Barbara cartland a deusa do oriente

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A DEUSA DO ORIENTE Terror in the sun Brbara Cartland

A ndia, no comeo do sculo passado, extica e linda, mas tambm lugar de brbaros costumes, foi onde a doce e inocente Brucena encontrou o amor nos braosdo major lain. Mas esse amor precisaria ser muito forte para afastar Brucena dos perigos que corria na terra dos fanticos estranguladores!

Digitalizao: Nina Reviso: Ana Cristina Costa

Traduo: Diogo Borges Ttulo original: Terror in the sun Copyright: (c) 1979 by Barbara Cartland Traduo: Luiza Roxo Pimentel Traduo: Diogo Borges Editor e Publishing: Janice Florido Editor: Fernanda Cardoso Chefe de Arte: Ana Suely S. Dobn Paginador: Nair Fernandes da Silva EDITORA NOVA CULTURAL LTDA. Rua Paes Leme, 524 - 10 andar CEP 05424-010 - So Paulo - SP - Brasil Copyright para lngua portuguesa: 2001 EDITORA NOVA CULTURAL LTDA. Impresso e acabamento: DONNELLEY COCHRANE GRFICA E EDITORA BRASIL LTDA. DIVISO CRCULO - FONE (55 11) 4191-4633

CAPTULO I

1832

- Apraz ao sahib major conceder sua permisso para que o trem parta? O indiano, chefe da estao, exprimia-se com respeito. Ao mesmo tempo em que falava olhava por cima dos ombros para a confuso que se desenrolava naquele momentona plataforma. Momentos de enorme excitao haviam precedido a chegada do trem, o qual, recm-introduzido na ndia, era tido como um drago terrvel, que expelia fogo pelasventas. Indianos revestidos de dhotis, sris, trapos e panos que caam cintura abaixo, encontravam-se em um estado muito prximo da histeria coletiva. Vendedores queapregoavam seus produtos com vozes superagudas espiavam atravs das janelas dos vages superlotados e, com uma expresso de splica no olhar, ofereciam chipattis,doces coloridos, laranjas e bebidas avermelhadas. Monges ostentando trajes amarelos, soldados em uniformes escarlate, carregadores com pesadas bagagens acotovelavam-se em meio confuso geral. Havia os inevitveis adeuses apaixonados e recomendaes feitas, quase aos berros, queles que viajavam, por parte de quem ficava e acreditava que os passageirosiriam arriscar suas vidas no bojo daquele monstro perigoso. O major Iain Huntley contemplava vrios homens reunidos em torno de uma pilha de bagagem, possudo da firme convico de que eles se encontravam ali com o nicopropsito de armar alguma confuso. No momento em que o chefe da estao afastou-se dele, desdobrando sua bandeirola vermelha, o pandemnio explodiu. Os indianos comearam todos a correr, aos gritos e aos berros, abanando os braos e sacudindo seus bastes. Quase como em um passe de mgica, numerosos soldadosapareceram empunhando seus mosquete, deslocando-se rapidamente a fim de conter a multido ameaadora. Eles eram poucos, em comparao com os baderneiros que, dispostos a armar a maior confuso, perturbavam e empurravam as famlias que no iriam viajar naqueletrem e estavam sentadas ou dormindo na plataforma, ao lado de seus bens, os quais, na maior parte, consistiam em frgeis pacotes amarrados com corda. Cada famliapossua numerosas crianas, alm das inevitveis cabras. Toda aquela confuso tomou-os de surpresa e puseram-se a gritar, em meio ao choro generalizado das crianas e aos balidos dos animais, o que aumentou consideravelmenteo tumulto. Os chipattis voavam em todas as direes, os recipientes de vidro que mantinham as bebidas coloridas estilhaavam-se no cho e um bode livrou-se do lao queo prendia e saiu em carreira desabalada plataforma afora, perseguido de perto por seu desesperado dono. Possudo de uma sensao de alvio, o major Huntley achou que os soldados seriam perfeitamente capazes de controlar a situao assim que o trem partisse e andousem pressa em direo sua cabine, onde se encontrava seu criado ao lado da porta aberta, esperando por ele. As rodas comeavam a girar e o vapor e o resfolegar da mquina superavam qualquer outro barulho. A enorme locomotiva, fabricada na Inglaterra, parecia sobrepor-sea tudo e a todos. Quando estava para chegar cabine, notou, para sua grande surpresa, que a porta do vago se abria e uma mulher vestida de branco descia para a plataforma. Certificou-se imediatamente, com a rapidez de um homem habituado ao inesperado, que ela pretendia socorrer uma criana que, empurrada por aqueles que haviamarmado toda aquela confuso, estava cada na plataforma, sem ningum que a socorresse e na iminncia de ser pisoteada pela pequena multido. Apesar de muito pequena,chorava a plenos pulmes. Um segundo antes que os braos da desconhecida pudessem peg-la, o major Huntley agarrou a mulher pela cintura e colocou-a fora no vago. O trem comeava a deslocar-se com velocidade cada vez maior e como ele no tinha tempo de entrar em seu prprio vago, seguiu a desconhecida, trancando imediatamentea porta. Olhou para a plataforma que ficava para trs e viu dezenas de punhos levantados e gritos irados dos baderneiros, que pareciam um bando de chacais a quem a presaacabava de ser roubada. A velocidade aumentava cada vez mais e a estao j se perdia de vista. O major Huntley voltou-se para contemplar a mulher que ele tinha empurrado para dentrodo vago sem a menor cerimnia. Para sua grande surpresa ela era jovem e excepcionalmente bela. Havia retirado o chapu e seus cabelos negros emolduravam um rosto muito alvo. Seus olhos, grandes,escuros, porm pontilhados de dourado, olhavam-no carregados de clera. - Graas sua interferncia - comentou com rispidez -, aquela criana, sem a menor dvida, ser morta! - Quem a senhora e o que est fazendo aqui? - perguntou sem maiores rodeios. Sentou-se e olhou sua volta, com uma expresso incrdula no olhar, como se esperasse descobrir algum na cabine, fazendo-lhe companhia. Notou, porm, queela estava vazia. Voltou-se para a desconhecida e antes que ela pudesse responder sua primeira pergunta, indagou: - Quem foi que a colocou neste trem? No tinham o menor direito de fazer uma coisa destas! - Parece-me que qualquer pessoa tem o direito de viajar de trem, contanto que disponha de meios para comprar a passagem! - Mas no especificamente neste trem, que se dirige para Saugar. - Sim, eu sei e para l que quero ir. - Para Saugar? Ela, que era pouco mais do que uma garota, levantou-se. - Ser que o senhor tem alguma autoridade para me interrogar? - Autoridade plena - retrucou o major Huntley com firmeza. - Dei ordens no sentido de que nenhum europeu viajasse para Saugar que, no momento, rea proibida. - Por qu? A pergunta exigia resposta, mas ele retrucou um tanto evasivamente: - Por razes oficiais. A senhorita ainda no respondeu minha pergunta. Enquanto falava, adivinhou que ela no tinha a menor inteno de faz-lo e, dominando o tom autoritrio com que se exprimira at ento, disse: - Acho que devemos apresentar-nos. Sou Iain Huntley e, como pode notar por meu uniforme, perteno aos Lanceiros de Bengala. No momento, porm, exero tarefasespeciais nesta regio. O major Huntley acabou de falar e esperou por uma resposta. Enquanto se exprimia, pensava que aquela garota era por demais bela e jovem para viajar sozinhaem qualquer parte que fosse da ndia e sobretudo naquela regio especfica e naquele preciso momento. Fez-se uma pausa estudada, como se ela se ressentisse com o fato de ter de lhe dar informaes. Ento, como se tivesse chegado concluso que no fazia o menorsentido mostrar-se difcil, declarou, com bvia relutncia: - Meu nome Brucena Nairn. - E est viajando para Saugar? - Sim. - Posso saber por qu? - Vou ficar l com meus amigos. - Perdoe minha curiosidade, pois h uma explicao para ela, mas gostaria de saber seus nomes. Teve novamente a sensao de que ela gostaria de desafi-lo e dizer-lhe que no se metesse onde no era chamado. Ainda estava zangada. Podia notar esse fato em seus olhos, que agora reconhecia como expressivos e pareciam, apesar de escuros, estar irradiando aquele solque dentro de algumas horas transformaria as plancies atravessadas pelo trem em um inferno de calor. - Vou ficar com o capito e a sra. Sleeman. O major Huntley olhou-a sem acreditar no que acabava de ouvir. - Com os Sleeman? Mas como possvel? - Por qu? Parece-lhe to pouco provvel? - Mal posso crer que William Sleeman esperaria uma hspede como a senhorita sem participar-me sua chegada e sem tomar as devidas providncias para receb-la. Brucena Nairn deu de ombros. - Se este o seu modo de pensar, no h razo para que eu lhe diga mais nada. Levantou o queixo, com ar de desafio, e olhou ostensivamente pela janela, como se a conversa tivesse chegado ao fim. Quase a despeito de si mesmo, Iain Huntley ps-se a sorrir. Havia qualquer coisa de divertido no antagonismo daquela criaturinha que no tinha o menor direito de estar naquele trem e muito menos discutindo com ele. Achou que seria uma boa medida mostrar-se conciliatrio. - Devo pedir-lhe desculpas, srta. Nairn, mas, francamente, tomou-me de surpresa. Desde a semana passada que Saugar est proibida para todos os europeus. Comoacaba de ver na estao, tem havido alguma perturbao da ordem e se tivesse ficado por l poderia encontrar-se em uma situao muito desagradvel. - Mas qual foi a razo de toda aquela confuso? - Estas coisas costumam acontecer nesta poca do ano - respondeu o major, um tanto evasivo -, mas ainda no consigo compreender por que o capito Sleeman nome contou que estava sua espera. Enquanto falava notou, muito surpreendido, que um ligeiro rubor apoderava-se do rosto da garota e durante alguns segundos ela mostrou-se ligeiramente perturbada. - Ele e a srta. Sleeman esto de fato sua espera? - indagou, exprimindo-se em um tom diferente. Fez-se uma ligeira pausa antes que Brucena Nairn dissesse em voz baixa: - Eu... espero que sim. - Espera que sim! Pois ficaria muito grato se me contasse exatamente o que aconteceu e por que est aqui. - No h a menor razo... - comeou a dizer. Nesse preciso momento seu olhar cruzou com o do major Huntley e quase contra sua vontade ela capitulou. - Bem... acontece que... acontece que o capito Sleeman meu primo. - Ento ele sugeriu que a senhorita deveria vir ficar com ele aqui na ndia? - indagou o major Huntley, como se estivesse comeando a compreender o que haviaacontecido. - No... exatamente... Ela se exprimia com hesitao e ele olhou para Brucena Nairn fixamente, antes de prosseguir: - O que quer dizer com isto? - Sua mulher, a sra. Sleeman, escreveu-me pedindo que encontrasse uma bab para sua criana. Est esperando... um nen para o ano que vem. Brucena ficou levemente ruborizada, como se sentisse constrangimento em abordar assunto to ntimo e o major Huntley apressou-se em dizer: - Sim, tenho conhecimento deste fato. - Tentei de todos os modos encontrar uma pessoa confivel