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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutandopor dinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo

nvel."

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Observei, no prefcio original deste livro, que no considerei fcil me distanciar osuficiente, ainda nas primeiras sensaes depois de termin-lo, para me referir a elecom a compostura que esta abertura formal parece exigir. Meu interesse nele era torecente, e to forte, e minha mente estava to dividida entre o prazer e o lamento prazer pela concluso de um longo projeto, lamento por me separar de tantoscompanheiros que eu corria o risco de cansar o leitor com confidncias pessoais eemoes particulares.

Al m disso, tudo o que eu poderia dizer sobre a histria, quaisquer que fossem asrazes para isso, procurei dizer nela.

Pouco interessaria ao leitor, talvez, saber como senti pena de deixar a caneta delado ao encerrar uma tarefa imaginativa de dois anos; ou como um autor se sente aolanar uma parte de si mesmo no mundo de sombras quando uma multido decriaturas de sua cabea sai dele para sempre. No entanto, eu nada mais tinha a dizer;a menos, de fato, que fosse confessar (o que pode ser ainda menos importante) queningum jamais poder acreditar nesta narrativa, ao l-la, mais do que eu acrediteiao escrev-la.

To verdadeiros so esses sentimentos no presente que agora s posso fazer aoleitor mais uma confidncia. De todos os meus livros, este o de que gosto mais. fcilacreditar que sou pai afetuoso de todos os filhos de minha fantasia, e que ningumjamais amar essa famlia mais do que eu. Mas, assim como muitos pais afetuosos,tenho no fundo do meu corao um filho predileto. E seu nome D AV IDCO PPERFIELD .

Charles Dickens

I

Naso

Se serei o heri de minha prpria vida, ou se essa posio ser ocupada por algumaoutra pessoa, o que estas pginas devem mostrar. Para comear minha vida com ocomeo de minha vida, registro que nasci (conforme me informaram e acreditei) numasexta-feira, meia-noite. Notaram que o relgio comeou a bater as horas e comecei achorar simultaneamente.

Considerando o dia e a hora de meu nascimento, a parteira e algumas mulheressbias do bairro, que tinham um vivo interesse em mim meses antes de qualquerpossibilidade de nos conhecermos pessoalmente, declararam, primeiro, que eu estavadestinado a ser infeliz na vida; e, em segundo lugar, que teria o privilgio de enxergarfantasmas e espritos; ambos os dotes inevitveis, como elas acreditavam, a todainfeliz criana de qualquer gnero, nascida nas primeiras horas de uma noite de sexta-feira.

No preciso dizer nada aqui, logo no comeo, porque nada pode demonstrarmelhor que minha prpria histria se essa previso se confirmou ou se desmentiu. Nosegundo aspecto da questo, observarei apenas que, a menos que eu tenha esgotadoessa parte de minha herana quando beb, ainda no tomei posse dela. Mas noreclamo nem um pouco de ser poupado dessa privao; e se alguma outra pessoagoza dela no presente momento, ser muito bem-vinda a conserv-la consigo.

Nasci empelicado,{1} e a membrana foi posta venda nos jornais ao mdico preode quinze guinus. Se as pessoas que viajavam por mar naquela poca estavam semdinheiro, ou estavam sem f e preferiam os coletes de cortia, eu no sei; tudo o que sei que houve apenas um lance solitrio, e foi de um advogado ligado ao cmbio, queofereceu duas libras em dinheiro, e o resto em xerez, mas declinou da garantia de nomorrer afogado por um preo superior. Em consequncia, o anncio foi retirado comprejuzo total pois quanto ao xerez, o xerez de minha pobre e querida me estava nomercado ento e dez anos depois a membrana de empelicado foi rifada em nossaregio, em cinquenta nmeros a meia-coroa por cabea, o vencedor vindo a gastarcinco xelins. Eu estava presente e me lembro de ter me sentido bem incomodado econfuso diante de uma parte de mim ser oferecida desse jeito. Quem ganhou amembrana de empelicado, eu me lembro, foi uma velha com uma cesta, que, muitorelutante, apresentou os estipulados cinco xelins, tudo em moedas de meio penny, efaltando dois pence e meio, coisa que exigiu tempo imenso e grande gasto dematemtica no empenho infrutfero de provar isso a ela. O fato que por muito temposer lembrado como notvel por l que ela nunca se afogou, mas morreu triunfanteem sua cama aos noventa e dois anos. Soube que essa foi, at o final, sua maiorvaidade, o fato de nunca ter estado na gua em sua vida, a no ser numa ponte; e,

durante o ch (sobre o qual era extremamente exigente), ela, at o final, sempreexpressava sua indignao pela audcia insolente de marinheiros e outros que tinhama presuno de sair vagando pelo mundo. Intil relembrar a ela que algumasconvenincias, inclusive talvez o ch, resultavam dessa prtica questionvel. Elasempre respondia com nfase ainda maior e com um conhecimento instintivo da forade sua objeo: No vamos divagar.

Para no divagar, eu prprio, neste momento, voltemos ao meu nascimento.Nasci em Blunderstone, Suffolk, ou por ali, como dizem na Esccia. Fui filho

pstumo. Os olhos de meu pai estavam fechados para a luz deste mundo havia seismeses quando os meus se abriram para ele. H algo de estranho para mim, mesmohoje, na ideia de que ele nunca me viu; e algo ainda mais estranho na lembranasombria que tenho de minhas primeiras associaes infantis com sua branca lpide noadro da igreja e da indefinvel compaixo que costumava sentir, por ele estar alideitado sozinho na noite escura, quando nossa saleta era quente e iluminada por fogoe vela, e as portas de nossa casa estavam quase cruelmente, me parecia s vezes fechadas e trancadas.

Uma tia de meu pai, e portanto tia-av minha, sobre quem terei mais a relataradiante, era a principal magnata da famlia. A srta. Trotwood, ou srta. Betsey, comominha pobre me a chamava, quando conseguia superar seu horror a essapersonagem tremenda a ponto de nem sequer mencion-la (o que era raro), havia secasado com um marido mais jovem que ela, que era muito bonito, exceto no sentidodo adgio popular bonito quem o bem faz, porque havia forte suspeita de que elebatia na srta. Betsey e de que havia mesmo, numa questo polmica sobre provises,feito algumas apressadas, mas decididas, tentativas de jog-la pela janela de umsegundo andar. Esses sinais de incompatibilidade de temperamentos levou a srta.Betsey a pagar a ele e efetuar uma separao amigvel. Ele foi para a ndia com seucapital e l, segundo uma lenda desvairada de nossa famlia, foi visto uma vezmontado num elefante na companhia de um babuno; mas creio que se tratava de um

babu ou uma begum.{2} Seja como for, da ndia chegaram em casa notcias de suamorte, dez anos depois. Como isso afetou minha tia, ningum soube; poisimediatamente aps a separao, ela retomou seu nome de solteira, comprou um chalnum povoado no litoral, muito longe, l se instalou como mulher solteira com umacriada, e ficou claro que viveria isolada, para sempre, em retiro inflexvel.

Meu pai havia sido o queridinho dela, creio eu; mas ela ficou mortalmenteofendida com o casamento dele, em razo de minha me ser uma boneca de cera.Ela jamais vira minha me, mas sabia que no tinha ainda vinte anos. Meu pai e asrta. Betsey nunca mais se encontraram. Ele tinha o dobro da idade de minha mequando se casaram e era de constituio um tanto delicada. Morreu um ano depois, e,como disse, seis meses antes que eu viesse ao mundo.

Esse era o estado das coisas na tarde daquela que eu posso ter a licena deconsiderar uma sexta-feira agitada e importante. No tenho como saber em que p

estavam as coisas naquele momento; nem guardo lembrana alguma, fundada emprova de meus sentidos, do que se segue.

Minha me estava sentada diante do fogo, mas indisposta e de moral muito baixo,olhando as chamas atravs das lgrimas, e se desesperando penosamente por simesma e pelo pequeno estranho sem pai que, j bem recebido por algumas dzias deprofticos alfinetes, numa gaveta do andar de cima, em um mundo nada animadopela questo de sua chegada; minha me, digo, estava sentada junto ao fogo naquelamanh clara e ventosa de maro, muito temerosa e triste e duvidando muito que fossesair viva da provao que tinha diante de si, quando, erguendo os olhos ao enxug-los, viu pela janela em frente uma dama desconhecida entrando pelo jardim.

Minha me teve, ao segundo olhar, uma firme premonio de que era a srta.Betsey. O sol poente brilhava sobre a dama desconhecida, por cima da cerca dojardim, e ela avanava para a porta com a feroz rigidez de porte e compostura deexpresso que no podiam pertencer a mais ningum.

Quando chegou casa, deu uma prova a mais de sua identidade. Meu pai sempreinsinuara que ela quase nunca se portava como um cristo comum; e ento, em vez detocar a sineta, ela chegou e olhou para dentro daquela mesma janela, pressionando aponta do nariz no vidro a tal ponto que minha pobre e querida me costumava dizerque ficou perfeitamente chato e branco por um momento.

Ela deu tamanho susto em minha me que sempre achei que devia srta. Betsey ofato de ter nascido numa sexta-feira.

Em sua agitao, minha me havia deixado a cadeira, e ido para trs dela. A srta.Betsey percorreu com os olhos a sala, devagar e interrogativamente, comeando pelooutro lado e conduzindo os olhos como uma cabea de mouro num relgio holandsat encontrar minha me. Ento fez para minha me uma carranca e um gesto dealgum acostumada a ser obedecida, para que viesse abrir a porta. Minha me foi.

Senhora David Copperfield, imagino eu disse a srta. Betsey; a nfase sereferindo, talvez, ao luto de minha me e sua condio.

Sim minha me disse, abatida. Senhorita Trotwood disse a visitante. Ouviu falar dela, se ouso dizer.Minha me respondeu que tinha tido o prazer. E teve a desagradvel conscincia

de no deixar transparecer que havia sido um prazer opressivo. Agora est diante dela disse a srta. Betsey. Minha me baixou a cabea e a

convidou a entrar.Foram para a saleta de onde minha me havia sado, no estando acesa a lareira

da sala melhor, do outro lado do corredor no fora acesa, na verdade, desde oenterro de meu pai; e quando se sentaram e a srta. Betsey no disse nada, minha me,depois de tentar inutilmente se controlar, comeou a chorar.

Ah, ora, ora, ora! logo disse a srta. Betsey. No faa isso! Vamos, vamos!Minha me mesmo assim no conseguiu se controlar, de forma que chorou at no

ter mais o que chorar. Tire a touca, menina disse a srta. Betsey e me deixe ver voc.Minha me estava com muito medo dela para se recusar a obedecer a esse pedido

estranho, mesmo que tivesse alguma disposio para tal. Portanto, fez o que lhe foiordenado, e o fez com mos to nervosas que o cabelo (que era farto e bonito) caiupor todo o rosto.

Ora, Deus me perdoe! exclamou a srta. Betsey. Voc mesmo uma criana!Minha me era, sem dvida, excepcionalmente jovem de aparncia, at para sua

idade. Ela baixou a cabea, como se fosse culpa sua, coitadinha, e disse, soluando,que de fato acreditava ser nada mais que uma viva menina e no seria mais queuma me menina se sobrevivesse. Na breve pausa que se seguiu, ela teve a impressode sentir a srta. Betsey tocar seu cabelo, e com mo no indelicada; mas olhando paraela, em sua tmida esperana, descobriu que a dama estava sentada com a saiaerguida, as mos dobradas sobre um joelho e os ps na grade de proteo, testafranzida para o fogo.

