12
1 O ‘SER’ PROFESSOR(A) PRIMÁRIO(A) NO SÉCULO XIX ATRAVÉS DA IMPRENSA FEMININA Roberta Guimarães Teixeira Mestranda PPGEd/UNIRIO Profª Drª Nailda Marinho da Costa Bonato Orientadora PPGEd/UNIRIO E-mail: [email protected]; [email protected] Palavras-chave: Feminização do magistério; Imprensa Feminina; História da Educação Brasileira. Introdução Este trabalho se insere na pesquisa em andamento sobre o processo de feminização do magistério primário através da imprensa feminina 1 , desenvolvida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Educação – Mestrado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UNIRIO), especificamente na linha de pesquisa: Subjetividade, Cultura e História da Educação. O objetivo no evento é apresentar os estudos preliminares realizados para a elaboração do projeto de pesquisa e os resultados de alguns dados já coletados. Diferentes trabalhos tiveram como objeto de estudo a imprensa feminina, abordando-as em diferentes perspectivas, como a de Almeida (1998a) que analisou os pontos de vista sobre a educação e instrução das mulheres em jornais e revistas femininas e educacionais; a de Bicalho (1989) que buscou decifrar como as mulheres eram retratadas no jornal feminino O Bello Sexo e o de Buitoni (1990) que percorreu os caminhos históricos de constituição e das características diferenciadas deste tipo de imprensa desde os folhetos tipográficos até às revistas coloridas de duzentas ou trezentas páginas. Para essas autoras, ainda há um número considerável de jornais femininos que ainda não se tornaram conhecidos, que não foram estudados pelos pesquisadores, e que não foram localizados no território nacional ou que se perderam. Apesar de auxiliar na reflexão sobre a condição feminina na sociedade brasileira, estas pesquisas não focaram, especificamente, na imprensa feminina que circulou nos oitocentos, a figura do “ser” professor(a) primário(a) como possibilidade de análise. São, portanto escassos os trabalhos nessa temática na produção historiográfica do Rio de Janeiro, como atesta Carvalho na apresentação do livro “Tempos de Escola: fontes para a presença feminina na educação SP - Século XIX” (1999): ... sabemos muito pouco sobre quem eram as meninas que freqüentavam escolas no século XIX, sobre suas professoras e professores e os tipos de

O ‘ser’ professor(a) primário(a) no século XIX

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: O ‘ser’ professor(a) primário(a) no século XIX

1

O ‘SER’ PROFESSOR(A) PRIMÁRIO(A) NO SÉCULO XIX ATRAVÉS DA IMPRENSA FEMININA

Roberta Guimarães Teixeira Mestranda PPGEd/UNIRIO

Profª Drª Nailda Marinho da Costa Bonato Orientadora PPGEd/UNIRIO

E-mail: [email protected]; [email protected]

Palavras-chave: Feminização do magistério; Imprensa Feminina; História da Educação Brasileira.

Introdução

Este trabalho se insere na pesquisa em andamento sobre o processo de feminização do magistério primário através da imprensa feminina1, desenvolvida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Educação – Mestrado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UNIRIO), especificamente na linha de pesquisa: Subjetividade, Cultura e História da Educação. O objetivo no evento é apresentar os estudos preliminares realizados para a elaboração do projeto de pesquisa e os resultados de alguns dados já coletados.

Diferentes trabalhos tiveram como objeto de estudo a imprensa feminina, abordando-as em diferentes perspectivas, como a de Almeida (1998a) que analisou os pontos de vista sobre a educação e instrução das mulheres em jornais e revistas femininas e educacionais; a de Bicalho (1989) que buscou decifrar como as mulheres eram retratadas no jornal feminino O Bello Sexo e o de Buitoni (1990) que percorreu os caminhos históricos de constituição e das características diferenciadas deste tipo de imprensa desde os folhetos tipográficos até às revistas coloridas de duzentas ou trezentas páginas. Para essas autoras, ainda há um número considerável de jornais femininos que ainda não se tornaram conhecidos, que não foram estudados pelos pesquisadores, e que não foram localizados no território nacional ou que se perderam.

