24
Rizoma - Uma introdução aos Mil Platôs de Deleuze e Guattari Cleber Araújo Cabral 1 Diogo Corgosinho Borges 2 Resumo: Nosso objetivo é fazer uma apresentação à proposta de pensamento expresso na obra Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia, de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Este texto busca, inicialmente, apresentar uma proposição sintética do conceito "rizoma", tal como proposto pelos autores referidos acima. Após a exposição do conceito, apresentaremos algumas perspectivas de análise da situação contemporânea a partir desse conceito e da rede conceitual deleuze-guattariana. Palavras-Chave: rizoma, sistemas centrados e a-centrados, cartografia, inconsciente. Introdução Em Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia a dupla formada pelo filósofo Gilles Deleuze e pelo psicanalista Félix Guattari 3 busca fazer uma crítica ao mesmo tempo histórica e ontológica da psicanálise, passando pelo pensamento de Marx e Nietzsche. Tal como aludem os autores no prefácio à 1 Estudante de graduação do curso de Letras (bacharelado em Português) da UFMG. 2 Estudante de graduação do curso de História (bacharelado/licenciatura) da PUC-MG. 3 Doravante, iremos nos referir aos autores utilizando-nos da abreviatura D&G (Deleuze & Guattari).

Rizoma - Uma Introducao Aos Mil Platos de Deleuze e Guattari

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Para interessados na Filosofia de Deleuze e Guattari, um excelente texto introdutório com questões seminais que proporcionam uma nova forma de pensamento na racionalidade contemporânea

Citation preview

Rizoma - Uma introduo aos Mil Plats de Deleuze e Guattari

Rizoma - Uma introduo aos Mil Plats de Deleuze e Guattari

Cleber Arajo Cabral

Diogo Corgosinho Borges

Resumo:

Nosso objetivo fazer uma apresentao proposta de pensamento expresso na obra Mil Plats: Capitalismo e Esquizofrenia, de Gilles Deleuze e Flix Guattari. Este texto busca, inicialmente, apresentar uma proposio sinttica do conceito "rizoma", tal como proposto pelos autores referidos acima. Aps a exposio do conceito, apresentaremos algumas perspectivas de anlise da situao contempornea a partir desse conceito e da rede conceitual deleuze-guattariana.

Palavras-Chave: rizoma, sistemas centrados e a-centrados, cartografia, inconsciente.

Introduo

Em Anti-dipo: Capitalismo e Esquizofrenia a dupla formada pelo filsofo Gilles Deleuze e pelo psicanalista Flix Guattari busca fazer uma crtica ao mesmo tempo histrica e ontolgica da psicanlise, passando pelo pensamento de Marx e Nietzsche. Tal como aludem os autores no prefcio edio italiana do volume da obra Mil Plats O Anti-dipo tinha uma ambio kantiana: era preciso tentar uma espcie de crtica da razo pura no nvel do inconsciente." (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 06). Para melhor compreendermos a proposta-trajeto iniciada em Anti-dipo, faz-se conveniente relembrarmos seus trs temas fundamentais, que seriam:

1- Substituio da idia do inconsciente enquanto teatro pela idia de inconsciente como usina (questo de produo de inconsciente e no de representao de contedos do inconsciente).

2- O delrio histrico-mundial, no familiar: deliram-se raas, tribos, culturas, organizaes, posies sociais, etc.

3- Existe uma histria universal, que no a da necessidade, e sim da contingncia (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 07).

J na seqncia de Anti-dipo, os Mil Plats, a preocupao apresentada pelos autores de outra ordem: A construo de conceitos capazes de pensar a contemporaneidade importa mais que fazer uma crtica da mesma. "O projeto construtivista" (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 08), dizem os autores.

O Anti-dipo foi um livro escrito no calor dos eventos do Maio de 68, e escrito para aqueles que estavam fartos da psicanlise: "Sonhvamos em acabar com dipo" (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 07), mas as reaes ao Maio de 68 e o desenrolar da histria mostraram o quanto dipo era forte e ainda dominava e, como um olhar mais cuidadoso pode observar, ainda domina certa parcela considervel do pensamento psicanaltico contemporneo. Era preciso tentar algo novo, e o que se prope com os plats justamente esta tentativa, a de constituir um pensamento que se efetue atravs do "mltiplo" e no a partir de uma lgica binria, dualista, do tipo um-dois, sujeito-objeto, que se efetue por dicotomia, tal como vemos na psicanlise, na lingstica e na informtica , de modo a construir uma teoria das multiplicidades que fosse imanente, que colocasse propostas concretas de pensamento ao invs de simplesmente se limitar crtica da psicanlise.

