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O MOSAICO DOS RAROS Contos da Literatura Jovem do Amapá ORGANIZAÇÃO: MARVIN CROSS

E-book O Mosaico dos Raros

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Organização: Marvin Cross

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Page 1: E-book O Mosaico dos Raros

O MOSAICO DOS RAROS

Contos da Literatura

Jovem do Amapá

ORGANIZAÇÃO: MARVIN CROSS

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O MOSAICO DOS RAROS

Organização: Marvin Cross

MACAPÁ-AP/ FEVEREIRO, 2014

Page 3: E-book O Mosaico dos Raros

Com

Tiago Quingosta

Marvin Cross

Prsni Nascimento

MK Santos

Rodrigo Mergulhão

Genniffer Moreira

Samila Lages

Lara Utzig

Rodrigo Ferreira

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ENTENDENDO O MOSAICO DOS RAROS

Um mosaico pode ser definido como várias peças unidas, que podem

ser de diferentes materiais (pedras, plástico, papel etc.), a fim de formar um

todo, uma figura, caracterizando-se, portanto, como uma obra mosaica. São

diferentes pedaços que vão se embutindo uns aos outros a fim de formarem

algo único.

Este livro é um mosaico. Sua proposta foi de abordar as diferentes

expressões artísticas para servirem de pano de fundo a cada história aqui

contada. Muitas dessas artes são mais do que pano de fundo, mas

componentes cruciais nos contos reunidos neste e-book organizado por

mim e com participação ilustre de escritores jovens da seara literária que

vem explodindo no Amapá.

É um mosaico de textos raros, feitos sob encomenda (literalmente!!),

obedecendo a um desafio proposto que consistia em cada autor ficar

encarregado de uma arte específica, como o conto intrigante de MK Santos,

que trata da arte arquitetônica, ou a surreal narrativa de Rodrigo

Mergulhão, incumbido de elaborar um conto com o tema “Cinema”. Nas

próximas páginas, você está convidado a se divertir, se emocionar, refletir e

até mesmo se arrepiar com as obras carinhosamente preparadas para seu

precioso momento de leitura. Ficamos honrados em contribuir com isso,

muito mais se você curtir nossos textos e recomendar a seus amigos que

façam o download deste material.

Um grande abraço e boa leitura!!

Marvin Cross,

Organizador da coletânea e um dos contistas

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F O T O G R A F I A

Conto: Sobre Gavetas (por Tiago Quingosta)

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Hoje é um dia especial. Não era essa a palavra que deveria

ter empregado... Hoje é um dia “peculiar” soaria melhor, soaria

menos festivo. Dia de abrir aquela velha gaveta, cheia de

fotografias e recordações. Uma gaveta empoeirada, mas que nem

por isso perde o seu valor. Ela está empoeirada porque precisa

estar incólume, longe da intervenção humana para conservar...

Frágeis recordações. Se eu fosse uma gaveta me sentiria honrada

em proteger tantas memórias, algumas felizes, algumas tristes,

mas memórias, frutos de vidas vividas... Ou traços de vidas per-

di-das...

Eu também tenho minhas gavetas na memória, recordações

que ecoam e que sempre pedem para serem revisitadas. Embora

as gavetas encontrem-se abarrotadas de lembranças alegres, há

tantas tristezas quanto neurônios em mim, embora não saiba

quantos neurônios eu possua. No entanto, de uma coisa tenho

certeza, aquelas fotografias guardadas lá embaixo são uma

tentativa de estender emoções, esticá-las e tentar voltar; ocorre

que a vida não volta. Eu, pelo menos, nunca vi uma rosa velha

voltar ao esplendor dos seus nove meses. Existem conservantes e

não milagres para as rosas, assim como para nós.

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Pois bem, porque hoje é hoje, decidi abrir aquela gaveta

que fica dentro de uma antiga câmara escura na qual revelávamos

nossas fotografias. Atualmente não passa de um depósito, cuja

porta está coberta de rosas, bem na parte de trás do meu jardim,

este último mais parece um labirinto de tanto que os teixos e

arbustos cresceram pela propriedade.

Andei diante dos Hibiscos, Cravos, Orquídeas, Rosas,

Girassóis, Azaleias, e quase esqueci qual o meu objetivo. Como o

jardim destoa da casa! A casa é tão monocromática, fria, grande,

escura. Pergunto-me qual o porquê de continuar aqui. O jardim

Dela deve ser a razão, o refúgio que procuramos. Não sei o que

me espera em outros lugares, por isso a isolação. Isolação irmã da

solidão.

Eu já tive muitos amigos, todavia, depois do que houve,

decidi que evitar pessoas evitaria, por sua vez, lembranças

desagradáveis, obviamente a minha doença piorou. Descobri que

para essa tristeza ainda não há cura.

Talvez eu cultive agora mais lembranças do que flores. E

lembranças consomem a maior parte da minha energia mental.

Faz um tempinho que ela se foi, foi morar com Deus, a

minha filha... Meu casamento já estava fadado ao fracasso mesmo

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antes, então eu saberia que acabaria só. Nunca imaginei que

naquele jardim, havia uma parte que estava morrendo, um solo

limoso e desprovido de luz tomava conta, e plantas estranhas

iriam aparecer, elas insistem em brotar até agora, como a

Beladona e seus doces, negros e Mortais frutos.

Procurei ocupar-me... Decidi que iria arrumar toda aquela

bagunça do depósito, pois tempo tinha de sobra, tempo é tudo o

que eu tenho agora... Porque o resto da minha família mora

longe... E apenas uma vez ao ano vem me visitar. Encontrei

aquela nossa velha Polaroid ― que eu nunca gostei muito de

usar―, algumas pelúcias e outras coisas. Depois que tudo ficou

limpo, sentei-me no tapete, agora limpo, e trouxe a gavetinha para

perto. Nem me interessei pelo móvel, eu precisava da gaveta.

Passei a olhar os nossos álbuns de fotografias, um a um,

chorei, parei de olhar, voltei a olhar, sorri, passei os dedos sobre

as fotos para tentar sentir os momentos, sentir o toque das tuas

mãozinhas, minha filha... Fotos têm esse poder sobre mim, mais

do que poesias, mais do que canções, fotos são minha metonímia

real, minha certeza de que estou viva.

Como num passe de mágica, um pequenino raio de sol

atravessou o jardim e invadiu o depósito em direção ao móvel da

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gavetinha. Foi quando notei que havia um papel dobrado, bem no

seu fundo, no local de onde tirei a gaveta...

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T E A T R O

Conto: Carmem e a chuva (por Marvin Cross)

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Os últimos raios de sol se delineavam no céu, apesar de ainda ser

pouco mais de duas da tarde. No entanto, já se aguardava a chuva

que desde cedo se insinuava. O último botão da camisa foi

abotoado, o último fio de cabelo foi penteado e algumas gotas de

perfume foram salpicadas nos pulsos e pescoço. Ele ainda se

lembrava do perfume favorito dela.

Josué nunca se reconhecera tão ávido por um encontro. Ou,

naquele caso em particular, um reencontro. Após tantos anos de

saudade e espera, agarrado a uma promessa que nem mesmo fora

feita, mas que em seu coração ele sentia como quem está ciente da

respiração. Embora tingido de um cinza deprimente, o céu parecia

estar etiquetado com o nome dela: Carmem.

Josué já não era mais aquele adolescente sonhador dos tempos em

que foi colega de Carmem na oficina de teatro de Horácio

Padilha, o saudoso mestre das artes cênicas falecido há dezessete

meses. Batendo à porta dos trinta, Josué sabia que aquele

reencontro com Carmem tinha tudo para dar errado: ela deixara a

cidade em busca de ventos novos, aprimorar-se na arte dramática,

aplicar-se com esmero e total entrega ao sonho de ser uma atriz

além da extensão daquela pequena cidade. Josué continuara ali,

alimentando a ambição e o sonho de também ser um grande ator e

pisar em grades palcos, entreter numerosas plateias. Mas seu

grande erro foi justamente ter continuado ali.