Apesar de auxiliar na reflexão sobre a condição feminina na sociedade brasileira, estas pesquisas não focaram, especificamente, na imprensa feminina que circulou nos oitocentos, a figura do “ser” professor(a) primário(a) como possibilidade de análise. São, portanto escassos os trabalhos nessa temática na produção historiográfica do Rio de Janeiro, como atesta Carvalho na apresentação do livro “Tempos de Escola: fontes para a presença feminina na educação SP - Século XIX” (1999):

... sabemos muito pouco sobre quem eram as meninas que freqüentavam escolas no século XIX, sobre suas professoras e professores e os tipos de

Page 2: O ‘ser’ professor(a) primário(a) no século XIX

2

escola e ensino a elas oferecidos, informações imprescindíveis para fundamentar afirmações sobre um processo crescente de escolarização das mulheres nos últimos cem anos e para compreensão de uma possível feminização do magistério e seus significados. (CARVALHO, 1999, p.5)

A autora ainda acrescenta no final do texto que “(...) o século XIX permaneceu na penumbra das generalizações e dos pressupostos” (idem, ibidem). Há, então, nos impressos femininos um campo singular e significativo que precisa ser analisado, o que certamente contribuirá para desvendar os caminhos das professoras primárias, desvelar histórias de mulheres oitocentistas e talvez desmistificar significados aparentes (LE GOFF, 1996). Essa perspectiva estimula “vasculhá-los” e estão organizados neste trabalho a partir dos caminhos percorridos para a problematização, seguindo as trilhas investigativas, abordando os aportes teórico-metodológicos até as considerações finais.

1. Caminhos trilhados para a problematização

Alguns caminhos foram trilhados até chegar a problematização dessa pesquisa. Como bolsista de Iniciação Científica (IC/UNIRIO e PIBIC/CNPq), na Graduação em Pedagogia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UNIRIO), participei por três anos do projeto de pesquisa intitulado: Resistência ou Decadência? Análise Histórico-Sócio-Cultural do Trabalho Docente no Rio de Janeiro, coordenado pela Profª Drª Ângela Maria Souza Martins. Nesta pesquisa analisamos os movimentos e mudanças da feminização do magistério primário dos professores do primeiro segmento do Ensino Fundamental, ocorridas nos últimos trinta anos do século XX, a partir das categorias de gênero, classe e profissionalismo2.

No trato com acervos, ainda como estudante de graduação, integro a equipe de um projeto desenvolvido pela UNIRIO em parceria com a Secretaria Estadual de Educação que tinha como objetivo organizar o acervo documental de aproximadamente três mil escolas extintas do Estado do Rio de Janeiro3. A equipe era composta por professores e alunos dos Cursos de Arquivologia e Pedagogia. O referido acervo continha uma diversidade de documentos, tais como: atas, relatórios, pareceres, dossiês de alunos, diários, plantas de escolas, um número significativo de fotografias, documentos ainda não explorados e não catalogados4.

Após a experiência na organização de acervos escolares, como Pedagoga concursada, passo a exercer a profissão na Secretaria Municipal de Educação. Atuando diretamente com professoras da Educação Infantil (EI), surgem vários questionamentos, considerando não haver naquela rede municipal de ensino professores nesse segmento de ensino. As questões que se colocavam eram as seguintes: Como foi a inserção dessas professoras na EI? Como elas percebiam essa feminização no magistério neste nível de escolaridade? Quais os motivos da ausência masculina? Passamos a discutir essas questões através de um Grupo de Estudo organizado no âmbito da SME, onde pude levar a teoria através de alguns textos e os resultados da pesquisa realizada na graduação em Pedagogia para a prática dessas professoras.

Page 3: O ‘ser’ professor(a) primário(a) no século XIX

3

Os estudos apontaram que esse fenômeno estava além da Educação Infantil e atingia todo o primeiro segmento do ensino fundamental. Dados estatísticos publicados em 2003 pelo Instituto Nacional de Estudos e pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP referentes aos professores brasileiros que atuam na 4º série do Ensino Fundamental, informavam que cerca de 90% deles são mulheres.

Buscando resposta às questões como aluna ouvinte da disciplina Atividades de Estudo e Pesquisa do PPGEd,5 conheci o projeto: As concepções da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF) sobre a educação feminin

6, importante movimento feminista brasileiro das primeiras décadas do século XX que “discutia a educação e a instrução para as mulheres como meio destas conquistarem maiores garantias e direitos sociais e políticos” (BONATO, 2005a), tendo como principal representante a ativista e bióloga Bertha Lutz. A discussão no âmbito da entidade privilegiava também a figura da professora. O que levou à seguinte indagação: Qual o papel das mulheres no processo de feminização do magistério?

