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SOFTWARE LIVRE, ESPECTRO ABERTO E COOPERATIVISMO ARTICULANDO
POSSIBILIDADES DEMOCRÁTICAS EM UMA COMUNIDADE DA PERIFERIA
CARIOCA
(10, 11, 12, 61, 108, 111)
Luiz Arthur Silva de Faria
Henrique Luiz Cukierman
ESOCITE 2008
RIO DE JANEIRO
Palavras-chave :
software livre; espectro aberto; cooperativismo; rizoma; mundo fechado; periferia;
democracia
Resumo:
Através da história da construção de um projeto de acesso à internet no Morro dos Macacos,
comunidade pobre do Rio de Janeiro, este artigo caracteriza a conformação de um discurso –
com metáforas, práticas e suportes – potencialmente útil para o avanço da democracia nas
periferias urbanas brasileiras. Articulando concretamente as temáticas do software livre, do
espectro aberto e do cooperativismo, o que é chamado no artigo de discurso do commons
aponta para uma cultura de coletividade e participação. Ele cresce da mesma forma que o
projeto que o incorpora: nas conexões entre grupos diferentes, nos interstícios, em um
processo descentralizado. Cresce de forma rizomática, em meio ao mundo fechado de uma
favela carioca.
Abstract:
Through the history of a project that provides internet access at Morro dos Macacos, a poor
community in Rio de Janeiro, this article characterizes a discourse – with metaphors,
practices and supports – potencially usefull for the growth of democracy at Brazillian urban
peripheries. Articulating themes like free software, open spectrum and cooperativism,
commons discourse (as it is called in this article) points to a culture of community and
participation. It grows in the same way that the project which embodies it: within the
connections among different groups, within the interstices, in a descentralized process. It
grows rizomatically, in the closed world of a slum in Rio de Janeiro.
Esquentando os tamborins: o samba-rizoma
“ 'Seu' China conversava com um grupo de amigos em um bar (...) quando foi despertado para o lado do Bloco Acadêmicos da Vila, que por ali passava com os seus componentes fantasiados e isolados por uma corda (...) [. Nasceu], a partir daquele momento, a idéia de fundar em Vila Isabel uma Escola de Samba (...) no bairro de Noel”. 1
Estamos em Vila Isabel, Rio de Janeiro, um bairro tradicionalmente conhecido por sua
boemia e suas grandes contribuições a uma das mais importantes expressões culturais
brasileiras: o samba. Mais precisamente, estamos na comunidade do Morro dos Macacos -
“meu Morro dos Macacos” 2, para Martinho da Vila. Morro que foi berço da G.R.E.S. Unidos
de Vila Isabel, uma importante escola de samba do hoje milionário e turístico carnaval
carioca, assistido e exaltado por diferentes classes sociais.
Os mistérios da ascensão social e da nacionalização do samba, investigados pelo antropólogo
Hermano Vianna, introduzem um conceito essencial a este trabalho, o rizoma. Algumas
plantas, como as bananeiras, ao invés de raiz apresentam rizoma, um “caule subterrâneo que
cresce horizontalmente, ramificando-se para dar origem a novas plantas” (FERREIRA, 2000).
Segundo os filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari, “qualquer ponto de um
rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo. É muito diferente da árvore ou da
raiz que fixam um ponto, uma ordem” (DELEUZE, GUATTARI, 1980).
Vianna sugere implicitamente a figura do rizoma, um contraponto à da raiz, no mundo do
samba: em lugar de uma gênese clara, a partir de uma essência e de um centro, que
supostamente daria origem a um processo de disseminação estruturado, o samba cresce, se
(re)forma e se renova exatamente nas conexões entre grupos diferentes, nos interstícios, em
um processo descentralizado. Em suas palavras,
“O samba não transformou-se em música nacional [somente] através de esforços de um grupo social ou étnico específico, atuando dentro de um território específico (o “morro”).
1 A cena, passada no domingo de carnaval do ano de 1946, é importante para a formação da G.R.E.S. Unidos de Vila Isabel, segundo relato disponível em < http://tradicaodosamba.com.br/carnaval_GE_Vila.htm>. Acessado em 19/08/2007.
2 Martinho, nascido em Duas Barras, RJ, chegou ao Morro dos Macacos aos 4 anos de idade. Em “Quando essa onda passar”, uma de suas composições, Martinho cita a comunidade. Disponível em <http://www.martinhodavila.com.br/letra.asp?disco=79&musica=1083> e <http://pt.wikipedia.org/wiki/Martinho_da_Vila>. Acessado em 19/08/2007.
Muitos grupos e indivíduos participaram [deste processo] (...). Nunca existiu um samba pronto, “autêntico”, depois transformado em música nacional. O samba, como estilo musical, vai sendo criado concomitantemente à sua nacionalização. (...) Outro ponto importante a ser ressaltado é a ausência de uma coordenação e de uma centralização desses processos (...).” (VIANNA, 1995)
A metáfora do rizoma nos ajuda a compreender uma das realidades de Vila Isabel: o samba.
Ela será útil também para acompanharmos a história da construção de uma outra realidade
emergente neste bairro carioca: o projeto “[email protected] - Todos Acessando a Internet na
Comunidade”3. A exemplo do samba, o [email protected] conecta morro e asfalto, e convive com
outras realidades comuns às periferias urbanas brasileiras.
Esquentando ... “a chapa”: discursos e mundos fechados
“Democracia não sobe morro: [t]ráfico, milícia e polícia impõem regime de terror a 1,5 milhão de moradores de favelas do Rio, aonde ainda não chegaram os direitos garantidos pela Constituição. (...) Traficantes armados no Morro dos Macacos, em Vila Isabel: território livre do crime.”. 4 “Eu me sinto o dono do mundo [com a arma na mão]” (LUND, SALLES, 1999), afirma um jovem.
