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Eliel Almeida Soares RETÓRICA NA MÚSICA BRASILEIRA DO SÉCULO XVIII E PRIMÓRDIOS DO XIX Análises de figuras de retórica em dois Ofertórios de André da Silva Gomes Ribeirão Preto Departamento de Música Escola de Comunicação e Artes Universidade de São Paulo 2008

RETORICA NA MUSICA BRASILEIRA DO SÉCULO XVIII E PRIMÓRDIOS DO XIX

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Trabalho de Conclusão de Curso do meu amigo e parceiro de pesquisas em Retórica, Eliel Almeida Soares.

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Eliel Almeida Soares

RETÓRICA NA MÚSICA

BRASILEIRA DO SÉCULO XVIII E

PRIMÓRDIOS DO XIX

Análises de figuras de retórica em dois Ofertórios de André da

Silva Gomes

Ribeirão Preto

Departamento de Música Escola de Comunicação e Artes

Universidade de São Paulo

2008

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Eliel Almeida Soares

RETÓRICA NA MÚSICA

BRASILEIRA DO SÉCULO XVIII E PRIMÓRIDOS DO XIX

Análises de figuras de retórica em dois Ofertórios de André da

Silva Gomes

Trabalho de Conclusão de Curso

apresentado ao Departamento de Música

da Escola de Comunicação e Artes da

Universidade de São Paulo, formulado

sob a orientação do Prof. Dr. Diósnio

Machado Neto, para a Conclusão de

Graduação em Licenciatura em Educação

Artística com habilitação em Música.

CMU-ECA-USP

Ribeirão Preto, 2008

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3

A Deus e aos meus pais por

proporcionar esse momento

impar em minha vida.

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4

AGRADECIMENTOS

Aos meus professores que contribuíram para

minha formação sejam ministrando aulas ou

mesmo dando importantíssimos conselhos,

para meu crescimento acadêmico.

Ronaldo Novaes

Juliano de Oliveira

Meus amigos inseparáveis

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5

RESUMO

Este trabalho tem por objetivo, mostrar a retórica inserida na música

colonial brasileira no século XVIII e inicio do século XIX, primeiramente partindo

dos contextos históricos de cada época, passando pelos importantes

tratadistas e compositores que estudaram e a utilizaram, sua origem,

sistematização e seu ápice no período barroco.

Em síntese, através de análises das partituras do compositor André da

Silva Gomes, mostraremos a utilização de figuras retóricas em seus ofertórios

e que seu conhecimento retórico se alinha ao saber da época.

ABSTRACT

This study intends to show how the elements of rhetoric were inserted

in the colonial Brazilian music of the XVIII century and beginning of

XIX century. It starts with a study of how the rhetoric was inserted

in the historical context of each era, goes through the recollection

of important writers and composers that studied it, and finishes with

an overview of its origin, systematization and climax during the

Baroque period. It also demonstrates, with analytical tools, the use

of rhetoric tropos by André da Silva Gomes in his Ofertório,

concluding that his knowledge of rhetoric follows the major trends of

his time.

PALAVRAS-CHAVE

Retórica; Música Brasileira; André da Silva Gomes; História da Música e

Análise Musical.

Key Words

Rhetoric; Brazilian Music; André da Silva Gomes; Music History and Analysis.

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SUMÁRIO

ABREVIATURAS ................................................................................................ 7

LISTAS DE FIGURAS ........................................................................................ 8

LISTAS DE TABELAS........................................................................................ 8

LISTA DE EXEMPLOS MUSICAIS ................................................................... 8

1. INTRODUÇÃO ........................................................................................ 11

2. NASCIMENTO E EVOLUÇÃO DA RETÓRICA .................................... 13

2.1. A retórica da antiguidade até a Idade Média .............................................. 13

2.1.1. Os Principais autores sobre retórica e suas obras são: ............................. 14

2.1.2. As cinco fases da retórica ....................................................................... 15

2.2. A retórica da Idade Média até a Idade Moderna ......................................... 16

2.3. Retórica e Música ...................................................................................... 18

2.3.1. Música e Afeto ...................................................................................... 20

2.4. Exemplos de figuras de retórica ................................................................. 22

2.4.1. Figuras que afetam a melodia ................................................................. 22

2.4.1.1. Figuras de repetição ........................................................................... 22

2.4.1.2. Figuras Descritivas: Hypotiposis. ....................................................... 30

2.4.2. Figuras que afetam a Harmonia .............................................................. 40

2.4.2.1. Figuras de Dissonância ....................................................................... 40

2.4.3. Figuras que afetam a vários elementos musicais ..................................... 45

2.4.3.1. Por adição .......................................................................................... 45

2.4.3.2. Por rapto ............................................................................................ 48

2.4.3.3. Por troca ou substituição .................................................................... 51

3. RETÓRICA NA MÚSICA DE ANDRÉ DA SILVA GOMES .................. 54

3.1. A arte Retórica em Portugal....................................................................... 54

3.2. André da Silva Gomes ............................................................................... 56

3.3. Análise da retórica em André da Silva Gomes: ofertórios .......................... 59

3.3.1. Ofertório ................................................................................................ 59

3.3.2. Análise retórica ...................................................................................... 62

3.3.2.1. Ofertório da missa do primeiro Domingo da Quaresma ...................... 62

3.3.2.2. Ofertório da missa da Ascensão do Senhor ......................................... 68

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4. Conclusão ................................................................................................. 91

5. Referências Bibliográficas ......................................................................... 94

6. Anexos .................................................................................................... 101

ABREVIATURAS Exemplos: T - Tônica S - Subdominante

D - Dominante Sr - Sub-Dominate Relativa SS - Sub-Dominate da Sub-Dominate gr - Grego

lat - Latim Ed - Edição Adj - Adjetivo S.f - Substantivo Feminino S.m - Substantivo Masculino Vb - Verbo Lóg- Lógica ASG- André da Silva Gomes

Hist- História Filos- Filosofia Var - Variação ed - Edição

Ecles- Eclesiástico Mús- Música (o) fr- Francês org- Organização rel- Relacionado p - Página v- Volume f- Folha

cap- Capitulo

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LISTAS DE FIGURAS Exemplos:

Manuscrito original de André da Silva Gomes p.56 Ofertório de André da Silva Gomes “Domine Jesus Christe” p.59

LISTAS DE TABELAS Exemplos: Tabela 1 - Os principais autores sobre retórica na antiguidade p.14 Tabela 2 - Classificação dos afetos p.21

Tabela 3- Figuras e elementos de retórica no Ofertório da Missa do 1º Domingo da Quaresma p.63 Tabela 4- Locus encontrados no Ofertório da Missa do 1º Domingo da Quaresma p.64

Tabela 5- Celebração da Missa da Ascensão do Senhor e sua divisão p.69 Tabela 6- Figura e elementos de retórica no Ofertório da Missa da Ascensão do Senhor p.71 Tabela 7- Locus encontrados no Ofertório da Missa da Ascenção do

Senhor p.72 Tabela 8- Quadro comparativo entre figuras de retórica na música e literatura encontradas nos dois ofertórios p.87

LISTA DE EXEMPLOS MUSICAIS

Figuras retóricas de repetição

1. Polyptoton e Palilogia......................................................................p.22

2. Epizeuxis............................................................................................p.24

3. Anaphora............................................................................................p.25

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4. Epistrophe...........................................................................................p25 5. Anadiplosis.........................................................................................p26

6. Synonimia...........................................................................................p26

7. Gradatio..............................................................................................p27

8. Paronomasia......................................................................................p28

9. Mimesis..............................................................................................p.29

10. Distributio Recapitulativa................................................................p.29

Figuras descritivas : Hypotiposis

11. Anabasis............................................................................................p.30

12. Catabasis...........................................................................................p.31 13. Circulatio...........................................................................................p.32 14. Fuga Hypotiposis..............................................................................p.34

15. Interrogatio........................................................................................p.34 16. Exclamatio.........................................................................................p.35 17. Ecphonesis........................................................................................p.36 18. Hyperbole...........................................................................................p.37 19. Assimilatio..........................................................................................p.37 20. Pathopoeia..........................................................................................p.39

Figuras que afetam a harmonia (Dissonância) 21. Anticipato Notae.................................................................................p.40 22. Passus Duriusculus...........................................................................p.40 23. Saltus Duriusculus.............................................................................p.41

24. Superrjectio.........................................................................................p.42 25. Syncope...............................................................................................p.43 26. Prolongatio..........................................................................................p.43 27. Parrhesia..............................................................................................p.43 28. Noema..................................................................................................p.44

Figuras que afetam a vários elementos musicais –Por adição

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29. Variatio.................................................................................................p.45 30. Schematoides......................................................................................p.46

31. Paranthesis.........................................................................................p.47 32. Enumeratio..........................................................................................p.47 33. Polisyndeton.......................................................................................p.48

Por Rapto

34. Abruptio...............................................................................................p.48 35. Ellipsis.................................................................................................p.48 36. Aposiopesis.........................................................................................p.49 37. Pausa....................................................................................................p.50

38. Suspiratio.............................................................................................p.51 39. Synhaeresis.........................................................................................p.51

Por Troca ou Substituição 40. Antimetabole.......................................................................................p.51

41. Metabasis.............................................................................................p.52 42. Antitheton............................................................................................p.53

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1. INTRODUÇÃO

Retórica (gr. hretoriké: arte da oratória, de retor: orador) é a disciplina

que tem por objetivo de estudo a produção e analise dos discursos desde a

perspectiva da eloqüência à persuasão, por meio do qual se visa convencer

uma audiência da verdade de algo. Técnica argumentativa, baseada não na

lógica, nem no conhecimento, mas na habilidade em empregar a linguagem e

impressionar favoravelmente os ouvintes. Sua origem remonta ao século V a.C.

e seu desenvolvimento permeia toda vida cultural, educativa, religiosa, social e,

de especial maneira, a atividade artística na cultura ocidental. Sua influência

abrange sobretudo a literatura, mas também se manifesta no teatro, artes

plásticas, arquitetura e na música.

Desde a Grécia Antiga, a música é tida como poderosa e capaz de

influenciar e modificar a natureza do homem e, conseqüentemente, da

sociedade, constituindo-se um dos principais interesses na organização política

do estado grego. Questões relativas aos princípios éticos e estéticos da música

são tratadas por Platão na República e nas Leis. Como se nota, a vinculação

da música a estados emocionais específicos é um fenômeno que se registra

desde os tempos da cultura grega, passando pela Idade Média e Renascença,

no entanto, segundo Cano, “é no Período Barroco que estas preocupações

alcançam algumas das mais refinadas e complexas teorizações da história da

música” (CANO, 2000, p.24).

Atualmente, a retórica musical se constitui num campo complexo e

abrangente. Inúmeras publicações e artigos especializados são editados

anualmente, isso se deve ao fato de que os numerosos tratados publicados

entre 1535 e 1792, estabelecem um elo com o corpus teórico do sistema

retórico-musical, servindo de embasamento às atuais pesquisas da musicologia

contemporânea acerca da poética musical barroca.

Embora haja diversos tratados1 que evidenciam a importância da

retórica no âmbito musical, há pouquíssimas fontes brasileiras sobre o assunto,

o que, por si só, já justifica a elaboração de um trabalho mais sistematizado

1 Joachim Burmeister (1599), Francis Bacon (1627), Joahann Nikolaus Forkel (1777), Johann Christoph Gottsched (1729), Johann David Heinichen (1728), Athanasius Kircher (1650), Johann Mattheson (1721), Johann Adolph Sheibe 1745), Mauritius Vogt (1719), para citar apenas alguns.

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nesta área. A partir das reflexões e levantamentos de Rubén Lopez Cano sobre

Música e Retórica no Barroco, fundamentados neste autor e em diversas

publicações científicas, deu-se início ao grupo de estudos Música e Retórica no Brasil Colonial, sob a coordenação do Prof. Dr. Diósnio Machado Neto,

viabilizando a inserção do estudo retórico-musical na obra dos compositores

brasileiros do período colonial.

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2. NASCIMENTO E EVOLUÇÃO DA RETÓRICA

Quando diz Aristóteles, a tirania foi destruída na Sicília e as questões entre particulares, após um longo intervalo, foram novamente submetidas aos tribunais, pela primeira vez, nesse povo de espírito penetrante e naturalmente inclinado à discussão, viram-se os sicilianos Córax e Tisias dar um método e regras. Antes, ninguém seguia uma rota traçada, nem se submetia a uma teoria e, entretanto, a maioria se exprimia com cuidado e ordem. (Cícero apud PLEBE, 1978, p.1)

2.1. A retórica da antiguidade até a Idade Média

Sua origem remonta ao redor do ano 485 a.C. Os tiranos sicilianos

Hierón e Gelón haviam decretado uma abusiva expropriação das propriedades,

distribuído-as entre seus mercenários. Posteriormente, um movimento

democrático conseguiu derrubar a ditadura. O novo regime se empenhou em

devolver as propriedades a seus antigos donos, porém surgiu um sério

problema: como realizar a restituição dos bens, sendo que, devido aos conflitos

internos, havia confusão e desordem nos antigos títulos de propriedade. A

solução foi instaurar uma espécie de júri popular. A partir desse instante, cada

demandante poderia solicitar a devolução de suas terras, não sendo

necessário a apresentação de documentos, nem sequer testemunhas oficiais,

para convencer as autoridades da legitimidade de seu crédito. Embasavam-se

unicamente na argumentação, ou seja, na palavra. Desta maneira, a retórica,

desde seu nascimento esteve ligada a questões judiciárias. (CANO, 2000.p.19)

A descoberta do poder da palavra e da importância de valer-se dela com

desenvoltura e precisão, constituiu uma deslumbrante revelação. Surgiram

assim oradores profissionais que, cobrando somas exorbitantes, se dedicaram

a ensinar aos neófitos os mistérios de sua arte. Empédocles de Agrigento,

juntamente com seu discípulo Córax de Siracusa, Górgias, o famoso sofista2

2 [Do gr. sophistés, 'sábio', posteriormente 'impostor', pelo lat. sufixa.] Cada um dos personagens contemporâneos de Sócrates (v. socratismo) que chamavam a si a profissão de ensinar a sabedoria e a habilidade, e entre os quais se destacam Protágoras (480-410 a.C.), que afirmava ser o homem a medida de todas as coisas, e Górgias (485-380 a.C.), que atribuía grande importância à linguagem. Os sofistas desenvolveram especialmente a retórica, a eloqüência e a gramática.

