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1 MOITARÁ E OIGALÊ: O JOGO DAS IDENTIDADES “POPULARES” BRASILEIRAS E A COMMEDIA DELL’ARTE Autora: Taís Ferreira; (DMAC, IAD, UFPel) [email protected] Referência bibliográfica: FERREIRA, Taís . Moitará e Oigalê: o jogo das identidades populares brasileiras e a commedia dell'arte. In: Anais II Jornada Latino-americana de Estudos Teatrais, 2009, Florianópolis. II Jornada Latino-americana de Estudos Teatrais - experimentalismos e identidades. Florianópolis : UDESC, 2009. O jogo das identidades: commedia? O jogo da (des)construção das identidades contemporâneas é um jogo instável, efêmero, em que regras mais ou menos estabelecidas conduzem procedimentos de diferenciação e identificação móveis, cambiantes, em devir. Parece lugar comum esta afirmação aos interessados nesta temática, que nas conjunturas acadêmicas dos dias atuais incluem quase a totalidade dos estudos abarcados dentro do campo das humanidades e também aqueles ligados às ditas ciências duras e aplicadas, no que concerne à análise de sua constituição pelo prisma cultural. No entanto, muitos artefatos teatrais ainda parecem apegados a algumas daquelas identidades que Bauman (2005) classifica como “as que não tiveram escolha”, aquelas que foram determinadas sem que houvesse possibilidades mais amplas de negociação; que abraçaram, sem necessariamente ter optado por isto, traços facilmente cognoscíveis e pintados com cores fortes e distintivas, atrelados ao conceito de estereótipo identitário já destrinchado por Hall em muitos de seus estudos. O homem moderno, efetivando sua vontade de dominar catalogando, classificando e inventando normas e regras que pudessem organizar esta catalogação, cria e difunde as identidades populares, que deveriam ser preservadas, compreendidas em sua essência, em sua transcendência, em sua imutabilidade geração após geração. Os estudos folclóricos também nascem, de certa forma, desta empreitada moderna de

Moitará e oigalê o jogo das identidades populares brasileiras e a commedia dell'arte

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MOITARÁ E OIGALÊ: O JOGO DAS IDENTIDADES “POPULARES ”

BRASILEIRAS E A COMMEDIA DELL’ARTE

Autora: Taís Ferreira; (DMAC, IAD, UFPel)

[email protected]

Referência bibliográfica:

FERREIRA, Taís . Moitará e Oigalê: o jogo das identidades populares brasileiras e a

commedia dell'arte. In: Anais II Jornada Latino-americana de Estudos Teatrais, 2009,

Florianópolis. II Jornada Latino-americana de Estudos Teatrais - experimentalismos e

identidades. Florianópolis : UDESC, 2009.

O jogo das identidades: commedia?

O jogo da (des)construção das identidades contemporâneas é um jogo instável,

efêmero, em que regras mais ou menos estabelecidas conduzem procedimentos de

diferenciação e identificação móveis, cambiantes, em devir. Parece lugar comum esta

afirmação aos interessados nesta temática, que nas conjunturas acadêmicas dos dias

atuais incluem quase a totalidade dos estudos abarcados dentro do campo das

humanidades e também aqueles ligados às ditas ciências duras e aplicadas, no que

concerne à análise de sua constituição pelo prisma cultural.

No entanto, muitos artefatos teatrais ainda parecem apegados a algumas

daquelas identidades que Bauman (2005) classifica como “as que não tiveram escolha”,

aquelas que foram determinadas sem que houvesse possibilidades mais amplas de

negociação; que abraçaram, sem necessariamente ter optado por isto, traços facilmente

cognoscíveis e pintados com cores fortes e distintivas, atrelados ao conceito de

estereótipo identitário já destrinchado por Hall em muitos de seus estudos.