que quisesse vir para a ndia, mas todas se recusaram. Enquanto falavam, Brucena pensava que fora uma tarefa impossvel convencer as moas escocesas de Invernessshire de que a ndia era um lugar interessante parase trabalhar. A relutncia no partia somente delas, mas tambm de suas mes. - No vou permitir que minha filha se case com algum pago - diziam repetidas vezes. - Vo ficar por aqui mesmo, onde eu possa ficar de olho nelas. - Mas a senhora precisa levar em conta que seria uma aventura e tanto, alm de representar uma oportunidade de se educar - dissera Brucena, batalhando por suacausa tendo recebido de uma das mes, alis uma senhora muito abespinhada, a seguinte resposta: - Minha filha no vai viver esse tipo de aventura na idade em que se encontra. Se a coisa lhe parece to atraente, srta. Brucena, por que ento no vai? Foi a partir dessa sugesto que Brucena comeou a acalentar a idia. No momento apenas rira, porm mais tarde, quando sua misso de encontrar uma bab paraa prima Amelie revelava-se cada vez mais impossvel, comeou a sentir que a ndia lhe acenava e que seria tolice recusar o convite. No se sentia feliz em casa a partir do momento em que tivera idade suficiente para compreender que fora um grande e irremedivel desapontamento para seu pai,pois ele queria um filho. O general Nairn tinha apenas dois interesses na vida: seu regimento e a perpetuao de seu nome. Sua maior alegria consistia em abrir os livros nos quais podia seguir a histria dos Nairn desde as pocas mais remotas e provar que todos eles tinham sidoaudazes guerreiros. Brucena costumava pensar que ele havia sonhado desde criana com o dia em que teria um ou mais filhos a seu lado, combatendo junto a ele, acrescentando trofusdas guerras em que tomariam parte queles que j pendiam das paredes do castelo de Nairn. - Sou um desapontamento para papai - dizia a si mesma, antes mesmo de completar nove anos. Nos anos que se seguiram ela comeou a se dar conta da extenso de seu ressentimento em relao a ela, pois havia fraudado a maior de suas ambies. Se no houvesse outras maneiras de relembrar o fato, ela o evocaria toda vez que ouvia seu nome ser pronunciado. Bruce era um nome de famlia entre os Nairn e seu pai a batizara quase como se estivesse desafiando os deuses que lhe tinham aplicado um golpe baixo, no lhedando o filho que ele desejara to ardentemente. H dois anos, logo aps a morte de sua me; seu pai, com pressa quase indecente, aproveitara a primeira oportunidade para voltar a se casar. Escolhera uma jovem apenas trs anos mais velha do que sua filha, mas que era muito diferente na aparncia e que poderia ser considerada como "uma boa criadeira". Desajeitada, pesadona, sem a menor pretenso a uma bela aparncia, Jean sentira-se orgulhosa e excitada por casar com o senhor do castelo de Nairn, porm ficouperturbada com a aparncia de sua enteada a partir do momento em que a viu. Era inevitvel que a beleza de Brucena e a atrao que os homens sentiam por ela no contassem pontos a seu favor junto a uma madrasta, sobretudo em se tratandode algum to jovem. A tenso que sempre existira entre ela e seu pai acentuou-se rpida e violentamente, em tudo o que dizia respeito sua nova esposa. Quando, h seis meses,Jean dera a luz quele filho to esperado, Brucena constatou que sua posio no castelo tornara-se insustentvel. Seu pai a censurava por qualquer pretexto. Tentava ignorar o dio estampado no olhar de sua madrasta e tinha certeza de que assim que o herdeiro mimado e adoradopudesse ver e pensar acabaria por odi-la tambm. - Preciso ir embora daqui - pensou dezenas de vezes, mas no tinha a menor idia de para onde ir. Seus parentes no somente no a queriam, como tambm se sentiriam muito constrangidos em lhe oferecer um lar sem serem solicitados a tal pelo general. Apesar de Brucena nunca ter abordado o assunto com ele, achava que o orgulho de seu pai jamais lhe permitiria pedir ou aceitar favores de seus parentes, a maiorparte dos quais achava aborrecidos, convidando-os raramente para ir ao castelo. Tudo o que Brucena possua eram trezentas libras, deixadas a ela em testamento por sua av. Recebera orientao no sentido de no gast-las e sabia que seu pai considerava aquela quantia como parte de seu dote o que at certo ponto, o dispensava demaiores esforos, no sentido de complet-lo. Compreendia agora que aquilo era uma ddiva dos deuses, que lhe permitiria pagar sua viagem ndia. Debateu durante muito tempo consigo mesma se deveria contar a seu pai o que pretendia fazer e decidiu pela negativa. Sentia que, apesar de ele no gostar dela, apreciava no fundo ter algum que pudesse repreender e com quem pudesse brigar. Brucena se encontrava sempre por l e o general podia despejar sua clera sobre ela, sempre que alguma coisa o desagradava, e isso de um modo violento, queele teria hesitado em empregar com qualquer outra pessoa. Subitamente, pareceu a Brucena que tudo se harmonizava enquanto lhe passava um plano pela cabea e ela no encontrou a menor dificuldade em p-lo em prtica. Uma garota, sua nica amiga depois que ela se tornara uma mocinha, convidou-a para fazer companhia a ela e a seus pais, em uma viagem a Edimburgo. - Papai e mame vo estar muito ocupados - disse a jovem para Brucena. - Papai tem de receber todas as pessoas importantes que vm do sul para a inspeo dastropas. Acharam que eu me sentiria muito s e sugeriram que eu a convidasse para viajar conosco. Podemos visitar as lojas e quem sabe at mesmo sermos convidadaspara ir a um baile! De qualquer modo, seria divertido viajarmos juntas. - Muito divertido! - concordou Brucena. Achou que seu pai criaria dificuldades, mas, para sua grande surpresa, ele declarou que achava a idia muito boa, contanto que ela no se ausentasse por muitotempo. A seu modo de ver, ele estabelecera aquela condio porque, em princpio, no lhe permitia nenhuma diverso, mas h um ano a recusa teria sido peremptria.Porque naquele momento ainda no lhe nascera o herdeiro, o filho que perpetuaria seu nome. Ao despedir-se do pai e da madrasta com forada cordialidade de ambas as partes, Brucena teve certeza de que eles, no fundo, sentiam-se alegres em livrar-sedela por algum tempo. Achou que isto a eximia de quaisquer sentimentos de culpa em relao quilo que pretendia fazer. Permaneceu durante uma semana em Edimburgo, comprando s escondidas tudo aquilo que achava que iria necessitar na ndia. Era suficientemente inteligente para no ir para um novo pas antes de aprender algo a respeito e fora muito difcil localizar em casa livros que lhe revelassemo que queria saber. Havia, entretanto, numerosas informaes sobre a ndia nas livrarias de Edimburgo e ela logo reuniu uma pequena biblioteca. Sabia que teria tempo de ler e releraqueles livros durante a viagem. Disse a seus amigos de Edimburgo que precisava voltar para casa, pois seu pai estava sua espera e quando eles, com relutncia, despediram-se dela, tomou umtrem para Londres. "Era agora que a verdadeira aventura comeava", pensou, enquanto viajava para o sul. Por mais estranho que parecesse, Brucena tinha plena confiana em que saberia tomar conta de si mesma e que chegaria ndia sem que nada de mal lhe acontecesse. A sra. Sleeman mandara-lhe instrues completas sobre as providncias que deveriam ser tomadas em relao viagem da bab, se acaso encontrasse uma que quisesseir. Ao ler todas aquelas pginas preenchidas pela caligrafia elegante de prima Amelie, Brucena pensou, com um sorriso, que suas recomendaes mais se assemelhavamao despacho de uma encomenda valiosa que no deveria ser danificada durante a viagem. Certificou-se de que a companhia P.&O. tomaria todas as providncias e que uma acompanhante para a jovem seria encontrada entre as passageiras que viajavamna segunda classe. Haver missionrias ou senhoras crists pertencentes a alguma organizao e que estaro viajando para Bombaim. Prima Amelie escrevera: "Tenho certeza de que no aceitariam dinheiro por seu trabalho, pois o considerariam um ato de caridade. Voc deve dar pessoa que escolheu um presente adequado,a fim de que ela recompense aquelas senhoras por sua bondade. No escritrio da companhia, P.O. Brucena relatou uma histria um tanto diferente. - Tenho de viajar at a ndia para ficar com meus parentes, mas infelizmente a senhora que deveria me acompanhar adoeceu. Os senhores no fariam a gentilezade encontrar algum que pudesse tomar conta de mim durante a viagem? O funcionrio olhou para o rostinho bonito de Brucena e achou que era absolutamente necessria a presena de uma acompanhante para uma garota to atraente. Havia sempre oficiais de volta ptria, de licena. Lidar com romances nascidos a bordo era uma das tarefas menos rduas com que um comissrio se via a braos... Algumas vezes, no entanto, a situao tornava-se traumatizante quando os passageiros se envolviam demais e ento surgiam dificuldades inesperadas... Ele, entretanto, disps-se a colaborar no que pudesse, vindo portanto de encontro s expectativas da sra. Sleeman. - Acho que tenho precisamente a pessoa de que necessita, srta. Nairn. O pastor Grant e sua mulher esto de regresso a Bombaim e tenho certeza de que a sra.Grant colaboraria de muito bom grado, quando eu lhe explicar as circunstncias. - Seria muita bondade de sua parte. Notou pela expresso do funcionrio que ele removeria cus e terras a fim de ajud-la. A sra. Grant e o pastor revelaram-se pessoas extremamente prestimosas, porm muito aborrecidas... Cercaram Brucena com uma aparncia de respeitabilidade, masno interferiram em sua vida e ela passou grande parte da viagem lendo. Tambm apreciava os divertimentos a bordo e noite transformava-se no centro de atrao dos homens que queriam todos danar com ela, para grande despeito dasoutras passageiras. Era a primeira vez na vida que se sentia livre e sem ser continuamente censurada, como acontecia o tempo todo em casa. Sentia uma grande alegria em poder exprimir uma opinio sem ser reprimida e uma alegria ainda maior em saber que, quaisquer que fossem os sentimentos de seupai em relao ao que ela acabara de fazer, no havia nenhuma atitude que ele pudesse tomar. Havia gasto uma quantia aprecivel com as roupas e a passagem, mas ainda lhe sobrava algum dinheiro. Agora que havia tomado a deciso e deixado sua casa, sabia, no fundo do corao, que jamais regressaria, e se os Sleeman no a quisessem, encontraria algumaoutra casa onde pudesse trabalhar. Havia telegrafado para eles antes da partida do navio, dizendo: "Encontrei pessoa solicitada. Seguem detalhes. Afetuosamente, Brucena." Omitiu deliberadamente a data da chegada e deixou de explicar que ela prpria iria, em lugar da bab que prima Amelie havia