Em nome dos cus disse a srta. Betsey de repente , por que Gralhada? Est falando da casa, minha senhora? perguntou minha me. Por que Gralhada? perguntou a srta. Betsey. Fornada teria sido muito mais

adequado, se tivessem alguma viso prtica da vida, vocs dois. O nome foi escolha do sr. Copperfield respondeu minha me. Quando

comprou a casa, ele gostava de pensar que haveria gralhas em torno dela.O vento do entardecer fez ento tamanha agitao entre alguns olmos altos no fim

do jardim que nem minha me nem a srta. Betsey conseguiram deixar de olhar nessadireo. J que os olmos se inclinavam uns na direo dos outros, como gigantes quesussurrassem segredos, e depois de alguns segundos desse repouso cassem emviolenta agitao, sacudindo os loucos braos, como se suas ltimas confidnciasfossem realmente prfidas demais para sua paz de esprito, alguns velhos ninhos degralhas esfiapados, desgastados pelo tempo, que pesavam dos galhos mais altos,sacudiam como nufragos num mar tempestuoso.

Onde esto os pssaros? perguntou a srta. Betsey. Os? Minha me estava pensando em outra coisa. As gralhas o que aconteceu com elas? perguntou a srta. Betsey. No veio nenhuma desde que moramos aqui disse minha me. Achamos, o

senhor Copperfield achou, que eram muitas gralhas; mas os ninhos eram bem velhos etinham sido abandonados pelos pssaros muito tempo antes.

David Copperfield sem tirar nem pr! exclamou a srta. Betsey. DavidCopperfield da cabea aos ps! Chamar uma casa de Gralhada quando no existegralha nenhuma por perto e achar que h pssaros porque v os ninhos!

O senhor Copperfield respondeu minha me est morto e se a senhora seatrever a falar mal dele para mim

Minha pobre e querida me, acho, tinha alguma inteno momentnea de atacar eespancar minha tia, que podia com facilidade dar conta dela com uma s mo,embora minha me tivesse tido melhores condies para um enfrentamento desses doque tinha nessa noite. Mas isso passou com o ato de levantar da cadeira e ela sesentou de novo, muito fraca, e desmaiou.

Quando voltou a si, ou quando a srta. Betsey a trouxe de volta, seja o que for, viua outra parada diante da janela. O entardecer a essa altura estava caminhando paraa escurido; e, na penumbra, no conseguiriam se ver sem a ajuda do fogo.

Bom disse a srta. Betsey indo at sua cadeira, como se estivesse considerandocasualmente a possibilidade , e para quando voc espera

Estou toda trmula minha me disse, vacilante. No sei o que estacontecendo. Eu vou morrer, tenho certeza!

No, no, no disse a srta. Betsey. Tome um ch. Ai, meu Deus, ai, meu Deus, acha que vai me fazer bem? minha me exclamou

desamparada. Claro que sim disse a srta. Betsey. Isso no passa de capricho. Como voc

chama a sua menina? No sei ainda se ser uma menina, no, senhora disse minha me, inocente. Bendita criana! a srta. Betsey exclamou, citando sem saber a frase da

almofada de alfinetes na gaveta do andar de cima, mas aplicada a minha me e no amim. No falei disso. Estou falando da criada.

Peggotty disse minha me. Peggotty! repetiu a srta. Betsey com certa indignao. Voc est me dizendo,

filha, que um ser humano entrou numa igreja crist e adquiriu o nome de Peggotty? o sobrenome dela disse minha me, fraca. O senhor Copperfield a chamava

assim porque o nome de batismo dela igual ao meu. Venha c! Peggotty! gritou a srta. Betsey abrindo a porta da saleta. Ch. Sua

patroa no est muito bem. No demore.Dada essa ordem com tal veemncia como se ela fosse uma autoridade reconhecida

na casa desde que era uma casa, e tendo confrontado a perplexa Peggotty que surgirano corredor com uma vela ao som de uma voz estranha, a srta. Betsey fechou a portade novo e sentou-se como antes: com os ps no anteparo, a saia do vestido erguida eas mos dobradas em cima de um joelho.

Voc estava falando de ser menina disse a srta. Betsey. No tenho dvida deque vai ser menina. Tenho um pressentimento de que deve ser uma menina. Agora,filha, no momento em que essa menina nascer

Talvez menino minha me tomou a liberdade de interromper. Estou dizendo que tenho um pressentimento de que deve ser uma menina

insistiu a srta. Betsey. No me conteste. Desde o momento do nascimento dessamenina, filha, pretendo ser amiga dela. Pretendo ser sua madrinha e peo que d a ela

o nome de Betsey Trotwood Copperfield. No deve haver nenhum equvoco na vidacom esta Betsey Trotwood. No deve haver nenhuma bobagem com os afetos dela,pobrezinha. Ela deve ser bem educada e bem preservada para no depositar suaconfiana onde no merecida. Disso farei a minha obrigao.

A cabea da srta. Betsey fazia um movimento depois de cada uma dessas frases,como se os seus prprios erros do passado estivessem agindo dentro dela e, atravs deforte represso, ela impedisse qualquer referncia mais direta a eles. Assim suspeitouminha me, ao menos, ao observ-la luz baixa do fogo: muito amedrontada pelasrta. Betsey, muito inquieta por si mesma e muito calada e confusa no todo paraobservar qualquer coisa com clareza ou saber o que dizer.

E David era bom para voc, filha? perguntou a srta. Betsey, depois de ficar umpouquinho calada e esses movimentos de cabea aos poucos terem cessado. Vocs sedavam bem?

Ns ramos muito felizes disse minha me. O senhor Copperfield era muitobom para mim.

O qu? Ele mimava voc, eu suponho replicou a srta. Betsey. Como estou bem sozinha e dependo s de mim neste duro mundo outra vez, acho

que mimava, sim, de fato soluou minha me. Bom! No chore! disse a srta. Betsey. Voc no era par para ele, filha, se

que duas pessoas possam ser par uma para outra, por isso fiz a pergunta. Voc erarf, no?

Era. E governanta? Era bab numa famlia que o senhor Copperfield visitava. O senhor Copperfield

era muito gentil comigo, olhava muito para mim, me dava bastante ateno efinalmente me props casamento. E eu aceitei. Nos casamos disse minha me, comsimplicidade.

Ah, pobre menina! divagou a srta. Betsey, a testa franzida ainda inclinadapara o fogo. Voc sabe alguma coisa?

O que foi que a senhora disse? minha me perguntou, hesitante. De cuidados com a casa, por exemplo disse a srta. Betsey. No muito, acho respondeu minha me. Nem de longe o quanto eu gostaria.

Mas o senhor Copperfield estava me ensinando(E ele l sabia alguma coisa?!) disse a srta. Betsey num parnteses. e acho que eu teria melhorado, estando to ansiosa para aprender e ele to

paciente para ensinar, se a grande infelicidade de sua morte De novo minha mecalou-se a e no conseguiu continuar.

Bem, bem! disse a srta. Betsey. eu mantinha o livro de despesas da casa e conferia com o senhor Copperfield

toda noite exclamou minha me em outro jorro de tristeza e caindo no choro outra

vez. Bem, bem! disse a srta. Betsey. No chore mais. e sei ao certo que nunca tivemos uma palavra de desacordo quanto a isso, a

no ser quando o senhor Copperfield protestava que meus trs e cincos eram muitoparecidos, e que eu punha rabinhos enrolados em meus setes e noves continuouminha me em mais um jorro, interrompendo-se outra vez.

Vai passar mal disse a srta. Betsey , e sabe que isso no ser bom nem paravoc, nem para minha afilhada. Vamos! No fique assim!

Esse argumento teve algum efeito para aquietar minha me, embora sua crescenteindisposio tenha tido talvez efeito maior. Houve um intervalo de silncio, quebradoapenas pelos ocasionais Ah! jaculatrios da srta. Betsey sentada com os ps noanteparo.

Sei que David havia feito um plano de penso com o dinheiro dele disse ela,afinal. O que ele deixou para voc?

O senhor Copperfield disse minha me, respondendo com alguma dificuldade foi muito atencioso e bom e garantiu a reverso de uma parte disso para mim.

Quanto? perguntou a srta. Betsey. Cento e cinquenta libras por ano disse minha me. Podia ter sido pior disse minha tia.A palavra era adequada ao momento. Minha me estava to pior, que Peggotty,

ao entrar com a bandeja de ch e velas e ver de imediato como ela estava mal, e que asrta. Betsey teria visto antes se houvesse luz suficiente, a levou para seu quarto noandar de cima a toda pressa; e imediatamente despachou Ham Peggotty, seu sobrinho,que estava fazia alguns dias em segredo na casa, sem que minha me soubesse, comomensageiro especial em caso de emergncia, para buscar parteira e mdico.

Essas duas foras aliadas ficaram consideravelmente perplexas quando, ao chegarcom minutos de intervalo entre um e outro, encontraram uma dama desconhecida deaspecto portentoso sentada diante do fogo, com o chapu amarrado ao braoesquerdo, tapando os ouvidos com algodo. Como Peggotty nada sabia sobre ela eminha me nada disse sobre ela, era um grande mistrio na saleta; e o fato de ter umestojo de algodo no bolso e colocar esse artigo nos ouvidos daquela forma em nadadepreciava a solenidade de sua presena.

O mdico, tendo subido e descido outra vez, e concludo, creio, que havia umapossibilidade de essa dama desconhecida e ele terem de sentar face a face por algumashoras, disps-se a ser educado e socivel. Ele era o mais manso exemplar de seu sexo,o mais delicado homenzinho. Esgueirava-se ao entrar e sair de uma sala, para ocuparmenos espao. Pisava to macio como o Fantasma em Hamlet, e mais devagar.Inclinava a cabea para um lado, em parte por modesta autodepreciao, em parteem modesta reverncia aos outros. No se pode dizer que seria capaz de cometergrosserias nem com um cachorro. Ele no cometia grosserias nem com um cachorro

louco. Podia oferecer uma palavra mais dura gentilmente, ou meia palavra, ou umfragmento, pois falava to devagar como andava; mas no seria rude com ele, e nopoderia ser rspido com ele, por nenhum motivo imaginvel.

O dr. Chillip, olhando com delicadeza para minha tia, a cabea de lado, e comuma pequena reverncia, disse, aludindo ao algodo, tocando suavemente a orelhaesquerda:

Alguma irritao local, minha senhora? O qu? minha tia respondeu, tirando o algodo de um ouvido como se fosse

uma rolha.O dr. Chillip ficou to alarmado com sua aspereza, conforme contou a minha me,

posteriormente, que foi um alvio no perder a presena de esprito. Mas repetiu,docemente:

Alguma irritao local, minha senhora? Bobagem! replicou minha tia, e arrolhou-se de novo, num s golpe.O dr. Chillip nada podia fazer depois disso, seno ficar sentado e olhar debilmente

para ela, ali sentada, mirando o fogo, at ser chamado de novo para o andar decima. Depois de uma ausncia de um quarto de hora, ele voltou.

Ento? disse minha tia, removendo o algodo da orelha mais prxima dele. Bom, minha senhora respondeu o dr. Chillip , estamos estamos

progredindo devagar. Ba-a-ah! disse minha tia, com uma sacudida perfeita ao proferir a interjeio

desdenhosa. E arrolhou-se de novo, como antes.Sinceramente sinceramente como disse o dr. Chillip a minha me, ele quase

ficou chocado; falando de um ponto de vista estritamente profissional, ele quase ficouchocado. Mas sentou-se e olhou para ela mesmo assim, durante quase duas horas, elavoltada para o fogo, at ser chamado de novo. Mais uma ausncia e de novo elevoltou.