Então, muitos anos depois do último (e também primeiro) beijo

entre eles, eis que Carmem pareceu ressurgir, como quem aparece

de um desses sonhos que se tem por muitas e muitas noites, como

se esses sonhos tivessem sido meros prenúncios de um retorno.

Ela resolveu que era hora de fazer uma visita, pôr os pés naquele

lugar onde seu sonho nasceu e deu os primeiros passos. Josué foi

a única pessoa com quem ela marcou uma espécie de encontro.

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Ela chegou primeiro ao Café Primavera. Escolheu uma mesa ao ar

livre, numa área coberta por um toldo, para poder fumar à

vontade. Acompanhou o exato momento em que Josué apareceu.

Empertigou-se um pouco à frente e seu rosto desenhou um misto

de alegria com saudade. Os olhos de Josué a fulminaram com

uma grata satisfação. Inesquecível amor adolescente.

O pobre Josué estava um tanto molhado, pois a chuva começou a

desabar num ímpeto por volta de uns vinte passos antes do Café.

Carmem e chuva: uma perfeita combinação para as costumeiras

tardes de tédio daquela cidade. Era bom se ver livre das tardes

costumeiras, pensou aquele jovem homem, de certa forma

ancorado num turbilhão de expectativas.

— Tu estás mais magro— avaliou Carmem, com uma certa

dificuldade para encontrar a primeira coisa a dizer.

Josué riu sem jeito, gaguejando sutilmente ao tentar explicar que

andava tendo uma rotina puxada por conta do teatro.

— E tu agora fumas— observou ele, talvez também com

dificuldade em dizer algo.

O (re)encontro foi regado a muita conversa sobre o que aconteceu

no hiato de treze anos. Josué se sentiu desprezível diante das

narrativas inacabáveis de Carmem, claramente alguém com muito

mais coisas para contar do que ele. Carmem simplesmente

desistira do teatro. Para ele, aquilo era mais que absurdo!! Mas

tudo bem, afinal, ela ainda era Carmem. A inolvidável e marcante

Carmem. Ela prosseguiu relatando sua frustração com a carreira

de atriz, depois de meia dúzia de espetáculos encenados na

capital, de como os produtores de seu grupo teatral a exploravam

e cobravam tanto dela, e de como, paralelo a tudo isso, ela tomou

interesse por outras áreas, indo parar, inclusive, na faculdade de

Agronomia. Josué nem tinha uma ideia clara do que fazia um

agrônomo.

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Carmem se casou duas vezes nos últimos treze anos, sofreu dois

abortos espontâneos, foi abandonada pelo último marido e assim

começou a fumar. Ela, realmente, não lembrava tanto aquela

garota de faces arredondadas e um sorriso que, ao se abrir, parecia

desvelar um roseiral sob o sol crepuscular. Carmem retornou com

a bagagem cheia de histórias e desilusões, como roupas

amarrotadas numa trouxa para lavar.

Josué se sentia falando com outra pessoa. A Carmem de

antigamente teria comentado algo sobre seu perfume no exato

segundo em que ele a cumprimentou. Enquanto ela falava, Josué

podia ver resquícios de seu antigo amor na maneira como ela

mexia a boca ou coçava o nariz e até mesmo em como entortava a

cabeça quando exclamava admiração. E isso era mais que bastava

para sustentar sua paixão ainda pungente.

A chuva que começou caindo pesada, como um golpe desferido

de uma só vez, permanecia assim. A área em que estavam, mesmo

coberta por toldo, já começava a ficar incômoda por conta dos

respingos de chuva, ameaçando inundar o chão. Josué bebia

chocolate quente numa caneca amarela com o desenho de um

ramalhete de flores variadas, muito simpática, com a logo do Café

Primavera aparentemente pintada à mão.

— Eu tinha me esquecido completamente de como é o inverno

aqui— revelou Carmem, tateando na bolsa em busca de mais um

cigarro.

— Trouxeste a chuva.

Ela esboçou a reação de não ter entendido.

— É a primeira chuva do inverno desse ano. E foste tu que

trouxeste.

— Continuas bobo, Josué— sorriu ela, visivelmente tímida.

Ficaram em silêncio por um tempo, apreciando a água abençoada

que ensopava a cidade. Carmem pegou o cigarro na bolsa, mas a

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quietude da contemplação a deteve. Josué observava a chuva, mas

seus olhos inconstantes volta e meia grudavam em Carmem. Ela

parecia estar absorta em algum tipo de lembrança, como que

revivendo os áureos tempos em que tudo que ela queria era

representar uma personagem, experimentar novos figurinos e

passear por diferentes cenários. Josué ainda nem tinha lhe contado

sobre o que ele estivera fazendo naquele lugar ao longo dos

últimos treze anos. A bem da verdade, esperou que ela esquecesse

e nem lhe indagasse. Até hoje Josué se mantinha no mesmo grupo

de teatro em que ele e Carmem iniciaram nas artes cênicas. Após

a morte do mestre Horácio, Josué passara a ser um tutor para os

novatos e para os que nele viam um líder. Não ganhava muito

dinheiro com isso, mas sobrevivia. Não cursou faculdade e só saiu

da cidade duas vezes, sendo apenas uma delas para a capital. Sua

história não tinha glamour, nem grandes mudanças de hábitos,

como passar a fumar. Não se casara, não tivera filhos. Houve uma

ou duas namoradas com quem não pôde continuar a ficar, por

circunstâncias comuns da vida. Uma destas circunstâncias: seu

amor que nunca morrera por Carmem, alguém por quem ele

sempre nutriu um sentimento gigante no peito, mas que na

realidade o que houve entre eles nunca passou de uma amizade na

qual trocaram um único beijo.

— Tu achas que podes me perdoar, Josué?

Ela o arrebatou dos pensamentos repentinamente, deixando-o

intrigado com tal pergunta.

— Não entendi, Carmem.

— Todo esse tempo eu estive rodando por esse mundo,

vagueando de lá pra cá, tentando me encontrar e me estabelecer.

Enquanto tu ficaste aqui, me esperando. Tu guardaste o maior

sentimento do teu coração todo para uma pessoa que foi pro

mundo viver aventuras e dar murro em ponta de faca. Tu ficaste

na tua pureza, acreditando que cada dia que passava era apenas o

tempo fazendo com que se aproximasse o dia de nos

reencontrarmos.

Josué tinha o olhar fixo em Carmem, que se punha a tagarelar

ainda contemplando a chuva. Como ela poderia saber de tudo

aquilo? Como ela podia estar falando aquelas coisas tão exatas,

sensatas?

Page 15: E-book O Mosaico dos Raros

— Eu fui embora deixando para trás um coração iluminado de

esperança, Josué. O teu coração. Eu sabia que tu me amavas, mas

o teu amor era tão absurdamente superior à minha amizade por ti,

que eu tive vergonha da minha existência. Eu não podia mais

continuar aqui, onde eu ia sofrer as consequências por não poder

corresponder a um amor tão forte e generoso como o teu. Tu

achas que podes me perdoar?

Josué recostou-se em sua cadeira, petrificado. Por dentro, sentiu-

se encolher. A cada segundo, sentia-se ficando cada vez menor.

— Estás me dizendo que meu amor foi a causa de tua partida?

Ela não esboçou resposta nem mesmo no olhar, perdido na chuva.

Josué esperou uma resposta, mas tudo havia sido dito com

extrema clareza.

— Nesse caso, não deveria ser eu a te pedir perdão?— ele tentou

manter o contato.

