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O VÉU COMO ADORNO: A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO NAS OBRAS DE GLÓRIA PEREZ Cássia Bethania Groess de Souza Barbosa ([email protected] ) Centro Universitário La Salle Resumo: O trabalho aborda a influência da mídia televisiva na construção de representações e consequentemente de práticas culturais. O estudo analisa a representação feminina nas obras de Glória Perez. As obras desta autora são conhecidas pelo “merchandising social” e entre os anos de 1987 e 2009 a autora escreveu oito telenovelas e duas minisséries nas quais as personagens femininas eram representadas em situações de opressão ou fragilidade. Analisando os aspectos da representação dos papéis sexuais nas obras da autora e de seu impacto na formação de opinião, criação de imaginário e no comportamento de seu público, pode-se identificar a remodelagem, glamourização a fantasia de estereótipos femininos. Palavras chave: Representação; Papéis sexuais; Telenovelas; Glória Perez; Imaginário. Introdução As montagens televisivas do gênero folhetim, em diversas formas de apresentação, são sucesso grande número de países e por consequência ocupam a maior parte da grade de programação dos canais de entretenimento. Porém no Brasil, mais que em qualquer outro país, o papel das telenovelas ultrapassa a categoria de entretenimento, adentrando o dia-a-dia. Quando o capítulo termina, a trama e seus personagens continuam presentes, nas conversas do cotidiano, como tema de reportagens, referência no levantamento de questões comportamentais, influenciando a moda e o consumo. O Brasil possui a segunda maior média de audiência televisiva do planeta e é aqui que as telenovelas possuem uma influência mais ampla e duradoura na escolha de estilo de vida de seus telespectadores. Segundo La Pastina (1994), as telenovelas “tornaram-se muito mais uma parte do tecido da sociedade brasileira. É difícil pensar o Brasil contemporâneo sem pensar em novela.”. Estudos demonstraram a influência das novelas desde o planejamento família, escolha do nome dos filhos e divórcio 1 . Esta influência é potencializada quando são inseridos na história temas 1 Ver Alberto Chong & Eliana La Ferrara, 2009. "Television and Divorce: Evidence from Brazilian Novelas," Journal of the European Economic Association, MIT Press, vol. 7(2-3), pag. 458-468, 04-05. E Eliana La Ferrara & Alberto Chong & Suzanne Duryea, 2008. "Soap Operas and Fertility: Evidence from Brazil," Research Department Publications 4573, Inter-American Development Bank, Research Department. Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.240

O Véu como Adorno Cássia Barbosa

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Resumo: O trabalho aborda a influência da mídia televisiva na construção de representações e consequentemente de práticas culturais. O estudo analisa a representação feminina nas obras de Glória Perez. As obras desta autora são conhecidas pelo “merchandising social” e entre os anos de 1987 e 2009 a autora escreveu oito telenovelas e duas minisséries nas quais as personagens femininas eram representadas em situações de opressão ou fragilidade. Analisando os aspectos da representação dos papéis sexuais nas obras da autora e de seu impacto na formação de opinião, criação de imaginário e no comportamento de seu público, pode-se identificar a remodelagem, glamourização a fantasia de estereótipos femininos. Palavras chave: Representação; Papéis sexuais; Telenovelas; Glória Perez; Imaginário.

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O VÉU COMO ADORNO: A REPRESENTAÇÃO DO FEMININONAS OBRAS DE GLÓRIA PEREZ

Cássia Bethania Groess de Souza Barbosa ([email protected])

Centro Universitário La Salle

Resumo: O trabalho aborda a influência da mídia televisiva na construção de representações e consequentemente depráticas culturais. O estudo analisa a representação feminina nas obras de Glória Perez. As obras desta autora sãoconhecidas pelo “merchandising social” e entre os anos de 1987 e 2009 a autora escreveu oito telenovelas e duasminisséries nas quais as personagens femininas eram representadas em situações de opressão ou fragilidade.Analisando os aspectos da representação dos papéis sexuais nas obras da autora e de seu impacto na formação deopinião, criação de imaginário e no comportamento de seu público, pode-se identificar a remodelagem,glamourização a fantasia de estereótipos femininos.Palavras chave: Representação; Papéis sexuais; Telenovelas; Glória Perez; Imaginário.

