfora do
“sono” (“Chego a ter sono de vontade de ter sossego”); memorialismo, retorno ao
passado, romantismo, por meio das alusões à Infância, ao céu azul da Infância
(“Carinhos? Afetos? São memórias… / É preciso ser-se criança para os ter…).
Algumas das questões que poderiam explorar, junto aos estudantes, tais
características da terceira fase da Poesia de Álvaro de Campos, a partir do poema
“Trapo”, poderiam ser estas: “Quais cores, no poema ‘Trapo’, procuram dar conta dos
estados de espírito do sujeito poético, ao longo das diversas etapas da sua vida? O que
simbolizam essas cores?”; “Indique quais imagens o eu lírico do poema ‘Trapo’ utiliza
para representar as seguintes fases da sua vida: época fetal, nascimento, infância e idade
adulta. Justifique sua resposta com passagens do texto!”; “O poema ‘Trapo’ gira em
torno de uma dicotomia; em torno de uma(s) antítese(s): aponte versos capazes de
ilustrá-la(s)!”; “Apesar de ser um poeta modernista, podemos dizer que há muito do
Romantismo em Álvaro de Campos. A partir da leitura que você realizou de ´Trapo’,
aponte pelo menos duas características que tornam ‘romântica’ a obra do poeta em
16 CAMPOS, Álvaro de. Trapo. Revista Agulha. Disponível em: <
http://www.revista.agulha.nom.br/facam34.html>. Acesso em: 30 jan. 2013. 17 FARINA, op. cit., p. 113.
questão”; “O que sugerem os versos ‘Boca bonita da filha do caseiro, / Polpa de fruta de
um coração por comer’?”; “Justifique o título do poema a partir de seu conteúdo!”; e
“Quais características da terceira fase da Poesia de Álvaro de Campos poderíamos
encontrar no poema ‘Trapo’?”.
Agora, vamos às respostas: o poema “Trapo” gira em torno de duas cores,
utilizadas para caracterizar o sujeito poético ao longo de sua vida: o “azul”, utilizado
para representar a sua infância, a partir da imagem do céu que ele vira em tenra idade,
cuja evocação traz à tona a felicidade de épocas passadas, e o “cinza” do céu “chuvoso”,
nublado, utilizado por ele para simbolizar a idade adulta; o momento presente, portanto.
É senso comum que a cor azul represente alegria, ao passo que a cinza represente o seu
oposto; ou seja, a melancolia, a tristeza: o texto “Psicologia das Cores”, de Modesto
Farina, já referido, confirma isso.
Apesar de ficarem evidentes duas fases da vida do eu lírico, no poema “Trapo” – a
idade adulta, ou seja, a maturidade, e a infância, metaforizadas, respectivamente, pelo
“dia chuvoso” e pela “manhã de céu azul” –, outros momentos da vida do sujeito
poético parecem ser contemplados, na composição poética, por meio de outras
figurações ou imagens: se levarmos em consideração que a “manhã” representa a
primeira parte do dia e de que ela, no texto, representa a Infância; então o ato de
acordar, que antecede a manhã, representaria o nascimento, o que significaria dizer que
o eu lírico sente-se triste desde o seu surgimento (“Não sei: já ao acordar estava triste”).
Seguindo essa linha de raciocínio, podemos pensar que a “madrugada”, por anteceder o
ato de acordar e a manhã, estaria por representar, no poema, um estágio fetal do eu
lírico, momento em que ele se sentia seguro, feliz, por não ter de viver neste mundo,
ainda (“Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!”). Note-se que a
madrugada é “perdida” pelo fato de ser impossível retornar a ela; ou seja, o sujeito
poético, ainda que muito queira, não tem como voltar à proteção do útero materno.
Como vimos, o texto em questão, de Álvaro de Campos, gira em torno de uma
dicotomia, de uma antítese, que pode ser assim resumida: passado feliz e presente triste;
passado azul e presente cinza. Dois pares de versos são capazes de ilustrar isso muito
bem: “O dia deu em chuvoso / A manhã, contudo, esteve bastante azul” e “Dêem-me o
céu azul e o sol visível / Névoa, chuvas, escuros – isso tenho eu em mim”.
Apesar de ser um poeta modernista; aliás, o maior representante do Modernismo,
se pensarmos em Fernando Pessoa ortónimo e nos demais heterónimos, há muito de
Romantismo, ou seja, de características da Escola romântica, em Álvaro de Campos.
