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TITULO: O Cuidar da Família do Doente Terminal em Contexto Domiciliário AUTORES: Hugo de Sousa – Licenciado em Enfermagem, Pós-graduado em Cuidados Paliativos, Coordenador de Enfermagem – USF D. Sancho I, CS do Cartaxo Nádia Grincho – Licenciada em Enfermagem, Enfermeira no CS de Santarém – USF S. Domingos CONTACTO: [email protected]; [email protected] RESUMO: “A morte faz cessar uma vida, mas não os relacionamentos que podem lutar na mente do sobrevivente…” Robert Anderson PALAVRAS-CHAVE: Cuidar, Família, cuidados paliativos e contexto domiciliário. INTRODUÇÃO Cuidar no seio da própria família faz parte dos contextos sociais desde os primórdios das civilizações, só após a II Guerra Mundial é que este processo se modificou, com a passagem dos doentes para os hospitais, onde as famílias deixaram de ser envolvidas no processo de cuidar e os acontecimentos familiares significativos como o nascimento e morte, deixaram de ser muitas vezes acompanhados pela família. Actualmente vive-se um período de tentativa de mudança para que o doente terminal morra no seio familiar, o que representa para os cuidadores o enfrentar de situações inesperadas, existindo assim muitas necessidades familiares perante as quais o enfermeiro e a restante equipa de cuidados paliativos devem estar atentos. Para a família desempenhar o seu papel de cuidadora, necessita de ser apoiada na prestação dos cuidados e informada adequadamente sobre as mudanças que ocorrem e forma de actuação, pois só assim o doente e família podem assumir algum controle sobre a situação, diminuindo a angústia e ansiedade.

A familia em cuidados paliativos

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TITULO: O Cuidar da Família do Doente Terminal em Contexto Domiciliário

AUTORES: Hugo de Sousa – Licenciado em Enfermagem, Pós-graduado em Cuidados

Paliativos, Coordenador de Enfermagem – USF D. Sancho I, CS do Cartaxo

Nádia Grincho – Licenciada em Enfermagem, Enfermeira no CS de Santarém –

USF S. Domingos

CONTACTO: [email protected]; [email protected]

RESUMO:

“A morte faz cessar uma vida, mas não os relacionamentos que podem lutar na mente

do sobrevivente…” Robert Anderson

PALAVRAS-CHAVE: Cuidar, Família, cuidados paliativos e contexto domiciliário.

INTRODUÇÃO

Cuidar no seio da própria família faz parte dos contextos sociais desde os primórdios das

civilizações, só após a II Guerra Mundial é que este processo se modificou, com a passagem

dos doentes para os hospitais, onde as famílias deixaram de ser envolvidas no processo de

cuidar e os acontecimentos familiares significativos como o nascimento e morte, deixaram de

ser muitas vezes acompanhados pela família.

Actualmente vive-se um período de tentativa de mudança para que o doente terminal

morra no seio familiar, o que representa para os cuidadores o enfrentar de situações

inesperadas, existindo assim muitas necessidades familiares perante as quais o enfermeiro e a

restante equipa de cuidados paliativos devem estar atentos.

Para a família desempenhar o seu papel de cuidadora, necessita de ser apoiada na

prestação dos cuidados e informada adequadamente sobre as mudanças que ocorrem e forma

de actuação, pois só assim o doente e família podem assumir algum controle sobre a situação,

diminuindo a angústia e ansiedade.

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Perceber como cuidar da família do doente terminal em contexto domiciliário é

fundamental em cuidados paliativos, conseguindo-se desta forma que esta seja um elemento

activo e único da equipa prestadora de cuidados ao doente terminal.

INFLUÊNCIA DA DOENÇA TERMINAL NA FAMÍLIA

A definição de família tem evoluído ao longo dos tempos, de acordo com vários

paradigmas, no entanto aqui adoptar-se-á a definição de “ Família refere-se a dois ou mais

indivíduos que dependem um do outro para dar apoio emocional, físico e económico. Os

membros da família são auto-definidos.” (Hanson, 2005). A família é, ou devia de ser, a

unidade primária dos cuidados de saúde.