IntroduçãoAs montagens televisivas do gênero folhetim, em diversas formas de

apresentação, são sucesso grande número de países e por consequência ocupam a maiorparte da grade de programação dos canais de entretenimento. Porém no Brasil, mais queem qualquer outro país, o papel das telenovelas ultrapassa a categoria deentretenimento, adentrando o dia-a-dia. Quando o capítulo termina, a trama e seuspersonagens continuam presentes, nas conversas do cotidiano, como tema dereportagens, referência no levantamento de questões comportamentais, influenciando amoda e o consumo.

O Brasil possui a segunda maior média de audiência televisiva do planeta e éaqui que as telenovelas possuem uma influência mais ampla e duradoura na escolha deestilo de vida de seus telespectadores. Segundo La Pastina (1994), as telenovelas“tornaram-se muito mais uma parte do tecido da sociedade brasileira. É difícil pensar oBrasil contemporâneo sem pensar em novela.”. Estudos demonstraram a influência dasnovelas desde o planejamento família, escolha do nome dos filhos e divórcio1.

Esta influência é potencializada quando são inseridos na história temas1 Ver Alberto Chong & Eliana La Ferrara, 2009. "Television and Divorce: Evidence from BrazilianNovelas," Journal of the European Economic Association, MIT Press, vol. 7(2-3), pag. 458-468, 04-05. EEliana La Ferrara & Alberto Chong & Suzanne Duryea, 2008. "Soap Operas and Fertility: Evidence fromBrazil," Research Department Publications 4573, Inter-American Development Bank, ResearchDepartment.

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relacionados às questões sociais ou questões de vanguarda, como é o caso das obras deGlória Perez.

As obras desta autora são caracterizadas pelo merchandising social, que podeser definido como o uso da mídia para levar ao grande público informação sobrequestões fora de seu cotidiano ou mesmo de seu conjunto de interesses, levando-os aconstituir opinião e/ou posicionamento em relação a estas questões.

A produção televisiva é um produto sociocultural programado para a aceitaçãopelo maior número possível de pessoas, por isso a diversificação dos personagens,formando grupos distintos de representação de diversas camadas sociais, idades e sexo,chamados de ‘núcleos’ das tramas. Mesmo com essa diversificação a telenovela ainda édirecionada especialmente pra o público feminino, tendo mulheres como protagonistas eo envolvimento romântico das personagens como um dos principais tópicos, quandonão o único, de suas trajetórias.

Este modelo é corroborado pelos clichês presentes nas telenovelas, que, portrás de uma roupagem fantasiosa, busca sua essência na realidade, em prol da aceitaçãodo público, que reconhece esta essência, e considera legitimada pela televisão. Estalegitimação exerce então uma influência poderosa na organização dos sistemas depensamento e formação de opinião e comportamento. Para este estudo foram escolhidastrês obras da novelista: Explode Coração (1995), o Clone (2001) e Caminho das Índias(2009). Nestas três obras as personagens sofrem dramas muito semelhantes. Estãoinseridas em um ambiente de rigoroso patriarcalismo (culturas oriental e meso-oriental),sujeitas à vontade da família, que lhes impõem casamentos arranjados. Vivem umconflito moral, entre a busca da realização amorosa e a atenção aos valores familiares,situação que se complica pela gravidez não planejada.

Neste artigo os objetos de estudo não são somente as representações -analisadas pelo discurso- mas a capacidade deste discurso de amplificar e cristalizar arealidade percebida por meio da análise da recepção e seu impacto no imaginário social.

Análise da recepçãoA maioria da bibliografia pesquisada sobre o tema das representações nas

telenovelas aborda o assunto do ponto de vista de uma análise literária (considerandoliteratura por ser analisado o discurso), fazendo conexões com o contexto da realidade àépoca de suas exibições. Outro ponto bastante estudado dentro deste tema é a influênciadas telenovelas nas opiniões e comportamento de seu público. Ambas as linhas deestudo consideram a análise da recepção de uma forma mais ampla, como oreconhecimento e a concordância do público com o discurso como La Pastina eMcAnany (1994), ou em dados estatísticos comparativos da recepção, como Chong eFerrara (2008), além de dezenas de artigos acerca da representação da figura femininana mídia.

