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Tópicos Introdutórios à Teologia Sistemática Prof. Rev. Padre Jorge Aquino INTRODUÇÃO Fazer teologia é, até certo ponto, uma tarefa impossível, se é que com ela procuramos estudar Deus. De fato, como dizia Plutarco Bonilla, a “teologia é, sempre, um ato segundo. O ato primeiro é o encontro... Deus é que toca, pelos meios que lhe apraz, a vida humana”. 1 O labor teológico, em função da necessidade deste toque, é um labor sob limite na medida em que não podemos colocar Deus como objeto de nosso estudo. Podemos estudar os animais, vegetais e os minerais. Podemos dissecar seus corpos e estudar sua constituição física e química. Podemos aprisionar seus cadáveres ou fragmentos em silos ou em provetas. Mas nossa aproximação de Deus não se dá da mesma forma. Nosso labor teológico pode ser corretamente definido como um labor sob limite. É um labor sob limite, porque não podemos esperar que o finito contenha ou esgote o infinito. Se temos consciência das enormes dificuldades de responder, algum dia, a todas as nossas perguntas e questionamentos a respeito do homem; se temos consciência das enormes dificuldades de responder, algum dia, a todas as perguntas e questionamentos a respeito do planeta em que habitamos, ou sobre o Universo que está ao nosso redor, o que dizer de Deus? É preciso ter a humildade para reconhecer que nós jamais a-preenderemos algo se ele, em sua graça, não quiser revelar. É impossível uma cognição ascendente – de baixo para cima, do homem para Deus - acerca daquele que está tão acima de nossa compreensão, que só o imaginar nos causa tonturas. Ele é uma alteridade tão absoluta que já foi descrito como o “totalmente Outro”. O inatingível. Nós estamos indubitavelmente condenados à escuridão do desconhecimento - até porque não suportaríamos a luz da sua glória - se ele não tomar a iniciativa de se des-velar e de se revelar a nos outros. Nosso labor teológico é um labor sob limite também porque estamos irremediavelmente condenados a usar 1 Signos de Vida nº 16, Jun 2000, 3

Tópicos introdutórios à teologia sistemática introdução capítulo1

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Teologia Sistemática. Parte I.

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Tópicos Introdutórios à Teologia SistemáticaProf. Rev. Padre Jorge Aquino

INTRODUÇÃO

Fazer teologia é, até certo ponto, uma tarefa impossível, se é que com ela procuramos estudar Deus. De fato, como dizia Plutarco Bonilla, a “teologia é, sempre, um ato segundo. O ato primeiro é o encontro... Deus é que toca, pelos meios que lhe apraz, a vida humana”.1 O labor teológico, em função da necessidade deste toque, é um labor sob limite na medida em que não podemos colocar Deus como objeto de nosso estudo. Podemos estudar os animais, vegetais e os minerais. Podemos dissecar seus corpos e estudar sua constituição física e química. Podemos aprisionar seus cadáveres ou fragmentos em silos ou em provetas. Mas nossa aproximação de Deus não se dá da mesma forma.

Nosso labor teológico pode ser corretamente definido como um labor sob limite. É um labor sob limite, porque não podemos esperar que o finito contenha ou esgote o infinito. Se temos consciência das enormes dificuldades de responder, algum dia, a todas as nossas perguntas e questionamentos a respeito do homem; se temos consciência das enormes dificuldades de responder, algum dia, a todas as perguntas e questionamentos a respeito do planeta em que habitamos, ou sobre o Universo que está ao nosso redor, o que dizer de Deus? É preciso ter a humildade para reconhecer que nós jamais a-preenderemos algo se ele, em sua graça, não quiser revelar. É impossível uma cognição ascendente – de baixo para cima, do homem para Deus - acerca daquele que está tão acima de nossa compreensão, que só o imaginar nos causa tonturas. Ele é uma alteridade tão absoluta que já foi descrito como o “totalmente Outro”. O inatingível. Nós estamos indubitavelmente condenados à escuridão do desconhecimento - até porque não suportaríamos a luz da sua glória - se ele não tomar a iniciativa de se des-velar e de se revelar a nos outros.