Após vários anos num sistema familiar, onde a busca incessante de

equilíbrio entre os seus elementos é uma realidade, o diagnóstico de uma

doença terminal, leva a um desequilíbrio no sistema e a uma mudança global e

qualitativa, imposta pela crise que ameaça a imprevisibilidade dos

acontecimentos e das necessidades (Moreira, 2001). A unidade familiar sofre assim uma

ruptura do estilo de vida, onde estudos apontam para a existência de depressão, ansiedade,

frustração e exaustão que poderão levar a estados patológicos (Bolander, 1998).

Segundo Moreira (2001) com a morte, pode surgir alívio resultante do fim do sofrimento

do doente e da tensão familiar, o qual pode ser acompanhado de sentimentos de culpa pelo

“desejo” de morte. Para que a tensão e a exaustão familiar seja aliviada é necessário que a

família se adapte à doença com ajuda da coesão e flexibilidade no seio do sistema familiar,

comunicação de forma aberta e com a disponibilidade da família alargada, bem como dos

recursos sociais e económicos. O sentimento de perda e os conflitos familiares, são tanto

maiores quanto maior ou mais importante for a função e papel anterior do elemento familiar

doente. Não é a mesma coisa, adoecer a mãe, o pai ou o filho.

A adaptação à perda é também influenciada pelo contexto sociocultural, que engloba as

crenças familiares, religião, o contexto sociopolítico e a história da perda, sendo necessário

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que os profissionais estejam mais atentos actualmente, pois existe uma maior

multiculturalidade com exigências diferentes dentro de uma população restrita (Moreira,

2001). Vários são os autores que enumeram e descrevem as fases de adaptação da família à

doença terminal de um dos seus elementos, havendo quem as descreva da mesma forma como

as que os próprios doentes vivenciam, no entanto Rosen (1990) referenciado por Artinian

(2005) divide em três fases de adaptação, a primeira é a preparatória que surge quando

aparece pela primeira vez os sintomas e continua até ao diagnóstico inicial, onde as famílias

sentem medo e negação e, podem recusar a aceitar a perspectiva da morte. Pode surgir a

“conspiração do silêncio” para com os membros da família mais vulneráveis. Nesta fase

existe muitas alterações emocionais e desorganização no sistema familiar.

Numa fase intermédia, onde a família aceita a perda iminente e se confronta com a

realidade da doença fatal do familiar, começa a cuidar deste com o desafio diário de lidar com

os sintomas físicos, tratamento e cuidados, a família torna-se menos desorganizada assumindo

novos papéis que podem levar à exaustão e a conflitos no sistema.

A aceitação, ultima fase, vem quando a família aceita a morte iminente e conclui o

processo de despedida do familiar falecido, onde poderá reaparecer alguns dos sentimentos

vivenciados na primeira fase, pelo que cuidar de famílias quando um membro está a morrer,

constitui um desafio para os profissionais de saúde ajudá-las a lidarem com a situação.

O ENFERMEIRO NO CUIDAR DA FAMÍLIA EM CUIDADOS PALIATIVOS NO

CONTEXTO DOMICILIÁRIO

Os cuidados domiciliários surgem como uma estratégia básica de intervenção na

comunidade que se deve constituir num processo contínuo que pretende valorizar as

necessidades da pessoa/família em termos de saúde, incentivando-os a utilizarem os recursos

de que dispõem e os da comunidade, de modo a que estes superem as suas limitações.

Os cuidados domiciliários podem proporcionar um fim de vida digno e desejado para o

doente e sua família, prestando a estes cuidados paliativos, em que o doente é o centro dos

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cuidados e não a doença, cuidados com uma visão holística e só possíveis de realizar de forma

correcta, quando se vê o indivíduo como um sistema da família.

Constituindo assim a família e o doente terminal a unidade a cuidar, é fulcral que se

compreenda e avalie também as necessidades sentidas pelas famílias, devendo esta ser

entendida como uma unidade receptora de cuidados, para que ela própria desempenhe

eficazmente a sua função fulcral de prestadora de cuidados.