A hipótese levantada neste trabalho se refere à absorção pelo público dafantasia televisiva como uma afirmação do real. O projeto de pesquisa pretendia umapesquisa de opinião presencial, entrevistando telespectadoras diretamente, em paralelocom a pesquisa entre os internautas, para evitar e exclusão do público sem acesso àrede. Porém o que foi percebido durante o processo de pesquisa foi que telenovelas nãosomente promovem valores e costumes, mas renovam os gostos, tendências e opiniões acada oito meses. Quando a novela termina, a mesma mídia de chamadas que a manteve

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na ordem do dia durante o período de exibição, imediatamente passa a cobrir a novatrama, e sem o recurso audiovisual, o público que acompanhou a história, torceu pelosseus personagens e absorveu seus ideais, dificilmente lembra-se dos detalhes dasrepresentações contidas nos diálogos e que expressavam, ainda em um espelho convexo,os valores da sociedade. A pesquisa então se voltou para os dados coletados na internet,o que possibilitou a coleta de maior número de dados sobre a opinião do público etambém uma diversificação maior deste público, podendo inclusive analisar as opiniõesdo público estrangeiro.

Foi realizada análise dos diálogos e representações imagéticas presentes emcenas protagonizadas pelas personagens femininas. Foram utilizadas cenasdisponibilizadas na internet, no site da própria rede Globo, e principalmente no siteYoutube. Posteriormente, foi feita a análise da opinião do público, tomando como fonteos comentários dos próprios usuários que assistiram aos vídeos. Também foi feitaanálise da opinião sobre as telenovelas expressadas pelos usuários nos sites Facebook eOrkut e também dos comentários publicados por leitores de blogs relacionados com ostemas inseridos nas obras estudadas, como o islamismo, hinduísmo, cultura cigana,dança oriental e mesmo blogs e fóruns relacionados a fãs de novela em geral. Estemétodo foi escolhido por possibilitar a observação do direcionamento do interesse dopúblico em relação aos temas abordados nas cenas, ou nos tópicos dos fóruns. Sendosites totalmente interativos, foi possível realizar uma relação entre os temasapresentados e a recepção, de acordo com as manifestações do público. Foramanalisados centenas de comentários, verificando opiniões em relação ao comportamentodas personagens, às culturas exóticas retratadas nas telenovelas e sua relação com arealidade. Estas observações e análises possibilitaram ter uma amostra da influência dastelenovelas no imaginário, individual e coletivo, e a capacidade do transporte desteimaginário para a prática social.

Representação da imagem feminina na telenovelaNas três obras estudadas estereótipos femininos são retratado em partes

dissociadas, apresentando em cada obra cinco personagens que representam aidentidade feminina, no que se refere aos comportamentos e sentimentos a estaatribuídos. As personagens apresentam um comportamento padrão, Em ExplodeCoração, O Clone e caminho das Índias, respectivamente:

Dara, Jade e Maya: A heroína, que busca a realização do amor romântico, epara tanto rompe com as tradições familiares, no entanto, quando se veem presas pelanecessidade à família, usam a mentira e alienação para escaparem das consequências desuas transgressões. Ela representa o espírito feminino instável, impulsivo einconsequente.

Ianca, Latifah e Camila: A jovem fiel às tradições, que aceita de bom gradotodos os limites impostos a seu sexo, em nome da religiosidade, da preservação doscostumes e da harmonia familiar. Esta representa a vitória das tradições, mostrando umamulher feliz e realizada pelo casamento.

Vera, Maysa e Duda: A rival romântica, uma mulher com valores culturaistotalmente diversos aos da heroína, e que teve ligação amorosa com o galã, mas foipreterida. Luta para reconquistá-lo, contando com uma liberdade que a heroína nãopossui, confusa entre a busca da própria felicidade e vingança contra sua rival.

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Representam o vazio existencial na falta de um companheiro

Eugênia. Ranya e Surya: A antagonista. Movida pelo ciúme, quer ocupar olugar da heroína. Dissimulada, usa de intriga, difamação e trapaças para alcançar seuobjetivo. Representam a inveja e o individualismo, a existência feminina como umaconstante competição.

