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CAPÍTULO IV O CORO DO SENHOR BOM JESUS DA CRUZ

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CAPÍTULO IV

O CORO DO SENHOR BOM JESUS DA CRUZ

A instituição do coro segundo a procuração de 1724

____________________________________________________________

Em 18 de Agosto de 1724, Inácio da Silva Medela – nascido no bairro do Bom Jesus, na

vila de Barcelos, então residente na Rua Direita da cidade do Rio de Janeiro, Brasil –

passou uma procuração para se instituir um coro permanente no templo do Senhor da

Cruz da sua terra natal.

Foram então apresentados como seus procuradores o capitão Joaquim da Costa Silva, da

vila de Guimarães, António Pereira, Maurício Correia, Manuel Gonçalves Moreira

Alvares e Cipriano Vieira, residentes na cidade do Porto.

Na procuração refere-se que Inácio da Silva Medela era filho legítimo de Pascoal

Rodrigues e de Helena Ribeiro e que fora baptizado na igreja colegiada de Santa Maria

de Barcelos; que tivera como avós Martinho Rodrigues, o Rates por alcunha e “fulana

Medela” (pela parte paterna); pelo lado da mãe era neto de Álvaro da Silva e de Gracia

Coelho – todos do bairro do Bom Jesus.

À esquerda: quadro de pintura a óleo sobre tela,

1888, com o retrato de Inácio da Silva Medela

(falecido em 1747), instituidor do coro do Senhor

da Cruz.

Em cima: aspecto da árvore genealógica de Inácio

da Silva Medela, século XVIII.

A administração do coro cabia à mesa da irmandade, que detinha a prerrogativa de

empregar (através de concurso) e despedir os 7 capelães previstos, devendo dar

preferência a familiares do instituidor.

O legado destinado a garantir o seu normal funcionamento era de 16.000 cruzados,

dinheiro que deveria ser aplicado a juros em instituições seguras, de preferência ligadas

ao poder régio (na Alfândega ou no Almoxarifado de Barcelos, por exemplo),

calculando-se um resultado líquido anual de 80.000 réis, 40 mil para pagar aos capelães

e outros 40 mil para ornamentos da sacristia1.

Aquando da elaboração da escritura de aceitação do legado, em 15 de Março de 1725,

assinaram pela mesa da irmandade o seu juiz, Dr. Manuel de Andrade e Almada, o

escrivão padre Manuel da Costa Lopes, o tesoureiro José Gomes Garcia, os mordomos

Dr. José Leite de Faria, José Barreto da Gama, Manuel Luís Tamel e restantes

elementos da mesa, todos residentes na vila de Barcelos. (Mais duas escrituras de

aceitação do legado serão assinadas, uma em 30 de Dezembro de 1728 e outra em 7 de

Março de 1730, na sequência da ampliação do coro e do respectivo valor financeiro).

Em representação do instituidor assinou o seu

principal procurador, o capitão de Guimarães

Joaquim da Costa Silva, que apresentou a

procuração emitida no Rio de Janeiro, com a data

de 18 de Agosto de 1724.

Como testemunhas da procuração e do “extracto”

que seguia em anexo, assinaram o capitão

Cordeiro Silva, João Pinto Rodrigues e Paulo

Pinto de Faria, sendo “tabelião público do

judicial, e notas” Jorge de Sousa Coutinho. Como

juiz das justificações, rubricou o Dr. António de

Sousa de Abreu Grade, do desembargo de sua

majestade, ouvidor geral, corregedor da comarca

com alçada no cível e crime na cidade do Rio de

Janeiro e mais capitanias de sua repartição2.

1 AISC, Caixa 2, Instituição do coro da Irmandade do Senhor Bom Jesus da Cruz, Documentos 1 e 2.

2 Destes documentos foi passada uma certidão, em 21 de Outubro de 1769, em Barcelos, assinada pelo

escrivão João Francisco da Silva.

Pormenor da procuração de Inácio da

Silva Medela, emitida no Rio de Janeiro

a 18 de Agosto de 1724.

Os documentos esclarecem que Inácio da Silva Medela enviuvara de Maria de Almeida,

mulher de quem não teve filhos pelo que era herdeiro dos bens “remanescentes” do

finado matrimónio. Afirma-se também detentor dos bens que conseguiu por sua

“indústria”, devendo-os todos (aspecto em que diz acreditar com “as três potências da

sua alma”) à misericórdia e infinita liberalidade de Cristo. De resto, Medela defende que

não tem mais poder que o de administrar a riqueza que o Senhor Jesus lhe terá

prometido.

Em resumo, na procuração são apresentadas as seguintes motivações para a instituição

do coro no Senhor da Cruz:

A existência de uma capela com a milagrosa imagem do Senhor Bom Jesus, com

uma cruz às costas, junto ao bairro onde Medela nasceu e cresceu.

Refere-se o miraculoso aparecimento de cruzes nos dias das festas da Invenção e da

Exaltação da Santa Cruz, em Maio e em Setembro, e que quando tal é “vontade do

Senhor” as cruzes de terra enegrecida reapareceriam noutras ocasiões.

Alheio a qualquer motivo de ordem “temporal”, o instituidor diz-se exclusivamente

movido pela devoção ao Senhor da Cruz e pelo desejo de que Ele seja louvado e

venerado no Seu templo, através do cântico quotidiano das horas canónicas.

Na procuração, seguida de um extenso “extracto”, instituiu-se um coro de 7 capelães e

definiram-se as suas atribuições:

Rezar as horas canónicas do ofício divino, incluindo o de Nossa Senhora e o dos

fiéis defuntos.

Dizer os salmos penitenciais e graduais, seguindo as rubricas do Breviário Romano,

em conformidade com o que se praticava na igreja colegiada de Barcelos.

Cantar a música do cantochão nas missas solenes e festivas, bem como nas

celebradas nos dias dos Santos Apóstolos.

Todos os dias, “in perpetuum”, quer no turno da manhã quer no da tarde, deveria

celebrar-se uma missa cantada, com responso, sufragando-lhe a alma e a do seu

irmão José Coelho da Silva Medela. Porém, como ambos ainda eram vivos, este

ofício cumprir-se-ia pela alma dos seus pais, Pascoal Rodrigues e Helena Ribeiro.

O legatário dera já instruções aos seus procuradores para entregarem à mesa da

irmandade o legado para a instituição deste coro permanente de 7 capelães, no valor de

16.000 cruzados (6.400$00). Todavia, a partir da escritura de 30 de Dezembro de 1728,

mais 4.000 cruzados (1.600$00) serão entregues para aumentar o grupo de capelães,

passando para 9 elementos e 2 meninos do coro. Uma terceira escritura foi assinada em

7 de Março de 1730, a fim de se corrigirem algumas condições com as quais o

instituidor não concordava e que, segundo diz, tinham sido abusivamente introduzidas

no documento dos finais de 1728.

Tratou-se de um legado sem dúvida controverso, com algumas ilusões e muita desilusão

e dores de cabeça para o legatário. Apesar de desiludido, em 26 de Janeiro de 1743, será

assinada uma escritura de aceitação de um novo legado, no valor de 20.000 cruzados,

depois do instituidor ver garantida a constituição de um padrão de juros no

Almoxarifado de Barcelos, reservando para si três partes do seu rendimento e

entregando à mesa da irmandade apenas um quarto, como adiante se verificará.

Entretanto, nos finais da década de 1720, Inácio da Silva Medela ordenou ao seu

principal procurador que apetrechasse o coro com o mobiliário e materiais

indispensáveis: o cadeiral, a estante, os livros e o órgão.

Um pequeno apontamento inscrito nas despesas de 1725-1726, permite-nos pensar que

logo após a assinatura da primeira escritura de aceitação do legado, o coro entrou em

Cadeiral do coro, uma obra do mestre entalhador Miguel Coelho

executada em 1730.

funcionamento, ainda que em precárias condições. Nos primeiros anos deve ter

funcionado na capela-mor, até que o espaço coral se apetrechasse e alindasse.

De acordo com o documento, os “novos capelães” celebraram nesta data uma missa

pela alma de José da Silva Medela, irmão do instituidor que falecera, tendo-se gasto

330 réis pelo “aluguer da cadeira e pano e mais ornamentos” para o ofício fúnebre3.

De seguida surgem os nomes dos primeiros capelães do coro: Manuel Ribeiro Belo,

António da Costa de Azevedo, Custódio Alvares Tinoco (abade de Arcozelo),

Francisco Lopes Marques, António Pinheiro, António Pinheiro Lopes e Gabriel da

Costa4.

Como vimos, dos rendimentos do capital mutuado pagar-se-iam as propinas ou

ordenados dos capelães – “as quantias que se consignarem a cada um”, acrescentando

de imediato que, caso os rendimentos não bastassem diminuir-se-ia no salário dos

capelães/sacerdotes e, em sentido inverso, o que sobejasse destinava-se a ornatos e

paramentos da sacristia.

O dinheiro das faltas injustificadas ao serviço (as que fossem acima de 60 dias/ano,

excluindo as motivadas por doenças) seria igualmente aplicado na sacristia e no

“aumento do coro”, concordantes com a boa administração da mesa e dentro das

condições estabelecidas. Fundamental era que a mesa administrasse bem esta capelania,

“pondo e dispondo na forma mais conveniente, para aumento do coro, e segurança dos

rendimentos”.

