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Gilles Deleuze & Félix Guattari. Rizoma. In:______. Mil Platôs vol. I, Editora 34

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Mil platôs - vol. 1 Capitalismo e esquizofrenia 2 Gilles DeleuzeFélix GuattariTradução de Ana Lúcia de Oliveira, Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto CostaRevisão técnica de Luiz B. L. OrlandiColeção Trans128 p. - 14 x 21 cmISBN 978-85-85490-49-21995 - 1ª edição; 2011 - 2ª edição Edição conforme o Acordo Ortográfico da Língua PortuguesaSequência às teses de O anti-Édipo, contendo todos os componentes de um tratado de filosofia clássica - ontologia, física, lógica, psicologia, moral, política e estética. A obra é organizada em quinze "platôs", que podem ser lidos de forma independente. O volume 1 inclui os platôs 1) Introdução: Rizoma; 2) 1914 - Um só ou vários lobos?; e 3) 10.000 a.C. - A geologia da moral (quem a Terra pensa que é?); além do prefácio à edição italiana escrito pelos autores em 1987. Na presente edição foram acrescentados a indicação das páginas da edição original francesa, índice onomástico, índice das matérias e uma bibliografia de Deleuze e Guattari.

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  • 1. INTRODUO: RIZOMA

    SYLVANO BUSSOTI

    Escrevemos o ~nti-dipo a dois. Como cada um de ns era vrios, j era muita gente. Utilizamos tudo o que nos aproximava, o mais prxi- mo e o mais distante. Distribumos hbeis pseudnimos para dissimular. Por que preservamos nossos nomes? Por hbito, exclusivamente por h- bito. Para passarmos despercebidos. Para tornar imperceptvel, no a ns mesmos, mas o que nos faz agir, experimentar ou pensar. E, finalmente, porque agradvel falar como todo mundo e dizer o sol nasce, quando todo mundo sabe que essa apenas uma maneira de falar. No chegar ao ponto em que no se diz mais EU, mas ao ponto em que j no tem qual- quer importncia dizer ou no dizer EU. No somos mais ns mesmos. Cada um reconhecer os seus. Fomos ajudados, aspirados, multiplicados.

    Um livro no tem objeto nem sujeito; feito de matrias diferente- mente formadas, de datas e velocidades muito diferentes. Desde que se atribui um livro a um sujeito, negligencia-se este trabalho das matrias e a exterioridade de suas correlaes. Fabrica-se um bom Deus para movimen- tos geolgicos. Num livro, como em qualquer coisa, h linhas de articula- o ou segmentaridade, estratos, territorialidades, mas tambm linhas de fuga, movimentos de desterritorializao e desestratificao. As velocida-

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  • des comparadas de escoamento, conforme estas linhas, acarretam fenme- nos de retardamento relativo, de viscosidade ou, ao contrrio, de precipi- tao e de ruptura. Tudo isto, as linhas e as velocidades mensurveis, cons- titui um agenciamento. Um livro um tal agenciamento e, como tal, inatri- buvel. uma multiplicidade - mas no se sabe ainda o que o mltiplo implica, quando ele deixa de ser atribudo, quer dizer, quando elevado ao estado de substantivo. Um agenciamento maqunico direcionado para os estratos que fazem dele, sem dvida, uma espcie de organismo, ou bem uma totalidade significante, ou bem uma determinao atribuvel a um su- jeito, mas ele no menos direcionado para u m corpo sem rgos, que no pra de desfazer o organismo, de fazer passar e circular partculas a-signi- ficantes, intensidades puras, e no para de atribuir-se os sujeitos aos quais no deixa seno um nome como rastro de uma intensidade. Qual o cor- po sem rgos de um livro? H vrios, segundo a natureza das linhas con- sideradas, segundo seu teor ou sua densidade prpria, segundo sua possi- bilidade de convergncia sobre "um plano de consistncia" que lhe asse- gura a seleo. A, como em qualquer lugar, o essencial so as unidades de medida: "quantificar a escrita". No h diferena entre aquilo de que um livro fala e a maneira como feito. Um livro tampouco tem objeto. Considerado como agenciamento, ele est somente em conexo com ou- tros agenciamentos, em relao com outros corpos sem rgos. No se per- guntar nunca o que um livro quer dizer, significado ou significante, no se buscar nada compreender num livro, perguntar-se- com o que ele fun- ciona, em conexo com o que ele faz ou no passar intensidades, em que multiplicidades ele se introduz e metamorfoseia a sua, com que corpos sem rgos ele faz convergir o seu. Um livro existe apenas pelo fora e no fora. Assim, sendo o prprio livro uma pequena mquina, que relao, por sua vez mensurvel, esta mquina literria entretm com uma mquina de guerra, uma mquina de amor, uma mquina revolucionria etc. - e com uma mquina abstrata que as arrasta. Fomos criticados por invocar mui- to frequentemente literatos. Mas a nica questo, quando se escreve, saber com que outra mquina a mquina literria pode estar ligada, e deve ser ligada, para funcionar. Kleist e uma louca mquina de guerra, Kafka e uma mquina burocrtica inaudita ... (e se nos tornssemos animal ou vegetal por literatura, o que no quer certamente dizer literariamente? No seria primeiramente pela voz que algum se torna animal?) A literatura um agenciamento, ela nada tem a ver com ideologia, e, de resto, no existe nem nunca existiu ideologia.

    Falamos exclusivamente disto: multiplicidade, linhas, estratos e seg- mentaridades, linhas de fuga e intensidades, agenciamentos maqunicos e seus diferentes tipos, os corpos sem rgos e sua construo, sua seleo, o plano de consistncia, as unidades de medida em cada caso. Os Estra-

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  • tmetros, os delemetros, as unidades CsO * de densidade, as unidades CsO de convergncia no formam somente uma quantificao da escrita, mas a definem como sendo sempre a medida de outra coisa. Escrever nada tem a ver com significar, mas com agrimensar, cartografar, mesmo que sejam regies ainda por vir.

    Um primeiro tipo de livro o livro-raiz. A rvore j a imagem do mundo, ou a raiz a imagem da rvore-mundo. o livro clssico, como bela interioridade orgnica, significante e subjetiva (os estratos do livro). O livro imita o mundo, como a arte, a natureza: por procedimentos que lhes so prprios e que realizam o que a natureza no pode ou no pode mais fazer. A lei do livro a da reflexo, o Uno que se torna dois. Como que a lei do livro estaria na natureza, posto que ela preside a prpria diviso entre mundo e livro, natureza e arte? Um torna-se dois: cada vez que encontramos esta frmula, mesmo que enunciada estrategicamente por Mao Ts-Tung, mesmo compreendida o mais "dialeticamente" possvel, encontramo-nos diante do pensamento mais clssico e o mais refletido, o mais velho, o mais cansado. A natureza no age assim: as prprias razes so pivotantes com ramificao mais numerosa, lateral e circular, no dicotmica. O esprito mais lento que a natureza. At mesmo o livro como realidade natural pivotante, com seu eixo e as folhas ao redor. Mas o livro como realidade espiritual, a rvore ou a Raiz como imagem, no pra de desenvolver a lei do Uno que se torna dois, depois dois que se tornam quatro .... A lgica binria a realidade espiritual da rvore-raiz. At uma disciplina "avanada" como a Lingstica retm como imagem de base esta rvore-raiz, que a liga A reflexo clssica (assim Chomsky e a rvore sin- tagmtica, comeando num ponto S para proceder por dicotomia). Isto quer dizer que este pensamento nunca compreendeu a multiplicidade: ele ne- cessita de uma forte unidade principal, unidade que suposta para chegar a duas, segundo um mtodo espiritual. E do lado do objeto, segundo o mtodo natural, pode-se sem dvida passar diretamente do Uno a trs, quatro ou cinco, mas sempre com a condio de dispor de uma forte uni- dade principal, a do piv, que suporta as raizes secundrias. Isto no me- lhora nada. As relaes biunvocas entre crculos sucessivos apenas subs- tituram a lgica binria da dicotomia. A raiz pivotante no compreende a multiplicidade mais do que o conseguido pela raiz dicotmica. Uma opera no objeto, enquanto a outra opera no sujeito. A lgica binria e as rela- es biunvocas dominam ainda a psicanlise (a rvore do delrio na in- terpretao freudiana de Schreber), a lingstica e o estruturalismo, e at a inforrntica.

    'TsO, a abreviatura de Corpos sem rgos. (N. do T.)