Possivelmente (ou “certamente”) devido ao fato de, como disse Massaud Moisés, n’A
Literatura Portuguesa, o Modernismo ser “caudatário do Simbolismo18
” e este, por sua
vez, trazer, em si, um pouco (ou “muito”) do Romantismo. Apesar de ser conhecido
como o heterónimo que olha para a frente, para o Futuro, para o progresso industrial,
Álvaro de Campos não deixou de voltar o olhar, como vimos, para o passado; para
sermos mais exatos, para o seu passado, como deixaram claro o poema “Trapo” e outros
da sua terceira fase (“Lisbon Revisited”, por exemplo). Esse retorno à infância como
forma de fuga da realidade, uma fuga “temporal”, da forma como vemos em “Trapo”
(“Carinhos? Afetos? São memórias… É preciso ser-se criança para os ter…), empresta
ao poema uma atmosfera romântica, bem típica de um Werter, de Goethe: a Infância é
tida como única época feliz da vida, por conta da ausência, nessa fase, de preocupações
existenciais e de paixões. Assim, o passado, para os românticos (sobretudo a “aurora da
[…] vida, […] infância querida que os anos não trazem mais19
”), parece ser sempre
melhor que o presente. Essa, portanto, é uma das características “românticas” da obra de
Álvaro de Campos que podemos encontrar no poema em apreço. Outra poderia ser a
projeção, na Natureza, do estado psicológico, espiritual, do eu lírico: angustiado, triste,
melancólico, depressivo, o sujeito poético de “Trapo” sente que se irmana com a
Natureza, igualmente cinzenta. Por fim, outra característica “romântica” da Poesia de
Álvaro de Campos que podemos encontrar no poema em análise é a Morte como última
das formas de fuga da realidade, a mais esperada, porque definitiva; metaforizada, no
texto, por meio da figura do sono: “Chego a ter sono de vontade de ter sossego”.
Os versos “Boca bonita da filha do caseiro, / Polpa de fruta de um coração por
comer” também se ligam ao passado do eu lírico de “Trapos”, o que podemos justificar
a partir dos versos que a estes se seguem: “Quando foi isso? Não sei… / No azul da
manhã…”. Eles parecem sugerir um amor que poderia ter sido, mas que não foi; ou seja,
uma paixão de infância que poderia ter “frutificado”, mas que não vingou; uma
possibilidade de ser feliz, mas que não foi adiante, que ficou no passado, talvez por falta
de coragem (ou de vontade) do sujeito poético.
Enfim, por todas as características que o poema traz, e que giram em torno, como
vimos, da Tristeza, da Melancolia, da Depressão e da Morte, é que podemos justificar o
seu enquadramento na terceira fase da Poesia de Álvaro de Campos: a “Fase do Cansaço
ou do Torpor”; a “Fase da Abulia e do Tédio”. Por se mostrar depressivo, cansado da
18 MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. São Paulo: Cultrix, 2006. p. 235. 19 Versos de “Meus oito anos”, do poeta romântico brasileiro Casimiro de Abreu.
vida, abúlico e entediado, ao longo de todo o poema, é que passamos a entender o
porquê do seu título, “Trapo”: “Indivíduo de aparência muito cansada, abatida, em
virtude de doença ou de problemas materiais ou morais20
”.
CONCLUSÃO
Após a análise da parte da unidade “Fernando Pessoa – Ortónimo e Heterónimos”
dedicada a Álvaro de Campos e à terceira fase de sua obra, percebemos que, como
disseram Regina Zilberman e Marisa Lajolo, em seus livros, o texto literário, no livro
didático Português +: 12º Ano, aparece apenas como pretexto para que se trabalhe, em
torno dele, conteúdos de interpretação, de compreensão textual, e de gramática; além de
exercícios em torno da escrita e da oralidade. Ainda que o ensino da Língua deva ser
realizado a partir do texto literário, como defende Vítor Manuel de Aguiar e Silva, o que
percebemos foi que mesmo os conteúdos em torno da Linguística e da Gramática
explorados a partir do texto literário são ralos, escassos, superficiais, fracos. Apesar de
serem literários, os textos principais de todos os capítulos, praticamente não há questões
em torno da Literatura, no livro. A abordagem com relação ao literário é, portanto,
insuficiente; praticamente inexistente, poderíamos afirmar. Desse modo, o livro didático
analisado parece não trazer inovações quanto ao uso do texto literário na Escola; ou
seja, continua repisando formas tradicionais de trabalho com esse gênero textual (o
texto literário como pretexto), conforme mostramos.
Desse modo, o livro didático Português + parece não dotar o aluno da
competência literária e da sensibilidade estética que ele deveria ter, no décimo segundo
ano de sua escolaridade. Nem de longe esse livro didático consegue mostrar ao
estudante a grandiosidade, a profundidade e o significado (para Portugal, para os demais
países de Língua Portuguesa e para a própria Língua Portuguesa) da obra de Fernando
Pessoa, tão bem percebidos por Eduardo Lourenço, com quem terminamos:
Na realidade, se Pessoa e ele só se converteu em superstar
da nossa Cultura da segunda metade do século XX, foi apenas
porque na sua obra e no modo de existência dela se materializou
uma metamorfose inegável da mitologia cultural portuguesa tal
como a tradição romântica a criara e no-la legara. Quer dizer,
porque só nela, e com ela, a nossa imagem, enquanto sujeitos
20 HOUAISS, Antônio (dir.). Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
históricos da cultura e, subsidiariamente, enquanto portugueses,
se conheceu como diferente, como “outra”, e através dela se nos
ofereceu um Portugal-outro que é hoje, paradoxo sumo, o de
toda a gente...
Efectivamente, se Fernando Pessoa se tornou o nosso
herói cultural por excelência, a nada mais o deve que à espécie
de olhar subversivo com que dinamitou a constelação de
valores, de referências, de estereótipos, de reflexos, de modelos,
que até ele tinham presidido à vida do imaginário lusíada21
.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. “Teses sobre o ensino do Texto Literário na aula
de Português”. In: ______. As Humanidades, os Estudos Culturais, o Ensino da
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ANEXOS