O primeiro conceito criado para propor esta teoria das multiplicidades o conceito de "rizoma". Veremos ao longo dos plats como o conceito de rizoma funciona perfeitamente como o ponto de partida para se pensar as multiplicidades por elas mesmas, visto que o fundamento do rizoma a prpria multiplicidade. Vejamos a definio dada pela botnica:

Em botnica, chama-se rizoma a um tipo de caule que algumas plantas verdes possuem, que cresce horizontalmente, muitas vezes subterrneo, mas podendo tambm ter pores areas. O caule do lrio e da bananeira so totalmente subterrneos, mas certos fetos desenvolvem rizomas parcialmente areos. Certos rizomas, como em vrias de capim (gramneas), servem como rgos de reproduo vegetativa ou assexuada, desenvolvendo razes e caules areos nos seus ns. Noutros casos, o rizoma pode servir como rgo de reserva de energia, na forma de , tornando-se tuberoso, mas com uma estrutura diferente de um tubrculo.

O conceito desenvolvido por D&G amplia muito esta definio, justamente pelo fato de que o conceito na botnica no comporta a multiplicidade, se limitando a definir um tipo especfico de caule. Para D&G, este tipo de caule em conjunto com a terra, o ar, animais, a idia humana de solo, a rvore, e etc formariam o rizoma, no se limitando apenas pura materialidade, mas tambm imaterialidade de uma mquina abstrata que o arrasta, sendo, portanto, um conceito ao mesmo tempo ontolgico e pragmtico de anlise.

Rizoma

Um plat est sempre no meio, nem incio nem fim. Um rizoma feito de plats. (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 33)

Um rizoma uma segunda espcie de conjunto de linhas. Um primeiro conjunto de linhas aquele no qual uma linha subordinada ao ponto, verticalidade e horizontalidade, que estria o espao, faz um contorno, submete multiplicidades variveis ao Uno, ao Todo de uma dimenso suplementar ou suplementria. As linhas deste tipo so as linhas molares, e formam sistemas binrios, arborescentes, circulares e segmentrios.

Um rizoma totalmente diferente deste primeiro tipo de linhas, o rizoma no exato, mas um conjunto de elementos vagos, nmades, de maltas e no de classes: "Do ponto de vista do pathos, a psicose e sobretudo a esquizofrenia que exprimem estas multiplicidades." (DELEUZE e GUATARRI, 1997: 221) oportuno enumerar agora algumas caractersticas aproximativas do rizoma, para, posteriormente pensarmos esse conceito numa perspectiva mais ampla.

1 e 2 - Princpios de conexo e heterogeneidade

Qualquer ponto de rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve s-lo. Descentramento do sujeito, negao da genealogia, afirmao de uma heterognese em oposio ordem filiativa do modelo de rvore e raiz. O rizoma distinto disso tudo, pois no fixa pontos nem ordens - h apenas linhas e trajetos de diversas semiticas, estados e coisas, e nada remete necessariamente a outra coisa. Para demonstrar estes princpios, D&G recorrem ontologia da linguagem, e conseqentemente lingstica: "A rvore lingstica maneira de Chomsky comea ainda num ponto S e procede por dicotomia" (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 15), sendo assim "um marcador de poder antes de ser marcador sinttico". (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 15) Tais modelos no do conta nem da abstrao nem da materialidade da lngua,

por no atingir a mquina abstrata que opera a conexo de uma lngua com os contedos semnticos e pragmticos de enunciados, com agenciamentos coletivos de enunciao, com todo uma micropoltica do campo social. (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 15)

preciso levar sempre em conta as formas de organizaes de poder, pois

no h universalidade da linguagem, mas sim um concurso de dialetos, de patos, de grias, de lnguas especiais. (...) A lngua , segundo uma frmula de Weinreich, "uma realidade essencialmente heterognea". Portanto, impossvel pensar em "uma lngua-me", mas somente em uma "tomada de poder por uma lngua dominante dentro de uma multiplicidade poltica (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 16).