pedido. Era uma precauo necessria, pois sentia que talvez eles no a quisessem e no poupariam esforos para envi-la de volta para casa, assim que chegasse a Bombaim. - Havero de pensar que a bab chegar dentro de um ms e que na certa, que alis no tenho a menor inteno de escrever, explicarei quem ela e por que pensoque uma pessoa recomendvel. Voltou a refletir profundamente sobre o assunto e certificou-se de que quando chegasse disposta a fazer tudo aquilo que se esperava de uma bab, os Sleemanachariam extremamente difcil mand-la embora. - Vo ter de manter-me em sua companhia pelo menos durante alguns meses - pensou Brucena. Ao mesmo tempo, a despeito de ter certeza de que seria uma bab muito mais competente do que aquelas rudes moas escocesas, no podia deixar de sentir que estavase impondo junto a pessoas que talvez no a quisessem. O primo William tinha sido sempre muito gentil com ela. Lembrava-se de que quando criana ele lhe inspirava um grande respeito e at mesmo um certo receio,pois lhe parecia um jovem muito inteligente. Tinha cabelos alourados, olhos azuis e uma fronte ampla. Quando ele os visitou pela segunda vez, anos mais tarde, tinha domnio do rabe, do persa e do indu. Nascera na Cornualha, a exemplo de sua me, e suas famlias tinham sido vizinhas durante anos a fio. Devido a sua inteligncia, por volta dos trinta anos foidispensado de seu regimento, ingressando na administrao pblica. O general Nairn ficara impressionado com o fato de que ele havia se tornado um magistrado e umadministrador regional na ndia Central muito antes dos homens de sua idade. H trs anos, uma carta do capito Sleeman dirigida ao general comunicava que ele tinha sido nomeado pelo novo governador-geral, lorde William Bentick, paraocupar um cargo muito importante. - o homem certo para o posto certo - dissera o general sentenciosamente enquanto lia a carta durante o caf da manh. - E de que cargo se trata, papai? - O ttulo dele superintendente para a Supresso da seita Thuggee, mas voc no entenderia se eu lhe dissesse do que se trata. Ele se exprimia em tom peremptrio, no somente como um homem que acha que o intelecto de uma mulher no pode se expandir alm dos limites da cozinha ou doquarto das crianas, mas tambm porque no apreciava a curiosidade de Brucena, que a levava a formular perguntas que ele teria apreciado ouvir de um rapaz e node uma menina. - J li a respeito dos thugs, papai - replicou Brucena. - Trata-se de uma sociedade secreta que cultua Kali e acha que um dever sagrado estrangular as pessoas. - Voc no devia se informar a respeito dessas coisas - disse o general com profundo desagrado -, mas, dentro em breve, William controlar essa gente abominvel. - E como pretende agir? - Deram-lhe cinqenta soldados da Cavalaria e quarenta sipaios, pertencentes Infantaria. mais do que suficiente. Gostaria eu mesmo de empreender esta tarefa,se fosse mais jovem. Havia dezenas de perguntas que Brucena queria fazer a seu pai, mas ele saiu do quarto levando a carta de William Sleeman e ela sabia que sua curiosidade noseria satisfeita. Assim sendo, tentou averiguar tudo o que pudesse a respeito dos thuggee, mas sem grande sucesso. Mesmo em Edimburgo os livros que conseguiu comprar no lhedisseram muito mais do que aquilo que ela j sabia. Enquanto o major Huntley a encarava com um brilho de suspeita no olhar, ela disse: - Meu primo pediu que arranjasse uma bab, mas como no consegui encontrar a pessoa de que eles necessitavam... resolvi me apresentar. O major Huntley sorriu. - E sem lhes dar a oportunidade de rejeit-la? - Sim. - Agora estou comeando a entender. A senhorita no viajou desde a Inglaterra sem ter a companhia de algum, no mesmo? - No. Fui assistida com muita dedicao pelo pastor Grant e sua senhora, at Bombaim. Chegaram at mesmo a encontrar algum que tomasse conta de mim de lat a cidade de Bhopel, mas infelizmente minha acompanhante ficou doente no ltimo momento e em vez de esperar que eles providenciassem mais algum decidi vir sozinha. - Vejo que uma jovem cheia de iniciativa. Sabe, porm, que fora de todo e qualquer propsito uma mulher, seja ela casada ou solteira, viajar sozinha nandia? - Pensei que os ingleses tinham os indianos sob controle... - ela retrucou, em tom de provocao. - Fazemos o que podemos. Ao mesmo tempo, mal posso acreditar que a senhorita viajaria pela Inglaterra sem uma governanta ou uma criada. - Sei tomar conta de mim mesma. - No duvido, mas algo que no deve tentar fazer neste pas. Brucena lembrou-se dos revoltosos e da cena tumultuosa que eles haviam aprontado na estao. No daria ao major Huntley a satisfao de saber que eles, na verdade,haviam-na deixado terrivelmente assustada e no duvidava de que algo terrvel havia acontecido com o beb. - Agora que se encontra aqui, posso cuidar da senhorita at o fim da viagem, mas acho que o capito ficar muito surpreendido. - Est trabalhando com ele? - Estou, sim. - Ento por que tem um posto mais alto do que o dele? O major Huntley sorriu. - Seu primo um funcionrio pblico nomeado diretamente pelo governador-geral. Administra um territrio muito extenso, enquanto eu comando os soldados. Brucena haveria de descobrir mais tarde que ele estava subestimando suas funes, mas naquele momento limitou-se a sorrir. - J que est trabalhando com primo William, no quer me falar a respeito dos thuggee? Fiquei muito interessada no assunto desde que o primo William foi nomeadopara este cargo, h trs anos, mas muito difcil saber o que quer que seja a respeito deles. - E por que est to interessada? - Tudo o que diz respeito ndia me interessa. Na realidade, nasci aqui e apesar de no me lembrar de nada sempre tive vontade de regressar. O major Huntley pareceu ter ficado muito surpreendido. - Meu pai serviu durante alguns anos na fronteira noroeste. Partimos da ndia quando eu tinha um ano de idade e apesar de ele regressar mais tarde, permanecendoaqui durante alguns anos, minha me e eu ficamos na Esccia. - E ainda assim o pas a atrai? - estranho - disse Brucena, aps uma pausa -, mas desde que cheguei a Bombaim tenho a sensao de me encontrar em casa. Ele a encarou com uma certa reserva, como se achasse que ela estava se exprimindo daquele modo para conseguir um certo efeito. Ela entretanto, no o olhava e sim para a paisagem, achando que aquelas terras secas e quentes, as aldeiazinhas perdidas em meio s rvores e os bfalos quearavam a terra eram algo que ela j vira algum dia. No tinha a menor idia dos motivos que a levavam a sentir-se daquele jeito. - A senhorita me faz uma pergunta a respeito dos thuggee - disse o major Huntley e imediatamente ela voltou-se para ele, repleta de interesse. O major prosseguiu: - Espero que durante sua permanncia na ndia no venha a travar conhecimento com eles. Na realidade, muito importante que todas as pessoas que vivem nestaregio estejam sempre de sobreaviso. Enquanto falava lembrava-se do que havia visto no templo de Kali, em Bindhaghel, beira do rio Ganges. Tratava-se de um santurio procurado no fim da estao chuvosa por todos os peregrinos da ndia, que iam at l a fim de fazer oferendas deusa. Os caminhos que conduziam ao templo estavam atulhados de carros de boi, de mendigos e de peregrinos de. ps descalos. Ao redor das muralhas do templo sentia-se o cheiro de incenso, de flores e nuvens de p turbilhonavam em torno da construo. No ar pairava tambm o odor damorte. Noite e dia sacrificavam-se bodes e seu sangue escorria pelos degraus do templo. Seus balidos assustados misturavam-se aos gritos dos devotos fanticos, quese flagelavam enquanto suplicavam a bno dos deuses. Para Iain Huntley aquela deusa sanguinria, a terrvel esposa de Shiva, o Destruidor, negra, furiosa e nua, com sua clava adornada de crnios humanos, era osmbolo de tudo contra o qual ele lutava. A lngua que saa para fora, os olhos injetados de sangue daquele dolo grotesco, aquele cho fumegante onde a morte e o terror eram festejados, este era oquadro de abominao-a que se entregavam os thugs. Aquele era o seu lugar sagrado e dali a irmandade de estranguladores partia h centenas de anos para aterrorizar aqueles que viajavam pela ndia. Os adeptos do culto tinham seus rituais prprios, bem como sua tradio e hierarquia e acreditavam, ao estrangular algum, que estavam matando em defesa dacausa de Kali. Imaginando como poderia falar sobre os thuggee para aquela garota inocente sentada diante dele, Iain Huntley mergulhou novamente em seus pensamentos e lembrou-sede que a poltica tradicional da Companhia das ndias Orientais baseava-se na no interferncia nos costumes religiosos da ndia. Na realidade, o governo fazia vista grossa sobre as lendas e os feitos sanguinrios dos thuggee, mas as autoridades inglesas, cuja presena na ndia comeavaa aumentar, possudas de um zelo reformista, ficavam horrorizadas com os costumes locais, que at ento permaneciam inalterveis. Os ingleses estavam determinados a eliminar os costumes mais cruis, por mais antigos ou ligados s divindades. O infanticdio e os sacrifcios humanos foramproibidos, bem como o suttee, a prtica que consistia em se queimar as vivas nas fogueiras. Era evidente que algo deveria ser feito em relao a Bindhaghal, sede da sociedade secreta dos estranguladores. O culto no tinha sido profundamente estudado e nem suas ramificaes observadas, at que o capito William Sleeman, que fazia parte do Exrcito de Bengala,tornou-se interessado em seus tenebrosos mistrios. Ficou sabendo que os thugs operavam dentro do mais absoluto segredo, de acordo com rituais escrupulosamente obedecidos. Ficavam de tocaia, beira das estradas,e todos eles eram treinados para matar, estrangulando suas vtimas por meio de um leno de seda amarelo. Em seguida, faziam profundas incises rituais nos cadveres, enterravam-nos ou jogavam-nos em poos profundos; queimavam os pertences desprovidos de valor elevavam o resto. Nenhum trao dos infortunados viajantes era deixado no local do crime. A exemplo do que acontecia com a maior parte das atividades na ndia, pertencer aos thuggeeera algo hereditrio. Os meninos eram iniciados gradualmente naquelas horrendas prticas: primeiro, como aprendizes, em seguida cavavam as sepulturas, depois, davamassistncia nos assassinatos e, finalmente, desde que demonstrassem grande ferocidade, tornavam-se blurtote qualificados ou estranguladores, aristocratas entre osthugs. Foi William Sleeman que identificou a sede e as enormes ramificaes da sociedade, que se espalhava como uma teia venenosa sobre a ndia inteira. Estabelecendo seu quartel-general em Saugat, uma cidadezinha acanhada, situada s margens de um lago no corao da regio dos thuggee, ele ps-se a organizarsua