Nosso labor teológico é um labor sob limite também porque estamos irremediavelmente condenados a usar instrumentos limitados e limitadores para nossa reflexão e comunicação. Uma vez que a única forma que temos de falar é usar nossa linguagem que é imprópria para “descrever” ou “predicar” sobre Deus, e uma vez que toda “predicação” é limitação, todo nosso discurso sofre de um “pecado original”: é inapropriado para se referir à Deus, porque o reduz à condição de categoria ao lado de tantas outras categorias. Ludwig Wittgenstein, no prefácio de seu Tractatus Logico-philosophico, já nos alertava que “O que se pode dizer, em geral se pode dizer claramente; e o que não se pode falar, se deve calar”. Atentando mais uma vez para o que diz Bonilla, agora falando sobre os termos que utilizamos para falar de Deus, ele nos diz que, em sua opinião,

“...outro grupo de termos – os precedidos pelo componente ‘omni’ (do latim omnis, que significa ‘todos’) – são também termos um tanto vazios, no sentido de que os segundos elementos componentes (‘sciente’ ou ‘sapiente’ em ‘onisciente’ ou ‘umnisapiente’; ‘potente’ em ‘onipotente’; ‘presente’ em ‘onipresente’) não podem ser entendidos no sentido natural em

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que os entendemos quando nos referimos a nosso ‘saber’, a nosso ‘poder’ e a nossa ‘presencia’”.2

Esta postura teológica que estamos apresentando tem sido chamada de Teologia Negativa, uma vez que defende a tese de que “sobre Deus, só podemos dizer o que Ele não é, e nunca o que Ele é”. No decorrer da história da Igreja, esta posição tem surgido em diversos momentos. Podemos, por exemplo nos referir aos textos de Orígenes, de Gregório de Nissa e a do clássico da mística medieval, o Pseudo-Dionísio Areopagita, um autor do século V, para quem a teologia estava dividida em “positiva”, que tratava do estudo dos homens e das qualidades que atribuímos a Deus, e “negativa”, que se preocupava em sustentar a inacessibilidade de Deus, por está muito além do ser e do conhecimento.

Outro teólogo que defendeu algo parecido foi João Escoto Erígena (sec. IX) que ficaria conhecido como “o mais original metafísico do medievalismo cristão”. Este teólogo, influenciado pelo Pseudo-Dionísio, desenvolve uma doutrina conhecida como da “superinteligibilidade de Deus” diante da capacidade cognitiva humana, destacando a limitação de todo discurso positivo sobre Deus.

Em um pequeno tratado chamado De Deo Abscondito, Nicolau de Cusa (Sec. XV) também revela a doutrina da via negativa quando, em sua obra, apresenta o seguinte diálogo entre um gentil e um cristão:

- Te vejo reclinado com grande devoção a derramar lágrimas de amor, não falsas, por certo, mas sinceras. Pergunto, quem és? - Sou cristão.- Quem adoras?- A Deus.- Quem é o deus que adoras?- Não sei.- Como adoras tão seriamente o que ignoras?- Adoro porque ignoro.- Admirável ver um homem ligado ao que ignora.- Mas admirável é o homem ligado ao que crê saber.- Por que?- Porque menos sabe o que crê saber, que aquele que está certo que sabe: que ignora.- Explique.- Me parece um louco quem crê que tudo sabe, quando nada pode saber....- Sei que tudo o que conheço não é Deus e que tudo quanto penso não lhe é semelhante, porque ele a tudo sobrepassa.- Então Deus é nada.- Nada não é, porque este nada tem nome de nada.- Se não é nada, então é algo.- Tampouco é algo, pois o que é algo não é todo; e Deus é mais bem todo que algo.

2 Bonilla, Plutarco, Signos de Vida nº 16, Jun 2000, 3

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Esta aproximação “negativa” de Deus, deve fazer surgir dentro do coração de cada um de nós uma postura de humildade diante das nossas interpretações teológicas e da conclusões ás quais chegamos. Explico: uma vez que estamos qualitativamente distante do Deus que queremos conhecer (isto para não falar de outros condicionamentos que nos atingem) nossa interpretação a respeito deste Deus deverá sempre ser vista sempre como uma “interpretação penúltima” e jamais como a “verdade acabada”. Se atentarmos para esta verdade, ela nos permitirá evitar a tentação do dogmatismo obtuso, que desqualifica a priori qualquer um que sustente uma interpretação diferente da nossa.