O homem moderno, efetivando sua vontade de dominar catalogando,

classificando e inventando normas e regras que pudessem organizar esta catalogação,

cria e difunde as identidades populares, que deveriam ser preservadas, compreendidas

em sua essência, em sua transcendência, em sua imutabilidade geração após geração. Os

estudos folclóricos também nascem, de certa forma, desta empreitada moderna de

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normatização. Ao entender os modos de ser e estar no mundo e o “como fazer” do

homem e da mulher do povo, cada qual bem localizado em um espaço geopolítico fixo,

o folclorista poderia ser seu “arauto ilustrado”, o porta-voz destas populações naïves,

ingênuas e o guardião de seus valores; o difusor e valorizador dos bens ditos populares,

portanto, da baixa cultura, junto aos bens culturais ligados à alta cultura, esta legitimada

pelo homem branco ocidental católico heterossexual classe-média. Assim, são

apresentados ao mundo os “tipos populares”, as identidades populares que deveriam

manter-se puras, inalteradas, sem mesclas, evitando macular sua linhagem “limpa” com

qualquer tipo de influência, mestiçagem ou hibridização com elementos exógenos à

“verdadeira cultura popular”.

Entretanto, o campo da arte tem sido um profícuo terreno de apropriação

produtiva dos tipos chamados populares, inclusive no que concerne à subversão destes.

O estereótipo é um recurso comum às linguagens artísticas, tendendo geralmente ao

efeito cômico, e foi amplamente explorado e desenvolvido na história do teatro.

Neste breve estudo de caso, traçarei algumas considerações acerca das questões

das identidades em dois espetáculos de grupos teatrais que vêm trabalhando, há bastante

tempo, em suas montagens, com personagens que evocam este complexo jogo das

“identidades populares brasileiras”.

Para tanto, é necessário que se apresente ao leitor o “lugar de onde se fala”, ou

melhor, os discursos que balizam, permeiam e atravessam meus escritos acerca do teatro

e das identidades. Cumpre notar que conceitos como os de alta cultura e de baixa cultura

não serão referência nesta escrita, ainda que em muito momentos o termo “popular”

esteja presente e seja o centro das atenções das reflexões aqui apresentadas. Explico: o

termo “popular” foi utilizado e posto em movimento durante as explicações e conversas

que tive com dois integrantes dos grupos estudados1 e que servirão como material de

análise e ponto de partida de muitas das discussões aqui colocadas.

Assim, posso inferir que o conceito de popular, neste caso, está atrelado à

questão do amplo acesso ao maior número de espectadores, tanto quantitativa quanto

geográfica e culturalmente, tendo como conseqüência a construção de estéticas

específicas, estas constituindo meios de acessibilidade destas platéias ao espetáculo. É

muito presente nos discursos dos dois integrantes o desejo dos grupos de democratizar o

acesso ao teatro, alcançando pessoas oriundas de diferentes classes sociais, faixas

etárias, localizações geográficas, culturas, credos e interesses. Portanto, o trabalho com

as linguagens da máscara (Moitará) e do teatro de rua (Oigalê) e, conseqüentemente, o

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encontro de ambos os grupos com a commedia dell’arte, são opções ligadas à postura

política e ética dos artistas, que resultam na busca e no desenvolvimento de

determinadas estéticas.

Moitará e Oigalê: escambos indígenas e convites pampianos

O Grupo Moitará, com sede no Rio de Janeiro (RJ), desenvolve há 20 anos

trabalhos de investigação cênica a partir das máscaras teatrais. Com isso, constrói

através dos anos uma proximidade com os tipos da commedia dell’arte no treinamento

de seus atores e usa-os abundantemente na criação de seus espetáculos, ainda que

busquem aproximar-se daquilo que supostamente seriam as identidades populares

brasileiras.

Já a Cooperativa de Artistas Teatrais Oigalê, sediada em Porto Alegre (RS), tem

como foco principal de seu trabalho os espetáculos de teatro de rua, buscando assim

recursos e temáticas que se filiem à possível constituição de uma linguagem própria do

teatro de rua. Deste modo, também como uma decorrência presumível, a Oigalê

aproximou-se de recursos de encenação oriundos da commedia dell’arte e desta também

como temática, no caso de seu mais recente espetáculo de rua, em que a commedia

dell’arte, mais do que um cabedal técnico, atua como citação histórica na elaboração de

figurinos, cenários, marcações, etc.