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questionado por Sócrates e Tisias, estão entre os primeiros mestres dessa

antiqüíssima disciplina.

Córax e Tisias defendiam uma retórica cientifica baseada na

demonstração técnica do verossímil. Outra escola contemporânea praticava e

teorizava uma retórica não cientifica, mas pitagórica, fundada na sedução

irracional que a palavra, sabiamente usada, exerceria sobre a alma dos

ouvintes. Esta última corrente retórica liga-se estreitamente ao mundo

pitagórico. Nas raízes desta corrente “do irracional” estão os denominados

“discursos de Pitágoras”, cujas características são:

1. O propósito de usar estilos e argumentos diferentes conforme os

diferentes ouvintes;

2. O emprego constante da figura retórica da antítese.

Para Pitágoras, “o belo participa do feio e o justo do injusto” e, portanto,

“esta é a razão pela qual o discurso toma a sua direção ora em um ora em

outro sentido” (PLEBE, 1978, p.4). Na segunda característica dos discursos,

tem-se o emprego da antítese e a especial atenção que lhe é dirigida. Por

exemplo, para mostrar às crianças o acontecimento é mais apreciado aquilo

que se segue: contrapõe-se o oriente ao caso a aurora à noite; o principio ao

fim; o nascimento à morte. Para exortá-los à virtude contrapõem-se os bons

resultados de quem é bem educado aos maus resultados de quem não é etc.

2.1.1. Os Principais autores sobre retórica e suas obras são:

Tabela-01

Aristóteles (384-322 a.C.)

Cícero (106- 43 a.C.)

Anônimo (Contemporâneo de Cícero)

Quintiliano (35- 96 d.C)

Poética. De Intentione. Rethorica Ad

Herennium.

Institutio

Oratória.

Retórica. Oratore.

de Optimo Genere.

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Oratorum.

Partitiones.

Oradorie. Orador e Tópica.

Vejamos o que estes teóricos dizem sobre retórica:

Aristóteles: “É a arte de extrair de todo tema o grau de persuasão que este se

encerra”;

Cícero descreve da seguinte maneira: “O bom orador é aquele que tem a

habilidade de mover os afetos de quem os escuta, delectare, docere, et

movere3”.

Quintiliano: “É a arte do bem dizer, considerando que não há bem dizer sem

bem pensar. (CANO, 2000, ibidem, p.21)

2.1.2. As cinco fases da retórica

Para melhor compreensão do funcionamento da retórica e de sua

sistematização, com o passar dos tempos instituiu-se o que conhecemos hoje

como as cinco fases da retórica, que é assim distribuída:

1. Inventio – Descobrimento ou invenção das idéias e argumentos que

sustentarão o discurso e sua tese.

2. Dispositio - Distribuição ou arranjo das idéias e argumentos encontrados

no Inventio.

3. Elocutio – Elocução do discurso, ou seja, base da organização do

discurso; descoberta da expressão para cada idéia, e que inclui o estudo

das figuras ou tropos 4; onde as regras estilísticas são ensinadas.

3Delectare (Deslumbrar), Docere (Ensinar, fazer e aprender), Movere (Mover) 4 Tropo [Do gr. trópos, 'desvio', pelo lat. tropu.] É o emprego da palavra ou expressão em sentido figurado, na música medieval, era empregado na ampliação de um canto litúrgico de formação melismática, mediante acréscimos ou substituições. A primeira manifestação dramática da Idade Média, e que se constituía de pequeno recitativo ou diálogo inserido na liturgia da missa, donde se originaram os dramas litúrgicos (v. drama litúrgico).

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4. Memória - Mecanismos e processos para memorizar o discurso, por

extensão, o modo operativo de cada uma das fases retóricas.

5. Pronuntiatio – Realização do discurso ante o público, onde são

revisados os princípios fonéticos e gestuais que se devem observar

durante a execução pública.

Há de se ressaltar, ainda, que os teóricos da retórica dedicam também

grandes espaços ao estudo da origem e funcionamento dos afetos. Despertar,

mover e controlar as paixões nos ouvintes é uma tarefa fundamental no

trabalho persuasivo do orador.

2.2. A retórica da Idade Média até a Idade Moderna

A retórica, como doutrina acompanhou e serviu a gregos e romanos em

suas expansões territoriais. Com o domínio da cultura clássica na Antiguidade,

novos tratamentos e rumos foram aprimorando o discurso e argumentação,

entre os quais está o texto poético. Assim, o fenômeno da poesia converteu a

retórica em criação literária, e essa para as demais artes.

Já no início da Idade Média, Santo Agostinho (354-430) impulsionou

uma releitura cristã de Platão, Aristóteles e Cícero. Mas adiante, São Gregório

de Naciazo (330-390), Cassidoro (480? -575?) e finalmente Beda, o Venerável

(673-735) solidificaram a teoria da retórica medieval. Ao interpretar as

escrituras se descobriu que a Bíblia estava repleta de figuras retóricas. Assim a

retórica se converteu em um instrumento capital para futuras evangelizações

ao mesmo tempo em que ampliam o campo de ação a análises e interpretação

de textos já existentes. (CANO, 2000, p.23)

Outro fator de transformação surgiu com a instituição da Universidade. O

saber retórico se tornou publico. Neste momento a disciplina foi colocada ao

lado da gramática e da dialética formando assim o TRIVIUM que junto com o

QUADRIVIUM5, constituiu a base acadêmica da educação universitária durante

aproximadamente dez séculos. Assim a retórica deixou de ser uma disciplina

5 Na Idade Média, nome dado à divisão das artes liberais, a qual abrangia a gramática, a retórica e a dialética (Trivium). Conjunto das quatro disciplinas matemáticas, a saber: aritmética, geometria, música e astronomia (Quadrivium).

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hermética reservada só para alguns interessados e passou a ser um pilar da

educação.

Entre o florescimento da Idade Média até o Renascimento a retórica foi a

base da articulação da Escolástica6, através desta a filosofia continua ligada à

religião, uma vez que são as questões teológicas ou suscitam a discussão

filosófica.

Com o desenvolvimento da cultura humanista do Renascimento, desde

sempre aristocrática, várias disciplinas clássicas foram reguladoras, entre elas

a oratória e a poética. Com a primeira ressurgiu a retórica como principio

construtor do discurso falado. Com a segunda reapareceu os princípios

criadores do texto poético. Nikolaus Listemis foi o primeiro teórico musical a

introduzir um conceito de retórica musical em seu tratado Música (1537). Já na

época da Reforma e Contra-Reforma, o cristianismo revitalizou a retórica como

instrumento primordial da eloqüência. Segundo Luis Morales:

A Contra-Reforma surgiu como defesa contra o Luteranismo, não só para rechaçá-lo mais também para uma alternativa para a grande massa, sem falar da manifestação contra a pressão material e psíquica da igreja e da aristocracia. Já a arte Barroca foi um meio de persuasão da igreja para reconverter a massa. Os Jesuítas foram os encarregados de tal tarefa. (Morales, 1990, apud CANO, 2.000, p.25).

E assim, pleno desse caráter comunicativo forjado nos instrumentos

retóricos, o espírito persuasivo que se pretendeu imprimir na arte Barroca

requereu um profundo conhecimento da natureza e o funcionamento dos

afetos e paixões da alma. Uma vez mais, a retórica constituiu-se na disciplina

que podia oferecer um conhecimento pleno e mais ou menos sistematizado a

este respeito. Este fenômeno, ligado a forte tradição das poéticas artísticas

iniciadas no século XVI, foi inevitável para que princípios e mecanismos

próprios da retórica fossem assimilados pela arte. Efetivamente, se um dos

objetivos da arte barroca era a persuasão, os artistas aspiravam imprimir em

suas obras a eloqüência e o mover dos afetos dos próprios oradores. Nikolaus

6 Conjuntos de doutrinas filosóficas e teológicas desenvolvidas em escolas eclesiásticas e universidades da Europa. Caracteriza-se pela tentativa de conciliar a fé cristã com a razão, representada pelos princípios da filosofia clássica grega, em especial os ensinamentos de Platão e Aristóteles. Desenvolve-se a partir da filosofia patristica6, que faz a primeira aproximação entre o cristianismo e uma forma racional de organizar a fé e seus princípios, baseada no platonismo.

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Harnoncourt afirma: “a retórica, como um todo e sua complexa termologia era

uma disciplina ensinada em todas as escolas e formada, em parte, igual à

música e cultura geral” (apud CANO, 2000, p.27)

2.3. Retórica e Música

Johann Sebastian Bach conhece de uma forma tão completa o papel e as portas da retórica e à hora de compor música que não só é um prazer escutar ou falar das similitudes e concordâncias entre os dois, sendo que resulta admirável observar a habilidade com que aplica estes princípios em suas obras. Birnbaum (amigo intimo de Bach apud CANO, 2000, p.99).

Na história da civilização ocidental, a música foi durante considerável

tempo vocal e ligada às palavras. As relações entre retórica e música foram

assim, e desde a Antiguidade, bastante estreitas. No Barroco essa relação

chegou a um ponto sofisticado de aplicação. Aqui as influências dos princípios

básicos da retórica afetaram profundamente os elementos mais íntimos da

linguagem musical. Porém, as inter-relações entre música e as artes (artes

dicendi), gramática, retórica e dialética são ao mesmo tempo óbvias e confusas

para compreendê-las. Os compositores eram influenciados por doutrinas

retóricas que governavam a adequação dos textos e da música e também

depois do crescimento da música instrumental independente, os princípios

retóricos continuaram a ser utilizados por algum tempo não só na música vocal

mais também na música instrumental. A partir do principio do século XIX, os

músicos e estudiosos “modernos” não estavam tão interessados nas disciplinas

retóricas.

Feita essa introdução, é necessário ainda reiterar em parte, e

acrescentar na área musical, que todos os conceitos musicais relacionados

com a retórica procedem de uma extensa literatura sobre oratória e retórica dos

antigos escritores gregos e romanos, especialmente Aristóteles, Cícero e

Quintiliano. O redescobrimento em 1416 do Institutuio Oratória proporcionou

uma das fontes primarias sobre o qual se baseou a nascente união entre

retórica e música no século XVI.

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Quintiliano, como anteriormente Aristóteles, havia destacado as

similitudes entre a música e a oratória. O propósito de sua obra e de todos os

outros estudos da oratória desde a antiguidade havia sido mesmo: instruir o

orador sobre os meios para controlar e dirigir as respostas emocionais de sua

audiência, ou, em que linguagem da retórica clássica e também de todos os

tratados musicais posteriores, capacitar o orador (é decidir, sobre o compositor

e interprete) para mover os “afetos” (as emoções) de seus ouvintes.

Em 1563, em um manuscrito intitulado Praecepta music peticae de

Gallus Dressler (1533 – 158?) desenvolveu uma forma de música que iria

tomar as divisões em um discurso Exordium (introdução Ouverture), médio e

finis. Um regime semelhante aparece no tratado Burmeister de 1606. Em

ambos escritos a terminologia retórica é levado ao ponto de definir a estrutura

de uma composição, uma abordagem que permanecerá válida até bem dentro

do século XVIII. (CANO, 2000, p.39).

Em 1739, na sua Vollkommene Capellmeister, Johann Mattheson (1681

– 1764) deu um esboço de composição musical completamente organizada e

racional, modelado em partes da teoria com a retórica em causa e encontrar

argumentos para apresentar um discurso de forma coerente. Podemos

observar que Mattherson utiliza-se das cinco fases da retórica, seguindo os

cânones clássicos, porém acrescenta partes novas, fazendo assim, fazendo

assim, uma ligação entre o discurso e a música:

1. Inventio- ou invenção de idéias, abrangendo o ato de criação e de recolha

fundamentos expostos, idéias musicais, etc.;

2. Dispositio- Atual estágio das idéias em seis partes do discurso, para o

próprio processo de composição, formulário;

3. Decoratio - Elaboração ou decoração de cada idéia, para o

desenvolvimento de cada item e da sua ornamentação também chamado

elaboratio ou elocutio por outros autores;

4. Pronuntatio- Apresentação de expressão ou de ação, para a interpretação

em frente ao público.