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CAPÍTULO 1

I. A Natureza de Deus

Estranho tentar falar da natureza de Deus usando sempre uma linguagem limitada, com a qual mal conseguimos falar de nós mesmos. Com certeza esta é uma tarefa fadada ao fracasso. Se é que com ele pretendemos falar “exaustivamente” sobre Deus. Não temos que “falar” de Deus como quem vai ensinar sobre uma matéria que domina; precisamos sim “aprender” de Deus. Este conhecimento de Deus, como veremos, é o resultado de “sua” iniciativa em nos “tocar” ou nos “tangenciar”, e não de nossa capacidade em “ ascender” verticalmente até onde Deus está, ou de “entender” o ser de Deus. No entanto, quando discutimos sobre “que tipo de Deus é o Deus que cremos”, com certeza não podemos nos furtar de discutir sobre a existência de Deus e sobre o conhecimento que temos dele. Já falamos que nosso discurso sobre Deus é um discurso inapropriado. Sabemos disso. Mas, precisamos compreender que a impossibilidade de um discurso exaustivo sobre Deus não torna falso todo o discurso sobre ele. Temos consciência de que nosso discurso é limitado mas também temos consciência de que nosso discurso é veraz. E isto se dá porque usamos o mesmo discurso que surge nas páginas das Escrituras.

1. A Existência de Deus

Uma vez que já sabemos de nossa impossibilidade de descrever ou de falar exaustivamente sobre Deus, o passo seguinte é compreender que tipo de discurso a história tem feito sobre ele. Ao observar os textos acadêmicos e os místicos logo perceberemos que todo nosso discurso sobre Deus sempre se utilizou de categorias humanas, portanto incapazes e inaptas, para descrever aquele que é indescritível. Neste sentido temos que reconhecer, como já foi ressaltando pelos filósofos do século XIX, que “toda teologia é antropologia”. Ou seja, que sempre que falamos sobre Deus usamos categorias e exemplos humanos para descreve-lo.

Quando perguntamos pela “existência de Deus”, inevitavelmente nos lembramos do que foi colocado acima e entendemos que “existir” é “estar em relação a algo” ou “com algo”. Uma cadeira, por exemplo, existe uma vez que nos relacionamos com ela e, de certa forma, a apreendemos, pelos nossos sentidos. Neste sentido, Deus, que é-sendo, e que não precisa se relacionar para ser, não existe, mas é.

Em um bonito texto sobre alguém que pergunta acerca da existência de Deus, Emil Brunner responde dizendo:

“Não, Deus não ‘existe’. Existe a cordilheira do Himaláia, existe o planeta Urano, existe o elemento Rádio, existem, enfim, todas aquelas coisas de que falam as enciclopédias. Mas, Deus, não ‘existe’, ou, em outras palavras: Deus não existe para os curiosos. Deus não é um objeto da ciência, não é algo que possamos incorporar ao nosso patrimônio de sabedoria, como o filatelista adquire e inclui em sua coleção uma estampilha rara, para dizer: ali está, a mais linda, a mais preciosa de todas. (...) Se respondêssemos à tua pergunta: ‘sim, Deus existe’, irias para casa enriquecido, apenas, por mais uma ilusão. Haverias de

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pensar: Deus também é algo daquilo que ‘existe’. Precisamente isso ele não é, se é verdadeiramente Deus. Ele nunca é algo ao lado ou entre outras coisas”.3

Como vemos, a pergunta acerca da existência é uma pergunta que não se aplica aquele que é-sendo. Na realidade, só podemos propriamente conhecer e saber acerca do que Deus fez, não sobre o ser de Deus ou o que Deus é. Ele é o fundamento de tudo o que existe, pois nada existiria se não existisse nEle, de quem, por quem e em quem todas as coisas existem4 E na qualidade de fundamento de tudo o que existe, ele não existe como as outras coisas existem. Ele não existe ao lado das outras coisas. Ele é.