campanha. Iain Huntley recordava-se agora de que alguns oficiais mais velhos, a servio dos prncipes indianos, eram estranguladores experientes, o mesmo acontecendocom um determinado sargento a servio do maraj de Hockar. Alguns eram criados de europeus, que neles depositavam cega confiana. Outros haviam passado quase toda a vida a servio das Foras Armadas da Companhia dasndias Orientais e um deles at recentemente fora informante da polcia no que dizia respeito a outros campos do crime. Era assustador pensar que o homem em quem se havia confiado durante anos a fio, um soldado que obedecia suas ordens, seu prprio criado pudesse ter feito umjuramento secreto e pertencesse temvel seita thuggee. Para os thugs seu trabalho era sagrado e eles acreditavam que seus poderes eram sobrenaturais. Tinham uma ligao oculta com seu parceiro do mundo animal, o tigre. Um estrangulador famoso informou, ao ser interrogado: - Aqueles que escapam dos tigres caem nas mos dos thugs, e aqueles que escapam dos thugs so devorados pelos tigres! Pensando bem, talvez os tigres fossem menos assustadores! O major Huntley ouvira um prisioneiro gabar-se de que tinha estrangulado novecentos e trinta e uma pessoas. Havia um bando de thugs composto por trezentos homens que se vangloriavam de ter cometido mais crimes do que seria crvel admitir. Iain Huntley sabia que aqueles dois ltimos anos em que estivera trabalhando ao lado de William Sleemen tinham sido os mais inacreditveis, os mais assustadorese ao mesmo tempo os mais excitantes de toda a sua existncia. Como poderia explicar tudo aquilo para aquela jovem recm-chegada da Inglaterra e que tudo desconhecia da ndia? Como se tivesse conscincia do que ele estava pensando, Brucena disse: - Quero compreender tudo isto e sei perfeitamente que se trata de uma idia muito ambiciosa, mas mesmo assim tenho de comear por algum lugar. - Sinto apenas que, tendo vindo ndia, comece pelos thuggee - replicou o major Huntley. Ela sorriu. - De certo modo a coisa fica mais interessante. Tem gente que vem aqui e s sabe fazer elogios ao Taj Mahal o ao brilho da administrao da Companhia das ndiasOrientais... Havia um certo sarcasmo no tom com que ela se exprimia, o que fez com que o major Huntley a encarasse fixamente. - Nossa administrao brilhante em certos aspectos, mas em um pas to grande e to densamente povoado como a ndia, h inevitavelmente muitas coisas queainda devero ser feitas. - Acredito, mas de certo modo acho uma grande presuno de nossa parte tentar mudar um povo cuja civilizao muito anterior nossa. Quem somos ns para julgarse suas crenas so certas ou erradas? Iain Huntley olhou-a muito surpreendido. Aquela no era a atitude convencional tomada pelas jovens que vinham ndia. A maior parte delas preocupava-se apenas com as diverses que encontrariam no Palcio do Governo, nos chs, nas partidas de plo, nos bailes e nos mexericos. As demais eram missionrias dedicadas, firmemente resolvidas a pr um ponto final nas prticas dos indianos, pois divergiam frontalmente dos conceitos de Beme de Mal, que lhes haviam sido inculcados em sua ptria. Iain Huntley sentia profunda averso por aquele imperialismo evanglico combinado com um grande fervor moral. Considerava medocres e de mentalidade estreitaaqueles que haviam feito daquelas teorias o objetivo de suas vidas. Pensava com frequncia que preferia a superstio e a selvageria da ndia, o costume de queimar as vivas, o infanticdio carolice e ao zelo estreito e mesquinhodaqueles que no apreciavam nem mesmo a beleza do pas, pois ele exercia um efeito sedutor sobre suas pessoas. - Acho que a primeira coisa que tem a fazer compreender os indianos como indivduos e no como um todo, pois cada um deles pertence a uma casta diferente,tm pontos de vista diversos e obedecem a regras que eles mesmos se impuseram e que nenhum governo, por melhor administrado que seja, poder alterar. - E se agssemos assim ns os estragaramos - comentou Brucena, como se estivesse falando consigo mesma. - por isso que quero compreender tudo o que diz respeito ndia. - Por qu? A pergunta fora muito brusca e ela sabia que o homem que a formulara suspeitava que suas motivaes estivessem ligadas a uma mera curiosidade. - A resposta a isto o fato de eu sentir que tenho muito o que aprender da ndia e que tenho muito a receber dela. Iain Huntley ficou novamente surpreendido. Enquanto imaginava o que dizer, Brucena prosseguiu: - O senhor disse que na ndia todos so diferentes. Compreendo sua afirmao, no que diz respeito s castas, mas, com certeza, todos eles acreditam em algo. - No qu? - Em seu Karma pessoal. Todos os livros que li se referem ao Karma como algo que impregna e abrange tudo, algo a que quase todos os indianos aderem no somentecom sua mente mas tambm com seu corao. O major Huntley contemplou-a durante alguns segundos e disse em seguida: - Tem razo, srta. Nairn. claro que tem razo. Apenas fico surpreendido que tenha chegado a esta concluso ou que ela tenha sido dita pela senhorita atravsde uma frmula to simples. - J li a respeito, mas sinto que sempre levei isto dentro de mim, pois trata-se de algo em que tambm acredito.

CAPTULO II

Fez-se um silncio e Iain Huntley percebeu de repente que no conseguiria suportar a perspectiva de destruir o idealismo e o apreo que a garota sentia pelandia, revelando-lhe os detalhes srdidos e revoltantes relativos aos thuggee. Devido ao fato de sentir-se um tanto surpreendido pelas revelaes que Brucena haviafeito a respeito de si mesma, disse em um tom de voz mais enrgico do que desejaria: - Espero, srta. Nairn, que suas idias a respeito da ndia no sejam modificadas devido a sua estada em Saugar. - Acho que o lugar me parecer muito interessante, qualquer que seja sua aparncia, mas ainda estou espera de que o senhor me fale sobre os thugs. - algo que no tenho a menor inteno de fazer e penso que verificar que seus primos sentem o mesmo que eu. Quanto menos se falar deste assunto, melhor! Talvez o modo como ele se exprimia fosse desagradvel ou talvez ela tivesse ficado desapontada por no ouvir o que queria saber, mas, Brucena sentiu que seencolerizava. Desde que encontrara aquele homem, ele se mostrava decidido a colocar obstculos em tudo e ela ainda achava que deveria ter salvo o beb. S no o fizera porqueele a impedira, trazendo-a de volta para o trem. Era um homem bonito, para aqueles que apreciavam uma aparncia to britnica, mas havia nele algo de rude e decidido. Quase chegou a sentir pena dos thugs, pois ele era uma daquelas pessoas que os perseguiam e os entregavam Justia. Disse em voz alta: - bvio, major Huntley, que no que lhe diz respeito, no sou bem-vinda a Saugar. - A senhorita no minha hspede e cabe ao capito Sleeman e sua esposa dar-lhe as boas-vindas. Brucena compreendeu de repente que se eles tomassem a mesma atitude do major, teria de encontrar um outro lugar que a recebesse e isso poderia ser muito difcil. Olhou para fora da janela e certificou-se, ao contemplar a paisagem que desfilava diante de seus olhos, que desejava, com intensidade quase apaixonada, quea ndia lhe proporcionasse sensaes que a Esccia jamais conseguiria lhe transmitir. Havia nela algo caloroso, algo que no conseguia colocar em palavras. Por isso sentira-se muito bem, quando partira de Bombaim. Tratava-se de qualquer coisaque se refletia na luminosidade dos dias e na escurido das noites. - Isto tudo me fala ao corao - disse para si mesma. Sentia, porm, que j havia revelado muito de seus sentimentos mais ntimos ao major Huntley e que eleno os entenderia. Permaneceram em silncio e devido ao fato de que ela havia voltado o rosto para outro lado, ele conseguiu distinguir seu perfil. Era impossvel deixar de admirarseu nariz pequeno e reto, as curvas delicadas de seus lbios e o queixo voluntarioso. "Ela deveria voltar para a Esccia, pois l o seu lugar", pensou, preocupado. Ento disse a si mesmo que estava sendo desnecessariamente alarmista. Dentro em pouco ela estaria com os Sleeman e a vida social to restrita que havia em Saugar a receberia de braos abertos. A exemplo do que acontecia com as garotas na ndia, seria convidada para partidas de tnis e jantares, nos quais, se houvesse homens em quantidade suficiente,ela poderia danar. - No pode lhe acontecer nada de mal se ela se limitar a este tipo de vida - disse Iain Huntley para si mesmo. Tinha, porm, a sensao desagradvel de que, em se tratando de Brucena, aquilo no seria suficiente. - Espero - disse aps um momento de reflexo - que o capito Sleeman providencie para que a senhorita visite seus amigos em outras regies da ndia, onde apreciarpaisagens bem mais belas e templos magnficos, que em Saugar no existem. - Est tentando livrar-se de mim? - indagou Brucena, com uma entonao divertida. - Parece ter esquecido, major, de que preciso trabalhar. - Como bab... No consigo v-la neste papel. - No entanto, foi por esta razo que eu vim e tenho certeza de que no acharei difcil aprender o que esperado de mim. Ao dizer essas palavras, pensava no que Amelie Sleeman tinha escrito em seu francs to elaborado. Mais tarde Brucena ficou sabendo que devido ao fato de seu marido falar francs muito bem, ela nunca chegou a dominar completamente o ingls. "No quero uma bab empertigada e rgida, que desprezaria a mim e a meus mtodos. Quero uma moa inglesa ou escocesa que me ajudar a cuidar de meu beb e emquem eu confie a ponto de saber que ela no lhe dar pio a fim de mant-lo em silncio, ou qualquer dessas drogas infernais que os Ayahs empregam, quando ningumos est olhando." Naquele momento a colocao lhe parecera bastante simples, mas agora Brucena imaginava que talvez a prima Amelie estivesse pensando em algo bem mais sinistrodo que em um Ayah preguioso que desejasse fazer a criana ficar quieta. Os thugs, sem sombra de dvida, odiavam o primo William pelo modo como ele os reprimia e os impedia de realizar aquilo que para eles era uma tarefa sagrada. Que melhor vingana haveria do que estrangular seu filho ou mesmo sequestr-lo a fim de educ-lo dentro do culto que ele estava destruindo? Lera em um livroque quando os thugs matavam viajantes e eliminavam seus traos, algumas vezes levavam em sua companhia, alm de tudo que tivesse valor, uma criana especialmentebonita. Dizia-se que eles ensinavam-na a se tornar um thug ou ento, o que era muito mais assustador, sacrificavam-na deusa Kali. Brucena estremeceu ao pensar que pudesse acontecer uma coisa dessas ao beb da prima Amelie e disse a si mesma que sua imaginao seguia rumos absurdos. Talvez os thugs no fossem to maus assim como pintavam. O mistrio que o major Huntley criava em torno deles apenas