Os dois grupos apresentam, portanto, intenções estéticas e éticas atreladas ao

conceito de teatro popular em suas investigações cênicas e nos resultados destas,

levados ao público através de seus espetáculos e de oficinas teatrais. Com a Oigalê isso

se dá marcadamente pela opção do grupo pelo teatro de rua e com o Moitará através de

uma acessibilidade creditada ao trabalho do ator com as máscaras e a empatia gerada

por estas para com os mais diversos tipos de públicos. Destarte, se a opção pelo teatro

popular se faz clara nas dimensões ética e estética dos dois grupos, a inserção dos tipos

populares brasileiros aparece como uma conseqüência desta escolha, assim como a

intrínseca ligação com a commedia dell’arte.

No entanto, a questão que tem me perseguido é: como se dão as escolhas destes

grupos por determinadas identidades ou por determinados traços identitários que

remontam a identidades específicas, classificadas estas como “populares e brasileiras”?

E mais: que discursos são os apropriados por estes grupos na construção de personagens

que denominam como “populares e brasileiros”? E como conseqüência de uma

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observação empírica inicial, surge também a curiosidade de refletir sobre como a

filiação, a herança para com a commedia dell’arte pode (ou não) ser definidora destas

escolhas na trajetória dos grupos.

Podemos perceber, já na nomeação dos dois grupos, uma intenção de

identificação e diferenciação ligadas a identidades culturais brasileiras. “Oigalê” é um

vocativo dos pampas (espaço geográfica e culturalmente pertencente à fronteira entre

três países: o Brasil, a Argentina e o Uruguai), usado no vocabulário cotidiano daquele

que viria a ser o personagem central de vários trabalhos da trupe: o gaúcho. Seu

significado corrente é “escute aqui, ouça-me” e no caso do grupo teatral tem um

significado especial atrelado ao convite que se faz ao espectador de rua, ao chamado

para que este se integre e faça parte do acontecimento teatral que toma lugar nos

espaços públicos como praças, parques, avenidas, vias urbanas, etc. Oigalê é, portanto, a

forma gaudéria com que o grupo ao mesmo tempo em que convida os possíveis

espectadores a participarem de seu “show de teatro” delimita um traço de identificação

intrinsecamente ligado à cultura do Rio Grande do Sul, estado ao qual estão atrelados o

grupo e seus integrantes.

Já “moitará” é um termo que encontra seu significado no campo da antropologia

associado aos rituais de trocas e escambos materiais e simbólicos de tribos indígenas

brasileiras. Assim, o grupo teatral homônimo já deixa claro ao intitular-se que pretende

desenvolver trabalhos que envolvam trocas não verticalizadas de capital simbólico entre

aqueles que fazem (atores) e aqueles que recebem e interagem com as obras

(espectadores). Destarte, pode-se inferir que a escolha de um termo de uma língua

indígena também não é neutra e denota, por si só, a vontade de filiação a algo que por

muito tempo esteve ligado ao que seria “genuinamente” brasileiro, ou seja, aos

primeiros habitantes das terras americanas, os “negros gentios” que foram todos

abarcados pela denominação de índios, a despeito de suas diferentes origens e culturas.

Portanto, ambos os grupos partem, desde o momento de auto-denominar-se, de

escolhas que, muito longe de serem neutras, demonstram uma vontade, um desejo de

filiação identitária com representações de identidades brasileiras abarcadas dentro do

que foi conceituado como popular: o gaúcho e o índio. Na construção das identidades

dos grupos já estão presentes questões relativas às identidades populares brasileiras.

Ainda que o Moitará não explore a figura do índio, a Oigalê faz do gaúcho

protagonista de praticamente todos seus espetáculos de rua. Contanto, os significados

das duas palavras, moitará e oigalê, seguem indicando os rumos éticos e estéticos na

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construção das investigações e espetáculos de ambos os grupos e na relação com suas

platéias.

Quiprocó: o ator, a máscara, a commedia e os tipos populares brasileiros

Ainda que ambos os grupos, Moitará e Oigalê, tenham diversos pontos de

convergência em suas trajetórias artísticas e objetivos éticos relacionados ao fazer

teatral, podemos considerar que as formas de abordagem das identidades populares

brasileiras acontecem de modo diferenciado nos dois grupos, principalmente no que

concerne às estratégias de construção deste pretendido teatro popular e acessível (ainda

que não “facilitado”) apregoado por ambos os grupos.

