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O DEBATE IDENTITÁRIO NA LITERATURA PÓS-COLONIAL: John Maxwell Coetzee e Mia Couto Viegas Fernandes da Costa 1 RESUMO: O presente artigo discute o debate identitário na literatura pós-colonial a partir da análise de dois romances produzidos a partir do continente africano: “À espera dos bárbaros”, de John Maxwell Coetzee, e “Venenos de Deus, remédios do Diabo”, de Mia Couto. A abordagem e análise dos romances ocorre na perspectiva dos estudos pós-coloniais. O primeiro romance analisado, “À espera dos bárbaros”, dialoga teoricamente com Albert Memmi, que entende as identidades como espaços estanques. Já “Venenos de Deus, remédios do Diabo”, do moçambicano Mia Couto, dialoga com as metáforas desenvolvidas por José Endoença Martins, que entende as identidades enquanto espaços relacionais. Palavras-chave: Identidade, Literatura pós-colonial, John Maxwell Coetzee, Mia Couto Identidade: o lugar da mobilidade. Segundo Jane Tutikian 2 , estudar literatura é pensar a questão da identidade; e a premissa verificia-se ainda com mais força quando nos detemos na literatura pós-colonial. Recentemente os estudos culturais vêm discutindo com maior vigor e complexidade a problemática das identidades, e não sem motivos. A sociedade pós-industrial (e seu correspondente estético, a pós-modernidade), inseriu no cenário novos sujeitos, como aponta Stuart Hall em seu artigo “Que negro é esse na cultura negra?3 . A descolonização africana e asiática na segunda metade do século XX, a ascensão dos Estados Unidos como pólo 1 Viegas Fernandes da Costa. Historiador e professor do Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC). Contato: [email protected] 2 In. Velhas identidades novas, 2006. 3 In. Hall, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais, 2003, p. 335-349.

O DEBATE IDENTITÁRIO NA LITERATURA PÓS-COLONIAL: John Maxwell Coetzee e Mia Couto

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O DEBATE IDENTITÁRIO NA LITERATURA PÓS-COLONIAL: John Maxwell Coetzee e Mia Couto

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O DEBATE IDENTITÁRIO NA LITERATURA PÓS-COLONIAL:

John Maxwell Coetzee e Mia Couto

Viegas Fernandes da Costa1

RESUMO:

O presente artigo discute o debate identitário na literatura pós-colonial a partir da

análise de dois romances produzidos a partir do continente africano: “À espera dos bárbaros”,

de John Maxwell Coetzee, e “Venenos de Deus, remédios do Diabo”, de Mia Couto. A

abordagem e análise dos romances ocorre na perspectiva dos estudos pós-coloniais. O

primeiro romance analisado, “À espera dos bárbaros”, dialoga teoricamente com Albert

Memmi, que entende as identidades como espaços estanques. Já “Venenos de Deus, remédios

do Diabo”, do moçambicano Mia Couto, dialoga com as metáforas desenvolvidas por José

Endoença Martins, que entende as identidades enquanto espaços relacionais.

Palavras-chave: Identidade, Literatura pós-colonial, John Maxwell Coetzee, Mia Couto

Identidade: o lugar da mobilidade.

Segundo Jane Tutikian2, estudar literatura é pensar a questão da identidade; e a

premissa verificia-se ainda com mais força quando nos detemos na literatura pós-colonial.

Recentemente os estudos culturais vêm discutindo com maior vigor e complexidade a

problemática das identidades, e não sem motivos. A sociedade pós-industrial (e seu

correspondente estético, a pós-modernidade), inseriu no cenário novos sujeitos, como aponta

Stuart Hall em seu artigo “Que negro é esse na cultura negra?”3. A descolonização africana e

asiática na segunda metade do século XX, a ascensão dos Estados Unidos como pólo

1 Viegas Fernandes da Costa. Historiador e professor do Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC). Contato:

[email protected] 2 In. Velhas identidades novas, 2006.

3 In. Hall, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais, 2003, p. 335-349.

2

econômico e cultural, os avanços tecnológicos e dos meios de comunicação, bem como a

necessidade de se ampliar o mercado de consumo, são alguns elementos que contribuem para

explicar o crescente interesse pelas “diferenças”. No entanto, o próprio Stuart Hall alerta para

o fato desta abertura cultural ser ambígua:

“Se o pós-moderno representa uma abertura ambígua

para a diferença e para as margens e faz com que um

certo tipo de descentramento da narrativa ocidental se

torne provável, ele é acompanhado por uma reação que

vem do âmago das políticas culturais: a resistência

agressiva à diferença; a tentativa de restaurar o cânone

da civilização ocidental; o ataque direto e indireto ao

multiculturalismo; o retorno às grandes narrativas da

história, da língua e da literatura (...)”.4

Se pensar as relações interculturais nesta pós-modernidade movediça é tarefa

complexa, porque conflituosas (como nunca o deixaram de ser), delimitar identidades e

compreender suas construções tampouco é tarefa das mais fáceis.

Em 1957 o escritor tunisiano Albert Memmi publicou um pequeno livro chamado

“Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador”. Nesta obra Memmi reflete a

respeito do processo de colonização européia na África, e da construção de duas identidades

antagônicas – a do colonizador e a do colonizado – enquanto sua conseqüência. O primeiro

aspecto que chama a atenção na reflexão de Albert Memmi é a impossibilidade do

colonizador assumir o lugar do colonizado. Segundo ele, o colonizador será sempre

colonizador, pensará sempre como tal, ainda que incomodado com a realidade da exploração

colonial, ainda que colaborador dos colonizados na luta pelo fim da colonização (no livro

chamados de “colonizador de boa vontade” e “colonizador de esquerda”). Ocorre que os

valores inerentes ao colonizador, sua organização social, seus princípios, não são nativos; o

colonizador será sempre um alienígena. No entanto, sua condição é complexa, pois deve se

impor junto aos povos que explora e junto aos seus pares da metrópole, que também não o

reconhecem como igual. Das mesma forma, o colonizado será sempre o colonizado, ainda que

bem-sucedido financeiramente, ainda que detentor de algumas prerrogativas, será sempre o

nativo, ou o filho do nativo, um sujeito inferior aos olhos do colonizador. Alguns tentarão se

assimilar à cultura do “homem ocidental”, sem nunca pertencerem totalmente a esta; outros se

revoltarão, buscarão a libertação do regime colonial, serão os nacionalistas. Para Albert

4 Ibidem, p. 340.

3

Memmi, não há diálogo possível que liberte o colonizado senão a ruptura; ou seja, as duas

identidades, colonizador e colonizado, são antagônicas. No entanto, justifica-se a reação

nacionalista do colonizado, resultado que é da exploração colonial: “esperar do colonizado,

que tanto sofreu por não existir por si mesmo, que seja aberto ao mundo, humanista e

internacionalista, parece de uma leviandade cômica”5 – afirma o autor.