E ento? disse minha tia, removendo o algodo daquele lado outra vez. E ento, minha senhora respondeu o dr. Chillip , estamos estamos

progredindo devagar, senhora. Sim, sim, sim! disse minha tia. Com um esgar tamanho que o dr. Chillip no

conseguiu absolutamente suportar. Era algo de fato calculado para derrubar seunimo, disse ele depois. Preferiu dar meia-volta e sentar-se na escada, no escuro e naforte corrente de ar, at ser chamado de novo.

Ham Peggotty, que frequentara a Escola Nacional e era mesmo uma fera nocatecismo, e que podia, portanto, ser visto como uma testemunha digna de crdito,contou no dia seguinte que, ao espiar a saleta uma hora depois disso, foiimediatamente notado pela srta. Betsey, ento caminhando de um lado para outro emestado de agitao, e agarrado antes que pudesse escapar. Que se ouviam entorudos ocasionais de ps e vozes no andar de cima que, ele supunha, o algodo no

amortecia, circunstncia que o fez ser agarrado pela dama como vtima em quemdespejar sua superabundante agitao quando os rudos eram mais altos. Que,marchando constantemente de um lado para outro com ele pelo colarinho (como se eleandasse tomando ludano demais), ela, nessa ocasio, o sacudiu, despenteou seucabelo, amarrotou sua camisa, tapou os ouvidos dele como se os confundisse com osseus prprios, e de outras maneiras o sacudiu e maltratou. Isso foi em parteconfirmado pela tia dele, que o viu meia-noite e meia, logo depois de ter sido solto, eafirmou que estava to vermelho quanto eu.

O amvel dr. Chillip no poderia julgar com maldade nesse momento, se que emalgum momento poderia. Esgueirou-se para dentro da saleta assim que teve chance edisse a minha tia com seu jeito mais brando:

Bom, minha senhora, fico feliz em lhe dar os parabns. Por que razo? perguntou minha tia, rspida.O dr. Chillip estremeceu de novo diante da extrema severidade dos modos de

minha tia, de forma que fez uma pequena reverncia e deu-lhe um pequeno sorriso,para abrand-la.

Misericrdia, esse homem, o que ele est fazendo! minha tia bradou,impaciente. No sabe falar?

Fique calma, minha cara senhora disse o dr. Chillip com seu tom mais suave. No h mais motivo para inquietao, senhora. Fique calma.

Considerou-se sempre um milagre o fato de minha tia no ter sacudido o doutorpara arrancar dele o que tinha a dizer. Ela apenas sacudiu a prpria cabea, mas detal forma que ele estremeceu.

Bom, minha senhora retomou o dr. Chillip assim que teve coragem , estoufeliz de lhe dar os parabns. Est tudo terminado, senhora, e em bons termos.

Durante os cinco minutos e tanto que o dr. Chillip dedicou a pronunciar essasentena, minha tia olhava firme para ele.

Como ela est? perguntou minha tia, cruzando os braos com o chapu aindaamarrado a um deles.

Bom, minha senhora, ela logo estar se sentindo bem, espero replicou o dr.Chillip. To bem quanto se pode esperar de uma jovem me nesta melanclicasituao domstica. No h nenhuma objeo em ir ver a me, minha senhora. Podefazer bem a ela.

E ela. Como est ela? minha tia perguntou, rspida.O dr. Chillip inclinou um pouco mais a cabea para um lado e olhou minha tia

como um afvel passarinho. A beb disse minha tia. Como ela est? Minha senhora retomou o dr. Chillip , achei que soubesse. um menino.Minha tia no disse nem uma palavra, apenas pegou o chapu pelas fitas,

maneira de uma atiradeira, e desferiu com ele um golpe na cabea do dr. Chillip,

vestiu o chapu, saiu e nunca mais voltou. Ela desapareceu como uma fadadescontente; ou como um daqueles seres sobrenaturais que popularmente se supunhaque eu fosse capaz de enxergar; e nunca mais voltou.

No. Eu estava deitado em meu cesto e minha me deitada em sua cama; masBetsey Trotwood Copperfield ficou para sempre na terra dos sonhos e sombras, aregio extraordinria para onde eu to tardiamente viajei; e a luz na janela de nossoquarto brilhou sobre o destino terreno de todos os viajantes e sobre o tmulo dascinzas e do p que um dia foram aquele sem o qual eu nunca teria existido.

II

O bservo

Os primeiros objetos que assumem presena distinta diante de mim, quando olho paratrs, para o vazio de minha infncia, so minha me com seu belo cabelo e formasjovens, e Peggotty sem forma nenhuma, os olhos to escuros que parecem escurecerat o que os cerca em seu rosto, faces e braos to firmes e vermelhos que eu meperguntava por que os passarinhos no preferiam picar a ela em vez de mas.

Creio que consigo me lembrar dessas duas um pouco separadas, aos meus olhosdiminudas por se curvarem ou ajoelharem no cho, e eu indo com passo incerto deuma para outra. Tenho em minha mente uma impresso que no consigo distinguirda lembrana de fato, do contato do indicador de Peggotty, que ela costumavaestender para eu segurar, e que era spero pelo trabalho com agulha, como umpequeno ralador de noz-moscada.

Isso pode ser fantasia, embora eu ache que a memria da maioria de ns capazde recuar a esses tempos mais do que muitos supomos; assim como acredito que opoder de observao de nmeros em crianas muito novas seja bem mais admirvelpor sua ateno e preciso. De fato, acho que se pode dizer, da maioria dos homensadultos notveis nessa rea, que eles no perderam essa faculdade e no que aadquiriram; ademais, como observo no geral, esses homens retm certo frescor edelicadeza, uma capacidade de se satisfazer que tambm uma herana preservada desua infncia.

Eu deveria ter escrpulos de estar divagando ao me deter para falar disso, mas o que me leva a observar que cultivei essas concluses em parte na experincia do meuprprio eu; e se, por qualquer coisa que eu ponha nesta narrativa, vier a parecer quefui uma criana muito observadora, ou que, como adulto, tenho uma forte lembranade minha infncia, eu sem dvida admito ambas essas caractersticas.

Olhando para trs, como eu dizia, para o vazio de minha infncia, os primeirosobjetos de que me lembro destacados por si mesmos da confuso das coisas sominha me e Peggotty. De que mais me lembro? Vamos ver.

Destacando-se dessa nuvem, emerge a nossa casa, no nova para mim, masbastante familiar, em sua lembrana mais antiga. No piso trreo est a cozinha dePeggotty, abrindo para um quintal, com um pombal numa estaca, no centro, semnenhum pombo nele; um grande canil num canto, sem nenhum cachorro; e umaquantidade de aves que parecem incrivelmente altas para mim, andando por ali demaneira feroz e ameaadora. H um galo que trepa numa estaca para cantar e pareceme observar sobretudo quando olho para ele pela janela da cozinha, e que me darrepios, to feroz ele . Com os gansos que ficam fora do porto lateral e que vmcorrendo atrs de mim com os longos pescoos esticados quando passo por ali eu

sonho noite: assim como um homem cercado por animais selvagens pode sonharcom lees.

Aqui est um longo corredor que grande expectativa eu crio a respeito!, queleva da cozinha de Peggotty porta da frente. Um escuro depsito se abre para ele, eesse um lugar para se passar correndo de noite; porque no sei o que pode haver nomeio daquelas tigelas, potes e velhas caixas de ch quando no h ningum ali dentrocom uma pequena lamparina, fazendo o ar mofado sair pela porta, onde h cheiro desabo, picles, pimenta, velas e caf, tudo ao mesmo tempo. Depois h duas salas: asala em que nos sentamos noite, minha me, eu e Peggotty, porque Peggotty nossacompanhia constante quando termina seu trabalho e estamos sozinhos, e a salamelhor onde sentamos aos domingos; com elegncia, mas no tanto conforto. Paramim, h um certo ar lgubre nessa sala, porque Peggotty me contou, no sei quando,mas aparentemente h sculos, sobre o enterro de meu pai e os acompanhantes comcapas pretas. Ali, num domingo noite, minha me l para Peggotty e para mimcomo Lzaro se levantou dos mortos. E fico to assustado que elas depois soobrigadas a me tirar da cama e me mostrar o silencioso cemitrio da igreja pelajanela do quarto, com os mortos todos descansando em seus tmulos, embaixo deuma lua solene.

Nada do que eu conheo em toda parte to verde como a grama daquelecemitrio de igreja; nada to cheio de sombras como suas rvores; nada to silenciosocomo suas lpides. Os carneiros pastam ali, quando me ponho de joelhos, logo cedode manh, na minha caminha numa alcova dentro do quarto de minha me, e olhopara l; vejo a luz vermelha brilhando no relgio de sol e penso comigo: ser que orelgio de sol est contente, me pergunto, de saber dizer as horas?

Eis o nosso banco na igreja. Que encosto alto tem o banco! Com uma janela perto,pela qual d para ver a nossa casa, que observada muitas vezes durante acerimnia da manh, por Peggotty, que gosta de se certificar sempre que possvel deque no est sendo roubada, nem pegando fogo. Mas embora os olhos de Peggotty sedistraiam, ela fica muito ofendida quando os meus se distraem, franze a testa paramim quando me ponho de p no banco, porque no estou olhando o pastor. Mas noposso ficar olhando o tempo todo para ele, eu o conheo sem aquela coisa branca nocorpo, e tenho medo que ele estranhe se eu ficar olhando muito, talvez pare acerimnia para me questionar e a o que eu fao? uma coisa horrvel olhar de bocaaberta, mas devo fazer isso s vezes. Olho para minha me, mas ela finge que no mev. Olho para um menino no corredor e ele faz caretas para mim. Olho o sol que entrapela porta aberta da varanda e l vejo uma ovelha perdida, no falo de um pecador,mas de um carneiro, decidindo se entra ou no na igreja. Sinto que, se ficasse olhandopara ele mais um pouco, podia sofrer a tentao de falar alto alguma coisa; e o queseria de mim ento? Olho as placas monumentais na parede e tento pensar no falecidosr. Bodgers, desta parquia, e quais devem ter sido os sentimentos da sra. Bodgersquando, tomado por feridas, muito tempo sofreu o sr. Bodgers e os mdicos foram

inteis. Eu me pergunto se chamaram o dr. Chillip e se ele foi intil; e se foi, o que elesente ao se lembrar disso uma vez por semana. Desvio o olhar do dr. Chillip, com suagravata de domingo, para o plpito; e penso que lugar bom seria para brincar, quecastelo daria, com outro menino subindo a escada para atac-lo e dar com aalmofada de veludo com pingentes na cabea dele. Aos poucos meus olhos vofechando; e depois de ouvir o pastor cantando uma msica sonolenta no calor, noescuto mais nada, at cair do banco com rudo, e sou levado embora, mais morto quevivo, por Peggotty.

E agora vejo o exterior de nossa casa, com as janelas de trelia dos quartosabertas para deixar entrar o ar de cheiro doce, os esfarrapados ninhos velhos dasgralhas ainda pendurados nos olmos no fundo do jardim. Agora estou no quintal,alm do ptio onde se encontram o pombal e o canil: uma verdadeira reserva deborboletas, pelo que me lembro, com uma cerca alta, e um porto com cadeado; ondeh frutas em pencas nas rvores, mais maduras e saborosas que qualquer fruta que videsde ento em qualquer outro jardim, e onde minha me colhe algumas com umcesto, enquanto espero ao lado, engolindo groselhas furtivamente, tentando parecerindiferente. Sopra um vento forte e o vero vai embora num instante. Estamosbrincando na penumbra de inverno, danando pela sala. Quando minha me fica semflego e se apoia numa poltrona, olho enquanto ela enrola os cachos brilhantes nosdedos, apruma a cintura, e ningum sabe melhor do que eu que ela gosta de sua belaaparncia e tem orgulho de ser to bonita.