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  • O sistema-radcula, ou raiz fasciculada, a segunda figura do livro, da qual nossa modernidade se vale de bom grado. Desta vez a raiz principal abortou, ou se destruiu em sua extremidade: vem se enxertar nela uma multiplicidade imediata e qualquer de razes secundrias que deflagram um grande desenvolvimento. Desta vez, a realidade natural aparece no aborto da raiz principal, mas sua unidade subsiste ainda como passada ou por vir, como possvel. Deve-se perguntar se a realidade espiritual e refletida no compensa este estado de coisas, manifestando, por sua vez, a exigncia de uma unidade secreta ainda mais compreensiva, ou de uma totalidade mais extensiva. Seja o mtodo do cut-up de Burroughs: a dobragem de um texto sobre outro, constitutiva de razes mltiplas e mesmo adventcias (dir-se- ia uma estaca), implica uma dimenso suplementar dos textos considera- dos. nesta dimenso suplementar da dobragem que a unidade continua seu trabalho espiritual. neste sentido que a obra mais deliberadamente parcelar ~ o d e tambm ser apresentada como Obra total ou o Grande Opus. A maior parte dos mtodos modernos para fazer proliferar sries ou para fazer crescer uma multiplicidade valem perfeitamente numa direo, por exemplo, linear, enquanto que uma unidade de totalizao se afirma tan- to mais numa outra dimenso, a de um crculo ou de um ciclo. Toda vez que uma multiplicidade se encontra presa numa estrutura, seu crescimen- to compensado por uma reduo das leis de combinao. Os abortadores da unidade so aqui fazedores de anjos, doctores angelici, posto que eles afirmam uma unidade propriamente anglica e superior. As palavras de Joyce, justamente ditas "com razes mltiplas", somente quebram efetiva- mente a unidade da palavra, ou mesmo da lngua, medida que pem uma unidade cclica da frase, do texto ou do saber. Os aforismos de Nietzsche somente quebram a unidade linear do saber medida que remetem uni- dade cclica do eterno retorno, presente como um no sabido no pensa- mento. Vale dizer que o sistema fasciculado no rompe verdadeiramente com o dualismo, com a complementaridade de um sujeito e de um objeto, de uma realidade natural e de uma realidade espiritual: a unidade no para de ser contrariada e impedida no objeto, enquanto que um novo tipo de unidade triunfa no sujeito. O mundo perdeu seu piv, o sujeito no pode nem mesmo mais fazer dicotomia, mas acede a uma mais alta unidade, de ambivalncia ou de sobredeterminao, numa dimenso sempre suplemen- tar aquela de seu objeto. O mundo tornou-se caos, mas o livro permanece sendo imagem do mundo, caosrno-radkua, em vez de cosmo-raiz. Estra- nha mistificao, esta do livro, que tanto mais total quanto mais frag- mentada. O livro como imagem do mundo de toda maneira uma idia inspida. Na verdade no basta dizer Viva o mltiplo, grito de resto difcil de emitir. Nenhuma habilidade tipogrfica, lexical ou mesmo sinttica ser suficiente para faz-lo ouvir. preciso fazer o mltiplo, no acrescentan-

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  • do sempre uma dimenso superior, mas, ao contrrio, da maneira simples, com fora de sobriedade, no nvel das dimenses de que se dispe, sempre n-1 ( somente assim que o uno faz parte do mltiplo, estando sempre subtrado dele). Subtrair o nico da multiplicidade a ser constituda; es- crever a n-1. Um tal sistema poderia ser chamado de rizoma. Um rizoma como haste subterrnea distingue-se absolutamente das razes e radculas. Os bulbos, os tubrculos, so rizomas. Plantas com raiz ou radcula po- dem ser rizomrficas num outro sentido inteiramente diferente: uma questo de saber se a botnica, em sua especificidade, no seria inteira- mente rizomrfica. At animais o so, sob sua forma matilha; ratos so rizomas. As tocas o so, com todas suas funes de hbitat, de proviso, de deslocamento, de evaso e de ruptura. O rizoma nele mesmo tem for- mas muito diversas, desde sua extenso superficial ramificada em todos os sentidos at suas concrees em bulbos e tubrculos. H rizoma quan- do os ratos deslizam uns sobre os outros. H o melhor e o pior no rizoma: a batata e a grama, a erva daninha. Animal e planta, a grama o capim- p-de-galinha. Sentimos que no convenceremos ningum se no enume- rarmos certas caractersticas aproximativas do rizoma.

    1" e 2" - Princpios de conexo e de heterogeneidade: qualquer pon- to de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve s-10. muito diferente da rvore ou da raiz que fixam um ponto, uma ordem. A rvore lingstica maneira de Chomsky comea ainda num ponto S e procede por dicotomia. Num rizoma, ao contrrio, cada trao no remete neces- sariamente a um trao lingustico: cadeias semiticas de toda natureza so a conectadas a modos de codificao muito diversos, cadeias biolgicas, polticas, econmicas, etc., colocando em jogo no somente regimes de sig- nos diferentes, mas tambm estatutos de estados de coisas. Os agenciarnen- tos coletivos de enunciao funcionam, com efeito, diretamente nos agen- ciamentos maqunicos, e no se pode estabelecer um corte radical entre os regimes de signos e seus objetos. Na lingstica, mesmo quando se preten- de ater-se ao explcito e nada supor da lngua, acaba-se permanecendo no interior das esferas de um discurso que implica ainda modos de agencia- mento e tipos de poder sociais particulares. A gramaticalidade de Chomsky, o smbolo categoria1 S que domina todas as frases, antes de tudo um marcador de poder antes de ser um marcador sinttico: voc constituir frases gramaticalmente corretas, voc dividir cada enunciado em sintagma nominal e sintagma verbal (primeira dicotomia ...). No se criticaro tais modelos lingusticos por serem demasiado abstratos, mas, ao contrrio, por no s-10 bastante, por no atingir a maquina abstrata que opera a conexo de uma lngua com os contedos semnticos e pragmticos de enunciados, com agenciamentos coletivos de enunciao, com toda uma micropoltica do campo social. Um rizoma no cessaria de conectar cadeias

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  • semioticas, organizaes de poder, ocorrncias que remetem s artes, s cincias, s lutas sociais. Uma cadeia semitica como um tubrculo que aglomera atos muito diversos, lingusticos, mas tambm perceptivos, m- micos, gestuais, cogitativos: no existe lngua em si, nem universalidade da linguagem, mas um concurso de dialetos, de patos, de grias, de ln- guas especiais. No existe locutor-auditor ideal, como tambm no existe comunidade lingstica homognea. A lngua , segundo uma frmula de Weinreich, "uma realidade essencialmente heterognea". No existe uma lngua-me, mas tomada de poder por uma lngua dominante dentro de uma multiplicidade poltica. A lngua se estabiliza em torno de uma par- quia, de um bispado, de uma capital. Ela faz bulbo. Ela evolui por hastes e fluxos subterrneos, ao longo de vales fluviais ou de linhas de estradas de ferro, espalha-se como manchas de leo1. Podem-se sempre efetuar, na lngua, decomposies estruturais internas: isto no fundamentalmente diferente de uma busca das razes. H sempre algo de genealgico numa rvore, no um mtodo popular. Ao contrrio, um mtodo de tipo rizoma obrigado a analisar a linguagem efetuando um descentramento sobre outras dimenses e outros registros. Uma lngua no se fecha sobre si mesma seno em uma funo de impotncia.

    3" - Princpio de multiplicidade: somente quando o mltiplo efe- tivamente tratado como substantivo, multiplicidade, que ele no tem mais nenhuma relao com o uno como sujeito ou como objeto, como realida- de natural ou espiritual, como imagem e mundo. As multiplicidades so rizomticas e denunciam as pseudomultiplicidades arborescentes. Inexis- tncia, pois, de unidade que sirva de piv no objeto ou que se divida no sujeito. Inexistncia de unidade ainda que fosse para abortar no objeto e para "voltar" no sujeito. Uma multiplicidade no tem nem sujeito nem objeto, mas somente determinaes, grandezas, dimenses que no podem crescer sem que mude de natureza (as leis de combinao crescem ento com a multiplicidade). Os fios da marionete, considerados como rizoma ou multiplicidade, no remetem vontade suposta una de um artista ou de um operador, mas multiplicidade das fibras nervosas que formam por sua vez uma outra marionete seguindo outras dimenses conectadas as primeiras. "Os fios ou as hastes que movem as marionetes - chamemo- 10s a trama. Poder-se-ia objetar que sua multiplicidade reside na pessoa do ator que a projeta no texto. Seja, mas suas fibras nervosas formam por sua vez uma trama. E eles mergulham atravs de uma massa cinza, a gra- de, at o indiferenciado ... O jogo se aproxima da pura atividade dos tece-

    Cf. Bertil Malmberg, Les nouvelles tendances de la linguistique. P.U.F. (o exemplo do dialeto castelhano), pp 97 sq.

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  • les, a aqueles que os mitos atribuem s Parcas e s Norns2. Um agencia- mento precisamente este crescimento das dimenses numa multiplicida- de que muda necessariamente de natureza medida que ela aumenta suas conexes. No existem pontos ou posies num rizoma como se encontra numa estrutura, numa rvore, numa raiz. Existem somente linhas. Quan- do Glenn Gould acelera a execuo de uma passagem no age exclusiva- . mente como virtuose; transforma os pontos musicais em linhas, faz proli- ferar o conjunto. Acontece que o nmero deixou de ser um conceito uni- versal que mede os elementos segundo seu lugar numa dimenso qualquer, para tornar-se ele prprio uma multiplicidade varivel segundo as dimen- ses consideradas (primado do domnio sobre um complexo de nmeros ligado a este domnio). Ns no temos unidades de medida, mas somente multiplicidades ou variedades de medida. A noo de unidade aparece unicamente quando se produz numa multiplicidade uma tomada de po- der pelo significante ou um processo correspondente de subjetivao: o caso da unidade-piv que funda um conjunto de correlaes biunvocas entre elementos ou pontos objetivos, ou do Uno que se divide segundo a lei de uma lgica binria da diferenciao no sujeito. A unidade sempre opera no seio de uma dimenso vazia suplementar quela do sistema con- siderado (sobrecodificao). Mas acontece, justamente, que um rizoma, ou rnultiplicidade, no se deixa sobrecodificar, nem jamais dispe de dimen- so suplementar ao nmero de suas linhas, quer dizer, multiplicidade de nmeros ligados a estas linhas. Todas as rnultiplicidades so planas, uma vez que elas preenchem, ocupam todas as suas dimenses: falar-se- en- to de um plano de consistncia das multiplicidades, se bem que este "pla- no" seja de dimenses crescentes segundo o nmero de conexes que se estabelecem nele. As multiplicidades se definem pelo fora: pela linha abs- trata, linha de fuga ou de desterritorializao segundo a qual elas mudam de natureza ao se conectarem s outras. O plano de consistncia (grade) o fora de todas as rnultiplicidades. A linha de fuga marca, ao mesmo tem- po: a realidade de um nmero de dimenses finitas que a multiplicidade preenche efetivamente; a impossibilidade de toda dimenso suplementar, sem que a multiplicidade se transforme segundo esta linha; a possibilida- de e a necessidade de achatar todas estas multiplicidades sobre um mes- mo plano de consistncia ou de exterioridade, sejam quais forem suas di- menses. O ideal de um livro seria expor toda coisa sobre um tal plano de