A mesma impossibilidade de diálogo intercultural encontraremos em Malcom X,

conforme nos mostra Cornel West em seu livro “Questão de raça”: “na perspectiva

nacionalista de Malcom X, a única resposta legítima à ideologia e prática hegemônicas dos

brancos é o amor-próprio e a autodeterminação dos negros, isentos da tensão gerada pela

‘dupla consciência’”6. Por “dupla consciência” Malcom X entendia a condição dos negros

que procuravam ser aceitos tanto no mundo do negro quanto no mundo do branco sem, no

entanto, ser efetivamente aprovado em nenhum deles: “entretanto, persistem em se enxergar

segundo a ótica da sociedade branca dominante”7. Também aqui, como em Albert Memmi,

as identidades são compreendidas enquanto espaços absolutos e se constroem a partir da

necessidade de anulação do outro. Nesta geografia das identidades de “raiz única” as

fronteiras são de grande importância, diferentemente daquilo que irá propor o escritor

Édouard Glissant quando desenvolve a idéia de identidade rizomática e defende a crioulização

como possibilidade de novas identidades:

“(...) é disso que se trata: de uma concepção sublime e

mortal que os povos da Europa e as culturas ocidentais

veicularam no mundo; ou seja, toda identidade é uma

identidade de raiz única e exclui o outro. Essa visão da

identidade se opõe à noção hoje ‘real’, nas culturas

compósitas, da identidade como fator e como resultado

de uma crioulização, ou seja, da identidade como

rizoma, da identidade não mais como raiz única mas

como raiz indo ao encontro de outras raízes”.8

O problema que se coloca nesta nova concepção de identidade, compreendida por

Édouard Glissant, é o de “como ser a si mesmo sem fechar-se ao outro, e como abrir-se ao

outro sem perder-se a si mesmo”9. Questão que só se responde se entendermos a identidade

enquanto algo relacional e não idealizada. O próprio Albert Memmi, no livro que citamos, já

5 Memmi, Albert. Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador, 1967, p. 117.

6 West, Cornel. Questão de raça, 1994, p. 116.

7 Ibidem, p. 115.

8 Glissant, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade, 1996, p. 27.

9 Ibidem, p. 28.

4

chamava a atenção para a mistificação que o branco fazia do negro, e que o negro fazia do

branco, na África colonizada. De como esta mistificação distorcia a realidade do outro,

idealizando-a e fantasiando-a. É neste mesmo sentido que caminham as reflexões de Jane

Tutikian, quando afirma que

“(...) o impacto global reflete sobre a tradição,

relegando-a a um outro plano diante da quantidade de

informação, do dinamismo, da alteridade, obrigando a

uma espécie de identidade relacional, onde o ‘mesmo’

define a própria historicidade e o ‘outro’ representa o

código de diferenciação.”10

Stuart Hall, em seu artigo “Quem precisa de identidade?”11

compreenderá a

identidade como o “ponto de encontro” das práticas de construção de sujeitos sociais e dos

processos de subjetivação. Para Stuart Hall toda identidade é sempre uma representação sobre

si mesmo, é a posição que assumimos na sociedade e para nós mesmos a partir da relação que

estabelecemos com o “outro”12

. Assim como Glissant, também Stuart Hall insere-se nesta

pós-modernidade que compreende a identidade enquanto algo fragmentado e construída no

discurso. Em seu livro “Identidade e diferença”, Hall desenvolve uma certa arqueologia do

conceito de identidade, ou melhor, dos dispositivos de subjetivação, a partir do diálogo entre a

psicanálise, os aparelhos ideológicos de Althusser e as reflexões foucaultianas, buscando

compreender principalmente como se dá o processo de identificação do sujeito com uma

origem e o compartilhamento em um grupo e/ou ideologia na busca de uma nova

representação de si mesmo. Diferentemente de Glissant, que se assume enquanto propositivo

de uma nova posição identitária (crioulização), Hall deseja a compreensão daquilo que chama

de “interpelação” – citando P. Hirst - , ponto de contato entre o sujeito e o discurso que deverá

assumir para si. Ou seja, o que há e o que move o sujeito que “ainda não está” para “onde

estará”. É aqui que consegue, ele mesmo, “crioulizar” concepções a respeito da constituição

de identidades tão díspares como a psicanálise de Lacan e a genealogia de Foucault. Segundo

Stuart Hall, “nunca foi suficiente – em Marx, em Althusser, em Foucault – ter simplesmente

uma teoria de como os indivíduos são convocados a ocupar seus lugares por meio de

10

Tutikian, Jane. Op. cit., p. 13. 11

In. Silva, Tomaz Tadeu da. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais, 2004, p. 103-133. 12

Conforme exposto na página 112 e seguintes.

5

estruturas discursivas. Foi sempre necessário ter também uma teorização de como os sujeitos

são constituídos”13

. A pergunta, no entanto, permanece.

Este deslocamento das identidades que passa do maniqueísmo de “raiz pura”

(colonizador/colonizado) para um pluralismo de “crioulização” (a identidade compósita,

constituída a partir da combinação de elementos heterogêneos, conforme explicita Édouard

Glissant em seu livro “Introdução a uma poética da diversidade”) é também observada na

literatura de afro-descendentes e euro-descendentes por José Endoença Martins. Este autor

retira da peça “A Tempestade”, de Shakespeare, e da religiosidade afro-descendente, as

metáforas que representam as três posturas identitárias possíveis: a) assimilacionista

(metáfora: Ariel / conceito: Negrice); b) nacionalista (metáfora: Calibã / conceito: Negritude);

c) interacionista (metáfora: Exu / conceito: Negritice)14

.