O Morro dos Macacos não respira somente samba e boemia. Apesar da face cultural, criativa
e empreendedora das comunidades pobres do Rio de Janeiro, materializada nos grandiosos
desfiles da Marquês de Sapucaí, são outras as notícias da periferia carioca que
costumeiramente habitam as páginas dos jornais. Medo, seqüestros, terror e invasões a favelas
dominadas por facções inimigas também são características não somente desta comunidade
pobre, mas de inúmeras outras em todo o país, onde parte da população vive uma realidade de
guerra: jovens “enroscados” em suas armas, enclausurados em “pequenos e herméticos”
impérios 5.
Uma outra realidade de guerra será útil para entendermos a complexidade desta faceta das
periferias urbanas brasileiras: em “The Closed World: Computers and the Politics of
Discourse in Cold War America”, Paul Edwards (1997) examina a trajetória do 3 O projeto tem o seguinte objetivo geral: “Utilizando as TICs – Tecnologias de Informação e Comunicação –
como ferramentas lúdicas de empoderamento técnico, fomentar a cultura empreendedora e a disseminação de tecnologias sociais orientadas à autonomia comunitária e geração de trabalho & renda.” (FARIAS, 2007)
4 Notícias veiculadas no jornal O Globo, em 2007: 19 de agosto, Rio, e 31 de março. Disponível em <http://oglobo.globo.com/rio/mat/2007/03/31/295169712.asp>. Acessado em 19/08/2007.
5 Para mais detalhes sobre o cotidiano de violência das periferias brasileiras, ver o livro Cabeça de Porco, de Athayde, Bill e Soares (2005).
desenvolvimento dos computadores de forma inseparável das estratégias político-militares
dos EUA durante a Guerra Fria, onde cientistas e militares interagiram em um processo de
orientação mútua. Naquele ambiente, Edwards destaca a conformação do que ele chamou de
“discurso do mundo fechado”, inspirado pela noção de discurso que vem das obras do
filósofo francês Michael Foucault. O discurso transborda a retórica, é
“uma justaposição heterogênea 'auto-elaborante', que combina técnicas e tecnologias, metáforas, linguagem, práticas e fragmentos de outros discursos em torno de um suporte ou de suportes. Ele produz tanto poder quanto conhecimento: comportamento individual e institucional, fatos, lógica e a autoridade que o reforça”6. (EDWARDS, 1997)
No discurso do mundo fechado, ainda segundo Edwards, a contenção do mundo comunista e
inimigo, bem como a centralização do comando, do controle e das informações nas operações
militares eram importantes elementos do ambiente de Guerra Fria, em meio a então crescente
automação e integração dos humanos com sistemas (leia-se armamentos) mecânicos e
eletrônicos. Os computadores desempenhavam-se (e eram constituídos) como suportes
materiais deste discurso – na medida em que materializavam automação e centralização em
máquinas de acesso restrito 7-, enquanto as grandes corporações representavam
exemplarmente o mundo fechado como forma de organização, conformando o que
poderíamos denominar de suporte organizacional8 – o Secretário de Defesa dos EUA Robert
McNamara era conhecido como “uma máquina IBM ambulante” (MORRIS, 2003),
personificando o comando e o controle centralizados9.
Uma versão brasileira do mundo fechado de Edwards conforma-se em muitas das favelas
cariocas: as facções do tráfico de drogas - geridas com a rígida hierarquia de uma corporação
- e seus inseparáveis armamentos constituem suportes, organizacional e material, a um 6 Aspas simples dos autores. Do texto original: “A discourse, then, is a self-elaborating “heterogeneous
ensemble” that combines techniques and technologies, metaphors, language, practices, and fragments of other discourses around a support or supports. It produces both power and knowledge: individual and institutional behavior, facts, logic, and the authority that reinforces it.” (EDWARDS, 1997)
7 Aqui, a imagem é mais próxima dos mainframes, máquinas fisicamente grandes e de processamento centralizado, que dos microcomputadores pessoais, que vieram a se popularizar somente na década de 1980 nos Estados Unidos e incorporam outras metáforas e práticas.
8 Expandimos aqui o conceito de suporte material de Edwards para a idéia de suporte organizacional: uma rede, estabilizada e institucionalizada de relações, que incorpora um discurso. Neste exemplo, associamos o conceito às grandes corporações capitalistas.
9 Este é um exemplo do que Edwards mostra ao longo do livro: a aliança entre militares-corporações-universidades dos EUA em um ambiente de guerra desempenhou papel fundamental no processo de desenvolvimento dos computadores, por exemplo, através de fundos para pesquisa e encomendas tecnológicas providos pelos militares aos pesquisadores e corporações.
discurso. Um modelo reproduzido em periferias urbanas de todo o Brasil (ATHAYDE, BILL,
SOARES, 2005), onde a contenção (da facção rival em limites geográficos) e a centralização
(do comando no interior de uma facção), em meio à crescente interação de jovens com
artefatos de guerra, pintam um angustiante quadro: favelas como mundos fechados.
Edwards nos ensina que tomamos parte simultaneamente de diferentes discursos, sem sermos
completamente determinados por nenhum deles. A convivência do samba com um mundo
fechado é retratada em “O dia em que o morro descer e não for carnaval” 10, que adverte para
conexões trágicas e violentas entre morro e asfalto: “Melhor é o poder devolver pra esse povo
a alegria / Senão todo o mundo vai sambar no dia / Em que o morro descer e não for
carnaval.”