A estrutura de Dressler (Exordium, médio e finis) foi apenas uma versão

simplificada do mais usual divisão em seis partes do dispositio. Porém os

tratados retóricos clássicos, em Mattherson constitui-se desta maneira:

1. Exordium-Inicio do discurso;

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20

2. Narratio- Declaração dos fatos ou dados;

3. Divisio – ou Propositio- Exemplificação e defesa a perspectiva do orador;

4. Confirmatio- Provas para confirmar o que querem defender;

5. Confutatio- Refutação contra as provas contrárias;

6. Perotatio- Conclusão.

2.3.1. Música e Afeto

Um músico não pode comover aos demais a menos que também este se comova. Necessariamente deve sentir todos os afetos que desejar despertar ao ouvinte”. (Carl Phillip Emanuel Bach - Apud –CANO, 2000, p.44)

A vinculação da música a estados emocionais específicos é um

fenômeno que se registra desde os tempos da cultura grega. No entanto é no

Barroco onde acontece a maior expansão e detalhamento, haja vista as

grandes teorizações, que foram de suma importância para o desenvolvimento

das figuras de retórica inseridas na música.

Desde o principio, a teoria das paixões ou afetos foi parte integral da

música barroca, a qual tinha como objetivo transmitir tal mover aos ouvintes. O

compositor barroco planejava o conteúdo afetivo da cada obra, cada seção ou

movimento da mesma e do mesmo modo esperava uma resposta de sua

audição baseada na apresentação racional do significado afetivo de sua

música. (Buelow 1980 apud Ibidem, p.44)

Descartes, Bacon, Leibitz, Spinoza e Hulme, foram filósofos que

abordaram o assunto dos afetos. René Descartes, por exemplo, em seu

tratado Les Passions de I`ame (1649) trouxe uma perspectiva retórica para os

músicos e artistas do período. Nesta obra o filosofo francês retoma muita das

tradições antigas do estudo deste campo. Ele define as paixões da alma como

“as percepções dos sentimentos, ou das emoções” da alma, que se referem

particularmente e ela, que são causadas, sustentadas e fortificadas por um

movimento dos espíritos (CANO, 2000, p.47) Estes espíritos a qual se refere

Descartes são os espíritos animais7.

7 Os espíritos animais são as partes mais liberais do sangue. Os movimentos dos espíritos animais provocam as reações corporais características que acompanham cada paixão e tipo de movimento que corresponde uma paixão.

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21

O ódio para Descartes se origina quando um individuo persegue um

objetivo que causa aversão e seus espíritos animais conduzem imediatamente

aos músculos do estomago e do intestino, assim há um impedimento onde os

alimentos não se misturam com o sangue. A alegria estimula mais os nervos

pelos espíritos animais que estão em torno dos orifícios do coração, há maior

volume nas artérias do coração. Já na tristeza se encontram grandes

abundâncias de sangue no coração. No desejo há uma grande força que pode

controlar o celebro que é à vontade. Em síntese, para Descartes, o movimento

dos espíritos animais, é uma relação entre nossa alma e corpo (que gera os

afetos.

Para Descartes “nenhum sujeito vai mais imediatamente contra nossa

alma do que o corpo a qual está unida, como conseqüência, devemos pensar

que ela é paixão, é geralmente uma ação”. (CANO, ibidem, p.51). Esta

identidade alma-corpo expressada em termos de paixão-ação ou afeto-efeito é

um principio reitor para a descrição musical dos afetos. Segundo o filósofo,

teólogo e teórico musical francês Marin Mersene (1588 – 1648) em um texto de

1636 enunciou que quando a alma se vê afetada por uma paixão produz dois

tipos distintos de movimentos de espíritos animais: o fluxo e refluxo. O primeiro

move os afetos, o coração, alegria, já o segundo concentração, tristeza, dor. Classificação dos afetos

LAETITIA: Causa agrado, prazer, amor, devoção, esperteza, confiança,

alegria, atenção, orgulho, etc.

TRISTITIA: Desagrado, desprazer, ódio, aversão, susto, decepção,

indignação, humildade.

DESEO: Crueldade, temor, cortesia, ambição, lascívia.

Já segundo David Hulme (CANO, 2000, p.57), em seu tratado A

Natureza Humana (1739), existem somente dois tipos de paixões:

Tabela -02

As diretas As indiretas

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22

Nascem imediatamente do bem ou do mal, prazer ou dor, desejo, pena, alegria, esperança, medo, segurança, piedade, malicia, generosidade.

Produzem as mesmas ou mesmos princípios, porém tem combinação com outras qualidades: orgulho, humildade, ambição, vaidade, amor e ódio.

O princípio básico e fundamental na representação musical dos afetos

na música reside na imitação. Temos como elementos suscetíveis à

representação do afeto o desenho melódico, escalas, ritmo, estrutura

harmônica, tempo, tonalidade, forma e estilo. Para Marin Mersene (1636), só

acontece uma correta expressão na música se os acentos musicais

expressarem ou imitarem o fluxo do sangue e o espírito com refluxos. A

representação musical deste afeto partirá, do principio da imitação analógica e

efeitos corporais. Temos três níveis de intensidade para este afeto: o ritmo, a

melodia e a velocidade. Para Athanasius Kircher (1650), “música é o som que

possui força natural como uma corda da alma que vibra”. Já Coliisani acredita

que a música não pode comover a qualquer sujeito senão aquele cujo humor

natural seja conforme a música. (CANO, 2000, p.64 e 65)

2.4. Exemplos de figuras de retórica

2.4.1. Figuras que afetam a melodia

As figuras que afetam diretamente a melodia podem ser classificá-las

em: figuras de repetição e figuras descritivas.

2.4.1.1. Figuras de repetição

Polyptoton e Palilogia (Figuras que afetam a harmonia por

repetição)

Estas figuras estão na música “Num komm, der Heider Heiland” de

Heinrich Schütz. Nesse trecho musical podemos observar a utilização de três

figuras retóricas, porém, vamos apresentar somente sobre as Polyptoton e

Palillogia.

Page 23: RETORICA NA MUSICA BRASILEIRA DO SÉCULO XVIII E PRIMÓRDIOS DO XIX

23

Polyptoton- É a repetição de um mesmo fragmento musical, em outra

voz.

Palillogia – É quando em uma repetição o fragmento repetido aparece

sem nenhuma modificação com respeito ao original.

Quarto movimento do Magnificat de Johann Sebastian Bach, onde também aparece a figura do

polyptoton.

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24

Cantata nº. 65 de Johann Sebastian Bach

“O thou that tel lest good tidings do Oratório”; “O Messias” de George Friedrich Haendel

Epizeuxis

É uma repetição imediata de um fragmento musical dentro da mesma

unidade. Segundo Peacham (1593) a epizeuxis, ao reiterar de forma imediata,

gera uma tensão veemente que impacta ao ouvinte. (CANO, ibidem, p.121)

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25

Domine Deus, Agnus Dei do Glória RV 589 de Antonio Vivaldi

Anaphora

É a repetição do mesmo fragmento musical no inicio de diversas unidades. Segundo Kircher (1650), esta figura é: “utilizada freqüentemente para

expressar as paixões mais violentas, crueldades, entre outras”. (CANO, 2000,

p.126)

“Num komm, der Heider Heiland” de Heinrich Schütz.

Tocata e Fuga em ré menor BWV 565 de Johann Sebastian Bach

Epistrophe

É a repetição do mesmo fragmento musical ao final de diversas

unidades.

Segundo Kircher (1650): “Esta figura afirma ou nega uma coisa com

muita determinação, até mesmo pode ser utilizada para suplica”. (CANO, 2000,

p.127)

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26

Sonata para Flauta em Lá menor de Carl Philipp Emanuel Bach

Anadiplosis

Esta figura se repete no mesmo fragmento musical que encerra uma

unidade e no inicio da seguinte.

Vogt Mauritius, Conclave da Grande Arte da música, Praga, 1719

Tocata e Fuga em Ré menor de Johann Sebastian Bach

Synonimia

É a repetição de um fragmento musical transportado a outro nível.

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“Ich Liege und Schlafe” de Heinrich Schütz (1636)

Prelúdio e Fuga nº. 5 BWV 848 em Ré maior de Johann Sebastian Bach

Gradatio

É a repetição que ascendente ou descendente, por graus conjuntos em

forma de seqüência, de um mesmo fragmento musical.

Para Nucius (1613) “Esta figura tem grande efeito sobre tudo no final de

uma unidade quando se que surpreender aquele que espera uma conclusão”.

(CANO, ibidem, p.136)

“O thou that tel lest good tidings”; do Oratório “O Messias” de George Friedrich Haendel

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Wir eilen mit schachen doch emsigen Schritten; Cantata 76 Jesu der du meine Sede de Johann

Sebastian Bach

Domine Deus, Agnus Dei do Glória RV589 de Antonio Vivaldi

Tocata e Fuga em Ré menor de Johann Sebastian Bach

Paronomasia

É a repetição de um fragmento musical com uma forte adição ou

variação. Esta, em ocasiões, consiste em desenvolver alguns de seus

elementos.

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29

“Num komm, der Heider Heiland” de Heinrich Schütz.

“Exaudi-me”, Cento concerti ecclesiastici 1602 de Ludovico Viadana

Mimesis

É a repetição de um fragmento musical em voz superior, por exemplo,

em uma voz feminina.

“O thou that tel lest good tidings”; do Oratório “O Messias” de George Friedrich Haendel

Prelúdio e Fuga nº. 5 BWV 848 em Ré Maior de Johann Sebastian Bach

Distributio Recapitulativa

É uma repetição breve, a maneira de sinopses, de fragmentos musicais

expostos ou desenvolvidos anteriormente.

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30

“O thou that tel lest good tidings”; do Oratório “O Messias” de George Friedrich Haendel

2.4.1.2. Figuras Descritivas: Hypotiposis.

A descrição de conceitos extra musicais e pessoais é conhecida dentro

do sistema da retórica musical como Hypotiposis.

Joachin Burmeister define assim:

“Hypotiposis é interpretar um texto de modo que as coisas sem vida neste contidas se apresentem animadas”. (1599) [..] “Ornamento mediante a qual um texto vem exposto de modo que as coisas privadas da alma neste são contidas de vida”. (1606) (CANO, 2000, p.147)

As características de um elemento musical como: desenho melódico,

escalas, ritmo, estrutura harmônica, tonalidade, notação, forma, cor

instrumental, estilo, figuras retórico musicais, etc.- representam imitativamente

alguma característica desse conceito descritivo.

Anabasis Linha melódica ascendente.

Para Vogt, a figura se apresenta em palavra como: “Ascendit Caelum”.

Já Kircher, estabelece essa figura com a expressão de exaltação, ascensão ou

coisas semelhantes. (CANO, ibidem, p.152)

Cantata nº. 31- “Der Hinmel lacht, die Erde jubilieret” de Johann Sebastian Bach

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31

“O thou that tel lest good tidings”; do Oratório “O Messias” de George Friedrich Haendel

Recitativo e Ária da Cantata Acadêmica Heroe, egregio, douto, peregrino (Anônimo, Salvador,

1759).

Prelúdio e Fuga nº. 5 BWV 848 em Ré maior de Johann Sebastian Bach

Catabasis

Linha melódica descendente.

Segundo Vogt, esta figura aparece em textos como: “Descendit ad

Ínferos”. Para Kircher, esta figura expressa sentimento de inferioridade,

humilhação no qual resulta expressar situações deprimentes.

“Knirscht das Sündenherz entzwei”, da “Paixão Segundo São Mateus” de Johann Sebastian Bach

Page 32: RETORICA NA MUSICA BRASILEIRA DO SÉCULO XVIII E PRIMÓRDIOS DO XIX

32

Tocata e Fuga BWV 565 em Ré menor de Johann Sebastian Bach

“O thou that tel lest good tidings”; do Oratório “O Messias” de George Friedrich Haendel

Domine Deus, Agnus Dei do Glória RV589 de Antonio Vivaldi

Circulatio

Linha melódica que oscila ao redor de outra nota.

Kircher afirma: “Esta figura serve para as palavras que expressão

circurlaridade” (CANO, 2000, p.153).

Page 33: RETORICA NA MUSICA BRASILEIRA DO SÉCULO XVIII E PRIMÓRDIOS DO XIX

33

Cantata nº. 131 “Aus der Tiefe rufe ich, Herr, zu dir” de Johann Sebastian Bach

“O thou that tel lest good tidings”; do Oratório “O Messias” de George Friedrich Haendel

Giga da Suíte Francesa V - Sol Maior, BWV 816 de Johann Sebastian Bach

Prelúdio e Fuga n°.5 em Ré Maior BWV 848 de Johann Sebastian Bach

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Fuga Hypotiposis Linha melódica ascendente ou descendente, rápida, ligeira e de breve

duração.

Segundo Kirker “A figura é empregada nas palavras que indicam uma

frase fugada, igualmente serve para indicar ações sucessivas”. (CANO, 2000,

p.153)

Prelúdio e Fuga nº. 5 em ré Maior BWV 848 de Johann Sebastian Bach

Interrogatio

Esta interrogação musical se realiza por três meios:

Ascendendo a nota final de uma frase, com freqüência, em uma

segunda maior,

Por meio de uma cadencia da dominante,

Com uma cadencia frigia.

Ela é empregada para expressar musicalmente o sentido de uma

pergunta. Aparece na música vocal, quando o texto assim a requer, também

pode aparecer em músicas instrumentais.