intensificava a sensao de que ela deveria conhecer mais coisas a seu respeito e no deveria sermantida na ignorncia da verdade, como ele obviamente desejava. - Tive o azar de encontrar no momento em que cheguei ndia um homem que no tem a menor vontade de me agradar e que no somente coloca obstculos em minhastentativas de descobrir o que desejo, como tambm gostaria de se ver livre de mim. Disse a si mesma que lutaria contra ele com todas as armas que estivessem a seu alcance. Tinha certeza de que ele tentaria convencer sua prima que ela no somente era inadequada para a profisso que viera exercer, como tambm representaria um perigoa mais em um tipo de vida que, em si, encerrava todos os perigos possveis e imaginveis. "Se prima Amelie consegue enfrent-la, eu tambm conseguirei", pensou Brucena. Ao mesmo tempo mostrava-se apreensiva e enquanto o trem deslizava sobre os trilhos que os levaria a Saugar, ela constatou que gostava cada vez menos do homemque se sentava diante dela. - C'est impossible! No acredito que voc esteja aqui de verdade - disse Amelie Sleeman naquela mesma noite, depois de terminarem o jantar luz de velas. Os abanadores acima de suas cabeas faziam com que as chamas se inclinassem para c e para l, como se estivessem a bordo de um navio. Brucena sorriu para elae em seguida para seu primo. - Tive medo de que se zangassem comigo por eu ter vindo - respondeu. - No, claro que no estamos zangados - respondeu a sra. Sleemen em seu ingls precrio e encantador -, mas nunca sonhamos, mon mari et moi, ao recebermos seutelegrama, que voc viria em pessoa, em vez de mandar uma jovem escocesa. - Elas ficaram apavoradas com a idia de viajar para uma terra to pag e para dizer a verdade senti-me muito feliz de poder me afastar do castelo. As coisasno tm sido muito fceis depois que papai voltou a se casar. - exatamente o que eu disse para meu marido - comentou Amelie Sleemen, com uma inflexo de triunfo na voz. - Disse-lhe: Cette pauvre petite com toda certezavai passar um mau pedao com uma madrasta que jamais poder ser to bonita quanto ela! - Agora voc est aqui e s isso que importa - disse William Sleeman antes que Brucena pudesse responder. - Fico contente por Amelie ter algum que lhe faacompanhia. Ela se sente muito s, pois tenho de ausentar-me com frequncia. - verdade, sinto uma falta imensa de voc, mon cher, onde quer que voc v, mas as coisas aqui se tornam piores, pois onde quer que eu v tenho atrs de mimsoldados me escoltando. Tenho certeza de que Brucena tambm achar isto muito aborrecido. - Ela acabar se acostumando - disse William Sleeman com um sorriso. - Quero deixar desde j umas tantas coisas muito claras, Brucena: voc no deve sair dojardim sem comunicar ao sargento dos sipaios que estiver de planto onde que vai. Se se afastar muito de casa, ele mandar algum lhe fazer companhia. - Est vendo s! - exclamou Amelie, fazendo um gesto expressivo com as mos. - como se fssemos prisioneiras suas e algumas vezes sinto que c'est moi queest presa e no os nativos. - Penso que voc acharia as masmorras de Jubbulpore e Saugar muito diferentes do conforto de que goza aqui - disse William Sleeman com secura. - Eu pelo menosno a marco a ferro, querida. Amelie sorriu. - Imagino que devo lhe dizer obrigada! - exclamou. Percebendo que Brucena no compreendia, explicou: - Uma das punies reservadas a um thug que ele marcado a ferro nas costas e nos ombros e at mesmo nas plpebras. algo que eles no toleram. - No me surpreende - disse Brucena. - Este castigo me parece excessivo. - Nada excessivo, em se tratando de homens que matam por prazer - sentenciou William Sleeman. Ficaram em silncio durante alguns instantes e ento Brucena disse: - Primo William, quando tiver tempo gostaria que me falasse a respeito dos thuggee. H muito pouca coisa relativa a eles nos livros sobre a ndia e pelo quesei trata-se de um dos segredos mais antigos deste pas. - verdade, mas no sinto vontade de falar destas coisas na presena de Amelie. No estado em que se encontra, no deve se preocupar com assuntos desagradveis,seja no plano fsico, seja no plano mental. - Sim, claro. Compreendo... J lhe fora comunicado que a sra. Sleeman esperava a criana para o Ano-Novo e com sete meses de gravidez ela j estava um tanto pesada e perdera aquela graciosidadeque lhe era to caracterstica. Era filha do proprietrio de um engenho de acar, em Mauritius e aquele casamento entre duas pessoas de temperamentos to opostos e com uma diferena de vinteanos entre eles parecia um tanto estranho. Bastava no entanto ver os Sleeman ao lado um do outro para compreender que eram extremamente felizes. Devido ao fato de que as francesas so muito adaptveis, Amelie era na realidade a esposa perfeita para William Sleemen. - Serei muito feliz com eles - disse Brucena para si mesma, enquanto se recolhia ao leito naquela noite, no pequenino quarto anexo ao berrio, j pronto paraabrigar o beb. L fora ouvia-se o pio agourento de uma coruja, os grilos, o ruflar das asas dos morcegos, ces que ladravam, animais noturnos que deslizavam no mato e muitoao longe um som que ela sabia ser caracterstico de toda a ndia: os uivos de uma matilha de chacais. Tudo aquilo era muito excitante. Tratava-se de um mundo novo e ao mesmo tempo muito antigo. Sentia que tinha surgido dali, sabia que suas razes se encontravamfincadas l. - Estou to feliz de ter voltado para c! - murmurou, antes de adormecer. S trs dias mais tarde Brucena se deu conta de que enquanto comeava a adaptar-se nova vida havia perdido de vista o major Huntley. Ele a trouxera para o grande bangal, todo pintado de branco e a entregara a seus primos com o ar de um homem que no tinha a menor certeza se estava lhes proporcionandouma surpresa agradvel ou desagradvel. Brucena sabia muito bem que havia trabalho sua espera, pois no momento em que chegaram estao de Saugar, um sargento, comandando um destacamento de sipaiosestava sua espera a fim de lhe fazer a continncia de estilo. Como estava aborrecida com o major Huntley no se deu ao trabalho de explicar-lhe que durante as longas semanas de viagem estudara hindu e passados os primeirosdias descobrira um professor na segunda classe, o qual, em troca de uma pequena quantia de dinheiro, estava preparado para dar-lhe aulas. O comissrio de bordo que o havia descoberto garantiu-lhe que o homem era muito bem qualificado para a tarefa e Brucena verificou que ele no s era um professoreficiente como tambm uma pessoa muito inteligente. Inicialmente aplicou-se muitssimo em conhecer a lngua, decidida a no chegar ndia incapaz de falar qualqueroutra coisa que no fosse o ingls. medida que o tempo avanava, descobriu com grande prazer que o professor tambm poderia lhe contar muita coisa a respeito do pas e dos costumes de seu povo. Tentou at mesmo explicar-lhe o sistema de castas e, mais importante do que tudo, as religies, que variavam do budismo ao hindusmo; dos jains aos muulmanos,alm de centenas de seitas estranhas e variadas, todas elas com seus rituais, tabus e lugares sagrados, espalhados pelo vasto subcontinente. Algo em Brucena, instintivamente, fez com que ela mantivesse silncio em relao aos thuggee e o seu projeto de ficar hospedada com o arqiinimigo deles, ocapito William Sleeman. Tinha a impresso de que se o professor ficasse a par de seu destino no demonstraria tanta boa vontade em lhe ensinar as coisas que ela queria saber. No conseguia encontrar muitas explicaes para o fato de se sentir assim, mas ao longo dos anos aprendera a confiar em seu instinto, que naquele momento lhedizia para manter silncio em relao a si mesma. Apesar de se dar conta de que havia muito mais coisas a aprender, no que dizia respeito s lnguas indianas, compreendeu o que o major Huntley disse ao sargentoque viera a seu encontro na estao. Dirigindo-se a ele em voz baixa e esperando no ser ouvido, indagou em urdu: - Algum problema? - Sim, major. Acho que hoje noite deveramos visitar... Brucena no conseguiu entender a ltima palavra, mas compreendeu o resto e divertiu-se bastante quando o major, voltando-se para ela com um sorriso enganador,comunicou-lhe: - Disse ao sargento que providencie conduo para a senhorita e eu a acompanharei at o bangal de seu primo. Ficar muito impressionada ao se ver escoltadapor um regimento da Cavalaria! Brucena no tivera uma impresso muito lisonjeira da cidadezinha de Saugar, a no ser pelo fato de que tudo na ndia possua uma beleza que ela jamais presenciaraonde quer que fosse. Estava debruada sobre as margens de um grande lago e a seu lado havia uma construo semelhante a um castelo pesado e sombrio, que mais tarde disseram-lheser a priso. O bangal dos Sleeman que se encontrava fora da cidade, era grande, porm simples e encantador. O jardim estava repleto de flores cujas cores faziam Brucenasentir que elas lhe davam as boas-vindas de um modo todo especial. Sentiu logo que no havia motivos para pensar que os Sleeman a mandariam de volta ou que no sentissem sincera satisfao em receb-la. Achou que a inegvel sinceridade com que Amelie a beijava, mesmo levando em conta o fato de que ainda no se conheciam, era uma certa forma de esnobar o majorHuntley. "Talvez ele no queira minha presena aqui", pensou Brucena, "mas meus primos querem e isto a nica coisa que conta". Ao mesmo tempo sabia que havia levado a melhor e desejava que para o futuro houvesse entre ambos duelos semelhantes, possuda de um sentimento que no conseguiacompreender com clareza. Devido ao fato de ser curiosa, fez sra. Sleeman algumas perguntas relativas ao major Huntley. - Por que ele se ausenta? Deu-me a impresso de que era o brao direito de primo William. - sim! William est muito satisfeito com ele. Capturou mais thugs do que qualquer oficial que o regimento enviou para c. Para falar a verdade, alguns delesso perfeitamente inteis. - Pareceu-me muito evidente que o major Huntley gosta de fazer interrogatrios - comentou Brucena secamente. - muito corajoso e apesar dos outros assistentes de meu marido no ousarem admiti-lo, tenho certeza de que eles, no fundo, esto assustados. Os thugs somuito perigosos e graas a Deus seu nmero diminuiu. - E tudo isto se deve ao primo William? - Sim, claro. Ele tem sido maravilhoso! - exclamou Amelie, entusiasmada. - Seu principal objetivo na vida no s destruir os thuggee, como tambm desacredit-los. Suspirou ligeiramente. - William sempre diz que quando os homens lutam por uma causa so incomensuravelmente mais fortes e eficientes do que quando lutam por razes de dever ou satisfaopessoal. - J ouvi este conceito muitas vezes. - E verdade! Ele est comeando a convencer os thugs de que nosso Deus maior