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Flor-das-Neves

Flor das-neves - pierre-marie beaude

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Flor-das-Neves

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Flor-das-Neves nascera no Japão, o país do sol nascente. Os pais moravam

numa pequena aldeia, situada entre o mar e um antigo vulcão. Enquanto o

mar ronronava como um gato à luz do sol, o vulcão gostava de dormir durante

todo o inverno, bem protegido pela espessa camada de neve que o céu

derramava sobre as suas encostas.

Os pais de Flor-das-Neves eram camponeses. Acompanhada pelos pais e

pelos irmãos, a jovem passava longas horas com os pés metidos na água, a

semear e a colher arroz. Quando o céu se encolerizava, trombas de água

inundavam os arrozais e o vento arrancava árvores e fazia voar casas. Depois,

era preciso começar tudo de novo. Cheia de paciência, a família reconstruía a

casa, plantava de novo as árvores e tirava a água em excesso do arrozal.

Quando Flor-das-Neves ficava em casa, tomava conta da avó.

Kaori era uma velha pequenina, cujo rosto enrugado parecia estar sempre

a sorrir. Passava os dias sentada numa esteira, a murmurar palavras que

ninguém compreendia. Yoko, a mãe de Flor-das-Neves, dizia que ela falava com

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os antepassados. Ninguém sabia que idade a avó tinha, mas sabiam que tinha

casado três vezes e que tinha enterrado três maridos.

Flor-das-Neves arrumava a casa, varria, lavava a louça. Depois, punha-se à

porta a ver passar as pessoas. O seu coração batia com força quando via

Tadashi, um rapaz da sua idade, que ela amava em segredo. Tadashi liderava

sempre um grupo de rapazes e raparigas, e ria alto. De cada vez que o via, Flor-

das-Neves esperava sempre que ele a visse. Mas os olhos do rapaz, grandes e

intensos, nunca se detinham nela. Parecia até ignorar que a jovem existia. As

gargalhadas desapareciam com ele e Flor-das-Neves ficava sozinha com o seu

sofrimento e o seu segredo.

Também era seu encargo tomar conta do aviário, no qual o pai criava aves

valiosas, que vendia para comprar roupa, utensílios ou alguns alimentos. A

menina lembrava-se particularmente de uma íbis azul. Tinha dois olhos

redondos como luas, umas patas altas e grandes, e um bico longo e finamente

curvado. Percorria o aviário com passadas lentas, debicava a terra, endireitava

o pescoço, e olhava a rapariga com um ar de mistério. Um dia, o pássaro desa-

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pareceu, porque o pai tinha ido vendê-lo bem cedo na cidade.

À noite, Flor-das-Neves sonhava com frequência com o pássaro azul.

Aproximava-se em sonhos do aviário, via na terra as marcas das patas do

animal e, de repente, este aparecia e olhava-a com os seus olhos bem

redondos. O coração da rapariga enchia-se de alegria. Também sonhava que

Tadashi parava diante da casa, com dois papagaios nas mãos, e que a convidava

a ir lançá-los com ele. Corriam pelas encostas do vulcão e o vento levava-os

pelo ar, juntamente com os papagaios. Flor-das-Neves e Tadashi planavam

sobre a terra de mãos dadas, e riam. Sobrevoavam os arrozais, o vulcão, o

palácio do príncipe, e chegavam ao mar. Nessa altura, a rapariga acordava

sempre, com o coração muito agitado pelo sonho. Ficava acordada durante

longas horas até ouvir o cantar do galo. Talvez naquele dia Tadashi reparasse

nela.

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O venerável Matsuo Seki morava na última casa da aldeia, mesmo antes do

vulcão. Era escriba e poeta. Escrevia cartas de amor, cartas de condolências, ou

respondia ao correio enviado pelos inspetores do príncipe. Também sabia

escrever poemas. Goro, o pai de Flor-das-Neves, já lhe tinha pedido favores. Foi

assim que a jovem o conheceu.

A casa do escriba ficava no meio de um jardim, adornado com um lago de

flores de lótus. Era toda construída em madeira; as paredes eram feitas de

pinho lacado e de papel cor de marfim. Belas lanternas pendiam do teto. O

velho tinha pintado nelas dragões vermelhos e dourados, com olhos cheios de

malícia.