Foi desejo expresso pelo instituidor que o coro fosse instituído o mais depressa possível

para, ainda em vida, tomar conhecimento de que o Bom Jesus da Cruz de Barcelos era

louvado no Seu templo e para que os seus parentes “tenham o gosto de que eu me

lembrei dos aumentos da minha pátria”. E, como vimos, o coro entrou de imediato em

funcionamento.

Esclarecem os documentos que o instituidor prescreveu um vasto conjunto de condições

para tentar garantir a perfeição do coro do Senhor da Cruz:

Os 7 capelães a admitir seriam, dentro do possível, destros no canto de órgão,

porém, no caso de tal não ser possível, teriam de dominar o cantochão, isto é,

possuírem bons dotes na cantoria mais comum. Mas, infalivelmente, o vigário ou

3 AISC, Livro das receitas e despesas de 1721-1750, fl. 98.

4 Idem, fls. 98-98v.

presidente do coro (nomeado pela mesa) tinha de ser destro no canto de órgão, para

examinar os “beneficiados” das cadeiras que fossem vagando.

Na admissão dos capelães dever-se-iam escolher os melhores dentre os “sacerdotes

de missa, e de exemplar virtude”, cumprindo-se assim com “a justiça distributiva” e

ao mesmo tempo serviriam de “emulação para todos os sacerdotes procurarem o

serem perfeitos”.

No concurso aos lugares vagos, os candidatos fariam petição à mesa que, para os

admitir, havia de mandá-los examinar pelo vigário ou presidente do coro. Como foi

dito, dava-se prioridade aos familiares do instituidor (esclarecendo-se que tem um

irmão casado em Aveiro e outros parentes em Ponte de Lima e em Braga), que no

entanto deveriam reunir as qualidades exigíveis ao perfeito desempenho do cargo.

Exceptuando-se os eventuais candidatos familiares, os restantes deveriam ser

naturais de Barcelos. E, uma vez aceitos, deveriam os capelães assinar um termo de

aceitação a registar em livro próprio, onde se obrigassem ao cumprimento de todas

as atribuições definidas.

Quanto às faltas injustificadas, ser-lhes-iam descontadas no vencimento, designado

por propinas. Como atrás se disse, o capital decorrente destas faltas seria investido

nos espaços da sacristia e do coro.

No caso de algum capelão vir a ser “remisso nas suas obrigações, ou prevarique o

seu modo de viver com algum escândalo público”, será expulso pela mesa que há-de

recorrer ao voto secreto (utilizando-se favas pretas e brancas), para que o capelão

“não perca a sua opinião” face a quem determinou a sua expulsão ou continuidade.

Porque se pretende um processo de todo legal, devia fazer-se petição ao arcebispo

primaz de Braga para que este prelado aprovasse esta instituição – “com cuja bênção

se possa perpetuar esta obra, e granjear por ela os favores do dito senhor em tomar

conhecimento todos os anos nas suas visitas do cumprimento das coisas aqui

dispostas para maior perfeição, que se deve observar no coro”.

Neste documento de 1724 já se prevê o recrutamento de “moços” do coro, devendo

a irmandade escolher “os mais perfeitos rapazes”, preferindo sempre os seus

parentes. Deveria ainda nomear-se um mestre para rapazes, a fim de se lhes ensinar

o latim.

Quanto ao canto coral, e a exemplo do

que se praticava noutros coros, também

aqui a missa seria cantada nas

festividades solenes (com as vésperas

igualmente cantadas), nomeadamente

nas festas evocativas do Cristo Senhor

Nosso, da Nossa Senhora e dos Santos

Apóstolos.

Mas, atenção senhores capelães!... Toda esta cantoria era para cumprir “debaixo do

mesmo salário, que se lhes consignar”.

Sendo este aspecto – o canto nas solenidades festivas – peculiar da igreja matriz de

Barcelos, caso o seu pároco se viesse a opor ao referido cântico “se implorará

indulto do ilustríssimo senhor arcebispo, ou de Roma, para que os mesmos

capelães, que rezam no coro possam cantar as ditas missas, sem que o pároco da

freguesia lhe possa impedir, nem tenha jus para as cantar”.

Numa tentativa de evitar a confusão e os conflitos (tem conhecimento dos muitos

candidatos aos apetecidos lugares de capelães), Inácio da Silva Medela nomeou para

as capelanias, seguindo os critérios da formação e das virtudes conhecidas, os

seguintes elementos: Manuel da Costa Lopes, Manuel da Costa Leitão, Luís de

Barros, Manuel Ribeiro Belo, Manuel Pinheiro, Domingos Lopes Garcia e João

Gomes de Matos. (Porém, o elenco dos capelães acima referidos demonstra que,

exceptuando Manuel Ribeiro Belo, que será o presidente, nenhum destes sacerdotes

exerceu as funções no coro, pelo menos em 1725-1726).

Na eventualidade de existirem dúvidas no “particular da reza, missa, e mais

cerimónias”, os capelães seguiriam as orientações da mesa, mas se algum viesse a

“repugnar”, ou seja, não acatasse as orientações dadas, seria substituído no cargo,

aspecto que deveria constar nos termos assinados pelos capelães aquando da sua

admissão ao serviço, isto para evitar dúvidas e eventuais pleitos, “como tem

acontecido em outros coros”.

Num livro relativo ao legado do coro do Bom Jesus de Barcelos, escrito em 1730,

afirma-se que o coro foi instituído em 1728 – mas tratou-se da sua ampliação, de 7 para

9 capelães – e que o vencimento dos juros costumava ocorrer a 6 de Julho de cada ano5.

5 “Livro do recibo, e despesa na administração do legado do coro do Bom Jesus, que instituiu Inácio da

Silva Medella. E para se não confundir este, com os mais legados, houveram por bem mandar fazer este

Nesta data, como o quadro a seguir elucida, o valor do legado havia já crescido para

mais de 9.000$00, andando as despesas anuais com a sua administração na ordem dos

452$00.

VALOR E DESPESAS DO LEGADO DO CORO – 17306

Valor global do legado – 9.040.000 réis

Despesa anual Totais

Capelães (nove) 40.000 (x9) 360.000

Meninos (dois) 10.000 (x2) 20.000

Cera durante os ofícios 20.000 20.000

Sacristia 40.000 40.000

“Propinas” dos coristas 1.200 1.200

Duas missas semanais 10.800 10.800

Total da despesa anual 452.000

No documento é referenciada uma escritura de 1729, feita no notário de José António

Vilas Boas, em que os capelães concordaram receber os juros do devedor Pedro Lopes

Calheiros, relativos a 5:600$000 réis, verba emprestada do “capital dos primeiros 7

capelães”.

Por outra escritura feita no mesmo notário, em 7 de Março de 1730, os capelães

aceitaram receber do mesmo devedor os juros referentes ao capital de 1.600$000 réis,

atribuído aos restantes 2 capelães, na sequência da renovação do legado do coro7 em

finais de 1728.

códice, só para o que pertencer a este legado […]. Em mesa do ano de MDCCLXXXII. Na curiosidade, e

bom zelo desta venerável mesa, se permitem o pobre trabalho deste título a João José Pinheiro da Cunha”

– AISC, Tratado do legado do coro do Bom Jesus de Barcelos 1730, fl. 2. 6 AISC, Tratado do legado do coro do Bom Jesus de Barcelos 1730.

7 Idem, fl.4.

Os capelães ao serviço do coro, embora comprometidos com o cumprimento

escrupuloso dos ofícios divinos pelos quais eram pagos em conformidade com o

estipulado nos documentos (procuração do instituidor, escrituras de aceitação do legado,

termos de aceitação e obrigação aquando do seu recrutamento, estatutos da irmandade e

regulamento do coro), acabaram por se revelar um grupo contestatário e reivindicativo,

nomeadamente no que respeita ao destino do capital resultante da aplicação do regime

de faltas ao serviço.

Com efeito, logo em 8 de Janeiro de 1730 os capelães reuniram e propuseram ao padre

Manuel Ribeiro Belo (presidente do coro durante longos anos) que se procedesse às

contas “das porções de cada um” e se contabilizassem as faltas dadas ao serviço do coro

para que, uma vez cobrados os juros “do dinheiro deste legado” se adjudicasse a cada

um deles “o que lhe tocasse líquido”. Decidem também, por unanimidade, que “neste

primeiro ano [do renovado coro] se não fizesse ponto das faltas e que a cada um se

entregasse a sua porção por inteiro”, contrariando assim uma das cláusulas estabelecidas

pelo instituidor.

O plenário dos capelães concordou ainda que se descontasse ao herdeiro do capelão

Luís de Barros o tempo vencido até ao óbito deste, ocorrido a 27 de Junho de 1729,

termo que foi assinado pelos nove capelães. Finalmente, apresentaram as contas

“vencidas ao dia cinco de Janeiro” de 17308, ou seja, no final do primeiro ano do

funcionamento do coro constituído por 9 capelães.

Embora o coro do Senhor da Cruz tenha iniciado as suas funções, primeiro em 1725

com 7 capelães e, posteriormente, em 6 de Janeiro de 1729 com 9 capelães, a verdade é

que o espaço que lhe estava reservado teve de ser aprimorado, de acordo com a

dignidade do templo, a vontade da mesa da irmandade e o dinheiro de Inácio da Silva

Medela.