Odaísa, Zoraide e Kochi: A mulher mais velha que consola e aconselha aheroína, por vezes acobertando suas transgressões mesmo discordando destas ações.Representa a compaixão, mas também a fraqueza de caráter.

Soraya, Nazira e Laksmi: A moralista, também uma mulher mais velha, masprotetora dos costumes, e que mantém a heroína constantemente sob suas críticas evigilância. Representa a consolidação dos costumes, a perspectiva futura de umaposição de maior importância, uma recompensa por uma vida virtuosa.

As novelas desempenham um papel na formação do discurso do feminino, edestinado a esse público, focando a lógica do privado, destacando os valores da culturado machismo patriarcal, representando mulheres como seres vulneráveis, destinadas amaternidade (todas as heroínas de telenovela tem filhos), a personalidade histérica eobsessiva, que lutam pelo amor do galã distante e moralmente ambíguo.

Reapresenta-se então o modelo feminino verificado por Thomasseau:

desenha-se, ao longo do século dezenove, um retrato da mulher exemplarsuportando, com toda a coragem, ultrajes e afrontas [...] Belas, bondosas, sensíveis,com uma inesgotável aptidão para sofrer e para chorar [...] Em geral elas superamos homens em devotamento e generosidade (THOMASSEU, 2005, p.43).

A alta audiência feminina2 explica-se pelas tramas conterem como tópicos, oinflame das prioridades tradicionalmente consideradas exclusivamente femininas:sentimentos, maternidade, submissão. Em Explode Coração e O clone, as heroínas serebelam contra os costumes impostos por suas famílias, a princípio porque desejam aliberdade e a adequação ao mundo moderno.

Dara: Eu quero estudar, mãe, tirar meu diploma conquistar meu lugar no mundo.Lola (mãe): Você nunca vai ter o meu apoio. Eu não vou aceitar isso e teu noivotambém não vai aceitar.Dara: Você não entendeu mãe. Não vai ter casamento.(Explode Coração cap.1)

Porém estes desejos são suplantados assim que as heroínas se apaixonam,quando então seus objetivos se tornam a busca da realização do amor idealizado. Nabusca pela liberdade individual, ainda há ponderação dos atos, argumentação com afamília. Mas a partir do momento em que a heroína se apaixona, seu lugar no mundopassa a ser ao lado do homem amado, e a conquista deste lugar o seu único objetivo, e

2 As mulheres adultas representam 50% da audiência de televisão, sendo os outros 50% o público masculino e infantil. As telespectadoras assistem à televisão em média 5 horas por dia. Fonte: IBOPE

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do qual ela depende.

Jade: Vocês me obrigaram a casar eu não queria casar.Said: Então por que casou? Você podia ter dito não... Casou porque ele já tinha tejogado no vento. (O Clone cap.89)Jade: Um homem quando pede para uma mulher se jogar no vento e diz que segura,ele segura. (O Clone, cap.232)

A busca do amor romântico é a único objetivo capaz de fazer a heroína rompercom seus valores morais e religiosos (no caso perdendo a virgindade) e questionar opoder familiar sobre si. O amor e, somente por consequência deste, o sexo, recém-descobertos rouba-lhe a coragem de buscar a independência, pois a formação emanutenção da família tornam-se o lugar de realização do amor, tornando-osindissociáveis (COSTA, 1999).

As personagens Dara, Jade e Maya são direcionadas pela emoção, seus atos derebeldia são impulsivos e não refletidos, não argumentam sobre seu subjugo baseado nasua condição feminina, mas sim buscam uma fuga para os seus próprios problemas, umamudança na sua situação particular, não se reconhecendo como parte de um gênerooprimido e contestando essa opressão, mas sim as consequências que as afetamdiretamente.