De modo que "a unidade de uma lngua sempre inseparvel da construo de uma unidade poltica". (GUATARRI, 1988: 25) A lngua se forma e se estabiliza em torno de uma comunidade, de uma coletividade, espalhando-se como uma mancha de leo, "evolui ao longo das linhas de uma estrada de ferro". (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 16) Uma prtica analtica do tipo rizoma procura analisar a linguagem efetuando um descentramento sobre outras dimenses e outros registros, pois a anlise lingstica que se fecha sobre a prpria linguagem s o faz "em uma funo de impotncia". (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 16) Isto equivale a dizer que estaramos, neste caso, subordinando linguagem linguagem apenas, definindo-a ao mesmo tempo como ponto central e elemento local. Uma analtica rizomtica, ao contrrio, procurar estabelecer conexes transversais entre os estratos e os nveis, sem centr-los ou cerc-lo, mas atravessando-os, conectando-os. (GUATARRI e ROLNIK, 1986: 322)

3 - Princpio de multiplicidade

Pensar o mltiplo efetivamente como substantivo, pois a que ele no tem mais nenhuma relao com o uno como sujeito ou objeto, como realidade natural e espiritual, como imagem e mundo, pois a multiplicidade no constitui sujeito e muito menos objeto, mas apenas determinaes, grandezas e dimenses, "que no podem crescer sem que se mude de natureza". (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 16) As multiplicidades se definem pelo fora, pelas linhas que compe um rizoma, linha abstrata e linha de fuga. O plano de consistncia (ou plano de imanncia) o fora de todas as multiplicidades, e nele a linha de fuga marca ao mesmo tempo "um nmero de dimenses finitas que a multiplicidade preenche", assim como "a impossibilidade de toda dimenso suplementar" e tambm a "possibilidade e a necessidade de achatar todas estas multiplicidades sobre um mesmo plano de consistncia ou exterioridade". (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 17)

Uma boa maneira de compreender esta idia de multiplicidade olhando uma marionete, os fios e o manipulador: os fios de uma marionete constituem a multiplicidade, nem o que controla, nem o boneco controlado com as cordas, mas as prprias cordas, que comunicam uma parte outra. So as linhas de um ponto ao outro que importam, no os pontos em si. Um outro exemplo de multiplicidade evocado por D&G a escrita de Kleist, um "encadeamento quebradio de afetos e velocidades variveis", onde numa mesma pgina se expe toda a exterioridade: "Acontecimentos vividos, determinaes histricas, conceitos pensados, indivduos, grupos e formaes sociais". D&G opem esta escrita rizomtica, composta em plats (...)que se desenvolve evitando toda orientao sobre um ponto de culminncia ou em direo a uma finalidade exterior (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 33) ao livro clssico, romntico, sendo este definido e constitudo pela interioridade de um sujeito ou substncia. O livro-mquina de guerra contra o livro-aparelho de Estado: Kleist versus Goethe, Nietzsche versus Kant, multiplicidade versus unidade.

4 - Princpio de ruptura a-signficante:

Um rizoma pode ser rompido e quebrado em algum lugar qualquer, mas tambm retoma segundo uma de suas linhas ou segundo outras linhas.

Todo rizoma compreende linhas de segmentariedade segundo as quais ele estratificado, territorializado, organizado, significado, atribudo, etc; mas tambm compreende linhas de desterritorializao pelas quais ele foge sem para. (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 18)

Cada vez que h ruptura no rizoma as linhas segmentares explodem numa linha de fuga, mas estas linhas de fuga so parte do rizoma: as linhas no param de remeter umas s outras. Traa-se uma linha de fuga quando se faz uma ruptura, mas nela podem encontrar-se com elementos que reordenam o conjunto e reconstituem o sujeito. "Como possvel que os movimentos de desterritorializao e os processos de reterritorializao no fossem relativos, no estivessem em prpetua ramificao, presos uns aos outros?" (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 18)