O grupo Moitará, nas palavras de seu fundador e diretor Venício Fonseca, centra

toda a construção de sua linguagem no trabalho do ator, na descoberta deste em relação

aos traços identitários dos tipos-fixos e das máscaras pesquisadas há 20 anos pelo

grupo. Ao ser questionado acerca dos recursos utilizados na tentativa de seduzir e

aproximar o público do espetáculo, responde:

O recurso básico de que nos servimos é o trabalho de ator com a sua generosidade e decisão para manter o estado da “personagem”, a harmonia e dinâmica do espetáculo. Claro que utilizamos recursos complementares como instrumentos musicais, acessórios, etc., mas tudo isso integrado ao trabalho do ator. Tocar um instrumento é importante, mas não é suficiente. Da mesma forma, diferentemente de uma pintura ou escultura, a máscara não pode viver sozinha, ela exige do ator um compromisso de corpo inteiro. Se a máscara estiver viva em cena, com suas particularidades, ela pode catalisar e sustentar a atenção do espectador, tornando interessante para o público não somente o que o ator faz, mas também como ele faz. Evidentemente, tudo isso é resultado de um treinamento sistemático procurando entender os fundamentos dessas relações, para que no ato da apresentação passe a ser emoção (FONSECA, 2009).

Posso inferir, desta forma, que o ator e a construção de seu percurso pessoal

estão no centro das propostas de trabalho do Moitará. Isto se apresenta de modo claro

no espetáculo Quiprocó que, concebido para espaços alternativos, rua e palco, conta

com uma linha dramatúrgica muito simples, em que três personagens-tipo (três

máscaras) apresentam-se diretamente aos espectadores, envolvendo-se em alguns

imbróglios que logo são resolvidos, objetivando que a presença dos personagens e a

apresentação das características de suas personalidades (transposição de caracteres da

commedia dell’arte para identidades populares brasileiras: a cozinheira e os dois

empregados) estão no centro da encenação. A ação dramática e a trama em si não

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ocupam espaços privilegiados no espetáculo, bem como os recursos cenográficos e

musicais sublinham e auxiliam o trabalho dos atores, nunca se sobressaindo a eles.

Sobre o trabalho do ator na trajetória de investigação cênica no Moitará e o

papel que as identidades populares brasileiras ocupam nesta pesquisa, fala-nos o diretor:

Fazemos um recorte em nossa pesquisa com o propósito de abordar personagens-tipos brasileiros representados pela linguagem da máscara teatral, mas que sintetize em suas características uma visão particular e universal, mesmo que haja, por alguma razão, o sotaque acentuado de uma região. Com essa intenção chegamos aos “tipos” que se apresentam no espetáculo “Quiprocó” e a outros que vimos trabalhando dentro do Moitará, aproximadamente, há 20 anos. (...) Essa é uma pesquisa que não se esgota (sobre personagens-tipo brasileiros). O ator pode encontrar a base de vida de uma máscara (seu ritmo e comportamento...) em pouco tempo, entre um a oito meses, e ter o restante da sua vida para desenvolver o caráter desse personagem-tipo. Na medida em que o ator trabalha, experimentando outras possibilidades, vai descobrindo as características sutis da máscara. No entanto, é importante esclarecer que, para nós, a máscara teatral, de um personagem-tipo, não é somente um objeto, mas um estado que define traços de um determinado comportamento cultural (FONSECA, 2009).

Miséria, servidor de dois estancieiros: a encenação, o teatro de rua, a commedia e o

gaudério

Já no trabalho desenvolvido pela Oigalê há 10 anos, o que se pode observar é

que o objetivo central do uso das identidades populares brasileiras entra em jogo, entra

no jogo teatral entre grupo e público, como mais um recurso ligado à encenação, assim

como a relação de filiação e de apropriação que constroem com a commedia dell’arte.

No último espetáculo de teatro de rua do grupo (uma adaptação do clássico

Arlequim, servidor de dois amos, de Carlo Goldoni, para o universo pampiano) há a

transposição do zanni italiano para um empregado de estância gaúcho, uma proposta de

subversão da figura do gaúcho que é forte, corajoso e de índole inquestionável. Miséria,

o personagem central, neste caso, alia as características negativas do personagem da

commedia (trapalhão, trapaceiro, mentiroso) a traços também não-edificantes da

identidade do gaudério (grosseiro, viril, não intelectualizado).