O projeto [email protected] parece não seguir o caminho sugerido neste samba: o Morro dos
Macacos não espera que “o poder” - as autoridades, as instituições formais - devolva “pra
esse povo a alegria”. Ao contrário, o [email protected] constrói-se nas conexões de diferentes
iniciativas, cresce como o rizoma, literalmente no meio deste cenário. É uma iniciativa que
articula um discurso com metáforas, práticas e suportes distantes do mundo fechado. Um
discurso que parece ensejar outras conexões morro-asfalto, através de uma cultura de
coletividade e participação, uma cultura democrática.
Um suporte Plurall colaborativo
“Começou o Ricardo sozinho...” (SUTTER, 2007) "Seria muito bom [para ir na contramão da fragmentação dos movimentos sociais] que alguém fizesse isso aqui, que acabou sendo o Plurall. E ficava esperando por alguém que fizesse. Ninguém fez... bom, vamos fazer então! (...) Agora a PUC11 está assumindo o desenvolvimento. É obrigatoriamente open source, porque usa componentes que são GPL .” (SCHNEIDER, 2007)
Inadvertidamente, poderíamos atribuir a Ricardo Schneider o mérito total pela criação do
software que é um dos suportes ao [email protected]. O Plurall materializa-se em um live CD pré-
configurado para ser servidor de boot, roteador e firewall de terminais (computadores
reaproveitados, sem disco rígido), provendo sua conexão à Internet. Mas a própria
10 “O dia em que o morro descer e não for carnaval” é um samba de Paulo César Pinheiro e Wilson das Neves.11 Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO).
documentação do Plurall remete a uma distribuição compartilhada de mérito: “[a]s funções de
roteador / firewall vêm de sua base no Devil Linux. O software que permite o funcionamento
dos terminais leves é o Thinstation.” 12
O compartilhamento do mérito relativiza a importância de Ricardo nessa história. De sócio-
fundador de um dos casos de sucesso de empresas incubadas na PUC-RIO 13 a coordenador
geral do CDI 14 Rio de Janeiro, Ricardo colocou a mão na massa para construir o software que
auxiliaria a Movimentos em Rede - ONG que ajudou a fundar - a implementar sua missão de
“[f]ortalecer as articulações em rede dos movimentos populares e organizações sociais para
que ampliem suas ações e alcancem maior representatividade política.” 15 Afinal, ainda que o
Plurall use componentes livres sob licença GPL - e portanto necessariamente também seja
software livre 16-, seu desenvolvimento não representava um grande desafio, a ponto de
mobilizar a comunidade open source: “[n]em entendiam porque aquilo era importante”
(SCHNEIDER, 2007).
A Movimentos em Rede levou a proposta do Plurall para a área de relações comunitárias da
IBM, que apoiou a idéia, pois além de outras coisas, “casava com a proposta da IBM de
fomentar o uso de Linux” (SCHNEIDER, 2007) 17. Mas exatamente como se daria o fomento
do Linux? Além do live CD do Plurall já se tratar de uma distribuição Linux, o ambiente
desktop do usuário final em um terminal pode também ser Linux. Basta para isso que outro
elemento chave na rede18 do Plurall, o servidor do ambiente desktop para os terminais, 12 Documentação Plurall, disponível em <http://www.plurall.net/joomla-10/index.php?
option=com_vfm&Itemid=21&do=view&file=read_me_Plurall_0.9.5_rc3.rtf>. Acessado em 09/07/2007. Devil-Linux e Thinstation são softwares livres. Mais informações em <http://www.devil-linux.org/home/index.php> e <http://thinstation.sourceforge.net/wiki/index.php/ThIndex>. Acessado em 09/09/2007.
13 Trata-se da empresa Fábrica Digital, incubada na Pontifícia Universidade Católica, segundo <http://www.emrede.org/drupal-50/ricardo-schneider>, acessado em 02/09/2007. Mais informações em <http://www.fabricadigital.com.br>, acessado em 02/09/2007.
14 Comitê pela Democratização da Informática <http://www.cdi.org.br>, acessado em 20/08/2007.15 De acordo com site da Movimentos em Rede, disponível em <http://www.emrede.org/>. Acessado em
20/08/2007.16 Mais informações sobre a GNU General Public License em <http://www.gnu.org/copyleft/gpl.html>,
Acessado em 09/09/2007.17 O interesse na IBM na disseminação do Linux, “a fim de estabelecer uma plataforma para vender seus
produtos, não por caridade.”, é examinado por Carlos E. Morimoto em matéria de 11/06/2001, disponível em <http://www.guiadohardware.net/artigos/ibm-linux/>. Acessado em 09/08/2007. Vale enfatizar que o apoio da IBM ao Plurall deu-se por meio da área de relações comunitárias, o que aponta para outras variáveis relevantes no quadro, como a gestão de sua imagem.
18 Expressão utilizada por Luiz Eduardo Sutter (2007) no sentido de identificar, além do software, os demais artefatos tecnológicos utilizados.
também utilize uma distribuição Linux: o sistema operacional e os aplicativos ali instalados
serão visualizados pelo usuário final. Este servidor é o que apresenta os “mais exigentes”
requisitos de hardware: no mínimo, um Pentium 4 ou equivalente com 256 MB de RAM - os
terminais e o servidor de boot Plurall (com o live CD ) precisam de de máquinas Pentium 100
MHz com apenas com 64MB de RAM.