8 Com outra caligrafia, foi registado posteriormente na margem esquerda o seguinte: “É prática, que a

Santa Sé Romana condenou” – AISC, Livro das porções dos capelães do coro 1730, fl. 2.

Pormenores do cadeiral existente no coro do templo do Senhor

Bom Jesus da Cruz, da autoria do mestre entalhador barcelense

Miguel Coelho, 1730.

Na verdade, apenas em 1730-1731 os labores artísticos e musicais chegaram ao espaço

coral. Depois do revestimento azulejar dos panos de parede vazias, sem aparelho

granítico, construiu-se o órgão de tubos e a sua caixa em talha dourada. E o cadeiral.

As obras do cadeiral e do órgão

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Dezenas de documentos existentes no arquivo da real irmandade dão vida a todo o

processo da instituição e instalação do coro no templo do Senhor da Cruz.

Como se referiu no Capítulo II, nos inícios da década de 1720 procedia-se ainda a obras

de acabamentos em vários espaços da igreja, incluindo naquele que fora destinado ao

funcionamento do coro.

Recorde-se que nas despesas de 1721, Bento da Costa recebeu 445 réis relacionados

com o transporte da pedra para lajear o espaço coral, faltando ainda colocar-lhe as

portas e o soalho, bem como outras obras de carpintaria e de talha, nomeadamente a

estante e o cadeiral para os capelães poderem oficiar com alguma comodidade. Faltava

ainda o revestimento das paredes, obras que decorreram nos finais dos anos 20 e nos

inícios de 1730.

Pormenores da parede fundeira do coro, podendo observar-se o revestimento azulejar onde, mais uma vez,

pontificam cenas associadas a temática da Paixão de Cristo. Pequenos e grandes, os anjos participam na

mostra de instrumentos do martírio, enquadrados pela arquitectura da abóbada e rodeados de elementos da

natureza, numa exuberância decorativa tão característica do período barroco.

Aliás, nos anos 40 decorrerão ainda algumas obras de carpintaria no antecoro. Nas

contas de 1741, o mestre carpinteiro João da Silva recebeu do tesoureiro Manuel de

Miranda 8.000 réis por ter feito um “sobrado no antecoro” (despesa que incluía os

barrotes, as tábuas de castanho e os pregos que o mestre havia fornecido); recebeu 1.200

por um tapamento para o mesmo sobrado, uma porta, barrotes de castanho e tábuas de

pinho, dobradiças e pregos; por duas caixas grandes para o mesmo espaço junto ao coro,

com seus assentos, dobradiças e pregos, recebeu ainda 4.300 réis9.

Coube ao mestre Calisto de Barros Pereira, de Cambezes (Monção), conceber o órgão

de tubos “ibérico”, um mestre ligado à organaria galega que terá sido contratado em

1730 pelo juiz de fora e juiz da irmandade, o Dr. Matias de Melo e Lima10

.

9 AISC, Livro das receitas e despesas de 1721-1750, fl. 234.

10 FONSECA, Manuel dos Santos – Os órgãos de tubos no concelho de Barcelos, in Actas do Congresso

“Barcelos Terra Condal”, Vol. II, pp. 48-49.

Cf. FERREIRA DE ALMEIDA, Carlos Alberto, ob. cit., p. 67.

Órgão de tubos ibérico, executado pelo mestre Calisto de

Barros Pereira, segundo encomenda de 1730. No mesmo

ano, encomendou-se ao mestre entalhador Miguel Coelho o

entalhe da caixa, obra que realizou em 1731.

A sua execução e instalação ocorreram pouco depois porquanto, nas contas de Março

de 1731 a Dezembro de 1734, foram registadas várias despesas, uma de 7.663 réis,

relacionada com o “aluguer da casa do organista por onze meses e meio que nela

assistiu” e outra, de 524 réis, pelo acrescentamento dos ferros que se consertaram para

segurar o órgão, pelo chumbo, pregos e salário ao carpinteiro António de Azevedo.

Nessa altura, gastaram-se também 400 réis com um pedreiro que assentou umas pedras

na torre dos sinos “para impedir cair água no coro”11

.

Miguel Coelho foi o artista escolhido para entalhar a caixa do órgão, de acordo com a

encomenda de 1730, uma obra que executou em 1731. Também em 1730 terá sido

contratado o enxambrador bracarense José dos Reis para fabricar as grades e a estante,

feitas em pau-preto, com aplicações de metal12

, artista a quem a irmandade pagou

55.200 réis pelo andor da Procissão dos Passos, conforme se pode ler nas contas atrás

referidas13

.

Faltava dourar e pintar o órgão. Antes, porém, da sua caixa ser dourada e pintada,

encontrámos o mestre carpinteiro João da Silva a consertar-lhe os foles (1746-1748),

talvez do muito uso e do pouco cuido. A caixa do órgão será dourada e pintada em

1750, uma obra do pintor barcelense António Vieira cujo contrato foi assinado a 10 de

Agosto deste ano, pelo preço de 90.000 réis. (De referir que dois ou três anos antes, o

mestre António Vieira tinha recebido 6.400 réis pela “encarnação da imagem do

Senhor”, uma imagem feita em pasta, e mais 1.400, pela “encarnação do Senhor dos

Passos”)14

.

Pelo contrato de 1750 (assinado pelo artista e por duas testemunhas, os barcelenses

Manuel da Costa Silva e Francisco Xavier da Mota), a obra da pintura e douramento da

caixa do órgão deveria executar-se “com a perfeição que deve ser e a contento da mesa”

e estar pronta no dia de Natal do mesmo ano. Os andaimes da obra ficaram por conta da

mesa da irmandade.

11

AISC, Livros das receitas e despesas de 1721-1750, fls. 162v, 165v e 171v. 12

Cf. FERREIRA DE ALMEIDA, Carlos Alberto, ob. cit., p. 67. 13

AISC, Livros das receitas e despesas de 1721-1750, fl. 158v. 14

Idem, fls. 300 e 302.

Para que não subsistissem

dúvidas, o mestre dourador e

pintor comprometia-se a dourar

toda a caixa do referido órgão,

incluindo as grades “tanto da

parte fronteira como de trás”,

enquanto os meninos que o

coroam eram para pintar e estofar

“com seus rubis e foscos onde a

obra o pedir”.

No caso de alguma destas condições não ser respeitada, seriam descontados 6.400 réis

ao valor estipulado no contrato15

. Deve tudo ter corrido bem. Estavam o órgão e a sua

caixa finalmente completos. O canto de órgão e o cantochão ecoavam no templo,

abrilhantados pela policromia e pelo oiro reluzente.

Por volta de 1746-1748 tinham vindo os livros do cantochão que custaram 11.100 réis,

despesa a que temos de juntar outras para que a obra se completasse: 1.120 réis pelo

transporte das pautas musicais, de Coimbra para Barcelos; 360 para quem as foi levar a

Braga para encadernar e depois buscá-las; pelo trabalho da encadernação 6.400; pelas

chapas e pregos utilizados na referida encadernação 7.500, por se abrir e esmaltar as

chapas 1.200 e pelo chumbo para se fazer o molde delas 100 réis16

.

Preciso era proteger o órgão das chuvas que, tocadas pelo vento, invadiam o interior do

templo. Segundo as contas rubricadas a 21 de Dezembro de 1738, tinha-se pago 1.400

réis ao mestre carpinteiro João da Silva por, entre outros aspectos, colocar um alçapão

em castanho “que cobre o boqueirão que está no fim das escadas da torre”, feito para se

evitar a infiltração das águas que, sobretudo no Inverno, invadiam o coro e a sua

abóbada “quando os grande ventos com chuvas metem água na mesma torre”17

.

Mas a humidade que invadia de forma impiedosa o espaço coral, atingindo o novíssimo

órgão, não entrava apenas pela torre sineira. Tocada pelo vento, ela entrava

directamente no templo pela porta principal dele.

15

AISC, Caixa 1, Contrato do douramento da caixa do órgão. 16

AISC, Livro das receitas e despesas de 1721-1750, fl. 303. 17

Idem, fl. 204.

Pormenor do órgão sob a abóbada, junto ao coro do

templo do Senhor da Cruz.

E tardou a resolução do problema. Com esse tardar, como sempre acontece, e nós

somos testemunhas do descuido e abandono a que historicamente inúmeras obras

patrimoniais são deixadas, ocasionam-se danos irreparáveis.

Apenas a 13 de Maio de 1783, por se encontrar o

órgão desafinado – “causa de lhe cair água da chuva,

pela abóbada do mesmo templo no Inverno” –, o

tesoureiro foi mandatado pelos “senhores da mesa”

para chamar o competente organeiro para proceder

ao seu arranjo e afinação18

.

Finalmente, na reunião de 11 de Novembro de 1787,

a mesa da irmandade determinou a construção de

um guarda-vento “atendendo ao grave prejuízo que

os ventos e chuvas causam a este templo, e seu

órgão, pela porta principal dele”19

.

Nesta circunstância, encarregou-se o

tesoureiro de mandar fazer o risco desse

resguardo de madeira, com a parte

superior envidraçada, a fim de se

contratar quem melhor realizasse a obra

e, obviamente, dentro do melhor preço.

De notar que, nesta ocasião, conforme se pode ler na acta, o tesoureiro ficou ainda

incumbido de mandar entalhar dois tocheiros iguais aos que se encontravam na capela

do Santíssimo Sacramento da igreja colegiada de Barcelos20

.