O venerável Matsuo Seki vivia sozinho. Passava os dias sentado numa

esteira, diante de uma mesa baixinha, onde se acumulavam pincéis, plumas e

tintas. Flor-das-Neves tinha-o já observado a manusear o pincel com os seus

dedos longos, e vira os traços de tinta que o instrumento deixava no papel de

arroz. Faziam-lhe lembrar as patas da íbis azul no chão do aviário.

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Um dia, Flor-das-Neves foi de novo observar o velho escriba. Atravessou o

jardim, encostou-se à parede, perto da porta-janela, e manteve-se escondida e

silenciosa, para não irritar o homem. Mas este estava tão absorvido na sua

tarefa que nem reparara nela. De vez em quando, erguia os olhos fatigados,

sorria para os dragões das lanternas, e recomeçava a escrever. Flor-das-Neves

bem gostava que um dragão malicioso lhe desse o poder de entrar na cabeça

do velho, para compreender o mistério dos símbolos que ele traçava no papel

de arroz. Devia ser algo de tão maravilhoso quanto voar como um papagaio e

observar, do alto, os arrozais, o mar, as florestas, as casas, os animais e as

pessoas.

― Deve ser por isso que o velho mestre não me vê. Quando traça os

signos, esquece a casa, as árvores, as pessoas. Passeia num jardim secreto e

invisível.

Um dia, quando a rapariga estava escondida perto da porta, Matsuo,

perguntou, sem levantar os olhos do papel:

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― Posso ajudar-te em alguma coisa?

Pensando que o mestre falava com algum cliente, Flor-das-Neves virou-se.

Mas o jardim estava deserto.

― Sabes fazer chá, Flor-das-Neves?

― Sei, venerável mestre ― respondeu a rapariga, perguntando-se como

saberia ele o seu nome.

― Então, aquece água, prepara o chá e põe as chávenas. Beberemos

juntos.

Flor-das-Neves ficou tão comovida que até virou um

pouco de água na esteira, enquanto enchia a chaleira.

Limpou a água com a manga e disse:

― O chá está pronto, mestre.

Matsuo Seki veio sentar-se na mesa, diante de Flor-das-

Neves. Levou a chávena de faiança aos lábios, pousou-a e

olhou fixamente a jovem, como se quisesse gravar na

memória cada detalhe do seu rosto.

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Perguntou-lhe novamente:

― Posso ajudar-te em alguma coisa?

Flor-das-Neves sentiu o coração a bater com força quando respondeu:

— Queria ser escriba como vós, venerável mestre.

— É um caminho longo e difícil, sabes ?

— Sim, eu sei.

— Vem comigo. À força de olhares para mim, de certeza que já aprendeste

a ser paciente.

Saíram da aldeia e começaram a percorrer as encostas do vulcão. O

inverno estava no fim e o sol fazia aparecer pequenos riachos na superfície

gelada da neve.

— Diz-me o que vês.

— Vejo neve.

— E o que mais?

— Mais neve.

― Presta bem atenção. Não consegues ver os riachos finos que começam a

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correr? São como serpentes minúsculas feitas de água e de luz.

― Já estou a vê-los.

― Fá-los entrar nos teus olhos. E absorve também a luz que brinca no

cume do vulcão. De que cor é?

― Amarela, creio — respondeu Flor-das-Neves.

― É dourada e um pouco prateada ao mesmo tempo. E tem um tom azul

suave mesclado.

Quando regressavam a casa, a rapariga reparou nas marcas que um grande

pássaro deixara na neve.

— O que é isto, mestre?

— Decora estas marcas também.

Matsuo Seki foi falar com os pais de Flor-das-Neves, para saber se estes

concordavam com as lições da filha.

— Ajudar-me-á a cuidar da casa. Em troca, ensino-lhe tudo o que precisa

para ser escriba pública.

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Nesse mesmo dia, a rapariga foi morar em casa do mestre. Este mandou

fazer roupas de boa qualidade para a aluna, nem demasiado estreitas nem

demasiado largas, para não atrapalharem os gestos.