A participação na disciplina propiciou uma maior inserção em Encontros e Seminários Estaduais na temática da História da Educação7, assim tomo contato com mais textos sobre educação feminina e sobre o processo de feminização do magistério primário, inclusive produzido pela professora orientadora. E ainda, a percepção da “vitalidade adquirida pela História da Educação”, nas palavras de Savianni (2005, p.25) e o “otimismo dos historiadores da educação” como denominaram Vidal e Faria Filho (2005, p.118) frente às renovações temáticas e metodológicas das pesquisas e das inovações que a disciplina História da Educação vem passando nos últimos trinta anos, estimulou a participação no processo de Seleção para o PPGEd/UNIRIO, obtendo aprovação.

Inicialmente foi realizada uma pesquisa exploratória nos acervos públicos: da Biblioteca Nacional (BN), do Arquivo Nacional (AN), do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (AGCRJ), que depois se ampliou na Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB), sendo localizados os seguintes jornais: O Sexo Feminino (1887 a 1889), que depois da Proclamação da República passou a se chamar: O Quinze de Novembro do Sexo Feminino (1889 e 1896), editado por Francisca Senhorina da Mota Diniz; O Progresso Educador (1894), de Tereza Gardini e Regina Gherda e Echo das Damas (1879 a 1888) de Amélia Carolina da Silva Couto.

Especificamente, até o momento foram encontrados nesses acervos públicos os seguintes periódicos do século XIX:

Periódico Editor(a) Circulação8

A Mulher do Simplício –

a fluminense exaltada9

Desconhecida 1832 a 1846

A filha única da mulher do

simplício Desconhecida

14. mar. 1832 (único exemplar)

Page 4: O ‘ser’ professor(a) primário(a) no século XIX

4

O Jornal das Senhoras

Violante Ataliba Ximenes de Bivar e Velasco. Colaboradoras: Joanna Paula Manso De Noronha e Candida do Carmo Souza Menezes

1852 a 1853

A Violeta Fluminense Desconhecida 1857 a 1858

O Bello Sexo

Julia Albuquerque Sandy Aguiar. Várias colaboradoras

ago.- set. 1862

O Sexo Feminino Francisca Senhorinha da Mota Diniz

1873 a 1889

O Domingo Violante Ataliba Ximenes de Bivar e Velasco

1873 a 1975

República das Moças Desconhecida 1879

Echo das damas

Amélia Carolina da Silva Couto. Colaboradoras: Emiliana de Morães, Anália Emílio Franco, Maraia Zelina Polvir, Ignês Salurio Pinho Mara e outras.

1879 a 1888

Primavera Francisca Senhorinha Motta Diniz

1880

O Ensino Primário Desconhecido, porém escrito e editado por professores primários

1884 a 1885

A Família Josefina Álvares de Azevedo

1888 a 1894

O Quinze de Novembro do

Sexo Feminino 10

Francisca Senhorinha da Mota Diniz

1889 a 1896

O Progresso Educador Teresa Gandini e Regina Gherda

1894

Diante do caminho percorrido e tomando como ponto de partida a análise do documento enquanto monumento, no dizer de Le Goff (1996), no sentido de descortinar histórias de uma parcela significativa de sujeitos sociais e históricos: as mulheres através da imprensa por elas produzida e editada no século XIX, parto da seguinte questão central: Como a imprensa feminina editada por mulheres ou a elas dirigida no Rio de Janeiro do século XIX, contribuiu para o processo de feminização do magistério primário, fenômeno

que persiste na atualidade? Essa questão se desdobra em outras, a saber: Quem fala e para quem falam os impressos? Que identidades estes produziram? Que sentidos e usos foram feitos dessa produção? Que modelos de escolarização e de formação profissional foram divulgados?

Page 5: O ‘ser’ professor(a) primário(a) no século XIX

5

Para responder essas questões, a investigação tem os seguintes objetivos:

• Dar continuidade ao levantamento de revistas e jornais femininos cariocas editados por mulheres ou a elas dirigidas no século XIX, encontrados nos acervos públicos do Rio de Janeiro;

• Delimitar o período de surgimento e término bem como quantidade de exemplares de cada periódico encontrado;

• Selecionar aqueles onde aparece a “figura” do(a) professor(a) primário(a);

• Analisar as concepções dos impressos selecionados e quais são suas influências;

• Analisar em seu conteúdo como esse(a) profissional do magistério era retratado(a) ou representado(a) naquela sociedade oitocentista.

2. As trilhas investigativas

Seguindo na trilha investigativa os estudos apontam que no Brasil Império as mulheres eram marcadamente dependentes da figura masculina11, subordinadas à autoridade e às decisões do marido ou do pai, “a dependência incluía a impossibilidade da mulher gerenciar seus próprios bens, quando herdados, podendo quando muito, dispor da renda que fosse fruto do seu trabalho” (ARAÚJO, 1993, p.65). Mesmo para exercer uma ocupação, ela precisava de uma autorização por escrito do marido, período este, que as mulheres brasileiras, em sua grande maioria, eram desprovidas do direito básico de aprender a ler e a escrever, o que era reservado apenas ao sexo masculino. De aproximadamente quatro milhões de brasileiras, em 1870, cerca de 550 mil eram alfabetizadas, menos de 14% da população feminina (DIAS, 2003).