A orqudea se desterritorializa, forma uma imagem, um decalque da vespa, e a vespa se reterritorializa sobre esta imagem, o que, no entanto, uma desterritorializao, pois ao se tornar parte do aparelho de reproduo da orqudea ela tambm reterritorializa a orqudea ao transpor o plen. As duas juntas formam um rizoma. No nvel dos estratos: paralelismo, entre dois estados determinados, cuja organizao de um imitou a do outro. Mas trata-se de algo completamente diferente: No mais imitao, mas captura, mais valia de cdigo, devir-vespa da orqudea e devir-orqudea da vespa, cada um assegurando ao outro os movimentos de desterritorializao e reterritorializao de uma das partes dois devires se encadeando e revezando segundo uma circulao intensidades que empurra a desterritorializao cada vez mais longe. (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 19) Se introduzirmos mais uma parte no rizoma vespa-orqudea, levaramos a outros pontos e processos tal relao: quando um homem entra neste sistema e introduz, por exemplo, um agrotxico, ou desmata uma regio. Toda uma reorganizao das relaes no rizoma. No havendo mais orqudeas, as vespas tero de procurar outras flores.

Os esquemas de evoluo no se fariam mais segundo modelos de descendncia arborescente (...) mas segundo um rizoma que opera imediatamente no heterogneo e salta de uma linha j diferenciada outra." (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 19)

Nossa evoluo e morte se deu mais por gripes, vrus e bactrias polimrficas e rizomticas do que por doenas hereditrias.

5 e 6 - Princpio de cartografia e de decalcomania:

"Um rizoma no pode ser justificado por nenhum modelo estrutural ou gerativo". Toda a lgica dos sistemas arborescentes uma lgica do decalque e da reproduo, tanto na lingstica quanto na psicanlise, faz-se um decalque de algo que j est dado, a partir de uma estrutura que sobrecodifica ou de um eixo que suporta. (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 21)

Faz-se um decalque do inconsciente, ou da linguagem, colocando-o segundo uma ordem de complexos codificados, que cabem ao psicanalista ou lingista interpretarem seguindo uma certa lgica que tambm j est dada: a rvore articula e hierarquiza os decalques, fazendo destes as folhas da rvores. O rizoma mapa, e no decalque. "A orqudea no reproduz o decalque da vespa, ela compe um mapa com a vespa no seio de um rizoma". (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 22) O mapa aberto e desmontvel, pode ser conectado em qualquer uma de suas partes ou dimenses, reversvel e suscetvel de receber montagens de qualquer natureza, ser (re)construdo por um indivduo ou por uma formao social, como obra de arte ou ao poltica, como uma meditao. Ele tem entradas mltiplas, (...)contrariamente ao decalque, que volta sempre ao mesmo. (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 22)

preciso, no entanto, no opor os dois sistemas, restaurando assim um dualismo binrio: " preciso sempre projetar o decalque sobre o mapa". (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 23) O decalque pode estruturar um rizoma, codific-lo, neutralizando assim as multiplicidades segundos eixos de significncia e de subjetivao (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 23), mas o que o decalque reproduz do rizoma so apenas os impasses, os bloqueios, seus pontos de estruturao. (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 23)

A psicanlise e a lingstica apenas tiraram fotos ou decalques do inconsciente e da linguagem. importante tentar uma outra operao, religando os decalques ao mapa, relacionando rvores e razes ao rizoma. Estudar o inconsciente seria mostrar como ele tenta constituir um rizoma, com a casa da famlia, mas tambm com a linha de fuga da rua, mostrar como tais linhas so obstrudas, enraizadas na famlia, decalcado sobre o pai e a cama materna. (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 24) Podemos entrar no rizoma at mesmo pelos decalques e rvores-razes. H agenciamentos muito diferentes neste ponto, como mapas-razes, rizomas-decalques, uma dimenso de raiz pode brotar no rizoma e inversamente, um rizoma pode surgir na rvore. "Um acontecimento microscpico estremece o equilbrio do poder local" (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 25): Onze de setembro. A histria est repleta de tais acontecimentos.