Prelúdio e Fuga em Ré Maior nº. 5 BWV 848 de Johann Sebastian Bach

Page 35: RETORICA NA MUSICA BRASILEIRA DO SÉCULO XVIII E PRIMÓRDIOS DO XIX

35

Paixão Segundo São Mateus de Heinrich Schütz

Exclamatio É um salto melódico inesperado, ascendente ou descendente superior a

uma terça.

Para Sheibe, o alegre se expressa com saltos conssonantes e o

doloroso com saltos dissonantes. (CANO, 2000, p.155)

Tocata e Fuga em Ré menor BWV 565 de Johann Sebastian Bach

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36

“O thou that tel lest good tidings”; do Oratório “O Messias” de George Friedrich Haendel

Ária “Lascia ch´io pianga” da Ópera Rinaldo de George Friedrich Haendel

Ecphonesis

São exclamações que na música vocal se dão em textos, por exemplo,

”o”, “oh dor”.

“Combatimento de Tracredi et Clorinda”: Madrigal Guerrieri et Amorosi (1638) de Cláudio

Monteverdi

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37

Hyperbole É um fragmento que sustenta o limite superior normal do âmbito de uma

voz. Tem muita afinidade com a figura literária: exageração Esta tem muita

afinidade com o sentido da figura literária: exageração.

U.Kirkerndale (1980), interpreta a Hyperbole como uma constante do

baixo de um cânone. (CANO, ibidem, p.157)

Canon a 2 Per Augementationem Da Oferenda Musical BWV 1079 de Johann Sebastian Bach

Assimilatio

É a simulação que um instrumento realiza, a partir de outro.8

8 Podemos observar que a simulação ocorre nas duas vozes superiores a do violino principal para o primeiro violino.

Page 38: RETORICA NA MUSICA BRASILEIRA DO SÉCULO XVIII E PRIMÓRDIOS DO XIX

38

As Quatro Estações de Antônio Vivaldi

Page 39: RETORICA NA MUSICA BRASILEIRA DO SÉCULO XVIII E PRIMÓRDIOS DO XIX

39

Pathopoeia

Nome genérico que recebem aquelas figuras de dissonâncias que se

aplicam nas partes onde o texto da música vocal denota os afetos mais

intensos. Ocorre, em geral, durante a Confirmatio.

Honkins estabelece que a Pathopoeia se utiliza como um fino recurso

para admirar ao ouvinte e o prepará-lo quando houver harmonia estranha,

expressada pelas dissonâncias. (CANO, 2000, p.162)

Variações de Goldberg nº. 15 BWV 988 de Johann Sebastian Bach

Page 40: RETORICA NA MUSICA BRASILEIRA DO SÉCULO XVIII E PRIMÓRDIOS DO XIX

40

2.4.2. Figuras que afetam a Harmonia

2.4.2.1. Figuras de Dissonância

Desde sempre a dissonância tem sido considerada com um fator de

notáveis qualidades expressivas. Durante o período barroco, a dissonância era

vista como um dos recursos retóricos mais eficazes.

Para a retórica musical, a dissonância é um fator que alerta a correta

disposição sintática da música, em busca de um efeito determinado. Uma

dissonância requer, por tanto, que o interprete a execute de um modo

particular; de um modo em que sua acentuação, duração e articulação

contrastem com os outros elementos considerados como corretos. (CANO,

2000, p.164)

Anticipato Notae

É uma dissonância forte ocasionada por uma ou várias notas que

pertencem à estrutura harmônica seguinte.

“O quam pilchara es” de Heinrich Schütz

Passus Duriusculus

Dissonância criada por movimento de uma voz por grau conjunto que

forma um intervalo melódico de segunda, demasiado longo ou curto para a

escala.

Prelúdio e Fuga nº. 10 em Mi menor BWV 855 de Johann Sebastian Bach

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Trecho da Paixão segundo São Mateus “Gerne will ich” de Johann Sebastian Bach

Variações de Goldberg nº. 25 BWV 988 de Johann Sebastian Bach

Saltus Duriusculus

É um salto melódico igual ou superior a uma sexta.

É um salto que forma um intervalo melódico dissonante

Em algumas ocasiões o salto de sétima diminuta era vinculado aos

afetos determinados: quando era ascendente se considerava como doloroso;

quando descendente era interpretado como lamentação ou inferioridade.

(JACOBSON 1980 apud- CANO, 2000, p.166)

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42

Domine Deus, Agnus Dei do Glória RV 589 de Antonio Vivaldi

Cantata nº. 1 “Wie schön leuchet der Morgensten” de Johann Sebastian Bach

Superjectio

É quando uma nota conssonante ou dissonante se acentua por meio da

adição da nota imediata superior.

Musicalisches Lexicon oder Musicalische Bibliothec; Leipzig, Johann Gottfried Walther, 1732

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43

Syncope É um retardo, ou seja, uma nota introduzida como consonância dentro

de um acorde, se transformará em dissonância ao ligar-se ou repetir-se no

acorde seguinte.

Variações Goldberg nº. 6 BWV 988 de Johann Sebastian Bach

Prolongatio

É a prolongação considerável do valor normal de uma dissonância.

Christoph Bernhard; Tradutatus Compositionis Augmentatus (Buelow, 1980 apud CANO, 2000,

p.226).

Parrhesia

São duas vozes que aparecem fortes e com dissonâncias, como

conseqüência do movimento natural da linha melódica de cada uma delas. Esta

figura é utilizada para atenuar uma dissonância.

Page 44: RETORICA NA MUSICA BRASILEIRA DO SÉCULO XVIII E PRIMÓRDIOS DO XIX

44

Variações Goldberg nº. 6 BWV 988 de Johann Sebastian Bach

Noema

Acontece quando um acorde consonante e suave se introduz em um

contexto polifônico, o qual contrasta notavelmente.

Segundo Burmeister (1599) “O Noema produz um efeito que provoca

consonâncias doces e suaves, agradáveis ao ouvido”. (CANO, ibidem, p.165)

Tocata e Fuga em Ré menor BWV 565 de Johann Sebastian Bach

Temos outros tipos de figuras variadas da Noema como:

1 Analepsis (Repetição imediata de um Noema)

2 Mimesis Noema (Repetição imediata e alterada de um

Noema)

3 Anadiplosis Noema (Repetição imediata de uma mimesis

Noema)

4 Anaploce (É quando o coro repete um Noema)

Page 45: RETORICA NA MUSICA BRASILEIRA DO SÉCULO XVIII E PRIMÓRDIOS DO XIX

45

Domine Deus, Agnus Dei do Glória RV 589 de Antonio Vivaldi

2.4.3. Figuras que afetam a vários elementos musicais

As figuras que afetam simultaneamente mais de um elemento musical, pode

também afetar o discurso de três modos distintos:

Por Adição: Acrescentam algum tipo de material ou componente a

uma nota ou a um fragmento.

Por Rapto: Os materiais ou componentes de uma nota são

envolvidos, igualmente os fragmentos e as seções musicais.

Por Troca ou Substituição: As notas são trocadas e substituídas,

assim como os fragmentos,as alturas, registros, modos e

conteúdos musicais.

2.4.3.1. Por adição

Variatio

É a enfatização de um texto por meio de ornamentos vocais como

acentuo, tremulo, trillo, entre outros.

Page 46: RETORICA NA MUSICA BRASILEIRA DO SÉCULO XVIII E PRIMÓRDIOS DO XIX

46

“O guam pilchara es” de Heinrich Schütz

Schematoides

É a repetição de um fragmento em outra voz e com notas mais curtas.

Vogt Mauritius; Conclave Thesouri Magnas Artius Músicos; Praga 1719

Parenthesis

É a interrupção momentânea do fluxo normal da música, provocada pela

inserção abrupta da unidade breve e contrastante.

Page 47: RETORICA NA MUSICA BRASILEIRA DO SÉCULO XVIII E PRIMÓRDIOS DO XIX

47

Tocata e Fuga em Ré menor BWV 565 de Johann Sebastian Bach

Enumeratio É a sucessão ou enumeração do mesmo motivo ou elemento dentro da

mesma unidade musical.

Prelúdio e Fuga em Dó Maior Bux WV 136 de Dietrich Buxtehude

Polysyndeton Para Jacobson (CANO, ibidem, p.191), o Polysyndeton acontece quando

um motivo de caráter enfático e repete sucessivamente de maneira similar.

Page 48: RETORICA NA MUSICA BRASILEIRA DO SÉCULO XVIII E PRIMÓRDIOS DO XIX

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Cantata 131 “Aus der Tiefe rufe ich” de Johann Sebastian Bach

2.4.3.2. Por rapto

Abruptio

Interrupão ou final súbito, imprevisto.

Segundo Mattherson a Abruptio “Serve como uma útil representação de

existentes emoções”. (CANO, 2000, p.192)

Domine Deus, Agnus Dei do Glória RV 589 de Antonio Vivaldi

Ellipsis

Interrupção e nova direção que toma um fragmento original por a

omissão de um elemento esperado. Uma das formas que pode ocorrer a

Ellipsis é através da direção do fragmento por meio de um Gradatio ou

Anabasis

Page 49: RETORICA NA MUSICA BRASILEIRA DO SÉCULO XVIII E PRIMÓRDIOS DO XIX

49

Prelúdio e Fuga Bux WV 139 de Dietrich Buxtehude

Tocata e Fuga em Ré menor BWV 565 de Johann Sebastian Bach

Aposiopesis

É o silencio musical que com freqüência se relaciona com a morte e

eternidade.

Para Nucius esta figura se utiliza em diálogos e perguntas. (CANO,

2000, p.196)

Tocata e Fuga em Ré menor BWV 565 de Johann Sebastian Bach

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50

Pausa

É o silêncio em algumas das vozes de um fragmento. Ocorre por alguma

das seguintes razões:

1. Para a respiração do cantor;

2. Para variar ou suavizar um canto;

3. Para evitar a sucessão imediata de acordes perfeitos;

4. Para evitar a falsa relação cromática;

5. Para inserir outra voz, ou manejar melhor as vozes;

6. Para fazer perguntas e resposta;

7. Para evidenciar o conteúdo do texto.

Cantata BWV 151 de Johann Sebastian Bach

Suspiratio Acontece quando um fragmento melódico é interrompido por meio de

silêncios breves.

A Suspiratio para Kircher “É a maneira de representar suspiros que

expressem os afetos de uma alma penosa”. (CANO, ibidem, p.196)

Anathanasius Kircher: “Misurgi Universalis, sive Ars magna consonti et dissoni”; Roma 1650

Page 51: RETORICA NA MUSICA BRASILEIRA DO SÉCULO XVIII E PRIMÓRDIOS DO XIX

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Ária “Lascia ch´io pianga” da Ópera Rinaldo de George Friedrich Haendel

Synhaeresis Quando duas notas cantam na mesma silaba.

Vogt Mauritius: Conclave Thesouri Magnas Artius Músicos; Praga 1719

Domine Deus, Agnus Dei do Glória RV 589 de Antonio Vivaldi

2.4.3.3. Por troca ou substituição

Antimetabole

Retrogração, repetição de um fragmento, exatamente na ordem inversa

de sua primeira aparição.

Page 52: RETORICA NA MUSICA BRASILEIRA DO SÉCULO XVIII E PRIMÓRDIOS DO XIX

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Tocata e Fuga em Ré Menor BWV 565 de Johann Sebastian Bach

Metabasis

É um cruzamento de vozes.

Variações Goldberg nº. 6 BWV 988 de Johann Sebastian Bach

Variações Goldberg nº. 11 BWV 988 de Johann Sebastian Bach

Page 53: RETORICA NA MUSICA BRASILEIRA DO SÉCULO XVIII E PRIMÓRDIOS DO XIX

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Antitheton Expressão de idéias contrárias ou opostas por meio de elementos

musicais contrastantes que ocorrem simultaneamente ou sucessivamente.

Tocata e Fuga em Ré menor BWV de Johann Sebastian Bach

Page 54: RETORICA NA MUSICA BRASILEIRA DO SÉCULO XVIII E PRIMÓRDIOS DO XIX

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3. RETÓRICA NA MÚSICA DE ANDRÉ DA SILVA GOMES

3.1. A arte Retórica em Portugal

É evidente a tradição da retórica na Península Ibérica, acompanhando,

evidentemente, a evolução das letras latinas. Entre os séculos I a VII d. C,

escritores e filósofos como Sêneca e Santo Isidoro de Servilha, escreveram e

compilaram tratados sobre a oratória e as sete artes liberais9.

Em Portugal, circunscreveu-se a retórica dos tempos medievais, ao

exclusivo domínio da escolaridade. Esta disciplina era dividida em duas frentes:

a primeira de ordem profana onde era mesclada retórica e poética imbuída de

conceitos gramaticais e a segunda que tinha conexão com a arte de pregar,

fundamentada na técnica da palavra, necessária para tornar aptos os

sacerdotes na propagação da fé. (LAUSBERG, 2004, p.14).