Isso est entre minhas primeiras impresses. Isso e uma sensao de que ambostemos um pouco de medo de Peggotty, e de que nos submetemos sua orientao emquase tudo, esto entre as primeiras opinies, se podem ser chamadas assim, queformei a partir do que via.

Peggotty e eu estvamos uma noite sentados junto lareira da sala, sozinhos. Eutinha lido para Peggotty sobre crocodilos. Devo ter feito uma leitura muito perspicaz,ou a pobre alma deve ter ficado profundamente interessada, porque me lembro que,quando terminei, ela ficou com uma impresso enevoada de que eles eram uma espciede planta. Eu estava cansado de ler e morrendo de sono; mas tendo licena, como umgrande prmio, de esperar acordado at minha me voltar depois da visita noturna casa de um vizinho, eu preferia morrer ali mesmo (claro) a ir para a cama. Haviaatingido aquele estgio de sonolncia em que Peggotty parecia inchar e ficar imensa.Segurei as plpebras abertas com os dois indicadores e olhei com perseverana paraela, sentada a trabalhar; para o pedacinho de cera de vela que ela guardava para sualinha que estranho era, riscado em todas as direes!, para a casinha com telhadode palha onde morava uma fita mtrica; para a caixa de trabalho com tampa decorrer, com uma vista da catedral de Saint Paul (com cpula cor-de-rosa) pintada emcima; para o dedal de lato em seu dedo; para ela, que eu achava linda. Estava comtanto sono que sabia que, se perdesse de vista qualquer coisa por um minuto,adormeceria.

Peggotty eu disse, de repente , voc j foi casada? Nossa, seu Davy replicou Peggotty. De onde apareceu essa ideia de

casamento?Ela respondeu com tamanho susto que me deixou bem acordado. Ento parou o

trabalho, olhou para mim com a agulha estendida na ponta da linha. Mas voc j foi casada, Peggotty? digo eu. Voc uma mulher muito bonita,

no ?Eu pensava que o estilo dela era muito diferente do de minha me, com certeza;

mas a considerava um exemplo perfeito de outra escola de beleza. Na sala melhor,havia um banquinho de veludo vermelho para apoiar os ps, no qual minha mehavia pintado um ramalhete. A base daquele banquinho e a pele de Peggotty mepareciam uma coisa s. O banquinho era macio e Peggotty era spera, mas no faziadiferena.

Eu bonita, Davy! disse Peggotty. Nossa, no, meu bem! Mas que ideia essade casamento?

No sei! No pode casar com mais de uma pessoa ao mesmo tempo, pode,Peggotty?

Claro que no diz Peggotty, com a mais imediata determinao. Mas se voc casa com uma pessoa e a pessoa morre, ora, ento pode casar com

outra pessoa, no pode, Peggotty? Voc pode diz Peggotty , se quiser, meu bem. questo de opinio. Mas qual a sua opinio, Peggotty? disse eu.Perguntei e olhei para ela com curiosidade, porque ela olhou para mim com muita

curiosidade. Minha opinio que disse Peggotty, desviando os olhos de mim, depois de

uma pequena indeciso e voltando a seu trabalho eu mesma nunca fui casada, seuDavy, e que no espero ser. s isso que eu sei.

No est chateada, Peggotty, est? perguntei, depois de me manter sentado ecalado um minuto.

Achei que estava, sim, que tinha sido muito seca comigo; mas estava bem errado:pois ela deixou de lado o trabalho (que era uma meia dela mesma) e, abrindo osbraos, tomou minha cabea encaracolada entre eles e me deu um aperto. Sei que foium bom aperto porque, sendo muito gorda, sempre que fazia algum esforo depois deestar vestida, alguns botes da parte de trs da roupa voavam longe. E me lembro dedois explodindo para lados opostos da sala enquanto ela me abraava.

Agora deixe eu ouvir mais alguma coisa dos cocodrilos disse Peggotty, queainda no dominava bem a palavra , porque ainda no ouvi nem metade do que euqueria.

No entendi bem por que Peggotty estava to estranha, nem por que queria tantovoltar aos crocodilos. Porm, voltamos a esses monstros, eu novamente alerta, e

deixamos os ovos deles na areia para o sol chocar; corremos deles e os enganamosmudando a toda hora de direo, coisa que no eram capazes de fazer depressa porconta de sua constituio desajeitada; entramos na gua atrs deles, como nativos,pusemos pedaos de madeira em suas gargantas; e em resumo escapamos de todos osperigos dos crocodilos. Eu escapei, pelo menos; mas tenho minhas dvidas quanto aPeggotty, que ficava pensativamente espetando a agulha em vrias partes de seu rostoe braos o tempo todo.

Tnhamos esgotado os crocodilos e comeado com os aligtores quando o sino dojardim tocou. Samos pela porta e l estava minha me, excepcionalmente bonita, euachei, e com ela um cavalheiro com belo cabelo e bigodes pretos, que havia nosacompanhado da igreja at em casa no domingo anterior.

Quando minha me se curvou na porta para me erguer nos braos e me beijar, ocavalheiro disse que eu era um rapazinho mais privilegiado que um monarca, ou algoassim; pois meu entendimento posterior, sei disso, vem em meu auxlio aqui.

O que quer dizer isso? perguntei, por cima do ombro dela.Ele deu um tapinha em minha cabea; mas de alguma forma no gostei dele, nem

de sua voz grave, e fiquei com cimes de que a mo dele tocasse a de minha me aome tocar, o que aconteceu. Afastei-a o melhor que pude.

Ah, Davy! ralhou minha me. Bom menino! disse o cavalheiro. No me admira a sua devoo!Nunca antes vi um colorido to bonito no rosto de minha me. Ela ralhou

delicadamente comigo por ter sido rude; e me segurando perto de seu xale, virou-separa agradecer ao cavalheiro pelo trabalho de acompanh-la at em casa. Elaestendeu a mo ao falar e, quando ele a pegou, achei que minha me olhou de relancepara mim.

Vamos dizer boa noite, bom rapaz disse o cavalheiro quando estava com acabea inclinada, eu vi!, sobre a pequena luva de minha me.

Boa noite! eu disse. Ora! Vamos ser os melhores amigos do mundo! disse o cavalheiro, rindo.

Aperte aqui!Minha mo direita estava na mo esquerda de minha me, ento estendi a ele a

outra. Ora, essa a mo errada, Davy! o cavalheiro riu.Minha me estendeu a minha mo direita, mas eu estava decidido, pela razo

anterior, a no estend-la a ele, e no estendi. Estendi a outra, que ele apertou comgosto, disse que eu era um sujeito valente e foi embora.

Nesse minuto, eu o vejo virar-se no jardim e nos dar um ltimo olhar com ummau pressgio naqueles olhos negros antes que a porta se fechasse.

Peggotty, que no tinha dito nem uma palavra, nem mexido um dedo, fechou ostrincos imediatamente e fomos todos para a sala. Minha me, ao contrrio de seus

hbitos, em vez de ir para a poltrona da lareira, ficou do outro lado da sala e sentou-se, cantando para si mesma.

Espero que tenha tido uma boa noite, sim, senhora disse Peggotty, parada,dura feito um poste no meio da sala, com uma vela na mo.

Muito obrigada a voc, Peggotty respondeu minha me, com voz alegre , tiveuma noite muito proveitosa.

Um desconhecido, ou quase, uma mudana agradvel Peggotty sugeriu. Uma mudana muito agradvel, de fato minha me respondeu.Peggotty continuou parada, imvel no meio da sala, minha me voltou a cantar,

eu dormi, embora no estivesse dormindo to profundamente que no ouvisse vozes,sem entender o que diziam. Quando quase acordei desse desconfortvel cochilo,encontrei Peggotty e minha me ambas em lgrimas, ambas falando.

De um que nem esse a, o seu Copperfield no ia gostar disse Peggotty. Issoeu digo e juro!

Deus do cu minha me exclamou , voc vai me deixar louca! Ser que existiualgum dia uma pobre moa to maltratada pelos criados como eu? Por que cometocomigo mesma a injustia de me chamar de moa? Eu nunca fui casada, Peggotty?

Deus sabe que sim, senhora retorquiu Peggotty. Ento, como voc se atreve disse minha me , voc sabe que no quero dizer

que no pode se atrever, Peggotty, mas como voc pode ter a coragem de me deixarto incomodada e dizer coisas to duras para mim, quando sabe muito bem que notenho, neste lugar, um nico amigo a quem recorrer?

Mais razo ainda respondeu Peggotty pra dizer que no pode ser. No! Nopode ser. No! No pode ser por nada deste mundo. No! Achei que Peggotty iaatirar o candelabro, to enftica era.

Como voc pode ser to irritante disse minha me, vertendo ainda maislgrimas que antes a ponto de falar de maneira to injusta! Como pode insistir comose estivesse tudo decidido e arranjado, Peggotty, quando repito a voc insistentemente,mulher cruel, que alm das gentilezas mais comuns nada aconteceu! Voc fala deadmirao. O que posso fazer? Se as pessoas so to bobas a ponto de se permitiremesse sentimento, a culpa minha? O que posso fazer, pergunto a voc? Gostaria que euraspasse a cabea e pintasse o rosto de preto, ou me desfigurasse com umaqueimadura, uma escaldadura ou algo desse tipo? Diria mesmo que voc ia gostardisso, Peggotty. Diria que voc ia gostar bem disso.

Peggotty pareceu levar essa acusao muito a srio, achei. E meu menino querido exclamou minha me, vindo at a poltrona onde eu

estava e me acariciando , meu queridinho Davy! Vo insinuar que no demonstroafeto por meu tesouro precioso, o rapazinho mais querido que j existiu!

Ningum nunca falou nada disso, no disse Peggotty. Voc insinuou, Peggotty! retrucou minha me. Sabe que sim. O que mais se

pode concluir do que voc disse, criatura malvada, quando sabe to bem como eu quepor causa dele, no faz nem trs meses, deixei de comprar para mim um guarda-solnovo, quando o velho verde est todo pudo at em cima e a franja est em fiapos?Voc sabe disso, Peggotty. No pode negar. Ento, virando afetuosamente paramim, com o rosto apertado no meu: Eu no sou uma boa me para voc, Davy?Sou uma mame malvada, cruel, egosta, ruim? Diga que eu sou, meu filho; diga ,meu menino, e Peggotty vai amar voc; e o amor de Peggotty muito melhor do que omeu, Davy. Eu no amo nada voc, amo?

Diante disso, todos ns comeamos a chorar juntos. Acho que eu chorava maisalto no grupo, mas tenho certeza de que ramos todos sinceros. Eu estava bem triste eacho que nos primeiros entusiasmos de sensibilidade ferida chamei Peggotty de fera.Aquela honesta criatura estava em profunda aflio, eu me lembro, e deve ter perdidomuitos botes nessa ocasio; porque ocorreu uma pequena saraivada dessesexplosivos quando, depois de fazer as pazes com minha me, ela se ajoelhou junto poltrona e fez as pazes comigo.

Fomos para a cama muito abatidos. Meus soluos ficaram me acordando duranteum bom tempo; e quando um soluo muito forte quase me levantou da cama,encontrei minha me sentada sobre as cobertas, inclinada sobre mim. Adormeci emseus braos depois disso, e dormi profundamente.