O software (e a rede) Plurall será utilizado no [email protected], mas esta não será sua primeira visita
ao Morro dos Macacos. No “Telecentro DinamiNET”19 coordenado pela Dinamicoop, uma
cooperativa de TI local, o Plurall é a solução thin client adotada. O sistema operacional do
servidor do ambiente desktop (visto pelos usuários, após passarem pela tela de login do
Plurall) é uma distribuição Linux que vem ganhando visibilidade por sua facilidade de uso, a
saber, o Ubuntu 20. E Ricardo justifica sua preferência: “sendo Linux, temos indicado o
Ubuntu: tem qualidade, evolui rápido e é estável” (SCHNEIDER, 2007).
A distribuição Ubuntu deve seu nome à palavra africana cujo significado valoriza a
cooperação entre as pessoas 21. Segundo o Nobel da Paz Desmond Tutu, '[Ubuntu] [é] a
essência do ser humano. (...) Nossa humanidade só é afirmada se temos conhecimento da
humanidade dos outros'”. O Plurall, além de um software e uma solução para a reciclagem de
computadores obsoletos 22, traduz-se no suporte material necessário para os objetivos da
Movimentos em Rede, entre eles o fortalecimento da colaboração entre movimentos sociais.
Mais que soluções técnicas, estes softwares livres incorporam valores e práticas: são também
suportes a discursos.
Metáforas no ar: traduções, brechas e ruas
“[A opção pela rede sem fio] não é só pra ter uma característica técnica a mais. A PUC comprou a idéia dentro de um cenário maior, de inclusão digital de uma forma diferente
19 Telecentro DinamiNET, que “se utiliza do sistema Plurall, desenvolvido pela ONG Movimentos em Rede e a Coordenação Central de Projetos de Desenvolvimento da PUC-Rio, com o apoio de IBM e Cisco”, segundo o site da Dinamicoop, disponível em <http://www.dinamicoop.com/>. Acessado em 09/09/2007.
20 Distribuição Linux baseada no Debian. Mais em <http://www.ubuntu-br.org/>. Acessado em 09/09/2007. Foi eleito o “software do ano” pela revista Info. Disponível em <http://info.abril.com.br/premioinfo/2006/>. Acessado em 09/09/2007.
21 Segundo texto de Fátima Reis, disponível em <http://www.palmares.gov.br/005/00502001.jsp?ttCD_CHAVE=447> e acessado em 09/07/2007.
22 Documentação Plurall, disponível em <http://www.plurall.net/joomla-10/index.php?option=com_vfm&Itemid=21&do=view&file=read_me_Plurall_0.9.5_rc3.rtf>. Acessado em 09/07/2007.
(...) do modelo clássico de telecentros. Num cenário de hoje em que você tem municípios grandes sendo iluminados (...), o terminal pode ser usado num ambiente residencial, familiar, o que é totalmente diferente de você usar num ambiente de trabalho, de escola ou mesmo público, na rua.” (SUTTER, 2007)
A busca por aliados na construção do Plurall não parou na IBM e nas primeiras implantações 23. Ela continua com a parceria da PUC – e da Cisco – no projeto, indicada no relato de Luis
Eduardo Sutter, pesquisador da PUC-RIO. Aquilo que para a Movimentos em Rede era uma
ferramenta para aprimorar a conexão entre projetos sociais e movimentos comunitários, para
a PUC traduziu-se em uma forma de materializar uma “inclusão digital diferente”,
contextualizada na emergência das chamadas “cidades digitais”24.
O conceito de translation - tradução/translação - segundo Michel Callon (1986)
mostra como determinada problematização é transformada em mobilização, através do
alistamento de aliados. Para tal, são usados dispositivos que ele chama de interessement:
ações pelas quais uma entidade procura impor a identidade e estabilizar os outros atores
conforme os definiu durante a problematização. Traduzir/transladar é deslocar (concentrar e
trazer para perto entidades que estavam longe e dispersas), ao mesmo tempo que significa
expressar na sua própria linguagem o que os outros dizem e querem, como agem e como
associam-se mutuamente. Ao longo do processo de tradução/translação, a rede Plurall, antes
composta pelos softwares Plurall e Ubuntu, um computador novo e alguns reciclados, ganha
novos atores: equipamentos de transmissão via rádio. Nos termos adotados por Bruno Latour
(1998), a modificação no sociograma (novos aliados que apóiam o empreendimento, no caso
a PUC e a Cisco) do artefato alterou o seu tecnograma (as características ditas “técnicas” do
artefato).
Quando Ricardo retornou o contato com a PUC – agora não mais como membro de uma
empresa incubada, mas pela Movimentos em Rede à procura de mais um parceiro para o
desenvolvimento do Plurall - , a universidade já desenvolvia parcerias com a Cisco em
diversas frentes, inclusive a de cobertura sem fio, o que tornou a oportunidade interessante
tanto para a PUC quanto para a Cisco (SUTTER, 2007). Em 6 de dezembro de 2006 nasceu
formalmente o primeiro produto da parceria, uma versão do Plurall onde podem coexistir 23 Entre elas, a ONG Nós do Cinema (mais informações em <http://www.nosdocinema.org.br> acessado em
09/09/2007) e a própria DINAMICOOP.24 Sobre cidades digitais, ver Sposito (2007).
terminais com tecnologias de transmissão com e sem fio - neste segundo caso, por exemplo, o
Wi-Fi, que será utilizado no Morro dos Macacos, ou o Wi-Mesh , a arquitetura do Plurall
para cidades digitais 25.
O [email protected], encabeçado pela Dinamicoop, prevê em sua primeira fase a “conexão de forma
remota 26 de 4 pontos da comunidade do Morro dos Macacos: uma creche pública, uma
associação de moradores, uma escola de samba mirim e um centro comunitário.” - na segunda
fase está previsto o provimento do acesso residencial. O projeto, premiado primeiramente
pela FINEP 27, conseguiu êxito também em um edital internacional realizado no Canadá 28,
conquista que significa o recebimento de equipamentos que permitirão a criação da rede sem
fio com raio de 5 km.