A. A Intuição Universal

Quando nos acercamos das informações obtidas pelas pesquisas sociológicas e antropológicas no que diz respeito à religião, imediatamente nos convencemos de que “A percepção intuitiva do homem quanto a Deus é amplamente confirmada pela antropologia social, que reconhece uma consciência religiosa virtualmente universal.”5 Na realidade, todas as sociedades humanas conhecem e temem O Sagrado, ou na linguagem de Rudolf Otto, O Numinoso.

Além desta intuição universal, algo no homem, não consegue se acostumar com a existência do mal. É como se houvesse uma consciência moral universal que só pode encontrar explicação em Deus. Pensando a respeito disso Brunner já nos lembrava que alguns chegavam a duvidar da existência de Deus justamente por causa da existência do mal no mundo. Mas então ele pergunta:

“Ainda não notaste que, duvidando, crês em Deus? Que a justiça esteja com a razão e não a injustiça, não é outro postulado que este: Há um Deus. Teu coração protesta contra a injustiça, porque conhece a Deus”.6

A obstinação com que nosso coração teima em não aceitar e capitular diante da realidade do mal jamais pode se constituir em um argumento contra a possibilidade de Deus. Pelo contrário. Esta indignação que sentimos, é maior prova de que ele é o fundamento de nossa existência e que qualquer sub-existência ou não-existência é uma afronta à sua “pessoa” e ao seu “projeto”.

B. As “Provas” da Existência de Deus

Certos de que nossa existência tem um fundamento, na história da filosofia ou da teologia muito tempo já foi dedicado e muitos já se debruçaram na tarefa de “provar” que este “fundamento” primeiro, ou seja Deus, existe. Particularmente depois de Kant, o mundo percebeu que estas vias de demonstração, na realidade não passam de exercícios intelectuais inócuos, podendo ser refutados com a mesma razão.

No entanto, pelo menos à guisa de ilustração, creio que seria importante conhecer os principais argumentos utilizados no decorrer da história para tentar demonstrar a

3 Brunner, E. 1970, 94 AGOSTINHO, S. Confissões 1.25 MILNE, BRUCE. Conheça a Verdade, p. 536 BRUNNER, E. Nossa Fé, p.10

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existência de Deus. Citaremos, em função da exiguidade de espaço, apenas os principais argumentos.

(i) Argumento Cosmológico

Este argumento é chamado também de “prova pela causalidade”. Ele pode ser apresentado da seguinte forma. Tudo o que existe (o cosmos), existe porque foi criado ou produzido, sendo desta forma contingente. Devo, portanto, concluir que deve haver uma causa absolutamente primeira, fonte de toda causalidade, não contingente e sem causa, que é Deus.

(ii) Argumento Teleológico

Este argumento parte do princípio de que toda organização complexa exige uma inteligência ordenadora. Como todo o universo parece demonstrar uma ordem bem estabelecida, certamente um ser inteligente é o responsável pela complexa ordem existente: Deus. Brunner diz algo semelhante quando afirma:

“Nunca vi que o acaso criasse ordem, que do acaso surgisse algo de lógico, harmonioso e até artístico. Não é crendice crer que Deus criou o mundo; mas demonstra absoluta falta de critério e juízo quem acredita que o olho humano, a constituição de um inseto ou um campo florido nada mais sejam do que obras do acaso”.7

(iii) Argumento Ontológico

Este argumento da existência de Deus, que foi primeiramente apresentado por Anselmo de Cantuária (sec XI), recebeu este nome graças a influência de Kant. Este argumento existe em pelo menos duas formas, ou seja, a partir da idéia de um Ser Necessário e a partir da idéia do Ser mais perfeito concebível. Exporemos apenas esta segunda forma. O argumento, grosso modo, se desenvolve assim:

(1) Deus é por definição o Ser mais perfeito concebível.(2) Ao Ser mais perfeito concebível não pode faltar coisa alguma.(3) Mas se Deus não existisse, faltar-lhe-ia existência.(4) Logo, Deus deve existir.