Ao passar diante de um espelho, Flor-das-Neves teve dificuldade em

reconhecer a jovem que envergava agora um belo quimono branco.

Em primeiro lugar, aprendeu a cuidar dos pincéis, a lavá-los, a alisá-los. O

mestre mostrou-lhe como triturar as cores e como misturá-las com água para

obter uma tinta homogénea. Colocou-lhe, depois, um pincel entre os dedos.

— Pensa no mar, Flor-das-Neves. O teu punho é como um barco que

acompanha o ritmo das ondas.

Um dia chegou o difícil momento de aprender os traços que compõem os

caracteres: o soku, que vai da esquerda para a direita, o roku, que desce

oblíquo para a direita, o saku que vem da direita para a esquerda.

Matsuo Seki era exigente. Fazia-a recomeçar os traços cem vezes até que a

mão aprendesse a traçá-los com precisão e suavidade. Quando a rapariga já

tinha feito cem traços, o mestre dizia a sorrir:

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— Não se pode comparar um aluno que repetiu um

exercício cem vezes com um que o repetiu cento e uma!

Flor-das-Neves sofria, mas sentia que estava no bom

caminho, a julgar pela forma como o mestre a encorajava. Os

dias eram longos e a rapariga nem os via passar. Quando

escurecia, ainda ela estava sentada à mesinha de trabalho.

Levanta-se para acender as lanternas e continuava a trabalhar

até o velho lhe dizer que era tempo de descansar.

Uma noite em que Flor-das-Neves ia começar a acender as

lanternas, o mestre impediu-a. Quando estava bem escuro,

colocou uma folha de papel de arroz diante dela e disse-lhe:

— Primeiro, ouve. Depois, escreves.

Recitou três poemas curtos, daqueles que se chamam haïku. Flor-das-Neves

ouviu-os.

O mestre disse-lhe em seguida:

— Agora vou ditar-tos.

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— Mas como posso escrever corretamente na escuridão?

— Não te preocupes. Escreve.

A voz do mestre elevou-se de novo e a rapariga escreveu. Descobriu que o

segredo consistia em não contrariar o movimento da mão. Escutou o poema

com atenção e relaxou o punho, para que este encontrasse o caminho que vai

das palavras ao desenho. Quando o professor acabou de ditar os três poemas,

disse à aluna:

— Vai-te deitar. Por hoje chega.

Flor-das-Neves dormiu mal nessa noite. A que se assemelharia o que

escrevera? Devia ter deixado manchas e gatafunhos horríveis no papel.

Durante toda a noite, a folha onde escrevera dançou diante dos seus olhos.

Os caracteres mal desenhados pareciam aranhas repugnantes.

No dia seguinte de manhã, levantou-se, receosa, e foi ter com o mestre,

que já estava sentado à mesa de trabalho. Este estendeu-lhe a folha que ela

escrevera no escuro. Os caracteres eram graciosos e a folha não tinha manchas.

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Matsuo sorriu:

— Ouves com o coração e a tua mão traça com graça o que ele escuta. A

tua aprendizagem terminou. Podes considerar-te uma escriba, Flor-das-Neves.

Uma alegria imensa invadiu o coração da jovem.

— Sem vós, venerável mestre…

Matsuo interrompeu-a imediatamente:

— Quero que me mostres a partir de agora o que sabes fazer. Escreve-me

uma história. Será a minha recompensa.

— O que posso eu escrever que já não saibais? Existirá, em todas as ilhas do

sol nascente, algo que não conheceis?

Os olhos do velho dobraram-se num sorriso:

— Será que sei quantos pássaros cruzaram o céu enquanto dormia, e o que

fazem as formigas do jardim bem cedo de manhã? Há tantos segredos que

ignoro e que esperam a mão que os revelará.

Flor-das-Neves sentou-se à mesa. Pensativa, deixou que o olhar se perdesse

na luz azulada do jardim. Subitamente, o seu rosto iluminou-se.

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— Descobri, mestre. Trata-se de uma história muito simples de escrever.

Contudo, é uma história triste, também. Não sei se as palavras conseguirão

transmitir tudo o que sinto.