No sei se foi no domingo seguinte que vi de novo o cavalheiro, ou se houvealgum lapso de tempo maior antes de ele reaparecer, no me lembro. No meproponho a ser exato com datas. Mas l estava ele, na igreja, e nos acompanhou atem casa depois. E entrou para ver um famoso gernio que tnhamos na janela dasala. No me pareceu que tenha olhado muito a planta, mas antes de ir embora pediua minha me que lhe desse um pouco da flor. Ela pediu que ele mesmo escolhesse, masele se recusou, no entendo por que, ento ela colheu a flor para ele e deu em sua mo.Ele disse que nunca, nunca mais se separaria dessa flor; e achei que ele devia ser bembobo de no saber que a flor ia cair aos pedaos dentro de um ou dois dias.

Peggotty comeou a ficar conosco noite menos do que sempre ficava. Minha mese dirigia a ela bastante, mais que nunca, me ocorreu, e ramos os trs excelentesamigos; mesmo assim ramos diferentes de antes, no mais to vontade entre ns.s vezes, achava que Peggotty talvez no gostasse que minha me usasse todos osvestidos bonitos que tinha em suas gavetas; ou que visitasse tantas vezes aquelevizinho; mas no conseguia, para minha tranquilidade, entender o que havia.

Aos poucos fui me acostumando a ver o cavalheiro de bigodes pretos. No gosteimais dele que da primeira vez, e sentia o mesmo cime inquieto; mas se eu tinhaalguma razo para isso alm da repulsa instintiva de uma criana e de uma ideiageral de que Peggotty e eu podamos muito bem cuidar de minha me sem nenhumaajuda, certamente no era a razo que eu poderia ter encontrado se fosse mais velho.Nada desse tipo passava por minha mente, nem de perto. Eu era capaz de observarpedaos pequenos, por assim dizer; mas quanto a fazer uma rede com uma poro

desses pedaos e pegar algum com ela, isso estava, ainda, fora do meu alcance.Numa manh de outono, eu estava no jardim com minha me quando o sr.

Murdstone, que agora eu conhecia pelo nome, apareceu, a cavalo. Ele freou o cavalopara saudar minha me e disse que ia para Lowestoft visitar uns amigos que lestavam com um iate e alegremente props me levar na sela sua frente se eu quisessepassear.

O ar estava to claro e agradvel e o cavalo parecia gostar tanto da ideia dopasseio, ali bufando e batendo a pata no porto do jardim, que senti grande vontadede ir. Ento, fui enviado ao andar de cima para Peggotty me aprontar; e nesse meio-tempo o sr. Murdstone desmontou e, com a rdea do cavalo debaixo do brao,caminhou devagar para um lado e outro da cerca de roseiras, enquanto minha mecaminhava de um lado para outro por dentro para acompanh-lo. Me lembro dePeggotty e eu espiando os dois de minha pequena janela; me lembro de comopareciam estar examinando com ateno a roseira entre eles, ao passear; e como,depois de estar num humor absolutamente anglico, Peggotty se zangou em ummomento e escovou meu cabelo do lado errado, com fora demais.

O sr. Murdstone e eu logo partimos, e trotamos pelo gramado verde do lado darua. Ele me segurava com bastante facilidade com um brao e no acho que eu fossesempre inquieto, porm no conseguia ficar sentado ali na frente dele sem virar acabea s vezes, para olhar o seu rosto. Ele tinha aquele tipo de olho escuro e raso, euqueria uma palavra melhor para expressar um olho que no tem profundidade parase olhar, o qual, quando est distrado, parece, por alguma peculiaridade de luz, sedesfigurar por um momento, num relance. Muitas vezes, quando olhava para ele,observava essa aparncia com uma espcie de assombro e me perguntava no que elepensava to intensamente. Seu cabelo e bigodes eram mais pretos e mais grossos,olhando assim to de perto, do que at mesmo eu pensava que fossem. Certaangulosidade na parte inferior de seu rosto e a indicao pontilhada da barba pretacerrada que ele raspava rente todos os dias me lembravam um museu de cera quehavia passado por nosso bairro uns seis meses antes. Isso, suas sobrancelhasregulares, a riqueza do branco, do negro, do marrom de sua pele (confundo sua pele esua lembrana!), me fizeram consider-lo, apesar de minhas reservas, um homemmuito bonito. E no tenho dvida de que minha pobre e querida me tambm achavaisso.

Fomos para um hotel beira-mar, onde dois cavalheiros estavam fumandocharutos sozinhos num quarto. Cada um deitado em cima de pelo menos quatrocadeiras, e usando um grande palet spero. Num canto, havia uma pilha de casacos,um barco dobrvel, uma bandeira, tudo embolado.

Os dois se puseram de p de um jeito desmazelado quando entramos e disseram: Salve, Murdstone! A gente achou que voc tinha morrido! No ainda! disse o sr. Murdstone.

E quem esse rapaz? perguntou um dos cavalheiros, me segurando. Este o Davy respondeu o sr. Murdstone. Davy o qu? perguntou o cavalheiro. Jones? Copperfield disse o sr. Murdstone. O qu! Cria da encantadora senhora Copperfield? exclamou o cavalheiro. A

linda viuvinha? Quinion disse o sr. Murdstone , cuidado, por favor. Algum aqui esperto. Quem esperto? perguntou o cavalheiro, rindo.Ergui os olhos depressa, curioso para saber. Brooks de Sheffield, s disse o sr. Murdstone.Fiquei bem aliviado ao descobrir que era apenas Brooks de Sheffield porque, de

incio, realmente pensei que fosse eu.Parecia haver algo de muito cmico na reputao do sr. Brooks de Sheffield,

porque os dois homens riram com gosto quando ele foi mencionado e o sr. Murdstonetambm se divertiu bastante. Depois de rir um pouco, o cavalheiro que ele haviachamado de Quinion disse:

E qual a opinio de Brooks de Sheffield quanto ao negcio planejado? Ora, no sei se Brooks entende muito disso no presente replicou o sr.

Murdstone , mas no geral ele no favorvel, eu acho.Com isso houve mais risadas e o sr. Quinion disse que ia tocar a campainha para

pedir xerez e brindar a Brooks. Fez isso; e quando o vinho chegou, ele me fez tomarum pouco, com um biscoito, e antes que eu bebesse, me fez levantar e dizer: confuso de Brooks de Sheffield!. O brinde foi recebido com grande aplauso e risadasto gostosas que me fizeram rir tambm; diante do que eles riram ainda mais. Emresumo, ns nos divertimos bastante.

Passeamos pelo rochedo depois disso, sentamos na grama e olhamos coisas comum telescpio. No consegui ver nada quando ele foi posto diante do meu olho, masfingi que vi, e depois voltamos ao hotel para comer cedo. O tempo todo que estivemosfora os dois cavalheiros fumaram incessantemente, o que, pensei, a julgar pelo cheirode seus casacos de l, deviam estar fazendo desde que os casacos vieram do alfaiate.No devo esquecer que fomos a bordo do iate, onde os trs desceram para a cabine ese ocuparam com alguns papis. Vi que estavam trabalhando bem pesado quandoolhei l dentro por uma escotilha aberta. Durante esse tempo, me deixaram com umhomem muito bom, com uma grande cabeleira vermelha e um chapu brilhante muitopequeno em cima dela, que usava camisa ou colete listrado, com Cotovia escrito nopeito. Achei que era o nome dele; e que, como ele vivia a bordo e no tinha uma portaonde colocar o nome, havia posto ali; mas quando o chamei de sr. Cotovia, ele disseque era o nome do barco.

Observei o dia inteiro que o sr. Murdstone era mais srio e mais firme que os doiscavalheiros. Eles eram muito alegres e descuidados. Brincavam na maior liberdade

um com o outro, mas raramente com ele. Me pareceu que ele era mais inteligente e frioque os dois, e que o viam com algo igual a meu prprio sentimento. Observei que,uma ou duas vezes, quando o sr. Quinion estava falando, olhava de lado para o sr.Murdstone, como para ter certeza de que ele no estava insatisfeito; e que uma vez,quando o sr. Passnidge (o outro cavalheiro) estava animado, tropeou no p dele edeu um olhar de alerta, para observar o sr. Murdstone, que estava sentado, austero esilencioso. No me lembro tampouco se o sr. Murdstone riu em algum momento nessedia, exceto da piada de Sheffield, e essa, no fim das contas, era piada dele mesmo.

Voltamos para casa no comeo da noite. Era uma noite muito boa e minha me eele deram outro passeio pelo roseiral, e quanto a mim, mandaram jantar. Quando elefoi embora, minha me me perguntou tudo sobre o dia e o que eles tinham falado efeito. Mencionei o que disseram a respeito dela e ela riu, me disse que eram sujeitossem-vergonha que falavam bobagens, mas eu sabia que ela havia gostado. Sabia tobem como sei agora. Aproveitei a oportunidade para perguntar se ela conhecia o sr.Brooks de Sheffield, mas ela respondeu que no, s que achava que devia ser umfabricante de facas e garfos.

Poderia eu dizer que o seu rosto se foi mudado como tenho razo para lembrar,morto como sei que est se ele volta a surgir diante de mim neste instante, to ntidocomo qualquer rosto que eu possa escolher olhar numa rua cheia de gente? Poderia eudizer, de sua inocente e jovem beleza, que se apagou e no existe mais, quando seuhlito me chega ao rosto agora, como chegou naquela noite? Poderia eu dizer que elamudou, quando minha lembrana a traz de volta vida assim; e que, mais fiel quejamais fui sua adorvel juventude, ou que o ser humano jamais foi, ela conservaainda o que a valorizava ento?

Escrevo sobre ela exatamente como ela era quando fui para a cama depois dessaconversa e ela veio me dar boa-noite. Ela se ajoelhou, alegre, ao lado da cama, eapoiando o rosto nas mos, riu e disse:

O que foi que eles disseram, Davy? Me conte de novo. No posso acreditar. Encantadora comecei a dizer.Minha me ps as mos em meus lbios para me calar. No foi encantadora ela disse, rindo. No pode ter sido encantadora, Davy.

Eu sei que no! Foi, sim. Encantadora senhora Copperfield repeti com firmeza. E linda. No, no, no pode ter sido linda. Linda, no interps minha me, pondo os

dedos em meus lbios de novo. Foi, sim. Linda viuvinha. Que criaturas bobas e atrevidas! minha me exclamou rindo e cobrindo o

rosto. Que homens ridculos! No so? Davy, meu bem Bem, me. No conte para Peggotty; ela pode ficar zangada com eles. Eu mesma estou

muito zangada; mas prefiro que Peggotty no fique sabendo.Prometi, claro; nos beijamos e nos beijamos muitas vezes e eu logo ca no sono.Me parece, agora, to longe no tempo, que deve ter sido no dia seguinte que

Peggotty apareceu com a incrvel e ousada proposta que irei mencionar; masprovavelmente foi dois meses depois.

Estvamos sentados como antes, uma noite (quando minha me havia sado,como antes), em companhia da meia e da fita mtrica, da bola de cera e da caixa coma catedral de Saint Paul na tampa, e o livro de crocodilo, quando Peggotty, depois deolhar vrias vezes para mim, e abrir a boca como se fosse falar, sem falar o queachei que era apenas bocejo, do contrrio teria ficado bem preocupado , disse,sedutoramente:

Seu Davy, o que o senhor acha de ir comigo passar uns quinze dias na casa demeu irmo em Yarmouth? No ia ser divertido?