do que sua deusa. - Ser que ele conseguir lev-los a acreditar nisto? - perguntou Brucena, cheia de curiosidade. - Na semana passada, ele me contou que um thug disse-lhe: "O senhor declara que Deus est de seu lado e que Kali retirou sua proteo devido s nossas transgresses.Devemos ter sido negligentes em seu culto". Aps essa conversa Brucena gostaria de ter dialogado mais com o primo William, mas quando ele voltava para casa, noite, estava exausto na maior parte dasvezes. Sabia que isso acontecia no s porque ele dava duro o dia inteiro perseguindo os thugs como tambm porque discutia com eles, lutando contra eles com palavrase armas. Ao encontrar-se no recesso do lar, no queria conversar a respeito daqueles assuntos. Ela e Amelie estavam proibidas de aproximar-se da cidade nos prximos dias e ele no lhes dera nenhuma explicao para o interdito. Prestando ateno em tudoo que se dizia e interrogando com muita habilidade o sargento dos sipaios, que falava bem ingls, Brucena ficou sabendo que houvera problemas, pois seis thugs haviamsido executados e um deles era considerado heri nacional. Um de seus simpatizantes, que ainda no podia ser preso sob a acusao de pertencer aos thugs, por absoluta falta de provas, conseguiu levar os indianos deoutras castas a fazer manifestaes de protesto e a causar desordens. Na ndia, a coisa mais comum era ganhar desafetos no plano poltico e somente mtodos muito fortes de represso conseguiam terminar com os distrbios da ordempblica. Brucena ficou sabendo que o resultado daquelas manifestaes foi que a priso do lago ficou lotada e muitos outros prisioneiros foram confinados em Jubbulpore. Quando menos esperava, ouviu o barulho dos cavalos que se aproximavam e de repente o major Huntley estava a seu lado, na varanda deserta. Parecia acaloradoe um tanto cansado, mas saudou-a com muita polidez e perguntou: - Ouvi dizer que o superintendente no est. No saberia me dizer quando vai voltar? - No tenho a menor idia. Antes de ir repousar, Amelie mostrava-se preocupada, pois ele no comunicou quando esperava estar de volta. Notou que o major Huntley franzia o cenho e perguntou: - Aconteceu alguma coisa? - No, no, claro que no - ele respondeu com tamanha solicitude que ela percebeu que ele estava mentindo. - Gostaria de beber algo? - Sim, obrigado. Bateu palmas, pois aprendera que era assim que se convocava um criado, e quando ele se apresentou o major Huntley pediu um copo de laranjada. Ao sentar-se na cadeira ao lado de Brucena o vinco em sua fronte desapareceu e ele perguntou: - Como tem passado? A ndia ainda no a desapontou? - Acho cada dia mais excitante do que o anterior - replicou Brucena, - Mas uma pena que eu sofra tantas restries em relao quilo que posso ver e quantoaos lugares onde posso ir. Para dizer a verdade, sinto-me desapontada por seus esforos em manter a paz no serem melhor sucedidos. Pretendia espica-lo, achando que ele reagiria s suas insinuaes. Ele, ao invs, simplesmente riu. - Confiava em que sua sensatez, aps uma viagem to longa, a levaria a repousar durante algum tempo. Permita-me informar-lhe que as coisas quase voltaram normalidade. Dentro em breve poder ir onde bem entender. - Com uma escolta, claro... - Exatamente. Com uma escolta. Brucena olhou em direo ao lago e para a plancie achatada que se estendia em direo ao horizonte. - Este lugar assim to perigoso como vocs pretendem? Pressinto que o senhor gosta de me deixar arrepiada fazendo aluses a horrores sem nome, ao mesmo tempoque se recusa a apont-los especificamente. - A srta. Nairn com certeza no est interessada em horrores... Alm do que, na sua idade, deveria se interessar por coisas bem diferentes. Uma delas o romance... Enquanto falava, contemplou o livro que estava pousado na cadeira, ao lado dela. - Pelo que sei, a leitura preferida das jovens que moram em Simla O Morro dos Ventos Uivantes. este o livro que est lendo? Pegou o livro com displicncia e notou que estava escrito em urdu. - No v me dizer que isto a interessa... Impelida por um motivo obscuro, que naquele momento no conseguiu compreender, Brucena decidiu no lhe dizer a verdade. - No, claro que no. Acho que primo William deve ter deixado o livro a. Lamento dizer que nesta casa h uma escassez muito grande de livros. - Terei muito prazer em mandar vir de Jubbulpore o que a senhorita desejar. - No gostaria de lhe dar trabalho. E se o senhor o fizesse, teria de voltar aqui, em vez de me ignorar, como tem sido sua inteno, desde que voltei. - Vejo que est me considerando um inimigo - disse Iain Huntley, em tom divertido. - E por que no? Durante a viagem, o senhor expressou seus sentimentos de uma maneira muito clara e desde que cheguei no se dignou em saber como eu tenho passado. Ele riu. - Foi uma falta de considerao de minha parte, mas a senhorita tem de aceitar minhas desculpas. que tenho estado extremamente ocupado. - Sem dvida, caando os thugs, como se eles fossem raposas a serem massacradas por um bando de caadores excitados, auxiliados por uma matilha de ces ferozes?- ela indagou, com uma ponta de maldade. - Exatamente! A imagem muito feliz. Infelizmente, havia raposas demais e ces de menos. Brucena estava pensando em algo incisivo para lhe dizer quando William Sleeman surgiu na varanda. - Ah, voc est a! - exclamou. - Descobri o paradeiro daquele homem. - mesmo? E para onde que ele foi? - Ser preciso indagar? Para Gwalior, claro. - Imaginei que ele poderia esconder-se por l - observou Iain Huntley. - Como, alis, seria de se esperar - comentou William Sleeman com amargura. - Aquele lugar tornou-se o esconderijo dos thugs. Um assassino pode refugiar-sel com a mesma segurana com que um ingls procura uma taberna. Brucena acompanhava o dilogo prestando o mximo de ateno. Sabia que Gwalior era uma provncia situada perto dali e que um residente ingls tinha sido nomeadopelo governador-geral a fim de aconselhar o maraj, a exemplo do que acontecia em vrias cortes de prncipes reinantes e independentes. - intolervel, mas no tenho certeza do que posso fazer em relao ao assunto - declarou William Sleeman, extremamente nervoso. - Deve haver uma soluo - insistiu o major Huntley. - Gostaria que houvesse mesmo, mas o sr. Cavendish ops-se decididamente a mim desde que vim para c e tornou meu trabalho mais rduo do que deveria ser. - uma lstima! - exclamou Iain Huntley. - Est querendo dizer que o residente um ingls que aprova os atos dos thugs? - indagou Brucena. Sua voz pareceu assustar os dois homens e ela percebeu que eles haviam ignorado completamente sua existncia. - Ele jamais admitiria uma coisa destas - respondeu William Sleeman, aps uma pausa -, mas ao bloquear minhas investigaes e no permitir que meus homens penetrassemna provncia de Gwalior ele tornou aquela regio um esconderijo onde todo thug poder refugiar-se, quando se vir perseguido. - Que situao mais incrvel! - exclamou Brucena. - Sobretudo quando o governador-geral nomeou-o para eliminar os thugs... - Pois - disse William Sleeman -, mas com ou sem Gwalior pretendo destruir a seita mais temvel e extraordinria de toda a histria da raa humana. Havia um tom apaixonado em sua voz e seus olhos azuis ostentavam um brilho que lhe conferia naquele momento um ar de visionrio. Mais tarde, naquela mesma noite, sentaram-se em torno da mesa de jantar, em companhia de meia dzia de vizinhos. "Era difcil acreditar", pensou Brucena, "que fora do conforto civilizado da sala, repleta de vozes alegres e das risadas dos convidados, houvesse homens detocaia, dispostos a matar viajantes inocentes, sem a menor idia do que estava para ocorrer e em seguida se vangloriassem de seus crimes". Brucena se deu conta de que aquele assunto no deveria ser abordado em um jantar e ouviu os mexericos locais e algumas histrias sobre os criados indianos.Mostraram-lhe algumas bijuterias adquiridas no bazar da regio, alm de tecidos muito belos, que poderiam ser usados como lenos por uma senhora inglesa ou entocomo sris. Tudo aquilo era muito feminino e frvolo, mas sabia que os rapazes presentes naquele momento olhavam-na com um brilho nos olhos. Os mais velhos brincavam comWilliam Sleeman, por ele ter em sua casa uma hspede to atraente, no os tendo prevenido de que se tratava de uma beldade. Tudo aquilo era muito trivial e no apresentava grandes complicaes, mas quando Brucena se recolheu permaneceu durante algum tempo olhando pela janela, sentindoque a ndia era um enigma, um mistrio e ao mesmo tempo um encantamento. Tinha a sensao de que o conhecimento que buscava, tudo o que queria saber estava l fora, porm muito alm de seu alcance. Tudo se escondia por detrs de milhares de anos de tradio, oculto por uma complexidade de rituais e costumes que os europeus jamais poderiam compreender. Acima de tudo havia um segredo to profundamente arraigado na mente e no corao do indiano, que ele preferia morrer a revelar aquilo que para ele era sagrado. Brucena passeava pelo jardim. Percebeu que somente uma irrigao constante, feita quase de hora em hora, poderia impedir os pequenos canteiros verdejantes demurchar, devido ao calor, protegendo a muito custo as flores plantadas ao longo dos anos por todos aqueles que haviam ocupado o bangal. Era o nico modo de nodeixar que fossem subjugadas pelas ervas daninhas. As flores eram maravilhosas. Primaveras escarlates e rosadas subiam por todos os muros e os jardineiros empreendiam uma batalha interminvel contra as parasitasque se enrolavam nos troncos das rvores, semelhana de um polvo. As palavras no conseguiam exprimir o quanto tudo aquilo era belo e Brucena sentiu que era impelida por uma msica oculta, que fazia parte da beleza e da majestadeda alvorada indiana. Apesar de j estarem quase no fim de outubro, ainda fazia muito calor por volta do meio-dia e William Sleeman aconselhou Brucena a levantar-se o mais cedo possvel,quando o ar ainda estava fresco. Algumas vezes ele a convidava para sarem a cavalo antes do caf da manh, mas naquele dia teve de ir cidade e ela resolveu andar pelo jardim carregando umasombrinha debaixo do brao, que a protegeria assim que o sol se levantasse. Tudo aquilo era profundamente mgico. No se cansava de contemplar as flores e a paisagem sem deixar de sentir que elas encerravam uma mensagem muito especial,que ela ainda no conseguia compreender inteiramente. Chegou at o fim do jardim e ficou contemplando uma cerca de hibiscos ao longo da qual corria uma estradinha comprida e poeirenta, dirigindo-se para as terrassecas e arenosas, ponteadas distncia por uma ou outra rvore. Teve a sensao de que se percorresse aquela estrada acabaria encontrando o que procurava, mas no