    Ernst Junger, Approches drogues et ivresse, Table ronde, p. 304,218. [Na mi- tologia germnica, a Norns correspondem s Parcas latinas que, por sua vez, correspon- dem as Moiras gregas (Moirai): tropo, Clato e Lquesis, divindades fiandeiras que te- cem a regulao da vida, desde o nascimento at a morte]

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  • exterioridade, sobre uma nica pgina, sobre uma mesma paragem: acon- tecimentos vividos, determinaes histricas, conceitos pensados, indiv- duos, grupos e formaes sociais. Kleist inventou uma escrita deste tipo, um encadeamento quebradio de afetos com velocidades variveis, precipi- tales e transformaes, sempre em correlao com o fora. Anis abertos. Assim, seus textos se opem de todos os pontos de vista ao livro clssico e romntico, constitudo pela interioridade de uma substncia ou de um sujeito. O livro-mquina de guerra, contra o livro-aparelho de Estado. As multiplicidades planas a n dimenses so a a-significantes e a-subjetivas. Elas so designadas por artigos indefinidos, ou antes partitivos (c'est du chiendent, du rhixome ...) [ grama, rizoma ...I

    4" - Princpio de ruptura a-significante: contra os cortes demasiado significantes que separam as estruturas, ou que atravessam uma estrutu- ra. Um rizoma pode ser rompido, quebrado em um lugar qualquer, e tam- bm retoma segundo uma ou outra de suas linhas e segundo outras linhas. impossvel exterminar as formigas, porque elas formam um rizoma ani- mal do qual a maior parte pode ser destruda sem que ele deixe de se re- construir. Todo rizoma compreende linhas de segmentaridade segundo as quais ele estratificado, territorializado, organizado, significado, atribu- do, etc.; mas compreende tambm linhas de desterritorializao pelas quais ele foge sem parar. H ruptura no rizoma cada vez que linhas segmenta- res explodem numa linha de fuga, mas a linha de fuga faz parte do rizoma. Estas linhas no param de se remeter uma s outras. por isto que no se pode contar com um dualismo ou uma dicotomia, nem mesmo sob a for- ma rudimentar do bom e do mau. Faz-se uma ruptura, traa-se uma linha de fuga, mas corre-se sempre o risco de reencontrar nela organizaes que reestratificam o conjunto, formaes que do novamente o poder a um sig- nificante, atribuies que reconstituem um sujeito - tudo o que se qui- ser, desde as ressurgncias edipianas at as concrees fascistas. Os gru- pos e os indivduos contm microfascismos sempre espera de cristaliza- qo. Sim, a grama tambm rizoma. O bom o mau so somente o produ- to de uma seleo ativa e temporria a ser recomeqada.

    Como possvel que os movimentos de desterritorializago e os pro- cessos de reterritorializao no fossem relativos, no estivessem em per- ptua ramificao, presos uns aos outros? A orqudea se desterritorializa, formando uma imagem, um decalque de vespa; mas a vespa se reterri- torializa sobre esta imagem. A vespa se desterritorializa, no entanto, tor- nando-se ela mesma uma pea no aparelho de reproduo da orqudea; mas ela reterritorializa a orqudea, transportando o plen. A vespa e a orqudea fazem rizoma em sua heterogeneidade. Poder-se-ia dizer que a orqudea imita a vespa cuja imagem reproduz de maneira significante (mi- mese, mimetismo, fingimento, etc.). Mas isto somente verdade no nvel

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  • dos estratos - paralelismo entre dois estratos determinados cuja organi- zao vegetal sobre um deles imita uma organizao animal sobre o ou- tro. Ao mesmo tempo trata-se de algo completamente diferente: no mais imitao, mas captura de cdigo, mais-valia de cdigo, aumento de valncia, verdadeiro devir, devir-vespa da orqudea, devir-orqudea da vespa, cada um destes devires assegurando a desterritorializaqo de um dos termos e a reterritorializao do outro, os dois devires se encadeando e se revezan- do segundo uma circulao de intensidades que empurra a desterritoria- lizao cada vez mais longe. No h imitao nem semelhana, mas ex- ploso de duas sries heterogneas na linha de fuga composta de um rizoma comum que no pode mais ser atribudo, nem submetido ao que quer que seja de significante. Rmy Chauvin diz muito bem: "Evoluo a-paralela de dois seres que no tm absolutamente nada a ver um com o outro3". Mais geralmente, pode acontecer que os esquemas de evoluo sejam le- vados a abandonar o velho modelo da rvore e da descendncia. Em ter- tas condies, um vrus pode conectar-se a clulas germinais e transmitir- se como gene celular de uma espcie complexa; alm disso, ele poderia fugir, passar em clulas de uma outra espcie, no sem carregar "informaes genticas" vindas do primeiro anfitrio (como evidenciam as pesquisas atuais de Benveniste e Todaro sobre um vrus de tipo C, em sua dupla co- nexo com o ADN do babuno e o ADN de certas espcies de gatos do- msticos). Os esquemas de evoluo no se fariam mais somente segundo modelos de descendncia arborescente, indo do menos diferenciado ao mais diferenciado, mas segundo um rizoma que opera imediatamente no hete- rogneo e salta de uma linha j diferenciada a uma outra4. o caso, ainda aqui, da a evoluo a-paralela do babuno e do gato, onde um no evi- dentemente o modelo do outro, nem o outro a cpia do primeiro (um devir-

    Rmy Chauvin, in Entretiens sur la sexualit, Plon, p. 205.

    Sbre os trabalhos de R.E. Benveniste e G.J. Todaro, cf. Yves Christen, "Le rle des virus dans l'volutionn, La Recherche, no 54, maro de 1975: "Aps integrao- extrao numa clula, e tendo havido um erro de exciso, os vrus podem carregar frag- mentos de ADN de seu anfitrio e transmiti-los para novas clulas: , alis, a base do que se chama engenharia gentica. Da resulta que a informao gentica prpria de um organismo poderia ser transferida a um outro graas aos vrus. Se se interessa pelas si- tuaes extremas, pode-se at imaginar que esta transferncia de informao poderia efetuar-se de uma espcie mais evoluda a uma espcie menos evoluda ou geradora da precedente. Este mecanismo uncionaria ento em sentido inverso quele que a evolu- o utiliza de uma maneira clssica. Se tais passagens de informaes tivessem tido uma grande importncia, seramos at levados em certos casos a substituir esquemas reticulares (com comunicaes entre ramos aps suas diferenciaes) aos esquemas e m arbusto ou em arvore que servem hoje para representar a evoluo" (p. 271).

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  • babuno no gato no significaria que o gato "faa como" o babuno). Ns fazemos rizoma com nossos vrus, ou antes, nossos vrus nos fazem fazer rizoma com outros animais. Como diz Jacob, as transferncias de material gentico por intermdio de vrus ou por outros procedimentos, as fuses de clulas sadas de espcies diferentes, tm resultados anlogos queles dos "amores abominveis apreciados na Antiguidade e na Idade Mdias". Comunicaes transversais entre linhas diferenciadas embaralham as r- vores genealgicas. Buscar sempre o molecular, ou mesmo a partcula sub- molecular com a qual fazemos aliana. Evolumos e morremos devido a nossas gripes polimrficas e rizomticas mais do que devido a nossas doen- as de descendncia ou que tm elas mesma sua descendncia. O rizoma uma antigenealogia.

    a mesma coisa quanto ao livro e ao mundo: o livro no a ima- gem do mundo segundo uma crena enraizada. Ele faz rizoma com o mun- do, h evoluo a-paralela do livro e do mundo, o livro assegura a dester- ritorializao do mundo, mas o mundo opera uma reterritorializao do livro, que se desterritorializa por sua vez em si mesmo no mundo (se ele disto capaz e se ele pode). O mimetismo um conceito muito ruim, de- pendente de uma lgica binria, para fenmenos de natureza inteiramente diferente. O crocodilo no reproduz um tronco de rvore assim como o camaleo no reproduz as cores de sua vizinhana. A Pantera Cor-de-rosa nada imita, nada reproduz; ela pinta o mundo com sua cor, rosa sobre rosa, o seu devir-mundo, de forma a tornar-se ela mesma imperceptvel, ela mesma a-significante, fazendo sua ruptura, sua linha de fuga, levando at o fim sua "evoluo a-paralela". Sabedoria das plantas: inclusive quando elas so de razes, h sempre um fora onde elas fazem rizoma com algo - com o vento, com um animal, com o homem (e tambm um aspecto pelo qual os prprios animais fazem rizoma, e os homens etc.) "A embriaguez como irrupo triunfal da planta em ns". Seguir sempre o rizoma por rup- tura, alongar, prolongar, revezar a linha de fuga, faz-la variar, at pro- duzir a linha mais abstrata e a mais tortuosa, com n dimenses, com dire- es rompidas. Conjugar os fluxos desterritorializados. Seguir as plantas: comeando por fixar os limites de uma primeira linha segundo crculos de convergncia ao redor de singularidades sucessivas; depois, observando-se, no interior desta linha, novos crculos de convergncia se estabelecem com novos pontos situados fora dos limites e em outras direes. Escrever, fa- zer rizoma, aumentar seu territrio por desterritorializao, estender a li- nha de fuga at o ponto em que ela cubra todo o plano de consistncia em uma mquina abstrata. "Primeiro, caminhe at tua primeira planta e l

    Franois Jacob, La logique du vivant, Gallimard, pp 312, 333.