Na peça “A tempestade” (de 1611 ?), William Shakespeare conta a história de do

Duque de Milão, Próspero, exilado em uma ilha perdida depois de ver seu ducado usurpado

pelo próprio irmão. A despeito de toda riqueza dramática da peça, interessa-nos aqui saber

que Próspero contava com os serviços de dois servos: Ariel e Caliban. Enquanto Caliban era

um escravo revoltado com a sua condição, já que considerava-se, por direito, proprietário da

ilha; Ariel era o servo alado que se submetia às ordens de Próspero em troca de uma

prometida liberdade. Próspero, na visão de Caliban, é um usurpador, não só da sua ilha, mas

também da sua liberdade e cultura. A revolta de Caliban é verbalizada quando este responde a

seu senhor: “Agora eu sei falar, e o meu proveito é poder praguejar. Que a peste o pegue, por

me ensinar sua língua!”15

Segundo Roberto Fernández Retamar, em seu artigo intitulado

“Caliban”, Shakespeare teve acesso a uma tradução do ensaio “Dos canibais”, escrito por

Montaigne, e “A tempestade” teria sido escrita sob sua influência. Para Retamar, “o caraíba

(...) dará o canibal, o antropófago, o homem bestial, situado irremediavelmente à margem da

civilização e que é preciso combater a sangue e fogo”16

. Assim, Caliban seria um anagrama

de Canibal e a metáfora do colonizado que não se submete ao “processo civilizador” imposto

pelo europeu. Civilização esta que torna o colonizado um exilado em seu próprio território e

um expropriado da sua herança cultural, a fim de que se possa mantê-lo útil para as

necessidades do empreendimento colonial.

13

Ibidem, p. 126. 14

Martins, José Endoença. Negritice: interculturalidades e identidades na literatura afro-descendente. In. Costa,

Hilton & Silva, Paulo Vinícius Baptista da. Notas de história e cultura afro-brasileiras, 2007. 15

Shakespeare, William. A tempestade, 1999, p. 36. 16

In. Caliban e outros ensaios, 1988, p. 18.

6

“É necessário apresentar o homem concreto como um

animal, roubar-lhe a terra, escravizá-lo para viver de

seu trabalho e, conforme o caso, exterminá-lo: este ato

último, é claro, só quando se conta com alguém para

realizar, em seu lugar, as duras tarefas. Numa

passagem reveladora, Próspero adverte a sua filha

Miranda que não poderiam prescindir de Caliban: ‘ele

acende o lume, racha a lenha, e seus serviços nos são

úteis”17

Também Ariel constitui-se enquanto símbolo. Para José Enrique Rodó, Ariel , o

gênio do ar, representa a parte nobre e alada do espírito.

“Ariel é o império da razão e do sentimento sobre os

baixos estímulos da irracionalidade; é o entusiasmo

generoso, o móvel elevado e desinteressado na ação, a

espiritualidade da cultura; a vivacidade e a graça da

inteligência – o término ideal a que ascende a seleção

humana, corrigindo no homem superior os vestígios

tenazes de Caliban, símbolo de sensualidade e torpeza;

com o cinzel perseverante da vida”18

Ao observarmos a análise de Rodó, podemos afirmá-la arielista, na medida em que

reconhece na cultura do colonizador o espírito elevado, em detrimeto de Caliban. Ariel não é

desinteressado na ação, como dá a entender Rodó. Sua submissão gentil se dá na perspectiva

de, assim agindo, alcançar a liberdade. Por outro lado, Retamar, ao definir Ariel como um

“servidor medroso”19

, posiciona-se claramente ao lado de Caliban, pretendendo-o inclusive –

e em oposição a Rodó – como símbolo para o povo latinoamericano.

É a partir desse debate promovido a partir da referida peça de Shakespeare, que José

Endoença Martins cria as três metáforas identitárias e define seu instrumental teórico para

analisar a literatura pós-colonial e a de afro-descendentes e euro-descendentes . Na negrice

(Ariel) há o abandono da cultura autóctone para a incorporação da cultura do outro; já a

negritude (Caliban) se caracteriza pela negação do outro e pelo retorno a sua cultura original;

a negritice deseja derrubar as fronteiras, promover a solidariedade e integrar mundos

heterogêneos20

. É nesta última metáfora identitária, representada por Exu, que Endoença

avança nas proposições de Rodó, Retamar e, por que não, Memmi, aproximando-se das

17

Ibidem, p. 21. 18

Rodó, José Enrique. Ariel, 1991, p. 14. 19

Retamar, Roberto Fernández. Op. cit. p. 65. 20

Martins, José Endoença. Negritice: interculturalidades e identidades na literatura afro-descendente, Op. cit.,

p. 259.

7

posturas que entendem a identidade como um espaço de fronteiras móveis. Até mesmo

Retamar reconhece que “ao propor Caliban como nosso símbolo, percebo que ele tampouco é

completamente nosso; é também uma elaboração estranha, ainda que, dessa vez, inspirada

em nossas realidades concretas. Mas como evitar totalmente o estranhamento?”21

Analisando as obras de autores como Chinua Achebe, Toni Morison, Maryse Conde,

Benjamin Zephaniah, entre outros, inclusive sua própria peça de teatro “O olho da cor”, José

Endoença Martins se depara com personagens que representam posturas arielistas,

calibanistas e exuístas, mostrando assim as possibilidades de trânsito e diálogo entre

diferentes posições e demonstrando a mobilidade cultural que re-significa posições. E é

justamente esta mobilidade cultural que mais nos chama a atenção. Segundo os personagens

analisados por Endoença, não é possível que o sujeito permaneça estanque na posição que

optou, há sempre uma circularidade, um trânsito entre ser assimilacionista, nacionalista e

interacionista. É o que afirma Édouard Glissant em seu livro aqui já citado. Ao falar do

processo de crioulização, exemplifica-o com as línguas caribenhas nascidas da pluralidade

lingüística dos negros expatriados da África em contato (e conflito) com as línguas faladas

pelos euro-descendentes: “a palavra ‘crioulização’, obviamente, vem do termo crioulo(a) e da

realidade das línguas crioulas. E o que é uma língua crioula? É uma língua compósita,

nascida do contato entre elementos lingüísticos absolutamente heterogêneos uns aos

outros”22

. E Glissant afirma além. Entende que nossa sociedade contemporânea vive o que

denomina de “poética da relação”, onde culturas compósitas, exuísticas – como diz José

Endoença Martins - , são cada vez mais comuns. É este momento de encontros/desencontros,

que promovem um novo híbrido, que Endoença busca na literatura escrita por afro-

descendentes e por euro-descendentes que trataram da identidade negra, explicitando o

diálogo que estes textos promovem entre si. É o encontro da superação da dicotomia que

Albert Memmi apresentou nas suas reflexões sobre a colonização e descolonização africana e

que Malcom X defendeu para os negros dos Estados Unidos. Para José Endoença Martins a

“consciência dupla”, que assumia um caráter negativo para os nacionalistas negros dos

Estados Unidos, como já dissemos, é a solução que deve ser encontrada na construção da

“negritice”. Endoença entende que tanto a assimilação arielista quanto o nacionalismo calibã

visam uma liberdade futura para os personagens que as assumem, mas que a solução do

problema se dá por meio da catalisação exuística.