— Amar não é erro que careça perdão. Fugir de ser amado, isso

sim, é punível. Correr com o coração apertado de dor por não ser

digno de retribuir amor, isso é abominável.

— Mas éramos jovens, Carmem. Mesmo que não me amasses,

um dia o tempo haveria de me curar a dor e eu teria superado,

pois assim é com todos os que amam e fracassam. A crueldade

nos castiga a ponto de se transformar em experiência, uma ponte

para a maturidade.

Ela sorriu. Mas era um sorriso frio, irônico. De alguma forma, ela

parecia carregar uma culpa insustentável.

— Se fazes tanta questão, então te perdoo, Carmem. Nem tenho

por que não fazê-lo. Só me importa que sejas feliz.

Enfim, ela voltou-se a ele. Encarou-o com toda a ternura que

pôde, expressando um semblante aliviado. Josué lhe sorriu e

tocou sua mão sobre a mesa. A atmosfera daquela ocasião em que

se beijaram uma única vez pousou sobre os ombros do moço.

Entretanto, somente ele sentira.

O encontro acabou. Não houve beijo. Ela não o amava, apenas

sentiu que devia a ele algum tipo de satisfação.

Semanas depois, a fatídica carta chegou para Josué. Essa parte foi

deixada de lado no reencontro em que tiveram, mas Carmem

Page 16: E-book O Mosaico dos Raros

estava com uma doença incurável, lutando há tempos, até que

desistira e, lembrando-se do tempo de vida estimado pelo médico,

deixou passar alguns meses e então foi até sua cidade natal

resolver aquela que considerou a pendência mais imperdoável de

sua existência. Com o perdão de Josué, agora a morte até lhe

parecia mais amena. Tinha medo de ser enterrada com qualquer

dívida com o mundo, especialmente com alguém que, de tanto

amor que exalava de si, lhe deu a melhor adolescência que

alguém poderia querer. Encenaram tantos espetáculos juntos,

foram tantos ensaios divertidos, broncas do mestre Horácio,

broncas de um para o outro, excursões para se apresentar em

festivais de teatro, cumplicidade, confidências, lágrimas e muitos

risos. Viveram como namorados, ainda que rodeados pela

ausência de evidências que marcam um casal. Mas a ligação que

tiveram, essa poderia causar inveja a um sem-número de casais.

Chovia torrencialmente no dia em que Carmem desceu à

sepultura. Josué foi o único, durante o enterro, que não se abrigou

da chuva, pois para ele a chuva era como um carinho espevitado

daquela Carmem de treze anos atrás. E se deixara tocar sem

qualquer pudor pela água que banhava sua face e fazia as roupas

lhe grudarem à pele.

Só me importa que sejas feliz.

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D E S E N H O

Conto: Tagore (por Prsni Nascimento)

Page 18: E-book O Mosaico dos Raros

Numa pequena cidade da Índia havia um jovem chamado Tagore,

que amava desenhar e seu grande sonho de infância era ser

reconhecido como um grande desenhista pelo Príncipe Arjuna.

Chegar perto do príncipe nunca foi fácil, pois o príncipe Arjuna

vivia sempre cercado por muitas pessoas e asseclas. Além de

popular, era realmente muito dedicado ao reino, e apesar das

várias tentativas Tagore nunca conseguiu realizar tal sonho.

O rapaz sempre teve no príncipe um exemplo de bom homem,

que de certa forma relembrava seu pai, de quem tinha imensa

saudade. Seu pai fora assassinado de forma misteriosa. Passados

alguns anos sua mãe casou-se novamente, desta vez com um

homem que havia trabalhado com o seu pai; também parecia ao

jovem que eles foram amigos, lembrava-se de vê-los sempre

juntos quando criança. Logo depois do casamento ele foi morar

com eles, com a convivência passou a tratar muito mal o menino,

o que lhe provocou sérios problemas, traumas e medos. Tagore

sofreu muito nas mãos do seu padrasto, que batia nele por

qualquer coisa. Sua mãe, submissa, fingia que nada acontecia,

Tagore parou seus estudos desde que seu pai foi assassinado, no

entanto continuamente estava lendo algum livro ou desenhando.

Tagore nunca soube quem fora o assassino de seu pai, até que um

dia achou uma carta de seu pai dizendo que traiu o reino por que

queria muito dinheiro e acabou negociando uma mercadoria

muito importante do príncipe Arjuna com o reino inimigo. O

príncipe descobriu e muito furioso estava à sua procura. Surpreso,

Tagore não entendia o que havia acontecido no passado, sabia que

o pai trabalhava com o príncipe e que eram grandes amigos. A

carta deixou estranhas dúvidas em sua mente: seria o príncipe o

assassino de seu pai?

Decidido a investigar a morte de seu pai, Tagore fugiu em direção

ao castelo de Jaipur, morada do príncipe Arjuna. Apesar das

evidências da carta, no íntimo do seu coração nutria a esperança

de que o príncipe não fosse o autor da morte de seu pai, mas

precisava descobrir a verdade. Por sua mente passava a memória

de sua infância, as longas conversas de seu pai com o príncipe, o

Page 19: E-book O Mosaico dos Raros

sorriso dele ao chegar do trabalho e abraçar sua mãe e o aperto

forte de suas mãos.

Durante a viagem passou a desenhar tudo que via, os traços das

árvores, o voo dos passaros, o sorriso das crianças brincando, o

sobe e desce das montanhas, ao longe alguns devotos dançando

na frente de um templo. Ao cair da primeira noite passou por um

vilarejo e resolveu dormir na copa de uma árvore, acordou

assustado com uma criança lhe observando. Ela lhe ofereceu

comida, ele agradeceu e seguiu viagem. No segundo dia

caminhando conheceu Sawai, um homem que levava encomendas

para a cidade de Jaipur numa carroça, e ofereceu-lhe uma carona

até a cidade.

Já nas proximidades da cidade, Sawai disse que passariam pelo

rio das lamentações de barco para poder levar as encomendas e

convidou-o:

―Tome cuidado na travessia, jovem Tagore, porque diz a lenda

que quem passar pelo rio tem seus segredos do passado revelados.

Tagore aceitou atravessar o rio com Sawai. Na travessia Tagore

teve uma visão, sentiu uma tonteira tomar contar do seu corpo,

olhou pro rio e viu as águas turvas diante de si. Do meio daquelas

águas surgiu uma imagem, nela viu nitidamente seu padrasto

lutando com seu pai na floresta perto da cidade que eles

moravam, viu também o padrasto sacar uma adaga. No momento

que o homem ia cortar seu pai com a arma, Tagore sentiu a

garganta apertar. Uma sonolência apoderou-se de sua mente e

caiu no chão do barco desacordado.

Sawai ficou desesperado, não havia ninguém além do bargueiro

pra ajudar. Para sua calma, o jovem não tardou em acordar, mas

mentiu sobre a visão, pois ainda não sabia o que fazer com tal

revelação, não viu o padrasto matar o seu pai, mas viu a adaga

cortar o ar e os olhos de ódio daquele homem contra seu pai. Ao

desembarcar se despediu e agradeceu a Sawai.

Page 20: E-book O Mosaico dos Raros

Seguiu rumo ao castelo de Jaipur, era dia de festa no castelo,

muitas pessoas entravam e saíam levando coisas para a festa. Ele

avistou uma carroça de flores indo em direção ao castelo,

então se escondeu na carroça conseguindo passar pelos

portões, disfarçou-se como um dos serviçais do príncipe, passou

pelas imensas colunas douradas que davam entradas a grandes

salões, sabia que nesses salões o príncipe costumava receber

pessoas da realeza.

Aproximou-se do corredor lateral que dava acesso aos aposentos

reais, quando de repende alguém o interrompeu dizendo:

―Ei! Leve essa bandeja para o príncipe no salão de eventos por

ali― acenou com a cabeça para a direita.