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  • observe atentamente como escoa a gua de torrente a partir deste ponto. A chuva deve ter transportado os gros para longe. Siga as valas que a gua escavou, e assim conhecer a direo do escoamento. Busque ento a planta que, nesta direo, encontra-se o mais afastado da tua. Todas aquelas que crescem entre estas duas so para ti. Mais tarde, quando esta ltimas de- rem por sua vez gros, tu poders, seguindo o curso das guas, a partir de cada uma destas plantas, aumentar teu territrio6". A msica nunca dei- xou de fazer passar suas linhas de fuga, como outras tantas "multiplicidades de transformao", mesmo revertendo seus prprios cdigos, os que a estruturam ou a arborificam; por isto a forma musical, at em suas ruptu- ras e proliferaes, comparvel erva daninha, um rizoma7.

    5" e 6" - Princpio de cartografia e de decalcomania: um rizoma no pode ser justificado por nenhum modelo estrutural ou gerativo. Ele es- tranho a qualquer idia de eixo gentico ou de estrutura profunda. Um eixo gentico como uma unidade pivotante objetiva sobre a qual se organi- zam estados sucessivos; uma estrutura profunda , antes, como que uma seqncia de base decomponvel em constituintes imediatos, enquanto que a unidade do produto se apresenta numa outra dimenso, transformacional e subjetiva. No se sai, assim, do modelo representativo da rvore ou da raiz-pivotante ou fasciculada (por exemplo, a "rvore" chomskyana as- sociada sequncia de base, representando o processo de seu engendra- mento segundo uma lgica binria). Variao sobre o mais velho pensa- mento. Do eixo gentico ou da estrutura profunda, dizemos que eles so antes de tudo princpios de decalque, reprodutveis ao infinito. Toda lgi- ca da rvore uma lgica do decalque e da reproduo. Tanto na Lingus- tica quanto na Psicanlise, ela tem como objeto um inconsciente ele mes- mo representante, cristalizado em complexos codificados, repartido sobre um eixo gentico ou distribudo numa estrutura sintagmtica. Ela tem como finalidade a descrio de um estado de fato, o reequilbrio de correlaes inter-subjetivas, ou a explorao de um inconsciente j dado camuflado, nos recantos obscuros da memria e da linguagem. Ela consiste em decal- car algo que se d j feito, a partir de uma estrutura que sobrecodifica ou de um eixo que suporta. A rvore articula e hierarquiza os decalques, os decalques so como folhas da rvore.

    Carlos Castafieda, L'herbe du diable et la petite fume, Solei1 noir, p. 160.

    ' Pierre Boulez, Par volont et par hasard, Ed. du Seuil "Voc a planta num certo terreno e, bruscamente, ela se pe a proliferar como erva daninha". E passim, sobre a proliferaso musical, p. 89: "uma msica que flutua, na qual a prpria escrita traz para o instrumentista uma impossibilidade de preservar uma coincidncia com um tempo ritmado".

    Mil Plats - Vol. 1

  • Diferente o rizoma, mapa e no decalque. Fazer o mapa, no o decalque. A orqudea no reproduz o decalque da vespa, ela compe um mapa com a vespa no seio de um rizoma. Se o mapa se ope ao decalque por estar inteiramente voltado para uma experimentao ancorada no real. O mapa no reproduz um inconsciente fechado sobre ele mesmo, ele o constri. Ele contribui para a conexo dos campos, para o desbloqueio dos corpos sem rgos, para sua abertura mxima sobre um plano de con- sistncia. Ele faz parte do rizoma. O mapa aberto, conectvel em to- das as suas dimenses, desmontvel, reversvel, suscetvel de receber mo- dificaes constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido, adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um indivduo, um grupo, uma formao social. Pode-se desenh-lo numa parede, conceb- 10 como obra de arte, constru-10 como uma ao poltica ou como uma meditao. Uma das caractersticas mais importantes do rizoma talvez seja a de ter sempre mltiplas entradas; a toca, neste sentido, um rizoma ani- mal, e comporta s vezes uma ntida distino entre linha de fuga como corredor de deslocamento e os estratos de reserva ou de habitao (cf. por exemplo, a lontra). Um mapa tem mltiplas entradas contrariamente ao decalque que volta sempre "ao mesmo". Um mapa uma questo de per- formance, enquanto que o decalque remete sempre a uma presumida "com- petncia". Ao contrrio da psicanlise, da competncia psicanaltica, que achata cada desejo e enunciado sobre um eixo gentico ou uma estrutura sobrecodificante e que produz ao infinito montonos decalques dos est- gios sobre este eixo ou dos constituintes nesta estrutura, a esquizoanlise recusa toda idia de fatalidade decalcada, seja qual for o nome que se lhe d, divina, anaggica, histrica, econmica, estrutural, hereditria ou sin- tagmtica. (V-se bem como Melanie Klein no compreende o problema de cartografia de uma de suas crianas pacientes, o pequeno Richard, e con- tenta-se em produzir decalques estereotipados - dipo, o bom e o mau papai, a m e boa mame - enquanto que a criana tenta com desespero prosseguir uma performance que a psicanlise desconhece absolutamen- te8.) As pulses e objetos parciais no so nem estgios sobre o eixo gen- tico, nem posiges numa estrutura profunda, so opes polticas para pro- blemas, entradas e sadas, impasses que a criana vive politicamente, quer dizer, com toda fora de seu desejo.

    Entretanto ser que ns no restauramos um simples dualismo opon- do os mapas aos decalques, como um bom e um mau lado? No prprio do mapa poder ser decalcado? No prprio de um rizoma cruzar as ra-

    Cf. Melanie Klein, Psychanalyse d'un enfant, Tchou: o papel dos mapas de guerra nas atividades de Richard.

    Gilles Deleuze e Flix Guattari

  • zes, confundir-se s vezes com elas? Um mapa no comporta fenmenos de redundncia que j so como que seus prprios decalques? Uma multipli- cidade no tem seus estratos onde se enrazam unificaes e totalizaes, massificaes, mecanismos mimticos, tomadas de poder significantes, atri- buies subjetivas? As linhas de fuga, inclusive elas, no vo reproduzir, a

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    favor de sua divergncia eventual, formaes que elas tinham por funo desfazer ou inverter? Mas o inverso tambm verdadeiro, uma questo de mtodo: preciso sempre projetar o decalque sobre o mapa. E esta ope- rao no de forma alguma simtrica precedente, porque, com todo o rigor, no exato que um decalque reproduza o mapa. Ele antes como uma foto, um rdio que comearia por eleger ou isolar o que ele tem a in- teno de reproduzir, com a ajuda de meios artificiais, com a ajuda de colo- rantes ou outros procedimentos de coao. sempre o imitador quem cria seu modelo e o atrai. O decalque j traduziu o mapa em imagem, j trans- formou o rizoma em razes e radculas. Organizou, estabilizou, neutralizou as multiplicidades segundo eixos de significncia e de subjetivao que so os seus. Ele gerou, estruturalizou o rizoma, e o decalque j no reproduz seno ele mesmo quando cr reproduzir outra coisa. Por isto ele to pe- rigoso. Ele injeta redundncias e as propaga. O que o decalque reproduz do mapa ou do rizoma so somente os impasses, os bloqueios, os germes de piv ou os pontos de estruturao. Vejam a Psicanlise e a Lingstica: uma s tirou decalques ou fotos do inconsciente, a outra, decalques ou fotos da linguagem, com todas as traies que isto supe (no de espantar que a Psicanlise tenha ligado sua sorte da Lingstica). Vejam o que aconte- ce j ao pequeno Hans em pura Psicanlise de criana: no se parou nunca de lhe QUEBRAR SEU RIZOMA, de lhe MANCHAR SEU MAPA, de co- loc-lo no bom lugar, de lhe bloquear qualquer sada, at que ele deseje sua prpria vergonha e sua culpa, FOBIA (impede-se-lhe o rizoma do prdio, depois, o da rua, enraizando-o na cama dos pais, radiculando-o sobre seu prprio corpo, e, finalmente bloqueando-o sobre o professor Freud. Freud considera explicitamente a cartografia do pequeno Hans, mas sempre so- mente para rebat-la sobre uma foto de famlia. E vejam o que faz Melanie Klein com os mapas geopolticos do pequeno Richard: ela tira fotos, ela faz decalques, tirem fotos ou sigam o eixo, estgio gentico ou destino estrutu- ral, seu rizoma ser quebrado. Deixaro que vocs vivam e falem, com a condio de impedir qualquer sada. Quando um rizoma fechado, arbori- ficado, acabou, do desejo nada mais passa; porque sempre por rizoma que o desejo se move e produz. Toda vez que o desejo segue uma rvore acon- tecem as quedas internas que o fazem declinar e o conduzem morte; mas o rizoma opera sobre o desejo por impulses exteriores e produtivas.