Seu irmo um homem agradvel, Peggotty? perguntei, hesitante. Ah, que homem agradvel ele ! Peggotty exclamou, erguendo as mos. E

tem o mar; os barcos e navios, os pescadores, a praia e o Am pra brincarPeggotty estava falando de seu sobrinho Ham, mencionado no primeiro captulo;

mas dizia seu nome como um bocado de gramtica inglesa.{3}

Fiquei animado com seu resumo de delcias e repliquei que de fato seria divertido,mas o que diria minha me?

Ora, pois sou capaz de apostar um guinu disse Peggotty, com intensidade norosto que ela deixa a gente ir. Vou perguntar pra ela, se voc quiser, assim que elachegar em casa. Pois ento!

Mas como ela vai fazer enquanto estivermos longe? perguntei, apoiando meuspequenos cotovelos na mesa para defender minha posio. Ela no consegue viversozinha.

Se Peggotty estava procurando um buraco, de repente, no calcanhar daquela meia,devia ser um muito pequenino de fato, que no valia a pena remendar.

Estou dizendo! Peggotty! Ela no consegue viver sozinha, voc sabe. Ah, bendito seja! disse Peggotty, olhando de novo para mim, afinal. No

sabe? Ela vai ficar quinze dias com a dona Grayper. A dona Grayper vai ter muitacompanhia.

Ah! Se fosse isso, eu estava pronto para ir. Esperei, na mais absoluta impacincia,at minha me voltar da casa da sra. Grayper (pois ela estava na casa dessa mesmavizinha) para ver se teramos licena de levar adiante essa grande ideia. Sem ficarnem um pouco surpresa como eu esperava, minha me concordou prontamente; e noite estava tudo arranjado, minha hospedagem e alimentao durante a visitaseriam pagos.

Logo chegou o dia de irmos. A data chegou muito depressa, at mesmo para mimque estava numa febre de expectativa, meio temeroso de que um terremoto ou uma

montanha de fogo, ou alguma outra grande convulso da natureza, pudesse seinterpor para impedir a expedio. Iramos na carroa do entregador, que partia demanh depois do desjejum. Daria qualquer coisa para deixarem eu me arrumar nanoite da vspera e dormir de chapu e botas.

Mesmo agora me emociono, embora eu conte em tom leve, ao lembrar comoestava ansioso para deixar meu lar feliz; e pensar que nem desconfiava do quanto oestava deixando para sempre.

Gosto de relembrar que, quando a carroa do entregador estava no porto, minhame parada ali me beijando, uma grata ternura por ela e pelo velho local ao qual eununca havia voltado as costas antes me fez chorar. Fico contente de saber que minhame chorou tambm e que senti seu corao batendo contra o meu.

Gosto de relembrar que, quando a carroa comeou a rodar, minha me saiucorrendo do porto e pediu que parasse para ela poder me beijar mais uma vez. Gostode me deter na seriedade e amor com que ela ergueu o rosto para o meu e me beijou.

Quando a deixamos parada na rua, o sr. Murdstone foi at onde ela estava epareceu censur-la por estar to comovida. Eu estava olhando para trs debaixo dotoldo da carroa e me perguntei o que ele tinha a ver com isso. Peggotty, que tambmestava olhando para trs do outro lado, no pareceu nada satisfeita, comodemonstrava o rosto que voltou para dentro da carroa.

Fiquei olhando para Peggotty durante algum tempo, num devaneio sobre esse casoesprio: se ela, por acaso, estava encarregada de me perder como o menino do contode fadas, eu poderia encontrar meu caminho de volta para casa pelos botes que eladeixaria cair.

III

Uma mudan a

O cavalo da carroa era o cavalo mais preguioso do mundo, penso eu, e searrastava com a cabea baixa como se gostasse de deixar esperando as pessoas paraquem os pacotes eram endereados. Pensei tambm, de fato, que ele s vezes riaaudivelmente diante dessa reflexo, mas o cocheiro falou que era s uma tosse de queele sofria. O cocheiro tinha um jeito de manter a cabea baixa que era igual ao do seucavalo, e de pender sonolentamente para a frente ao conduzir com um brao em cimade cada joelho. Eu disse conduzir, mas me ocorre que a carroa teria ido paraYarmouth da mesma forma sem o cocheiro, porque o cavalo sabia tudo, e quanto aconversar, nem lhe passava pela ideia, ele s assobiava.

Peggotty levava uma cesta de merenda sobre os joelhos que teria duradolindamente se estivssemos indo at Londres pelo mesmo transporte. Comemosbastante e dormimos bastante. Peggotty adormecia sempre com o queixo apoiado naala da cesta, de cuja posse nunca relaxava; e eu no acreditaria, a menos que eumesmo ouvisse, que uma mulher indefesa pudesse roncar tanto.

Fizemos tantos desvios subindo e descendo alamedas, demoramos tantoentregando uma cama numa taverna e parando em outros lugares, que eu estavabastante cansado e muito contente quando avistamos Yarmouth. Parecia bemesponjosa e mida, pensei, quando voltei os olhos para um grande espao vazio e semgraa do outro lado do rio, e no pude deixar de me perguntar se o mundo seriarealmente to redondo como dizia meu livro de geografia, uma vez que uma parte deleera to plana. Mas refleti que Yarmouth podia estar situada em um dos polos; o queexplicaria a questo.

Quando chegamos um pouco mais perto, e vimos toda a perspectiva adjacentetraando uma linha reta debaixo do cu, insinuei a Peggotty que um monte ou algumacoisa assim podia melhorar aquilo; e tambm que se a terra fosse um pouco maisseparada do mar, se a cidade e a mar no fossem to misturadas, como torrada egua, seria melhor. Mas Peggotty disse, com maior nfase que o usual, que devemosaceitar as coisas como as encontramos, e que, de sua parte, tinha orgulho de seconsiderar um arenque de Yarmouth.

Quando entramos na rua (que para mim era bem estranha) e sentimos o cheiro depeixe, piche, estopa, alcatro, e vimos os marinheiros circulando, carroas sacudindopara cima e para baixo nas pedras, senti que eu havia cometido uma injustia comum lugar to movimentado; e disse isso a Peggotty, que ouviu minhas expresses deprazer com grande complacncia e me falou que era bem sabido (acho que poraqueles que tiveram a boa sorte de nascer arenques) que Yarmouth era, de longe, omelhor lugar no universo.

Olhe a o Am Peggotty gritou , cresceu que nem d pra reconhecer!De fato, ele estava esperando por ns, na taverna; e perguntou como eu estava

como se eu fosse um velho conhecido. No senti, de incio, que o conhecesse to bemcomo ele me conhecia, porque ele nunca tinha estado em nossa casa desde a noite emque nasci e naturalmente levava vantagem sobre mim. Mas nossa intimidade emmuito progrediu quando ele me ps nas costas para levar para casa. Ele era agoraum sujeito imenso, forte, de um metro e oitenta, proporcionalmente largo, espadado;mas com cara de menino tmido, e o cabelo claro encaracolado lhe dava um aspectobem cordato. Usava palet de lona e cala muito rgida que devia muito bem ficar emp sozinha, sem nenhuma perna dentro. E no se pode dizer propriamente que usavachapu, uma vez que estava coberto no alto, como um velho edifcio, com algumacoisa betumada.

Com Ham me carregando nas costas e levando uma pequena caixa nossa debaixodo brao e Peggotty carregando outra pequena caixa nossa, viramos por alamedasjuncadas com lascas de madeira e montinhos de areia, passamos por gasmetros,corredores de esticar corda, ptios de artesos de barcos, ptios de construtores denavios, ptios de desmanche de navios, ptios de calafetagem, depsitos dearmadores, forjas de ferreiros e um grande nmero desses lugares, at que chegamos vastido sem graa que eu tinha j visto distncia, quando Ham falou:

Pra l a nossa casa, seu Davy.Olhei em todas as direes, at onde conseguia enxergar no deserto, e longe no

mar e longe no rio, mas nenhuma casa conseguia enxergar. Havia uma barcaanegra ou algum tipo de barco aposentado, no muito longe, plantado no cho seco,com um funil metlico saindo dele guisa de chamin e fumegando de modo muitoaconchegante; mas nada semelhante a uma habitao era visvel para mim.

No essa? perguntei. Essa coisa que parece um navio? essa, seu Davy Ham respondeu.Se fosse o palcio de Aladim, com ovo do pssaro roca e tudo, acho que eu no

ficaria mais encantado com a ideia romntica de morar ali. Havia uma portadeliciosa que se abria do lado, o teto era forrado por dentro e havia pequenas janelas;mas o encanto maravilhoso dela era ser um barco de verdade, que sem dvida haviaestado na gua centenas de vezes e que nunca fora pensado como residncia em terrafirme. Isso que era cativante para mim. Se tivesse sido pensado para se morar, euacharia pequeno, inconveniente ou solitrio; mas no tendo sido nunca projetadopara tal fim, tornava-se uma morada perfeita.

Era maravilhosamente limpo por dentro e o mais arrumado possvel. Havia umamesa, um relgio holands, uma arca de gavetas, e em cima da arca de gavetas umabandeja de ch que tinha nela a pintura de uma dama com guarda-sol, passeandocom uma criana de aspecto militar que rolava um aro. A bandeja era impedida detombar por uma bblia; e a bandeja, se tivesse tombado, teria estilhaado inmeras

xcaras, pires e uma chaleira agrupados em torno do livro. Nas paredes havia algunsquadros coloridos comuns, emoldurados com vidro, de temas das escrituras, taiscomo nunca mais vi iguais nas mos dos mascates sem rever todo o interior da casado irmo de Peggotty outra vez. Abrao de vermelho a ponto de sacrificar Isaac deazul, e Daniel de amarelo jogado numa cova de lees verdes eram os mais destacadosdeles. Acima de um pequeno aparador havia um quadro do barco pesqueiro SarahJane, construdo em Sunderland, com um pequeno leme de madeira de verdadepregado nele, uma obra de arte, combinando composio com carpintaria, queconsiderei um dos bens mais invejveis que o mundo podia oferecer. Havia algunsganchos nas vigas do teto cujo uso no adivinhei ento; alguns bas e caixas, eoutras peas desse tipo que serviam como assentos e substituam pobremente ascadeiras.

Tudo isso vi num primeiro olhar, assim que entrei pela porta , feita para umacriana, segundo minha teoria e ento Peggotty abriu uma portinha e me mostroumeu quarto. Era o quarto mais completo e desejvel que eu j tinha visto, na popa dobarco; com uma janelinha, onde passava o leme; um pequeno espelho, da altura certapara mim, pregado na parede e emoldurado com conchas; uma caminha que tinhaapenas o tamanho exato para eu entrar; e um buqu de algas numa jarra azul emcima da mesa. As paredes eram caiadas, brancas como leite, e a colcha de retalhosfazia meus olhos quase doerem com suas cores vivas. Uma coisa que notei emparticular nessa casa deliciosa foi o cheiro de peixe; to marcante que, quando tirei dobolso meu leno para limpar o nariz, descobri que cheirava exatamente como setivesse embrulhado uma lagosta. Ao revelar essa descoberta em segredo paraPeggotty, ela me informou que seu irmo comerciava lagostas, caranguejos elagostins; e depois descobri que um monte dessas criaturas, num estado demaravilhosa conglomerao umas com as outras, sem nunca deixar de pinar o quepudessem alcanar, sempre podia ser encontrado em uma casinha de madeira externaonde guardavam panelas e chaleiras.