Conforme a pesquisa de Manual Fonseca, volvidos 100 anos após o seu assentamento, o

órgão do Senhor da Cruz sofreu um profundo restauro, da autoria de João Evangelista,

um homem de possível origem galega. Cerca de 1870 a maioria dos seus tubos internos

e alguns da frontaria terão sido retirados e substituídos por tubos de folha da Flandres,

que enfim “foram balindo como puderam” até se calarem cerca de 192321

.

18

AISC, Livro de actas da segunda metade do século XVIII, fl. 39. 19

Idem, fl. 49. 20

Idem, Ibidem. 21

FONSECA, Manuel dos Santos, ob. cit., p. 49.

Guarda-vento, visto do interior.

Calaram-se os tubos velhos, mas o mestre barcelense deu-lhes voz!... Restaurou o

órgão, restituiu-se o brilho à talha dourada da sua caixa, deu-se colorido aos meninos

que o enfeitam.

De facto, na década de 1990, sendo então provedor da real irmandade o Dr. Vasco de

Faria, o órgão do Senhor da Cruz foi sujeito a um profundo restauro sob a

responsabilidade do mestre Manuel Fonseca, que nos explica tratar-se este órgão de

tubos do “tipo ibérico”, diferenciando-se do instrumento inglês, francês, alemão,

italiano e Países Baixos.

Na pesquisa que elaborou, Fonseca cita especialistas como M. A. Vente e W. Kok e o

seu tratado “Spanish Baroque Organ”, bem como o padre Manuel Valença e a sua obra

“O Órgão na História e na Arte”, estudiosos que consideram como paradigmas do

chamado órgão ibérico o de Toledo, o do Escorial e o da Sé de Braga22

.

Aqui e agora, interessa-nos o do Senhor Bom Jesus de Barcelos, um órgão magnífico,

quer pelas sonoridades que dos seus tubos ecoam, quais ecos dum passado glorioso

revividos, quer pela talha de excelente qualidade que o envolve, o enfeita e o torna mais

belo, mais festivo, setecentista.

O órgão de tubos do Senhor da Cruz patenteia plasticidade formal, imagética e

lumínica, ondulação e movimento, policromia e oiro, para além dos acordes melodiosos

de primeira plana, suaves e profundos sons clássicos e barrocos arrancados aos seus

elegantes tubos, graças à mestria de exímios mestres, tudo ali harmoniosamente

reunido… Numa excelente obra de arte! 22

Idem, pp. 43-56.

Num exemplar casamento com a pureza de linhas arquitectónicas, com as 8 pinturas do

eixo central sob a cúpula feitas pelo pintor barcelense Manuel Luís Pereira, com a festa

azulejar das paredes e a talha de primeira grandeza dos altares e do arco-cruzeiro, o

órgão de tubos do Senhor Bom Jesus da Cruz contribui para a qualificação deste templo

como um dos melhores ex-líbris de Barcelos.

Doações do instituidor do coro do Senhor da Cruz

______________________________________________________________________

O livro das receitas e despesas e as cartas enviadas do Brasil ao juiz da irmandade

atestam de forma inequívoca, por um lado, uma corrente quase constante de dádivas ao

Senhor da Cruz e, por outro, o desenvolvimento de conflitos de algum melindre,

relacionados com a dinâmica do coro e com os interesses materiais a ele associados.

Antes de mais, parece-nos apropriado divulgar as doações feitas à Irmandade do Senhor

Bom Jesus da Cruz, directa ou indirectamente relacionadas com a instituição do coro

por este barcelense, um rico homem de negócios «brasileiro» que viveu cerca de meio

século na Rua Direita, do Rio de Janeiro. (Em 1706 Medela já se encontrava no Brasil,

data em que enviou uma esmola de 100.000 réis para as obras do novo templo. O seu

falecimento terá ocorrido no Rio de Janeiro, em 1747).

Inácio da Silva Medela foi, sem margem para dúvidas, o mais importante benfeitor do

Senhor da Cruz e da sua irmandade.

Será oportuno recordarmos que, para além de ter saído do seu bolso o mais expressivo

donativo individual para as obras da actual igreja, Medela deu instruções ao seu

procurador vimaranense, Joaquim da Costa Silva, para proceder ao pagamento anual do

azeite para as lâmpadas do Bom Jesus de Barcelos. Embora o primeiro donativo para

este fim date de Fevereiro de 1723, no valor de 32.400 réis, a sua entrada no cofre da

irmandade verificou-se a 3 de Maio, dia da Invenção da Santa Cruz 23

.

A partir desta data, anualmente, o procurador entregava ou fazia entregar à mesa da

irmandade a quantia de 16.000 réis destinada ao azeite que ardia para iluminar o templo.

Como se pode aferir pela leitura dos documentos, a esmola chegava a Barcelos

geralmente em Maio, embora o mês de Fevereiro fosse a baliza anual desta esmola. É de

crer que o fazia na qualidade de juiz da irmandade, cargo honorífico para que foi

entretanto nomeado, talvez no intuito, perdoe-se o juízo, do alargamento do caudal que

provinha do Rio de Janeiro.

Também se deve a Inácio da Silva Medela a pequena e bela escultura da Senhora da

Piedade, que se encontra no retábulo do altar-mor, esculpida num toro de cedro enviado

do Brasil, conforme a leitura dum excerto duma carta de 30 de Junho de 1730

claramente nos elucida.

Em um navio da cidade do Porto que desta vai com escala por Pernambuco

tenho carregado um toro de pau cedro para vossas mercês me fazerem

mercê deste mandarem fazer uma imagem de Nossa Senhora da Piedade do

tamanho que virem se pode acomodar no altar-mor sobre a banqueta, pois

desde rapaz tenho a devoção com esta Senhora por haver em casa de meus

pais um painel desta imagem – o qual quando me vi com a defunta minha

mãe na cidade de Lisboa no ano de 1698, lhe perguntei por ele e me disse o

tinha deixado às filhas de Jerónimo do Vale nessa vila – assim que peço a

vossas mercês tomem por serviço da mesma Senhora este trabalho,

mandando-a fazer com toda a perfeição que for possível, como também

ajustar com os reverendos capelães rezar-lhe a sua ladainha nos sábados

de manhã, ou de tarde, como melhor lhes parecer24

.

23

AISC, Livro das receitas e despesas de 1721-1750, fl. 2. 24

AISC, Caixa 2, Carta III de Inácio da silva Medela.

Numa carta que escrevera em 1727 ao juiz da irmandade, Dr. Manuel de Andrade e

Almada, Inácio Medela dá-lhe conta do envio da madeira para as grades do templo do

Senhor da Cruz. A madeira, jacarandá, terá sido despachada da Baía, cidade donde deu

ordens a outro seu procurador, António Jorge Martins, que “comprasse e remetesse nos

navios do Porto o pau de jacarandá para as grades do Bom Jesus que vossa mercê me

pediu, pois nesta [cidade do Rio de Janeiro] nunca põem navio à carga para a cidade do

Porto, por cuja causa mandei ao dito comprasse também um feixe de açúcar, e

remetesse para vossa mercê o qual lhe oferece o meu amor”25

.

Pela mesma missiva Medela dá a notícia de que um diadema em ouro atravessaria as

águas do Atlântico, destinado ao Bom Jesus de Barcelos, levada pelo tenente-coronel

Manuel Nunes Ferreira, que no entanto deveria refazer-se em Lisboa, atendendo ao

defeito detectado no seu fabrico.

Nesta ocasião vai o nosso patrício e famoso

tenente-coronel Manuel Nunes Ferreira e leva uma

diadema de ouro para o nosso Bom Jesus de

Barcelos a qual mandou fazer nesta cidade do Rio

de Janeiro, e a leva em sua companhia, que pelo

defeito com que lhe saiu vai de acordo a mandá-la

fazer outra vez em Lisboa que há-de permitir o

mesmo Bom Jesus levá-lo a salvamento à dita

cidade a donde lhe escreverá vossa mercê e o

reverendo cónego meu primo dando-lhe as boas

vindas, e tudo o mais que é necessário a um

tenente-coronel solteiro moço e rico26

.

25

AISC, Caixa 2, Carta II de Inácio da Silva Medela. 26

Idem, Ibidem.

Pormenor da imagem do Senhor Bom

Jesus da Cruz, com o seu resplendor

feito de metais preciosos.

Em 1730 pagou-se 120 réis a um carreteiro que trouxe do Porto “o caixote do

ornamento de damasco carmesim”27

. Mas as despesas registadas pelo tesoureiro entre

Janeiro de 1730 e Março de 1731 são bem expressivas dos gastos que corriam por conta

deste juiz e instituidor do coro do Senhor da Cruz.

DESPESAS EFECTUADAS POR CONTA DE INÁCIO DA SILVA MEDELA,

ENQUANTO “JUIZ E LEGATÁRIO DO CORO” – 1730-173128

Descrição da despesa Montante

(em réis)

Por 8 dobradiças para as cadeiras do coro. 400

Metade dos gastos da Procissão dos Passos, de 1730. 8.110

A quem levou uma carta ao organista, em Abril de 1730, para a

“disposição do órgão”.

600

A quem levou uma carta ao procurador de Inácio da Silva Medela,

Joaquim da Costa Silva, de Guimarães.