    Por isto to importante tentar a outra operao, inversa mas no simtrica. Religar os decalques ao mapa, relacionar as raizes ou as rvo-

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  • res a um rizoma. Estudar o inconsciente, no caso do pequeno Hans, seria mostrar como ele tenta constituir um rizoma, com a casa da famlia, mas tambm com a linha de fuga do prdio, da rua, etc.; como estas linhas so obstrudas, como o menino enraizado na famlia, fotografado sob o pai,

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    decalcado sobre a cama materna; depois, como a interveno do profes- sor Freud assegura uma tomada de poder do significante como subjetivao dos afetos; como o menino no pode mais fugir seno sob a forma de um devir-animal apreendido como vergonhoso e culpado (o devir-cavalo do pequeno Hans, verdadeira opo poltica). Seria necessrio sempre ressituar os impasses sobre o mapa e por a abri-los sobre linhas de fuga possveis. A mesma coisa para um mapa de grupo: mostrar at que ponto do rizoma se formam fenmenos de massificao, de burocracia, de leadership, de fascistizao, etc., que linhas subsistem, no entanto, mesmo subterrneas, continuando a fazer obscuramente rizoma. O mtodo Deligny: produzir o mapa dos gestos e dos movimentos de uma criana autista, combinar vrios mapas para a mesma criana, para vrias crianas 9... Se verdade que o mapa ou o rizoma tm essencialmente entradas mltiplas, conside- raremos que se pode entrar nelas pelo caminho dos decalques ou pela via das rvores-razes, observando as precaues necessrias (renunciando-se tambm a a um dualismo maniquesta). Por exemplo, seremos seguida- mente obrigados a cair em impasses, a passar por poderes significantes e afetos subjetivos, a nos apoiar em formaes edipianas, paranicas ou ainda piores, assim como sobre territorialidades endurecidas que tornam poss- veis outras operaes transformacionais. Pode ser at que a Psicanlise sirva, no obstante ela, de ponto de apoio. Em outros casos, ao contrrio, nos apoiaremos diretamente sobre uma linha de fuga que permita explodir os estratos, romper as razes e operar novas conexes. H, ento, agencia- mentos muito diferentes de mapas-decalques, rizomas-razes, com coefi- cientes variveis de desterritorializao. Existem estruturas de rvore ou de razes nos rizomas, mas, inversamente, um galho de rvore ou uma diviso de raiz podem recomear a brotar em rizoma. A demarcao no depende aqui de anlises tericas que impliquem universais, mas de uma pragmtica que compe as multiplicidades ou conjuntos de intensidades. No corao de uma rvore, no oco de uma raiz ou na axila de um galho, um novo rizoma pode se formar. Ou ento um elemento microscpico da rvore raiz, uma radcula, que incita a produo de um rizoma. A con- tabilidade e a burocracia procedem por decalques: elas podem, no entan- to, comear a brotar, a lanar hastes de rizoma, como num romance de Kafka. Um trao intensivo comea a trabalhar por sua conta, uma percep-

    Fernand Deligny, "Voix et voir", Cahiers de l'immuable, Recherches, abril, 1975.

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  • o alucinatria, uma sinestesia, uma mutao perversa, um jogo de ima- gens se destacam e a hegemonia do significante recolocada em questo. Semiticas gestuais, mmicas, ldicas etc. retomam sua liberdade na criana e se liberam do "decalque", quer dizer, da competncia dominante da ln- gua do mestre - um acontecimento microscpico estremece o equilbrio do poder local. Assim, as rvores gerativas, construdas a partir do mode- lo sintagmtico de Chomsky, poderiam abrir-se em todos os sentidos, fa- zer, por sua vez, rizomalO. Ser rizomorfo produzir hastes e filamentos que parecem razes, ou, melhor ainda, que se conectam com elas penetrando no tronco, podendo faz-las servir a novos e estranhos usos. Estamos can- sados da rvore. No devemos mais acreditar em rvores, em razes ou radculas, j sofremos muito. Toda a cultura arborescente fundada so- bre elas, da biologia lingstica. Ao contrrio, nada belo, nada amo- roso, nada poltico a no ser que sejam arbustos subterrneos e as razes areas, o adventcio e o rizoma. Amsterd, cidade no enraizada, cidade rizoma com seus canais em hastes, onde a utilidade se conecta maior loucura, em sua relao com uma mquina de guerra comercial.

    O pensamento no arborescente e o crebro no uma matria enraizada nem ramificada. O que se chama equivocadamente de "den- dritos" no assegura uma conexo dos neurnios num tecido contnuo. A descontinuidade das clulas, o papel dos axnios, o funcionamento das sinapses, a existncia de microfendas sinpticas, o salto de cada mensa- gem por cima destas fendas fazem do crebro uma multiplicidade que, no seu plano de consistncia ou em sua articulao, banha todo um sistema, probalstico incerto, un certain nervotrs system. Muitas pessoas tm uma rvore plantada na cabea, mas o prprio crebro muito mais uma erva do que uma rvore. "O axnio e o dendrito enrolam-se um ao redor do outro como a campanulcia em torno de espinheiro, com uma sinapse em cada espinhol1." como no caso da memria ... Os neurlogos, os psicofi- silogos, distinguem uma memria longa e uma memria curta (da ordem de um minuto). Ora, a diferena no somente quantitativa: a memria curta de tipo rizoma, diagrama, enquanto que a longa arborescente e centralizada (impresso, engrama, decalque ou foto). A memria curta no de forma alguma submetida a uma lei de contigidade ou de imediatidade em relao a seu objeto; ela pode acontecer a distncia, vir ou voltar mui-

    l0 Cf. Dieter Wunderlich, "Pragmatique, situation d'nonciation et Deixis", in Langages, no 26, junho de 1972, pp. 50 sq: as tentativas de Mac Cawley, de Sadock e de Wunderlich para introduzir "propriedades pragmticas" nas rvores chomskianas.

    l1 Steven Rose, Le cerveau conscient, Ed. du Seuil, p. 97, e sobre a memria, pp. 250 sq.

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  • to tempo depois, mas sempre em condies de descontinuidade, de ruptu- ra e de multiplicidade. Alm disto, as duas memrias no se distinguem como dois modos temporais de apreenso da mesma coisa; no a mes- ma coisa, no a mesma recordao, no tambm a mesma idia que elas apreendem. Esplendor de um Idia curta: escreve-se com a memria curta, logo, com idias curtas, mesmo que se leia e releia com a longa me- mria dos longos conceitos. A memria curta compreende o esquecimen- to como processo; ela no se confunde com o instante, mas com o rizoma coletivo, temporal e nervoso. A memria longa (famlia, raa, sociedade ou civilizao) decalca e traduz, mas o que ela traduz continua a agir nela, i distncia, a contratempo, "intempestivamente", no instantaneamente.

    A rvore ou a raiz inspiram uma triste imagem do pensamento que no pra de imitar o mltiplo a partir de uma unidade superior, de centro ou de segmento. Com efeito, se se considera o conjunto galhos-razes, o tronco desempenha o papel de segmento oposto para um dos subconjuntos percorridos de baixo para cima: um tal segmento ser um "dipolo de liga- o", diferentemente dos "dipolos-unidades" que formam os raios que emana de um nico centro12. Mas as prprias ligaes podem proliferar como no sistema radcula, permanecendo no Um-Dois e nas multiplicidades s fingidas. As regeneraes, as reprodues, os retornos, as hidras e as medusas no nos fazem tambm sair disto. Os sistemas arborescentes so sistemas hierrquicos que comportam centros de significncia e de sub- jetivao, autmatos centrais como memrias organizadas. Acontece que os modelos correspondentes so tais que um elemento s recebe suas in- formaes de uma unidade superior e uma atribuio subjetiva de ligaes preestabelecidas. V-se bem isso nos problemas atuais de informtica e de mquinas eletrnicas, que conservam ainda o mais arcaico pensamento, dado que eles conferem o poder a uma memria ou a um rgo central. Num belo artigo, que denuncia a fabricao de imagens das "arborescncias

    l2 Cf. Julien Pacotte, Le rseau arborescent, schme primordial de la pense, Hermann, 1936. Este livro analisa e desenvolve diversos esquemas da forma de arbores- cncia, que no apresentada como simples formalismo, mas como "o fundamento real do pensamento formal". Ele leva ao extremo o pensamento clssico. Recolhe todas as formas do "Uno-Dois", teoria do dipolo. O conjunto tronco-razes-galhos propicia o seguinte esquema:

    Mais recentemente, Michel Serres analisou as variedades e seqncias de rvores nos domnios cientficos os mais diferentes: como a rvore se forma a partir de uma "rede" (La traduction Ed. de Minuit, pp. 27 sq.; Feux et signaux de brume, Grasset pp. 35 sq.).

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  • de comando" (sistemas centrados ou estruturas hierrquicas), Pierre Rosen- stiehl e Jean Petitot observam: "Admitir o primado das estruturas hierr- quicas significa privilegiar as estruturas arborescentes. (...) A forma arbo- rescente admite uma explicao topolgica. (...) Num sistema hierrqui- co, um indivduo admite somente um vizinho ativo, seu superior hierr- quico. (...) Os canais de transmisso so preestabelecidos: a arborescncia preexiste ao indivduo que nela se integra num lugar preciso" (significncia e subjetivao). Os autores assinalam, a esse respeito, que, mesmo quan- do se acredita atingir uma multiplicidade, pode acontecer que esta multi- plicidade seja falsa - o que chamamos tipo radcula - porque sua apre- sentao ou seu enunciado de aparncia no hierrquica no admitem de fato seno uma soluo totalmente hierrquica: o caso do famoso teo- rema da amizade - "se, numa sociedade, dois indivduos quaisquer tm exatamente um amigo comum, ento existe um indivduo amigo de todos os outros". (Como dizem Rosenstiehl e Petitot, quem o amigo comum? "o amigo universal desta sociedade de casais, mestre, confessor, mdico? outras tantas idias que so estranhamente distantes dos axiomas de par- tida", o amigo do gnero humano? ou bem o filsofo como aparece no pensamento clssico, mesmo se a unidade abortada que valha somente por sua prpria ausncia ou sua subjetividade, dizendo eu no sei nada, eu no sou nada.) Os autores falam, a esse respeito, de teoremas de dita- dura. Este o princpio das rvores-razes, ou a sada, a soluo das rad- culas, a estrutura do Prover13.

    A estes sistemas centrados, os autores opem sistemas a-centrados, redes de autmatos finitos, nos quais a comunicao se faz de um vizinho a um vizinho qualquer, onde as hastes ou canais no preexistem, nos quais os indivduos so todos intercambiveis, se definem somente por um esta-

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    do a tal momento, de tal maneira que as operaes locais se coordenam e o resultado final global se sincroniza independente de uma instncia cen- tral. Uma transduo de estados intensivos substitui a topologia, e "o grafismo que regula a circulao de informao de algum modo o opos- to do grafismo hierrquico ... No h qualquer razo para que esse gra- fismo seja uma rvore (chamvamos mapa um tal grafismo). Problema da mquina de guerra, ou do Firing Squad: um general de fato necessrio para que rt indivduos cheguem ao mesmo tempo ao momento do dispa- ro? A soluo sem general aparece para uma multiplicidade a-centrada que

    l3 Pierre Rosenstiehl e Jean Petitot, "Automate asocial et systmes acentrs", in Communications, no 22,1974. Sobre o teorema da amizade, cf. H.S. Wilf, The Friendship Theorem in Cornbinatorial Mathematics, Welsh Academic Press; e, sobre um teorema de mesmo tipo, dito de indeciso coletiva, cf. K.J. Arrow, Choix collectif et prfrences individuelles, Calmann-Lvy.