Era a oportunidade que estava esperando. Tentando demostrar

tranquilidade, foi ao encontro do príncipe. Naquele imenso salão

ornado de flores e tecidos, sentado no centro de um tapete

colorido estava o príncipe. Parecia que o tempo havia parado. O

príncipe Arjuna tinha o mesmo sorriso, algumas pessoas faziam

barulho ao redor dele, mas Tagore não percebia, tudo que passava

pela sua cabeça era que aquele homem com aquele sorriso

certamente era o amigo do seu pai. Aproximou-se lentamente do

príncipe.

―Chegou o chá― O príncipe chegou bem perto de Tagore, olhou

nos seus olhos e perguntou com um jeito desconfiado:

―Seu rosto parece-me familiar, meu jovem, como se chama?

―Sou Tagore, filho de Brisma.

―Brisma, meu muito amigo do passado?

―Sim, vim até o senhor, príncipe Arjuna, com muitas perguntas

sobre meu pai.

Batendo palmas o príncipe pediu que todos se retirassem para que

pudesse falar a sós com Tagore.

Page 21: E-book O Mosaico dos Raros

O príncipe abraçou o jovem emocionado dizendo:

―Você é muito parecido com seu pai, não sabia que trabalhava

aqui, nunca o vi antes. Seu pai não era apenas um comprador de

mercadorias do palácio, nos conheciamos desde a infância , sofri

muito quando seu pai morreu, nunca mais tive notícias suas e de

sua mãe, pois havia pouco tempo que seu pai tinha saído da

cidade com sua mãe e não soube onde estavam, mas agora estou

feliz de encontrar você.

―Não trabalho no palácio, apenas me disfarcei para encontrar

com o senhor. Minha mãe casou novamente, eu sempre quis saber

a verdade sobre a morte do meu pai. Até que um dia encontrei

isso.

Retirou do bolso a carta e entregou ao príncipe dizendo:

―Passei pelo rio das lamentações e tive uma visão do meu pai

lutando com meu padrasto na floresta, vi uma adaga na mão do

meu padrasto cortar o ar e acordei.

Assustado o príncipe falou com o jovem:

―Venha comigo― pegou Tagore pelas mãos e saiu pelo

corredor até um quarto, abriu uma pequena gaveta, retirou um

objeto envolto em um tecido, desenrolou e perguntou:

―É está adaga que você viu? Esta adaga foi encontrada na

floresta com o sangue de seu pai que jazia estentido sobre umas

pedras. Esta arma pertencia ao assistente do seu pai, um homem

rude que nutria muita inveja no seu coração, Kansas.

―Mas é o meu padrasto! Ele devia estar preso, por que não

prenderam ele ? Por que ele casou com minha mãe?

― Kansas alegou que havia perdido a adaga uma semana antes e

nunca conseguiram provar nada contra ele, pois algumas pessoas

do povoado disseram tê-lo visto sem sua adaga, mas sempre

soubemos que foi Kansas que matou Brisma. Quanto à carta foi

Page 22: E-book O Mosaico dos Raros

uma das muitas rusgas do passado, apenas um mal entendido, que

soubemos solucionar juntos, eu e o seu pai― e mais uma vez

abraçou Tagore e os dois choraram. Tagore ficou morando com o

príncipe e mandou notícias para sua mãe, que estava muito bem.

Com o tempo perdoou o padrasto, apesar de tê-lo feito sofrer.

Para sua mãe, Kansas era um bom marido e o jovem achou que

era uma recompensa para o coração dela. Tagore tornou-se o

desenhista oficial do Castelo de Jaipur e todos se encantavam com

seus desenhos. Vinham pessoas de todas as partes da Índia para

serem desenhadas por ele, e seus desenhos viajaram o mundo.

Page 23: E-book O Mosaico dos Raros

A R Q U I T E T U R A

Conto: Casa Colonial (por MK Santos)

Page 24: E-book O Mosaico dos Raros

Lembro-me da residência, uma casa de arquitetura colonial,

localizada às margens de uma lagoa, com uma árvore de ipê nos

fundos, uma vizinhança tranquila, amigável e com vários campos

que na primavera se cobria de flores. Parece paisagem de pintura,

mas era real, eu também não acreditava que lugares assim

existiam, mas existem, agora não sei se neste mundo ou no outro.

Eu era novo, recém-admitido numa empresa multinacional,

meus pais não aprovavam a minha mudança, sair do centro

urbano para me acomodar numa cidadela interiorana. Confesso

que eu tinha receio de não me adaptar, mas o salário era muito

bom, eu poderia levar adiante os meus planos de montar a minha

própria empresa de consultoria artística.

Logo que aceitei o emprego, cheguei à pacata cidade de

Novos Campos e passei um dia inteiro em busca de um lugar para

alugar, algo que não fosse tão caro, afinal eu queria economizar,

mas que fosse aconchegante para um rapaz solteiro que viveria só

por alguns anos. Percorri por várias ruas do centro da cidade e

nenhuma moradia disponível, pedi informações aos moradores e

todos me davam a mesma resposta “aqui é difícil encontrar casas

vagas”, então decidi, enfim, procurar o único corretor de imóveis

da cidade.

Na imobiliária me deparei com uma situação inusitada e um

pouco desestimulante, a única casa disponível se localizava a

alguns quilômetros fora do centro da cidade; era uma casa

campestre e, além disso, possuía a fama de ser mal assombrada.

Ri no momento em que soube da história, mas imediatamente

desfiz o sorriso, pois percebi que o corretor falara sério.

Perguntei sobre qual tipo de assombração estávamos

falando, afinal, anoitecia e eu precisava definir um local para

passar a noite. O corretor explicou-me um pouco da história da

casa, disse que no passado ela era habitada por um grande

coronel, dono de muitas terras e de trabalhadores escravizados por

dívidas. Era um homem muito cruel, muitos homens sofreram

castigos perversos e morreram naquelas terras. A casa está

localizada nos campos mais lindos da cidade, mas tem esse

problema de ser povoada por esses espíritos dos ex-trabalhadores.

Page 25: E-book O Mosaico dos Raros

Acreditei na história que ele me contou, pois me mostrou, na

internet, alguns documentos antigos da época: eram registros de

jornal que documentavam a descoberta do cemitério clandestino

com mais de vinte ossadas de seres humanos, os supostos ex-

trabalhadores. Mas não acreditei que a casa sofresse com a

influência de algum tipo de energia do além, nunca acreditei

nisso, meus pais sempre me falavam que era para eu ter medo dos

vivos, pois os mortos nada podiam fazer de mal. Convicto no que

eu pensava e na necessidade de dormir, eu estava exausto, resolvi

ir conhecer a tal casa.

A meia hora do centro de Novos Campos, bem após uma

curva há mais ou menos um quilômetro eu já conseguia avistar a

casa, construída sobre uma colina. De fato, era uma casa em estilo

colonial, com uma varanda trabalhada em arcos, portas e janelas

feitas de madeira de lei.

Não sei por que as pessoas evitavam aquela casa, ela era tão

charmosa e possuía um grande valor histórico, embora não fosse

um passado muito bom, mas isso não a desvalorizava enquanto

história, afinal, a sua estrutura representava um estilo de época e

se mantinha intacta, super conservada, exceto pela pintura

desgastada.

Nem bem chegamos e o corretor deu meia-volta e saiu

queimando pneu, apenas deixou claro que os boletos seriam

enviados para o endereço todo fim de mês. Não importou a mim,

estava ansioso para adentrar na minha nova casa. No interior da

sala, vi que a mobília estava descoberta e limpa, como se a casa

nunca tivesse deixado de ser habitada. Novamente não me

importou, continuei explorando o lugar. Fui aos quartos, embora o

valor cobrado pelo imóvel estivesse acessível, a casa era grande,

possuía vários quartos, todos distribuídos em um corredor longo,

que ligava a sala à cozinha.