Para melhor compreender em que direção se orientou o ensino da

retórica em Portugal, durante o período medieval, temos que observar logo de

inicio quais as espécies bibliográficas que chegaram até nós. Os dois grandes

centros de ensino que melhor se conhecem na história da cultura portuguesa

medieval são os mosteiros de Santa Cruz de Coimbra e de Alcobaça. (Ibidem,

p.14). Nestes mosteiros eram compilados tratados que permitiam aos clérigos

aumentarem o seu cabedal de conhecimentos gramaticais e retóricos, visto

gramática, retórica e dialética conjuntamente formando o que conhecemos por

Trivium. Nas livrarias de ambos os mosteiros podem ser encontradas obras de

Cícero, entre elas os Duo Libri de Retorjca scilicet Tulij, mencionados num

inventário de Santa Cruz de Coimbra. Estes correspondem, os dois livros que

constituem o tratado ciceroniano do De inventione, e datam, segundo

especialistas, do fim do século XII e princípio do XIII.

Na Renascença, Portugal tratou a retórica como um novo incremento,

através dos humanistas, ensinando os textos clássicos de Homero,

Demóstenes, Virgílio, Aristóteles e Cícero assim estreitando o contato com a

Antiguidade. Como resultado de tal ligação textos literários que eram

resultados práticos de um conhecimento transformado em arte por meio do

9Isidoro, bispo de Hispalis (Servilha), 570-636, compilou nas suas Origines ou Etyniologie (ED.Lindsay, Oxford, 1911, 1957) todo o saber do seu tempo, desde as sete artes liberais até a geografia, agricultura, etc. A retórica está compreendida no livro-II, 1-21 e é uma compilação valiosa, em que se trata, com brevidade exemplar, da teoria do discurso e das figuras.

Page 55: RETORICA NA MUSICA BRASILEIRA DO SÉCULO XVIII E PRIMÓRDIOS DO XIX

55

talento individual, eram melhorados, polidos pelos humanistas, no entanto, o

conhecimento dos pensadores e tratadistas antigos, facilitava uma teorização

mais orientada.

Já no período Barroco, nos grandes centros de ensino se estudou

aplicadamente retórica e poética. Entre eles destacam-se Évora, Coimbra e

Lisboa. Os Jesuítas ensinaram nas escolas e universidades de Portugal a

Oratória de Cícero e de Quintiliano, traduziram a obra Poética de Aristóteles e

transmitiram com grande erudição a retórica para seus alunos, fazendo desta

um elo entre aplicação prática e teoria escolar. (LAUSBERG, ibidem, p.24)

Segundo Aníbal Pinto de Castro: O exame das obras que, do Renascimento ao Romantismo, fixaram a teorização retórica em Portugal, trás um contributo de inegável valor para o conhecimento histórico e genérico de uma parte importantíssima, pela qualidade e pela quantidade da produção literária. (CASTRO, 2008, p, 7)

Este autor afirma que através da obra de Victor Hugo “O grito no

poema, contemplações resposta a uma acusação” 10·, novamente era lembrada

aquela antiga e prestigiosa disciplina literária, outrora esquecida, a qual viria a

emergir renovada, em nossos dias.

À medida que nos estudos literários o historicismo positivista se viu

substituído pela análise do texto, na sua estrutura lingüística entendida como

expressão de uma literariedade, a Retórica, interpretada como uma teoria das

figuras e, por conseqüência, como um fundamento do estilo, viu-se

progressivamente redescoberta e valorizada no quadro desses estudos e

procurada como objeto de pesquisa pelas correntes ligadas ao estruturalismo,

à nova critica, à teoria da literatura e à semiologia.

Como podemos notar, a cultura portuguesa era cônscia da arte retórica.

Esta tradição é observada na obra do compositor luso-brasileiro, André da Silva

Gomes, que se utiliza de figuras e elementos de retórica para enriquecer o seu

discurso musical, proporcionando-lhe a capacidade de despertar, mover e

controlar os afetos do ouvinte, tal como os oradores faziam com o discurso

falado. Inserido na poética barroca, Silva Gomes apropria-se dos recursos

afetivos e retóricos, tarefa fundamental para os músicos de sua época.

10 Victor Hugo neste poema traz a tona um pensamento de grande relevância a palavra e suas várias significações ele encerra o trecho da poesia citando um conhecido texto bíblico que se encontra no livro João 1:1; “Por que a palavra era o verbo, e o verbo era Deus”.

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56

3.2. André da Silva Gomes

Fachada Principal do Adjuva nos Deus et Immutemur; autografo de André da Silva Gomes, 178111.

11 ACMSP- Arquivo da Cúria Metropolitana de São Paulo.

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57

Em Música na Sé de São Paulo colonial, de 1995, o musicólogo Régis

Duprat revelou importantes aspectos da vida e obra de André da Silva Gomes.

Assim, não há como falar do mestre-de-capela luso-brasileiro sem nos

referenciar no trabalho supracitado.

Segundo a historiografia consolidada, e principalmente amparado em

Duprat (1995), o compositor luso-brasileiro, nascido em Lisboa, no dia 15 de

dezembro de 1752, faleceu em São Paulo no dia 17 de Junho de 1844. Quarto

mestre-de-capela de São Paulo era filho de Francisco da Silva Gomes e Inácia

Rosa, naturais de Lisboa. André chegou ao Brasil bastante jovem, com 21

anos de idade nos fins de 1773, para organizar e reger o coro de música da

catedral em princípios de 1774, dando início a uma nova fase na atividade

musical da Sé de São Paulo. Sua vinda foi articulada pelo terceiro bispo de São

Paulo, Dom Frei Manoel da Ressurreição, inserindo-se numa conjuntura de

mitigação do projeto de administração colonial iluminista desenvolvido com

considerável autonomia pela capitania de São Paulo, cujo governador era dom

Luis Antônio de Souza Botelho Mourão. (DUPRAT, 1995, p.57).

Sempre orientado em Duprat (1995), as condições iniciais de sua

formação cultural e musical permanecem ignoradas, salvo o fato de ter sido

aluno, no Seminário Patriarcal de Lisboa, do compositor e mestre-de-capela

José Joaquim dos Santos (1747-1801). Nessa época revolucionaria o ambiente

musical português a figura do napolitano David Perez, dedicado à composição

lírica e religiosa, interessado pelas edições didáticas para o ensino da teoria da

música, solfejo, baixo cifrado, acompanhamento, etc., influenciou compositores

portugueses dentre os quais cotemos João Cordeiro da Silva, João de Souza

Carvalho, José Joaquim dos Santos, Luciano Xavier dos Santos e o Próprio

André da Silva Gomes, outros compositores italianos como Piccinni e

Pergolesi, da mesma forma serviram de modelo para estes autores musicais.

David Perez (1711-1780) veio para Lisboa em 1752, por convite de D.José I, ali

permaneceu até a sua morte ocorrida em 1780. Diretor da Capela Patriarcal

dedicou-se inicialmente à educação musical dos filhos do rei e por publicações

didáticas.

Obras religiosas destes autores italianos citados a cima eram

conhecidas de André da Silva Gomes, peças de João Cordeiro da Silva, José

Page 58: RETORICA NA MUSICA BRASILEIRA DO SÉCULO XVIII E PRIMÓRDIOS DO XIX

58

Joaquim dos Santos e outros portugueses são copiadas do próprio punho de

André.

Conforme o catálogo das obras de André da Silva Gomes, apresentado

por Duprat (1995), já no ano de sua chegada a São Paulo (1774) esse

compositor produziu intensamente. A sua proficuidade foi ao encontro das

preocupações do bispado por obter a desejada estabilidade da capela de

música, até então dificultada pela módica remuneração, disputas civil-

eclesiásticas citadas, modesta solicitação e recursos do meio social12. André da

Silva Gomes já exercia as funções de mestre-de-capela, logo após sua

chegada em 1774, porém somente em 1789 o seu nome aparece citado nos

documentos de confraria, nas referidas funções, em 1781, seu nome é cita na

documentação remanescente; e ali permanece até 1801, quando abandona

todos os serviços eventuais fora a capela da Sé.

O ambiente musicalmente restrito antepunha-lhe dificuldades

consideráveis por então dispor de instrumentistas e cantores. Não obstante

característica geral da época no Brasil é pequena a variedade de instrumentos

nas orquestrações de suas obras; a reduzida quantidade de músicos no

ambiente obstaculiza a ampliação das atividades musicais. Apos 1797 o mestre

se dedicou integralmente ao ensino de latim (DUPRAT, 1995, p.101).

Uma questão interessante que comprova o conhecimento caba de

retórica é que André da Silva Gomes, depois de requerer diversas posições

que lhe permitissem melhor situação econômica, foi nomeado interinamente

para o cargo de mestre régio de Gramática Latina da cidade de São Paulo, em

decorrência do falecimento de Pedro Homem da Costa, seu antecessor no

cargo. Passou então a receber ordenado dez vezes superior ao de mestre-de-

capela da Sé. Em 1820, com 68 anos de idade, André ainda exercia

efetivamente o cargo de mestre de latim, remetendo matriculas e relações

semanais dos alunos de sua classe à secretaria do governo.

12 O mestre-de-capela ganhava em média cerca de 40.000 réis anuais, com tal salário o mestre obrigava-se a escrever música, financiar sua execução, com o coro e eventualmente com orquestra.

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59

3.3. Análise da retórica em André da Silva Gomes: ofertórios

3.3.1. Ofertório

ACMSP. Partitura original de André da Silva Gomes, primeira página de um ofertório, Domine

Jesus Christe13.

Ofertório14 é um dos seguimentos do ritual da missa cristã. É o momento

de reflexão-ação do fiel que imediatamente precede a Eucaristia, o fundamento

mais significativo do cristianismo. Por olhos descompromissados, a Eucaristia

13 Relação dos 14 Ofertórios de André da Silva Gomes: Ofertório Ad te Domine, da Missa do 1º Domingo do Advento, Ofertório Ascendit Deus, da Missa da Ascensão do Senhor, Ofertório Benedixisti Domine, da Missa do 3º Domingo do Advento, Ofertório Confitebor tibi... in toto, da Missa do 1º Domingo da Paixão, Ofertório Confortamini, da Missa de 4ª feira das têmporas do Advento, Ofertório Deus tu conversus, da Missa do 2º Domingo do Advento, Ofertório Domine Jesu Christe, da Missa de Defuntos, Ofertório Exaltabo te, da Missa de 4ª feira de Cinzas, Ofertório Justiae Domini, da Missa do 3º Domingo da Quaresma, Ofertório Laetentur caeli, da Missa de Natal, Ofertório Lautede Dominum, da Missa do 4º Domingo da Quaresma, Ofertório Meditabor, da Missa do 2º Domingo da Quaresma, Ofertório Mihi Autem nimis, da Missa da Conversão de São Paulo e Ofertório Suis, da Missa do 1º Domingo da Quaresma. 14 Todos os dados etimológicos e hermenêuticos foram extraídos do Dicionário Grove de Música, Dicionário Aurélio, e da Dissertação de Mestrado “Os Ofertórios de André da Silva Gomes” de Paulo Augusto Soares.

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60

é o momento em que o sacerdote ergue um receptáculo que contém hóstias –

uma espécie de pão, consagrando-as, na exposição se dá por meio de uma

seqüência de orações em voz baixa, em atitude contrita; ao final delas estará

consumado o sacramento.

A tradição explica a Eucaristia como à materialização do corpo e sangue

do Cristo nas hóstias e no vinho, respectivamente. Num quadro genérico de

interpretações históricas, diz à tradição que na última refeição realizada junto

aos apóstolos, Cristo teria repartido um pão entre os presentes e distribuído

vinho, afirmando serem estes o seu corpo e seu sangue, criando um clima

testamentário, de alerta e despedida, prosseguindo com o prenuncio dos fatos

que estavam por ocorrer na sua captura e morte insistindo, ao fim, para que a

conduta e os ensinamentos que disseminaria até então não fossem

esquecidos. Este episódio ficou conhecido como Santa Ceia15.

Este ato, a associação múltipla entre confraternização, alimentação,

princípios éticos e misticismo, de caráter altamente dramático e memorável,

parece ter sido levado muito em conta pelos primeiros cristãos em sua

estratégia de doutrinação. Estes se valeram da ordenação dos episódios da

santa Ceia para elaborar uma composição metafórica dos acontecimentos,

agrupando seus elementos de modo a utilizá-los como fundamento em um

ritual que prolongasse o estado de espírito de revelação e urgência vivido

pelos primeiros mártires do cristianismo.

Derivado do latim offertorium, o ato remete a offerta (oferta), offerre

(oferecer), offerenda (oferenda, coisa oferecida) e offerens (oferente); também

com ferre, que tem interessantes características: sendo verbo irregular,

necessita de outros radicais (tulu, latum) para sua conjugação e resume as

etapas da Eucaristia em seus vários significados- erguer, dar, oferecer,

contemplar. O ofertório, entretanto, cristalizou-se na figura do oferente, aquele

que oferece alguma coisa; houve uma contaminação semântica do termo com

a espórtula, o donativo feito pelo cristão para a conversação do recinto onde se

pratica a missa.

O inicio da prática do canto do ofertório não é preciso. Seu primeiro

registro encontra-se nas Confissões de Santo Agostinho, escritas no século V.

15 Tal passagem se encontra escrito na Bíblia em Mateus Cap. 26 dos versos, 26 a 29.

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61

Faz referencia a certo Hilarius que teria criticado a pratica da congregação de

Cartago em cantar um salmo durante a cerimônia das ofertas. Não, há,

todavia, nenhuma indicação do caráter ou estrutura desse canto16 .