400

A quem foi a Braga levar os apontamentos do órgão a Manuel de Matos. 360

Pelo papel “imperial” para fazer a conta do órgão. 100

Metade das despesas com a Festa das Cruzes de 1730. 18.650

Pela ceia que se deu aos mordomos no dia da Festa das Cruzes. 970

Despesa com a escritura para a execução do órgão. 400

A quem foi buscar o organista para se ratificar o contrato do órgão e

entregar-lhe o dinheiro para “os materiais dele”.

800

Para os ferros “que hão de segurar as cadeiras do coro”. 240

Metade das despesas com a Procissão dos Passos de 1731. 6.190

Total 37.220

A custódia de prata foi também feita graças ao precioso metal enviada por Medela.

Pelas contas de Março de 1731 a Dezembro de 1734, podemos verificar que a

irmandade ainda não dispunha desta alfaia litúrgica fundamental, pois gastou-se 100 réis

27

AISC, Livro das receitas e despesas de 1721-1750, fl. 141v. 28

Idem, fl. 142.

com o homem que foi a Gilmonde, e depois a Remelhe, buscar a custódia para as

Endoenças29

.

Porém, antes de Dezembro de 1734, o problema

deveria estar resolvido, graças ao benemérito

instituidor do coro.

Despendeu [o tesoureiro] a prata que mandou

Inácio da Silva Medela de esmola para esta

irmandade para dela se fazer a custódia, cuja

prata importou todo o peso de vinte e cinco

marcos duas onças e seis oitavas, e importou o

peso da prata da custódia vinte e cinco marcos

duas onças e quatro oitavas e sobejaram da dita

prata depois de feita a custódia duas oitavas

que importaram duzentos réis.

Despendeu com o mestre António Ferreira

velho pelo feitio da custódia setenta mil réis,

com o douramento da esfera e luneta da mesma

custódia despendeu cinco mil e duzentos réis, e

das buchas e ferros da mesma custódia

despendeu trezentos e sessenta réis [perfazendo

81.160 réis]30

.

Somos ainda informados pela mesma fonte que se gastaram 25.729 réis, “por conta do

juiz Inácio da Silva Medela pelo que lhe tocou de gastos à sua parte nos Passos e festa de

Maio de 1734”31

.

29

Idem, fl. 164v. 30

AISC, Livro das receitas e despesas de 1721-1750, fls. 168-168v. 31

Idem, fl. 170v.

Custódia de prata, com a esfera e a

luneta douradas, uma obra do mestre

ourives António Ferreira, cerca de 1734.

Desilusão e conflitos em torno do coro do Senhor da Cruz

________________________________________________________________________

Apesar da vasta benfeitoria do instituidor do coro do templo do Senhor da Cruz (que

funcionou com mais ou menos regularidade desde 1725 até 1923) as cartas que Inácio

da Silva Medela enviou do Rio de Janeiro põem em evidência a existência de conflitos,

primeiro relacionados com as pretensões de amigos e familiares e logo a seguir com os

pedidos e/ou exigências dos capelães.

A mesa da irmandade, responsável pela administração do coro, parece não ter pulso (na

sua opinião) junto dos capelães, que Medela cada vez mais interpreta como

interesseiros. Chega mesmo a comparar as instituições de fiéis brasileiras com as da sua

terra natal, para enaltecer aquelas e criticar estas.

Do lamento e da mágoa vertidos a tinta no papel das cartas que vai escrevendo, do

desapontamento e da consciência dos interesses pouco espirituais dos capelães do coro,

o conflito foi-se alimentando, e aparentemente resolvendo, sob o fino verniz da

hipocrisia.

Naquela que julgamos ser a primeira carta enviada do Rio de Janeiro, de 8 de Julho de

172632

, Medela dirige-se ao Dr. Manuel de Andrade e Almada (juiz da irmandade

durante longos anos), mostrando-se condoído com os “debates” que este vem travando

com o seu amigo Manuel Correia Rebelo e com o seu primo, o cónego Manuel de Faria

de Eça, expressando a opinião de que “o demónio perdeu a graça de Deus”, mas não

está destituído da necessária “indústria para com ela trabalhar” visando perturbar todo o

trabalho em Seu louvor.

Diz desconhecer as razões do amigo e do primo perante “uma coisa que eu fiz para

todos, enquanto o mundo for mundo, que nela lhe dou a preferência a todos os meus

parentes; porém estes pelo serem não querem esperar como eu esperei e trabalhei, e

andei”, sem qualquer ajuda de parentes.

Depreende-se que o juiz lhe sugerira a colação dos capelães, ou que estes a reclamavam

– o que implicaria obediência exclusiva à autoridade eclesiástica, situação que não fora

prevista nem desejada –, já que Inácio Medela contesta tal possibilidade, defendendo o

vínculo dos capelães ao juiz e à mesa da irmandade.

32

AISC, Caixa 2, Carta I de Inácio da Silva Medela.

As cartas e mais documentação relativa ao coro foram trasladadas para o Livro da instituição do coro da

Irmandade do Senhor Bom Jesus da Cruz.

Sustenta que, “como vossa mercê me faz juiz, digo que a serem colados, é em prejuízo

da Irmandade do Bom Jesus, porque não ficam a ela subordinados, e pode qualquer dos

beneficiados então ser desatento ao juiz e mais irmãos se quiser” sem que estes tenham

poderes para “botá-lo fora”.

Com razão diz vossa mercê que todo o meu projecto, e de quem me

aconselhou foi sujeitar os clérigos à mesa da Irmandade do Bom Jesus,

para por si os poder expulsar, por que regulei isto por um contrato,

recíproco, de que os clérigos rezassem no coro as horas canónicas e a mesa

lhe pagasse a sua côngrua, e como as naturezas dos clérigos são diferentes

se pode algum demariar com os irmãos da mesa, ou juiz, e acho posto em

razão que a mesa o expulse, pois não pode dar-lhe outro castigo, o que

serve de freio para o conservarem com cautela, o que não será sendo

colados. Nesta cidade há dois legados semelhantes, um na Misericórdia e

outro na matriz da Candelária que assim se observa, nem a nenhuma luz em

sombra pode parecer justo, que o clérigo se possa despedir cada vez que

quiser, e quem lhe paga o não possa despedir não o servindo bem, e se no

principio da instituição se não prevenir estes obstáculos, sucedem bulhas, e

demandas, de que eu quero fugir neste legado, e se uns não quiserem

aceitar nesta forma haverão outros que aceitem33

.

Noutra passagem da missiva acusa a recepção das cartas de 8 e de 15 de Março, tendo

ficado radiante pela “alegria que vossas mercês tiveram nessa vila, e o estrondo com

que se rompeu a notícia desta minha instituição”, acrescentando que deu instruções ao

seu procurador para tratar do financiamento do cadeiral e do órgão para o coro.

Nesta data, 8 de Julho de 1726, mais informa Inácio Medela que é sua intenção alargar o

coro de 7 para 9 capelães e 2 meninos; que os elementos do coro deverão funcionar na

capela-mor enquanto se não pudesse rezar no espaço a ele destinado; que nomeava para

os novos capelães aos padres António Barbosa (de Góios) e Filipe Correia, filho de

Manuel Correia Rebelo (na ausência deste dever-se-ia nomear o padre Manuel de

Matos); e para meninos do coro indicava os “dois netos de meu tio Martim Rodrigues o

cirurgião e na falta destes a outros quaisquer que hajam capazes por sanguinidade”.

Nomeava ainda o padre Leitão como o sacristão do templo. 33

AISC, Caixa 2, Carta I de Inácio da Silva Medela.

Numa carta de 19 de Agosto de 172734

, concorda com a proposta do juiz de se pagarem

10.000 réis anuais a cada um dos meninos do coro, mas quanto à insistência e/ou

reivindicação dos capelães no sentido de serem colados e não nomeados pela mesa

segundo as prescrições do instituidor, este é peremptório:

Tomara eu fazer-lhes boa renda, que colados e dignidades isso não está na

minha mão, e ainda que estivera não havia de deixar de dar a regalia aos

irmãos da mesa na forma que eu tenho explicado no extracto, porque o que

pode suceder por acaso haver irmãos que entrem nessa mesa, e queiram

correr com os meus parentes, o que tal não posso presumir, e caso que

assim seja não é esse o obstáculo que me há de fazer revogar o dar a

primazia à dita irmandade, porque tenho de fé que os meus parentes sendo

corridos dos irmãos da mesa, hão de ser favorecidos pelo mesmo Bom

Jesus.

Perante as dificuldades da colocação do capital do legado a juros numa instituição do

Estado, e para fazer face às despesas do coro, o juiz da irmandade apresentou uma

sugestão que não agradou ao instituidor: “vejo a dificuldade que vossa mercê mostra em

se não poder pôr este dinheiro em juro real, dizendo-me posso eu buscar sujeito no

Porto ou em Lisboa que supra com os quatrocentos mil réis do ordenado para o dito

coro, obrigando eu a este sujeito as minhas propriedades visto não ter herdeiros, ao que

se me oferece dizer a vossa mercê que não tem lugar por muitas razões […] fundadas na

razão da experiência que o tempo me tem mostrado”, sugerindo que busque a mesa

influências junto do rei e da câmara da vila para a colocação do dinheiro a juros no

Almoxarifado de Barcelos.