Este argumento foi primeiramente atacado por um monge contemporâneo de Anselmo, chamado Gaunillo. Ele argumentou que poderia conceber uma ilha perfeita e que isto não significava, necessariamente, que ela existisse. Uma Segunda crítica, bem mais decisiva, foi feita por Kant, quando ele argumenta que o grande erro de Anselmo era acreditar, aprioristicamente, que a existência era uma propriedade inerente à perfeição.

“Pelo contrário, disse Kant, a existência não é um predicado ou atributo de um conceito. Anselmo tomou por certo que um conceito deve ser instanciado, ou seja: que um exemplo dele tinha de ser achado na experiência ou realidade. Mas visto que a

7 BRUNNER, E. Nossa Fé, p.10, 11

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existência não é uma propriedade da perfeição, logo, postular a não-existência de Deus nada subtrai da absoluta perfeição da idéia na mente da pessoa”.8

Ou seja, se é possível que Deus não exista, logo não é racionalmente necessário sua existência. Este argumento, portanto não é conclusivo.

C. Considerações sobre as “provas” da existência de Deus

Durante a Idade Média a Igreja tentou estabelecer o que se convencionou chamar de Teologia Natural. Ela era a tentativa de se atingir Deus através da utilização das chamadas “provas” de sua existência. Era uma forma de chegar à Deus através da utilização da razão. A Teologia Natural deu também origem ao que se convencionou chamar de teodicéia, uma das disciplinas da apologética, ou seja, a defesa da possibilidade de se provar Deus racionalmente como um instrumento da defesa da fé. Não devemos confundir a Teologia Natural com a revelação geral. Sobre esta forma de revelação falaremos mais tarde.

Todas estas tentativas de demonstrar a existência de Deus, de fato, podem nos levar a afirmar que temos boas razões para crer que ele existe. No entanto, não devemos esquecer que cada um dos argumentos a priori (que parte de algum aspecto da natureza humana) ou a posteriori (quando parte do universo) podem ser racionalmente contrapostos. Isto para não falar dos inúmeros argumentos que “provam” a não existência de Deus. Já vimos que, em função da limitações que temos, tudo isso não passa de espécie de ginástica intelectual inócua. A própria existência destes argumentos, na realidade, nada mais é do que uma prova e uma demonstração de quão arrogante é o homem, a ponto de tentar, ele mesmo, e se valendo de sua própria capacidade, ascender e se religar a Deus. É por isso que, para Barth, toda religião é, em seu fundamento, pecaminosa, pois nos fala apenas do esforço humano em galgar as alturas. Ela atesta apenas do desejo e da luta do homem em buscar e ascender até a presença de Deus. Diante da realidade humana e pecaminosa da re-ligião Deus nos sinaliza com uma outra realidade – graciosa, a re-velação.

Temos consciência de que todos estes argumentos devem ser conhecidos e estudados pelos teólogos, no entanto, precisamos advertir que, toda tentativa humana de criar caminhos ou vias que levem o homem até a presença de Deus, é resultado de uma rebelião, vez que inutiliza e torna supérfluo a fé, que é apresentada pelas Escrituras como o único caminho seguro até Deus. Qualquer tentativa de estabelecer outro caminho até a divindade é, não apenas um desserviço à fé, mas traição à revelação de Deus.

2. O Conhecimento de Deus

Uma vez que tomamos conhecimento das limitações que temos para predicar ou falar sobre Deus, precisamos, em seguida, discutir que tipo de linguagem usaremos para falar sobre Deus, uma vez que nós não pretendemos encerrar nosso curso aqui.

Nossa linguagem, portanto, deverá ser a única que temos para falar do indescritível e do inefável: uma linguagem figurada, metafórica, ou mais corretamente, antropomorficada.