Apesar dessa exclusão na vida familiar, social e na instrução elementar (LOPES & FARIA FILHO, 2000), há o registro de um primeiro jornal feminino, escrito em 183212, trinta e oito anos antes dessa estatística, comprovando a notoriedade dessas mulheres escritoras e da própria imprensa feminina que surge redigida e destinada às mulheres. De acordo com Bicalho (1989), Bruschini (1988), Buitoni (1981 e 1990) e Duarte (2003), essa imprensa se desenvolveu num momento ímpar, entre as campanhas abolicionistas e republicana, com os ideais de liberdade e igualdade, possibilitando uma reformulação e uma ampliação dos papéis tradicionais atribuídos à mulher na sociedade brasileira.

Foi nessa época que “a mulher começa a libertar-se pouco a pouco, da clausura colonial e subordinava-se aos padrões da moda européia exibindo-se nos salões e um pouco nas ruas” (SODRÉ, 1977, pp.227-228). Nesse caminho, o espaço do magistério se apresentava como uma possibilidade da mulher sair de casa para a rua, conforme Araújo (1993).

Para Louro (1997) a entrada das mulheres na escola, gerou polêmicas, resistências e não foi um processo tão “natural” como afirmaram alguns pesquisadores. As mulheres eram discriminadas por serem consideradas despreparadas e “portadoras de cérebros pouco

Page 6: O ‘ser’ professor(a) primário(a) no século XIX

6

desenvolvidos” (LOURO, 1997, p.450). Apesar dessas argumentações conservadoras, outras concepções propunham que havia diferenças “naturais” entre homens e mulheres e que às mulheres, por sua constituição natural, cabia socializar as crianças, como parte de suas funções maternais. Logo, a função de esposa e mãe de família era estendida à escola pela figura da professora (ARAÚJO, 1993, BRUSCHINI, 1988, BONATO, 2002). As pesquisas indicam que essas e outras representações13 - que serão analisadas e interpretadas na investigação proposta tendo em vista as estruturas econômica, cultural e política do Brasil Império, legitimaram o crescente número de mulheres no magistério primário. Entendemos que na análise as estruturas mencionadas não podem ser ignoradas e com isso evitar-se considerações parciais desse fenômeno da feminização do magistério primário. (ALMEIDA,1998b).

2.1. Os aportes teórico-metodológicos

Em paralelo ao processo de feminização do magistério feminino, o movimento feminista no Brasil, passou por diferentes fases, foi no dizer de Duarte (2003, p.152), movimentos de fluxos e refluxos14 proporcionando uma maior visibilidade para as mulheres. E foi essa maior visibilidade, aliada à renovação teórico-metodológica do conhecimento histórico trazida pela Escola de Annales (SAVIANI, 1998, p.09), que contribuiu para que no Brasil na área de Ciências Humanas e Sociais, a partir da década de 1980, surgisse um número crescente de pesquisas sobre a mulher como sujeito social e histórico, legitimando o conceito de gênero como categoria científica (ALMEIDA, 1996, p. 71).

Pesquisadoras como Almeida (1996), Louro (1992) e Soihet (1998), propõem que a categoria gênero seja entendida como uma construção social, cultural e histórica elaborada sobre as relações entre homens e mulheres, rejeitando as teorias de cunho positivista da análise das relações sobre as desigualdades entre os sexos.

Na área de Educação mais especificamente no campo da História da Educação estudos sobre a educação das mulheres e sobre a feminização do magistério primário se fazem presentes, entendendo ser a história “sempre múltipla mesmo que haja a possibilidade de examiná-la de perspectivas específicas” (BARROS, 2004, p.15).

No Brasil, é a partir da década de 1990 que as pesquisas se intensificam. Grupos de estudos no meio acadêmico passaram a pesquisar sobre a educação das mulheres, sobretudo na perspectiva de gênero, trazendo à tona preocupações com “o papel sexual, o mercado de trabalho, a família, entre outros aspectos referentes à formação profissional e à inserção das mulheres na sociedade como cidadãs reclamando o reconhecimento social em pé de igualdade com os homens” (BONATO, 2005a, p.11). Para esta pesquisa em História da Educação sobre o fenômeno da feminização do magistério primário, tendo como fonte privilegiada os impressos femininos veiculados no século XIX, a categoria gênero se faz imperiosa.