O prprio pensamento descentralizado, mesmo tendo um rgo que age como centralizador. "O pensamento no arborescente e o crebro no uma matria enraizada nem ramificada. (...) mais uma erva que uma rvore". (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 25) um sistema nervoso, probabilstico e incerto que compe o pensamento, no apenas o cerbro: uncertain nervous system. (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 25)

Neurlogos e psicofisilogos distinguem uma memria longa e uma curta, da ordem de um minuto, e sua diferena no somente quantitativa. A memria curta do tipo rizoma, diagramtica, enquanto que a longa rvore - centralizada. A memria curta pode ir e voltar em questo de momentos ou minutos, descontnua, faz rupturas e opera por descontinuidade. As memrias no se tipos temporais diferentes de apreenso da mesma coisa, no so as mesmas idias que apreendem nem a mesma recordao. "A memria curta compreende o esquecimento como processo", e no se confunde com o instante mas sim com o rizoma temporal, coletivo e nervoso. A memria longa a famlia, raa, sociedade, civilizao, opera por decalque e traduo, mas os dados que ela traduz continuam "a agir nela, distncia, a contratempo, intempestivamente, no instantaneamente". (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 26)

A psicanlise do pequeno Hans: O que a psicanlise faz quebrar seu rizoma, manchar seu mapa, colocando-o em um lugar de onde a sada bloqueada, "at que ele deseje sua prpria vergonha e culpa, fobia. (...) Deixaro que vocs vivam e falem, com a condio de impedir qualquer sada". (id. pg. 23) Existem sempre estruturas de rvores e razes no rizoma, mas das rvores tambm brotam os rizomas. A psicanlise coloca o 'paciente' dentro do sistema centrado na significncia a partir do inconsciente, mas o 'psicanalizado' no se cansa de colocar novamente os rizomas, quebrando a ordem psicanaltica com linhas de fugas. A melhor posio para se ouvir o inconsciente no consiste necessariamente em ficar sentado atrs de um div.. (GUATARRI, 1988:189) O psicanalista vira o ditador, fundando seu poder a partir do estabelecimento de uma ordem ditatorial do inconsciente concebido como rvore. Vejamos, na Figura 1, a cartografia (mapa) apresentada por Guattari a propsito do caso Hans:

Figura 1:

As linhas que constituem o diagrama do pequeno Hans seriam:

A territrio familiar;

B territrio do leito conjugal dos pais;

C aparncia da me;

D objeto do poder flico;

E territorialidade maqunica do fantasma inconsciente.

Observa-se nesse diagrama do inconsciente do pequeno Hans como sua libido foi levada a investir na produo de micropolticas de existncia a partir da anlise do conjunto de suas produes semiticas tais como o territrio familiar, a aparncia da me. O que a psicanlise de Freud faz conceber esse inconsciente enquanto estdio gentico estrutural, como estdio-rvore, em suma, procede a uma paradigmatizao sistemtica de todos os contedos e estratgias enunciativas a partir de referncias abstratas ou estruturais centradas sobre materiais verbais e interpretaes semiticas dos afetos e dos comportamentos. Voc est acuado, voc est acuado. Confessa! (DELEUZE, 1996:12) A esquizo-anlise, enquanto pragmtica do inconsciente maqunico, prope a construo de uma carta de inconsciente de acordo com cada caso ou situao, de modo a determinar quais so as principais linhas micropolticas dos agenciamentos de enunciao e das formaes de poder em seus nveis mais abstratos.

" curioso como a rvore dominou a realidade ocidental e todo o pensamento ocidental, da botnica biologia, a anatomia, mas tambm gnoseologia, a teologia, a ontologia, toda a filosofia". (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 28-29) Enquanto o ocidente a floresta e o campo, o oriente apresenta outra figura, as relaes com a estepe, jardim, deserto e osis. "Ocidente, agricultura de uma linhagem escolhida com muitos indivduos variveis; Oriente, horticultura de um pequeno nmero de indivduos remetendo a uma grande gama de clones". (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 29) A Amrica inverteu as direes tradicionais do ocidente, colocando seu oriente ao oeste, "como se a terra tivesse se tornado redonda precisamente na Amrica". (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 30) Bem sabemos que foi ela que conectou uma parte do mundo outra, e ela "(...)ao mesmo tempo rvore e rizoma". (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 31) A histria da Amrica aquela em o europeu, branco, macho, dominante, perdeu sua civilidade na barbrie da conquista do Eldorado, mas tambm foi onde deixou para os novos corpos ali formados alguns elementos prprios de sua idia de civilidade, estado, etc. Desterritorializao, territorializao e reterritorializao. Vejamos um exemplo dado por Guattari de uma cartografia para um processo histrico, neste caso, a formao histrica do stalinismo, como apresentada na Figura 2:

Figura 2:

Na figura acima percebemos com mais clareza a combinao das diversas linhas que compem o rizoma, que, nesse caso, (as linhas) assumem um carter molar, de segmentariedade dura no caso, um processo de dominao poltica ditatorial. Elementos moleculares, como a ruptura leninista e a mquina de seu partido, atuaram primeiramente em um movimento de dissoluo da antiga molaridade aristocrata da Rssia do incio do sculo passado, para, posteriormente, serem capturados nos bloqueios efetuados por outras linhas desencadeadas pela morte de Lnin e pela crise econmica e social. Neste ponto, uma molecularidade capturada anulada por segmentariedades que efetivam o impasse e a levam ao nvel molar, instaurando o regime centralizador de Stalin

Bem sabemos que o capitalismo agiu no fim dos anos 80 como um vetor de desterritorializao linha de fuga que explode o rizoma que configurou o comunismo sovitico , desencadeando toda uma reterritorializao dos agenciamentos, uma reorganizao das linhas. Em Anti-dipo fica clara este carter desterritorializante-reterritorializante do capital, sempre disposto a ir assimilando elementos novos que podiam fazer parte at mesmo de sua crtica, como por exemplo, nos anos 60, onde:

O capitalismo endogeneizou as reinvindicaes por autonomia e por responsabilidade at ento consideradas como subversivas, e conseguiu substituir o controle pelo autocontrole, tornando o trabalho mais atraente para uma mo de obra jovem e com mais escolaridade que nas dcadas anteriores. (PELBART, 2003: 106)

Como mencionamos ao incio, o rizoma uma segunda espcie de conjunto de linhas de linha. Somos atravessados e constitudos por estas linhas. O rizoma o contrrio da estrutura, pois enquanto esta se apresenta constituda como um (...)conjunto de pontos e posies que opera por correlaes binrias entre os pontos e relaes biunvocas entre as posies (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 32), o rizoma procede por variao, conquista, captura, heterogneo, um mapa (...)sempre desmontvel, conectvel, reversvel. (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 33) uma produo de inconsciente (individual, dual, coletivo, social), e no uma representao de contedos desprovidos de significncia e de subjetivao. Fazer um rizoma traar estas linhas. A esquizo-anlise se apresenta como uma tentativa de uma pragmtica das linhas, de produo de rizoma, de seus bloqueios nas razes, suas rupturas em linhas de fuga, a transformao das rvores em rizomas subterrneos ou areos, a aliana entre o homem e a mquina para constituir outras mquinas que j no so nem um nem outro, mas elementos constitutivos de uma ontologia maqunica no qual tudo coextensivo a tudo.

Consideraes finais

O conceito rizoma funciona como a porta de entrada ao pensamento deleuze-guattariano, porta cujo local de apario varivel, indeterminado, vagamente dado, uma porta pela qual entramos e caminhamos a qualquer lugar destes plats: qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve s-lo. O rizoma "(...) feito de direes mveis, sem incio nem fim, mas apenas um meio, por onde ele crescre e transborda, sem remeter a uma unidade ou dela derivar". (PELBART, 2003: 216) O rizoma no um sistema hierrquico, (...)uma rede maqunica de autmatos finitos a-centrados (DELEUZE e GUATARRI, 2004: 28), no-significante e heterogneo. No h uma fora coordenadora dos movimentos, o rizoma uma circulao de estados, uma combinao anmala cujos resultados no podemos prever ou organizar, pois ele est sempre em um meio. Um conjunto de devires e sempre um intermezzo tais seriam as proposies constitutivas de um rizoma, lembrando que o rizoma trata-se de produo de inconsciente e de novos enunciados e de outros desejos.

No trajeto esboado ao longo dos cinco volumes de Mil Plats, podemos compreender como os conceitos possuem uma conectividade varivel e indeterminada sem que haja uma unidade ou um conceito determinante para o funcionamento de tal rede de conexes conceituais. O rizoma funciona como um princpio cosmolgico, caixa de ferramentas, um sistema aberto.