No comentário que segue, realizado pelo fundador, ator e diretor da Oigalê

Hamilton Leite, pode-se perceber nitidamente a intenção da construção de uma

linguagem própria ao teatro de rua, que reflete, além do uso explícito de certos recursos

de encenação, na compreensão das identidades populares brasileiras também como um

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recurso de empatia, de relação com o público e de promoção desta linguagem de teatro

de rua.

A gente nunca pensa em como prender o público, mas a gente sabe como prender o público. Eu penso nisso. Na realidade, tu podes fazer um espetáculo como? Com música ao vivo, isso já prende o público. Tu vais fazer um espetáculo dinâmico, que conte alguma história ou que tenha recursos que sejam diferentes: ou perna de pau, ou acrobacia, ou máscara... Vários elementos que suscitem interesse, que busquem alguma coisa. E não é porque a pessoa é popular que ela não tem interesse nisso (LEITE, 2008).

Seguindo suas reflexões sobre as escolhas do grupo e a implicação destas na

constituição de uma linguagem de teatro de rua popular, Leite fala-nos sobre a

apropriação das identidades populares brasileiras (no caso da Oigalê a identidade do

gaúcho) na construção do espetáculo Miséria, servidor de dois estancieiros e na relação

com as diversas platéias:

A gente já apresentou em 16 estados. (... ) O regional é universal. O Miséria, ele pode ser o nordestino, mas ele é o gaúcho. A trova é o repente. Então há uma identificação muito forte em várias coisas. Não existe uma negação disso (por pessoas de outros estados). Eu acredito numa coisa muito legal, isso do intercâmbio pelo Brasil (LEITE, 2008).

A preocupação com a narrativa, com linha de ação dramática, e com outros

recursos da encenação supracitados em fala do integrante da Oigalê, colocando-os como

centro da proposta do grupo, difere da relação do Moitará com as identidades populares

na construção de sua estética, que estaria muito mais voltada ao trabalho do ator e

menos aos recursos de encenação.

Não existe a preocupação de se o público vai entender, existe sim a preocupação de contar histórias populares. Existe já um entendimento do público neste sentido. Pode até ser o folhetim, a literatura de cordel no nordeste; para nós são as lendas e contos (gauchescos), que a gente pega muito. Por mais que as pessoas não saibam o que está acontecendo, o que vai acontecer, a gente está trabalhando com a figura do gaúcho, então isso tem uma empatia aqui, mas tem uma empatia em outros lugares, porque tu podes ter na figura do gaúcho, a figura do cara do interior paulista, do cara do interior de Minas, do nordestino, do interior do norte. Então isso causa uma empatia muito forte (LEITE, 2008).

A estética da Oigalê estaria voltada a buscar efetividade na relação como as

platéias nos espetáculos de rua, através de diversos recursos de encenação, entre eles as

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identidades populares brasileiras como personagens. As intenções estéticas do Moitará

partem do trabalho do ator e da relação deste, através das máscaras, com os

espectadores. Aqui, as identidades populares brasileiras surgem como conseqüência da

relação intrínseca das máscaras com a commedia dell’arte e os arquétipos sociais.

As identidades jogadas no teatro do Moitará e da Oigalê

Se as identidades podem ser compreendidas, afiliando-nos às vertentes de

pensamento pós (pós-modernos, pós-estruturalistas, pós-críticos, entre outros) como

processos de diferenciação, processos de identificação, ou seja, sempre incompletas, em

eterno vir-a-ser, constituindo-se no próprio ato de dizer-se, de nomear-se e de serem

nomeadas, dentro e através da linguagem, como podemos justificar estas identidades

fixas, idealizadas, estes estereótipos identitários que estão associados à constituição das

ditas “identidades populares”?

Podemos compreender o trabalho dos grupos estudados como desligados de uma

episteme contemporânea, de uma condição pós-moderna ou da modernidade

tardia/líquida que ora vivenciamos? Como justificar que em um mundo de mobilidade,

de instabilidade e de perpétua constituição de subjetivações e identidades o teatro que se

pretende popular, ou seja, acessível ao povo (a todos), traga à cena identidades

imutáveis, centradas; constituídas, perpetuadas, catalogadas e, possivelmente,

inventadas pelo racionalismo do homem moderno, em seu desejo de engavetar e

classificar, de entender e dominar, de encontrar recorrências que expliquem através de

uma lógica cartesiana a constituições das coisas e das pessoas?