Partindo deste pressuposto, as considerações de Roger Chartier (1990) convergem, também, como fundamentais nesta pesquisa, promovendo uma interconexão das dimensões História da Educação com a História Cultural, na identificação do modo como esse processo de feminização foi percebido e representado na imprensa feminina.

Page 7: O ‘ser’ professor(a) primário(a) no século XIX

7

De acordo com Chartier é possível “identificar como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler” (1990, p. 16-17), sendo importante refletir como mulheres e homens vêem e pensam o real, como conferem diferentes significados na mesma realidade a partir de suas práticas e representações.

Na perspectiva de Barros (2004), a produção de um bem cultural, como por exemplo, de um jornal está necessariamente incluída em um universo subordinado por duas noções: práticas e representações, que para ele são complementares, ora são as práticas culturais que geram as representações, ora as representações geram práticas culturais.

Considerando as mulheres como sujeitos produtores e receptores de cultura, suas lutas e conquistas, seus desejos e silêncios que marcaram ou não o processo de feminização do magistério primário, essas categorias de análise também são trazidas à nossa discussão, à luz do objeto de estudo proposto e a tentativa de reconstruir os fragmentos do passado, mesmo que “em sua inteireza e completude, o passado nunca será plenamente conhecido e compreendido” (LOPES, 2001, p.76).

Como estratégia metodológica, estão sendo utilizadas a pesquisa bibliográfica e análise documental.

a) Pesquisa bibliográfica

Além dos autores já citados neste trabalho, dar continuidade ao levantamento bibliográfico visando à ampliação da fundamentação teórica da investigação proposta. A intenção é recorrer a outros autores que permitam pensar o contexto sócio-histórico cultural em que a imprensa feminina, objeto de análise, foi produzida assim como suas influências. Porém, outras necessidades de estudo podem ocorrer no processo de investigação.

b) Análise documental

A investigação tem como fonte privilegiada impressos femininos contidos nos acervos públicos. Neste sentido, daremos continuidade à pesquisa documental já iniciada, indo em busca de novos periódicos e impressos que retratam a figura do(a) professor(a) primário no século XIX, de acordo com os objetivos e o cronograma proposto. Os periódicos já selecionados nos vêm proporcionando leituras diversas sobre as concepções das mulheres em torno desse profissional do magistério. A intenção é cruzar as fontes primárias com as referências teóricas, tanto no que se refere ao uso desse tipo de fonte nas pesquisas em história da educação quanto para se entender o objeto de estudo mais detalhadamente.

3. Alguns resultados preliminares

Mesmo sendo uma pesquisa em andamento, alguns dados já se fazem relevantes. A imprensa feminina foi cúmplice do processo de reformulação dos papéis tradicionais atribuídos à mulher. Imbuídas de seu novo papel, tanto no interior da família quanto na sociedade como um todo, “algumas mulheres lançaram-se, através da imprensa, à esfera pública, na defesa de sua nova missão” (BICALHO, 1988, p. 113). Sua principal reivindicação, segundo os preceitos do liberalismo que informavam sua visão de mundo,

Page 8: O ‘ser’ professor(a) primário(a) no século XIX

8

era o reconhecimento de sua posição de igualdade em relação ao sexo masculino, conquistada através da educação.

A pesquisa vem demonstrando que as mulheres editoras e escritoras desses jornais femininos tiveram uma educação diferenciada, eram em sua grande maioria professoras e viúvas, e tomaram para si a tarefa de propagar a necessidade das mulheres em obterem alguma instrução e o ingresso no campo profissional, via magistério primário, “aportes indispensáveis à sua racional emancipação” (ALMEIDA, 1998b, p. 63).

Essa “racional emancipação” proporcionou uma interlocução entre leitores e leitoras marcando definitivamente o papel da mulher na sociedade, numa época com tantas restrições ao papel feminino. Com isso, o maior motivo de as mulheres terem buscado o magistério estava no fato de que elas realmente precisavam trabalhar (ALMEIDA, 1988, p. 71), libertar-se das amarras da opressão e da submissão em que viviam.

A inserção no espaço público, como professora, cujo trabalho era remunerado, promoveu um novo olhar sobre as relações em sociedade e no ambiente doméstico, além de permitir a sua circulação desacompanhada para ir lecionar, a aprendizagem de novos conhecimentos, entre outras questões, a chance de igualdade perante os homens em termos sociais e culturais.