— As palavras são poderosas quando sabemos conquistá-las — respondeu

Matsuo. — Escreve e não penses em mais nada.

E foi assim que Flor-das-Neves escreveu a primeira história da sua vida.

Uma jovem chamada Ikeda tinha-se apaixonado por um rapaz chamado

Hiroshi. De cada vez que este aparecia junto dela, a rapariga sentia o coração

bater com mais força. Mas o rapaz não lhe prestava atenção. Porque seria?

Porque o pai dele era rico, dono de muitas terras e de uma bela casa, enquanto

Ikeda vivia numa cabana de camponeses? Ou seria que não a achava

suficientemente bonita? Haveria outros motivos ainda? Ninguém conhecia o

segredo de Ikeda, porque ela nunca o tinha contado a ninguém.

Matsuo leu a história que Flor-das-Neves escrevera para ele.

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— Tens razão. É uma história triste. O que achas que vai acontecer aos

protagonistas?

— Não sei, mestre.

— Então, não procuremos saber mais do que podemos. Confiemos o

assunto aos nossos amigos — disse, enquanto olhava para as lanternas com

dragões vermelhos e dourados.

E, num canto da página, desenhou um dragão malicioso, que parecia

observar tudo o que Flor-das-Neves tinha escrito.

A partir desse dia, a rapariga começou a ajudar o mestre.

Escrevia cartas a anunciar nascimentos ou mortes. Cartas de amor ou de

anúncio de casamentos.

Quando a sua avó Kaori morreu, foi ela, a neta, que escreveu a carta.

Desenhou um dragão pequenino numa ponta da página, para que a avó fosse

bem acolhida no país dos antepassados, onde já se encontravam os seus três

maridos. Às vezes, Flor-das-Neves tinha de escrever coisas estranhas. Uma

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mulher pediu uma carta para um dragão que a vinha perturbar de noite. Um

homem um pouco louco ditou-lhe uma carta para uma águia. Queria pregar a

carta no ramo de uma árvore para que o pássaro soubesse que era bem-vindo.

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Durante seis anos, sob o olhar

atento do mestre, redigiu testamentos,

convites, cartas de amor, cartas para os

inspetores do grande príncipe.

— É como se vivesse cem vidas —

dizia a jovem. — Estou sempre a colocar-me no lugar dos outros. A sua dor

torna-se a minha, a sua felicidade alegra-me. Sou um pouco como o Imperador

da China, a quem chamam o senhor das dez mil vidas.

Um dia, o venerável Matsuo Seki morreu. Flor-das-Neves encontrou-o uma

manhã, com a cara deitada na mesa de trabalho, e um ligeiro sorriso nos lábios.

O tinteiro estava entornado. Na mão, segurava um testamento no qual legava à

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aluna a casa, os pincéis, as tintas e todos os seus bens.

Flor-das-Neves sofreu um grande desgosto. Com o tempo, porém, a

recordação do mestre começou a ocupar um lugar tranquilo no seu coração.

Tal como ele, começou a olhar para os dragões das lanternas, de vez em

quando, enquanto trabalhava. O espírito do venerado Matsuo flutuava no

jardim, na casa, e até nas pequenas chávenas de faiança azul, nas quais a aluna

lhe servira o chá pela primeira vez. Às vezes, Flor-das-Neves falava com ele. A

sorrir, dizia-lhe:

— Lá estou eu a falar sozinha como a minha avó.

Um dia, um cliente foi visitá-la. Quando Flor-das-Neves levantou a cabeça,

viu Tadashi diante dela. Ficou com o rosto corado, mas esforçou-se por

disfarçar a sua perturbação.

— Bom dia ― saudou Tadashi.

— Em que posso ajudar-te? — perguntou a rapariga.

— Queria mandar uma carta para alguém que amo em segredo. Trata-se de

uma rapariga por quem me apaixonei, mas ignoro se sou correspondido.

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Chama-se Noriko. Pensei que poderias escrever-lhe uma carta da minha parte, a

declarar-lhe o meu amor.

De repente, Flor-das-Neves sentiu muito frio.

O rapaz deu-se conta da sua extrema palidez.