Esta deverá ser a nossa linguagem, em primeiro lugar, porque é esta a linguagem que as escrituras usam para poder se referir a Deus. Nós o chamamos de Pai, de Senhor,

8 GEISLER, N. & FEINBERG, P. Introdução a Filosofia – Uma Perspectiva Cristã, p. 232

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de General, de Criador, etc., e não nos damos conta de que tudo o que dizemos de Deus é o que dizemos do homem. Portanto, com toda razão poderíamos também utilizar uma linguagem feminina para falar de Deus (mãe, Senhora, Criadora, etc.), sabendo, contudo, que, tanto uma quanto outra estão fadadas a serem apenas figuras ou sombras do que de fato Deus é. J.I. Packer já nos informa que “em teologia, equívocos infindáveis resultam de se supor que as condições e os limites de nossa própria existência finita se aplicam a Deus”.9

Uma vez que Já entendemos que nossa linguagem antropomorficada e simbólica é sempre limitada para falar de Deus, ou seja, para transmitir algum conhecimento sobre ele, é importante que entendamos que, ao lado, e em contraste com esta Gnosis espiritual “acerca de Deus”, precisamos aprender a buscar um conhecimento proveniente dEle, no sentido genitivo, de sua pessoa (simbolicamente), produto de nossa relação com ele. Sobre este tipo de conhecimento Packer assim se expressa:

“a escritura fala de ‘conhecer’ a Deus como a pessoa espiritual ideal: a saber, a plenitude de uma fé relacionamento que traz salvação e vida eterna e gera amor, esperança, obediência e gozo. (...) As dimensões deste conhecimento são intelectuais ( conhecer a verdade a cerca de Deus: Dt 7:9; Sl 100:3); volitivas (crer em Deus, obedecer-lhe e adora-lo em termos daquela verdade); e morais (praticar a justiça e o amor: Jr 22:16; I Jo 4:7,8)”.10

A. Nossa Limitação em conhecê-lo

Como já vimos, estamos essencialmente distantes de Deus, e esta situação nos coloca em uma posição de absoluta perdição. Sem o conhecimento de Deus toda nossa vida perde o sentido. Deus se transforma assim em nossa preocupação ultima. O professor Júlio Andrade Ferreira, tentando nos explicar sobre o sentido da preocupação ultima, nos conta uma ilustração:

“Quando viajamos de avião, a preocupação que temos com uma leitura, por exemplo, é bem diferente da que nos temos quando nos lembramos a que altura estamos e que o motor pode explodir. Esta preocupação é muito mais séria que as demais”.11

Desta ilustração entendemos que, na vida há preocupações que nos chamam a atenção e há uma preocupação da qual depende toda nossa salvação. de fato, “nada pode ser preocupação final para nós, que não tenha o poder de ameaçar ou de salvar nosso ser”.12 Nossa limitação em conhecer a Deus se transforma, então, na maior barreira de nossa existência. Sem que ela seja transposta, estaremos irremediavelmente perdidos e condenados ao inferno da ignorância de Deus.

B. Nossa Possibilidade em conhecê-lo

9 PACKER, J.I. Teologia Concisa, p.2510 PACKER, J.I. Teologia Concisa, p.1811 VÁRIOS, Antologia Teológica, Vol 1, p. 8212 VÁRIOS, Antologia Teológica, Vol 1, p. 83

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Com já vimos, em função da completa “diferença qualitativa” que existe entre nós e Deus, qualquer espécie de “conhecimento” que se refira a Deus, só pode ocorre se ele, em um ato gracioso, tomar a iniciativa de se revelar.

No entanto, tanto a experiência quanto as Escrituras, nos falam de uma espécie geral de revelação, através da qual, ficamos indesculpáveis ao não render toda a glória a Deus. Esta revelação se costuma chamar de Revelação Geral. O Dr. Packer, falando sobre o ela nos diz que: “A revelação geral é assim chamada porque todas as pessoas a recebem pelo simples fato de estarem vivas no mundo de Deus”.13

Sobre nosso conhecimento de Deus, Calvino nos leva a compreender que o verdadeiro conhecimento de Deus não é aquele que simplesmente nos leva a afirmar sua existência, mas aquele nos leva a compreender “o que é conveniente saber a respeito dele, o que é útil para sua glória, e em suma, o que é necessário”.14 Desta forma, Calvino e a tradição reformada distingue a Teologia Natural da Revelação Geral. Aquela pretende apresentar um caminho racional até Deus, enquanto esta apenas aponta para sua existência, sem no entanto, prescindir da fé.