Dentre as reivindicações e protestos pela educação e instrução das mulheres, também vinham estampadas nesses impressos, as seguintes temáticas:

• Igualdade de direitos - uma exigência de direitos iguais na convivência para ambos os sexos;

• Melhores níveis educacionais - a precariedade educacional das mulheres era apontada como a causa geradora da sua passividade;

• Reconhecimento de profissões - o trabalho feminino era reivindicado; algumas reclamavam o trabalho exclusivamente feminino no magistério e na medicina;

• Reforma da legislação matrimonial - reivindicação em prol da mulher quanto à sua posição no casamento;

• O direito ao voto e a elegibilidade - protestos anteriores às manifestações feministas do século XX, já demonstravam a necessidade de igualdade de direitos políticos entre os sexos (BERNARDES, 1988, passim).

O leque de informações trazidas por estas mulheres demonstra um movimento feminino de vanguarda na sociedade oitocentista e de valiosa descrição sobre o processo educacional no Brasil. Esse primeiro movimento de mulheres escritoras, compreende o período que antecede a criação da primeira Escola Normal no país15 em 1835, percorre o Império e as primeiras décadas da República, apresentando como em um período de cinco décadas, o trabalho docente quase que exclusivamente masculino torna-se prioritariamente feminino (VILLELA, 2000, p.117).

Por outro lado, a revisão bibliográfica dos autores tem ajudado a pensar o objeto de pesquisa proposto e trazidos à discussão neste projeto de investigação. Os dados coletados nos periódicos encontrados nos acervos públicos são representativos para a pesquisa, porém ainda merecedores de uma análise mais acurada.

Page 9: O ‘ser’ professor(a) primário(a) no século XIX

9

Especificamente, além de tentar responder as questões propostas, como resultados esperados, acreditamos que esta investigação também possa:

• Contribuir para a divulgação das coleções de periódicos impressos produzidos pelas e sobre as mulheres contidas majoritariamente no acervo da BN.

• Divulgar o seu potencial como fonte para a história da educação feminina e formação de professores.

• Estimular mais pesquisas com esse tipo de fonte na área de Ciências Humanas, tendo em vista o olhar feminino e o lugar do pensamento das mulheres no seu processo de emancipação.

• Contribuir no campo da educação para a produção de novas pesquisas sobre o processo de feminização do magistério.

E por fim...

Ampliar os horizontes de reflexão sobre o processo de feminização do magistério primário tendo como foco o olhar das próprias mulheres sobre o “ser” professor(a) primário(a) naquele século XIX, veiculado pela imprensa feminina produzida por e para as mulheres é contribuir de uma determinada maneira com os estudos sobre a história de emancipação feminina no Brasil com possibilidades de se chegar a novas conclusões. E “[...] é isto que torna fascinante o trabalho de História: a chance de fazer novas perguntas a respostas já dadas (e a partir delas), [criar] conseqüentemente novos passados” (LOPES, 1994, p.65).

Referências bibliográficas

ALMEIDA, J. S. Imagens de mulher: a imprensa educacional e feminina nas primeiras décadas do século. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, São Paulo, v.79, n. 191, p. 31-41, jan-abr 1998a.

_________ . Mulher e educação: a paixão pelo possível. São Paulo: Editora UNESP, 1998b.

_________ . Mulheres na escola: algumas reflexões sobre o magistério feminino. Cadernos de Pesquisa da Fundação Carlos Chagas, São Paulo, n. 96, p.71-80, 1996.

ARAUJO, R. M. B de. A vocação do prazer: a cidade e a família no Rio de Janeiro republicano. RJ: Rocco, 1993.

BARROS, J. D. O campo da História: especialidades e abordagens. Rio de Janeiro: século XIX. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.

BICALHO, M. F. B. O bello sexo: imprensa e identidade feminina no Rio de Janeiro em fins do século XIX e início do século XX. In: COSTA, A.; BRUSCHINI, C. (orgs). Rebeldia e submissão: estudos sobre a condição feminina. São Paulo: Vértice, p.79-99, 1989.

Page 10: O ‘ser’ professor(a) primário(a) no século XIX

10

_________ . O Bello Sexo: Imprensa e Identidade Feminina no Rio de Janeiro em fins dos século XIX e início do século XX. 1988. 279f. Dissertação (Mestrado em Antropologia) Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 1988.

BONATO, N. M. da C. Projeto de Pesquisa: As concepções da Federação Brasileira para o Progresso Feminino sobre a educação feminina, 2004/2005. Rio de Janeiro:UNIRIO,2005a. (Digitado)

_________ . As concepções da Federação Brasileira para o Progresso Feminino sobre a educação da mulher (1922-1979). In. Anais do XXIII Simpósio Nacional de História- História: guerra e paz, 2005, Londrina: ANPUH, 2005b, v.1 p.1-8 .