— O que tens, Flor-das-Neves? Estás branca e toda a tremer.

Será que Tadashi se daria conta da inocente crueldade do seu intento?

Suspeitaria de que ela o amava em segredo? Flor-das-Neves respirou fundo e

disse:

— Escreverei a tua carta. Escrevê-la-ei com o coração, tal como o meu

mestre me ensinou.

Tadashi foi embora e a rapariga começou a redigir a carta. Pôs nela todo o

seu empenho, recordando os conselhos que o mestre lhe dera durante a sua

aprendizagem: “Se um homem te pedir para escreveres uma carta de amor,

escuta o seu propósito, mas não escrevas o que ele te disser. Escreve o que

gostarias de ler se recebesses essa carta.”

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Confiou, então, ao papel, o que esperava há muito ouvir de Tadashi. As

lágrimas corriam-lhe pela face enquanto escrevia à amada do rapaz.

Este regressou no dia seguinte para levar a carta. Flor-das-Neves leu-lha e

ele ficou muito satisfeito. Como pagamento, deu-lhe uma moeda de prata, que

pareceu pesada e fria à jovem.

Depois de ele partir, esta correu a comprar um pássaro

no aviário do pai. O pai escolheu uma íbis branca para a

filha. De regresso a casa, a rapariga colocou a ave junto do

lago de lótus e soltou-lhe as patas. O pássaro ainda ficou

imóvel durante algum tempo, mas depois levantou voo.

A reputação de Flor-das-Neves estendeu-se por toda a

região. As pessoas gostavam da sua forma de exprimir os

sentimentos e vinham de longe pedir-lhe cartas de amor.

Mas a jovem sabia que nunca escreveria outra tão bela

como a que escrevera para Tadashi. Tinha mergulhado o pincel na tinta

vermelha da sua ferida e, a partir de então, o seu coração parara de sangrar e

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era indiferente a risos ou alegrias.

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Certo dia, ouviu uma grande algazarra à porta de casa. Um pelotão de

soldados armados tinha entrado no seu jardim e fizera uma guarda de honra

para o grande príncipe que, acompanhado pelo secretário, se dirigia a Flor-das-

-Neves.

— És Flor-das-Neves, a escriba, não é assim? Disseram-me que sabias

escrever como ninguém. Desejo casar com a filha do príncipe de Quioto.

Chama-se Sae. Vais escrever-lhe uma carta a declarar o meu amor. Quero que

seja a carta mais bela que jamais escreveste.

Qualquer outro escriba ter-se-ia sentido honrado por trabalhar para o

grande príncipe. Mas Flor-das-Neves percebeu logo que não seria capaz de

escrever aquela carta. “O meu coração está de tal forma dorido que é incapaz

de encontrar as palavras certas para descrever a paixão do meu príncipe pela

sua amada”, pensou.

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Prostrou-se, então, aos pés do governante:

— Senhor, tendes mais de cem escribas no vosso palácio. Ocupam-se dos

arquivos, das leis, dos decretos, das alianças com os reinos mais poderosos. Não

haverá um só que consiga escrever essa carta?

— És a única mulher escriba de toda a ilha de Cipango — respondeu o

príncipe com secura. — Só uma mulher sabe encontrar as palavras que

convencerão outra mulher.

Flor-das-Neves sentiu-se, de repente, muito cansada.

— Perdoai, meu príncipe, mas o meu coração está seco e já não tenho mais

palavras. Pus as mais belas flores de amor numa carta que um dia me pediram.

Com o dinheiro que dela obtive, comprei um pássaro, confiei-lhe o meu

desgosto, e fi-lo levar para longe o meu segredo. Já não sofro, mas a minha

alma está cheia de amargura. Compreendeis agora porque não posso escrever

a mais bela carta de todas, e assim satisfazer o vosso desejo?

Quando se deram conta de que alguém recusava fazer o que o seu amo

ordenava, os soldados murmuraram, inquietos. O grande príncipe tirou o sabre

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e, colocando a sua lâmina no pescoço da jovem prostrada a seus pés, ameaçou:

— Só tu podes escrever essa carta. Se não a tiveres pronta dentro de três

dias, cortar-te-ei a cabeça.