Entretanto, é de parecer que, enquanto não for possível colocar o dinheiro a “juro real”,

poderia o mesmo dar-se a juros a pessoa “abonada e cristã, para que vá rendendo algum

juro”; para isso, sugere que se contactem os capitães Joaquim da Costa Silva, Tomás

Rodrigues de Brito e Manuel Gonçalves Neves, bem como o abade da Castanheira, até

porque, estando o capital “na forma que tem estado até aqui nenhum propósito tem”.

Uma vez resolvido este problema, e em jeito de promessa (que aliás cumprirá sem

delongas) “se andará com os aprestos do órgão, cadeiras e livros, e o mais necessário 34

Idem, Carta II de Inácio da Silva Medela.

pois poderá o dito dinheiro ter rendido os juros para os ornamentos que estão feitos”, no

valor de 150.000 réis “e escusara eu de os desembolsar em cima de se perder os juros

que se podia lucrar”.

Na mesma carta, porém, regozija-se com o envio da petição ao rei, para que fossem

aceites os 20.000 cruzados a juro real, no Almoxarifado de Barcelos, sabendo que o

monarca já a tinha encaminhado para o seu Secretario de Estado. Inácio Medela renova

a recomendação das influências das personalidades atrás referidas “para que se

empenhem em buscar o meio de se pedir ao dito secretario alcance de sua majestade

esta mercê porque só ele é que o pode fazer”.

Todavia, enquanto se não conseguisse o almejado depósito a juro real, insistir-se junto

daqueles influentes capitães no empréstimo ”aos seus amigos pessoas fidedignas e

abonadas que tomem este dinheiro a juro […] pois são pessoas que nos hão de tirar as

barbas de vergonha”35

.

Com uma carta de 30 de Junho de 1730, dirigida ao juiz e mais irmãos da mesa, Inácio

Medela remete “a procuração bastante em que confirmo os estatutos acrescentados”, ou

seja, rectifica algumas prescrições que, de forma abusiva, tinham sido introduzidas na

segunda escritura de instituição do coro, aquando da passagem de 7 para 9 capelães e

que iam ao encontro dos interesses destes.

Como atrás se referiu, foi nesta carta que

noticiou o envio da madeira para a escultura

da Senhora da Piedade, que deveria colocar-

se sobre a banqueta, mas que foi parar à

pilastra do retábulo-mor, lado do Evangelho.

(Recorde-se que em 1730, a parte superior

da parede fundeira do coro já deveria estar

forrada a azulejo azul e branco, uma obra do

mestre João Neto, de Lisboa).

Mais informa que deu instruções ao procurador de Guimarães para entregar à mesa da

irmandade a quantia necessária, “do seu juro”, para se pagar a um sacerdote organista

“que só sirva de tocar o órgão e não de rezar, mais do que os nove que tenho 35

Idem, Ibidem.

determinado”. Este sacerdote/organista a contratar funcionaria como uma espécie de

preceptor, que ensinaria latim a dois coristas, “até construírem” e leitura a dois rapazes;

uma vez dominada a leitura, os novos moços passariam à escrita, devendo então o

organista ensinar os “quatro, dois a latim, e dois a ler, ou todos os quatro a latim, e estes

devem ser filhos daquelas minhas parentas ou parentes que mais necessitem, e os

rapazes sejam capazes para tal ocupação”. Para além de professor de português e latim,

o organista do Senhor da Cruz ficaria obrigado a celebrar uma missa semanal, à

segunda-feira, pelas Almas do Purgatório36

.

Em 6 de Agosto de 1731, Medela dirige-se aos “senhores da mesa” acusando a recepção

da carta de 29 de Janeiro e reagindo às resistências da rectificação das condições

introduzidas na segunda escritura. Embora os irmãos, na sua carta, “digam que esta

matéria não pode já receber alteração pela força de contracto que se fez com os capelães

é sem dúvida que o tal contracto foi celebrado muito contra minha mente e vontade”.

Mais diz que os capelães, por aquele novo contracto ser tão favorável, “o abraçaram e

aceitaram logo sem mais fundamento que a minha simples carta […]. E assim entendo

que vossas mercês como administradores deste legado devem com os termos mais

políticos e corteses persuadir aos ditos capelães queiram ceder da sua opinião fazendo

que a missa quotidiana fique nos sete primeiros, e que os dois acrescidos digam as duas

missas semanárias uma à sexta-feira outra ao sábado na forma das minhas tenções de

sorte que todas as semanas se digam nove missas, e se eles assim o não quiserem,

também entendo que vossas mercês têm jus e acção para os compelir e obrigar, ou

expulsá-los e meter outros, e quando assim se não faça usarei eu então do meu direito e

justiça”37

.

Visivelmente irritado com a postura dos capelães e a possível cumplicidade da mesa da

irmandade, Inácio da Silva Medela retrocede na criação do cargo de organista e

preceptor dos rapazes do coro, mostrando-se “desenganado e desvanecido por entender

que é desnecessário visto que um dos capelães tem a tal obrigação e vista também a

nova forma da aceitação do legado”. O caudal do Rio de Janeiro não estancará, mas

parece iniciar-se a descida do leito!

Em tom deveras agastado, de quem pretende lembrar as benfeitorias realizadas, Medela

continua a sua extensa carta do estio de 1731, que aqui reproduzimos pela pertinência

36

Idem, Carta III de Inácio da Silva Medela. 37

Idem, Ibidem.

que lhe encontramos. É quase um quadro resumo das dádivas ao templo do Senhor da

Cruz, nos escassos 6 anos de funcionamento do coro.

E se além do legado mandei dar três ornamentos ricos, varias peças de

prata, grades para o coro, cera, propinas, e coristas, e não reparei no

prejuízo e dano que recebi na demora de vinte e cinco mil cruzados, que no

espaço de três ou quatro anos estiveram empatados sem lucrar coisa

alguma, e no fim deles achei só catorze bem se deixa ver que tudo foi

inspiração do Senhor Bom Jesus, e nem pela demasia, e superfluidade de se

darem dois mil cruzados, por um órgão, que pela planta e preço entendo

que será maior que o templo, fico desanimado, antes tenho por certo que o

dito Senhor me recompensará tudo na salvação da minha alma, e não nos

bens temporais, porque eu sem nada nasci e sem nada hei-de morrer.

Sobre a diminuição dos 60 dias do estatuto [folgas dos capelães] ao que

vossas mercês só me deferem com a repugnância dos capelães que

repugnam tudo o que é dar-me gosto, se oferece dizer a vossas mercês que o

senhor patriarca de Lisboa não confirmou mais que 40 dias de estatuto aos

capelães do coro que meu irmão instituiu na dita cidade e paroquial de

Nossa Senhora da Conceição da Rua Nova como a vossas mercês mandarei

a cópia, se for necessário, e que a esta imitação se podia lá também

diminuir os ditos 60 dias e reduzir a 40 – Deus guarde a vossas mercês

muitos anos. De vossas mercês. Muito seu venerador. Inácio da Silva

Medela38

.

Em 30 de Novembro de 1732, Inácio Medela escreveu de novo para o Senhor da Cruz,

desta vez dirigindo-se ao presidente do coro, Manuel Ribeiro Belo. A tensão parece ter

diminuído, esperando que esteja agora tudo “sossegado”. Informa que deu ordens ao

procurador Joaquim da Costa Silva para gastar o necessário para “se acabar de ordenar”

o seu primo padre Francisco Coelho; e que este, logo que seja ordenado sacerdote,

assista ao coro e reze como os capelães e diga uma missa semanal à terça-feira pelas

Almas do Purgatório “ao qual hei-de eu pagar enquanto não houver lugar para entrar no

mesmo coro”. Esclarece que o dito primo estará sob “debaixo do domínio do presidente

dele e este seja vossa mercê, lhe encomendo já, desde agora a sua boa educação e 38

Idem, Carta IV de Inácio da Silva Medela.

doutrina”. Também manda acrescentar mais um capelão, o primo Manuel Alves

Medela, pedindo-lhe “como meu procurador ajustar isto, e a sanar alguma dificuldade

que se ofereça com a mesa”.

De seguida, solicita ao presidente do coro que elabore uma descrição detalhada das

obrigações inerentes ao legado instituído – “em clareza e assento todas as obrigações,

assim antecedentes, como as modernas” – nomeadamente: o valor principal doado para

a instituição do coro; o rendimento anual dos juros e respectivas aplicações; o número

de capelães, seus ordenados e suas obrigações; o montante destinado às missas semanais

e o “cómodo ou giro com que são ditas”; o donativo para o rendimento da cera; a

mesada que “agora” dá para o jantar dos presos; a quantia que se destina à celebração

das 3 missas do Natal e “que quero que todos os capelães digam”; em suma um relatório

pormenorizado, incluindo “tudo o que dei fora da obrigação por uma vez somente”,

documento que será feito “com aquela individuação, e miudeza que a vossa mercê lhe

parecer precisa para notícia e perpetuidade”39

.

Na carta de 30 de Maio de 1735, queixa-se a Manuel Ribeiro Belo das “moléstias

causadas pelos contratempos que nesta cidade tem havido”, desde prisões à confiscação

de bens, que “até eu tirei carta de seguro, por crime que me quiseram imputar de

dinheiro que emprestei a um sujeito” envolvido num problema relacionado com o

sequestro de um navio “por lhe acharem ouro em pó”.

Dá-lhe conta de que ordenou ao seu primo e procurador Valentim da Silva Coelho, via

procuração endereçada na frota anterior, que entregasse a Manuel Maciel Ferreira

400.000 réis a juros de 5%, com hipoteca dos seus bens de raiz.