Surya por favor, não me entregue. Eu estou perdida se você me entregar. E vocênão vai ganhar muito com isto [...] Porque você odeia tanto porque você tem tantaraiva de mim desde que eu coloquei os pés nesta casa você faz de tudo pra meatingir tudo que está ao seu alcance para colocar os meus sogros e meu maridocontra mim [...].Surya: Você está poluída, poluiu esta casa toda e enganou todo mundo.Maya: Você também está enganando, você não é melhor do que eu.Surya: Eu estou me defendendo [...] Vou recuperar o lugar que você me roubou.(Caminho das Índias cap.189)

Na análise dos diálogos, percebe-se que, apesar de haver empatia em algunsmomentos, não há solidariedade, seja em sentimentos ou ações, entre as personagens,nas manifestações de resistência ou fuga das imposições feitas a estas devido a seu sexo.Em nenhum momento há a identificação de um problema como decorrente de seu papelsexual, nem a culpabilização daqueles que impõe a elas estas condições.

Ao invés disso é demonstrado empenho em justificar estas condições comoparte da preservação de um patrimônio cultural intrínseco (religião e costumes).Paradoxalmente, há um esforço para justificar as transgressões desse sistema de valorese todas as ações posteriores tomadas a fim de ficarem impunes a estas transgressões epela manutenção de situações que as beneficiam, sendo o benefício máximo a realizaçãodo ideal romântico, mas buscando em conjunto a aprovação da família.

O poder feminino representado consiste e se resume ao uso do corpo e dacondição de fêmea para obtenção de concessões materiais e psíquicas, despertando nohomem a libido ou a compaixão, buscando atender às emoções.

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Uma das cenas de O Clone com mais versões e visualizações no site Youtube, éuma cena sem diálogos. A heroína Jade faz uma demonstração de dança oriental, para omarido Said e a rival Maysa. Estes têm a intenção de humilhá-la, colocando a em umasituação de exposição e subserviência. Mas a situação é invertida quando Said percebeque Jade está feliz em exibir-se para Maysa, pois faz uma demonstração de seu poder desedução, usado para conquistar o esposo de Maysa, Lucas. A cena termina com Maysagritando que basta e Jade deixando a sala, rindo. Seu objetivo havia sido alcançado.

Sob um aparente controle de provocar a apreciação, aos impulsos da libido, seudesejo ainda é mediado pela visão utilitarista, que, naturalmente, está longe de sercompatível com verdadeira autonomia.

A sexualidade é representada de forma totalmente desnaturalizada, como arma(para manipular um homem ou intimidar uma rival), ou como entrega total ao amor, esteentão assumindo um papel impeditivo à reflexão, ao bom senso, que permitiriam àmulher manter sua “pureza”.

Maya: Eu já estava muito apaixonada. Eu não conseguia mais dizer não.(Caminho das Índias capítulo 189)

Estas representações remontam a perspectiva de Foucault (1976) , tanto nadefinição da sexualidade, como na inscrição histórica da sexualidade feminina:

[...] um nome que se pode dar a um dispositivo histórico: não a realidadesubjacente, sobre a qual se exerceriam controles difíceis, mas uma granderede de superfície onde a estimulação dos corpos, a intensificação dosprazeres, a incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o reforçodos controles e das resistências se encaixariam uns aos outros, segundoalgumas estratégias de saber e poder. (Foucault,1976:139)

[...] o que pertence por excelência ao homem e falta à mulher; como o que pertenceem comum ao homem e à mulher. mas ainda como o que constitui totalmente ocorpo da mulher, ordenando-o todo às funções de reprodução e perturbando-o semcessar pelos efeitos desta mesma função. (Idem: 201/202).

Esta desnaturalização associa a sexualidade feminina com os sentimentos, masnão necessariamente associa estes com o casamento, que representa uma elevação nostatus da fêmea em relação às demais, a partir do qual deterá o direito dereconhecimento como parceira do homem. Na novela Caminho das Índias, ocorre que oamor a ser buscado é o do próprio marido. O que o diferencia dos maridos das outrastramas é justamente o seu distanciamento emocional, a necessidade de conquistá-lo.

Duda: Ele não te falou? (sobre o relacionamento antes do casamento).Maya: Ele não precisou falar. Nós ainda não estávamos casados. Ele ainda não erameu marido. Ele ainda não era meu.(Caminho das Índias cap.121)

Embora o casamento garanta a mulher uma elevação no status e o

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comprometimento do homem, a sexualidade masculina é dissociada tanto do amor comodo casamento, mostrando a liberdade sexual como algo natural homem.