O uso litúrgico dos salmos é comum a todos os ritos da igreja:

gregoriano, ambrosiano ou milanês, hispânico ou moçárabe, copta, etiópico,

armênio, maronita, bizantino, siriaco, galicano, celta e africano. É executado

em três formas:

1. Continuada (in directum) não há interpretação, o solista, coro ou

assembléia apenas faz a leitura do mesmo;

2. Alternada a comunidade é divida em dois coros, cantando

alternadamente os versículos do salmo;

3. Responsorial é recitado ou cantado por um solista e a assembléia

interrompe em alguns momentos, repetindo um ou mais versículos.

Alguns autores, como Wagner (1962) 17, acreditam que o ofertório era,

no principio, como a comunhão, um salmo executado na forma alternada.

Os ofertórios da tradição gregoriana, a partir do século VIII, são os

cantos mais elaborados do repertório. Começam com uma antífona seguida

por dois ou três versos, cujas melodias são muitos ornamentadas; cada verso

é seguido por um refrão, que é a própria frase de abertura ou seu trecho final.

Melismas ocorrem com freqüência e há repetição na segunda vez. São

melismas que chamam a atenção para si: são mais que simples veículos para

o texto.

Nos ofertórios gregorianos muitos textos expressam alegria e louvor;

vários exemplificam isso:

1. Jubilate

2. Benedicite

3. Laudate

Algumas vezes o texto é relevante a festa do dia (Elegerunt Apostoli,

para festa de Santo Estevão), e alguns textos têm conexão com o Intróito ou

16 BAROFIO, G.B.Offertory. In Grove Dictionary, v.10.p.514, apud- Paulo Augusto Soares, 2000, p.19. 17 WAGNER, P.Gregorianishe Formenlehre, p.2, apud- Paulo Augusto Soares, 2000, p.19.

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62

evangelho. Na tradição ambrosiana cerca da metade vem do Velho

Testamento; o mesmo ocorre no rito Moçárabe, que, diferente dos outros ritos,

trata com freqüência de sacrifícios e oferendas, fazendo ai, um interessante

balanço dos significados que a expressão ofertório adotou durante a gênese

da tradição cristã.

3.3.2. Análise retórica

3.3.2.1. Ofertório da missa do primeiro Domingo da Quaresma

Segundo Regis Duprat, este ofertório foi escrito provavelmente em 1810.

(DUPRAT, 1995, p.107)

Inventio

O Ofertório da Missa do Primeiro Domingo da Quaresma foi escrito a

partir do texto do Salmo (Ps.90,4/Ps.91,4) 18·. – “Deus Protetor dos Justos”

Scapulis suis obumbradit tibi Dominus Com suas asas o Senhor te cobrirá

Et sub pennis ejus sperabis: E sob suas penas estará protegido

Scuto circumbadit te veritas ejus. Qual escudo te envolverá a sua verdade

Trata-se de uma oração de Moisés, onde ele retrata a esperança e a

segurança daqueles que confiam no Deus dos Hebreus que, após serem

libertados da escravidão no Egito, meditavam em preparação à festa da

Páscoa. Esta tradição se perpetuou na liturgia cristã renovando seu sentido

através da ressurreição de Cristo. O primeiro domingo da quaresma traz em

sua liturgia, um apelo à reflexão e a mudança de vida. Todas as leituras são

estrategicamente organizadas para mover os afetos do ouvinte. O ofertório é,

então, o ápice da relação de entrega e partilha entre o Cristo que se oferece

como um cordeiro imolado e o cristão que oferece seu propósito de uma nova

vida. Todo este sentido de profunda devoção e humildade é a expressão do

afeto que deverá ser trabalhado pela obra do compositor.

Dentre os ofertórios, esta é a peça de menor duração, composta em

apenas trinta e um compassos, num adágio, em Si bemol maior, que impõe 18 Salmos 90,4 seria o número e versículo na bíblia católica, já na bíblia protestante o texto está escrito no número 91 versículo 4.

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63

uma execução cuidadosa onde cada detalhe é importante. Tendo o texto do

salmo como Inventio, André da Silva Gomes fundamenta seu discurso sobre

uma catabasis, figura que expressa sentimentos de humildade e devoção.

Tabela-03

FIGURAS E ELEMENTOS OBSERVADOS NO OFERTÓRIO DA MISSA DO PRIMEIRO DOMINGO DA QUARESMA19

FIGURA TIPO DESCRIÇÃO

Abruptio

Figuras que afetam vários elementos musicais – por adição, subtração, por permutação ou substituição.

Neste caso, por omissão: interrupção ou final súbito, imprevisto, servindo como uma útil representação de excitantes emoções.

Aposiopesis

Figuras que afetam vários elementos musicais – por adição, subtração, por permutação ou substituição.

Neste caso, por subtração: pausa geral. Silêncio imposto a todas as vozes.

Catabasis Figuras descritivas, com linha melódica específica.

Passagem musical descendente que expressa sentimentos de humildade e humilhação.

Epizeuxis Figuras que afetam a melodia.

Repetição imediata de um fragmento musical dentro da mesma unidade

Noema Figuras que afetam a harmonia – por acordes.

Acorde consonante e suave que se introduz num contexto polifônico com o qual contrasta notavelmente.

Saltus Duriusculus

Figuras que afetam a harmonia – por dissonância.

Neste caso, através da condução da voz: salto melódico igual ou superior a uma sexta, formando uma dissonância.

Syncope Figuras que afetam a harmonia – por dissonância.

Retardo. Uma nota que introduzida como consonância dentro de um acorde, se transforma em dissonância ao ser ligada ou repetida no acorde seguinte.

Synhaeresis

Figuras que afetam vários elementos musicais – por adição, subtração, por permutação ou substituição.

Neste caso, por fusão-acumulação: quando duas notas cantam uma mesma sílaba e vice-versa.

19 De acordo com Cano (2000, p.8) existem numerosos tratados musicais escritos entre 1535 e 1792, os quais foram denominados genericamente por seus próprios autores como música poética, em referência direta a poética literária. A análise retórica da obra de André da Silva Gomes se apropria destes estudos.

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Tabela-04 – Locus encontrados no ofertório do 1º Domingo... Locus Significado Compasso/voz Locus Notationis

Valor temporal

Lugar da notação, neste se

localizam as possibilidades

criativas que emergem da

notação musical.

O valor temporal das notas tem a

combinação de diversos pés-

ritmicos, repetições por

aumentação, diminuição, etc.

1/Soprano, Contralto, Tenor

e Baixo

4/Soprano

Locus Causae

Materialis (ex qua)

O lugar da matéria ou material:

contém considerações sobre as

fontes sonoras que serão

empregadas.

Ex qua: é a exclusão de certos

elementos em favor do uso

reiterado de outros, por exemplo,

dissonâncias, saltos melódicos,

etc.

3, 4,/Tenor

7, 11,19/ Baixo

24/Contralto, Tenor e Baixo

Dispositio

Exordium

É apresentado nos dois primeiros compassos, onde os acordes iniciais

exaltam a proteção divina através da expressão “Scapulis! Scapulis suis...”,

esta invocação é um forte apelo ao ouvinte para que tenha plena confiança na

proteção divina. O primeiro compasso se inicia com o Locus Notationis20 de

valor temporal, combinando repetição e aumentação nos valores rítmicos (nas

quatro vozes); além disso, observa-se a utilização da Epizeuxis21, reiterando a

oração. A repetição imediata do fragmento musical tem o objetivo de persuadir

o ouvinte de que somente Deus poderá protegê-lo. A seção é finalizada com

20 Segundo Cano, “Lugar da Notação” – são as possibilidades criativas que emergem da notação musical, neste caso, de valor temporal das notas, ou seja, combinação de diversos pés rítmicos, repetições por aumentação ou diminuição, etc. CANO, 2000. p. 77. 21 Repetição imediata de um fragmento musical dentro da mesma unidade. CANO, ibidem, p. 129.

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uma Synhaeresis22, figura que, por sua vez, reitera a posse e o controle

exercido pelo Deus de Israel: “su-is” (sua) (compasso 2). A Synhaeresis ainda

aparecerá em outros momentos da peça, empregada neste mesmo contexto.

Narratio

No terceiro compasso, a figura da Catabasis23 é introduzida, com a

narrativa de que “os filhos do Senhor estarão seguros sob proteção do

Altíssimo e assim, debaixo de suas asas, encontrarão refúgio”. A Catabasis é o

elo utilizado por Silva Gomes para mover os afetos mais intrínsecos nesse

importante momento da missa, que é o ofertório. A Catabasis (no soprano)

contrasta com a Noema24 (órgão), provocando, desta forma, um efeito de

suavidade devido ao confronto entre a polifonia vocal e a harmonia vertical do

instrumento. Ainda dentro do narratio, observa-se a presença do Locus Causae

Materialis ex qua25, no tenor (compasso 3), com um salto de sexta menor,

reiterado no quarto compasso, ainda no tenor.

22 Synhaeresis: quando duas notas cantam uma mesma sílaba e vice-versa. CANO, ibidem p. 199. 23 Passagem musical descendente que expressa sentimentos de humildade e humilhação. CANO, idem, p. 152. 24 Acorde consonante e suave que se introduz num contexto polifônico com o qual contrasta notavelmente, produzindo um efeito prazeroso provocado pelas consonâncias. CANO, ibidem, p. 175. 25 Lugar da Matéria ou Material. Contém considerações sobre as fontes sonoras que serão empregadas, por exemplo, “ex qua”, exclusão de certos elementos em favor do uso reiterado de outros, por exemplo, dissonâncias e saltos melódicos. CANO, ibidem, p.78.

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Propositio

O espírito de submissão e sujeição a Deus é evidenciado pela utilização

de novos elementos retóricos, tal como: Saltus Duriusculus26 (compasso 8), no

soprano; e no acompanhamento do órgão (compasso 9); o Abruptio, ainda no

oitavo compasso, terminando a frase nas três vozes de forma súbita ao mesmo

tempo em que a voz do soprano continua a ser executada. Estes elementos

enunciam a tese fundamental da peça, ou seja, “sob as penas de suas asas há

proteção”.

26 Salto melódico igual ou superior a uma sexta, outra interpretação é que este pode criar uma dissonância.

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Confutatio

A inclusão de novos e contrastantes elementos nos compassos 16 ao 23,

confirmam a tese inicial. Elementos como a Epizeuxis e a Syncope27; a

Aposiopesis28, que, nesse caso especifico, são utilizados para preparar

afirmação que virá em seguida: “Scuto circumdabit te veritas ejus.”.

Confirmatio

A reiteração de elementos iniciais confirma a tese fundamental, valendo-

se de uma maior carga afetiva.

27 Retardo. Uma nota que introduzida como consonância dentro de um acorde, se transforma em dissonância ao ser ligada ou repetida no acorde seguinte. CANO, ibidem, p. 167. 28 Pausa geral. Silêncio imposto a todas as vozes. CANO, ibidem, p. 196.

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Perotatio

O discurso se encerra, enfático, através da repetição das palavras

“veritas ejus” (sua verdade), a tese central da peça e a lição significante do

ofertório: a verdade de Deus é um escudo que envolve e protege o cristão.

Sem dúvida alguma, trata-se de uma menção ao próprio Cristo, que disse: “Eu

sou o caminho, e a verdade, e a vida; ninguém vem ao Pai, senão por mim.” 29.

Na liturgia da missa, o ofertório dá inicio à Celebração Eucarística, onde é

reproduzido o acontecimento central da Última Ceia, ou seja, o sacrifício de

Cristo.

3.3.2.2. Ofertório da missa da Ascensão do Senhor

Inventio

Este Ofertório inclui-se concebidos por André da Silva Gomes em dois

movimentos. Seu texto foi extraído do salmo (Ps 46,6/47,5).

Ascendit Deus in jubilatione, Dominus in voce tubae, Alleluia. 29 João 14, 6.

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O Senhor subiu entre as nações, ao som de trombeta. Aleluia.

Trata-se de um salmo cuja autoria é atribuída aos filhos de Coré a qual

retrata a grandeza do Senhor, todos devem louvá-lo com as palmas e vozes de

júbilo. Especialmente este versículo nos mostra o poderio e soberania de Deus,

pois ele é aclamado aos sons de trombeta como um verdadeiro rei que

ascende sobre todos os povos e nações.

Na celebração da Missa a Ascensão do Senhor é um acontecimento de

suma importância, porque Jesus o filho de Deus que fora homem venceu o

pecado e a morte através da sua ressurreição e posteriormente ascende aos

céus, prometendo não deixar seus seguidores órfãos, enviando para substituí-

lo o Espírito Santo30·. Nesse caso diferentemente da Missa do Primeiro

Domingo da Quaresma o compositor trabalha com a figura da Anabasis onde o

cristão exalta ao seu Deus.

A Missa se divide em dez partes assim distribuídas:

Tabela-05

INTRODUÇÃO Lê-se o texto base para a introdução

que se encontra em Atos 1:11, onde o

escritor dessa passagem descreve

um anjo a qual fala para os discípulos

e seguidores de Cristo, para não

ficarem espantados, pois Jesus que

está ascendendo (subindo) aos céus,

um dia voltará para reinar com todos

os que praticarem sua fé.

ORATÓRIO

Esta parte os fiéis proclamam a

grandiosidade de Jesus que está

juntamente com seu pai Deus Jeová

reinando no céu em unidade com o

Espírito Santo.