O bravo gaudério, o matuto sertanejo, o cantador nordestino, o caipira ingênuo, a

cozinheira maternal, o mateus empregado/pobre espertalhão são compreendidos como

“identidades populares brasileiras” por quê? Para tanto, explicações de caráter histórico

demonstram-nos que a constituição do campo do teatro brasileiro durante o século XIX

e boa parte do século XX esteve intrinsecamente atrelada ao teatro popular, comercial e

crescentemente profissional, atendendo, portanto, às demandas do público consumidor.

O teatro de revista cristaliza tipos e convenções (a mulata, o malandro, o caipira,

a madame, o imigrante entre outros) que até os dias de hoje estão presentes nos gêneros

ligeiros brasileiros (programas televisivos, comédias pastelão, shows de humor). A

comédia de costumes tão em voga na primeira metade do século XX perpetua-se como

o gênero mais bem quisto pelos espectadores brasileiros até a atualidade, com o humor

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baseado nas críticas à sociedade e as suas mazelas, geralmente ligadas a aspectos da

vida familiar e doméstica. Os personagens “da casa” aparecem com grande força

cômica: empregadas fofoqueiras, criados trambiqueiros, patrões velhacos, mocinhas

bobas, comerciantes espertalhões.

Assim, chegamos mais uma vez à commedia dell’arte, já que os personagens

supracitados também constituem a base de sua existência. Esta floresce profundamente

ligada ao crescente humanismo do renascimento italiano, à ascensão da burguesia e de

seus valores, bem como à contestação dos valores da aristocracia. Os “sem-voz”, os

desvalidos, os párias sociais passam a ocupar o centro da cena e são seus corpos que

falam por eles. Cristalizam-se os tipos sociais da época, cria-se uma “não-língua”

(grammelot), síntese de todas as línguas, que deveria comunicar na babel de línguas

européias de então, torna-se o corpo instrumento de trabalho e assim subverte-se a

própria lógica social: a astúcia dos zanni mortos de fome toma o centro do tablado e os

patrões são ridicularizados. Os recursos de encenação, de atuação e de roteiro da

commedia pretendiam a “comunicação universal”, aquilo que está tão presente nas falas

dos artistas dos grupos estudados: “atingir a todos, não fazer teatro para quem faz teatro,

levar o teatro aos mais diferentes públicos”.

Justifica-se, por conseguinte, as escolhas destes grupos ao trabalharem,

contemporaneamente, com as identidades fixas construídas, inventadas e naturalizadas

pela modernidade. No entanto, cabe aos espaços como este, de reflexão a partir de/

junto com práticas teatrais, levantar perguntas. Mais do que respondê-las cabe ao

investigador formulá-las, dar-lhes vida e lançá-las no infindável jogo de constituir e ser

constituído em que o campo teatral contemporâneo também está imerso.

Destarte, pergunto: será que a escolha por identidades fixas, estas ditas populares

(portanto fixadas em algum momento, pois reconhecíveis), não (de)limitaria a relação

dos mais diferentes espectadores com os espetáculos teatrais? Ou o (re)conhecimento

destes traços das identidades populares brasileiras (a afiliação de determinados

espectadores a alguns destes traços) seria a única possibilidade de empatia para com os

personagens, a trama e a encenação? O popular depende de uma presumível empatia da

platéia com personagens e recursos de linguagem? Por que identidades móveis,

canbiantes e em processo não interessariam ao público compreendido como popular?

Será que a delimitação de ofertar às híbridas platéias do teatro de rua (e daquele teatro

que tem um amplo modo de endereçamento, aos mais diversos espectadores)

identidades fixas não as estaria privando de refletir, questionar e vivenciar experiências

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ligadas a suas vidas e constituições identitárias contemporâneas (instáveis, em

construção)?

E com estas perguntas, deixo em aberto o debate...

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1 Os dois entrevistados foram Hamilton Leite, ator e diretor da Oigalê e Venício Fonseca, ator e diretor do Moitará, ambos fundadores dos grupos. Hamilton concedeu-me entrevista presencial (2008), gravada e transcrita por mim, e também respondeu a questionário escrito (2009). Venício respondeu a entrevistas e questionários realizados por escrito (2009).