tinha certeza do que se tratava. Ficou a contempl-la sentindo que simbolizava algo que ela deveria entender mas cuja significao no momento lhe escapava. Ouviu ento um barulho e olhando sua direita viu algumas pessoas acampadas sombra de algumas rvores raquticas. Os sris das mulheres, de cores brilhantes, destacavam-se contra aquela terra rida onde nada cresceria at que as chuvas chegassem. Notou que eles embrulhavamseus pertences, que haviam usado durante a noite. Suas muitas pulseiras brilhavam luz do sol que se levantava. "As mulheres eram muito belas e possuam uma graciosidade que dava inveja", pensou Brucena. Sabia que fora de carregarem cntaros de gua na cabea haviamadquirido aquele andar que as tornava semelhantes s deusas. Os homens arreavam alguns cavalos de patas curtas e um burrico de aspecto velho e cansado. Eram numerosos e havia tambm crianas brincando felizes. Uma delas brincava com um pedao de pau e um menino divertia-se com um pano colorido, tentando insuflarnele um vento que naquele momento no existia. Desde que chegara ndia, Brucena desejara desenhar ou pintar a beleza das crianas. Jamais havia imaginado que aquelas criaturinhas pudessem ser to magnficas em todos os aspectos. Aqueles olhos enormes, emoldurando rostos delicados, possuam um apelo imenso, que lhe atingia o corao e faziam-na recordar invariavelmente o beb que noconseguira salvar na plataforma da estao. Estava perdida em sua contemplao, quando viu um garotinho de uns cinco anos de idade separar-se dos demais e caminhar em sua direo. Trazia uma flor na moe ao chegar perto dela entregou-a com um sorriso nos lbios que a fez sentir vontade de tom-lo nos braos. Aceitou a flor que ele lhe oferecia. - Obrigada! - disse em urdu. - Muito obrigada. Ficou imaginando se tinha algo a lhe dar em troca e vasculhou instintivamente o bolso da saia. Achou que talvez tivesse guardado um leno. Ao sentir algo macio e sedoso compreendeu que se tratava de um novelo de seda que encontrara na varanda, quando sara de casa. Pertencia a Amelie, que estava bordando para o nen uma roupa em tons de azul e rosa. - Azul e rosa? - indagou Brucena, admirada, ao ver sua prima entregue tarefa. - No me importo que seja menino ou menina e portanto estou aplacando os deuses, fazendo-os acreditar que no tenho nenhuma preferncia. Brucena riu. - Tenho certeza de que William deseja um filho. Isto acontece com todos os homens. No conseguiu deixar de controlar um certo tom de amargura enquanto falava, lembrando-se do quanto sofrera toda a vida por ter sido uma menina em vez do meninoque seu pai desejara com tanto fervor. - William disse que se for uma menina e se parecer comigo, ele ficar to maravilhado por ter mais uma francesa para amar, que no sentir falta de mais nada. - Espero que ele esteja dizendo a verdade, mas rezo, prima Amelie, para que sua primeira criana seja um menino. - Pensando em William, eu deveria desejar um menino. Ao mesmo tempo, seria divertido ter uma menina com quem eu pudesse conversar, como acontece com ns duas. - De tudo o que voc acaba de dizer deduzo que nascero gmeos... - Claro, e o azul ser para o menino e o rosa para a menina. Ela sorriu e seu rosto todo se iluminou. - Seja quem for, pertencer a mim e s isso que importa. Brucena retirou do bolso o pequeno novelo de seda cor-de-rosa. Esperava que Amelie tivesse o suficiente para poder acabar a roupa, mas no conseguia resistir ao encanto do garotinho que lhe dera a flor. Debruou-se sobrea cerca e colocou o novelo em sua mo. O menino parecia no acreditar no que via e tomando o novelo em suas mos soltou uma exclamao de alegria. Apertou-o em seguida contra o peito, como se quisesse assegurar-se de que aquilo era real e que ela o destinava para ele. - para voc, sim! - ela disse em urdu. - para voc brincar. Ele deu um grito de felicidade e saiu correndo em direo s demais crianas, segurando o novelo acima da cabea e gritando: - meu! meu! meu! "Era a alegria de se possuir alguma coisa", pensou Brucena "e em se tratando de Amelie ou do garotinho, o que toda pessoa queria era algo que lhe pertencessecom exclusividade". "Nada tenho! Nada me pertence verdadeiramente!", pensou, entregando-se subitamente a um acesso de autopiedade. Olhou para a estrada que se estendia horizonte afora e disse para si mesma que possua algo mais importante do que os bens materiais. A sabedoria que ela reconhecia em tudo aquilo que a rodeava era mais excitante do que uma jia, mais valiosa do que qualquer fortuna. - Isto me pertence! - ela exclamou com ar de desafio. - Trata-se de algo que ningum poder roubar de mim! Quando William Sleeman veio almoar encontrava-se de muito bom humor. - Hoje, de tardezinha, quando o calor diminuir, voc e Brucena talvez gostem de sair comigo a passeio - disse para sua mulher. - William, querido, que idia esplndida! - respondeu sua mulher. - Voc est querendo dizer que agora no corremos mais perigo? - Espero que no! Nossa ltima ao, que alis s foi levada a cabo mediante extraordinrias dificuldades, provou ser to eficaz que tenho certeza de que sesobrou algum thug na vizinhana, ele neste momento est fugindo com toda a rapidez que suas pernas lhe permitirem. Brucena ouvia atentamente. Tinha a impresso de que se fizesse perguntas o primo William mudaria imediatamente de assunto. - Voc mal vai acreditar, mas um homem a quem vnhamos perseguindo h seis meses revelou-se um espio e estava a servio da Companhia das ndias Orientais! - Fantstico! - exclamou Amelie. - verdade, e todos os que trabalhavam com ele juravam que confiavam nele a tal ponto que seriam capazes de lhe entregar sua prpria vida, que , alis, oque estavam fazendo! - Como possvel que eles atinjam postos to altos sem despertar a suspeita de quem quer que seja? - indagou Amelie. - o que me pergunto, sempre que viramos uma pedra administrativa e encontramos um thug escondido debaixo dela - respondeu seu marido. - Bem, o indivduo estna priso, espera do julgamento. Acho que o fato de t-lo prendido uma ameaa extraordinariamente eficaz para aqueles que o julgavam invencvel. Amelie suspirou. - O que me deixa mais apavorada que eles acreditam que seus poderes mgicos os salvaro. - Esto comeando a compreender que somos mais fortes do que eles - replicou William Sleeman. - Como me disse um deles: ao ouvir o som de seus tambores, osfeiticeiros, as bruxas e os demnios fogem. Como poderiam, ento, os thugs sobreviver? - mesmo! - concordou Amelie. - Mas, querido, voc precisa se cuidar. Se algo lhe acontecesse, esses demnios voltariam com fora total. - Claro que voltariam! Mas acredito que Deus me protege, pois at mesmo os thugs admitem que estou a Seu servio, e no a servio do diabo. Mais tarde, quando o sol havia perdido um bocado de sua fora e comeava a refrescar, acomodaram-se em uma carruagem aberta e puseram-se a percorrer a beirado lago. Apesar de se saber que no havia perigo em sair desacompanhados de escolta, Brucena viu vrios cavaleiros seguindo-os e chegou concluso de que tudo aquilofazia parte da aura de importncia que primo William considerava essencial para seu cargo. No estava disposta a discutir o assunto, pois a perspectiva de visitar a regio pela primeira vez a deixava empolgada. Os pequenos santurios beira da gua, as mulheres com seus saris maravilhosamente coloridos, trazendo cabea pesadas cargas, menininhos guiando bfalosnos arrozais, um rebanho de cabras brancas e negras possuam uma atrao irresistvel. O prprio lago era um encantamento, medida que o sol que se punha transformava-se em uma esfera de ouro e as crianas das aldeias mergulhavam nuas e felizesna gua morna. Aquilo, sim, era a ndia que ela queria ver e at mesmo a viso dos urubus batendo suas asas negras e pesadas, ao se verem perturbados quando consumiamcarcaas devoradas pela metade, no conseguiam dissipar aquela sensao de magia. Percorreram vrios quilmetros antes que William Sleeman ordenasse que a carruagem voltasse e seguiram por outra estrada, que percorria uma regio toda ondulada,cheia de rvores. Como se aquilo fosse um pensamento constante, William Sleeman apontou para as rvores e disse: - Todos esses so lugares de abominao, onde infelizes viajantes que acampam procurando refgio durante a noite sentem a respirao de um thug por detrs dascostas e logo em seguida o cordo de seda que se aperta em torno de suas gargantas. Amelie gritou, aterrorizada: - William, voc est me assustando! Ele estendeu a mo e segurou as dela. - Sinto muito, querida, no era minha inteno. Para dizer a verdade, eu estava pensando em voz alta. Brucena mostrou-se enormemente interessada em tudo o que ele dissera. Ficara sabendo que o lugar onde ocorria um estrangulamento era denominado bele, de que pola era o sinal secreto que um thug deixava para outro e que kburakera o barulho feito pelo instrumento com que cavavam uma sepultura. Aos poucos compilava um vocabulrio prprio, relativo a tudo aquilo que dizia respeito aos thuggee. J ficara sabendo atravs de seu primo e do major Huntley que era um erro solicitar abertamente informaes. Era prefervel ouvir. Prosseguiram seu trajeto e agora conseguiam ver distncia a cidade de Saugar. Havia muita gente saindo da cidade e Brucena contemplou-os interessada, ao ver que voltavam para suas casas com suas cestas vazias, as quais sem dvida continhamlegumes que haviam vendido no mercado. Antes que eles se aproximassem, notou dois homens de aparncia muito distinta, que usavam turbantes e dhotis brancos, bem como pantalonas e sandlias. Pareciam mais prsperos e certamente muito mais bem vestidos do que os demais indianos com quem cruzavam e ela ficou a imaginar se eram pessoas de fora, talvezat mesmo viajantes. Estava para perguntar ao primo William o que ele pensava quando notou que entre os dois homens havia um garotinho. Assim que o notou, sentiu que j o tinha visto em algum outro lugar, apesar das crianas indianas se parecerem muito umas com as outras. Aquele menino, no entanto,era diferente e ela teve certeza de que se tratava do garoto a quem havia dado o novelo de seda aquela manh, em troca da flor. A carruagem aproximou-se e os homens afastaram-se, a fim de deix-la passar. Notou ento que o menino chorava. As lgrimas escorriam-lhe rosto abaixo e no entanto ele no emitia o menor som, dando apenas vazo sua infelicidade. Agora tinha certeza de que se tratava da mesma criana que encontrara pela manh. No momento em que o homem que o segurava pela mo largou-o e juntou as palmas, no antigo gesto do nameste, a fim de saudar os sakibs ingleses, Brucena constatouque o menino ainda segurava cuidadosamente o novelo cor-de-rosa que ela lhe havia ofertado.