Calvino reconhece que no íntimo dos homens há um certo “sentimento da divindade”. No entanto, Ele ultrapassa a idéia da intuição e vai mais adiante, quando afirma que Deus, “de tal maneira se tem manifestado na admirável obra do mundo e cada dia se manifesta e se declara, que não podemos abrir nossos olhos sem que deixemos de vê-lo”.15 Esta revelação Geral é de extrema importância, porque através dela:

“Deus revela ativamente estes aspectos de si mesmo a todos os seres humanos, de forma que todos os casos de falha em render graças e servir o Criador com justiça constituem pecado contra o conhecimento, e negações de ter recebido tal conhecimento não devem ser tomadas seriamente”.16

A grande diferença, no entanto, entre a Revelação Geral e a Teologia Natural, como já colocamos, é que enquanto esta pretende levar o homem a presença de Deus pela razão, esta se reconhece incapaz de apresentar todas as verdades necessárias para a salvação. Calvino se referindo às limitações da Revelação Geral, assim se expressou:

“Vede, pois, como tantas lâmpadas acesas no edifício do mundo nos iluminam em vão para nos fazer ver a glória do Criador, pois de tal forma nos iluminam que de forma alguma podem, por si só, nos levar ao reto caminho. É verdade que emitem certo brilho, porém perecem antes de nos dar a plena luz”.17

Se, no entanto, a Revelação Geral é incapaz de nos levar a Deus, ela é suficiente para nos tornar indesculpáveis por não adorar o Criador. Segundo Packer, a revelação universal de seu poder, “seu merecimento de louvor e sua exigência moral é a base da acusação de Paulo a toda raça humana como pecadora e culpada perante Deus por falhar em servi-lo como deve”.18

13 PACKER, J.I. Teologia Concisa, p. 914 CALVINO, J. Institución de la religión Cristiana, 1.2.115 CALVINO, J. Institución de la religión Cristiana, 1.5.116 PACKER, J.I. Teologia Concisa, p. 917 CALVINO, J. Institución de la religión Cristiana, 1.5.1618 PACKER, J.I. Teologia Concisa, p. 9

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C. Jesus e as Escrituras como Revelação privilegiada do Ser de Deus

Nossa reflexão sobre a “pessoa” de Deus até aqui, certamente já nos vez compreender que, como dizia Brunner, ”A primeira e mais importante coisa que podemos saber de Deus será sempre: exceto o que nos revela, nada sabemos dele”.19

Mas como “saber” dele, sem que ele se mostre? Sem sua re-velação, ficaremos para sempre “velados” em nosso quarto escuro, ou em nossa caverna, nos contentando com sombras e confundindo-as com a realidade de Deus.

O Senhor, no entanto, em um ato de graça, se deu a conhecer, de forma mais plena na pessoa de Cristo. Jesus, revela a pessoa de Deus. Ele é Deus conosco. Nenhuma outra revelação pode sobrepujar a pessoa de Cristo. Nas palavras de Packer:

“Deus agora suplementa sua revelação geral com a revelação adicional de si mesmo como Salvador dos pecadores, por meio de Jesus Cristo. Esta revelação, ocorrida na história e incorporada à Escritura, e abrindo a porta da salvação aos perdidos, é geralmente chamada revelação especial ou específica”. (Packer, J.I., 1999, 9)

Devemos compreender que neste sentido, nem mesmo a Bíblia é superior a Jesus. Ela contém o registro escrito da revelação, ela testifica da revelação, mas não podemos confundir o instrumento da revelação com a própria revelação. Ela fala sobre e aponta para, mas ela não é o “objeto” para o qual aponta. Disto concluo que Deus está acima de nosso conhecimento ele é mistério. “não é um enigma, porque um enigma se resolverá, mais cedo ou mais tarde. Deus é mistério, isto significa: ninguém jamais o descubrirá”.20 Tudo o que sabemos, possuímos. Deus, no entanto, não se deixa aprisionar ou possuir por ninguém. Só ele possui e é Senhor de tudo.

Aplicação: Deus é um Deus que se dá a conhecer, portanto é alguém aberto ao diálogo.

19 BRUNNER, E. Nossa Fé, p.1620 BRUNNER, E. Nossa Fé, p.16