    Mil Plats - Vol. 1

  • comporta um nmero finito de estados e de sinais de velocidade corres- pondente, do ponto de vista de um rizoma de guerra ou de uma lgica da guerrilha, sem decalque, sem cpia de uma ordem central. Demonstra-se mesmo que uma tal multiplicidade, agenciamento ou sociedade maqunicos, rejeita como "intruso a-social" todo autmato centralizador, unificador14. N, desde ento, ser sempre n-1. Rosenstiehl e Petitot insistem no fato de que a oposio centro a-centrado vale menos pelas coisas que ela designa do que pelos modos de clculos que aplica s coisas. rvores podem cor- responder ao rizoma, ou, inversamente, germinar em rizoma. E verdade geralmente que uma mesma coisa admite os dois modos de clculos ou os dois tipos de regulao, mas no sem mudar singularmente de estado tan- to num caso quanto no outro. Seja, por exemplo, ainda a Psicanlise: no somente em sua teoria, mas em sua prtica de clculo e de tratamento, ela submete o inconsciente a estruturas arborescentes, a grafismos hierrqui- cos, a memrias recapituladoras, rgos centrais, falo, rvore-falo. A Psi- canlise no pode mudar de mtodo a este respeito: sobre uma concepo ditatorial do inconsciente ela funda seu prprio poder ditatorial. A mar- gem de manobra da Psicanlise , por isto, muito limitada. H sempre um . general, um chefe, na Psicanlise como em seu objeto (general Freud). Ao contrrio, tratando o inconsciente como um sistema a-centrado, quer di- zer, como uma rede maqunica de autmatos finitos (rizoma), a esquizo- anlise atinge um estado inteiramente diferente do inconsciente. As mes- mas observaes valem em Lingstica; Rosenstiehl e Petitot consideram com razo a possibilidade de uma "organizao a-centrada de uma socie- dade de palavras". Para os enunciados como para os desejos, a questo no nunca reduzir o inconsciente, interpret-lo ou faz-lo significar segun- do uma rvore. A questo produzir inconsciente e, com ele, novos enun- ciados, outros desejos: o rizoma esta produo de inconsciente mesmo.

    curioso como a rvore dominou a realidade ocidental e todo o pensamento ocidental, da botnica biologia, a anatomia, mas tambm a

    l4 Ibid. O carter principal do sistema a-centrado que as iniciativas locais so coordenadas independentemente de uma instncia central, fazendo-se clculo no conjunto da rede (multiplicidade). " por isto que o nico lugar onde pode ser constitudo um fichrio possvel das pessoas est entre as prprias pessoas, as nicas capazes de serem portado- res de sua descrio e de mant-la em dia: a sociedade o nico fichrio de pessoas. Uma sociedade a-centrada natural rejeita como intruso asocial o autmato centralizador" (p. 62). Sobre o "teorema de Firing Squad", pp. 51-57. Acontece inclusive que generais, em seu sonho de apropriao das tcnicas formiis de guerrilha, faam apelo a multiplicidades de "mdulos sncronos", "com base em clulas leves, numerosas, mas independentes", comportando teoricamente s um mnimo de poder central e de "modulao hierrqui- ca": como, por exemplo, Guy Brossollet, Essai sur la non-bataille, Belin, 1975.

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  • gnoseo!ogia7 a teologia, a ontologia, toda a filosofia ... : o fundamento-raiz, Grund, roots e fundtions. O Ocidente tem uma relao privilegiada com a floresta e com o desmatamento; os campos conquistados no lugar da floresta so povoados de plantas de gros, objeto de uma cultura de linha- gens, incidindo sobre a espcie e de tipo arborescente; a criao, por sua vez, desenvolvida em regime de alqueire, seleciona as linhagens que for- mam uma arborescncia animal. O Oriente apresenta uma outra figura: a relao com a estepe e o jardim (em outros casos, o deserto e o osis) em vez de uma relao com a floresta e o campo: uma cultura de tubrculos que procede por fragmentao do indivduo; um afastamento, um pr entre parnteses a criao confinada em espaos fechados ou relegada estepe dos nmades. Ocidente, agricultura de uma linhagem escolhida com mui- tos indivduos variveis; Oriente, horticultura de um pequeno nmero de indivduos remetendo a uma grande gama de "clones". No existiria no Oriente, notadamente na Oceania, algo como que um modelo rizomtico que se ope sob todos os aspectos ao modelo ocidental da rvore? Hau- dricourt v a uma razo da oposio entre as morais ou filosofias da trans- cendncia, caras ao Ocidente, quelas da imanncia no Oriente: o Deus que semeia e que ceifa, por oposio ao Deus que pica e desenterra (picar contra semearls). Transcendncia, doena propriamente europia. E, de resto, no a mesma msica, a terra, no tem a a mesma msica. E tam- bm no a mesma sexualidade: as plantas de gro, mesmo reunindo os dois sexos, submetem a sexualidade ao modelo da reproduo; o rizoma, ao contrrio, uma liberao da sexualidade, no somente em relao reproduo, mas tambm em relao genitalidade. No Ocidente a rvo- re plantou-se nos corpos, ela endureceu e estratificou at os sexos. Ns per- demos o rizoma ou a erva. Henry Miller: "A China a erva daninha no canteiro de repolhos da humanidade (...). A erva daninha a Nmesis dos esforos humanos. Entre todas as existncias imaginrias que ns atribu- mos as plantas, aos animais e s estrelas, talvez a erva daninha aquela que leva a vida mais sbia. verdade que a erva no produz flores nem porta-avies, nem Sermes sobre a montanha (...). Mas, afinal de contas, sempre a erva quem diz a ltima palavra. Finalmente, tudo retorna ao

    l5 Sobre a agricultura ocidental das plantas de gro e a horticultura oriental dos tubrculos, sobre a oposio semear picar, sobre as diferenas em relao criao animal, cf. Haudricourt, "Domestication des animaux, culture des plantes et traitement d'autrui", (L'home, 1962) e L'origine des clones et des clans" (L'home, janvier 1964). O milho e o arroz no so objeges: so cereais "adotados tardiamente pelos cultivadores de tubrculos" e tratados de maneira correspondente; provvel que o arroz "tenha aparecido como erva daninha nos sulcos destinados a outras culturas.

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  • estado de China. isto que os historiadores chamam comumente de tre- vas da Idade Mdia. A nica sada a erva (...). A erva existe exclusiva- mente entre os grandes espaos no cultivados. Ela preenche os vazios. Ela cresce entre, e no meio das outras coisas. A flor bela, o repolho til, a papoula enlouquece. Mas a erva transbordamento, ela uma lio de moral16". - De que China fala Miller, da antiga, da atual, de uma imagi- nria, ou bem de uma outra ainda que faria parte de um mapa movedio?

    preciso criar um lugar parte para a Amrica. Claro, ela no est isenta da dominao das rvores e de uma busca das razes. V-se isto at na literatura, na busca de uma identidade nacional, e mesmo de uma as- cendncia ou genealogia europias (Kerouac parte em busca de seus an- cestrais). O que vale que tudo o que aconteceu de importante, tudo o que acontece de importante, procede por rizoma americano: beatnik, under- ground, subterrneos, bandos e gangues, empuxos laterais sucessivos em conexo imediata com um fora. Diferena entre o livro americano e o li- vro europeu, inclusive quando o americano se pe na pista das rvores. Diferenas na concepo do livro. "Folhas de erva". E, no interior da Amrica, no so sempre as mesmas direes: leste se faz a busca arbo- rescente e o retorno ao velho mundo. Mas o oeste rizomtico, com seus ndios sem ascendncia, seu limite sempre fugidio, suas fronteiras move- dias e deslocadas. Todo um "mapa" americano, no oeste, onde at as r- vores fazem rizoma. A Amrica inverteu as direes: ela colocou seu oriente no oeste, como se terra tivesse se tornado redonda precisamente na Am- rica; seu oeste a prpria franja do leste17. (No a ndia, como acredita- va Haudricourt, o intermedirio entre o Ocidente e o Oriente, a Amri- ca que faz Piv e mecanismo de inverso.) A cantora americana Patti Smith canta a bblia do dentista americano: no procure a raiz, siga o canal ...

    l6 Henry Miller, Hamlet, Corra, pp. 48-49.

    l7 Cf. Leslie Fiedler, Le retour du Peau-rouge, Ed. du Seuil. Encontra-se neste li- vro uma bela anlise da geografia, de seu papel mitolgico e literrio na Amrica e da inverso das direes. A leste, a busca de um cdigo propriamente americano, e tam- bm de uma recodificao com a Europa (Henry James, Eliot, Pound etc.); a sobre- codificao escravagista no sul, com sua prpria runa e a das plantaes na guerra de Secesso (Faulkner, Caldwell); a descodificao capitalista que vem do norte (Dos Pas- sos, Dreiser); mas o papel do oeste, como linha de fuga, onde se conjugam a viagem, a alucinao, a loucura, o ndio, a experimentao perceptiva e mental, a mobilidade das fronteiras, o rizoma (Ken Kesey e sua "mquina produtora de enevoante"; a gerao beatnik etc.). Cada grande autor americano faz uma cartografia, inclusive por seu esti- lo; contrariamente ao que acontece na Europa, ele faz um mapa que se conecta direta- mente com os movimentos sociais reais que atravessam a Amrica. Por exemplo, a de- marcao das direes geogrficas em toda a obra de Fitzgerald.