_________ . A escola normal: uma escola para mulheres? A formação de professores/as para o ensino primário no Rio de Janeiro do Império à República. In. CAMPOS, M. C. S. de S. e SILVA, V. L. G. da (orgs.). Feminização do magistério: vestígios do passado que marcam o presente. Bragança Paulista: EDUSF, 2002. (Coleção Estudos CDAPH. Série memória).

BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Estatística dos professores do Brasil. Brasília: INEP, 2003.

BRUSCHINI, C.e AMADO, T. Estudos sobre a mulher e educação: algumas questões sobre o magistério. Cadernos de Pesquisa da Fundação Carlos Chagas, São Paulo, n. 64, p.04-13, 1988.

BUITONI, D. S. Imprensa feminina. São Paulo: Ática, 1990. (Princípios, 41).

CAMPOS, M. C. S. de S. e SILVA, V. L. G. da (Orgs.). Feminização do magistério: vestígios do passado que marcam o presente. Bragança Paulista: EDUSF, 2002. p.163-191 (Coleção Estudos CDAPH. Série Memória).

CARVALHO, M. P. de. Apresentação. In: HILDSDORF, M. L.S. Tempos de Escola: fontes para a presença feminina na educação.São Paulo: Plêiade, p.5-6,1999.

CATANI, D. B. & BASTOS, H. C. (orgs). Educação em revista – A Imprensa Periódica e a História da Educação. São Paulo: Escrituras, p.11-31, 1997.

CHARTIER, R. A história cultural. Entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL, 1990.

DIAS, S. M. M. Imprensa feminina, folhetim e histórias de vida. In: XXVI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Belo Horizonte/ MG, de 02 a 06 de setembro 2003. Disponível em: http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2003/www/pdf/2003_NP13_dias.pdf. Acesso em: 01 maio 2008.

DUARTE, C. L. Feminismo e literatura no Brasil. Revista Estudos Avançados, Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, São Paulo, n. 17 (49), p. 151-172, 2003.

FONSECA, G. da. Biografia do Jornalismo Carioca. Rio de Janeiro: Quaresma, 1941.

HAHNER, J. E. Emancipação do sexo feminino: as lutas pelos direitos da mulher no Brasil, 1850-1940. Santa Cruz do Sul/ RS: Editora Mulheres, 2003.

Page 11: O ‘ser’ professor(a) primário(a) no século XIX

11

IPANEMA, M. de. Imprensa Fluminense, ensaios e trajetórias. Rio de Janeiro: Instituto de Comunicação Ipanema, 1984.

LE GOFF, J. A história nova. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

_________ . História e memória. Campinas, São Paulo: UNICAMP, 1996.

LOPES, E. M. T & GALVÃO, A. M. de O. História da Educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.

_________ . FARIA FILHO, L. M. de & VEIGA, C. G. (orgs). 500 anos de Educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

_________ . Perspectivas históricas da educação São Paulo: Ática, 1994.

LOURO, G. L. Mulheres na sala de aula In: PRIORE, M. D. (org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, p.443-481,1997.

_________ . Uma leitura da história da educação sob a perspectiva de gênero. Revista Teoria e Educação. Porto Alegre /RS, n. 6, p. 53-67, 1992.

PINTO, C. R. J. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003.

REIS, M. C. D. Guardiãs do futuro: imagens do magistério de 1895 a 1920. In: SORJ, B.; BRUSCHINI, C. (orgs). Novos olhares: mulheres e relações de gênero no Brasil. São Paulo: Vértice, p. 111-132, 1994.

SAVIANI, D. Reflexões sobre o Ensino e a Pesquisa em História da Educação. In: GATTI JR, D e INÁCIO FILHO, G. (orgs.) História da educação em perspectiva: ensino, pesquisa, produção e novas investigações. Campinas, SP: Autores Associados; Uberlândia, MG: EDUFU, p.7-31, 2005.

_________ . O debate teórico e metodológico no campo da história e sua importância para a pesquisa educacional. In: SAVIANI, D; LOMBARDI, J.C. e SANFELICE, J. L. (orgs.) História e história da educação. Campinas, SP: Autores Associados/ HISTEDBR, p.7-15, 1998.

SODRÉ, N. W. Historia da Imprensa no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 1977.