Eugênia: Você não pode querer controlar tudo desse jeito... O Júlio é um homemcharmoso, meu deus, o que é que você vai fazer? As mulheres olham para oshomens charmosos... E daí? Ele é teu marido. Ele escolheu você, para casar comvocê, relaxa! Vera: Ele tá é me afrontando, Eugênia![...] Desta vez ele vai ouvir! (sai de cena)Eugênia (balançando negativamente a cabeça): Tonta!(Explode Coração cap.1)

A mulher que se atreve a exigir do homem um comportamento sexualsemelhante ao seu, cuja conduta moral tem como principal critério de julgamento ocomportamento sexual (SARTI, 1989:42), é vista como tola e histérica. O homem aindaé uma criatura pública, cuja personalidade e valor seu medidos pelas suas competênciase conquistas, enquanto o valor feminino está arraigado o corpo. Sendo assim o poderconferido a mulher casada é o chamado por Bordieu poder por procuração (BORDIEU,2011:42) se refere ao que é público de seu marido ( nome, posição social, dinheiro).

Lidiane: Eu não acredito que você vai ficar indiferente, que você não vai reagir...Maysa: É claro que eu vou reagir!Lidiane: Quer que eu vá até ele e cumprimente? Pra ele ficar bem sem graça? Euvou!Maysa: Deixa, que eu prefiro me vingar do meu jeito.Lidiane: O que você vai fazer?(Maysa leva a amiga até a frente de uma vitrine e aponta um colar exposto)Maysa: Que tal? É hoje que eu estouro o cartão de crédito dele!Lidiane: Sua louca! (O Clone Cap. 1)

A cena demonstra a dissociação de condição de esposa e mesmo se seussentimentos, do comportamento sexual, cria uma visão feminina da economia de benssimbólicos. Como a mulher é ferida tendo rejeitado o seu único objeto de poder e o queela oferece de mais precioso ao homem, o corpo, ela o fere atingindo o seu mecanismode poder, o dinheiro.

Telenovelas e o imaginário socialGlória Perez define o seu próprio método de trabalho como antropológico.

Refere-se a ele desta forma pelo fato de sair a campo para vivenciar a cultura a serretratada em cada história que escreve. A autora, que é mestre em História pela UFRJ,também defende a televisão como forma de “levar cultura às classes menos favorecidas”assim como usa suas histórias para a divulgação de temas sociais. No entanto tambémdefende a licença artística tanto para retratar as culturas exóticas como parapotencializar o drama nas telenovelas.

Para a autora, a fantasia é inerente ao gênero folhetim. Na pesquisa dasopiniões dos internautas, 60% dos que se manifestaram a esse respeito, concordavamcom os “exageros em nome da arte”, enquanto 40% consideram estas perigoso

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representações fantasiosas perigosas para as “mentes fracas” e chegam a se um“desserviço à população”. Coincidentemente (ou não) estas mesmas porcentagens 60-40apontam, respectivamente, os que não concordam com os comportamentos daspersonagens (liberação sexual e abandono do casamento), e aqueles que consideramaceitável, se for pela realização do amor.

O afastamento da ficção em relação à realidade social deve ser analisado deacordo com informações que apontam as necessidade e aspirações de determinadomomento.

O diálogo entre as obras e a vida nacional também é dificultado pelo fato de,no Brasil, não haver uma cultura popular abrangente e fortemente definida. Por isso apropensão do público brasileiro a tomar como realidade as representações televisivas.Cabe uma analogia aos registros Lacanianos e a relação da TV com o telespectadorconforme coloca Santaela (1999). Sendo a televisão o espelho e o espectador o eu a seformado. O espelho confere a unidade necessária para a confirmação da identidade.

Como ocorre com toda cultura periférica, o público brasileiro tende a olharpara si mesmo como exótico, diferente do que seria a norma de cada fase do períodohistórico. Nos dias atuais, a cultura brasileira já está muito permeada pelas culturas deirradiação tradicionais, europeia e norte-americana. Procura então outra forma dediferenciar-se das normas das culturas de irradiação. Esta diferenciação então podemanifestar-se destacando, no meio sociocultural receptor, aspectos superficiais destacultura periférica, que não necessariamente têm real influência no cotidiano e noregimento social.