30 João 14:16, 17, 18,19 e 20 e Atos 1:2 a 11.

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70

ESPISTOLA É lido na integra a passagem de Atos

1, ou seja, os 11 versículos onde fala

da Ascensão do Senhor.

ALELUIA Os Salmos 46:6 e 67:18-19 revelam

com júbilo a elevação de Cristo ao

toque da trombeta.

EVANGELHO Acontece um dialogo entre o

celebrante e os participantes onde o

primeiro pergunta: “O Senhor seja

convosco” e a congregação

responde: “E com vosso espírito”.

Posteriormente é lido o evangelho

segundo São Marcos 16:14 ao 20

onde os fiéis respondem: “Glória a vós Senhor”.

ANTIFONA E OFERTÓRIO Novamente é citado o texto dos

Salmos 46:7, o cristão em forma de

louvor e gratidão exalta seu rei o

aclamando que o mesmo é maior

entre todas as nações.

SECRETA Esse é um momento de grande

reflexão por parte do ofertante, onde

este é convencido a aceitar a

superioridade do Senhor e ao mesmo

tempo celebra seus feitos poderosos.

PREFÁCIO DA ASCENSÃO

Jesus é venerado e lembrado pela

congregação por ter vencido a morte

através de sua ressurreição e quando

ascendeu para o céu manifestou sua

glória a todos seus servos, fazendo

parte integrante e participantes de seu

reino, como também sendo elo entre

seus servos terrenos e os Anjos e

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71

Arcanjos que os servem no céu.

COMUNHÃO No trecho dos Salmos 67:33 a 34, são

convidados todos os fiéis a cantarei e

louvarem ao Senhor que sobe no

mais alto dos céus. Todos estão em

comunhão, tendo anteriormente

oferecido a Trindade seu culto com

grande reverência.

PÓS-COMUNHÃO Nesse momento a congregação se

despede enaltecendo a unidade da

Trindade e também o reinado de

ambos que será para toda a

eternidade.

Tabela-06

FIGURAS E ELEMENTOS OBSERVADOS NO OFERTÓRIO DA MISSA DA ASENSÃO DO SENHOR

FIGURA TIPO DESCRIÇÃO

Abruptio

Figuras que afetam vários elementos musicais – por adição, subtração, por permutação ou substituição.

Neste caso, por omissão: interrupção ou final súbito, imprevisto, servindo como uma útil representação de excitantes emoções.

Anabasis Figuras descritivas, com linha melódica específica.

Passagem musical ascendente que expressa exaltação, ascensão ou coisas semelhantes.

Aposiopesis

Figuras que afetam vários elementos musicais – por adição, subtração, por permutação ou substituição.

Neste caso, por subtração: pausa geral. Silêncio imposto a todas as vozes.

Circulatio Figuras descritivas, com linha melódica específica.

Esta oscila ao redor de uma nota, em forma de melodia.

Epizeuxis Figuras que afetam a melodia.

Repetição imediata de um fragmento musical dentro da mesma unidade

Exclamatio Figuras descritivas, que rebasa o âmbito habitual.

Ocorre através de um salto inesperado, ascendente ou descendente, superior a uma terça.

Gradatio Figuras de repetição alterada

Acontece uma repetição ascendente ou descendente em graus conjuntos, em seqüências de um mesmo fragmento musical.

Noema Figuras que afetam a Acorde consonante e suave que se

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harmonia – por acordes. introduz num contexto polifônico com o qual contrasta notavelmente.

Palilogia Figuras que afetam a harmonia por repetição.

Quando acontece uma repetição de um fragmento repetido sem nenhuma modificação.

Polyptoton Figuras que afetam a harmonia por repetição

Acontece tendo configurada a repetição de um fragmento em outra voz,

Saltus Duriusculus

Figuras que afetam a harmonia – por dissonância.

Neste caso, através da condução da voz: salto melódico igual ou superior a uma sexta, formando uma dissonância.

Syncope Figuras que afetam a harmonia – por dissonância.

Retardo. Uma nota que introduzida como consonância dentro de um acorde, se transforma em dissonância ao ser ligada ou repetida no acorde seguinte.

Synhaeresis

Figuras que afetam vários elementos musicais – por adição, subtração, por permutação ou substituição.

Neste caso, por fusão-acumulação: quando duas notas cantam uma mesma sílaba e vice-versa.

Synonimia Figuras de repetição alterada Neste caso, a repetição de um fragmento musical transportado a outro nível.

TABELA DOS LOCUS ENCONTRADOS NESTE OFERTÓRIO Tabela-07 Locus Significado Compasso/voz Locus Notationis

Valor temporal

Lugar da notação, neste se

localizam as possibilidades

criativas que emergem da

notação musical.

O valor temporal das notas tem a

combinação de diversos pés-

ritmicos, repetições por

aumentação, diminuição, etc.

12,13/ Nas quatro vozes.

40/Nas quatro as vozes.

42,43/Nas quatro vozes.

Locus Causae

Materialis (ex qua)

O lugar da matéria ou material:

contém considerações sobre as

fontes sonoras que serão

empregadas.

Ex qua: é a exclusão de certos

elementos em favor do uso

7,8/Baixo

34,35 e 36/Órgão.

40,41 42/Baixo e Órgão.

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73

reiterado de outros, por exemplo,

dissonâncias, saltos melódicos,

etc.

Locus Notationis

(Intercâmbio de

notas)

São recursos como a inversão de

um motivo musical, também

ocorre quando há´ retrogração do

inverso do motivo.

6/Tenor e Baixo

7/Soprano

35/Contralto

Dispositio

Exordium

É apresentado nos três primeiros compassos, onde as notas iniciais

exaltam ao Senhor através da expressão “Ascnendit Deus in jubilatione,

Dominus in voce tubae”, neste caso o orador introduz seu discurso

proclamando a grandeza do Senhor na figura central do ofertório Anabasis31,

este ato é uma forte invocação e apelo ao ouvinte para que esse se jubile e

enalteça seu Deus. Nos compassos dois e três juntamente com a Anabasis a

utilização do Saltus Duriusculus na voz no acompanhamento também tem um

sentido ascendente, além disso, observa-se a utilização do Exclamatio, que

acontece de forma inesperada na melodia que anteriormente se movia em

graus conjuntos e raramente em intervalos de terças.

31 Passagem musical ascendente que expressa exaltação, ascensão ou coisas semelhantes, CANO, ibidem p 152.

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Narratio

Inicia-se com o tutti e um novo elemento de retórica Locus Notationis de

Intercâmbio de notas 32, no qual o motivo original é invertido pelas notas Lá, Ré

e Lá, para Ré, Lá e Ré. Da mesma forma enfatizando e reiterando a palavra

Ascendit (O Senhor), recursos retóricos como Noema (órgão), a partir do

primeiro compasso contrastando com a figura da Anabasis, nesta mesma

seção do discurso da Dispositio o Locus Causae Materialis Ex qua (voz do

baixo) e o Saltus Duriusculus (voz do baixo e no órgão) renova com mais força

a apelação ao ouvinte, seja por tensões atribuídas pela nota Lá que é o quinto

grau (dominante de Ré) ou pela dinâmica forte que se insere a partir do tutti.

32 Esse Locus acontece em duas ocasiões: quando há inversão do motivo ou na ocorrência da retrogração e inversão do mesmo.

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Compasso -1 Compasso- 8

Dos compassos 9 ao 15 aprecem elementos que enfatizam para quem

ouve e pratica seu culto a louvar com Júbilo ao Senhor, isso fica bem claro com

a Synhaeresis que canta duas silabas Ju-bi, nas vozes da soprano e do tenor,

ao mesmo tempo nos compassos 9 e 10 os mesmos elementos utilizados no

sétimo e oitavo compasso na voz da soprano, baixo e no órgão33, evidenciam e

concretizam a primeira parte da frase onde Deus é aclamado e louvado.

Ascendit Deus In Jubilattione. (O Senhor subiu entre aclamações)

33 Saltus Duriusculus e Locus Causae Materialis Ex qua

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Concluindo a Narratio se encerra a partir do compasso 12 em todas as

vozes com uma Epizeuxis, que repete e reitera o cântico efetuado pelo autor do

salmo, conjuntamente com o Locus Notationis de Valor Temporal, assim com a

utilização da Noema (órgão) e da Synhaeresis (Contralto).

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Propositio

Esta parte da Dispositio enuncia novamente a tese inicial do ofertório a

partir do compasso 16 na voz do baixo, através da figura da Anabasis, André

da Silva Gomes desta vez utiliza tal recurso retórico com a nota Ré, porém

enfatiza por quatro vezes a nota Si que é a terça maior do acorde de Sol Maior.

A figura da Anabasis é utilizada até no compasso 19, André reforça com

essa figura a imagem da ascensão de Cristo, ou seja, é narrada de modo a

ressaltar sobremaneira a singularidade do acontecimento, ao passo que o

ofertante é inserido em uma segunda seção onde a figura de Cristo é

apresentada com mais força e grandeza, assim tanto ofertante como ouvinte

são envolvidos de tal forma, exultando e louvando a Deus, por sua grandeza e

domínio. Ao passo que é utilizada a figura da Anabasis, se incrementa o

elemento da Gradatio34, nesse caso repetindo seqüências de notas em

intervalos de terças, nesse instante o Abruptio encerrada a frase de modo

inesperado na Dominante (Lá Maior), revelando dar maior ênfase a palavra De-

us (Senhor), assim mostrando que só o Deus e Senhor dos hebreus merece

ser exaltado, na bíblia há uma passagem que o próprio Deus fala usando um

salmista inspirado, eis a mensagem:

34 Segundo Nucius: “Esta figura tem grande efeito sobre todo o final de uma unidade, ou seja, ela pode surpreender ao que escuta quanto ao que espera a conclusão de uma frase ou melodia”. CANO, ibidem, p.136.

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“Aquietai-vos, e sabei que eu sou Deus, serei exaltado entre as nações, serei

exaltado sobre a terra” (Salmos 46:10). Outra passagem confirmando esta

afirmação encontra-se em Salmos 136:2, “Daí graças ao deus dos deuses, por

que o seu amor dura para sempre”. Pode-se observar também que tanto na

voz do baixo, quando na do órgão temos um intervalo de 6ª menor

descendente caracterizando duas possíveis interpretações, a primeira de

ascensão, poder, exultação, louvor e reconhecimento da soberania de Deus,

com a figura da Anabasis, já a segunda com a utilização do Saltus Duriusculus,

descrevendo que para exaltar a Deus é necessário primeiro se oferecer e

humilhar-se, sendo assim, Deus será louvado e reconhecido como único em

todas as nações da terra, até nas regiões celestiais.

Confutatio

A defesa da tese iniciada no Exordium é evidenciada na Confutatio,

tanto pela presença da Synhaeresis (voz da soprano), reafirmando com a

repetição de nada menos que 8 notas (Si) a palavra Dominus et (Subiu),

reiterando a grandiosidade da Ascensão e poder do Cristo ressuscitado, o

argumento utilizado pelo autor para convencer o ouvinte de que Jesus não

homem, mas agora Deus deve ser exaltado e subiu aos céus ao som de

trombeta é a reprodução da palavra Senhor e a ênfase dada às notas Mi, nas

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vozes do contralto, tenor e do baixo, pelo novo elemento a Circulatio35·. Um

bom orador descreve seu discurso com várias seções, ou seja, o discurso

retórico tem um organograma, no entanto, em cada parte de sua fala, há

palavras- chave e muitas delas são reiteradas e repetidas, nesse caso a

expressão Senhor dá uma sensação de poder absoluto a Deus, tanto é que

Cristo ascendeu aos céus, para evidenciar mais a repetição e reiteração o

autor se utiliza de um recurso retórico que é a Exclamatio36·, reforçando a

descrição deste momento do ofertório.

Confirmatio

O regresso da tese fundamental fica claro e evidenciado no compasso

25 na voz do contralto onde o autor utiliza novamente a figura da Anabasis

35 Segundo Kircher, esta figura serve para as palavras que expressão circularidade, no caso dessa peça, tal acontecimento é empregado na palavra Dominus (Senhor) 36 Para Sheibe, a exclamação alegre é expressa por saltos consonantes e o doloroso com saltos dissonantes, neste trecho da peça de André da Silva Gomes é utilizado à primeira expressão.

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reexpondo seu ponto de vista original, porém, nesta parte com maior carga

afetiva e intensidade.

Posteriormente nos compassos 31 e 32, temos o Saltus Duriusculus na

D de Ré maior, tanto na voz do contralto e no acompanhamento do órgão.

Na conclusão da Confirmatio (compassos 33 e 34) na voz do contralto é

inserido novamente o elemento de retórica Circulatio dando ênfase para a nota

Lá, também a Noema (compasso 34) é utilizada para contrastar com a linha

melódica no solo do contralto.

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Perotatio

A partir do compasso 35 o autor resume e enfatiza suas idéias

essenciais e conclui seu discurso, a figura-chave Anabasis novamente é

utilizada reforçando a idéia de ascensão nas vozes da soprano, do tenor, do

baixo e no acompanhamento do órgão:

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Assim como na Narratio o compositor utiliza elementos de retórica como:

Synhaeresis, Saltus Duriusculus e Locus Causae Materialis para solidificar sua

tese, agora na Perotatio.