CAPTULO III

Brucena prendeu o flego. De repente, mil perguntas cruzavam-lhe o esprito. Sabia muito bem que temia algo, mas sentiu que no devia mencionar o fato diante de Amelie. Esta ltima j dissera que estava assustada e Brucena j constatara, desde sua chegada a Saugar, que William Sleeman evitava falar dos thugs diante de sua mulher. Isto era devido no s ao fato de ela se encontrar grvida mas tambm porque, como a maioria dos ingleses, acreditava que as mulheres deviam ser protegidascontra tudo que fosse desagradvel ou violento. Havia nele um cavalheirismo que ela sabia fazer parte de sua ancestralidade. Seu av, que tambm nascera na Cornualha, a exemplo dos antepassados de Sleeman,possua igualmente os mesmos princpios. Ela portanto manteve em suspenso as suspeitas que lhe vinham mente e ao mesmo tempo disse a si mesma que se entregava a um excesso de imaginao. O primo William dissera que aps a ltima batida os thugs haviam abandonado a regio e no entanto os tumultos que ela presenciara sua chegada, ocasionadospelo fato de que seis thugs deviam ser enforcados, mostrou-lhe que muita gente em Sauger simpatizava com eles ou ento estavam por demais assustados para tomar qualqueroutra atitude. Alguns momentos mais tarde cruzaram o remanescente do grupo que parecia ter alguma ligao com os dois homens distintos em cuja companhia se encontrava o garotinho. Havia alguns cavalos sobrecarregados de bagagem, conduzidos por homens de barba e turbante, todos bem vestidos e ostentando um ar de prosperidade. No havia mulheres no grupo e Brucena ficou intrigada, querendo saber o que tinha acontecido com aquelas a quem vira pela manh usando sris de cores to vivas,bem como com as crianas que brincavam com o menino que lhe dera a flor. No conseguiu controlar a voz que tremia e perguntou: - De onde vm essas pessoas? - Houve uma grande feira em Saugar, hoje - respondeu William Sleman. - Agricultores vindos de toda a provncias trouxeram seus legumes e frutos para vender.Suas mulheres acompanharam-nos para comprar belos sris e mais jias para pendurar em seus narizes e em torno do pescoo. Tal explicao no respondia s perguntas que Brucena desejava formular em voz alta. Se havia tantos viajantes, no haveria tambm thugs que os espreitavam? Thugs que, escondidos sombra das rvores, aproveitariam a primeira oportunidade a fim de cometer gil e silenciosamente seus crimes terrveis, adicionandotudo o que a vtima possua aos bens pilhados de outras pessoas por eles estranguladas... - impossvel que isto acontea aqui, em plena luz do dia - disse para si mesma. O rosto do garotinho banhado em lgrimas preencheu seus pensamentos, excluindo tudo o mais. Prosseguiram e Brucena manteve-se em silncio, enquanto Amelie conversava banalidades. No imaginava o que o primo William diria quando ela lhe participasse suas suspeitas e sentiu-se um tanto apreensiva, pois ele poderia zombar dela e dizer-lheque esquecesse os thugs e tratasse de se divertir. Qualquer garota inglesa faria o mesmo em seu lugar. Sabia, porm, que se sentiria traindo a criana que lhe dera a flor se no pedisse a seu primo para fazer uma investigao. Os homens e os cavalos no se distanciariam tanto que os sipaios montados no pudessem alcan-los. A carruagem chegou ao bangal e, enquanto passavam por entre os canteiros floridos, Brucena notou o major Huntley espera deles, no ltimo degrau da varanda. Assim que os cavalos pararam, ele veio apressadamente at a Porta da carruagem e disse: - Senhor, lorde Rawthorne me procurou, trazendo uma carta do residente de Gwalior. - E por que o sr. Cavendish haveria de lhe escrever, William? - perguntou Amelie antes que ele pudesse falar. - Tenho certeza de que se trata de notcias desagradveis. - Em relao a isto no h a menor dvida - disse William Sleeman sorrindo. - Mas quem lorde Rawthorne? - Pelo que soube, est viajando por toda a ndia e neste momento hospeda-se com o residente. portador de cartas de apresentao dadas pelo governador-geral. - Devemos trat-lo com ateno - comentou o capito Sleeman. - Ele chegou um pouco tarde, pois sua viagem sofreu um atraso - prosseguiu Iain Huntley. - Em sua ausncia, sugeri que o sr. e a sra. Sleeman teriam muito prazer,se ele passasse a noite aqui. - Pois fez muito bem! - disse William Sleeman, em tom de aprovao. - Mandei sua escolta para o quartel. Ele e seus criados pessoais ficaro hospedados em sua casa. William Sleeman fez um sinal com a cabea, em tom de aprovao, descendo da carruagem, enquanto o major Huntley ajudava Amelie a fazer o mesmo. No teve a oportunidade de ajudar Brucena. Ela j havia descido antes que ele lhe estendesse a mo e ela ficou hesitante durante alguns momentos, imaginando se devia transmitir-lhe suas suspeitas. Disse porm a si mesma que ele, com toda certeza, no levaria em conta o que ela tivesse a lhe comunicar e voltaria a repetir que no deveria preocupar-se comos thugs. . Seguiu, portanto, Amelie at a sala de visitas, onde deparou com um homem alto e moreno, que aparentava uns trinta e seis anos e conversava com o primo William. - Sinto muito no estar presente quando o senhor chegou - disse o capito Sleeman, enquanto entrava na sala. - No entendo por que o sr. Cavendish no me participousua chegada, pois teramos nos preparado para receb-lo devidamente. - No queria lhe causar nenhum incmodo - replicou lorde Rawthorne. - Pretendia chegar bem mais cedo e aps conhec-lo prosseguiria viagem at Bhopal, ondetenho alguns amigos. Quando cheguei j era um pouco tarde para ir mais adiante. - Sentimos um imenso prazer em t-lo conosco. Permita agora que lhe apresente minha mulher. Amelie fez uma mesura enquanto lorde Rawthorne inclinava-se. - E esta minha prima, recm-chegada da Inglaterra. Srta. Brucena Narn. Lorde Rawthorne mal disfarou o espanto ao contemplar Brucena. "Era indubitvel a admirao que se estampava em seu olhar enquanto ele a estudava, um tanto maneira de um homem que apreciava uma bela montaria", pensou Brucena. Havia naquele homem algo que ela no gostava. Talvez a arrogncia de sua postura e o fato de que no se importava absolutamente com o que estivessem pensandodele. - Com que ento est fora da Inglaterra, assim como eu? Temos, portanto, algo em comum, srta. Nairn. O que pensa deste pas estranho, selvagem e pouco comum? - Acho-o fascinante. - Eu tambm tenho visto muitas coisas fascinantes por aqui - replicou lorde Rawthorne, com a clara inteno de fazer daquilo um elogio sua interlocutora. Mais tarde, naquela mesma noite, quando sentaram-se mesa do jantar, para o qual o major Huntley tinha sido convidado, Brucena achou aquela cena por demaisfamiliar. Com exceo dos criados indianos poderiam estar jantando convencionalmente em qualquer pas do mundo. A prima Amelie e ela usavam seus mais finos trajes de noite. O primo William em sua tnica bordada a ouro e o major Huntley no uniforme vermelho e azul dosLanceiros de Bengala tornavam a reunio muito colorida e tambm muito formal. Lorde Rawthorne, em contraste, teria parecido um tanto desbotado se no tivesse decorado o peitilho engomado de sua camisa com um enorme boto de esmeraldase diamantes, que brilhava luz das velas. Era uma jia to bela que Brucena no conseguia despregar os olhos dela. Como se tivesse percebido o fato, lorde Rawthorne disse: - Srta. Nairn, acho que est admirando minha ltima aquisio, desde que cheguei ndia. Queria adquiri-lo do maraj de Gwalior, mas ele insistiu em presente-lo.Desde ento, tenho feito muitas buscas, procurando algo com que possa retribuir altura. William Sleeman ficou tenso enquanto seu hspede falava. Disse, ento, lentamente, como se estivesse escolhendo as palavras: - Parece-me, milorde, que deveria tomar as maiores precaues ao aceitar presentes do jovem maraj. - O que quer dizer com isto? - Ele tem se tornado um tanto impertinente desde que teve idade suficiente para se ocupar pessoalmente de determinados assuntos. Quando, h algum tempo, faleia seu respeito com o governador-geral, ele deixou bem claro que deveramos tomar muito cuidado com as pessoas que nos fazem presentes. O capito Sleeman se exprimia com tamanho tato que era impossvel sentir-se ofendido com suas palavras. Lorde Rawthorne, no entanto, franziu o cenho e disse: - Entendo muito bem o que est querendo me dizer, Sleeman. Ao mesmo tempo, o residente britnico acha que houve uma srie de mexericos injustos relativos aomaraj, afirmando que os ingleses talvez o tenham tratado com injustia, em mais de uma oportunidade. Brucena sentiu que o primo William esforava-se para no dizer as palavras que lhe vinham aos lbios. Teria muito a declarar a respeito do comportamento do jovem maraj, mas sabia que suas palavras seriam, sem a menor dvida, transmitidas ao residente e issopoderia acarretar srias dificuldades. O velho maraj havia morrido h seis anos, deixando uma viva, Baza Bae, mas nenhum herdeiro legtimo. Aps muitas consultas, ela escolheu como herdeiro um parente de seu falecido esposo. O menino recebeu o ttulo de maraj e cresceu na corte; mas logo revelou-se um pequeno demnio, mal-humorado e de um temperamento insuportvel. O Exrcito de Gwalior sempre fora turbulento, rebelde, acostumado a tudo pilhar. Era uma ameaa para o Estado e para a segurana de seus vizinhos. O prncipe encorajava suas aes desavisadas e o residente britnico, por mais estranho que parecesse, deixava o jovem prncipe agir como bem lhe aprouvesse. O maraj e seus soldados mais rebeldes encorajavam os thugs e o residente britnico considerou um exagero o relatrio que o capito Sleeman fez de suas atividades. Disse para todos aqueles que queriam ouvir que tinha certeza de que muitos dos enforcamentos e prises no passavam de uma precipitao das autoridades. Piorainda: recusou-se a permitir que William Sleeman perseguisse ou capturasse qualquer thug no territrio de Gwelior. A situao apresentava-se muito difcil para o capito Sleeman e apesar de o governador-geral lhe ter delegado plena autoridade para perseguir os thugs e reprimi-loso mais que pudesse, a proximidade de Gwalior tornava sua tarefa mais rdua. Dizia frequentemente: - A provncia um abrigo seguro para os homens que persigo. Agora que soubera da origem da esmeralda que brilhava no peitilho de lorde Rawthorne, Brucena certificou-se de que ela no a atraa mais, achando at mesmoque dela se desprendia um fulgor perverso. J que o assunto tinha sido deixado de lado, William Sleeman voltou-se para falar com Iain Huntley e em um tom de vozque unicamente Brucena poderia ouvir, lorde Rawthorne disse: - As esmeraldas combinariam muito com a srta. Nairn. Gostaria de v-las luzindo sobre sua pele to alva. Ela considerou aquele comentrio um tanto impertinente e levantou o queixo em atitude de desafio, enquanto replicava com evidente frieza: - Que outras regies da ndia pretende visitar, lorde Rawthorne? Ele percebeu muito bem por que ela havia mudado de assunto e replicou com um brilho matreiro e insolente no olhar: - Ando por a, sem direo ou finalidades, srta. Nairn. Pretendo me divertir nos lugares para onde meus caprichos me impelirem. Brucena no respondeu e Amelie disse: - Precisa visitar Taj Mahal, lorde Rawthorne. um dos edifcios mais belos que vi em toda minha vida e meu marido da mesma opinio. Meu pai sempre diziaque era uma das grandes maravilhas do mundo. - Perdoe-me - disse lorde Rawthorne - se perguntar o nome de seu pai. Acho um tanto surpreendente encontrar uma francesa no centro da ndia. - Meu pai pertence antiga famlia dos condes Blondin de Chalain - replicou Amelie - e ele, conde Auguste Blondin de Chalain, estabeleceu-se na lie de France,que os senhores denominam Mauritius. Enviou-me para a ndia, pois achava que aqui haveria maiores oportunidades de aumentar sua fortuna. Brucena percebeu que lorde Rawthorne no estava unicamente interessado no que Amelie lhe contava, como tambm impressionado com o fato de que ela procedia deuma famlia francesa nobre. Desprezava-o, pois sua atitude tornara-se um tanto mais respeitosa medida que Amelie prosseguia em seu relato, contando-lhe que tinhaapenas dezenove anos de idade quando veio para a ndia em 1828, a fim de ficar com uma famlia inglesa em Jubbulpore. Foi l que conheceu Willam Sleeman e para grande aborrecimento de um grande nmero de oficiais jovens da regio, a maior parte deles bons partidos, apaixonou-seperdidamente por aquele militar de quarenta anos e desposou-o. No era de surpreender que lhe tivesse acontecido o mesmo em relao a ela, pois Amelie de Chalain era alta, tinha a pele muito alva e os cabelos castanho-escuros.Possua uma vivacidade natural, uma inteligncia alerta e um encanto que levava quase todos os homens a carem a seus ps. Naquele momento, no entanto, ela no estava em suas melhores fases e era bvio, medida que o jantar se desenrolava, o interesse de lorde Rawthorne por Brucena. Sentou-se a seu lado, quando os cavalheiros vieram ao encontro das senhoras e fez-lhe alguns elogios, que, se no a fizeram corar, levaram-na a encar-los comoum tanto impertinentes. Tinha a sensao de que ele esperava que ela ficasse encantada com suas atenes. O fato de ach-lo to pouco atraente deixou-a muito surpreendida, ao ouvirWilliam Sleeman dizer para sua esposa: - Minha querida, tenho aqui uma carta do sr. Cavendish, comunicando que imperioso nos vermos mais cedo ou mais tarde. Lorde Rawthorne concebeu uma idia eespero que voc concorde com ela. - De que s