21

Retamar, Roberto Fernández. Op. cit. p. 32. 22

Glissant, Édouard. Op. cit. p. 24.

8

Em posição análoga a de Endoença, está a de Daniel-Henri Pageaux23

. Segundo Jane

Tutikian, para Pageaux as relações entre diferentes culturas podem se dar a partir de três

categorias:

“(...) a philia, quando a cultura nacional de origem e a

estrangeira colocam-se num mesmo plano, de

colaboração mútua; a fobia, quando a cultura nacional

de origem considera-se superior à estrangeira e tende à

refratá-la; a mania, quando a cultura nacional de

origem considera-se inferior à estrangeira e busca

absorvê-la”.24

Relacionando as metáforas de Endoença com as categorias de Pageaux, é possível

estabelecer a seguinte associação: Ariel = mania; Caliban = fobia; Exu = philia.

Assim, podemos afirmar que a literatura pós-colonial reflete esta complexidade que

os conceitos de identidade manifestam. Que não é mais possível defendermos a identidade

enquanto espaço estanque, mas como espaço que se ocupa na mobilidade. E que a literatura,

com suas metáforas arielistas, calibanistas e exuísticas, contribui para melhor

compreendermos os diálogos interculturais que se manifestam na pós-modernidade.

Retratos do Colonizado e do Colonizador em À Espera dos Bárbaros de Coetzee.

Queremos agora olhar para o romance “À Espera dos Bárbaros”, do sul-africano

John Maxwell Coetzee, a partir das possibilidades de debate que este oferece naquilo que diz

respeito à dicotomia colonizador/colonizado, e cotejá-lo com o já citado texto de Albert

Memmi, “Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador”. Justifico o

cotejamento destes textos distanciados no tempo e no gênero, na proximidade que

estabelecem com a visão de colonizador e de colonizado enquanto espaços estanques, ainda

que complexos.

O romance de Coetzee é de 1980, já o ensaio de Memmi é de 1957, entretanto

ambos estão inseridos na lógica pós-colonialista, o que não significa que partem das mesmas

premissas para estabelecerem suas verdades. Kwame Anthony Appiah, ao analisar a produção

23

Citado por Jane Tutikian, op. cit. 24

Ibidem, p. 13.

9

literária pós-colonial25

, estabelece duas periodizações para os romances africanos escritos na

perspectiva pós-colonialista. Na primeira fase, ocorrida durante e logo após os processos de

independência nacional, estes romances apresentavam uma dupla dependência (ao meio

universitário africano – ocidentalizado – e aos editores euro-americanos), e se caracterizavam

pelo discurso anticolonial e nacionalista. A segunda fase começa a se delinear a partir de

1960, com o fracasso de muitos projetos nacionalistas, convertidos em governos autoritários e

corruptos. Segundo Appiah, “longe de ser uma celebração da nação, portanto, os romances

da segunda fase – a fase pós-colonial – são romances de deslegitimação, rejeitando o projeto

nacionalista da burguesia nacional pós-colonial”26

. Ciente do caráter ensaístico do texto de

Memmi, quero ainda assim inseri-lo na primeira fase, dado seu anticolonialismo e sua defesa

do colonizado em sua luta pela descolonização. Já “À Espera dos Bárbaros” pode ser inserido

na segunda fase. Neste, Coetzee critica o imperialismo ocidental e seu caráter civilizatório,

que se confunde com o bárbaro, apesar daquele se perceber enquanto antagônico deste, sem

chegar a defender o nacionalismo ou a auto-afirmação dos povos nativos. Ainda citando

Appiah, o discurso pós-colonialista “contesta as narrativas legitimadoras anteriores. E as

contesta em nome das vítimas sofredoras de mais de trinta repúblicas. Mas contesta-as em

nome do universal ético, em nome do humanismo (...)”27

. “À Espera dos Bárbaros” apresenta

este caráter contestatório, universalista e humanista. No entanto, a experiência colonial que

tenta apresentar e discutir não está datada e geograficamente localizada. Não trata da

espoliação específica de um povo por outro, mas da experiência da espoliação no contexto do

imperialismo e da “polaridade civilizado/bárbaro”28

.

Quanto à obra de Albert Memmi, esta reflete a respeito do processo de colonização

européia na África e a construção das identidades antagônicas colonizador / colonizado, como

já apontamos anteriormente. Não há possibilidade de diálogo interidentitário na concepção de

Memmi, o que o aproxima do conceito de “dupla consciência” de Malcom X.

Em “À Espera dos Bárbaros”, Coetzee não coloca a questão no plano da identidade

“racial”, ou seja, não há negros ou brancos, há civilizados e bárbaros. Assim, a discussão

permanece no plano cultural e sugerindo que, na visão do colonialista, segundo leitura de

Denise Almeida Silva a respeito do personagem Magistrado, “que os bárbaros são caça e

25

Em seu livro Na Casa de Meu Pai, 1997, p. 209-216. 26

Ibidem, p. 213. 27

Ibidem, p. 216. 28

Conforme apresentado e discutido no artigo A construção eu/outro em Terras de Sombras e À espera dos

bárbaro de J. M. Coetzee, de Denise Almeida Silva.