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  • No existiriam ento duas burocracias e at trs (e mais ainda)? A burocracia ocidental: com sua origem agrria, cadastral, as razes e os campos, as rvores e seu papel de fronteiras, o grande recenseamento de Guilherme, o Conquistador, a feudalidade, a poltica dos reis da Frana, assentar o Estado sobre a propriedade, negociar as terras pela guerra, os processos e os casamentos. Os reis da Frana escolhem o lrio, porque uma planta com razes profundas prendendo os talos. Seria a mesma coi- sa no Oriente? Seguramente, muito fcil apresentar um Oriente de rizoma e de imanncia; mas o Estado no age nele segundo um esquema de arbo-

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    rescncia correspondente a classes preestabelecidas, arborificadas e enrai- zadas: uma burocracia de canais, por exemplo o famoso poder hidruli- co feito de "propriedade fraca", onde o Estado engendra classes cana- lizantes e canalizadas (cf. o que nunca foi refutado nas teses de Wittfogel). O dspota age a como rio, e no como uma fonte que seria ainda um ponto, ponto-rvore ou raiz; ele esposa as guas bem mais do que senta-se sob a rvore; e a rvore de Buda torna-se ela mesma rizoma; o rio de Mao Ts- Tung e a rvore de Lus. Ainda neste caso a Amrica no teria procedido como intermediria? Porque ela age ao mesmo tempo por extermnios, li- quidaes internas (no somente os ndios, mas os fazendeiros etc.) e por empuxos sucessivos externos de imigraes. O fluxo do capital produz a um imenso canal, uma quantificao de poder, com uns "quanta" imediatos onde cada um goza i sua maneira na passagem do fluxo-dinheiro (de onde o mito-realidade do pobre que se torna milionrio para tornar-se nova- mente pobre): tudo se rene assim, na Amrica, ao mesmo tempo rvore e canal, raiz e rizoma. No existe capitalismo universal e, em si, o capita- lismo existe no cruzamento de toda sorte de formaes, ele sempre por natureza neocapitalismo, ele inventa para o pior sua face de oriente e sua face de ocidente, alm de seu remanejamento dos dois.

    Estamos ao mesmo tempo num mau caminho com todas estas dis- tribuies geogrficas. Um impasse, tanto melhor. Se se trata de mostrar que os rizomas tm tambm seu prprio despotismo, sua prpria hierarquia, mais duros ainda, muito bem, porque no existe dualismo, no existe dua- lismo ontolgico aqui e ali, no existe dualismo axiolgico do bom e do mau, nem mistura ou sntese americana. Existem ns de arborescncia nos rizomas, empuxos rizomticos nas razes. Bem mais, existem formaes despticas, de imanncia e de canalizao, prprias aos rizomas. H de- formaes anrquicas no sistema transcendente das rvores; razes areas e hastes subterrneas. O que conta que a rvore-raiz e o rizoma-canal no se opem como dois modelos: um age como modelo e como decalque transcendentes, mesmo que engendre suas prprias fugas; o outro age como processo imanente que reverte o modelo e esboa um mapa, mesmo que constitua suas prprias hierarquias, e inclusive ele suscite um canal des-

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  • ptico. No se trata de tal ou qual lugar sobre a terra, nem de tal momen- to na histria, ainda menos de tal ou qual categoria no esprito. Trata-se do modelo que no pra de se erigir e de se entranhar, e do processo que no pra de se alongar, de romper-se e de retomar. Nem outro nem novo dualismo. Problema de escrita: so absolutamente necessrias expresses anexatas para designar algo exatamente. E de modo algum porque seria necessrio passar por isto, nem porque poder-se-ia proceder somente por aproximaes: a anexatido no de forma alguma uma aproximao; ela , ao contrrio, a passagem exata daquilo que se faz. Invocamos um dua- lismo para recusar um outro. Servimo-nos de um dualismo de modelos para atingir um processo que se recusa todo modelo. necessrio cada vez corretores cerebrais que desfaam os dualismos que no quisemos fazer e pelos quais passamos. Chegar frmula mgica que buscamos todos: PLU- RALISMO = MONISMO, passando por todos os dualismos que consti- tuem o inimigo necessrio, o mvel que no paramos de deslocar.

    Resumamos os principais caracteres de um rizoma: diferentemente das rvores ou de suas razes, o rizoma conecta um ponto qualquer com outro ponto qualquer e cada um de seus traos no remete necessariamente a traos de mesma natureza; ele pe em jogo regimes de signos muito di- ferentes, inclusive estados de no-signos. O rizoma no se deixa reconduzir nem ao Uno nem ao mltiplo. Ele no o Uno que se torna dois, nem mesmo que se tornaria diretamente trs, quatro ou cinco etc. Ele no um mltiplo que deriva do Uno, nem ao qual o Uno se acrescentaria (n+l). Ele no feito de unidades, mas de dimenses, ou antes de direes mo- vedias. Ele no tem comeo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda. Ele constitui multiplicidades lineares a n dimenses, sem sujeito nem objeto, exibveis num plano de consistncia e do qual o Uno sempre subtrado (n-1). Uma tal multiplicidade no varia suas di- menses sem mudar de natureza nela mesma e se metamorfosear. Oposto a uma estrutura, que se define por um conjunto de pontos e posies, por correlaes binrias entre estes pontos e relaes biunvocas entre estas po- sies, o rizoma feito somente de linhas: linhas de segmentaridade, de estratificao, como dimenses, mas tambm linha de fuga ou de dester- ritorializao como dimenso mxima segundo a qual, em seguindo-a, a multiplicidade se metamorfoseia, mudando de natureza. No se deve con- fundir tais linhas ou lineamentos com linhagens de tipo arborescente, que so somente ligaes localizveis entre pontos e posies. Oposto rvo- re, o rizoma no objeto de reproduo: nem reproduo externa como rvore-imagem, nem reproduo interna como a estrutura-rvore. O rizoma uma antigenealogia. uma memria curta ou uma antimemria. O ri- zoma procede por variao, expanso, conquista, captura, picada. Oposto ao grafismo, ao desenho ou fotografia, oposto aos decalques, o rizoma

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  • se refere a um mapa que deve ser produzido, construdo, sempre desmon- tvel, conectvel, reversvel, modificvel, com mltiplas entradas e sadas, com suas linhas de fuga. So os decalques que preciso referir aos mapas e no o inverso. Contra os sistemas centrados (e mesmo policentrados), de comunicao hierrquica e ligaes preestabelecidas, o rizoma um sis- tema a-centrado no hierrquico e no significante, sem General, sem me- mria organizadora ou autmato central, unicamente definido por uma circulao de estados. O que est em questo no rizoma uma relao com a sexualidade, mas tambm com o animal, com o vegetal, com o mundo, com a poltica, com o livro, com as coisas da natureza e do artifcio, rela- o totalmente diferente da relao arborescente: todo tipo de "devires".

    Um plat est sempre no meio, nem incio nem fim. Um rizorna feito de plats. Gregory Bateson serve-se da palavra "plat" para designar algo muito especial: uma regio contnua de intensidades, vibrando sobre ela mesma, e que se desenvolve evitando toda orientao sobre um ponto culminante ou em dirego a uma finalidade exterior. Bateson cita como exemplo a cultura balinense, onde jogos sexuais me-filho, ou bem que- relas entre homens, passam por essa estranha estabilizao intensiva. "Um tipo de plat contnuo de intensidade substitui o orgasmo", a guerra ou um ponto culminante. um trao deplorvel do esprito ocidental referir as expresses e as aes a fins exteriores ou transcendentes em lugar de consider-los num plano de imanncia segundo seu valor em si18. Por exem- plo, uma vez que um livro feito de captulos, ele possui seus pontos cul- minantes, seus pontos de concluso. Contrariamente, o que acontece a um livro feito de "plats" que se comunicam uns com os outros atravs de microfendas, como num crebro? Chamamos "plat" toda multiplicida- de conectvel com outras hastes subterrneas superficiais de maneira a formar e estender um rizoma. Escrevemos este livro como um rizoma. Compusemo-lo com plats. Demos a ele uma forma circular, mas isto foi feito para rir. Cada manh levantvamos e cada um de ns se perguntava que plats ele ia pegar, escrevendo cinco linhas aqui, dez linhas alhures. Tivemos experincias alucinatrias, vimos linhas, como fileiras de formi- guinhas, abandonar um plat para ir a um outro. Fizemos crculos de con- vergncia. Cada plat pode ser lido em qualquer posio e posto em rela- o com qualquer outro. Para o mltiplo, necessrio um mtodo que o faa efetivamente; nenhuma astcia tipogrfica, nenhuma habilidade lexi- cal, mistura ou criao de palavras, nenhuma audcia sinttica podem substitu-10. Estas, de fato, mais frequentemente, so apenas procedimen-

    l8 Bateson, Vers une cologie de Z'esprit, t. 1, Ed. du Seuil, pp. 125-126. Obser- va-se- que a palavra "plat" classicamente empregada no estudo dos bulbos, tubr- culos e rizomas: cf. Dictionnaire de botanique de Baillon, artigo "Bulbo".