Definitivamente, eu estava satisfeito com a minha aquisição,

havia me apaixonado pela casa, o cansaço me vencia, mas não

poderia dormir sem pegar uma ducha. Fui conhecer a banheira da

suíte, a pus para encher enquanto retirava a roupa, fui me

despindo, e do nada a porta abriu lentamente, propagando pelo

cômodo um ruído de dobradiças enferrujadas. Olhei para a porta,

mas não vi ninguém. Peguei a toalha a coloquei no ombro,

Page 26: E-book O Mosaico dos Raros

caminhei até a porta, fechei-a e me dirigi ao banheiro. Mergulhei

lentamente na banheira e com o chuveiro ainda ligado, aparei as

gotas no rosto até adormecer.

Quando acordei, senti um cheiro bom de café da manhã.

Estranhei, afinal, quem poderia estar na cozinha fazendo o café?

Eu era novo ali e não tinha feito amizade com ninguém ainda,

sequer tinha me apresentado na filial da empresa. Peguei a toalha,

enrolei-a na cintura e desci a escada devagar, olhando apreensivo

cada cômodo da casa. Ao chegar à cozinha, vi uma mulher de

costas, trajando um vestido longo, antigo. Era morena,

aparentemente nova, por volta dos vinte anos, corpo bonito,

parecia preparar algo. Assustado eu deixei escapar um “oi”, mas

ela não respondeu, fui me aproximando devagar até conseguir

tocar em seu ombro, então a toquei e perguntei:

“Quem é você?”

Ela se virou e falou com um ar de felicidade: “Até que

enfim você acordou!”

Eu não entendi nada, mas olhei em seus olhos verdes que

me hipnotizaram e me regressaram à sua história.

Seu nome era Esmeralda, talvez pela cor dos olhos, era filha

bastarda do dono da casa, Coronel Antônio Vellais. O coronel era

casado com a senhora Lindalva, alguns anos mais nova que ele,

charmosa, porém estéril, o que fazia com que aceitasse a presença

de Esmeralda na casa, mesmo sabendo que era fruto de um ato de

infidelidade de seu esposo. Esmeralda era tratada como uma

serviçal, não era escrava, mas não gozava de seus direitos como

filha. O coronel sofria de uma enfermidade crônica, sabia que

logo morreria, portanto tratou de cuidar do atestado antes que a

sua hora de partir chegasse.

Embora a fama de coronel cruel do senhor Vellais

ultrapassasse as fronteiras da cidade, em seu testamento, ele

buscou se redimir com Esmeralda e deixou a posse da Casa

Colonial em nome de sua única filha. Quando morreu e a leitura

do testamento foi feita, senhora Lindalva não se conformou e se

descontrolou emocionalmente, foi até a sala de caça da casa,

pegou uma arma, voltou à sala e atirou em Esmeralda, que em

seus poucos minutos de vida, sussurrou: “Esta casa é minha e

daqui não sairei”.

Page 27: E-book O Mosaico dos Raros

Após esta lembrança, voltei da regressão e compreendi o

que se passava na casa. A moça pegou numa de minhas mãos e

disse: “Agora ela também é sua”.

Olhei seriamente nos olhos dela, depois baixei a cabeça e vi

que na outra mão ela manuseava uma faca com a qual me desferiu

um golpe fatal dizendo:

“Fazia muito tempo que te esperava!”

Minha vista foi embaçando, fui caindo e a respiração

parando lentamente, meu sangue escorrendo e sendo absorvido

pelo piso. Eu, definitivamente, fui me sentindo cada vez mais

ligado à arquitetura da casa, desde então nunca mais ninguém

obteve notícias a meu respeito. Junto a Esmeralda e aos outros

espíritos da fazenda, passei a guardar a casa de todos os intrusos

que a tentassem tomar de nós.

Page 28: E-book O Mosaico dos Raros

C I N E M A

Conto: A vida é um roteiro de quinta (por Rodrigo Mergulhão)

Page 29: E-book O Mosaico dos Raros

Tom era um garoto solitário em seu universo particular.

Contrariando convenções, preferia Hawking, Hobsbawm e Kurtz

aos irmãos Grimm ou Monteiro Lobato. Debatia na internet a

teoria das cordas e descobertas de estrelas anãs. Nas horas vagas,

era astronauta. E foi em uma de suas viagens errantes que

conheceu Klwyngoom X.

– Pequeno terreno, eu sou Klwyngoom X – falou o

habitante de Adrasteia, um dos satélites de Júpiter. – Tenho uma

mensagem ao seu povo mundano.

– Venha comigo à Terra! – convidou Tom.

A chegada de Klwyngoom X à Terra causou furor. O

evento era o desvario perfeito dos contextos spielberguianos. O

extraterrestre foi tachado de ameaça universal.

– Infestações terráqueas, trago-lhes uma mensagem – falou

Klwyngoom X diante do mundo. – Cuidem de seu planeta. Pólos

derretem. Águas se esvaem. Ar acinzenta. Florestas desbotam.

Vocês morrerão.

Ao fim da declaração, todas as nações da Terra atacaram o

ser estranho. Para salvá-lo, Tom fugiu carregando-o no cesto de

sua bicicleta, que voou ao espaço. Na estratosfera, Tom foi

crivado por submetralhadoras e morreu; Klwyngoom X estava só.

Ele não compreendeu o ser humano; o homem era mesmo animal

sem razão. Ele precisaria voltar logo para Adrasteia. Infelizmente,

escorregou do cesto da bicicleta e viu-se caindo, caindo...

Santiago acordou suado. Que ridículo! Havia sonhado que

era um alienígena chamado alguma-coisa-xis! Realmente, ele

precisava de ideias melhores. Há muitas semanas, Santiago

lamentava ainda não ter script louvável à produção de um curta

como avaliação de seu último semestre na Universidade da

Califórnia, em Los Angeles, uma das mais renomadas faculdades

de cinema do mundo.

Aos vinte e nove anos, Santiago Cabrón estava a um passo

de concretizar o sonho de ser cineasta. Deparava-se atualmente,

porém, com falta de tato e inspiração. O fato lhe alarmava.

– Não consigo, Larry! – queixou-se Santiago ao colega de

quarto.

Page 30: E-book O Mosaico dos Raros

– Relax, latino. Se até Vidal teve problemas com Brass,

você ainda acha salvação.

– Não tenho ideias...

– A sua própria história de vida já é um roteiro, man.

Expatriado de Cuba, Santiago Cabrón, vivia há oito anos

em território norte-americano. Em seu país, Cabrón era integrante

do Hijos de Perras, grupo anárquico cujos membros infiltravam-

se nas engrenagens do governo cubano para divulgar as

controvérsias de Fidel Castro. Cabrón foi perseguido após

publicar artigos sobre a existência de provas do pagamento de

Castro a Lee Harvey Oswald para que este matasse John

Kennedy, em 1963. Cabrón pediu asilo aos Estados Unidos da

América.

Todo esse cenário também lhe perturbava ainda hoje

porque alguém o seguia. Estagiário do jornal La Opinión, a

caminho do trabalho, à noite, Santiago foi abordado por três

homens encapuzados; dois o seguraram contra um muro.

– Vamos, Sierra! – gritava o terceiro homem, que lhe

socava o rosto. – Onde estão os papéis?!

Sierra. Alejandro Sierra. O verdadeiro nome de Cabrón.

Como sabiam?

– Não sei do que falam! Meu nome é Santi...

O homem lhe bateu com um bastão de beisebol,

quebrando-lhe duas costelas.

– Sem gracinhas, Sierra, sei quem você é! Devolva a pasta,

pelotudo de mierda!