10

pestilência que cabe ao Império destruir”29

. É na mistificação do outro que se constrói a

própria identidade no romance de Coetzee. O civilizado, aquele que come com talheres,

sedentário, que fala a língua do colonizador e nesta sabe ler e escrever, que comunga das leis

e da “justiça” do colonizador, estabelece suas fronteiras na oposição a um outro que quer

invadi-lo, destruí-lo, usurpá-lo, mas quem ninguém vê, que ninguém nunca viu. Porque o

mote do romance é justamente a espera de uma vila que acredita na proximidade de uma

invasão dos povos nativos. Coetzee cria uma atmosfera beckettiana para retratar esta condição

de esperar uma invasão, que nunca ocorre, mas que se reforça no medo; um medo que inventa

e mistifica uma identidade bárbara, mas que barbariza também os agentes da “civilização” e

que nesta justificam seus atos. Esta mistificação e a relativização da verdade da civilização

aparecem na boca e nas reflexões do protagonista do romance, um magistrado responsável

pela administração colonial em uma vila nos confins do império:

“Há uma época do ano, sabe, em que os nômades nos

visitam para comerciar. Pois bem: visite o mercado

então e verifique quem costuma ser roubado no peso

das mercadorias, quem costuma ser enganado e

maltratado, quem sofre ameaças. Verifique quem é

obrigado a deixar suas mulheres no campo, por temor a

que sejam insultadas pelos soldados. Veja quem são os

bêbados jogados nas sarjetas, e veja quem os trata a

pontapés. Contra esse desprezo pelos bárbaros, esse

desprezo que é capaz o mais humilde estalajadeiro, o

mais pobre camponês, é que me venho debatendo, como

juiz, há vinte anos. Como erradicar os conflitos,

particularmente se se trata de conflitos fundados em

nada mais substancial que a diferença de

comportamento à mesa ou a forma particular de suas

pálpebras?”30

É este Magistrado, personagem central no romance de Coetzee, que quero observar

com mais atenção, dada a sua complexidade e a possibilidade de relacioná-lo com uma das

categorias desenvolvidas por Albert Memmi: o “colonizador de boa vontade”. Como

Magistrado, representa a administração da lei e da justiça colonial e constitui-se como um

bastião da civilização. A vila que administra está estabelecida em algum ponto remoto do

império, em região fronteiriça. Uma fronteira que vai muito além da territorialização

geográfica, já que permeia as relações dos habitantes da vila com os nômades (bárbaros) e

29

Silva, Denise Almeida. Op. cit.

30

Coetzee, J. M. À Espera dos Bárbaros, 1980, p. 67.

11

com os pescadores (selvagens). Sob a suposta ameaça de uma invasão de bárbaros que

desejam destruir o império, uma força militar é enviada para a região e altera o cotidiano da

vila. A perseguição, prisão e tortura de pescadores, que habitam uma região intermediária, já

que estão fora dos muros da vila e dentro do campo de visão e controle dos “civilizados”, o

que não lhes confere identidade alguma pois não são bárbaros e tampouco coloniais (estariam

naquilo que Glissant chama de “entre-lugar”), incitam no Magistrado um sentimento de culpa

e revolta em relação ao império e sua condição pessoal de colonial. Porém Albert Memmi

alerta: “o romantismo humanitarista é considerado na colônia uma doença grave, o pior dos

perigos: trata-se, nada mais nada menos, que da passagem para o campo do inimigo”31

. E é

seu humanitarismo, sua crença na civilização, que o movem a determinar “que os prisioneiros

sejam alimentados, que seja chamado o médico e que este faça o que puder, que o quartel

volte a ser um quartel, que se tomem providências para que os prisioneiros retornem a sua

vida anterior o mais depressa possível, o mais longe possível daqui”32

, depois que se retira da

vila a primeira força militar. Esta revolta e culpa materializam-se, primeiramente, na relação

de amor e posse que o personagem vai estabelecer com uma das prisioneiras, que teve os pés

quebrados e os olhos semicegados. Andando com muita dificuldade, com a ajuda de bengalas,

e enxergando apenas com as bordas dos olhos, a Bárbara desperta no magistrado, além da

culpa e do desejo de posse, a pena. Sentimentos que o fazem levá-la para seu quarto e sua

cama, que o impelem a lavar-lhe o corpo. E neste ato do Magistrado que banha o corpo nú da

Bárbara, Coetzee constrói com muita força uma alegoria que pode, talvez, retratar o ocaso do

colonialismo e a ascensão do nacionalismo nas colônias:

“Depois dos pés, começo a lhe lavar as pernas. Para

tanto, ela tem de ficar de pé na bacia, apoiando-se em

meu ombro. De alto a baixo, corro as mãos por suas

pernas, do tornozelo até os joelhos, atrás e na frente,

apertando-as, acariciando-as, modelando-as. São

curtas e robustas, a barriga da perna é forte.”33

Apesar dos pés atrofiados e das pernas curtas, apesar de ter que se apoiar sobre os ombros do

colonizador, tem as pernas robustas e fortes, o que lhe permite caminhar e se sustentar, ainda

que com o apoio de bengalas e enxergando pouco. Quanto ao colonizador, representado no

Magistrado, escreve Coetzee:

31

Memmi, Albert. Op. cit. p. 35. 32

Coetzee, J. M. Op. cit. p. 35.

33

Ibidem, p. 42.

12

“Quanto a mim, ante seus olhos cegos, no íntimo calor

do quarto, posso me despir sem embaraço, desnudando

minhas pernas finas, meu sexo flácido, minha barriga,

meu débil peito de velho, a pele avermelhada de minha

garganta.”34

A questão é que não há cegueira na moça. Ela enxerga e vê toda a fragilidade do Magistrado,

sua falta de virilidade, sua intensa sonolência. O próprio Magistrado reconhece sua condição

ambígua, de “colonizador de boa vontade”, como diz Memmi, mas ainda e sempre

colonizador. É o caso de quando ele a devolve ao seu povo e diz “[sou] um lobo do Império

vestindo pele de cordeiro”35

; ou ainda: “eu era a mentira que o Império conta para si mesmo

quando os tempos são favoráveis, e Joll [oficial da força militar que ocupa a vila] a verdade

que se impõe quando sopram ventos contrários”36

. Porque “o mecanismo é quase fatal: a

situação colonial fabrica colonialistas, como fabrica colonizados”37

. O Magistrado passa a

viver atormentado por uma “dupla consciência” que, ao mesmo tempo em que o faz defender

a civilização em que acredita, move-o ao encontro do outro, procurando conhecê-lo através

dos seus vestígios arqueológicos ou tomando o corpo de uma das suas fêmeas. Movimento

que o destitui de identidades, porque será rejeitado pelos seus pares (será torturado, preso,

destituído do cargo e, por fim, ignorado e abandonado) e preterido pela Bárbara, que opta por

retornar aos seus, no deserto. Assim, em “À Espera dos Bárbaros” não há possibilidade para a

“crioulização” de Édouard Glissant., tampouco à salvação fechando-se em uma identidade,

em uma “raiz única”. “Como tantas outras vezes atualmente, deixo-os, sentindo-me tolo,

como um homem que há muito se extraviou, mas que ainda insiste em seguir pela estrada que

não o levará a parte alguma”38

– melancolicamente conclui o protagonista na última frase do

romance. Qual estrada? A do diálogo interétnico? Do projeto civilizador eurocêntrico? Da

instituição de uma nação sobre as pernas curtas e robustas, porém de pés quebrados e

atrofiados, do colonizado?