Considerando que 80% da audiência televisiva é formado pelas classes C, D eE, cuja principal atividade nas horas livre é assistir televisão, é necessário considerarseu papel como mais importante do que simples entretenimento.

Sendo assim, a televisão tem também uma função pedagógica informal. “Umadas preocupações em relação a essa função é pensar uma forma de como transformarinformação em conhecimento, pois a mídia nos apresenta um mundo difuso e calcadono consumo.” (RODRIGUES, 2006).

Para o telespectador, a representação da realidade na televisão terá forteimpacto na formação de sua opinião, e em se tratando de um ambiente diverso, deve serconsiderado o processo de aculturação por parte próprio telespectador.

Quando o processo de pensamento (a cultura representada) é exposto acontribuições exteriores (valores do autor), pode tomar outra forma quando repensadoem um meio sociocultural inteiramente diverso (do telespectador) daquele que ooriginou.

O pensamento crítico deve ser uma relação de fatos, e esta relação precisa serimaginada e depois verificada. Quando não é elaborada esta relação, o receptor poderásomente supor relações, imaginadas a partir de sua própria experiência, permeadas portradições cuja origem não pode explicar.

Assim se desenvolvem se estabelecem e se renovam as versões estereotipadas,correntes e presentes a ponto de incapacitar os sujeitos ao desenvolvimento destesprocessos de pensamento e ao domínio sobre as informações. A reportagem da Folha deSão Paulo demonstra o alto crédito dado pelas telespectadoras às representações doshomens indianos em Caminho das Índias:

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A partir de 2010, a Embaixada do Brasil em Nova Déli começou a receberdemandas por auxílio financeiro para o retorno das brasileiras, apoio jurídico emcasos de conflitos e registros de casamento indo-brasileiros [...] A popularização doOrkut e do Facebook, em que predominam brasileiros e indianos, e a novela"Caminho das Índias", exibida em 2009 pela Rede Globo, são apontadas peloItamaraty como os catalisadores do fenômeno. "Raj [protagonista da novela, vividopelo ator Rodrigo Lombardi], esse cara é o meu problema. O personagem danovela se materializou no Orkut” - Marcelo Ferraz, diplomata da Divisão deAssuntos Consulares em Brasília.(Folha de São Paulo 11.06 2011)

Nos comentários dos telespectadores nos sites pesquisados, 30%demonstravam encantamento com os valores culturais exóticos apresentados nas tramas,manifestando o desejo de “que a no Brasil fosse assim”, assim como admiração pelaforma do amor romântico representada e do comportamento feminino inerente àquelacultura.

Amo demais essa novela, as danças, a historia do povo árabe. O amor que secultiva dia a dia e não como o nosso que primeiro ama e depois desama dia a dia.Depois que assisti a essa novela, comecei aulas de dança do ventre e estou medescobri nisso. A magia das mulheres, andar coberta e despertar a curiosidade e aimaginação dos homens, ser sensual sem ser vulgar, falar com a dança isso éconquista e sedução, e não andar seminuas por aí, se oferecendo para qualquer um.(Para o site Youtube, sobre a novela O Clone, usuária Kareemah em nove defevereiro de 2011).

Neste comentário observa-se além da admiração pela cultura retratada, acapacidade de absorver os valores representados como reais e transportá-los, portantoaplicação prática. Do total de comentários analisados, 18% relatava a influência dasnovelas em mudanças significativas na vida destes telespectadores, desde a escolha deprofissões até casamentos.

A propensão à aceitação da representação como realidade se reflete também nacomparação dos comentários dos usuários estrangeiros, nos sites Youtube e Facebook.As telenovelas fazem sucesso nos Estados Unidos, outros países da América latina e aténa Rússia, mas os enquanto os comentários dos fãs estrangeiros, em sua quasetotalidade se referiam à trilha sonora, à beleza da história contada, utilizando as palavras‘personagem’ e ‘atuação’, os brasileiros tratam os personagens pelo nome, o descreveme a seus atos como sendo pessoas reais.