Flor-das-Neves ficou prostrada no chão durante muito tempo, a chorar.

Não pensava ter ainda tantas lágrimas dentro de um coração tão seco.

Conseguiu, finalmente, levantar-se, mas nesse dia não pôde trabalhar. Sentou-

se de encontro à parede da casa e pôs-se a falar sozinha, como fazia a sua avó.

Dois dias se passaram assim, sem que a jovem se desse conta. A sua cabeça

estava vazia e não conseguia comer. Tinha apenas bebido duas chávenas de

chá, sorvendo o líquido em pequenos goles. Pensava nos antepassados que em

breve veria, depois de uma existência em que não conhecera a companhia de

um marido nem a alegria de ter filhos. E haveria, porventura, algum escriba

que anunciasse a sua morte?

O dia do príncipe vir buscar a carta chegou. “Vou esperá-lo como outrora a

minha avó esperou a partida para o país dos antepassados,” pensou. Foi então

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que, ao levantar-se, fixou os olhos numa das lanternas do teto. Um dos dragões

pintados por Matsuo sorria-lhe.

Flor-das-Neves sentiu que a sua coragem voltava.

— O que pensaria o meu mestre de mim, se me visse trair o que me

ensinou? Vou escrever a carta.

Sentou-se à mesa, e pegou no papel perfumado de jasmim que o

secretário do príncipe trouxera. Olhou para o dragão malicioso e começou a

escrever:

A Sae, filha do grande príncipe de Quioto, mulher admirável, cuja graça

ultrapassa as cerejeiras em flor e as neves de todas as ilhas do Sol Nascente, eu,

o grande príncipe, declaro o meu amor.

A rapariga continuou a escrever, sem parar, lisonjeando a vaidade do

príncipe. Este, na carta, dizia que era rico e poderoso, dotado de grande

beleza e de excecional inteligência, e afirmava que protegeria a sua amada da

pobreza e da infelicidade. Também declarava possuir grandes exércitos e

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centenas de cavalos. Cumulá-la-ia de sedas, perfumes, joias e

criados. Sentia-se feliz por poder honrá-la com o seu pedido de

casamento.

Quando releu a carta, Flor-das-Neves teve a sensação de

ouvir Matsuo rir e este riso acalmou-a. Não se esqueceu sequer

de desenhar um pequeno dragão malicioso no canto da carta,

como o mestre costumava fazer. Um dragão vermelho e

dourado.

Quando a tinta estava quase seca, passos de soldados

ecoaram no jardim. Ouviu-se o ruído de armas e o príncipe apresentou-se

diante dela. Então, Flor-das-Neves disse:

— Amo das nossas vidas, eis o que a tua bem-amada quererá ouvir.

Depois, leu a carta ao príncipe. Este ouviu-a e declarou, fixando-a com um

olhar duro:

— Muito bem. Oxalá seja isto que a minha futura mulher quer ouvir. Caso

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contrário, pagarás com a vida.

O secretário deu três moedas de ouro à escriba, e a comitiva abalou.

Flor-das-Neves compreendeu, então, que acabara de assinar a sua sentença

de morte.

— De certeza que a princesa lhe vai atirar a carta à cara. Que mulher

gostaria de ouvir semelhantes disparates? Sei agora qual a carta que deveria

ter escrito.

Sou um grande príncipe, é verdade, possuo soldados, criados, palácios,

cavalos. Mas o que valem mil cavalos, mil soldados, mil palácios, quando vimos

bater à porta do coração da mulher que amamos? Olha as minhas mãos: estão

vazias. O meu coração está nu. Quero dar-te tudo o que não tenho: a luz da

manhã junto do vulcão, os pássaros que não estão nas minhas gaiolas. Não

passo de um pobre homem, mas contigo serei mais do que isso. Iremos juntos

até ao fim do mundo, e atravessaremos qualquer mar. Ofereço-te as neves que

descansam nas encostas do vulcão, o orvalho das manhãs, o odor do jasmim, e

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todos os dias que viveremos juntos. A ti, mulher que amo, pergunto, com

receio: queres casar comigo?