A opção de Coetzee em “À Espera dos Bárbaros” é a de denúncia das

arbitrariedades e da hipocrisia do imperialismo e colonialismo ocidental, claro está. No

34

Ibidem, p. 43. 35

Ibidem, p. 94. 36

Ibidem, p. 169. 37

Memmi, Albert. Op. cit. p. 59. 38

Coetzee, J. M. Op. cit. p. 191.

13

entanto, o cotejamento desta ficção com o ensaio de Memmi, inseridos no debate do pós-

colonialismo, e respeitados os contextos em que estes discursos foram produzidos, permite-

nos perceber como foram compreendidos os diálogos identitários nestas duas obras, e de

como estas refletiram o processo de colonização, suas conseqüências e as chagas, ainda vivas

e purulentas, que legaram.

As metáforas identitárias em “Venenos de Deus, remédios do Diabo”.

O escritor moçambicano Mia Couto39

galgou a condição de autor reconhecido pela

inventividade e bricolagem vocabular dos seus textos. Das páginas dos seus livros brotam

palavras e expressões que mesclam o português de Portugal com o português moçambicano e

com as línguas nativas do seu país, bem como neologismos próprios da literatura oral. Este

aspecto, recorrente em sua obra, somado aos usos do folclore, dos mitos e das lendas

moçambicanos, permite situar a proposta literária de Mia Couto nas proximidades das

propostas empreendidas por Guimarães Rosa e Mário de Andrade (o Mário de Macunaíma).

Sob o aspecto ideológico, sua obra quer pensar e problematizar a construção da identidade

nacional no Moçambique – país recentemente saído da guerra civil e, tal qual a maior parte

dos antigos territórios coloniais em continente africano, culturalmente multifacetado – ,

inserindo-se naquilo que Kwame Anthony Appiah chama de segunda fase da literatura pós-

colonial: textos que deslegitimizam o projeto nacionalista da burguesia nacional pós-colonial.

Segundo Jane Tutikian,

“misturando vida e arte, recriando admiravelmente a

linguagem, onde se casam os falares com as línguas, e a

estrutura, que Mia Couto desenvolve o seu projeto de

moçambicanidade, dentro da perspectiva de resgate e

reafirmação da cultura tradicional, mas também com o

reconhecimento da presença do outro no processo

identitário”.40

Em seu romance “Venenos de Deus, remédios do Diabo” publicado em 2008, Mia

Couto dá continuidade a este seu projeto literário, onde a relativização das verdades (e das

mentiras) engendra a trama deste livro que conta a história de Bartolomeu Sozinho (ex-

39

Pseudônimo de António Emílio Leite Couto. 40

Op. cit., p. 28-29.

14

mecânico naval da Companhia de Navegação Colonial), sua esposa Dona Munda, o

administrador Suacelência, o médico Sidónio Rosa e a mulher que este ama e busca

reencontrar em Vila Cacimba, cenário da história, Deolinda.

O primeiro aspecto a chamar nossa atenção em “Venenos de Deus, remédios do

Diabo” é seu aspecto fantástico. Ao chegar em Vila Cacimba, o médico Sidónio Rosa se vê na

obrigação de tratar os habitantes do lugarejo de uma estranha epidemia (supostamente de

meningite) que os transforma, segundo o narrador, em “tresandarilhos”. A despeito da

epidemia, Sidónio dedica especial atenção a Bartolomeu Sozinho, que vive enclausurado em

seu quarto e padece de misteriosa e mortal debilidade, visitando-o diariamente. Bartolomeu é

casado com Munda, mulher que vive a hostilizar e que acredita infiél. Esta, por sua vez,

mantém uma relação incerta com seu marido: ao mesmo tempo em que o hostiliza e pede por

sua morte, é capaz de dormir à porta de seu quarto para estar atenta se for solicitada. A

atenção especial do médico ao casal justifica-se em seu interesse por Deolinda, mulher que

conhecera em Portugal e pela qual se apaixonara, supostamente filha de Bartolomeu e Munda,

e ausente de Vila Cacimba para realizar cursos de aperfeiçoamento. Seu destino e data de

retorno são ignorados, porém comunica-se com Sidónio através de cartas que lhe chegam às

mãos por intermédio de Munda, que por sua vez as recebe de “familiares”, pois “aqui em

África, todos são familiares”41

– argumenta a personagem em arroubo pan-africano. Nestas

cartas, Deolinda pede a Sidónio que vele por seus pais, e que lhes dê alguns presentes a fim de

lhes atenuar as dores e propiciar um pouco de conforto, como um televisor para a mãe, por

exemplo. O leitor tem aqui a impressão do caráter de escambo apresentado pelo conteúdo dos

pedidos das cartas; escambo tão próprio dos tempos coloniais. Na relação do nativo com o

europeu, estabelece-se um interesse mercantil onde ambos procuram obter vantagens da

condição que ocupam: o europeu, que detém o capital, crê que pode comprar a confiança e o

respeito do casal de nativos através dos presentes e da atenção que dispensa; os nativos se

aproveitam de uma suposta situação de vitimização para alcançarem aos artefatos da

modernidade que desejam possuir.

Este caráter mercantil das relações interétnicas é elemento recorrente na obra de Mia

Couto e aparece, também e com muita força, em “O Outro Pé da Sereia”42

, quando o

personagem Benjamin Southman – um historiador estadunidense e afrodescendente que visita

Vila Longe para se reencontrar com suas raízes identitárias e investir verbas na terra dos seus

antepassados – é ludibriado pelos moradores do vilarejo, que lhe falsificam uma tradição e um

41

Couto, Mia. Venenos de Deus, remédios do Diabo”, 2008, p. 47. 42

Couto, Mia. O outro pé da sereia. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

15

modo de viver, há muito desaparecidos (se é que alguma vez tais tradição e modo de vida

houvessem efetivamente existido), a fim de que o afortunado historiador possa encontrar o

que deseja e crê verdadeiro. É o desejo de se apoderarem do dinheiro do estrangeiro que leva

os moradores de Vila Longe, em “O Outro Pé da Sereia”, a inventarem um mundo que o

historiador supunha existir; é o desejo de usarem dos recursos e da atenção de Sidónio que

leva Bartolomeu e Munda, em “Venenos de Deus, remédios do Diabo”, a falsearem as cartas

de Deolinda. Sob esta lógica, justifica-se a irritação externada pelo médico quando reflete:

“Os que a mim se dirigem não me querem como pessoa. Uns chegam-se para vender, outros

para roubar. Ninguém me aborda sem interesse, meu Deus, como me custa ter raça!” (p. 75).