SOIHET, R. História das mulheres e história de gênero - um depoimento. Cadernos Pagu, Núcleo de Estudos de Gênero/ UNICAMP, Campinas/ SP, n.11, p.77-87, 1998.

TELLES, N. Escritoras, Escritas, Escrituras. In: DEL PRIORE, Mary (org.) História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, p. 401-443, 2007.

VIANNA, H. Contribuição a historia da imprensa brasileira (1812-1869). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,1945.

VIDAL, D. G. & FARIA FILHO, L. M. de F. As lentes da história: estudos de história e historiografia da educação no Brasil. Campinas/ SP: Autores Associados, 2005.

Fontes primárias (imprensa feminina)

Page 12: O ‘ser’ professor(a) primário(a) no século XIX

12

ECHO DAS DAMAS. Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1879 a 1888.(Setor de Obras Raras, microfilmado).

O PROGRESSO EDUCADOR. Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1894 (Setor de Obras Raras, microfilmado).

O SEXO FEMININO. Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1887 a 1889.(Setor de Obras Raras, microfilmado).

O QUINZE DE NOVEMBRO DO SEXO FEMININO. Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1889 e 1896.(Setor de Obras Raras, microfilmado).

NOTAS:

1 O projeto originalmente aprovado no processo de Seleção 2008 do PPGEd/UNIRIO intitula-se “A feminização do magistério primário e a imprensa feminina em fins do século XIX e inicio do século XX”, em consonância com a temática de pesquisa Gênero e Educação no Brasil da professora orientadora. 2 A participação na pesquisa ocorreu no período de agosto de 1998 a julho de 2001. No período como bolsista PIBIC/ CNPq apresentei comunicação oral na Semana de Debates Científicos da UNIRIO sendo agraciada com prêmio de melhor trabalho da área de educação avaliado pelo CNPq. 3 Realizado no período de agosto de 1999 a janeiro de 2002. 4 O Projeto sofreu solução de continuidade não sendo concluído. Seu acervo foi transferido para um galpão do Governo do Estado do Rio de Janeiro. 5 Atividades desenvolvidas no âmbito do Núcleo de Estudos e Pesquisas em História da Educação Brasileira – NEPHEB coordenado pela Profa. Dra. Nailda Marinho da Costa Bonato, orientadora dessa pesquisa. 6 Elaborado e coordenado pela referida professora, contou com um ano de financiamento da FAPERJ. 7 Ao longo desses anos participei como ouvinte do I Congresso Brasileiro de História da Educação; do I Congresso de Pesquisa e Ensino em História da Educação em Minas Gerais e no GT de História da Educação da ANPED. Nessa trajetória, em 2007, da Comissão Organizadora no I Encontro de História da Educação do Estado do Rio de Janeiro (I EHEd-RJ). 8 Dados referentes às fontes primárias encontradas, majoritariamente, no Acervo de Obras Raras da Biblioteca Nacional. 9 Segundo referência do livro Educação em revista (CATANI, 1997, p.177) este foi o primeiro impresso feminino, sem referência da editora, até o momento, também encontrado em Fonseca, G. da. Biografia do Jornalismo Carioca, p.296 e Vianna, H. Contribuição a historia da imprensa brasileira (1812-1869), 1945, p.173, ambos referência do Acervo Geral de Livros da Biblioteca Nacional. 10 Infelizmente, segundo o bibliotecário do Acervo de Periódicos, alguns exemplares estão indisponíveis para a pesquisa devido ao estado de deterioração física, como é o caso de parte da coleção do jornal O Quinze de Novembro do Sexo Feminino (não microfilmado) referente ao período de agosto de 1892 a março de 1896. Informação recebida em 19 de fevereiro de 2008. 11 Assertiva presente nos estudos de diferentes pesquisas: Araújo (1993), Lopes e Faria Filho (2000), Telles (2007). 12 Catani, op. cit. p.177. 13 O conceito de vocação, de sacerdócio, de missionária foi muito usado para representar as mulheres que ingressavam no magistério, era vista pela sociedade, como profissão adequada para o seu sexo e o magistério também possibilitava a conciliação dos trabalhos domésticos com o trabalho de professora, os horários de trabalho na escola não prejudicava seus afazeres domésticos (Louro, 1997 e Reis, 1994). 14 Considera que a história do feminismo teve início nas primeiras décadas do século XIX e sugeriu a existência de pelo menos quatro momentos de maior visibilidade deste movimento feminista brasileiro: de 1830, 1870, 1920 e 1970. 15 A primeira Escola Normal do Brasil foi inaugurada em Niterói/RJ em 1835, foi fechada por ele em 1849 e somente foi reaberta em 1859.