Nos compassos 39 a 53, podemos evidenciar que o autor trabalha com

todos os elementos e figuras empregadas anteriormente em cada parte do

discurso, por exemplo, o recurso da Circulatio na voz do contralto é utilizado

para reforçar e enfatizar através da nota Fá a palavra Dominus et (Senhor) ao

mesmo tempo a Synhaeresis repete com veemência as mesmas palavras, da

mesma forma são focadas as repetições com a Epizeuxis e o Locus Notationis

de Valor Temporal em contraste a esses elementos André da Silva Gomes

introduz a Noema, na voz do órgão (compassos 41 e 42) o Saltus Duriusculus

se realiza com um intervalo de 9ª maior, ou seja, bem dissonante, desta forma

o sentindo de mover os afetos é bem evidenciado, tanto é que o Locus Causae

Materiais Ex qua aparece simultaneamente através desse salto.

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O Primeiro movimento da peça se encerra fazendo menção da grandeza

do Senhor e sua majestade, o salmista pela ultima vez narra: “Dominus in voce

tube” (Ao som de trombeta), ou seja, ele enfatiza que Cristo subiu com

majestade e glória, por isso deve ser exaltado e aclamado em todas as nações,

por ter vencido a morte, porém ele não pode ser venerado e lembrado por

ascender aos céus, mas também pela razão de que de como está escrito em

Atos 1:10 e 11 que diz assim:

[...] E estando eles com os olhos fitos no céu enquanto ele subia de repente junto deles se puseram dois homens vestidos de branco, os quais disseram: Varões galileus, por estais olhando para cima? Esse Jesus, que dentre vós foi recebido em cima no céu, há de vir, assim como para o céu o vistes ir [...]. (BIBLIA SAGRADA, 1999)

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No segundo movimento da peça há um cânone onde a palavra Alleluia é

ouvida primeiramente em entradas deslocadas das vozes, e pela ordem de

aparição, polifônica homorritmica, uníssono e encerramento da mesma nas

quatro vozes. Outro aspecto importante que podemos notas é a indicação do

andamento Presto, depois do primeiro movimento onde a exultação a

Ascensão do Senhor fora feita, neste outro movimento é o momento de jubilo e

alegria, por que Cristo ressuscitou e reinará para sempre com seus servos

quando voltar.

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A partir do primeiro compasso nota-se a presença de dois novos

elementos o Polyptoton 37 repetindo o mesmo fragmento musical nas outras

vozes e a Palilogia38 na voz da soprano utilizada para reforçar o elemento

anterior conversando a repetição das notas em seu estado original.

37 Para Bartolomeu Jimenez Patón: Este elemento acontece na literatura quando se põe palavras duplicadas ou triplicadas, ou seja, a repetição de um fragmento. JIMENEZ, 1980- Apud –CANO, p.138. O Polyptoton também acontece devido à função sintática variável dos membros repetidos. 38 Para Burmeister (1599) é a repetição de um tema característico de um canto não necessariamente no mesmo lugar, já em 1606, ele define como repetição de um tema com todas as notas. (CANO, ibidem, p. 133).

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O elementos de retórica descritos acima desde o início do segundo

movimento da peça acontecem até o décimo compasso. Mais adiante, no

compasso 13 ao 18, primeiramente da voz da soprano e depois juntamente

com a voz do tenor, o compositor emprega a Synonimia39para reforçar a idéia

de júbilo e alegria.

39 Este elemento é a repetição de um fragmento musical transportado para outro nível, ou seja, o fragmento utilizado pelo autor na voz da soprano foi transportado para a voz do tenor mantendo as mesmas características rítmicas e melódicas.

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Tabela-08- Quadro comparativo entre figuras retóricas na música e literatura encontradas nos dois ofertórios analisados:

FIGURAS (ELEMENTO) RETÓRICAS

SIGNIFICADO NA MÚSICA

SIGNIFICADO NA LITERATURA

Abruptio Interrupção ou final súbito,

imprevisto, servindo como

uma útil representação de

excitantes emoções.

Consiste em alternar

distintos personagens

em dialogo ou em

relação à narração,

mediante as expressões

explicativas inseridas

pelo narrador, de tal

modo que se sucedem

sem transição, de

maneira brusca.

Anabasis Passagem musical

ascendente que expressa

exaltação, ascensão ou

coisas semelhantes.

Na literatura é

conhecido com

Ascensus: Subida ao

absoluto.40

Aposiopesis Pausa geral. Silêncio

imposto a todas as vozes. reticentia;

[port.Apoiopese] é a

interrupção de um

pensamento já

começado ou de uma

cadeia de pensamentos

já iniciada, esta figura

pode ser expressa

sintaticamente pela

interrupção de uma

40 É um dos dois caminhos da Metafísica, segundo o escritor Henrique Lima Vaz, Thomas de Aquino nos aponta via Descensus e via Ascensus. O primeiro parte da intuição do absoluto, constitutiva da afirmação do ser, no juízo e, traduz essa afirmação na constelação das noções transcendentais, que formam o núcleo primeiro da integibilidade de qualquer ser. O segundo parte da apreensão imediata do ser no mundo sensível e se eleva até a máxima universalidade do ser, traduzido no conceito do “ser enquanto ser” (ens commune). (VAZ, 2002, p.179).

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frase já começada ou

pode desistir de uma

interrupção sintática,

desde o momento que a

interrupção de

pensamento não

prejudique a totalidade

das frases.

Catabasis Passagem musical

descendente que

expressa sentimentos de

humildade e humilhação.

Na literatura é

conhecida com

Descensus : Descida a

intuição do absoluto

Circulatio Esta oscila ao redor de

uma nota, em forma de

melodia.

Não há significado na

forma literária, no

entanto, segundo

Dietrich Bartel: a

Circulatio é

essencialmente

baseada no texto.41

Epizeuxis Repetição imediata de um

fragmento musical dentro

da mesma unidade

Esta figura age

ampliando ou

duplicando as palavras,

também pode se

converter às vezes em

ironia para desmentir.

Exclamatio Ocorre através de um

salto inesperado,

ascendente ou

descendente, superior a

uma terça.

Consiste na

transformação de uma

frase afirmativa numa

exclamação, a qual, às

vezes, é acompanhada

41 BARTEL Dietrich. Música Poética: musical-rhetorical figures in Germany Baroque music. Lincoln: University of Nebraska Press, 1997. p.216.

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por vocativos ou

construções análogas

(LAUSBERG, ibidem,

p.259).

Gradatio Repetição ascendente ou

descendente em graus

conjuntos, em seqüências

de um mesmo fragmento

musical.

É o clímax, que cada

vez mais começa de

novo. Este consiste na

continuação progressiva

da Anadiplose

(repetição por contato)

(LAUSBERG, ibidem,

p.170)

Noema Acorde consonante e

suave que se introduz

num contexto polifônico

com o qual contrasta

notavelmente.

É o ato intencional de

pensar em contraste

com a noesis

(capacidade de bom

senso ou saber alguma

coisa imediatamente)

um Noema é o próprio

objeto de percepção ou

pensamento.

Palilogia Uma repetição de um

fragmento repetido sem

nenhuma modificação.

Consiste em uma

repetição textual de

uma frase.

Polyptoton Configurada a repetição

de um fragmento em outra

voz.

Consiste na alteração

flexional do corpo da

palavra, a qual se

distingue da alteração

referente do significado

próprio das palavras,

mas tão-só uma

alteração da perspectiva

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sintática (LAUSBERG,

ibidem, p.180)

Saltus Duriusculus Salto melódico igual ou

superior a uma sexta,

formando uma

dissonância.

Não há forma literária.

Syncope Retardo. Uma nota que

introduzida como

consonância dentro de um

acorde, se transforma em

dissonância ao ser ligada

ou repetida no acorde

seguinte.

É supressão de um

elemento pertencente à

sucessão fonética

interior da palavra.

Synhaeresis Quando duas notas

cantam uma mesma

sílaba e vice-versa.

Também conhecida

como: Syneresis

sinérese

[Do gr. synaíresis,

‘contração’, pelo lat.

tard. synaerese.]

Substantivo feminino

1. E. Ling. Contração de

duas sílabas em uma

só, mas sem alteração

de letras nem de sons,

como, p. ex., em reu-nir,

pie-da-de, em vez de re-

u-nir, pi-e-da-de. [Cf.

diérese (2).]

Synonimia É a repetição de um

fragmento musical

transportado a outro nível.

É o abrandamento da

igualdade, no tocante à

tonalidade do corpo da

palavra, aplicado às

figuras de repetição,

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consiste no emprego de

um corpo da palavra

completamente

diferente para a mesma

significação, ou seja,

uma repetição do esmo

significado, por meio de

um sinônimo ou de um

Tropo (LAUSBERG,

ibidem, p.181)

4. Conclusão

A figura de retórica inserida na música enriquece não só o discurso das

palavras, das melodias, mas também dos elementos afetivos mais intrínsecos

do ser humano42·. Efetivamente estas figuras e elementos retóricos inseridos

na música incluem uma grande quantidade de fenômenos musicais como

repetições, desenvolvimentos, imitações, descrições, acordes, repetições de

acordes, ornamentos, notas, seções de transição, contrastes, interrupções,

silêncios, modificações dos timbres, condução das melodias, preparação das

dissonâncias, posição e altura das notas, ou seja, existe um discurso

altamente organizado pelos compositores com o intuito de convencer e induzir

ao ouvinte para um plano espiritual.

Desde os tempos mais remotos, a música é tida como poderosa. A

mitologia judaico-cristã lhe atribui poderes físicos e psíquicos43, os filósofos e

estudiosos gregos relacionam os sons musicais e os processos naturais

capazes de influenciar a conduta humana44. Os teóricos da Camerata Bardi lhe

outorgam o poder de mover os afetos (CHASIN, 2004). Compositores como

Monteverdi, Schultz, Buxtehude, Charpentier, Vivaldi, Haendel, Bach e seus

filhos (principalmente Carl Phillip Emanuel), utilizaram este importante recurso

42 Paixão, dor, alegria, tristeza. 43 Muralhas de Jericó (Josué 6, 20), Rei Davi (I Samuel, 16) 44 Platão, a República.

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em suas obras, por exemplo, Bach no Magnificat utiliza no inicio de seu terceiro

movimento a figura da Catabasis reiterando a frase Humilitaten que pode ser

traduzido como humilde, ou seja, o autor reforça a idéia de submissão, já em

sua Cantata nº. 31- “Der Hinmel lacht, die Erde jubilieret” utiliza a figura da

Anabasis com o intuito de júbilo e exultação ao Senhor.

Diversas são as publicações da musicologia contemporânea acerca da

retórica musical do barroco. Através de pesquisas profundas e sérias,

musicólogos contribuem no desenvolvimento de uma nova forma de análise

musical para esclarecer não só a semântica, mas sua relação com a música.

Esta preocupação esteve presente desde os primeiros tratadistas de figuras

retóricos- musicais como: Joachim Burmeister (1564-1629), que se preocupou

em relacionar teoria, poética e prática, relacionando com as figuras de retórica,

Johannes Luppius (1585-1612) este considerava Marenzzo e Lassus os

grandes mestres que utilizavam elementos retóricos inseridos em suas obras,

em plena renascença, Johannes Nucius (1556-1620) estudou a fundo as

figuras retóricas na música sacra em seu tempo e por último podemos citar

dois grandes pesquisadores Johann Nikolaus Forkel (1749-1818) e Johann

Mattheson (1681-1764) o primeiro é considerado o fundador da musicologia

moderna o segundo compositor, critico e teórico musical. (CANO, ibidem,

p.258)

Através da analise dos dois ofertórios de Andre da Silva Gomes fica

claro e evidenciado a utilização de figuras retóricas, deste modo, podemos

concluir que aqui no Brasil mesmo distante dos grandes centros musicais como

os do velho continente, eram empregados tais recursos.

No Ofertório da Missa de Ascenção do Senhor André da Silva Gomes

emprega como figura central a Anabasis, diferentemente do primeiro ofertório

analisado onde ele utiliza a figura da Catabasis fazendo um apelo ao ouvinte

de humilhação e subordinação ao Senhor, já no segundo o apelo é de jubilo,

alegria e reconhecimento da superioridade e majestade do Senhor. Nas duas

obras o compositor luso-brasileiro distribui de maneira organizada e coerente

seu discurso empregando diversas figuras e elementos de retórica,

encontramos algumas delas nas duas analises, por exemplo, Synhaeresis,

Exclamatio, Noema, Saltus Duriusculus, todos estes reiterando o discurso e o

apelo ao ouvinte.

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Inserido na tradição retórica da Península Ibérica, André da Silva Gomes

é detentor do conhecimento acerca da retórica musical, como ferramenta de

comunicação através da música. Sua obra demonstra pleno domínio do uso da

linguagem retórica, a serviço da persuasão e eloqüência. As análises do

Ofertório da Missa do Primeiro Domingo da Quaresma e do Ofertório da Missa

de Ascenção do Senhor corroboram com esta afirmativa, sendo observável a

estrutura da dispositio, bem como a existência de figuras e elementos retóricos,

que bem estruturados no discurso do autor, cumprem a tarefa fundamental do

músico barroco de mover os afetos do público.

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94

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6. Anexos

Partitura do Ofertório da Missa do Primeiro Domingo da Quaresma

Partitura do Ofertório da Ascensão do Senhor