Arriscamos caracterizar a opção pela rede sem fio no [email protected] como uma escolha
sociotécnica, tomando emprestado o termo utilizado por Marques (2003) sobre a abordagem -
aliás, utilizada no presente trabalho - onde “as construções das ciências e das tecnologias [são
analisadas] como fenômenos em que o 'social' e o 'técnico' imbricam-se inseparavelmente em
uma rede sem costuras”. Tal opção tornou-se possível somente devido ao o espectro aberto,
uma aparente brecha no contexto do tradicional modelo de concessão do espectro de
freqüências brasileiro – modelo contestado, em aspectos “técnicos” e “sociais” cada vez
menos indissociáveis, não somente no Brasil. Por exemplo, a organização Open Spectrum
Foundation (http://www.openspectrum.info/) alega que “nos últimos 20 anos foram
desenvolvidos rádios inteligentes com os quais se tem conseguido avançar na solução de
problemas que antes necessitavam de intervenção governamental”. (SILVEIRA, 2007)
25 Para mais detalhes sobre as tecnologias Wi-Fi e Wi-Mesh, consultar <http://www.wi-fi.org> e <http://www.wi-mesh.org/>, respectivamente, acessados em 09/09/2007.
26 A empresa WINGS Telecom foi responsável pela “elaboração do projeto da rede sem fio e [será] por sua implantação”, segundo <http://www.wingstelecom.com.br/wingstelecom/pt/press/releases.asp?Materia=15>. Acessado em 09/09/2007
27 Financiadora de Estudos e Projetos – Ministério da Ciência e Tecnologia. Esta solução de telecentro foi premiada pela FINEP com o segundo lugar no Prêmio FINEP de Inovação Tecnológica, na categoria Inovação Social no ano de 2006, mesmo ano em que a WINGS Telecom foi premiada na categoria pequena empresa segundo <(http://www.finep.gov.br//imprensa/noticia.asp?cod_noticia=1016> . Acessado em 02/09/2007.
28 Em 2006 O edital "Fortalecimento e articulação de redes comunitárias e sem fio na América Latina e Caribe" foi promovido pela Fundación EsLaRed (www.eslared.org.ve), Network Startup Resource Center - NSRC (www.nsrc.org) e Instituto para a Conectividade das Américas – ICA (www.icamericas.net), e recebeu propostas de 21 países. As propostas foram avaliadas segundo critérios de relevância, inovação e viabilidade, segundo <http://www.wingstelecom.com.br/wingstelecom/pt/press/releases.asp?Materia=15>. Acessado em 02/09/2007.
Enquanto a maioria do espectro no Brasil é regulado no regime onde o Estado
concede com exclusividade a uma empresa o direito de transmitir seu sinal, no [email protected] a
transmissão será via Wi-Fi, portanto em uma das poucas brechas, a saber, as faixas de uso não
exclusivo. São as chamadas bandas não-licenciadas ou áreas livres (a faixa de freqüências
“liberada” pela ANATEL vai de 2,4 a 5,8GHz), para uso, por exemplo, de telefones sem fio e
redes locais 29. O sociólogo Sérgio Amadeu Silveira usa uma metáfora para caracterizar o
espectro aberto: é a rua, onde “é preciso estar habilitado para dirigir um veículo, é preciso
respeitar os limites de velocidade e outras regras, mas não existe impedimento para aqueles
que estejam habilitados de transitar pelas vias públicas.” (SILVEIRA, 2007)
As imagens da “brecha no modelo” e da rua, com sua “liberdade regulada”, são importantes
no desafio de caracterizar o discurso presente no [email protected]. Na próxima sessão,
examinaremos mais de perto uma outra imagem, que provavelmente tem relação com a
prioridade do projeto em atender primeiro coletivos, e posteriormente, indivíduos.
A participação toma corpo
“A Dinamicoop foi a única cooperativa popular e, além disso, a única iniciativa de base comunitária [a concorrer ao Prêmio FINEP]” 30, afirma Leandro Farias, presidente da cooperativa. “A base cooperativista pode ser um pulo do gato tremendo nessa história: (...) não concentra renda com os donos do negócio; [o crescimento] é mais orgânico (...).” (SCHNEIDER, 2007)
Diferente das chamadas “coopergatos”, falsas cooperativas (des)caracterizadas por
aproveitarem-se “do modelo legal das cooperativas para explorar ainda mais os empregados,
precarizando os direitos garantidos pela CLT” 31, a “Dinamicoop é uma cooperativa autêntica”
(SCHNEIDER, 2007), “com a missão de desenvolver e replicar tecnologias sociais,
orientadas à geração de trabalho & renda e empoderamento de populações menos
favorecidas” (FARIAS, 2007). Tecnologias sociais e empoderamento são termos importantes
29 Uma outra abordagem do espectro aberto é o chamado underlay, onde “usuários não licenciados utilizam as faixas concedidas, desde que o seu sinal seja invisível e não invasivo para os outros usuários.”(WERBACH, 2002)
30 Disponível em <http://www.dinamicoop.com/noticias/finep.htm>. Acessado em 09/09/2007.31 As “coopergatos” “funcionam como as empresas em geral, isto é, possuem estrutura hierárquica em que
alguns mandam e todos os demais trabalhadores obedecem, sob pena de serem afastados do trabalho ou demitidos.(...). Os trabalhadores nunca são consultados sobre a sociedade e os destinos do negócio”. Texto disponível em <http://www.unisolbrasil.org.br/info/falsocoop.php>. Acessado em 09/09/2007
em nossa jornada. Vamos a eles.