Cabe, entretanto, ressaltar a veracidade da recíproca, porque também ele, Sidónio, tem seus

interesses; também ele não é quem aparenta ser. E o que parece ser mentira, é tão somente

outra verdade; daí um certo caráter fantástico inerente a este romance: nunca sabemos qual o

relato que nos dá a verdade dos fatos, nunca sabemos quem falseia e quem revela, afinal, nada

há além do discurso, da literatura, responsável até mesmo pela construção da própria

identidade, da raça. Neste sentido o trecho abaixo, excerto de uma conversa entre Bartolomeu

e Sidónio, tem muito a nos dizer:

“ – A propósito da língua, sabe uma coisa, Doutor

Sidonho? Eu já estou a desmulatar.

E exibe a língua, olhos cerrados, boca escancarada. (...)

a mucosa está coberta de fungos, formando uma placa

esbranquiçada.

– Quais fungos? – reage Bartolomeu. Eu estou é a ficar

branco de língua, deve ser porque só falo português

(...)”43

Se nas páginas finais Deolinda afirma ao médico que “esta terra mente para

viver”44

, podemos entender que ao falar de sua Vila Cacimba (extensão do Moçambique?),

Deolinda diz também de toda terra, dos territórios que, através do discurso, permanentemente

inventamos, sejam estes territórios geográficos ou identitários, e é nesta invenção que

existimos e habitamos. Talvez por isso, também, não há maniqueísmo em “Venenos de Deus,

remédios do Diabo”. O próprio título já indica este relativismo ao atribuir a cura ao Diabo e o

mal a Deus. Há, isto sim, posições, e por isso a relativização, seja do bem e do mal, seja do

nacional e do estrangeiro ou do branco e do negro, porque ser branco, segundo Bartolomeu no

43

Couto, Mia. Venenos de Deus, remédios do Diabo, 2008, p. 110-111 44

Ibidem, p. 181.

16

excerto que apresentamos acima, é uma questão de “língua”. Daí a complexidade psicológica

e identitária dos personagens deste romance.

Bartolomeu Sozinho, apesar de negro e nativo, ocupa uma posição arielista, segundo

conceito de José Endoença Martins45

; ou seja, reconhece no branco, no europeu, qualidades e

superioridades que inveja e deseja para si. Tanto que, cansado da vida, pede ao médico que

lhe mate sob o argumento de que “ele tinha que valorizar a única riqueza que lhe restava: a

sua morte. – Tenho que ser morto por um branco!”46

. Bartolomeu orgulha-se de um passado

que julga glorioso, a serviço da Companhia de Navegação Colonial, como único tripulante

negro do navio Infante D. Henrique, apesar de atravessar os mares no fundo de um porão

escuro. Sob este aspecto, o “ariel” Bartolomeu destoa do Ariel de “A tempestade” analisado

por Rodó. Neste seu romance, Mia Couto não desenha um personagem arielista alado, mas

submerso em um porão escuro de navio. Um “ariel” monstruoso, distante da liberdade e a

cada dia mais deformado pelas enfermidades que acometem seu corpo e espírito. E com o fim

do regime colonial, a constatação: “o navio encalhou, virou sucata e estava, um pouco como

ele mesmo, à espera de ser abatido”47

. A multietnicidade pode ser observada também se

atentarmos para a miscigenação dos personagens. Bartolomeu é negro, mas afrontou sua

família ao se unir a Munda, uma mulata de ascendência alemã. Ambos geraram Deolinda que,

ao visitar Portugal, apaixonou-se por um português. Miscigenações que são vistas com muita

resistência. Os alemães, por exemplo, são alvo de preconceito, e os restos mortais dos seus

antepassados repousam em um cemitério evitado pelos nativos; assim como Bartolomeu teve

de enfrentar a resistência da família, que considerava sua união com uma mulata como um

pioramento genético.

Ao protagonismo de Bartolomeu, opõe-se o personagem Suacelência, administrador

de Vila Cacimba e seu principal rival. Suacelência é, também, personagem de complexidades.

Pelos juízos de Bartolomeu, somos levados a crer no caráter corrompido, vil e chauvinista do

administrador; mas no final do livro somos surpreendidos ao sabermos Suacelência demitida

do seu posto justamente por se opôr à derrubada ilegal de madeira na região. E se a rivalidade

entre ambos existe e é recíproca, esta se dá principalmente pela posição social que cada um

ocupa: um como administrador nacional, outro como saudosista da administração colonial.

Segundo o administrador, “esses colonos precisavam de um preto decorativo! Não era por

méritos próprios que o mecânico negro seguia no navio. Ele era tripulante apenas como

45

Negritice: interculturalidades e identidades na literatura afro-descendente, op. cit. 46

Couto, Mia. Venenos de Deus, remédios do Diabo, 2008, p. 54 47

Ibidem, p. 14.

17

instrumento de uma mentira: de que não havia racismo no império lusitano”48

. Tão logo

destituído de seu cargo oficial, Suacelência aponta seu caráter humano, sensível até, ao

revelar o uso de seus últimos dinheiros para ofertar a Bartolomeu um enterro de pompa e

condizente com suas vontades finais. No romance de Mia Couto, Suacelência representa

Caliban, porém sem a desfiguração do personagem de Shakespeare. Aproximando-se da

opção de Retamar, Mia Couto redime seu Caliban, humaniza-o, em detrimento de seu Ariel,

que será penalizado pela história. Assim, ainda que reforcemos aqui o caráter multicultural da

obra de Mia Couto e sua defesa de uma moçambicanidade que reconhece a presença do outro

no processo identitário, enquanto intelectual moçambicano ciente do papel da literatura para a

construção de identidades nacionais, em “Venenos de Deus, remédios do Diabo” o autor faz

uma opção clara na medida em que o personagem Bartolomeu Sozinho é apresentado como

um personagem rancoroso, mesquinho e penalizado pelas vicissitudes da vida e pela realidade

pós-colonial.