O rizoma talvez seja o mais deleuziano dos conceitos de "Mil Plats". possvel perceber ressonncias da idia de diferena tal como Deleuze a coloca: diferena como pura imanncia, no remetendo a nada seno a ela mesma, numa superfcie onde tudo se esvai plano de consistncia ou mquina abstrata.

Deleuze desenvolve uma concepo inteiramente diferente das idias e conceitos, introduzindo a noo de multiplicidade: "As Idias so multiplicidades; cada idia uma multiplicidade, uma variedade" e considera que:

A multiplicidade no deve designar uma combinao de mltiplo e uno, mas, pelo contrrio, uma organizao prpria do mltiplo como tal, que de modo nenhum tem necessidade da unidade para formar um sistema. (DELEUZE, 1988: 303)

Deleuze ope a um universo extensivo, constitudo por coisas e representaes, por identidades e diferenas referidas a uma unidade, um universo intensivo, constitudo por singularidades pr-individuais, espao de diferenas puras onde a noo de repetio se liberta da idia de mesmo, para sempre constituir a pura diferena. Isto que ser ampliado em Mil Plats, desembocando na idia do rizoma. clara a presena do conceito nietzschiano de vontade de potncia, fora criativa e intempestiva - imanncia do desejo e da diferena, irrupo da multiplicidade. Apenas sob esta concepo cosmolgica de vontade de potncia subordinada intempestividade que a diferena pode afirmar-se sem as negatividades de uma outra identidade, conseqentemente, apenas sobre ela que o rizoma pode ser caracterizado. O rizoma funciona apenas quando desistimos das oposies binrias, e funciona como a grande cosmologia que atravessa todos os Plats no rizoma entramos e samos em qualquer lugar.

importante colocar agora as questes: possvel uma analtica rizomtica?. E conseqentemente: Como e onde podemos faz-la? Esperamos que nosso texto tenha apontado algumas diretrizes gerais para a investigao em vrios nveis e reas do conhecimento, seja ele histrico, sociolgico, psicolgico, poltico, etc. O rizoma pode perfeitamente funcionar como um princpio geral para o norteamento de anlises em grupos, indivduos, sociedades e culturas. Podemos pens-lo como uma metodologia, um questionamento que pode atuar tanto em nveis materiais como os imaterais (pensando-se os enunciados enquanto materialidades do imaterial), pois um conceito ontolgico e pragmtico: De que linhas isto feito? Como so elas? Onde formam sistemas arborescentes, centrados, mas, onde esto suas fugas, impasses, bloqueios, exploses e rupturas?

Vrios estudos podem expandir essas questes, colocando outras igualmente. Vrias cartografias so possveis, mas no as montaremos agora. Nosso objetivo com o presente texto de apenas apresentar uma proposio-introduo sinttica ao pensamento deleuze-guattariano, atravs do conceito de rizoma. Pode-se ver bons resultados da aplicao dos conceitos deleuze-guattarianos nos trabalhos do italiano Antonio Negri, do brasileiro Peter Pl-Pelbart, do americano Michael Hardt, no esquecendo do impacto (e dilogo) que a filosofia deleuziana teve na obra e no pensamento de Michel Foucault e de vrios outros pelo mundo.

Para lembrar Nietzsche, em seu prlogo para "Alm do bem de do mal": O arco ficou tenso e as flechas foram lanadas, cabe a ns agarr-las e atir-las para novos rumo, para alvos ainda mais distantes. (NIETZSCHE, 1992: 06) O presente trabalho se constitui como um esforo para propiciar novas tentativas de se pensar velhos temas, como a condio humana, a economia, a subjetividade, a poltica, e a sociedade. Temas velhos, mas sempre atuais talvez at mesmo inatuais e extemporneos e passveis de constantes reconstrues, revezamentos e modificaes tal como o rizoma.

Referncias bibliogrficas:

DELEUZE, Gilles. Diferena e repetio. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

_______________. Conversaes. Trad. Peter Pl Pelbart. - Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996.

DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Flix. Mil plats: capitalismo e esquizofrenia. Vol. I. So Paulo, Ed. 34. 2004.

DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Flix. Mil plats: capitalismo e esquizofrenia. Vol. V. So Paulo, Ed. 34. 1997.

GUATTARI, Flix. O inconsciente maqunico: ensaios de esquizo-anlise. Campinas, Papirus. 1988

GUATTARI, Flix; ROLNIK, Suely. Micropoltica: Cartografias do desejo. Petrpolis, Ed. Vozes. 1986.

PELBART, Peter Pl. Vida capital: Ensaios de biopoltica. So Paulo, Iluminuras. 2003.

* Este artigo foi publicado na Revista Critrio (www.revista.criterio.nom.br), vol. 1, n. 4, 2005.

CABRAL, Clber; BORGES, Diogo. Rizoma: uma introduo aos Mil Plats de Deleuze e Guattari. Revista Critrio, Disponvel em: .

Estudante de graduao do curso de Letras (bacharelado em Portugus) da UFMG.

Estudante de graduao do curso de Histria (bacharelado/licenciatura) da PUC-MG.

Doravante, iremos nos referir aos autores utilizando-nos da abreviatura D&G (Deleuze & Guattari).

O dipo ao qual nos referimos e ao qual aludem os autores apresentado como um construto, um dispositivo histrico que estabelece um certo nmero de relaes de poder entre a sociedade e os indivduos.

Enciclopdia On-line Wikipdia Disponvel em . Acessado em Maro, 2005.

DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Flix. Mil plats: Capitalismo e esquizofrenia. Vol. 5. So Paulo, Ed. 34. 1997. pg. 220.

DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Flix. Mil Plats: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. Pg.15.

A heterognese seria algo como a produo do inusitado em nossas vidas, algo como desfazermo-nos de um territrio existencial e criar outros simultaneamente. A heterognese um processo similar noo de linhas de fuga (outra noo proposta por D&G). Para maiores esclarecimentos ver DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Flix. Mil Plats: capitalismo e esquizofrenia. Vols. 1 e 5. Ed 34. 2004

S aqui se refere sentena como axioma central de um diagrama em forma arborescente que procede sua analtica pela hierarquizao sucessiva de elementos locais que remontam a tal axioma. Tal descrio espelhada na proposta apresentada pela gramtica gerativa de Noam Chomsky de anlise dos elementos sintticos constituintes de uma competncia lingstica supostamente comum a todos os seres humanos.

A propsito da desterritorializao e suas relaes com o territrio, ver tambm Concluso: Regras concretas e Mquinas Abstratas, In: Mil Plats capitalismo e esquizofrenia, vol. 5.

A psicanlise do pequeno Hans trata-se da monografia-prncipe de Freud sobre psicanlise da criana encontrada na obra Cinco psicanlises.

GUATTARI, Flix. Notas para uma esquizo-anlise. In: O inconsciente maqunico: ensaios de esquizo-anlise. Ed. Papirus, 1988. Pg. 169.

GUATTARI, Flix. Notas para uma esquizo-anlise. In: O inconsciente maqunico: ensaios de esquizo-anlise. Ed. Papirus, 1988. Pg. 172.

Em oposio a ontologia naturalista que ope homemXmquina, Deleuze e Guatarri propem uma simbiose, uma aliana, uma sinergia entre o homem e a natureza, a natureza e a indstria. Tal ontologia maqunica concebida por eles como sendo uma geo-ontologia na qual a terra, como a grande mquina, a mquina de todas as mquinas, hibridiza natureza e artifcio em mecanosfera.

Para maiores esclarecimentos acerca das noes de mquina abstrata e de plano de consistncia, ver DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Flix. Mil plats: Capitalismo e esquizofrenia. Vol. I. Pgs. 87 e 88. Ver tambm GUATTARI, Flix. ROLNIK, Suely. Micropoltica: cartografias do desejo. Pgs. 320 e 321.

A respeito do conceito de nietzschiano de vontade de potncia e sua utilizao por Deleuze, ver o texto Mistrio de Ariadne segundo Nietzsche, in DELEUZE, Gilles, Crtica e Clnica. Ed. 34. Para uma concepo cosmolgica de vontade de potncia, ver o trabalho de Scarlet Marton: Nietzsche: Das foras csmicas aos valores humanos. Belo Horizonte: Ed. Ufmg, 2000.