Fomos recebidos por uma mulher muito civilizada com avental branco, que eutinha visto fazendo uma reverncia na porta quando eu estava nas costas de Ham, auns quatrocentos metros. E tambm por uma menininha muito bonita (ou assimachei) com colar de contas azuis, que no me deixou beij-la quando me ofereci, massaiu correndo e se escondeu. Pouco depois, quando tnhamos jantado suntuosamentelinguados cozidos, manteiga derretida e batatas, com costeleta para mim, um homempeludo, com um rosto de muita bondade, voltou para casa. Como chamou Peggotty demenina e lhe deu um sonoro beijo na bochecha, no tive dvida, pela adequaogeral de sua conduta, que era o irmo dela. Isso se comprovou, e ele foi apresentado amim como sr. Peggotty, o dono da casa.

Prazer de ver o senhor disse o sr. Peggotty. A gente aqui tudo simples, masest sempre a seu dispor.

Agradeci e repliquei que eu tinha certeza de que seria feliz num lugar to delicioso.

Como vai sua me? perguntou o sr. Peggotty. Ficou contente l?Dei a entender ao sr. Peggotty que ela havia ficado to contente quanto eu podia

desejar e que mandava seus cumprimentos, o que era uma gentil fico de minhaparte.

Fico muito gradecido, decerto disse o sr. Peggotty. Bom, seu Davy, seconseguir se ajeitar aqui esses quinze dia, com ela a indicou a irm com a cabea mais o Ham, e a pequena, a Emly, vamo fazer muito gosto na sua companhia.

Tendo feito as honras da casa sua maneira hospitaleira, o sr. Peggotty saiu parase lavar com uma chaleira de gua quente, observando que a fria nunca consegue metirar a sujeira. Ele logo voltou, com a aparncia muito melhorada, mas torubicundo que no pude deixar de pensar que tinha isso em comum com as lagostas,caranguejos e lagostins, os quais iam para a gua quente muito pretos e saam muitovermelhos.

Depois do jantar, quando a porta estava fechada e tudo aconchegado (as noitesagora eram frias e enevoadas), aquilo me pareceu o abrigo mais delicioso que aimaginao do homem podia conceber. Ouvir o vento subir do mar, saber que o fogestava rolando pela plancie desolada l fora, e olhar o fogo, pensar que no havianenhuma casa perto alm daquela, e que aquela era um barco, parecia umencantamento. A pequena Emly superou a timidez e estava sentada ao meu lado emcima do menor dos bas, que acomodava apenas ns dois e cabia justo no canto dachamin. A sra. Peggotty, com o avental branco, tricotava do lado oposto ao fogo.Peggotty e sua costura estavam bem em casa com a catedral de Saint Paul e o pedaode cera de vela, como se nunca tivessem conhecido outro teto. Ham, que tinha me dadominha primeira lio de um jogo de cartas, estava tentando lembrar o truque de tirara sorte com o baralho sujo, imprimindo impresses suspeitas do polegar em todas ascartas que virava. O sr. Peggotty fumava seu cachimbo. Senti que era um momentopara conversa e confidncia.

Senhor Peggotty! digo eu. Sim, senhor diz ele. Deu a seu filho o nome de Ham porque vive numa espcie de arca?O sr. Peggotty aparentemente achou a ideia profunda, mas respondeu: No, senhor. Eu nunca dei nenhum nome pra ele, no. Quem deu esse nome para ele ento? fazendo ao sr. Peggotty a pergunta

nmero dois do catecismo. Ora, seu Davy, o pai que deu esse nome pra ele disse o sr. Peggotty. Achei que o senhor era o pai dele! Meu irmo Joe que era pai dele disse o sr. Peggotty. Morreu, senhor Peggotty? insinuei depois de uma pausa respeitosa. Afogado disse o sr. Peggotty.Fiquei muito surpreso de o sr. Peggotty no ser o pai de Ham, e comecei a

imaginar se estaria errado acerca da relao dele com qualquer pessoa ali. Estava tocurioso para saber que resolvi arrancar isso do sr. Peggotty.

A pequena Emly perguntei, olhando para ela. sua filha, no , senhorPeggotty?

No, senhor. Meu cunhado Tom que era o pai dela. No pude evitar. Ele morreu, senhor Peggotty? insinuei depois de outro silncio respeitoso. Afogado respondeu o sr. Peggotty.Senti dificuldade de retomar o assunto, mas ainda no tinha chegado ao fundo e

precisava chegar ao fundo de alguma forma. Ento disse: O senhor no tem nenhum filho, senhor Peggotty? No, senhor ele respondeu com uma risada curta. Sou solteiro. Solteiro! falei, perplexo. Ora, quem aquela, senhor Peggotty? apontando

para a pessoa de avental que estava tricotando. Aquela dona Gummidge disse o sr. Peggotty. Gummidge, senhor Peggotty?Mas a essa altura Peggotty, quero dizer, a minha peculiar Peggotty, fez gestos to

veementes para que eu no fizesse mais perguntas que s pude ficar sentado e olhartodo o grupo silencioso, at a hora de ir para a cama. Ento, na privacidade deminha pequena cabine, ela me informou que Ham e Emly eram sobrinho e sobrinharfos, que meu anfitrio havia, em momentos diferentes, adotado na infncia,quando foram deixados desamparados; e que a sra. Gummidge era viva do parceirodele num barco, que tinha morrido muito pobre. Ele prprio no passava de umhomem pobre, disse Peggotty, mas bom como ouro e firme como ao, essas foramsuas comparaes. O nico assunto, ela me informou, a respeito do qual ele mostravatemperamento violento ou falava palavres era essa generosidade dele; e se isso eramencionado por qualquer um, ele dava um soco forte na mesa com a mo direita(tinha quebrado uma mesa numa dessas ocasies) e falava um palavro horrendo,que ficaria engrumado, largaria tudo e iria embora para sempre se aquilo fossemencionado outra vez. Parece, em resposta s minhas perguntas, que ningum fazia amenor ideia da etimologia dessa terrvel expresso, ficar engrumado, mas que todosconsideravam constituir uma imprecao das mais solenes.

Sensibilizado com a bondade de meu anfitrio, ouvi as mulheres irem para a camaem outro pequeno nicho como o meu no extremo oposto do barco, e ele e Hampendurarem duas redes para si nos ganchos que eu havia notado no teto, num estadode esprito muito prazeroso, enfatizado pela minha sonolncia. Quando o sono foi aospoucos baixando sobre mim, ouvi o vento uivando no mar e vindo pela planura comtamanha ferocidade que tive uma preguiosa apreenso de que a grande profundidadedo mar pudesse se erguer durante a noite. Mas pensei comigo mesmo que estava numbarco, afinal, e que no era nada mau um homem como o sr. Peggotty estar a bordose acontecesse alguma coisa.

Nada aconteceu, porm, a no ser a chegada da manh. Quando ela brilhou namoldura de conchas de meu espelho, quase imediatamente eu estava fora da cama eao ar livre com a pequena Emly, catando pedras na praia.

Acho que voc deve ser boa marinheira eu disse a Emly. No sei se eu achavaalguma coisa assim, mas senti que era um ato de cortesia dizer alguma coisa, e a velabrilhante de um barco perto de ns produziu uma imagenzinha de si mesma to lindano olho brilhante dela que me veio cabea dizer isso.

No replicou Emly, sacudindo a cabea , eu tenho medo do mar. Medo! eu disse, com um ar adequado de ousadia, olhando do alto o poderoso

oceano. Eu no tenho! Ah! Mas ele cruel disse Emly. J vi ele ser muito cruel com alguns homens

nossos. Vi ele arrebentar um barco do tamanho da nossa casa, tudo despedaado. Espero que no tenha sido o barco que Em que meu pai se afogou? Emly perguntou. No. No foi, esse barco eu

nunca vi. Nem ele tambm? perguntei.A pequena Emly sacudiu a cabea. No lembro!Que coincidncia! Comecei imediatamente a explicar que eu nunca tinha visto meu

pai; e como minha me e eu sempre vivemos sozinhos na maior felicidade que se podeimaginar, vivamos assim agora e viveramos assim sempre; e que o tmulo de meupai era no cemitrio da igreja perto da nossa casa, sombreado por uma rvore,debaixo de cujos ramos eu caminhava e ouvia os pssaros cantarem em muitasmanhs agradveis. Mas havia algumas diferenas entre a orfandade de Emly e aminha, ao que parece. Ela havia perdido a me antes do pai; e ningum sabia ondeera o tmulo do pai, exceto que ficava em algum ponto nas profundezas do mar.

Alm disso disse Emly, enquanto procurava conchas e pedrinhas , seu pai eraum cavalheiro e sua me uma dama; e meu pai era pescador e minha me filha depescador, e meu tio Dan pescador.

Dan o senhor Peggotty, ? perguntei. Tio Dan, esse a Emly respondeu indicando com a cabea a casa-barco. . Ele mesmo. Deve ser muito bom, eu acho? Bom? disse Emly. Se algum dia eu fosse dama, dava para ele um casaco

azul-celeste, com boto de diamante, cala preta, um colete vermelho, chapu de abarevirada, um relgio de ouro bem grande, um cachimbo de prata e um ba dedinheiro.

Eu disse que no tinha dvida de que o sr. Peggotty merecia esses tesouros. Devoadmitir que achei difcil visualiz-lo vontade com a roupa proposta por suaagradecida sobrinha, e tinha dvidas sobretudo sobre a adequao do chapu deabas reviradas, mas guardei esses sentimentos para mim mesmo.

A pequena Emly tinha parado e olhava o cu em sua enumerao desses artigos,como se fossem uma viso gloriosa. E continuamos ento catando conchas epedrinhas.

Voc gostaria de ser uma dama? perguntei.Emly olhou para mim, riu e fez que sim. Gostaria muito. Todo mundo aqui ia ser fino tambm. Eu, o tio, Ham, a senhora

Gummidge. A gente no ia ligar ento quando viesse tempestade. No pela gente,quero dizer. A gente ia pensar nos pobres pescadores, claro, ajudava com dinheiroquando eles carecessem.

Esse me pareceu um quadro muito satisfatrio e portanto nada improvvel.Expressei meu prazer na contemplao dele, e a pequena Emly ganhou coragem paradizer, timidamente:

Voc tem medo do mar, agora?Fiquei bem quieto para me acalmar, mas no tenho dvidas de que, se tivesse visto

uma onda medianamente grande vir rolando, sairia correndo, com uma horrvellembrana dos parentes dela afogados. Mas disse que no e acrescentei:

Voc tambm parece no ter, apesar de dizer que tem porque ela estavaandando muito na beira daquela espcie de velho per ou passadio de madeira poronde passevamos e fiquei com medo que casse.

No tenho medo desse jeito disse a pequena Emly. Mas acordo quando elefica agitado e tremo quando penso no tio Dan e Ham e acho que esto pedindosocorro. Por isso que eu ia gostar tanto de ser uma dama. Mas no tenho medo domar desse jeito. Nem um pouco. Olhe s!

Ela saiu do meu lado e correu por um tronco todo marcado que se projetava dolugar onde estvamos, pairando acima da gua profunda a certa altura, sem a menorproteo. O incidente est marcado to fundo em minha lembrana que se fosse artistapodia desenh-lo agora, diria at que com a mesma preciso daquele dia, a pequenaEmly saltando para a destruio (tal me pareceu) com um olhar que nunca esqueci,dirigido ao alto-mar.

A figurinha leve, ousada, agitada, virou-se e voltou para mim em segurana, elogo ri de meus medos e do grito que tinha dado; intil em todo caso, pois no havianingum perto. Mas houve momentos desde ento, em minha idade adulta, muitosmomentos houve, em que pensei: possvel, entre as possibilidades de coisas ocultas,que, no repentino arroubo da menina e em seu estranho olhar ao longe, houvessealguma indulgente atrao dela pelo perigo, alguma tentao advinda de seu falecidopai, e que a vida dela pudesse talvez terminar naquele dia? Houve um momento apartir do qual me perguntei, se a vida futura dela pudesse me ser revelada numrelance, e revelada de tal forma que uma criana pudesse entender completamente, se apreservao dela poderia depender de um movimento de minha mo, e se eu a teriaestendido para salv-la. Houve um momento no digo que tenha perdurado, mas

houve a partir do qual fiz a mim mesmo a pergunta: teria sido melhor para apequena Emly que as guas tivessem se fechado sobre sua cabea naquela manhdiante dos meus olhos? e ento respondi: sim, teria, sim.