No que respeita ao seu defunto primo, Manuel Rodrigues Medela, ordena que se

desobriguem os seus fiadores e que a hipoteca existente se circunscreva aos bens de raiz

do dito primo; caso este tenha “faltado”, manda cobrar todos os anos 4.800 réis para o

jantar dos presos no Dia de Réis, passando-se “quitação por inteiro” e o resto dos juros

será para “sustentação de seu filho do estudo”40

.

Na correspondência de 25 de Janeiro de 1739, dirigida aos “senhores reverendos

capelães do Senhor Bom Jesus da Cruz”, informa-os que está convalescente de uma

grave doença que teve em Outubro último.

Os capelães tinham-lhe dado conta de que as missas de Natal e a esmola dos presos da

cadeia haviam sido aceites pela mesa da irmandade, mas que faltava fazer-se a escritura

39

Idem, Carta V de Inácio da Silva Medela. 40

Idem, Carta VI de Inácio da Silva Medela.

deste legado. Porém, diz Medela, “nem creio se fará pois vejo pelo aviso que tive do

meu procurador em que me diz que os senhores da mesa querem se lhe dê seiscentos mil

réis – uma disparidade […] porque a eu querer fazer as missas de Natal nesta cidade me

tomam o dinheiro a seis e quatro por cento […] quanto ao vinho e cera e hóstias me

pedem quatrocentos mil réis, o que parece supérfluo”. Avisa-os de que enviara uma

proposta, via frota da Baía, para ser apresentada à mesa pelo padre Manuel da Silva

Ferreira.

Vai no entanto informando que os “bens mais líquidos” os deixará à Santa Casa da

Misericórdia do Rio de Janeiro, mas quer que fique claro, para que a todo o tempo se

saiba “o muito que desejei aumentar à minha pátria, e que pela parte dela nunca

quiseram aceitar”41.

No dia 30 de Janeiro, talvez do mesmo ano, escreveu a Manuel Ribeiro Belo, falando-

lhe da doença de Outubro, da qual diz ter escapado por milagre.

Queixa-se que a Irmandade de Nossa Senhora da Graça lhe pede a dívida de que é

fiador de Manuel Maciel Ferreira, que “diz que a tem paga – Deus me dê paciência”,

comenta.

Também nesta carta, Silva Medela mostra-se muito desiludido sobre o que a mesa

pretende dele e que já enviou uma proposta ao seu procurador. Informa que logo que

escapou da doença “dispus dos meus bens os mais líquidos com a Santa Casa da

Misericórdia desta cidade do Rio de Janeiro como Deus me ajudou e foi servido, porque

os irmãos das Santas Casas e das irmandades que no Brasil trabalham para elas

desinteressados o que esses senhores não fazem nem querem fazer”42

.

Na nova carta ao padre Manuel Ribeiro Belo, escrita em 15 de Setembro de 1742 pelo

septuagenário instituidor do coro do Senhor da Cruz (Inácio da Silva Medela fez 70

anos em Agosto), informa-o que designou como procurador o seu sobrinho de

Esposende, Dr. João Ferreira Linhares a quem enviou uma procuração com todos os

poderes para revogar e/ou acrescentar bens à sua instituição.

Recomenda-lhe que se não pague aos capelães mais do que estava fixado; que do

primeiro rendimento se dessem às suas sobrinhas 200.000 réis e que das suas três partes

se fizesse uma “memória perpétua” para pagar as missas do Natal aos 9 capelães e o

jantar aos presos no Dia dos Reis; refere também a procuração para se cobrarem aos

capelães os 500.000 réis que lhes foram pagos indevidamente, pois logo que tomou

41

Idem, Carta VII de Inácio da Silva Medela. 42

Idem, Carta VIII de Inácio da Silva Medela.

conhecimento do recebimento indevido discordou; e depois de se pagarem os 200.000

réis, só deixará vitalícios, o dinheiro para as missas do Natal e para “o jantar dos

presos”; o resto do rendimento será para uma das parentes “mais chegadas” que venham

a entrar no Recolhimento do Menino Deus de Barcelos – com sanguinidade paterna ou

materna – e o restante será para repartir pelas outras parentes mais chegadas cujos

nomes já forneceu ao seu procurador.

Em resposta à carta que recebera de Manuel Ribeiro Belo, de 8 de Março, nota que este

lhe pedia um “lugar para o Recolhimento”, pedido que Medela lhe recusa “por ser

contra a minha instituição”43

.

No dia 20 de Novembro do mesmo ano, Inácio Medela voltou a escrever a Manuel

Ribeiro Belo, ainda e sempre na qualidade de presidente do coro. Desta vez, entre

múltiplos outros aspectos, pô-lo ao corrente do que fizera: “mandei um extracto a meu

sobrinho João Ferreira Linhares de 20 mil cruzados, no caso que possa alcançar juro

real para o Almoxarifado dessa vila oferecendo à mesa a quarta parte” do rendimento

proveniente do tão almejado padrão de juros. Três partes do rendimento reservara para

si, a fim de os poder distribuir à sua “disposição”, esperando uma resposta por parte da

mesa da irmandade, se aceitava ou não o novo legado nestas condições44

.

Refira-se que, entretanto, uma escritura de aceitação de novo legado foi assinada a 26 de

Janeiro de 1743, sendo assinada pelo juiz da irmandade, Dr. Manuel de Andrade e

Almada, pelo tesoureiro Manuel de Miranda, pelo escrivão Manuel Ribeiro Belo e mais

irmãos da mesa. Como representante do legatário, assinou o seu sobrinho e procurador,

Dr. João Ferreira Linhares, residente em Esposende. A escritura foi feita na nota do

tabelião Baltazar de Faria.

Na carta que escreveu em 10 de Setembro de 1743 ao presidente do coro e escrivão da

mesa, Inácio Medela mostra satisfação pelo que fora feito com “a minha instituição e

contrato com a santa e veneranda irmandade […] que queira ele tenha efeito o padrão

que pretendo alcançar de sua majestade que Deus guarde, pois nisso tenho trabalhado e

gasto dinheiro”, pensando remediar os familiares mais próximos, ainda que se lamente

da “ingratidão de todos os meus parentes”45

.

43

Idem, Carta IX de Inácio da Silva Medela. 44

Idem, Carta X de Inácio da Silva Medela. 45

Idem, Carta XI de Inácio da Silva Medela.

Na última carta que lhe conhecemos, datada de 5 de Agosto de 1745, Inácio da Silva

Medela dirigiu-se de novo ao juiz e aos irmãos da mesa, acusando ter recebido o

exemplar da “escritura da aceitação de vossas mercês do padrão real” que lhes havia

sido entregue pelo seu sobrinho e procurador Ferreira Linhares.

Dos rendimentos do primeiro ano (que diz terem vencido em Abril de 1745) manda se

fizesse a distribuição da sua parte pelos parentes que enuncia, advertindo-os que “o

rendimento deste padrão é em primeiro lugar parra dele se pagar todos os anos 30$000

réis àquela minha parenta que estiver recolhida [no Recolhimento do Menino Deus], e

caso que depois de recolhida passe para freira, não se lhe pagará o dito legado e ficará

para outra que entrar”. A distribuição que mandou fazer, relativa ao primeiro

vencimento (Abril de 1745), foi a seguinte:

Para uma parenta que casara com um ferreiro – 100.000 réis;

Para uma filha bastarda do seu primo Manuel da Fonseca Coelho, casada na

freguesia de Sanfins – 50.000 réis;

Para a filha do seu “primo irmão” casada com Francisco de Almada – 50.000 réis;

Para a filha de Manuel Rodrigues Marques, recolhida no Recolhimento do Menino

Jesus – 30.000 réis;

Para a filha do seu primo, Rosa Clara, “caso que estivesse recolhida assim como ela

me pediu que me certificou se recolhia” – 30.000 réis

Um outro documento de 1745 (dois anos antes da morte do instituidor do coro), mostra

que a mesa da Irmandade do Senhor da Cruz recebeu 270.000 réis da sua parte dos

juros do padrão real que finalmente se conseguira aplicar no Almoxarifado de Barcelos.

Como se pode verificar, o dito “padrão” foi criado a 1 de Abril de 1744 e os juros,

segundo este documento, ter-se-iam vencido em 31 de Dezembro do mesmo ano (e não

em Abril de 45), pelo que este primeiro rendimento reportava-se a nove meses.

Recebeu do almoxarife desta vila três quartéis do juro do padrão real, que

Inácio da Silva Medella do Rio de Janeiro doou a esta irmandade, cujos

três quartéis são os primeiros, que se venceram no ano de 1744 desde o

primeiro de Abril do dito ano até o último de Dezembro dele, e importaram

duzentos e setenta mil réis, porém sobre o mesmo tesoureiro só carrega a

quarta parte da dita quantia que são sessenta e sete mil réis, porque as

outras três partes despendeu já com as pensões as quais o mesmo Inácio da

Silva Medela as mandou distribuir que são as que constam de uma escritura

de paga e quitação que o mesmo tesoureiro tem das tais pessoas continuada

da nota de Pascoal da Costa desta vila em 28 de Outubro do presente ano

de 1745 – 67.00046

.