O enfermeiro assume aqui um papel muito importante, pois tem a responsabilidade de

potenciar a comunicação e as relações interpessoais existentes, com a finalidade de procurar

compreender a pessoa/família, para os auxiliar a obter uma adaptação mais eficaz, face aos

recursos de que dispõem.

Por tudo isto torna-se fundamental a correcta e completa avaliação das necessidades dos

familiares.

AVALIAÇÃO DAS NECESSIDADES FAMILIARES

A avaliação das necessidades da família segundo Gómez-Batiste et al (1996), referido por

Moreira (2001), passa pelo conhecimento das reacções do doente; as suas expectativas; grau

de informação que dispõe; grau de comunicação entre membros da família; constituição do

núcleo familiar e seu comportamento; grau de disponibilidade familiar para cuidar e suas

dificuldades reais; recursos materiais e afectivos disponíveis; quem é o cuidador principal e o

tipo de relação com o doente; expectativas reais da família face à equipa de saúde; padrões

morais e experiências anteriores, assim como a resolução de conflitos.

Da análise realizada por Moreira (2001), sobre as necessidades da família mencionadas

pelos diferentes autores, surge o apelo à necessidade de informação, como estratégia a adoptar

para capacitar a família para cuidar, promovendo simultaneamente o ajuste à situação e uma

melhor adaptação à perda.

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Tendo em consideração o Modelo de Sistema de Família de Friedman, os enfermeiros

podem explorar todo o sistema familiar, realçando a totalidade, em que a avaliação segundo

Artinian (2005), inclui (Quadro I):

Quadro I – Avaliação das necessidades A forma como a doença afecta os membros da família;

Relação entre membros da família; Relação da família com a equipa de saúde;

Informação dada ao sistema familiar; Decisão sobre cuidados de saúde dos outros membros familiares;

Nível de instrução dos membros da família; Informação que a família precisa ou quer;

Membros envolvidos na tomada de decisões; Existência de processamento de informação internamente;

Respostas do sistema familiar, reacções da família; Abertura face ao apoio ou aconselhamento da equipa de saúde;

Influência do comportamento da família no doente e do doente na família. A colaboração interdisciplinar nos cuidados domiciliários paliativos é particularmente

importante, pelo facto de ser fundamental o envolvimento de vários profissionais para que

este serviço satisfaça positivamente as pessoas/famílias que dele necessitam.

Desta forma, o enfermeiro deverá colaborar activamente com outros prestadores de

cuidados, outros profissionais, e representantes da comunidade. Desta saudável relação a

pessoa/família sairá certamente beneficiada.

INTERVENÇÃO DE ENFERMAGEM À FAMÍLIA

Na prestação de cuidados directos à pessoa/família no domicílio, o enfermeiro tem uma

excelente oportunidade para observar o funcionamento da família dentro do seu contexto real

de vida; identificar os seus recursos e problemas no seu meio e assim, adaptar o ensino e os

cuidados de enfermagem às condições e recursos existentes; identificar outros problemas de

saúde; facilitar o contacto directo e pessoal que inspire confiança e sentimento de apoio à

família; desenvolver um melhor relacionamento do enfermeiro com a família, mostrando um

maior grau de privacidade e disponibilidade para com ela (Navalhas, 1997).

O enfermeiro deverá procurar, juntamente com a família, a melhor forma de integrar a

prestação de cuidados decorrente da alteração de saúde, nas rotinas familiares diárias e, se

necessário, mobilizar recursos existentes na comunidade, incentivando a sua participação. No

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entanto a intervenção de enfermagem deverá ser no sentido de trabalhar com a família e não

para a família, respeitando a sua autonomia e capacidade de decisão em função dos seus

valores.

De entre as várias intervenções possíveis junto da família com um doente em fase

terminal, segundo Artinian (2005) o enfermeiro deve incluir (Quadro II):

Quadro II – Intervenções de Enfermagem

Encorajamento das interacções entre enfermeiro – família com uma relação de confiança, para que estas saibam, em situação de crise, a quem poderão recorrer.