Santigo compreendeu. Eles eram agentes de Raúl. Em

2008, lobos cubanos tiveram carta branca: todos os inimigos dos

Castro seriam caçados. Aqueles capangas queriam o Dossiê

Politburo, documentos acerca da aproximação do governo cubano

com o Partido Comunista da União Soviética nos anos 60,

roubados pelo Hijos.

Cabrón não lhes entregou o material. O agressor cravou-lhe

um canivete na jugular. O corpo de Santiago foi jogado na

Hollywood Boulevard. Começou a chover. Santiago espirrou.

– CORTA! Porra, Max! Espirrou de novo, caralho! – gritou

Müller.

Page 31: E-book O Mosaico dos Raros

– Poxa, Müller, desculpa, foi essa água fria... – lamentou

Max.

– Sempre a água, sempre a água! Cadê teu

profissionalismo, cara?! Puta merda... Muito obrigado, pessoal.

Graças a Max, por hoje é só, não é, Max?

Müller dispensou a equipe e todos abandonaram o set. Max

permaneceu sozinho no escuro, limpando o sangue falso em seu

pescoço, ainda enfurecido por seu diretor ter sido rude diante de

todos.

Max Ventura era uma negação. Tentava ser astro do

cinema brasileiro desde 1998, quando fez testes para figurante do

programa Zorra Total. No entanto, as oportunidades não lhe

cabiam. Perdera para Vinícius de Oliveira o papel de Josué, em

Central do Brasil, por não ser cabeçudo. Ao encontrar o ator na

rua, a esmo, agrediu Vinícius e ficou detido na FEBEM por

quatro meses.

Nas audições para O auto da Compadecida, Fernanda

Montenegro lembrou-se do espancador de seu jovem colega e

recusou-se a interpretar a Compadecida caso Max Ventura

estivesse no elenco. Não se faz necessário dizer o desfecho da

história.

Antecipando-se para Carandiru, Max implantara próteses

mamárias de silicone para interpretar a personagem Lady Di.

Inexplicavelmente a Max, Rodrigo Santoro foi selecionado ao

papel. Por causa dos seios, perdeu Lisbela e o prisioneiro e

Cazuza. Para conseguir pagar a retirada das mamas, teve de fazer

propagandas de sutiãs e campanhas de exame de toque contra

câncer sem exibição de seu rosto.

Suas derradeiras tentativas foram em 2007, com Cidade

dos Homens e Tropa de Elite. Não se lê “Max Ventura” nos

créditos dos filmes.

Cinco anos depois, interpretava Santiago Cabrón. Ele mal

entendia o roteiro. Era um herói cubano urbano cineasta. Algo

assim. Selton Mello havia recusado o papel. Por que seria? Não

importava, ele tinha sua chance de atuar. Ele enfim tinha a sua

chance de atuar. A sua chance de mostrar ao mundo o que era

capaz! Enfim! Todos pagariam por seu atraso! E pagariam caro!

Mui-to-ca-ro! Max Ventura planejou livrar-se dos que lhe haviam

Page 32: E-book O Mosaico dos Raros

recusado suporte até aquele momento. Ele mataria cada ator que

lhe usurpara personagem; cada diretor, produtor e roteirista que

até hoje lhe negara trabalho e começaria por Cacá Diegues.

– Cacá Diegues? Mas que merda é essa, Tomás? Que

merda de história é essa, Tomás?!

– Então, Meireles, deixa eu ler de novo pra você, olha só...

– Ler porra nenhuma! Eu sei ler, caralho! Tô perguntando

que bosta é essa! Monteiro Lobato?! E o que é Kurtz?! Mas que

merda de Clingu do... do... do asteroide de Júpiter? O que é isso?

Cocoon?! Que bosta, Tomás!

– Ô, Meireles, não é bem assim.

– “Não é bem assim”, cara?! Então que porra de Fidel é

essa?! Tá louco, homem? Já se deu conta da cagada que isso pode

dar?! Conspiração cubana?! E a UCLA! Tu pediu permissão pra

usar o nome da Universidade da Califórnia, Tomás?!

Meireles berrou o fim da frase. Tomás tremia ao lhe

apresentar o rascunho com o qual concorreriam pelo patrocínio da

Petrobras através do “Programa Petrobras Cultural – Seleção

Pública de Projetos, edição 2012”, do apoio à produção de filmes

inéditos brasileiros de longa-metragem, realizados ou finalizados

em película cinematográfica de 35mm ou formato digital, de

produção independente e que se destinassem a salas de cinema

originalmente.

– E o título? “Assassinatos na Academia Brasileira de

Cinema”?! Que é isso?! Jô Soares?! Tu tá plagiando Jô Soares,

sua mula?!

– Plagiando nada... Pode ver no CPB... Além do mais, é um

título provisório... Pensei também em “Sangue no Gramado”. O

festival, Gramado, Rio Grande do Sul, sabe?

– Não, Tomás, não sei de mais nada! Mas que merda,

cara...! Um Santiago lá da puta-que-pariu vem matar gente aqui

no Brasil?! Tá louco?! Que coisa mais patética, seu idiota!

– Não é Santiago Cabrón, Meireles, é Max Ventura, leia

direito...

– Que resolve matar gente aqui no Brasil? – repetiu

Meireles.

– Não é matar, matar... É só uma brincadeirinha nominal...

Homenagem, sei lá.

Page 33: E-book O Mosaico dos Raros

– Então você decidiu ridicularizar, digo, brincar com,

perdão, brincar com Hector Babenco, Paulo Morelli, Walter

Salles, Wagner Moura, Montenegro, Santoro, é isso, Tomás?

Hein?

Tomás não respondeu.

– Tomás, você enlouqueceu? – perguntou o diretor.

Tomás não respondeu.

– Tomás, você enlouqueceu – disse o doutor.

Eu não respondi.

– Você enlouqueceu e – continuou me dizendo o doutor –,

desde ontem você está aqui conosco, Tomás. Seus filhos acharam

melhor interná-lo. Mas não se preocupe, você poderá vê-los todos

os dias.

Não, eu não estava louco.

Eu sou apenas um garoto solitário em seu universo

particular. Contrariando convenções, prefiro Hawking,

Hobsbawm e Kurtz aos irmãos Grimm ou Monteiro Lobato.

Deixa eu te contar uma história, leitor: eu sou astronauta.

Page 34: E-book O Mosaico dos Raros

P O E S I A

Conto: A passagem (por Genniffer Moreira)

Page 35: E-book O Mosaico dos Raros

Algumas gotas de tristeza lhe caíam dos olhos, enquanto a menina

observava a beleza das nuvens. Não eram simples lágrimas de

saudade, não eram compostas lágrimas de felicidade, eram

singelas lágrimas pela percepção da sua inseparável relação com a

solidão. E as gotículas de tristeza continuavam a cair e molhar a

grama verde do lugar onde a pequena menina estava sentada, um

lugar qualquer situado numa cidade qualquer, numa dimensão

qualquer sem importância.

Olhar a grama não lhe causava o mesmo efeito que olhar as

nuvens, a tristeza se aprofundava com mais facilidade quando ela

observava a estranha beleza das nuvens se contrapondo ao azul do

céu. A menina acreditava em mágica e pensava que as nuvens

faziam parte de algum feitiço de Duendes ou Fadas que vivem no

final do arco-íris. Pensar em magia era um passatempo que

amenizava a tristeza de saber sobre a sua irremediável solidão.

O branco fumacento das nuvens continha particularidades que a

frágil menina não conseguia explicar com palavras, talvez,

ninguém pudesse explicar verbalmente as particularidades que as

nuvens podem causar nos sentidos dos seres humanos. Ela

acreditava que nem as nuvens poderiam explicar sobre essa

singular sensação que causam nas pessoas, portanto, a verdade

sobre as nuvens não precisava ser explicada ou estudada por ela e

pelos demais seres humanos que observavam as nuvens.