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  • tos mimticos destinados a disseminar ou deslocar uma unidade mantida numa outra dimenso para um livro-imagem. Tecnonarcisismo. As cria- es tipogrficas, lexicais ou sintticas so necessrias somente quando deixam de pertencer forma de expresso de uma unidade escondida para se tornarem uma das dimenses da multiplicidade considerada; conhece- mos poucas experincias bem-sucedidas neste @nero19. No que nos diz res- peito no soubemos faz-lo. Empregamos somente palavras que, por sua vez, funcionavam para ns como piats. RIZOMTICA = ESQUIZOANA- LISE = ESTRATOANLISE = PRAGMATICA = MICROPOL~TICA. Estas palavras so conceitos, mas os conceitos so linhas, quer dizer, sistemas de nmeros ligados a esta ou aquela dimenso das multiplicidades (estra- tos, cadeias moleculares, linhas de fuga ou de ruptura, crculos de conver- gncia, etc.). De forma alguma pretendemos ao ttulo de cincia. No re- conhecemos nem cientificidade nem ideologia, somente agenciamentos. O que existe so os agenciamentos maqunicos de desejo assim como os agen- ciamentos coletivos de enunciao. Sem significncia e sem subjetivao: escrever a n (toda enunciao individuada permanece prisioneira das sig- nificaes dominantes, todo desejo significante remete a sujeitos domina- dos). Um agenciamento em sua multiplicidade trabalha forosamente, ao mesmo tempo, sobre fluxos semiticos, fluxos materiais e fluxos sociais (independentemente da retomada que pode ser feita dele num corpus te- rico ou cientfico). No se tem mais uma tripartio entre um campo de realidade, o mundo, um campo de representao, o livro, e um campo de subjetividade, o autor. Mas um agenciamento pe em conexo certas multi- plicidades tomadas em cada uma destas ordens, de tal maneira que um livro no tem sua continuao no livro seguinte, nem seu objeto no mundo nem seu sujeito em um ou em vrios autores. Resumindo, parece-nos que a escrita nunca se far suficientemente em nome de um fora. O fora no tem imagem, nem significao, nem subjetividade. O livro, agenciamento com o fora contra o livro-imagem do mundo. Um livro rizoma, e no mais dicotmico, pivotante ou fasciculado. Nunca fazer raiz, nem plantar, se bem que seja difcil no recair nos velhos procedimentos. "As coisas que me vm ao esprito se apresentam no por sua raiz, mas por um ponto qualquer situado em seu meio. Tentem ento ret-las, tentem ento reter um pedao de erva que comea a crescer somente no meio da haste e man- ter-se ao lado"20. Por que to difcil? desde logo uma questo de se-

    l9 o caso de Joelle de la Casinire, Absolument ncessaire, Ed. de Minuit, que um livro verdadeiramente nmade. Na mesma direo, cf. as pesquisas do "Montfaucon Research Center".

    20 Kafka, Journal, Grasset, p. 4.

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  • mitica perceptiva. No fcil perceber as coisas pelo meio, e no de cima para baixo, da esquerda para a direita ou inversamente: tentem e vero que tudo muda. No fcil ver a erva nas coisas e nas palavras (Nietzsche dizia da mesma maneira que um aforismo devia ser "ruminado", e jamais um plat separvel das vacas que o povoam e que so tambm as nu- vens do cu).

    Escreve-se a histria, mas ela sempre foi escrita do ponto de vista dos sedentrios, e em nome de um aparelho unitrio de Estado, pelo menos possvel, inclusive quando se falava sobre nmades. O que falta uma Nomadologia, o contrrio de uma histria. No entanto, a tambm encon- tram-se raros e grandes sucessos, por exemplo a propsito de cruzadas de crianas: o livro de Marcel Schwob, que multiplica os relatos como ou- tros tantos de plats de dimenses variveis. O livro de Andrzejewski, Les Portes du Paradis, feito de uma nica frase ininterrupta, fluxo de crian- as, fluxo de caminhada com pisoteamento, estiramento, precipitao, fluxo semitico de todas as confisses de crianas que vm declarar-se ao velho monge no incio do cortejo, fluxo de desejo e de sexualidade, cada um tendo partido por amor, e mais ou menos diretamente conduzido pelo negro desejo pstumo e pederstico do conde de Vendme, com crculos de con- vergncia - o importante no que os fluxos produzam "Uno ou mlti- plo", no estamos mais nessa: h um agenciamento coletivo de enunciao, um agenciamento maqunico de desejo, um no outro, e ligados num pro- digioso fora que faz multiplicidade de toda maneira. E depois, mais recen- temente, o livro de Armand Farrachi sobre a IV cruzada, La dislocation, em que as frases afastam-se e se dispersam ou bem se empurram e coexis- tem, e as letras, a tipografia se pe a danar medida que a cruzada delira21. Eis modelos de escrita nmade e rizomtica. A escrita esposa uma mqui- na de guerra e linhas de fuga, abandona os estratos, as segmentaridades, a sedentaridade, o aparelho de Estado. Mas por que ainda necessrio um modelo? O livro no seria ainda uma "imagem" das cruzadas? No exis- tiria ainda uma unidade salvaguardada, como unidade pivotante no caso de Schwob, como unidade abortada no caso de Farrachi, como unidade do Conde morturia no caso mais belo das Portes du Paradis? Seria ne- cessrio um nomadismo mais profundo que aquele das cruzadas, o dos ver- dadeiros nmades ou ainda o nomadismo daqueles que nem se mexem, e que no imitam nada? Eles agenciam somente. Como encontrar o livro

    21 Marcel Schowob, La croisade des enfants, 1986; Jersy Andrzejewski, Les por- tes du paradis, 1959, Gallimard; Armand Farrachi, La dislocation, 1974, Stock. a propsito do livro de Schwob que Paul Alphandry dizia que a literatura, em alguns casos, podia renovar a histria e lhe impor "verdadeiras direes de pesquisas" (La chrtient et l'ide de croisade, t 11, Albin Michel, p. 116).

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  • um fora suficiente com a qual ele possa agenciar no heterogneo,em vez de reproduzir um mundo? Cultural, o livro forosamente um decalque: de antemo, decalque dele mesmo, decalque do livro precedente do mes- mo autor, decalque de outros livros sejam quais forem as diferenqas, de- calque interminvel de conceitos e de palavras bem situados, reproduo do mundo presente, passado ou por vir. Mas o livro anticultural pode ainda ser atravessado por uma cultura demasiado pesada: dela far, entretanto, um uso ativo de esquecimento e no de memria, de subdesenvolvimento e no de progresso a ser desenvolvido, de nomadismo e no de seden- tarismo, de mapa e no de decalque. RIZOMTICA = POP'ANLISE, mesmo que o povo tenha outra coisa a fazer do que l-lo, mesmo que os blocos de cultura universitria ou de pseudocientificidade permaneam demasiado penosos ou enfadonhos. Porque a cincia seria completamen- te louca se a deixassem agir; vejam, por exemplo, a matemtica: ela no uma cincia mas uma prodigiosa gria, e nomdica. Ainda e sobretudo no domnio terico, qualquer esboo precrio e pragmtico melhor do que o decalque de conceitos com seus cortes e seus progressos que nada mu- dam. A imperceptvel ruptura em vez do corte significante. Os nmades inventaram uma mquina de guerra contra o aparelho de Estado. Nunca a histria compreendeu o nomadismo, nunca o livro compreendeu o fora. Ao longo de uma grande histria, o Estado foi o modelo do livro e do pen- samento: o logos, o filsofo-rei, a transcendncia da Idia, a interioridade do conceito, a repblica dos espritos, o tribunal da razo, os funcionrios do pensamento, o homem legislador e sujeito. pretenso do Estado ser imagem interiorizada de uma ordem do mundo e enraizar o homem. Mas a relao de uma mquina de guerra com o fora no um outro "mode- lo", um agenciamento que torna o prprio pensamento nmade, que torna o livro uma pea para todas as mquinas mveis, uma haste para um rizoma (Kleist e Kafka contra Goethe).

    Escrever a n, n-1, escrever por intermdio de slogans: faa rizoma e no raiz, nunca plante! No semeie, pique! No seja nem uno nem mlti- plo, seja multiplicidades! Faa a linha e nunca o ponto! A velocidade trans- forma o ponto em linha22! Seja rpido, mesmo parado! Linha de chance, jogo de cintura, linha de fuga. Nunca suscite um General em voc! Nunca idias justas, justo uma idia (Godard). Tenha idias curtas. Faa mapas, nunca fotos nem desenhos. Seja a Pantera cor-de-rosa e que vossos amo- res sejam como a vespa e a orqudea, o gato e o babuno. Diz-se do velho homem rio:

    22 Cf. Paul Virilio, "Vhiculaire", in Nomades e t vagabonds, 10-18 p. 43: Sobre o surgimento da linearidade e perturbago da percepo pela velocidade.

    Gilles Deleuze e Flix Guattari

  • He don't plant tatos Dont't plant cotton Them that plants them is soon forgotten But old man river he just keeps rollin along.

    Um rizoma no comea nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermexxo. A rvore filiao, mas o rizoma aliana, unicamente aliana. A rvore impe o verbo "ser", mas o rizoma tem como tecido a conjuno "e ... e... e..." H nesta conjuno fora su- ficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser. Para onde vai voc? De onde voc vem? Aonde quer chegar? So questes inteis. Fazer tabula rasa, par- tir ou repartir de zero, buscar um comeo, ou um fundamento, implicam uma falsa concepo da viagem e do movimento (metdico, pedaggico, inicitico, simblico...). Kleist, Lenz ou Buchner tm outra maneira de viajar e tambm de se mover, partir do meio, pelo meio, entrar e sair, no come- ar nem terminar23. Mas ainda, a literatura americana, e j inglesa, que manifestaram este sentido rizomtico, souberam mover-se entre as coisas, instaurar uma lgica do E, reverter a ontologia, destituir o fundamento, anular fim e comeo. Elas souberam fazer uma pragmtica. que o meio no uma mdia; ao contrrio, o lugar onde as coisas adquirem veloci- dade. Entre as coisas no designa uma correlao localizvel que vai de uma para outra e reciprocamente, mas uma direo perpendicular, um mo- vimento transversal que as carrega uma e outra, riacho sem incio nem fim, que ri suas duas margens e adquire velocidade no meio.

    23 Cf. J.C. Bailly, La Igende dzsperse, 10-18: a descrio do movimento no ro- mantismo alemo, pp. 18 sq.

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    capa.pdfGiles Deleuze & Flix Guattari. Rizoma. In Mil Plats vol I.pdf