Fomentar a aptidão da família para obter informação através do próprio familiar, bem como do profissional de saúde, levando esta a uma melhor aceitação da doença.

Escutar os sentimentos, preocupações e perguntas da família mostrando disponibilidade para uma escuta activa que permita um fluxo emocional.

Responder às perguntas da família ou ajudá-la a obter respostas, devem também ser explicadas as causas, consequências e evolução da situação, bem como os procedimentos e técnicas para que a família cuide do seu familiar (controlo de sintomas, apoio psicológico, …).

Fomentar uma esperança realista, pois existe a necessidade que o doente/família saibam o prognóstico da doença no sentido da resolução de problemas/desejos pendentes antes do fim da vida.

Informar regularmente sobre a situação de saúde do doente, caso este concorde com tal facto, mas ter sempre em atenção que não se deve dar informação precipitada. Na informação é necessário que o enfermeiro e a restante equipa, incluído a família não façam uma “conspiração de silêncio” em redor do doente, pois muitas vezes o silêncio é a confirmação das suspeitas do doente em relação ao diagnóstico, aumentando o seu receio face ao que não lhe é transmitido verbalmente (Moreira, 2001).

Promover estratégias para normalizar a vida da família, incluído sentimentos e emoções de forma a encontrar o melhor processo de adaptação e assim ter uma maior disponibilidade para o doente, utilizando para tal as reuniões ou conferências familiares (Moreira, 2001).

Valorizar os pontos fortes da família como cuidadora, assumindo o reforço positivo como um incentivo a uma continuidade e qualidade dos cuidados.

Facilitar a resolução de conflitos anteriores entre os vários sistemas familiares (ex. irmãos que não se falam, filhos que abandonaram os pais, heranças…).

Apoiar a família nos seus cuidados pessoais, incluindo descanso, distracção e o que a família mais desejar no encontro do sentido da vida.

Mostrar disponibilidade total para o contacto aquando necessário, por exemplo através do fornecimento do número de telefone, muitas vezes o recurso mais útil para a resolução de problemas no imediato.

Despiste e identificação de sinais de luto disfuncional, sendo que este é tudo menos linear e necessita do acompanhamento de profissionais, nomeadamente dos enfermeiros.

O enfermeiro também tem um papel fundamental no apoio e seguimento do luto, em que

este não é apenas uma reacção emocional, é também um experiência física, intelectual, social

e espiritual (O’Toole,1987, referido em Twycross, 2001).

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Ao planear a satisfação das necessidades identificadas, é importante avaliar o que pode ser

atingido na realidade dentro do sistema familiar. Nesta área, o enfermeiro deve ter em conta

as crenças e valores da família sobre a saúde, bem como, as limitações financeiras e os

recursos disponíveis (Bolander, 1998).

A avaliação é feita continuamente junto da pessoa/família, para determinar os resultados

face às finalidades/objectivos estabelecidos. Poderá ser necessário reformular objectivos,

acções, consoante a evolução das situações. À medida que os cuidados domiciliários são

implementados, os recursos, motivação e reacções emocionais da pessoa e da família alteram-

se, devendo ser tidos em linha de conta na reformulação do plano de cuidados.

CONCLUSÃO

Uma correcta e completa avaliação das necessidades da família do doente em fase

terminal, em contexto domiciliário é fulcral para uma adequada intervenção transdisciplinar,

em que o enfermeiro assume o papel de pivot nesta equipa, sendo ele muitas vezes o elemento

mais próximo da família, tendo em conta a sua globalidade de cuidados.

Na certeza que muito mais havia a escrever, pois quando o fazemos sobre um tema tão

vasto como o cuidar da família do doente terminal enquanto sistema, com tudo o que isso

implica, qualquer coisa que se escreve é uma mera tentativa de contribuir para que este

sistema seja mais e melhor entendido e que quem cuide de famílias com um elemento em fase

terminal se apoie e reflicta sobre a sua intervenção.

BIBLIOGRAFIA

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