Isso pode ser prematuro. Cedo demais para escrever, talvez. Mas vamos deixarassim.

Passeamos por um longo trajeto e nos enchemos de coisas que achamos curiosas,devolvemos cuidadosamente algumas estrelas-do-mar perdidas de volta gua(ainda hoje, no sei o suficiente dessa espcie para ter bem certeza de nos agradecerempor isso, ou o contrrio) e depois voltamos para a casa do sr. Peggotty. Paramos asota-vento da casinha de lagosta para trocar um beijo inocente, e entramos paratomar o caf da manh rebrilhando de sade e prazer.

Feito dois malviz disse o sr. Peggotty. Eu sabia que isso queria dizer, em nossodialeto local, como dois jovens tordos, e recebi aquilo como um elogio.

Claro que eu estava apaixonado pela pequena Emly. Tenho certeza de que ameiaquela menina com muita verdade, muita ternura, com maior pureza e maiordesprendimento que possa ter havido no melhor amor de um momento posterior daminha vida, por elevado e nobre que tenha sido. Tenho certeza de que meu sentimentodespertava naquela pequena criana de olhos azuis alguma coisa que a tornava etreae fazia dela um anjo. Se em alguma tarde ensolarada ela abrisse um par de asinhas evoasse para longe de meus olhos, no creio que eu fosse achar isso demais para o quetinha motivo para esperar.

Caminhvamos por aquela velha planura sombria de Yarmouth de um jeitoamoroso, horas e horas. O dia passava por ns, como se o Tempo no tivessecrescido ainda, mas fosse criana tambm e sempre a brincar. Contei a Emly que aadorava e que a menos que ela confessasse que me adorava eu me veria reduzido necessidade de me matar com uma espada. Ela disse que me adorava e no tenhodvidas de que era verdade.

Quanto a qualquer sensao de desigualdade, infantilidade ou outra dificuldadeem nosso caminho, a pequena Emly e eu no tnhamos nenhum problema, porqueno tnhamos futuro. No fazamos nenhuma previso quanto a ficar mais velhos,como no fazamos quanto a ficar mais novos. ramos a admirao da sra.Gummidge e de Peggotty, que sussurrava para ns noitinha quando sentvamos,amorosos, lado a lado em nosso bauzinho: Nossa! no lindo?. O sr. Peggottysorria para ns por trs do cachimbo e Ham sorria a noite inteira e no fazia maisnada. Sentiam uma espcie de prazer conosco, eu acho, algo que poderiam sentir porum brinquedo bonito ou por uma miniatura do Coliseu.

Logo descobri que a sra. Gummidge nem sempre era to agradvel quanto seriade se esperar, nas condies de residente na casa do sr. Peggotty. A sra. Gummidgeera de disposio bastante irritvel e s vezes se lamuriava mais que o aceitvel paraos outros em ambiente to pequeno. Eu tinha pena dela, mas havia momentos em queteria sido mais agradvel, penso, se a sra. Gummidge possusse um aposento

conveniente para onde se retirar, e l ficasse at seus nimos reavivarem.De vez em quando, o sr. Peggotty ia a uma taverna chamada Boa Vontade.

Descobri isso quando ele saiu na segunda ou terceira noite de nossa visita, e a sra.Gummidge olhou o relgio holands, entre oito e nove horas, e disse que ele estava le que desde de manh ela sabia que ele iria l.

A sra. Gummidge estivera deprimida o dia inteiro e cara em prantos de manh,quando o fogo soltou fumaa.

Sou uma criatura sozinha e abandonada foram as palavras da sra.Gummidge quando essa desagradvel ocorrncia se deu e tudo me sai ao contrrio.

Ah, a fumaa logo para disse Peggotty (de novo, falo de nossa Peggotty) ealm disso, a senhora sabe, no mais desagradvel pra senhora que pra ns.

Eu sinto mais disse a sra. Gummidge.Era um dia muito frio, com rajadas de vento cortantes. O canto particular da sra.

Gummidge junto lareira me parecia o mais quente e confortvel do local, e suacadeira certamente era a melhor, mas nada a agradava nesse dia. Estava a toda horareclamando do frio que provocava em suas costas o que ela chamava de os arrepio.Por fim, ela chorou por causa disso e disse de novo que era uma criatura sozinha eabandonada e que tudo lhe saa ao contrrio.

Est mesmo muito frio disse Peggotty. Todo mundo deve estar sentindo. Eu sinto mais que os outros disse a sra. Gummidge.No jantar, a mesma coisa, com a sra. Gummidge sempre servida imediatamente

depois de mim, a quem era dada a precedncia como visita importante. O peixe erapequeno e cheio de espinhas, as batatas estavam um pouco queimadas. Ns todosadmitimos que sentamos certa decepo, mas a sra. Gummidge disse que sentia maisdo que ns, chorou de novo e fez essa declarao com grande amargura.

Da mesma forma, quando o sr. Peggotty voltou para casa por volta das novehoras, a infeliz sra. Gummidge estava tricotando em seu canto, num estadodeplorvel, infeliz. Peggotty trabalhava alegremente. Ham estivera consertando umgrande par de botas impermeveis; e eu, com Emly ao lado, tinha lido para eles. Asra. Gummidge em nenhum momento fez outra observao alm de dar um suspirodesanimado, e em nenhum momento ergueu os olhos desde o jantar.

Bom, amigos disse o sr. Peggotty se sentando , como vo vocs?Todos dissemos alguma coisa, ou fizemos alguma expresso, para lhe dar as

boas-vindas, exceto a sra. Gummidge, que apenas sacudiu a cabea em cima do tric. O que que foi? perguntou o sr. Peggotty batendo as mos. Se anime, minha

velha! (O sr. Peggotty no dizia isso como ofensa.)A sra. Gummidge no parecia capaz de se animar. Puxou o velho leno de seda

preta e enxugou os olhos, mas em vez de coloc-lo de volta no bolso, deixou-o fora,se enxugando de novo, e sempre fora, pronto para usar.

O que que est ruim, minha dama? perguntou o sr. Peggotty.

Nada respondeu a sra. Gummidge. Voc veio do Boa Vontade, Danl? Pois vim, fiquei um pouquinho no Boa Vontade agora de noite disse o sr.

Peggotty. Sinto muito forar voc a isso disse a sra. Gummidge. Me forar a isso! Ningum me fora a isso, no respondeu o sr. Peggotty com

uma risada sincera. S vou l porque quero mesmo. E quer muito disse a sra. Gummidge sacudindo a cabea, enxugando os olhos.

, , quer muito. Sinto muito que seja por minha causa que voc quer tanto. Por sua causa? No por sua causa, no! disse o sr. Peggotty. Nem pensa

nisso. , , sim exclamou a sra. Gummidge. Eu sei o que sou. Sei que sou uma

criatura sozinha e abandonada e alm de tudo sair ao contrrio para mim, eu sou docontra com todo mundo. , . Eu sinto mais que os outros e demonstro mais. Esse que o meu problema.

Realmente no pude deixar de pensar, absorvendo tudo isso, que o infortnio seestendia a alguns outros membros daquela famlia, alm da sra. Gummidge. Mas o sr.Peggotty no deu nenhuma resposta, apenas respondeu com outro pedido para a sra.Gummidge se animar.

Eu no sou o que podia ser disse a sra. Gummidge. Longe disso. Eu sei o quesou. Meus problema me deixaram do contra. Eu sinto meus problema e eles me botamdo contra. Queria no sentir eles, mas sinto. Queria me acostumar com eles, mas nome acostumo. Eu incomodo nesta casa. No tenho dvida. Incomodei sua irm o diainteiro, e o seu Davy.

A, de repente me comovi e bradei, com grande aflio mental: No, no incomodou, no, senhora Gummidge. No est nada certo eu fazer isso disse a sra. Gummidge. Eu no valho a

pena. Melhor eu ir pro asilo e morrer. Sou uma criatura sozinha e abandonada e omelhor era no ser contrariedade nenhuma aqui. Se as coisa tm de dar ao contrriopra mim e tenho de ir contra eu mesma, eu que v ser contrariedade na minhaparquia. Danl, melhor eu ir pro asilo, morrer, e vocs fica livre de mim!

A sra. Gummidge retirou-se com essas palavras e foi para a cama. Quando elasaiu, o sr. Peggotty, que no havia demonstrado nem um trao de outro sentimentoalm de profunda considerao, olhou para ns e, sacudindo a cabea com umaexpresso viva desse sentimento ainda animando seu rosto, disse num sussurro:

Ela est pensando no velho!Eu no entendi bem em qual velho a sra. Gummidge podia ter fixado sua mente,

at que Peggotty, ao me pr na cama, explicou que era o falecido sr. Gummidge; e queo irmo dela sempre tomava isso por uma verdade estabelecida nessas ocasies e quesempre tinha um efeito comovedor sobre ele. Algum tempo depois, ele estava em suarede essa noite, quando eu mesmo ouvi que repetia para Ham: Coitada! Est

pensando no velho!. E sempre que a sra. Gummidge ficava arrasada desse jeitodurante o restante de nossa estada (o que aconteceu algumas vezes), ele sempre dizia amesma coisa para minorar a situao e sempre com a mais terna comiserao.

Ento a quinzena passou, variada em nada alm da variao da mar, quealterava as horas de sada e chegada do sr. Peggotty, como alterava os compromissosde Ham tambm. Quando este ltimo estava sem trabalho, s vezes caminhavaconosco para nos mostrar os barcos e navios, e uma ou duas vezes nos levou pararemar. No sei por que um ligeiro conjunto de impresses se associa maisparticularmente a um lugar do que a outro, embora acredite que isso ocorra com amaioria das pessoas, em relao sobretudo s associaes da infncia. Nunca ouo onome nem leio o nome de Yarmouth sem me lembrar de certo domingo de manh napraia, os sinos da igreja tocando, a pequena Emly encostada em meu ombro, Hampreguiosamente atirando pedras na gua, e o sol, l longe no mar, rompendo apenasa nvoa pesada, a nos mostrar navios como suas prprias sombras.

Finalmente chegou o dia de voltar para casa. Suportei bem a separao do sr.Peggotty e da sra. Gummidge, mas minha agonia mental por deixar a pequena Emlyera lancinante. Fomos de braos dados at a taverna onde a carroa parava eprometi, na estrada, escrever para ela. (Cumpri essa promessa depois, em letrasmaiores do que aquelas dos anncios manuscritos de apartamentos para alugar.)Estvamos muito abalados com a partida; e se algum dia em minha vida se fez umvazio em meu corao, foi nesse dia.

Ora, durante o tempo em que estive de visita, fui ingrato com a minha casa denovo, e pensara pouco ou nada nela. Mas assim que me voltei para ela, minha jovemconscincia acusadora pareceu apontar nessa direo com um dedo firme; e senti, comainda mais fora por causa de minha tristeza, que era o meu ninho e que minha meera minha consoladora e amiga.

Isso tomou conta de mim durante a viagem, de forma que quanto mais pertochegvamos, quanto mais familiares se tornavam os objetos pelos quais passvamos,mais excitado eu ficava para chegar e correr para os braos del