Retomando a carta de 5 de Agosto de 1745, Inácio Medela informa desde já que o

rendimento do segundo ano se destinará a outras suas parentes “que queiram entrar” no

Recolhimento do Menino Deus, tantas da parte do pai como da parte da mãe, repartindo

sempre pelas “mais chegadas”, como ficou registado na escritura do legado e que foram

“nomeadas na árvore” genealógica; assim como também nada legará das suas três partes

à “descendência de Manuel Maciel Ferreira sem que primeiro pague 400$000 réis que

lhe emprestei a juros o qual em cima de me não pagar me pôs uma demanda”.

Noutra passagem da carta dizia que enviava “o rol das parentas que nomeio para

entrarem no Recolhimento as que quiserem, não querendo umas, outras, e não tenho

dúvida entrem as que quiserem filhas de meu primo Valentim da Silva”.

Ainda agastado no que respeita ao comportamento dos capelães e da mesa da irmandade

(que não tinha mão neles), afirma que “na minha instituição que fiz do coro dessa igreja

fiz a vossas mercês senhores para regerem os capelães […] e botá-los fora e meter

outros cada vez que quiserem; e pelo que a experiência me tem mostrado, e tendo

experimentado, eles ditos capelães me parece governam a vossas mercês, o que é contra

todo o direito da minha instituição, porque escrevendo-me o presidente do coro

insinuando-me mandasse pagar aos capelães as missas do Natal do padrão que pretendia

para a dita irmandade eu o fiz assim como se vê da instituição, e agora me dizem que

ele é o pior de todos, e cabeça de não quererem entregar os 500$000 réis”47

.

Em 1750, três anos após o falecimento de Inácio da Silva Medela, o seu sobrinho e

padre Manuel Pereira Medela atestou a autenticidade da sua correspondência, que foi

trasladada para o livro onde se compilou a documentação da instituição do coro, no qual

nos apoiamos.

Diz o padre Manuel Pereira Medela que reconhece a “letra do sinal acima, ser feito pela

própria mão de meu tio Inácio da Silva Medela, que tanta glória haja, por ter dele

46

AISC, Livro das receitas e despesas de 1721-1750, fl. 271. 47

AISC, Caixa 2, Carta XII de Inácio da Silva Medela.

recebido muitas cartas sendo vivo, e me corresponder com ele naquele tempo; e por

tudo passar na verdade passei este que assino. Barcelos 24 de Outubro de 1750 anos. O

padre Manuel Pereira Medela”48

.

Por sua vez, José António de Vilas Boas faz

o reconhecimento da assinatura de Manuel

Pereira Medela, a 1 de Novembro do mesmo

ano: “reconheço ser a letra do

reconhecimento retro e supra e seu sinal do

padre Manuel Pereira Medela por ser o

próprio […]. José António de Vilas Boas

tabelião proprietário o escrevi”49

.

Como fizemos notar, desde o início do seu funcionamento que um certo

descontentamento relacionado com os aspectos materiais afectou as relações entre o

instituidor, a mesa da irmandade e os capelães do coro.

Do Rio de Janeiro, Inácio Medela escreveu pelo menos 12 cartas, nas quais foi

exprimindo o seu descontentamento e a sua mágoa face aos abusos e às pretensões

materialistas dos capelães.

Após a morte do instituidor, em 1747, alguns problemas continuaram, chegando a mesa

da irmandade a fazer uma escritura de reclamação a 1 de Julho de 1753, relativa às

“cláusulas celebradas na segunda escritura de aceitação do legado”, que havia sido feita

em 30 de Dezembro de 172950

.

48

AISC, Livro da instituição do coro da Irmandade do Senhor Bom Jesus da Cruz, fl. 49v. 49

Idem, Ibidem. 50

Idem, Ibidem.

Imagem de Santo Inácio de Loiola, talvez de meados do

século XVIII. Trata-se de um bela escultura barroca que,

segundo um inventário, ocupava o seu lugar na estante

do coro. Para além de funcionar como invocação do

fundador da Companhia de Jesus, ela pode ter

constituído uma homenagem póstuma a Inácio Medela.

Destino do coro do templo do Senhor da Cruz

______________________________________________________________________

Desde a sua instituição em 1725 até ao seu aparente encerramento em 1923, o coro do

Senhor da Cruz conheceu uma história certamente não linear, de altos e baixos, de

maior e de menor cumprimento das cláusulas estipuladas nos documentos que o

legitimaram.

Tratava-se de uma instituição dotada de sete capelães (15 de Março de 1725), ampliada

para nove (30 de Dezembro de 1728) e de dois rapazes que coadjuvavam, com as

virtudes e os defeitos inerentes aos seres humanos que sentem, pensam, reclamam,

trabalham, amam e lutam.

Ainda que nos espantem as intrigas e as faltas do pessoal religioso, o certo é que a

relaxação foi-se impondo, sobretudo a partir de meados do século XVIII: entradas

tardias ao serviço, incumprimento de horários e dos ofícios por parte de vários capelães,

ausências inaceitáveis, interesses instalados, querelas e intrigas, tudo à sombra do Bom

Jesus da Cruz. Deficiente funcionamento do coro, em suma. Ao longo do século XIX a

situação deve ter-se complicado. A mesa eleita a 14 de Setembro de 1866, reunida no

dia 13 de Outubro e constando-se-lhe que “o coro tinha caído em grande desleixo”,

deixando de cantar em certas ocasiões, inclusive em dias de missa cantada; que alguns

capelães não se apresentavam ao serviço ou chegavam atrasados, chegando o coro a

funcionar com apenas dois dos nove capelães e alterando-se o próprio horário de

funcionamento. Assim, decidiu-se escrever uma carta ao presidente do coro

comunicando-lhe que a mesa não tolerará tais comportamentos “e que fará despedir os

capelães que não frequentarem o coro como devem”51

.

Em 5 de Outubro de 1910 caiu a Monarquia e implantou-se a República em Portugal. A

Igreja, a exemplo do que tinha acontecido com a instauração do liberalismo monárquico

que triunfou em 1834, foi fortemente afectada nos seus interesses e privilégios. Mas não

foi a revolução do 5 de Outubro que liquidou o coro do Senhor da Cruz.

Uma certidão do orçamento ordinário de 24 de Fevereiro de 1911, para além de fazer

referência às despesas com as festividades previstas – 85.000 réis com os sermões da 51

AISC, Livro das actas de 1865-1893, fl. 9.

Quaresma, 170.000 réis com a festa da Invenção da Santa Cruz (vulgo Festa das

Cruzes), 4.500 réis com a solenidade da Exaltação da Santa Cruz, em 14 de Setembro –,

menciona também a despesa global prevista para a administração do coro, a saber:

381.200 réis, destinados aos salários “dos capelães e meninos do coro que rezam no

templo, diariamente, de manhã e de tarde” o ofício divino e o responso pela alma de

Inácio da Silva Medela e seu irmão José Coelho da Silva “e quintas-feiras é pela

intenção dos mesmos, salvo se na semana houver algum dia santificado, que prefere à

quinta-feira”52

.

Mas os tempos eram de crise financeira, para lá da crise das consciências que, decerto,

feriram de morte o velho coro. A modernidade do século XX fez o resto.

Numa comunicação que terá sido enviada ao arcebispo de Braga (documento não datado

mas que é posterior a 1929), a mesa da irmandade sintetizou a situação difícil então

vivida justificando-se, assim, o incumprimento dos legados – que haviam sido reduzidos

em 11 de Março de 1889 e em 29 de Setembro de 1896 – devido à “natural redução de

rendimentos em consequência da desvalorização da moeda”. Informava-se o prelado que

o capital da irmandade rendia cerca de 1.900$00, resultantes de 43.000$00 de “inscrições

do governo português”, de duas escrituras de mútuo de 4.100$00 e de um depósito na

C.G.D. de pouco mais de 10.000$00.

Não sabe ao certo a actual mesa o que as mesas administrativas anteriores

cumpriram; mas por informações que forneceu o antigo capelão desta

irmandade e actual pároco em Abade de Neiva, que deixou o lugar de

capelão em 1923, parece que foi desde este ano que deixou de se cumprir

algumas das obrigações, nomeadamente o coro, que deixou de existir desde

então, e possivelmente uma das missas aos Domingos, a das 11, e a missa

diária chamada do coro53

.

A mesa, que tomara posse a 1 de Julho de 1929, mantinha a missa das 9 em todos os

Domingos e Dias Santos, bem como em todas as Sextas-feiras do ano, absorvendo-lhe a

quase totalidade dos meios financeiros de que dispunha.

52

AISC, Caixa de documentos diversos do século XX, Certidão de orçamento ordinário de 1911. 53

Idem, Comunicação ao arcebispo de Braga.

Têm-se realizado os 7 sermões nos Domingos da Quaresma, as nove missas da novena

nas vésperas do Natal, as festividades da Invenção e da Exaltação da Santa Cruz e de

Nossa Senhora das Dores – mas tudo por conta de esmolas

Graças ainda às esmolas realizavam-se outras despesas, relacionadas com a

beneficência pública, a aquisição de cera, pequenas reparações no templo e o pagamento

ao servo, que garantia a abertura diária durante todo o ano, desde a manhã ao pôr-do-

sol54

.

Do velho coro resta-nos a sua memória escrita, arquitectónica e artística.

Dispomos do seu belo órgão, devidamente restaurado, e do cadeiral a pedir o mesmo...

54

Idem, Ibidem.