Ainda que estabelecendo diálogos identitários complexos, é possível apontarmos na

personagem Deolinda o papel de “Exu”, segundo José Endoença Martins, ou a categoria de

“philia”, conforme Daniel-Henri Pageaux. Cabe a Deolinda o papel de catalisadora de

culturas. Primeiramente porque é ela que aproxima o médico português Sidónio Rosa de Vila

Cacimba. Interessante é apontar – e ainda não o fizemos – que Sidónio Rosa representa o

“colonizador de boa vontade”, definido por Albert Memmi, dado ser Sidónio o personagem

que mais verbaliza críticas ao processo colonial no Moçambiqque e que mais anseia por se

tornar um moçambicano. Também Deolinda, através da entrega do seu corpo tanto a

Bartolomeu, quanto a Suacelência, oferece a chave para a relação de ambos. Ainda que

conflituosa, há entre estes dois personagens um certo reconhecimento que, ao final da obra,

manifesta-se nos cuidados que Suacelência terá para com o sepultamento de Bartolomeu.

Todas as relações entre os personagens de “Venenos de Deus, remédios do Diabo”, acontecem

a partir de Deolinda. Relações que atingem seu término com a morte de Bartolomeu e o

retorno do médico Sidónio a Portugal. Vinga, por fim, a nação. Mas uma nação multifacetada,

de identidade compósita, como defende Glissant.

Interessante apontar ainda um último aspecto deste romance de Mia Couto que me

chama a atenção: a problematização do conflito entre a tradição e a modernidade no contexto

pós-colonial, fato não menos recorrente em sua literatura. A própria presença de um

personagem médico torna-se emblemática, haja visto este se opor ao curandeiro, personagem

48

Ibidem, p. 26.

18

a quem recorre Deolinda para se tratar do mal que a acometia. Interessante observar que o

curandeiro está situado no Zimbabwe, ou seja, fora das fronteiras do Moçambique. Também

Bartolomeu externa o desconforto entre o antigo e o novo, a tradição e a modernidade, quando

diz que a televisão o poupa dos sonhos, sonhando por si. A percepção que temos é a da

existência de um certo desconforto, como aquela expressão no rosto de um indígena brasileiro

quando lhe vestiram um chapéu na cabeça. A poeira das estradas contradiz com a tecnologia

capaz de produzir a camioneta que liga Vila Cacimba ao resto do país; assim como uma

epidemia de meningite (cuja proliferação se dá a partir de lugares fechados) não condiz com

os horizontes da savana africana.

Resta-nos assim a percepção de que em “Venenos de Deus, remédios do Diabo”,

Mia Couto engaja-se com este Moçambique contemporâneo, não se furtando à

problematização dos paradoxos do seu desenvolvimento e da sua ocidentalização. A AIDS, o

incesto, a crise familiar e o aborto – temas que o autor trabalha neste seu romance – são as

facetas deste desenvolvimento feito aos atropelos e sem qualquer planejamento, deste flerte

entre a África e o Hemisfério Norte, entre a tradição e a modernidade, destas múltiplas

identidades, invenções literárias, ainda prementes de diálogo.

Considerações finais.

Iniciamos este artigo citando Jane Tutikian, quando afirma que estudar literatura é

pensar a questão da identidade. De fato, a literatura historicamente constitui-se como

elemento fundamental tanto na construção de identidades, nacionais ou não, quanto na

consolidação ou na desconstrução de identidades já existentes. A assertiva incorpora ainda

maior legitimidade quando discutimos a literatura pós-colonial.

Neste breve artigo analisamos dois romances inseridos naquilo que Kwame Anthony

Appiah chamou de segunda fase da literatura pós-colonial africana. Seus autores são euro-

descendentes, entretanto as duas obras apresentam perspectivas identitárias opostas. O

primeiro romance analisado, “À espera dos bárbaros”, do sulafricano John Maxwell Coetzee,

dialoga teoricamente com Albert Memmi, que entende as identidades como espaços

estanques. Já “Venenos de Deus, remédios do Diabo”, do moçambicano Mia Couto, dialoga

com as metáforas desenvolvidas por José Endoença Martins, que entende as identidades

enquanto espaços relacionais.

19

O intuito deste artigo foi aplicar as diferentes concepções teóricas que discutem o

conceito de identidade na análise de romances pós-coloniais. Procuramos assim contribuir

com a leitura crítica dessas obras, bem como aprofundar o debate a respeito das relações que a

literatura pós-colonial estabelece com a formação identitária das nações a partir das quais são

produzidas.

Referências Bibliográficas:

1. Appiah, Kwame Anthony. Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura.

Tradução por Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

2. Coetzee, J. M. À espera dos bárbaros. Tradução por Luiz Araújo. São Paulo: Best

Seller,1980.

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2008.

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5. Glissant, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Juiz de Fora, MG: UFJF,

2005.

6. Hall, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG,

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8. Martins, José Endoença. Literatura afro-brasileira: Exus promovendo encontros entre

Áfricas e Brasis. 8 p. (mimeo).

9. Martins, José Endoença. Narrativas, metáforas, identidades afro-descendentes e

pedagogia literária. 14 p. (mimeo).

10. Martins, José Endoença. Negritice: interculturalidades e identidades na literatura afro-

descendente. In. Costa, Hilton & Silva, Paulo Vinícius Baptista da. Notas de história e

cultura afro-brasileiras. Ponta Grossa, PR: UEPG/ UFPR, 2007, p. 253-269.

11. Memmi, Albert. Retrato do colonizado precedido pelo do colonizador. Tradução por

Roland Corbisier e Mariza Pinto Coelho. São Paulo: Paz e Terra, 1967.

12. Retamar, Roberto Fernández. Caliban e outros ensaios. Tradução por Maria Elena

Matte Hiriart e Emir Sader. São Paulo: Busca Vida, 1988.

20

13. Rodó, José Enrique. Ariel. Tradução por Denise Bottmann. Campinas, SP: Unicamp,

1991.

14. Shakespeare, William. A Tempestade. Tradução por Barbara Heliodora. Rio de Janeiro:

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bárbaros, de J. M. Coetzee. Artigo disponível em

http://www.unigranrio.br/unidades_acad/ihm/graduacao/letras/revista/numero1/textodenis

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16. Tutikian, Jane. Velhas identidades novas: o pós-colonialismo e a emergência das nações

de língua portuguesa. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 2006.

17. West, Cornel. Questão de raça. Tradução por Laura Teixeira Motta. São Paulo:

Companhia das Letras, 1994.