A decisão de tomar o caminho do cooperativismo como alternativa de geração de renda não
foi natural, nem sua implementação pelos jovens do Morro dos Macacos foi fácil. Leandro
conta que o grupo consolidou-se depois de iniciativas de inclusão digital, da formação de um
núcleo para geração de renda em 2003 e da participação em um projeto de fomento ao
cooperativismo da prefeitura do Rio – interrompido antes do término por falta de verba
(FARIAS, 2007) 32. Os estudos sobre o funcionamento do modelo cooperativista continuaram,
especialmente com a relação do grupo com outras cooperativas - segundo Leandro, foi o que
mais ajudou na consolidação da Dinamicoop -, e com o apoio na Incubadora Tecnológica de
Cooperativas Populares (ITCP) da COPPE/UFRJ, onde foram aprovados na seleção de 2004 33.
O caminho do cooperativismo parece ter nuances diferentes dos não tão incomuns, e também
muto relevantes, “casos de sucesso” de moradores de localidades pobres que conseguem
ascender socialmente por sua própria conta. Os princípios de uma cooperativa apontam para
efeitos nestas comunidades que transbordam aqueles do “empreendedorismo por si só”
(SCHNEIDER, 2007). Além da não concentração de renda, uma cultura de coletividade e
participação está relacionada com esta forma de organização produtiva: em lugar dos papéis
de acionistas e trabalhador, os associados são ao mesmo tempo donos e trabalham no
empreendimento; ao invés de salários fixos, as retiradas são realizadas de acordo com o
desempenho da cooperativa; as decisões principais - como a forma e as diferenciações de
remuneração entre os associados, e a eleição de presidente e conselheiros – são tomadas em
assembléia, onde cada um tem direito a um voto (SINGER, 2002). Com responsabilidade e
poder mais distribuídos que as tradicionais corporações capitalistas, a organização
cooperativa talvez incorpore o empoderamento de populações menos favorecidas, tão caro à
Dinamicoop.
Falta-nos caracterizar o que seriam as tecnologias sociais, suas diferenças com os processos
32 Os cursos aconteceram no Centro Comunitário Lídia dos Santos (Ceaca). Mais informações em <http://www.arede.inf.br/index.php?option=com_content&task=view&id=409&Itemid=99>. Acesado em 09/09/2007.
33 O processo de incubação da Dinamicoop na ITCP não foi completado, por razões que não foi possível investigar até o presente momento.
ditos “inclusivos” e sua relação com a forma de organização cooperativa. O termo “inclusão”,
bastante utilizado no contexto da chamada “inclusão digital”, revela-se não ser dos mais
apropriados para descrever o que tem ocorrido na Dinamicoop34. Ele pressupõe incluir os
“beneficiados” em algo já estabelecido, em modelos prontos, onde o “incluído” tem um papel
relativamente passivo. Esta característica é diversa daquelas que Lenart Nascimento,
integrante da Rede de Tecnologia Social (RTS)35, atribui a uma tecnologia social: os
processos de criação e implantação devem ser participativos, e há a apropriação do
conhecimento pela comunidade que utiliza a tecnologia (LENART, 2007). O conceito de
tecnologia social36 não é restrito a produtos, mas “compreende produtos, técnicas e/ou
metodologias reaplicáveis, desenvolvidas na interação com a comunidade e que represente
efetivas soluções de transformação social.”37 Por suas características, o cooperativismo parece
contribuir com tais processos - não é sem motivo que a incubação de cooperativas foi
caracterizada como uma tecnologia social na RTS38.
Mais que inclusão, a Dinamicoop parece querer apropriação de conhecimento e tecnologias,
empoderamento para sua comunidade, procurando alcançá-lo através da própria escolha do
modelo de organização, a cooperativa. Longe de ser uma invenção recente39, o modelo
cooperativista tem casos de sucesso e insucesso no Brasil e no mundo40. Diferente das
corporações, forma de organização que geralmente incorpora o discurso do mundo fechado, a
cooperativa é uma forma organizativa que parece trazer gravada em seus princípios um outro
discurso.
Commons: compartilhando um discurso
34 Para um exame de diversas formas inclusões e acessos digitais, ver Cukierman (2006).35 Lenart é representante da Petrobras na Rede de Tecnologia Social (http://www.rts.org.br).36 Todavia cabe aqui problematizar a idéia de “tecnologia social” por permitir subentender a existência de uma
oposição entre “tecnologia social” e “tecnologia pura”. Para o referencial sociotécnico, toda tecnologia é também (mas não somente) social, conforme insiste John Law (1992): “(...) o conhecimento é muito mais um produto social do que o produto da operação de um método científico privilegiado”.
37 Segundo <http://www.rts.org.br>. Acessado em 02/09/200738 Conforme afirma Larissa Barros, secretária—executiva da RTS em
<http://www.rts.org.br/entrevistas/entrevistas-2006/larissa-barros>. Acessado em 09/09/2007.39 Singer (1998) cita exemplos de cooperativas na Inglaterra do século XVIII.40 Talvez o maior caso de sucesso seja da rede Mondragón, na Espanha, fundada nos anos 50 e que “hoje [tem]
mais de 50 000 trabalhadores (...) empregados em 120 cooperativas” <http://www.proutpt.org/artigos/visitamondragon.html>. Acessado em 09/09/2007.