“Eis a carta que deveria ter escrito”, pensou a jovem, furiosa consigo

mesma. “Eis o que eu gostaria de ouvir se estivesse no lugar daquela que o

príncipe julga amar!”

Durante a noite, um pequeno dragão insinuou-se nos seus sonhos. Dançava

no céu como se estivesse a passear pela terra num dia de festa. E ria.

De regresso ao palácio, o grande príncipe colocou a carta para a sua amada

num cofre de nácar, que mandou fechar a sete chaves. Depois, ordenou que

preparassem a viagem que o levaria pela manhã a Quioto, onde pediria a

princesa em casamento. Contudo, durante a noite, teve um sonho muito

estranho.

Sonhou que estava de pé na sala de mil colunas do palácio de Quioto.

Diante dele estava a princesa Sae, rodeada de altos dignitários, escutando com

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atenção a carta que um escriba lhe lia. Mas ninguém conseguia ver a reação de

Sae à carta, porque a princesa tinha o rosto coberto por uma máscara de

dragão vermelha e dourada.

Quando o escriba terminou a leitura, o coração do príncipe começou a

bater com força. Chegara o momento fatídico. A jovem ia tirar a máscara e

todos veriam se ela aceitava o pedido de casamento ou se o recusava. Quando

a princesa se descobriu, um grito de surpresa percorreu a sala. Por detrás da

máscara do dragão estava Flor-das-Neves, que ria da partida que pregara ao

príncipe. Este ouviu-a dizer:

— Grande príncipe, não quero nenhuma das tuas bagatelas! Só quero subir

a encosta do vulcão contigo e contigo atravessar o mar. Aceito ser tua mulher,

se não me sobrecarregares com nenhuma das tuas riquezas. Oferece-me as

serpentes de luz que correm pela encosta do vulcão no início da primavera,

faz-me um colar das pegadas que as lebres e os pássaros deixam sobre a neve,

procura-me as pérolas de oiro que a chuva põe nos olhos das rãs. Dá-me tudo o

que nunca poderás ter, ou volta para os teus palácios, para os teus cavalos e

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criados, e nunca mais penses em mim.

Este sonho estranho acordou o grande príncipe. Durante o resto da noite,

ficou no terraço, com o coração muito agitado, a observar o brilho das estrelas

que pairavam sobre o mar. Para onde quer que olhasse, via o rosto de Flor-das-

-Neves, sentada na sua mesa de escriba, traçando sobre o papel signos de

felicidade de uma beleza infinita.

Ao romper da alba, enquanto todos dormiam no palácio, o príncipe saiu

por uma porta secreta, montou o seu cavalo e partiu a galope. O sol já

despontava quando chegou à casa do venerável Matsuo Seki. Flor-das-Neves já

estava sentada à escrivaninha, a escrever a sua carta de despedida. Tinha

vestido um quimono de seda azul, penteado os cabelos e maquilhado o rosto.

Quando ouviu os passos do príncipe junto do lago de flores de lótus, levantou-

-se.

— Estou pronta — disse, numa voz que tremia ligeiramente.

O grande príncipe assomou à porta da casa. A rapariga viu logo que ele

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não trazia sabre nem espada, nem roupas caras ou joias. Tinha o cabelo em

desalinho e parecia um pássaro estremunhado. Mas tinha um ar feliz. No seu

olhar, brilhava a luz da infância.

— É verdade que sou um grande príncipe — começou, numa voz clara. —

Possuo muitos soldados, criados, palácios, cavalos. Mas o que representam mil

cavalos, mil palácios, e mil soldados para o coração da

mulher que amo? Olha as minhas mãos: estão vazias. Vê o

meu coração: está nu…

Enquanto ele falava, Flor-das-Neves tinha-se levantado e

sorria para os dragões das lanternas pintadas outrora pelo

seu venerável mestre.

Quando o príncipe acabou de falar, a jovem estendeu-

-lhe a mão.

Juntos montaram a cavalo e partiram a galope na

direção do sol nascente.

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Pierre-Marie Beaude; Claude Cachin (ill.)

Fleur des Neiges Paris, Gallimard Jeunesse, 2004

(Tradução e adaptação)