A menina sorriu ao pensar que as nuvens possuíam uma beleza

singular e inexplicável, como em um encantamento a tristeza que

encharcava a grama daquele lugar onde ela estava evaporou. Num

passe de mágica as gotas de tristeza que restavam dentro do seu

pequeno coração simplesmente deixaram de existir, agora não era

mais doloroso pensar na solidão, agora ela podia pegar a

passagem em seu bolso e sorrir ao imaginar o que lhe esperava no

final do arco-íris.

Porém, o possível final do arco-íris da pequena menina não se

tratava de um belo final feliz, ou, talvez, o orfanato qualquer na

cidade vizinha para onde ela deveria viajar não fosse o pote de

Page 36: E-book O Mosaico dos Raros

ouro no final do seu arco-íris. Mas, isso não tinha importância,

naquele breve momento as nuvens haviam enchido o coração da

menina de alegria e poesia, naquela tarde ensolarada e

deprimente, enfim, as nuvens lhe haviam dado um valioso

presente, e seu presente era de fato o seu tempo presente.

O final não precisava ser escrito, o final não tinha importância, a

passagem na mão da menina não simbolizaria a sua eterna solidão

e tristeza. A passagem deveria ter muitos outros significados que

ela desconhecia. E as nuvens não poderiam explicar com palavras

a verdadeira POESIA que vivia dentro do coração daquela

menina.

Page 37: E-book O Mosaico dos Raros

M Ú S I C A

Conto: Sua Música (por Samila Lages)

Page 38: E-book O Mosaico dos Raros

Era tudo silêncio, desde o princípio.

E seria tudo silêncio até o fim, se ela não tivesse aparecido.

Ela era como uma ventania, um furioso e barulhento tufão que

chegou de repente, derrubando todas as estruturas da sua vida. E o

fizera de maneira tão sutil que ele, bobo, chegou a agradecer aos

céus por aquela arrebatadora destruição.

Como se conheceram? Um bar, um pequeno palco, amigos e gim.

Ela cantava e tocava baixo na banda que se apresentava. Ele

apenas bebia mais uns goles de gim enquanto sentia as vibrações

mais graves da música em seu corpo e escutava as palavras dela

com seus olhos. Ela cantava bem, ele logo soube só de observar

como a sua face transmitia uma profunda emoção quando ela

fechava os olhos.

Ela era linda, ele pensou observando seus cabelos tintos em

vermelho fogo e a cintura marcada por um corselet vermelho.

Seus movimentos e gestos também detinham a atitude esperada

de uma artista do rock, ele supôs, mesmo sem saber por que

deveria se esperar aquilo de uma artista do rock. Ele só sabia que

a música era boa e batia palmas ao final de cada execução.

Durante todo o show ele a observou, sem se dar conta de que era

quase ridícula sua atenção exacerbada. Volta e meia um dos

amigos da mesa o cutucava, soltava uma gracinha, de que ele ia

‘secar’ a menina se continuasse olhando daquela maneira. Ele se

sentiu um pouco envergonhado, mas não conseguiu parar de

olhar. Talvez por toda essa atenção, a vocalista, antes do

encerramento, apontou para ele e disse “essa é a última música e

eu gostaria de dedicar para o bonitão de óculos aqui da frente!”

Ele corou um pouco e perguntou para um dos amigos o que ela

tinha dito. Quase não acreditou e abriu um sorriso enquanto

observava novamente a bela face dela repleta de sentimentos.

E quando o show terminou, ela desceu do palco, veio falar com

ele. Perguntou se poderia ganhar um pouco do gim que tomavam.

Page 39: E-book O Mosaico dos Raros

Obviamente, ele travou, mas um dos amigos se adiantou e

explicou que ele não ouvia, mas que ela era bem vinda a sentar-se

com eles.

-Como assim ele não ouve? Ele estava prestando tanta atenção na

banda. –Ela perguntou. De fato, tinha visto o pessoal da mesa

usando libras em alguns momentos, mas não imaginou que fosse

ele o surdo.

O amigo pensou se responderia, mas achou melhor dizer para

Bruno responder por si só, apontando para o caderno dele e

fazendo os sinais que indicavam a pergunta dela.

“Eu podia sentir a vibração do som do seu baixo, e algumas

batidas da bateria. E você parece cantar muito bem, você

transmite a letra com sua face.”

Ele entregou o papel com um sorriso meio tímido.

Ainda um pouco impressionada ela aceitou o convite para se

sentar, e não sabendo libras pegou a caneta dele e se pôs a

dialogar de uma maneira que nunca tinha feito, quase ignorando

os demais membros da mesa. Bruno descobriu que o nome dela

era Daniela, mas que ela gostava de ser chamada de Danny.

Falaram sobre as diversas coisas, desde música e pintura (ele era

artista plástico), até as mais piegas e ridiculamente românticas

formas de literatura.

Mais de uma hora se passou e ela precisava ir. Eles trocaram

contato e marcaram um encontro, dois, três. Ele pintou quatro

retratos dela, e às vezes ela cantava em seu ouvido, mesmo

sabendo que ele não escutaria. Mas ele sentia a vibração e o hálito

quente dela na orelha e se limitava a imaginar o quão sensual

seria a voz dela. Aquilo lhe bastava, ou pelo menos ele achava

que bastaria.

Em oito meses ficaram noivos e foram morar juntos. Bruno ia a

cada um dos seus shows. Conheceu o pessoal da banda, fez

amizade e até desenhou a capa do EP deles. Danny tinha

Page 40: E-book O Mosaico dos Raros

aprendido a falar em libras; às vezes lhe traduzia as letras em

gestos enquanto cantava. Eram palavras muito bonitas, mas não

detinham nem metade da emoção que sua face demonstrava

enquanto ela cantava no palco.

E por algum motivo, aquilo lhe dava vontade de chorar.

Era incômodo saber que a seu redor centenas de pessoas

escutavam a voz dela, escutavam suas palavras, viam suas

expressões e a adoravam por isso.

Um dia ela escreveu uma música para ele, dizendo o quanto o

amava, dizendo que ele era um anjo em sua vida.

Ele chorou.

Ela pensou que fosse emoção, mas na verdade era tristeza. Era

difícil para Bruno saber que centenas, milhares de pessoas tinham

uma parte dela que ele jamais teria. Ele se preguntou se seria certo

ter uma música dela para si. Quando decidiu que era certo, ele se

perguntou por que não poderia escutar a voz dela cantando aquela

música que deveria ser só sua.

Por que ela cantava aquela música para todo mundo?

Ele sentiu raiva de si, de Deus e dela quando essa música se

transformou em hit. Graças ao sucesso a banda fechou contrato

com uma grande gravadora e até vídeo-clip fizeram daquela

música. O assédio dos fãs dela o irritavam, os elogios nas redes

sociais e na crítica especializada o deixavam enciumado. Até na

televisão ela ia! E da televisão ele não podia nem escutar as

vibrações do baixo dela.

Ele não foi mais aos shows e passou a sair de casa toda vez que

ela tocava piano ou baixo. Da mesma forma, não quis desenhar a

capa do novo álbum da banda.

Quase não se falavam, e quando faziam, brigavam pelos mais

torpes motivos. Ele não quis nem continuar o quadro dela que

estava em andamento.

Page 41: E-book O Mosaico dos Raros

Ele não escutava enquanto ela chorava baixinho com o rosto

enfiado no travesseiro durante à noite.

Mas ele sentia.

Sentia em seu peito o choro dela.

Quando ela estourou e disse que iria embora, ele chorou também,

pediu desculpas com um abraço e um beijo, explicou porque

estava agindo daquela forma. Ela perdoou em palavras que ele

não ouviu e em gestos que acalentaram seu coração.