“A maioria das pessoas [hoje] já vive da sua capacidade [- utilizada em cima do que é comum, propriedade coletiva -], e tem alguns que ainda vivem da propriedade. É isso que o movimento do commons, do software livre vêm questionar.” “O movimento colaborativo, na rede, ele é mais eficiente do que simplesmente a competição.” (SILVEIRA, 2007)
[Na economia solidária] é a solidariedade [e não a competição] que deve ser levada às últimas conseqüências (...). Primeiro porque é mais eficiente (...) e sobretudo (...) porque as pessoas se alienam muito menos (...).” “[É a] democracia no âmbito econômico, onde ela ainda é muito pequena.” (SINGER, 2007)
A relativa convergência das proposições vindas de personalidades influentes nos mundos do
software livre e da economia solidária - respectivamente, Sérgio Amadeu e Paul Singer 41- não
parece mera coincidência. As declarações apontam para a conformação de algo comum entre
movimentos como o do software livre, da economia solidária e do espectro aberto: um
discurso, com suas práticas, metáforas e suportes (material e organizacional). Um discurso
que parece distante de idéias como contenção, confidencialidade, centralização, e
organizações hierarquizadas. Distante portanto do mundo fechado de Edwards e - o que mais
interessa à realidade periférica urbana brasileira – do mundo fechado das favelas cariocas. É o
momento de (re)examinar elementos relevantes desse discurso emergente - muitos presentes
na rede do [email protected] - que propomos chamar de discurso do commons 42.
Contrapondo-se a contenção e confidencialidade, características predominantemente do
mundo fechado, algumas práticas e metáforas constituem a marca do discurso do commons.
Ao referenciar o software livre como “a tecnologia que liberta”, os organizadores do Fórum
Internacional de Software Livre - FISL43 enfatizam a liberdade como valor. Aqui, podemos
tomar como exemplo a adesão voluntária e livre a projetos de softwares livres, como o
Ubuntu, bem como a cooperativas, “organizações abertas à participação de todos”. 44
41 Paul Singer dirige atualmente a Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES), vinculada ao Ministério do Trabalho. Segundo ele, a economia solidária “surge como um modo de produção e distribuição alternativo ao capitalismo, criado e recriado periodicamente pelos que se encontram (ou temem ficar) marginalizados do mercado de trabalho." (disponível em <http://www.itcp.usp.br/?q=node/12>, acessado em 09/09/2007) e tem na cooperativa sua principal forma organizativa.
42 O termo commons foi aqui inspirado no livro “Comunicação digital e a construção do commons”. (GINDRE, BRANT, WERBACH, SILVEIRA, BENKLER, 2007)
43 Mais detalhes em <http://fisl.softwarelivre.org/9.0/www/>. Acessado em 03/05/2008.44 Um dos princípios do cooperativismo. Disponível em
<http://www.portaldocooperativismo.org.br/sescoop/cooperativismo/principios_cooperativistas.asp>. Acessado em 08/09/2007
A liberdade é um valor que aparece não de forma absoluta, mas ponderada por “alguma
regulação”, como na metáfora da rua (que visitamos na seção 4). Enfatizada por Amadeu e
Singer, a medida deste limite à liberdade parece estar na hegemonia da colaboração em
relação à competição. O compartilhamento (e não a confidencialidade) parece ser uma
terceira prática do discurso do commons: a propriedade compartilhada é imaterial nos casos
dos softwares livres (cujos códigos-fonte são abertos, não proprietários) e do espectro aberto
(onde a permissão de “uso do ar” é compartilhada, não concedida de forma exclusiva), mas
pode ser também material, como por exemplo, no caso dos computadores pertencentes a uma
cooperativa como a Dinamicoop.
Quando Amadeu deu o título de “Rádio inteligente: a reforma agrária no ar” 45 a um artigo
sobre o espectro aberto, utilizou uma metáfora que distancia-se de mais uma prática do
discurso do mundo fechado: a centralização. A idéia de democratizar o acesso ao espectro de
freqüências – que opõe-se aos “latifúndios” da transmissão sem fio – segue o caminho da
descentralização e distribuição do poder. Singer enfatiza no início desta seção este aspecto
democratizante também na economia solidária, onde “as pessoas se alienam muito menos”:
em uma cooperativa, a fronteira entre o trabalhador e o dono se desfaz. É interessante
destacar que esta hibridação de fronteiras e de papéis não pára na cooperativa, parecendo ser
mais uma característica do commons: o usuário de um software livre pode ser também
desenvolvedor, enquanto que o modelo do espectro aberto permite a retomada do sonho de
rádios que além de receptores sejam também transmissores: Maria da Conceição Tavares
argumenta no prefácio a Dantas (1996) que, de acordo com a teoria do rádio, “se todas as
casas fossem dotadas de aparelhos transmissores e receptores, poderíamos constituir uma
assembléia popular permanente” .
Ainda vimos na rede do [email protected] elementos fundamentais à caracterização de um discurso,
na visão de Edwards: um suporte material – e, adicionamos, um suporte organizacional. As
organizações cooperativas (em nosso caso, a Dinamicoop) parecem ser instituições que
trazem gravados os valores do commons, apresentando-se como um suporte organizacional ao
discurso. O Plurall - originalmente um software, traduzido ao longo do processo para um
arranjo tecnológico, que Sutter classificou como rede – constitui o artefato sociotécnico, o 45 Disponiível em <http://www.arede.inf.br/index.php?option=com_content&task=view&id=595&Itemid=99>.
Acessado em 08/09/2007.
suporte material que incorpora a liberdade, a colaboração, o compartilhamento, além de
algum grau de descentralização 46 do commons.