As montagens para a ficção televisiva se misturam com a realidade nos olhosde quem vê, de modo que as fronteiras entre eles são pouco visíveis, como Adorno(2007) recorda, referindo-se ao cinema.

O mundo inteiro deve passar pelo filtro da indústria cultural, a velha experiência doespectador, que vê a rua fora da sala como o show em seguida, basta sair, porqueeste só quer reproduzir fielmente o mundo perceptivo de vida cotidiana, tornou-se

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o leitmotiv da produção. As técnicas mais perfeitas e totalmente cinematográficaduplicar objetos empíricos, mais facilmente realizado hoje a ilusão de que o mundofora da sala de projeção é a simples extensão do que é conhecido dentro dele.

Adorno coloca muito bem, citando Tocqueville, no contexto da nova ética,onde a discriminação está disfarçada em distinções fundamentadas, e onde uso opressorda força física se converte um uma censura moral arraigada, o que implica algum tiposegregação.

O discurso da mídia, através de suas imagens, sons, enredos, histórias e narrativas,possui ideologias e significados variados, exercendo a televisão um grande fascínionos telespectadores. As pessoas assistem com regularidade a certos programas eeventos; há fãs das várias séries e estrelas com um grau incrível de informação econhecimento sobre o objeto de sua fascinação; as pessoas realmente modelamcomportamentos, estilos e atitudes pelas imagens da televisão.” WOODWARD(2000, p. 17-18).

A televisão absorve o real, o amplifica cristaliza. Mais do que inserir valores,legitima os valores existentes, dando a eles o aval da “alta cultura”.

Ultrapassa o campo do entretenimento, moldando gostos, sentimentos eatitudes.

Considerações FinaisMesmo na cultura ocidental atual, as mulheres ainda são educadas de forma a

considerar os relacionamentos românticos o norte de sua existência. A busca do amor,através de todas as formas possíveis de agradar ao sexo masculino, ainda prevalecesobre todos os outros aspectos da vida. E busca pela aprovação masculina, antes algoinstitucionalizado, formalizado e abertamente ensinado às mulheres, passou á condiçãode um valor tão absorvido que suas manifestações são tomadas como naturais.

As mulheres tomaram distância da linguagem romântica, aceitaram cada vezmenos sacrificar estudos e carreira no altar do amor, mas seu apego privilegiado aoideal amoroso perdurou, elas continuam maciçamente a sonhar com o grande amor,ainda que fosse fora do casamento.” (LIPOVETSKY, 2000: 28)

Mesmo com uma crescente emancipação feminina no que tange ao aspectomaterial, os próprios hábitos de consumo desta mulher emancipada podem refletir anecessidade interna da realização pessoal somente alcançada pela conquista do amor,gerando um imaginário social do ser feminino. Na forma da abordagem de HenriCartier, a imaginação é a percepção da realidade, é o que as pessoas têm para explicar omundo.

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O imaginário social é o método de construção e definição do que os indivíduospercebem como realidade. Se a sociologia tinha apontado, face ao positivismo, quereal, é sempre algo significativo para um assunto, o imaginário social é o elementoque permite uma inteligibilidade concessão especial e sentido da realidade. (...) Aação coercitiva dos aparelhos ideológicos, dá lugar à realidade de construção deestratégias para os meios de comunicação, através da instrumentalidade doimaginário social. (CARTIER, 2011)

A identidade feminina é representada, seja como a heroína em fuga, a rivalconsumista ou a vilã maléfica que promove intrigas, sempre com o mesmo objetivo deocupar o lugar ao lado de um homem. Reflete-se a aceitação desta identidade, noscomentários pelo pequeno número, apenas 6%, que se manifestaram contrários à formacomo as mulheres eram representadas nas novelas.

Estas representações, por fim, legitimam a condição de dependência, criandoum círculo vicioso do imaginário. Retratando as mulheres como incapazes de realmentesubverter estas condições impostas a seu sexo por um trabalho constante de doutrinação,tendendo, portanto a transgressões que corroboram a imagem historicamente construídadas fêmeas apresentando-a sob uma nova roupagem, que vela esta historicidade e seusefeitos, e contribuindo para sua manutenção.

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Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.250