Ela sorriu em meio a seu choro.

E naquele sorriso havia música.

No seu abraço havia música.

No seu beijo havia música.

Ele era o único que conhecia aquela música.

Como ele era felizardo por ser o único no mundo capaz de ouvir

aquela música, tão bela, tão sua.

Só sua.

Page 42: E-book O Mosaico dos Raros

D A N Ç A

Conto: Flamejar (por Lara Utzig)

Page 43: E-book O Mosaico dos Raros

Entreolharam-se naquele setembro. Fatal? Não. Nesses

encontros só há o nascimento de algo bom. A mágica de dois

olhares que se cruzam no mesmo instante: a simultaneidade

divina.

Eis que naquele baile, no meio do salão, eles se viram pela

primeira vez. Ela dançava sozinha, como se o mundo lhe fosse

alheio aos pés e só importasse a música que lhe atingia, na

delicadeza dos movimentos de uma bailarina clássica. Ele

dançava sozinho também, mas com uma ginga maliciosa de

sambista cafajeste. Mas ainda que parecesse malemolente, ele era

tímido demais para chamá-la.

E assim a noite foi passando, os suores foram escorrendo, as

solas foram se desgastando, os músicos foram se cansando, as

bebidas foram se acabando e os dois foram se desanimando. Ele,

ainda se perguntando como chegar nela, e observando o contraste

de estilos que guiavam ambos os corpos. Ela era sublime e

sensual ao mesmo tempo, mas concentrava-se na própria leveza

autossuficiente. Reinava, majestosa, numa solidão confortável.

Como ele conseguiria apagar o ar maroto do rosto e ser digno de

merecer a honra de uma dança, antes do amanhecer?

Precisava tê-la em seus braços ao som de qualquer música,

não importava qual. Sabia que qualquer canção se transformaria

em um hino assim que ele a tocasse. Enquanto isso, ela

permanecia lá, intacta e aparentemente indiferente ao dilema

interno que ele estava vivendo.

Foi até o balcão e virou uma dose. Uma dose de álcool que

deu origem a uma dose de coragem também, para que (até que

enfim!) ele se aproximasse. Quando finalmente ficou ao lado dela,

não soube o que dizer, mas nem precisou abrir a boca para mais

nada. Ela o pegou pela mão, pois entendeu desde o princípio

daquela festa que eles tinham sido feitos para bailar um com o

outro. E pacientemente aguardou que seu futuro par viesse para

mais perto, sem forçar nem apressar a chegada. “Ele virá quando

se sentir à vontade”, pensou ela: “não posso adiantar a hora certa

e o fluir das coisas”...

Page 44: E-book O Mosaico dos Raros

Posicionaram-se frente a frente. Olharam-se mais uma vez.

As mãos quentes e suadas quase se grudaram uma a outra. A

música começou novamente:

Chama,

Me chama

Que eu te esperei no fundo do salão dos dias.

Chama,

Que a chama

Vai ascender em seis por oito o nosso par...

E como ele havia imaginado, a música na companhia dela se

tornou única! E houve sim, uma chama: o fogo do sapateado e a

luz flamejante nos olhos deles. Naquele momento, em que os pés

se mexeram em conjunto... Passos ritmados, coração

descompassado.

Me aperta contra o peito e a favor do meu desejo de dançar,

Talvez descompassar.

Me baila do teu jeito e me conduz num passo feito só pra nós...

E chama-me!

Naquele momento, em que o vestido dela - de caimento

perfeito - esvoaçou no rodopio de ambos... Eles se tornaram um

só. E assim surgiu um amor: um amor que estaria, para sempre,

em movimento.

Casaram-se três anos depois, ao som da mesma canção do

dia em que se viram pela primeira vez naquele baile: Chama-me,

de Gisele de Santi. O tempo foi passando e mesmo com a rotina

que assola todos os casais, viviam como se estivessem em

constante lua-de-mel e aos domingos, entre cafés e bacias de

pipoca com leite condensado, se amavam no sofá da sala.

Page 45: E-book O Mosaico dos Raros

Quando chegou o Carnaval, saíram entre confetes e

serpentina... Ele pierrot e ela colombina, em meio às marchinhas.

Ela deixou de lado a erudição do ballet e ele a ensinou a ter um

pouco de samba no pé. E apesar da efemeridade desse festejo, que

após quatro dias se finda em cinzas, a avenida da vida deles

prosseguiu com uma alegoria. Dentro do ventre dela.

O engraçado é que no caso específico dessa relação, não

havia, na intimidade da cama, a expressão “fazer amor”. Entre

eles, era... “Dançar amor”.

Page 46: E-book O Mosaico dos Raros

P I N T U R A

Conto: O pintor (por Rodrigo Ferreira)

Page 47: E-book O Mosaico dos Raros

Um par de olhos femininos estava fixo no quadro

finalizado diante de si. O artista daquela magnífica pintura

também fixava o olhar sobre a obra acabada: uma linda mulher

nua, deitada sobre um divã, pintada em diferentes tons de

vermelho.

― Só falta falar, você não acha? ― disse o feliz artista

àquela que servira como modelo para sua arte.

Resposta alguma foi ouvida naquela pequena, fétida e

amontoada sala de pintura, o que não pareceu incomodar o

contente trabalhador. Os dois pares de olhos continuavam

vidrados na tela.

Calmamente, o pintor recolhe o quadro do cavalete e

centraliza sua nova obra-prima entre outros trinta quadros de

pintura, quadros estes escurecidos e já carcomidos. Essa nova arte

acendia uma bruxuleante luz vermelha sobre as outras telas negras

como o piche.

― A melhor de todas. Sem sombra de dúvidas. Agradeço

a você por me conceder essa honra.

Palavras tentavam sair pelos lábios daquela moçoila de

olhos esbugalhados e que lacrimejavam. Mesmo o mais simples

gesto parecia difícil de reproduzir. Estava estarrecida com tudo e

não tirava os olhos da pintura.

― Não se esforce demais. Eu sei que demorou um pouco

e você deve estar cansada de manter a mesma posição por um

longo tempo, mas cada segundo gasto valeu a pena.

As outras telas ao redor daquela última depositada

retratavam praticamente a mesma coisa: uma jovem moça nua,

deitada sobre um divã, em uma pose sensual, ideal para um artista

retratar. Mesmo que aquelas estivessem danificadas e a tinta, de

péssima qualidade, já estivesse desgastada, o traçado original

ainda podia ser percebido.

― A melhor de todas! ― não cansava de repetir o pintor

com orgulho de si mesmo, afinal a tela realmente impressionava.

Sirenes de viaturas policiais foram ouvidas pela rua,

cercando o prédio do artista em êxtase, mas nem aquele barulho

infernal o tirou da observação de sua mais perfeita obra

Page 48: E-book O Mosaico dos Raros

finalizada. Porém, sabendo que todo aquele escarcéu o impediria

de criar mais belezas, resolveu recolher-se por hora.

― Jovem moça, agora eu gostaria de descansar um

pouco.

Dizendo isso, puxou a loira donzela do divã pelos

cabelos e a jogou ao chão, em um baque surdo, amaciado pelo

carpete manchado de carmim.

A mocinha finalmente parou de responder a qualquer

estímulo externo.

Da sua nuca, uma enorme ferida aberta estava enegrecida

pelo sangue endurecido. Entre suas pernas, um vermelho ainda

podia ser visto, mesmo que ele tivesse quase extinguido, devido

aos pelos do pincel que por ali correram.

O pintor deitou-se no divã, deixando uma de suas pernas

do lado de fora, o pé levemente recostado na cabeça de mais uma

musa inspiradora.

― A mais perfeita. Sem comparação!

Page 49: E-book O Mosaico dos Raros

Agradecemos por ter baixado este e-book

e apreciado este material feito com tanto

carinho