Finalmente, é fundamental pontuar que o discurso do commons , assim como (e com) o
[email protected], cresce de forma rizomática, analogamente ao samba (vide seção 1): sua
(re)construção é permanente, se dá nas conexões entre diferentes grupos e movimentos (como
os da economia solidária, do software livre e do espectro aberto), nos interstícios de outras
ordens (como a hegemonia das grandes corporações 47) em um processo descentralizado.
Concluindo: (quase) tudo em aberto
O propósito deste trabalho foi o de tentar caracterizar um discurso, articulando software livre,
espectro aberto e cooperativismo, aqui chamado de discurso do commons. Certamente não
apenas as caraterísticas aqui apresentadas, mas outras estão por ser mais exploradas em
trabalhos futuros no contexto do commons, dentre as quais destacariam-se a não neutralidade
da tecnologia (exemplificada na distribuição ou não de poder, através de escolhas quanto à
forma de regulação do espectro adotadas - vide a quarta seção) e a relevância da apropriação
local da tecnologia (aspecto caro à chamada tecnologia social, como visto na seção anterior).
Prever perspectivas e limites a este discurso no contexto brasileiro e mundial não é objetivo
deste trabalho, porém seria pertinente pontuar algumas questões em aberto quanto ao futuro
do [email protected] e do commons, tais como: em que medida a relativa centralização da arquitetura
thin client permitirá ou não o efetivo empoderamento dos usuários do Plurall (o próprio
Ricardo Schneider (2007) reconhece a questão, apesar de ponderar que há uma tendência
atual de multiplicidade de serviços web); como se dará a interação do mundo fechado
periférico carioca com o commons, na implantação do [email protected] no Morro dos Macacos
(aqui é importante lembrar que as chamadas LAN Houses já são realidade em muitas favelas
46 Na próxima seção é levantada a questão da relativa centralização da arquitetura thin client.47 Uma crítica reconhecidamente consistente às grandes corporações é feita no documentário “The
Corporation” (ACHBAR, ABBOT, 2003)
cariocas)48; qual o futuro da regulamentação do espectro aberto49 e do cooperativismo50 no
Brasil; quais caminhos trilhará o Estado brasileiro na promoção (ou não) da adoção de
softwares livres na esfera pública51. Em última instância, o próprio futuro do [email protected] está
em aberto: em abril de 2008 nada ainda havia sido implantado, havendo previsão de realizá-la
apenas no segundo semestre de 2008, o que, por ora, produz uma situação na qual a
complexidade e a riqueza do discurso do commons encontram-se reduzidas a uma retórica de
boas intenções.
É possível também, sem grandes dificuldades, propor uma lista não exaustiva de exemplos
concretos de conexões em andamento do commons, além do abordado neste artigo: a
Dinamicoop integrando uma rede cooperativas de software livre 52; a incubação de
cooperativas sendo considerada uma tecnologia social na RTS 53; softwares livres de
edição/transmissão de áudio e vídeo utilizados por entidades de assessoria a
empreendimentos solidários 54; a documentação de softwares livres e tecnologias sociais sob
licença creative commons 55; um site wiki sobre software livre e economia solidária 56; as
discussões sobre o surgimento de um novo sistema econômico, baseado em redes
cooperativas e potencializado por tecnologias abertas como softwares livres e Internet
(MONSERRAT, 2005).
Ainda que em meio a diversas controvérsias, o discurso do commons pode ser, como
procurou-se demonstrar ao longo deste artigo, altamente relevante para o avanço da
democracia nas periferias urbanas brasileiras, muitas delas caracterizadas como mundos
fechados. A importância se dá não apenas pelo commons ensejar alternativas de geração de
48 Conforme matéria no jornal “O Globo” “Lan houses, virtual expansào em áreas pobres”, de 05/08/2007.49 Há controvérsias no momento de redação deste artigo, como retrata a matéria Inclusão digital posta em risco
por decisão da Anatel, de Gustavo Gindre. Disponível em <http://www.rets.org.br/rets/servlet/newstorm.notitia.apresentacao.ServletDeSecao?codigoDaSecao=11&dataDoJornal=atual>. Acessado em 07/09/2007
50 Há projetos em tramitação no Congresso Nacional com a finalidade de rever a lei do cooperativismo (Lei Federal 5764/71).
51 Uma iniciativa nesse sentido é o Portal do Software Público (http://www.softwarepublico.gov.br).52 Fazem parte da iniciativa os grupos Colivre (http://www.colivre.coop.br), Cooperjovem, Sintectus,
Tecnolivre (http://www.tecnolivre.ufla.br) e Solis (http://www.solis.coop.br).53 Conforme afirma Larissa Barros, secretária—executiva da RTS em
<http://www.rts.org.br/entrevistas/entrevistas-2006/larissa-barros>. Acessado em 09/09/2007.54 Um exemplo é a ATES - Associação do Trabalho e Economia Solidária, <http://www.ates-
ong.blogspot.com/>. Acessado em 09/09/2007.55 Detalhes sobre Creative Commons em <http://www.creativecommons.org.br/>. Acessado em 09/09/2007.56 Disponível em <http://twiki.softwarelivre.org/bin/view/EconomiaSolidaria>. Acessado em 09/09/2007.
renda 57 e de “inclusão digital” 58 destas populações, mas principalmente por articular práticas
de liberdade, colaboração, compartilhamento e descentralização, em uma cultura de
coletividade e participação necessária ao processo de consolidação da democracia brasileira.
57 O cooperativismo, por exemplo, foi o tema central da Conferência Latino-americana de Práticas Inovadoras em Programas de Geração de Trabalho e Renda, organizada em agosto de 2007 pela ITCP COPPE/UFRJ (http://www.itcp.coppe.ufrj.br/).
58 Sobre o termo “inclusão digital”, devem ser considerados os aspectos levantados na seção 5.
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